Você está na página 1de 5

PONTO DE VISTA

As mutações do marketing

SIDNEY CIRINO LEITE, SEM TÍTULO, 1997, TÉCNICA MISTA

Com a consolidação da Internet, velhos hábitos


mercadológicos foram questionados. A idade de ouro
do consumo de massa, quando o lançamento de um
produto, seguido de peças publicitárias nos meios
de comunicação, era acompanhado pela avidez de
compra do consumidor, parece ter chegado ao fim.
Os consumidores querem hoje ser tratados indivi-
dualmente, criando assim a necessidade de no-
vos enfoques mercadológicos, como a propaganda
boca-a-boca e o marketing de permissão.

por Julio Daio Borges DIGESTIVO CULTURAL

ara alguns, o universo da pu- desejo dele são talvez palavras co- culturais em formação, podem ter
P blicidade é um celeiro de ex-
centricidades e profissionais acos-
muns aplicadas para defini-lo.
Contudo, vez ou outra alguns
algo a nos dizer. Parece ser esse o
caso do publicitário norte-america-
sados pela pressa de ter uma nova profissionais desse universo podem no Seth Godin, que vem se tornan-
idéia a cada segundo. Criatividade, surgir com idéias mais do que me- do conhecido por algumas insti-
“romper estruturas”, inovar, conven- ramente excêntricas que, por sua gantes idéias sobre publicidade em
cer o consumidor e trabalhar com o capacidade de captar sensibilidades um momento em que a Internet se

74 • VOL.5 • Nº3 • JUL./AGO. 2006

074-078 74 14.07.06, 15:22


tornou um novo tipo de linguagem
e comportamento. Apresentamos O consumidor contemporâneo, mais sofisticado, não se
neste artigo algumas das idéias mais
deixaria envolver por um mero anúncio, mas continuaria se
instigantes de Seth Godin a as usa-
mos para uma discussão de quais deixando tocar por uma boa história, contada por alguém
são os novos desafios da área de de confiança, que o convencesse.
marketing na atualidade.

Velhos tempos. Na era do con- era possível comprar os melhores está tentando entender o mundo
sumo de massa, uma empresa lan- horários da televisão, mas o pessoal atual sob uma nova perspectiva. Seu
çava seu produto, comprava co- de marketing já percebia, de algu- nome: Seth Godin.
merciais na televisão e esperava pa- ma maneira, que sua mensagem Godin percebeu que, na virada
cientemente que a demanda fosse perdia a eficiência em algum pon- de 1999 para 2000, ou antes, algo
gerada. Era um produto homogê- to. Os consumidores não se com- havia mudado. Ele percebeu que,
neo para toda a população. No ho- portavam como sempre se compor- por exemplo, surgiu uma empresa
rário nobre nunca falhava: todo taram. O horário mais caro do ca- chamada Hotmail. Uma empresa
mundo parava para prestar atenção nal mais prestigiado parecia não que nunca fez um único anúncio na
ao anúncio. E, no dia seguinte, nos atingir mais todas as pessoas. televisão, mas que, da noite para o
supermercados, os executivos de Ao mesmo tempo, as mídias dia, gerou uma demanda espanto-
marketing poderiam apostar que começavam a se fragmentar. Onde sa, de milhões no globo. O Hotmail
seu produto estaria vendendo como antes existiam dois ou três veículos, não anunciava em nenhum lugar,
água. O consumidor era relativa- subitamente apareciam novos apenas incluía uma única linha no
mente dócil e não havia estratégias players que não chegavam a abalar final de toda mensagem que envia-
para diferenciá-lo na massa. Aliás, a audiência daqueles primeiros, mas va: “Hotmail: tenha o seu próprio e-
talvez isso nem fosse importante geravam um certo ruído que atra- mail gratuito”. Até então, se alguém
para as empresas, pois afinal ele era palhava. O consumidor, aquele que quisesse ter o seu próprio endereço
um bom comprador. a empresa e seus departamentos de eletrônico, precisava pagar por um
Mesmo com idealizações e exa- atendimento não conheciam ou do provedor de acesso à Internet e ain-
geros, esse era um mundo maravi- qual nunca tinham ouvido falar, da precisava ter seu próprio compu-
lhoso em que as demandas cresciam parecia cada vez mais indiferente tador. O Hotmail acabava com isso
com a população e a expansão dos aos seus produtos. A publicidade, tudo. Mas como? Sem aparições no
novos mercados. A televisão era fan- pouco a pouco, caiu em descrédito horário nobre, graças apenas ao cha-
tástica e, além de levar as pessoas aos e o marketing parecia não funcio- mado “boca-a-boca”.
supermercados e aos hipermercados, nar tão bem como antes. A dúvida Seth Godin ficou tão espanta-
permitia a criação dos shopping sobre o que estaria errado tornou- do com a saga do Hotmail – que
centers, dos enormes complexos de se crônica. foi vendido para a Microsoft por
diversão, da indústria e do entre- centenas de milhões de dólares –
tenimento de massas. Aparente- Senso de oportunidade. En- que teve de concluir que a propa-
mente, os velhos tempos tinham lá quanto os profissionais de marke- ganda boca-a-boca não era mais o
seus encantos. ting da “era dourada do consumo que sempre fora. Encontrando o
Mas esse estado paradisíaco al- de massas” continuam aplicando caminho aberto pelo ciberespaço,
terou-se profundamente com a che- aquelas mesmas técnicas do século havia ignorado as fronteiras geo-
gada da Internet. Claro que ainda XX no XXI, existe um sujeito que gráficas e, em forma de idéia –

© GV executivo • 75

074-078 75 14.07.06, 15:22


P O N TO D E V I S TA : AS MU TAÇ ÕES DO M ARK ET I N G

como o Hotmail –, se espalhava coisa: uma boa história. Uma boa que nunca deixaram de ser – via
agora em proporções planetárias, história para ser contada e espalha- boca-a-boca. E o que era a Internet,
como um vírus. da por aí. seus desdobramentos e seu aparato
O publicitário cunhou o termo Com a explosão das novas mí- eletroeletrônico? Mais do que pági-
ideavirus como metáfora para esse dias, Seth Godin notou que os con- nas, posts ou mensagens eletrônicas:
novo fenômeno. Em 2001, lançou sumidores andavam cada vez mais eram pessoas falando. Seth Godin
um livro com o mesmo título. Na cansados do que ele chamou depois percebeu, à maneira de Doc Searls
prática, o hábito de contar histórias de “marketing de interrupção”. no Cluetrain Manifesto (2000), que
não é novo. Relatos de historiogra- Como a atenção estava agora disper- “mercados são conversações” – e
fia oral dão conta de que ele remon- sa, os anunciantes gritavam cada vez que as conversações do futuro não
ta há muito antes da invenção da mais alto, as sutilezas iam se per- mais necessariamente passariam
escrita. Contudo, se antes tais his- dendo no meio do caminho e o pú- pela mídia estabelecida. A mídia
tórias eram estampadas nas paredes blico-alvo permanecia em sua indi- estabelecida havia perdido o con-
de uma caverna, agora elas são co- ferença crescente e brutal. Na ver- trole.
ladas em e-mails, sites, blogs, celu- dade, embora desconfiasse cada vez
lares, iPods e palmtops. O boca-a- mais da mídia – que com a expan- Marketing de individualida-
boca digital invadiu o mundo todo, são se relativizava –, o consumidor de. Godin não precisou pensar
em uma velocidade recorde, não ainda ouvia o que as pessoas próxi- muito para perceber que as boas
importando o veículo nem o supor- mas lhe falavam. Então as pessoas idéias, por meio das histórias que
te. Era necessário ter uma única eram o novo veículo ou o veículo valem a pena serem contadas, esta-
vam vivas e encontravam nas pes-
soas – mais do que em qualquer
outra coisa – o veículo ideal para se
espalhar. Sem querer, Seth Godin se
aproximava da teoria de meme.
Meme foi um termo que o
zoologista Richard Dawkins cunhou
em seu clássico livro O Gene Egoísta
(1976). Dawkins, no fundo, estava
tentando explicar que nós, seres
humanos, somos apenas um “veícu-
lo” para que os nossos genes sejam
passados adiante e sobrevivam.
Com meme, Dawkins estava fazen-
do uma analogia: como os genes,
que têm vida própria e nos coman-
dam de forma até “egoísta”, as in-
formações também têm vida própria
e saem por aí, em busca de cérebros
ou veículos para se espalhar. Um
meme é, simplificando, uma infor-
mação que nunca morre, porque se
reproduz. Seth Godin, pensando ou

76 • VOL.5 • Nº3 • JUL./AGO. 2006

074-078 76 14.07.06, 15:23


não em Richard Dawkins, diz-nos
então que o marketing de agora em Ao contrário do marketing de interrupção, que invade a
diante deve ser como o gene egoís- música no rádio, que entremeia os blocos dos programas
ta, bom o suficiente para se espa-
lhar sozinho. na televisão ou que ocupa as páginas das revistas e dos
Para Godin, a solução está em jornais, o marketing de permissão contaria com a anuência
contar histórias que reforçam a vi-
são de mundo das pessoas. Para ele,
do consumidor.
novamente, a grande falha da velha
teoria do marketing é que ela sem-
pre foi incapaz de explicar a diver- quer, e não aquilo de que precisa. história da Internet (IPO). Mais re-
sidade e de trabalhá-la. Segundo O apelo à razão existe, mas fica em centemente, esse tipo de ação seria
Seth Godin, um voto em uma elei- segundo plano. A diferença hoje é a marca registrada do Google – cuja
ção, por exemplo, não é uma decla- que o marketing puro e simples de vasta gama de produtos gratuitos,
ração sobre o candidato votado, mas antigamente cai no vazio: o consu- na Internet, é acessível, quase sem-
sim sobre o votante, a pessoa que midor precisa ser envolvido por pre, por meio de convite: alguém
votou. Em Todo Marqueteiro é Men- uma “experiência”, que, posterior- que já usa há algum tempo ganha o
tiroso (Campus, 2005), um dos seus mente, o transformará em veículo. direito de convidar quem não usa –
livros mais controversos, Godin Godin se atém ao exemplo de o que gera curiosidade e, ao mes-
aborda o caso da comida orgânica. uma empresa de água mineral nos mo tempo, garante o boca a boca
Ele diz que nem todos os produtos Estados Unidos. Sua estratégia pu- através de vínculo.
orgânicos fazem tão bem quanto blicitária consistiu em contar a his- O Brasil assiste, há alguns anos,
proclamam, mas seus consumidores tória de uma fonte, lá no Oriente, graças de novo ao Google, a um fe-
precisam adquirir algo que lhes con- de onde supostamente viria. É água nômeno desse tipo: o Orkut. O
te uma história de benefícios à saú- mineral do mesmo jeito, mas a ma- Orkut surgiu como uma iniciativa
de, mesmo que, na prática, eles se- neira de embalá-la e de oferecê-la do maior buscador da Internet para
jam falsos. O consumidor contem- ao mercado despertaria a imagina- competir com as chamadas “redes
porâneo, mais sofisticado, não se ção do consumidor, que se deixaria sociais”, via sites, nos EUA – a exem-
deixaria envolver por um mero levar pela magia do produto, con- plo do MySpace, adquirido pela Fox
anúncio, mas continuaria se deixan- taminando outros potenciais consu- de Rupert Murdoch, e que, dizem
do tocar por uma boa história, con- midores ao redor. A idéia da água os especialistas, já faz mais dinhei-
tada por alguém de confiança, que não é nova, mas a da fonte oriental, ro do que muitos canais de televi-
o convencesse. sim. Seth Godin conclui que, em vez são. O caso é que o Orkut não foi
Quando Seth Godin chama, iro- de bebermos o líquido, estamos be- esse sucesso todo no seu país de
nicamente, todos os marqueteiros bendo a embalagem. origem, pois o mercado de lá já es-
de “mentirosos”, ele não está sim- tava saturado; em compensação, vi-
plesmente condenando a classe – Marketing de permissão. Se- rou uma febre no Brasil.
até porque faz parte dela –, mas gundo o conceito estrito de ideavirus, O Orkut, seguindo as melhores
deseja reforçar que boas histórias os Estados Unidos assistiram, antes lições de Seth Godin, nunca fez
apelam aos sentidos e não são obri- do Hotmail, à explosão da Netscape, anúncio em lugar nenhum. No Bra-
gatoriamente verdadeiras. Godin via Netscape Navigator, o primeiro sil, o Orkut conseguiu penetrar
não usa meias palavras para afirmar caso de download em cascata e a pri- numa certa “elite” on-line que con-
que o consumidor adquire o que meira oferta pública de ações da feriu, ao serviço, um ar de distin-

© GV executivo • 77

074-078 77 14.07.06, 15:23


P O N TO D E V I S TA : AS MU TAÇ ÕES DO M ARK ET I N G

ção social – inicialmente com redes próximo de nós do conceito de “mar- agência catalã Manfatta – pioneira
de amigos muito restritas e restriti- keting de permissão” (ou Permission na publicidade em blogs –, Seth
vas –, para se espalhar, nos momen- Marketing, 1999, outro livro de Seth Godin é um poço de insights. Pode
tos subseqüentes, em ondas de in- Godin). Ao contrário do marketing ser lido, semanalmente, em seu blog
fluência no tecido social. Não exis- de interrupção, que invade a música (http://sethgodin.typepad.com/) e,
te um manual de como entrar no no rádio, que entremeia os blocos no Brasil, está recém-editado na
Orkut: cada participante recebe dos programas na televisão ou que coletânea que organizou com mais
apenas um e-mail, com um link, abre ocupa as páginas das revistas e dos 30 visionários do mundo corpora-
um formulário, vai preenchendo jornais, o marketing de permissão tivo: A Grande Mudança (Manole,
com seus dados e criando, automa- contaria com a anuência do consu- 2006) – na qual ensina como sobre-
ticamente, sua página. midor. Na contramão, por exemplo, viver, sendo notável, na nova reali-
Nenhum profissional de marke- do spam que infesta nossas caixas dade. Godin garante que vai apare-
ting precisou elaborar uma campa- postais dia a dia, as idéias mais inte- cer, no meio da multidão, quem ti-
nha convencendo o internauta de ressantes, as histórias mais bem con- ver o que ele chama de “vaca roxa”
que o Orkut era “legal”: cada usuá- tadas, os produtos que se destacam, (ou Purple Cow, 2003, outro de seus
rio tratou de espalhar a história por na era pós-Internet nos chegariam best-sellers) – o produto que é dife-
si. No último senso, o Orkut estava sempre por indicação. Um e-mail, rente de tudo. Desvendando misté-
com mais de 4 (quatro) milhões de um link, um post em um blog, uma rios com uma linguagem simples e
brasileiros cadastrados. Críticas à matéria em um site – o “vírus”, no nada pretensiosa – para um marque-
parte, é uma das maiores iniciati- melhor sentido do termo, se instala- teiro –, é o exemplo vivo de uma
vas – ainda que involuntária – de ria em nossas possibilidades de con- frase conhecida de Nelson Rodrigues,
mídia no Brasil. Para que se tenha sumir e de fazer mídia. Se, de agora o nosso dramaturgo: “Só os profe-
uma base de comparação, a revista em diante, como diz Dan Gillmor, tas enxergam o óbvio...”.
Veja, o periódico de maior circula- “nós somos a mídia” (We the Media,
ção do país, tem uma base de pou- 2004, seu livro), os produtos da in-
co mais de um milhão de leitores, dústria passariam então por nós –
Julio Daio Borges
ou seja, um quarto do Orkut. com a nossa permissão. Editor do Digestivo Cultural
O Orkut é um exemplo muito E, como diz Neus Arqués, da E-mail: j.d.borges@digestivocultural.com

78 • VOL.5 • Nº3 • JUL./AGO. 2006

074-078 78 14.07.06, 15:23

Você também pode gostar