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ANO XIX - Nº 445

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1º DE AGOSTO DE 2015

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0445
ASSINANTE
EXEMPLAR DE

VENDA PROIBIDA

JUDICIALIZAÇÃO E
ATIVISMO JUDICIAL
NUANCES JURÍDICAS
CONTEXTO COM A PALAVRA PONTO DE VISTA
PETER EISENBARTH EDUARDO FELIPE P. MATIAS ARMANDO CASTELAR PINHEIRO
SUPREMO DIREITO FUNDAMENTAL A GRANDE CONVERGÊNCIA NOVO PACOTE DE CONCESSÕES
PORTAL JURÍDICO
SOCIEDADE DE CONSUMIDORES
OS ABUSOS PUBLICITÁRIOS E A NECESSIDADE
DE GARANTIR A DIGNIDADE DO CONSUMIDOR
“A conduta de consumir guiado pelo ímpeto mercadológico, cedendo aos apelos
publicitários, caracteriza o Homo consumens. Não se pode esquecer que, não raras
vezes, a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo é acompanhada da venda
de crédito, sob a promessa de antecipar a realização de um sonho. Essa facilidade do
crédito pode gerar outro problema: a submissão do consumidor às altas taxas de juros
e às questões sociais daí decorrentes.”

„„ POR EUJECIO COUTRIM LIMA FILHO


DIVULGAÇÃO

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PORTAL JURÍDICO

A
sociedade de consumo se alimenta e se de- O escopo central das campanhas publicitárias dirigidas
senvolve a partir dos sonhos implantados aos consumidores, visando que este se desfaça do seu di-
em seus alvos, ao mesmo tempo em que nheiro em troca de produtos e serviços postos no merca-
cuida para que tais desejos não sejam satis- do, consiste na busca da felicidade. Bauman (2008, p. 60)
feitos de modo que, de forma cíclica, possa sempre acrescenta que o principal valor da sociedade de consu-
retornar ao princípio e voltar a garantir que realizará midores é uma vida feliz, e, assim, talvez essa seja a única
os mais diversos desejos que envolvem o homem. sociedade a garantir felicidade em todos os instantes da
Marina Caminha (2009, p. 207) lembra que, para Bau- vida na terra.
man, a “sociedade de consumidores” é fundada com a Não existe um critério homogêneo para definir o grau
mercadoria como núcleo das práticas habituais, de um de felicidade sentida por cada esfera da população. A
lado, e, de outro, o permanente direcionamento no sentido depender da experiência e dos hábitos de determinado
de que a conduta seja articulada por meio do ato de consu- setor da sociedade, os fatores capazes de lhe potenciar
mir. Em conformidade com o citado autor, “a existência de a felicidade não são os mesmos a atribuir tal sensação a
uma cultura do consumo se formula na passagem de uma outras pessoas.
sociedade de produtores para uma de consumidores”. Bauman (2008, p. 21) destaca a observação de Germai-
Neste ponto, torna-se imprescindível analisar o surgi- ne Greer, para quem “há mais coisas na vida além da mí-
mento dessa denominada sociedade de consumidores e as dia”. Entretanto, em um tom crítico, reconhece que, “na
mudanças que ocorreram na esfera jurídica das pessoas e era da informação, a invisibilidade equivale à morte”.
a resposta dada pelo ordenamento jurídico no sentido de Recentemente, programa exibido na televisão aberta
tutelar essas relações, garantindo a observância da digni- expôs matéria em que uma modelo, dentro do que se pode
dade da pessoa humana. chamar de “cirurgia cosmética como negócio” (BAUMAN,
O surgimento da produção em série, viabilizada pela 2008, p. 130), perdeu 90% da visão depois de um procedi-
revolução industrial, potencializada pela revolução tec- mento cirúrgico de mudança de cor da íris. Além da ile-
nológica no período pós-Segunda Guerra Mundial, e a galidade do procedimento, a paciente alegou que este foi
revolução da informática ilustram a evolução histórica do gratuito na condição de que ela se transformasse em meio
Direito do Consumidor (MARQUES, 2009). Põe-se fim ao de divulgação da técnica cirúrgica.
entendimento, baseado em Adam Smith, de que o consu- A rapidez com que a ideia de essencialidade se modifica,
midor é o “rei do mercado”, que com sua vontade ditava o ou melhor, a grande rotatividade em relação às necessida-
que consumir ou não. des que gritam para a concretização do prazer imediato,
O consumidor perdeu esse foco quando sua vontade se coaduna perfeitamente com a noção de “liquidez” tão
passou a ser manipulada pelo marketing, pelas práticas abordada por Bauman em suas obras. Pode-se afirmar que
abusivas, dentre outras condutas que visam, principalmen- o “ambiente líquido” destoa da ideia de projetos a serem
te, à troca do dinheiro em mercadorias, sem se preocupar executados em longo prazo.
com outras questões que gravitam em torno do consumo. Destarte, as relações de consumo devem ser tuteladas
Falta ao consumidor um dos principais direitos que de forma especial pelo ordenamento jurídico. Isto por-
preenchem o núcleo da dignidade da pessoa humana: a li- que, além do fato de o ser humano estar, pela própria con-
berdade. Nesse sentido, Bauman (2008, p. 26) ressalta que dição de viver em sociedade, em constante necessidade
os compradores foram moldados pelos profissionais da de consumir, ainda existem as mazelas oriundas da im-
publicidade para desempenhar um papel de sujeito, “um posição de uma cultura consumista, das técnicas publici-
faz-de-conta que se experimenta como verdade viva”. tárias abusivas, dos pseudobenefícios do crédito fácil, dos
Os consumidores são alvo de um verdadeiro ataque de problemas ambientais gerados pelo descarte etc.
ofertas de produtos e serviços que, muitas vezes, diante Em 1985, a Organização das Nações Unidas traçou as
da “liquidez” desses bens, se misturam com a imposição diretrizes para uma legislação consumerista, consideran-
publicitária da ideia de rejeição do antigo e a apologia da do o Direito do Consumidor como um direito humano de
mais nova invenção que, bem em breve, comporá a lista nova geração, um direito social e econômico, um direito de
dos rejeitados. igualdade material do mais fraco (MARQUES, 2009, p. 26).
A conduta de consumir guiado pelo ímpeto merca- Nesse contexto, uma introdução sistemática ao Direito
dológico, cedendo aos apelos publicitários, caracteriza do Consumidor permite extrair alguns mandamentos que
o Homo consumens, o qual, na sociedade industrial, em o constituinte brasileiro de 1988 determinou em relação à
consonância com Renato Nunes Bittencourt (2011), suce- proteção do consumidor. Nos termos da Constituição Fe-
deu o Homo sapiens em nossa escala evolutiva. O autor deral, verifica-se, expressamente, que o direito do consu-
ainda ressalta que o apelo publicitário das ofertas é poten- midor é um direito fundamental (art. 5º, inciso XXXII), um
cializado pelo poder sexual, seduzindo os consumidores. princípio da ordem econômica (art. 170, inciso V), e que
Não se pode esquecer que, não raras vezes, a oferta de há comando, dirigido ao legislador infraconstitucional,
produtos e serviços no mercado de consumo é acompa- para sistematizar esta proteção em código (art. 48, ADCT).
nhada da venda de crédito, sob a promessa de antecipar Nesta senda seguiu o legislador ordinário ao elaborar a Lei
a realização de um sonho. Essa facilidade do crédito pode nº 8.078/90, a qual, já em seu art. 1º, dispõe que o Código
gerar outro problema: a submissão do consumidor às al- de Defesa do Consumidor constitui norma nos termos di-
tas taxas de juros e às questões sociais daí decorrentes. tados pelo constituinte.

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Além disso, implicitamente, também é possível extrair Kant na obra Fundamentação da Metafísica dos Costu-
da Constituição Federal alguns dispositivos igualmente mes, de Júlio Cesar Lazzari Júnior (2012, p. 127), corrobora
aplicáveis às relações de consumo. Da análise dos arts. 1º, a consagrada ideia de que, para Kant, a dignidade é um
inciso III; 5º, caput e inciso X; 37 e 219 vislumbra-se, res- atributo de todo ser humano, diferentemente das coisas.
pectivamente, o dever de observar, em relação ao consu- Kant articula que o indivíduo é um fim em si mesmo, por
midor, a dignidade da pessoa humana; os direitos à vida, isto tem dignidade, diferentemente da coisa, que é um
à privacidade, honra e imagem; o direito de ter um serviço meio para um fim.
público eficiente; e, por fim, que o incentivo ao mercado Daí o cuidado em não “coisificar” o consumidor nos
interno viabilize o bem-estar da população. mesmos termos de uma mercadoria, sob o risco de lhe
Neste ponto, a ressaltar a importância da observân- subtrair a dignidade. Diferentemente do indivíduo, a coi-
cia da dignidade da pessoa humana nas relações de sa não tem dignidade e, sim, um preço, sendo, na maioria
consumo, cumpre enfatizar que a doutrina aponta que das vezes, algo fungível.
uma das principais características do Código de Defesa Ampliando-se o exame da matéria, verifica-se que
do Consumidor é ser um microssistema multidiscipli- a personificação do consumidor em mercadoria de
nar. Significa dizer que esse sistema engloba normas e consumo afronta direitos fundamentais, ligados à dig-
princípios de diferentes ramos jurídicos, como o Direito nidade da pessoa humana. Assim, os sujeitos que têm
Constitucional, por exemplo, no que toca à dignidade da os seus direitos fundamentais violados na sociedade
pessoa humana (consumidor). consumista não são apenas aqueles inseridos no jogo,
Deste modo, ao disciplinar os princípios que devem aqueles que por uma série de motivos têm violadas sua
ser observados pela Política Nacional das Relações de liberdade, segurança, incolumidade, saúde etc. Essa
Consumo, o Código de Defesa do Consumidor expressa cultura também bloqueia direitos fundamentais daque-
que o respeito à dignidade do consumidor é um objeti- les que estão fora da partida.
vo a ser alcançado. Não se pode olvidar dos abusos dirigidos àqueles que,
Neste diapasão, cabe uma reflexão em relação à vio- por alguma questão física ou psíquica, precisam de maior
lação da dignidade, tanto daquele que está no jogo do acuidade em relação às ofertas postas no mercado de con-
mercado, de quem se subtrai até mesmo a liberdade no sumo. Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça tem
“querer”, quanto daqueles que estão de fora, incapazes de entendido os idosos e as crianças como hipervulneráveis,
participar do jogo do consumo. ou seja, dispõe que, se o consumidor já está em uma situa-
De acordo com as lições do Professor Marcelo Nove- ção de vulnerabilidade perante os fornecedores, os idosos
lino (2012), a dignidade da pessoa humana é um valor e as crianças estão muito mais.
supremo consagrado na Constituição. Não significa que Portanto, impõe-se a efetivação dos direitos adquiridos
sempre prevalecerá, mas terá um valor maior quando se pelos consumidores, principalmente a tutela em âmbito
questionar sua aplicação. Não é considerada um direito, coletivo, de modo que sejam rechaçadas as práticas abu-
mas um valor ou atributo que todo ser humano possui, sivas e as técnicas de marketing que, inconscientemente,
independente de qualquer condição. de forma dissimulada, influenciam no comportamento
Sobre este ponto, cabe uma avaliação baseada em Im- do vulnerável, criando necessidades, desejos e prometen-
manuel Kant. A análise de Alguns aspectos da moral de do uma felicidade que jamais será cumprida.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
______. Vida para consumo. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consu-
midor. 2. ed. São Paulo: RT, 2009.
BITTENCOURT, Renato Nunes. Consumismo como fuga simbólica do real. Cadernos Zygmunt Bauman. Rio de Janeiro, v. 1, nº
1, 2011.
BRITO, Ana Fátima de; VIEIRA, Claudia Simone. Resenha do livro: modernidade líquida. Disponível em: <www.ambito-juridico.
com.br>. Acesso em: 20.07.13.
CAMINHA, Marina. A vida para o consumo: sujeitos como mercadoria. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunica-
ção. Universidade Federal Fluminense. Revista contracampo. Niterói, nº 20, ago. 2009.
GLÓRIA, Daniel Firmato de Almeida. A livre concorrência como garantia do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey; FUMEC, 2003.
LAZZARI JÚNIOR, Júlio Cesar. Alguns aspectos da moral de Kant na obra Fundamentação da metafísica dos costumes. Prome-
teus – Filosofia em Revista. UFSE. Sergipe, ano 5, nº 9, jun. 2012.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constittucional. São Paulo: Método, 2010.

EUJECIO COUTRIM LIMA FILHO é Delegado de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá
ARQUIVO PESSOAL

(PPGD/UNESA). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Estado da Bahia. Graduado em Direito pelo Instituto de Educação
Superior Unyahna de Salvador (BA). Professor de Direito Administrativo, Direito Empresarial, Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil da
Faculdade Guanambi (BA). Ex-Advogado com atuação na área do Direito do Consumidor e Direito Público. Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia, com atuação no Juizado Especial Cível da Comarca de Guanambi (BA).

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