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Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

COMISSÃO CIENTÍFICA

Ana Maria César Pompeu

Brunno V. G. Vieira

Charlene Martins Miotti

Francisco Edi de Oliveira Sousa

Joseane Mara Prezotto

Kátia Maria Paim Pozzer

Orlando Luiz de Araújo

Pauliane Targino da Silva Bruno

Solange Maria Soares de Almeida

CONSELHO EDITORIAL DA SBEC

Charlene Martins Miotti, Universidade Federal de Juiz de Fora (Presidente, 2020-2021)

Alice Bitencourt Haddad, Universidade Federal Fluminense (2020-2024)

Anderson Zalewski Vargas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2020-2024)

Christian Werner, Universidade de São Paulo (2020-2024)

Fábio Faversani, Universidade Federal de Ouro Preto (2020-2024)

Gilberto da Silva Francisco, Universidade Federal de São Paulo (2020-2024)

Isabella Tardin Cardoso, Universidade Estadual de Campinas (2020-2024)

Jacyntho Lins Brandão, Universidade Federal de Minas Gerais (2020-2024)

José Amarante Santos Sobrinho, Universidade Federal da Bahia (2020-2024)

José Geraldo Grillo, Universidade Federal de São Paulo (2020-2024)

Luisa Severo Buarque de Holanda, PUC-Rio de Janeiro (2020-2024)

Márcia Severina Vasques, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2020-2024)

Orlando Luiz de Araújo, Universidade Federal do Ceará (2020-2024)

Paulo Martins, Universidade de São Paulo (2020-2024)

Pedro Ipiranga, Universidade Federal do Paraná (2020-2024)

Tatiana Oliveira Ribeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro (2020-2024)

Teodoro Rennó Assunção, Universidade Federal de Minas Gerais (2020-2024)


SOCIEDADE BRASILEIRA
DE ESTUDOS CLÁSSICOS

Os estudos clássicos na pandemia

Organização
(Diretoria SBEC 2020-2021)

Ana Maria César Pompeu

Charlene Martins Miotti

Fernanda Cunha Sousa

Joseane Mara Prezotto

Pauliane Targino da Silva Bruno

Solange Maria Soares de Almeida


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografia/imagem de Capa: Code of Law - Dan Bejar; David Niedenthal - bejarprints.com

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


POMPEU, Ana Maria César et al. (Orgs.)

Os estudos clássicos na pandemia [recurso eletrônico] / Ana Maria César Pompeu et al. (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora
Fi, 2022.

132 p.

ISBN - 978-65-5917-432-4
DOI - 10.22350/9786559174324

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia; 2. História clássica; 3. Pandemia; 4. Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Sumário

Apresentação 11
As Organizadoras

1 14
Ensino de latim durante a pandemia? A extensão universitária e seus novos desafios
Fernanda Cunha Sousa
Diego Azevedo Lopes
Gabriel Ramos Sacramento
Ramon de Toledo Roldi

2 20
Dos Aedos ao Twitter: escola e divulgação científica em tempos de pandemia
Fernanda Cunha Sousa
Bárbara Gonçalves da Silva
Isadora de Souza Belli
Luiza Diniz Araújo
Pablo de Moraes Moreira da Silva

3 28
Entre Bits e Papel Machê: o Teatro de Bonecos em Tempos de Pandemia
Amanda Coelho Honório
Danielle Motta Araujo
Glaudiney Moreira Mendonça Junior
Paulo Roberto Barbosa Souza

4 36
COVID-19, Górgias e a comunicação científica
Vicente Brazil
5 42
Aesopica em tempos de pandemia: as fábulas de Esopo e o Ensino de Filosofia do
Ensino Médio
Gabriele Cornelli
Henrique Fróes
Euler Carvalho

6 50
LEC-UFF na quarentena: uma experiência de encontros virtuais
Beethoven Alvarez
Glória Braga Onelley
Greice Drumond
Renata Cazarini

7 59
Grupo de estudos, pathos e pandemia
Ana Lúcia Magalhães

8 65
A epidemia no mediterrâneo antigo: experiência entre os gregos e os romanos
Alair Figueiredo Duarte
José Roberto de Paiva Gomes
Maria Regina Candido

9 77
Podcast Archai
Beatriz de Paoli
Fernanda Israel Pio
Gabriele Cornelli

10 86
Ao Hades em busca da salvação: Rãs de Aristófanes e a humanidade ridícula e heroica
de Dioniso
Jane Kelly de Oliveira
11 91
Discurso político: reflexões sobre as estratégias argumentativas para incitação do
pathos em tempos de pandemia
Mariano Magri

12 97
Os Estudos Clássicos na Pandemia. Antígone 2020: diário de um ano pandêmico
Adriane da Silva Duarte

13 104
Teatro em pandemia
Tereza Virgínia R. Barbosa
Anita (Anna) Mosca
Truπersa

14 110
A “peste de Atenas” e o coronavírus: ensejo para reler Tucídides?
Bruno Amaro Lacerda

15 115
Estudando gênero na Antiguidade Oriental: reflexões de uma jovem pesquisadora
Caroline Schmidt Patricio

16 121
Coisas que uma tumba nos conta sobre a vida no Egito do Reino Antigo Tardio
Wellington Rafael Balém

17 127
Nem tão isolados assim: o estudo das relações diplomáticas no Oriente Antigo
Priscila Scoville
Apresentação

As Organizadoras

Este livro reúne os ensaios que foram publicados na coluna semanal


Os Estudos Clássicos na Pandemia, inaugurada no dia 5 de novembro de
2020, na seção NOTÍCIAS do site da SBEC. São ensaios sobre os esforços
dos grupos de pesquisa da SBEC em manter suas atividades durante a pan-
demia de COVID-19, organizados na mesma sequência da coluna semanal,
a partir dos mais recentes.
Publicamos em: 11 de março de 2021, Ensino de latim durante a
pandemia? A extensão universitária e seus novos desafios; 04 de
março de 2021, Dos Aedos ao Twitter: escola e divulgação científica em
tempos de pandemia; 25 de fevereiro de 2021, Entre Bits e Papel Ma-
chê: o Teatro de Bonecos em Tempos de Pandemia; 18 de fevereiro de
2021, COVID-19, Górgias e a comunicação científica; 11 de fevereiro de
2021, Aesopica em tempos de pandemia: as fábulas de Esopo e o En-
sino de Filosofia do Ensino Médio; 04 de fevereiro de 2021, LEC-UFF
na quarentena: uma experiência de encontros virtuais; 28 de janeiro
de 2021, Grupo de estudos, pathos e pandemia; 21 de janeiro de 2021,
A epidemia no mediterrâneo antigo: experiência entre os gregos e os
romanos; 14 de janeiro de 2021, Podcast Archai; 07 de janeiro de 2021,
Ao Hades em busca da salvação: Rãs de Aristófanes e a humanidade
ridícula e heroica de Dioniso; 31 de dezembro de 2020, Discurso polí-
tico: reflexões sobre as estratégias argumentativas para incitação do
pathos em tempos de pandemia; 10 de dezembro de 2020, Os Estudos
Clássicos na Pandemia. Antígone 2020: diário de um ano pandêmico;
12 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

03 de dezembro de 2020, Teatro em pandemia; 26 de novembro de


2020, A “peste de Atenas” e o coronavírus: ensejo para reler Tucídi-
des?; 19 de novembro de 2020, Estudando gênero na Antiguidade
Oriental: reflexões de uma jovem pesquisadora; 12 de novembro de
2020, Coisas que uma tumba nos conta sobre a vida no Egito do Reino
Antigo Tardio; 5 de novembro de 2020, o texto que inaugurou a coluna:
Nem tão isolados assim: o estudo das relações diplomáticas no Ori-
ente Antigo.
Todas essas experiências de nossos grupos de pesquisa ilustram o
comprometimento dos membros da Sociedade Brasileira de Estudos Clás-
sicos frente aos desafios impostos pelo distanciamento social com relação
à adaptação de conteúdo para diferentes meios, finalidades e públicos, sem
perder de vista os princípios que nos guiam, enquanto vivenciamos e re-
fletimos sobre as transformações pelas quais o ensino, a pesquisa e a
extensão têm passado, ratificando a relevância dos Estudos Clássicos para
a formação humanista e a educação de modo geral, em seus diferentes
níveis.
Os esforços dessas equipes aqui elencadas apontam caminhos para
que os Estudos Clássicos se mantenham atuantes e presentes em nosso
cotidiano, mesmo diante de todas as adversidades, novas e antigas, enfren-
tadas.
Todo esse percurso, forjado coletivamente, representa o nosso poten-
cial como vetores de desenvolvimento, inclusive de nosso entorno,
almejando sempre o horizonte de universalidade que nos constitui como
classicistas. Se “todas as ciências são humanas e essenciais à sociedade” –
como propôs a 73ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência, sediada na Universidade Federal de Juiz de Fora em julho de
2021 – nós, classicistas, encontramos em nossa relação com o passado
As Organizadoras | 13

fomento para resistir, na esperança em dias melhores, aos reiterados ata-


ques à educação, ciência e tecnologia neste país.
Que este compilado possa estabelecer, além de registro precioso des-
ses encontros, diálogos proveitosos com as ações de nossos membros.
1

Ensino de latim durante a pandemia?


A extensão universitária e seus novos desafios

Fernanda Cunha Sousa 1


Diego Azevedo Lopes 2
Gabriel Ramos Sacramento 3
Ramon de Toledo Roldi 4

Este texto traz o relato das atividades do projeto de extensão “Boa


Vizinhança Línguas – Latim (BV - Latim)” na modalidade remota, durante
a pandemia de COVID 19, iniciada em 2020. Este projeto está vinculado ao
Círculo de Estudos da Antiguidade (CirceA) – grupo de estudos cadastrado
junto à SBEC e de pesquisa cadastrado junto ao CNPq – e faz parte tam-
bém do programa institucional da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o qual oferece semestral-
mente aulas de línguas (modernas e clássicas) para moradores dos bairros
do entorno da universidade, oriundos de escola pública com idade a partir
de 16 anos. Os cursos têm duração de 180 horas e são divididos em três
módulos com dois encontros semanais.
O ano era 2020, o primeiro semestre letivo acabara de se iniciar e o
nosso grupo se reuniu a fim de acertar os últimos detalhes para o começo
das atividades. Pensávamos soluções ousadas para os problemas enfren-
tados no ano anterior, discutimos sobre implementar uma abordagem

1
Doutora em Letras - Linguística e professora da área de Estudo Clássicos da Faculdade de Letras da UFJF,
coordenadora do projeto de extensão “BV - Latim” e líder do Grupo de pesquisa “CirceA”.
2
Licenciando em Letras - Latim e suas respectivas Literaturas pela UFJF, bolsista do projeto.
3
Licenciando em Letras – Português e suas respectivas Literaturas pela UFJF, bolsista do projeto.
4
Licenciando em Letras – Português, Latim e suas respectivas Literaturas pela UFJF, bolsista do projeto.
Fernanda C. Sousa; Diego A. Lopes; Gabriel R. Sacramento; Ramon de T. Roldi | 15

ainda mais lúdica e voltada ao quotidiano dos nossos alunos. Nossa orien-
tadora nos motivou, indicando-nos propostas de atividades, livros, artigos,
e agendamos os próximos encontros de orientação. Ficamos empolgados,
assumimos as responsabilidades e nos preparamos para receber os alunos.
Mas não houve semestre letivo, não houve aulas, não houve os encontros,
atividades lúdicas não houve.
Nossas expectativas pessoais e profissionais foram frustradas. Come-
çamos a nos perguntar se seria viável iniciar as aulas de modo remoto com
o recurso de videochamadas. Seria o caso de interromper o projeto por um
tempo? Muitas vidas estavam em risco e havia grande insegurança sobre
como proceder em relação às atividades mais corriqueiras.
Após a suspensão de todas as atividades presenciais da UFJF, fomos
chamados pela PROEX para uma reunião com os demais orientadores e
bolsistas do programa a fim de discutir possibilidades de continuidade do
trabalho. Por muitos dos bolsistas estarem vivenciando dificuldades com
falta de equipamento, internet e demais condições de estudo e, principal-
mente, em virtude do perfil do público do programa (que entendemos ser
muito afetado por toda a nova situação de insegurança e precarização das
condições de vida de modo geral), começar as aulas de forma remota se
mostrou inviável, nesse momento, de muitas e diferentes formas.

1. A produção do artigo

A primeira fase do nosso trabalho durante a pandemia, quando ainda


não tínhamos dimensão do quanto o problema duraria, consistiu, então,
na produção de um artigo que situasse nosso projeto e as atividades que
desempenhávamos em relação às discussões sobre o ensino de língua e
literatura latina e também em relação à história do ensino no Brasil. Para
isso, fizemos uma seleção de artigos a partir das pesquisas e indicações de
todos os membros da equipe, os quais todos leríamos e discutiríamos. A
16 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

busca pelos artigos foi uma experiência enriquecedora em si mesma pela


autonomia e maturidades exigidas e pôde nos dar uma amostra daquilo
que viria a ser o nosso trabalho durante a pandemia.
A busca pelos textos sobre os quais debateríamos foi o primeiro
marco desta nova realidade: a busca é totalmente online, nos bancos de
dados, nos periódicos, nas revistas eletrônicas e em todos os meios virtuais
de acesso a textos acadêmicos. Não havia mais a habitual troca de livros
ou a procura por algo interessante nas estantes da biblioteca da universi-
dade. Tivemos que fazer esta trajetória pela rede e acharmos nossos
referenciais inteiramente nela.
Finalmente, escolhidos os textos, passamos à etapa de leitura e dis-
cussão: foram longos debates sobre o ensino do latim no Brasil, mas
também sobre nossas inseguranças pessoais, nosso medo, nossa solidão.
Pudemos conhecer mais a trajetória deste estimulante, mas não fácil, ofício
de ensinar latim e começamos a entender melhor como participamos
dessa tradição e como podemos modificá-la. Refletimos ainda sobre como
nossas vidas e profissões seriam definitivamente modificadas pela experi-
ência que agora transpassava a realidade de todos de alguma maneira.
Pudemos ainda conhecer algumas pessoas e seus trabalhos, que con-
tribuíram para nossa formação como futuros professores. Representa
muito bem esse momento de troca de saberes a relação estabelecida com
a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ): Wânia
Cristina dos Reis José Balassiano, que está atualmente se preparando para
a defesa da tese “Ernesto e Faria Junior e a defesa dos estudos do latim”.
Fomos procurados inicialmente para realizar entrevistas sobre o cotidiano
do projeto e, assim, em reuniões muito proveitosas com a acadêmica, aca-
bamos tendo acesso a vários materiais da área de educação que
dificilmente encontraríamos sem esse contato.
Fernanda C. Sousa; Diego A. Lopes; Gabriel R. Sacramento; Ramon de T. Roldi | 17

2. As atividades na escola

Terminado o artigo e enviado para publicação5, fomos novamente


provocados pela nossa orientadora a ousar um novo passo, com a conti-
nuidade da pandemia e suas consequências ainda mais acentuadas:
elaborar atividades remotas junto a uma escola municipal, que estava
montando uma página6 para retomar a interação com os alunos. Essa es-
cola já era parceira de outro projeto de extensão, Contos de Mitologia,
também sob a orientação da mesma professora. A proposta nos permitiria
propor algumas atividades para os alunos do 9º ano do ensino fundamen-
tal da Escola Municipal Tancredo Neves, localizada ao lado do campus da
UFJF, e, assim, (1) voltar a levar conteúdo vinculado à língua e cultura la-
tinas para fora dos muros da universidade e (2) propor ações com base
nas discussões travadas durante a primeira fase do nosso trabalho remoto.
Isso nos possibilitou ainda ficar próximos do nosso público-alvo original:
alunos oriundos de escola pública, moradores do entorno da universidade.
O funcionamento da escola influenciou o nosso trabalho na medida
em que fomos inseridos em um modelo de atividades não obrigatórias, e
isto foi um desafio. Era preciso elaborar atividades que seriam feitas via
internet, a partir de planilhas da ferramenta google forms (já utilizada pe-
los professores regentes das turmas) e por adolescentes que não tinham a
obrigação de fazê-las. Pensamos, então, em atividades curtas que pudes-
sem ser feitas de forma rápida e lúdica, e que, ao mesmo tempo, fossem
instrutivas e despertassem a sensação de que a língua e a cultura latinas
são uma herança, da qual já usufruímos e ainda há muito mais para

5
Artigo: “o ensino de latim no Brasil: um passado e várias perspectivas”. Publicado na revista Trem De Letras, Vol.
6, nº 2, dezembro de 2020, Disponível em: https://publicacoes.unifal-mg.edu.br/revistas/index.php/
tremdeletras/article/view/1347.
6
Site da escola parceira: https://sites.google.com/view/escolamunicipaltancredonevesjf, onde todas as atividades
propostas podem ser consultadas.
18 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

usufruir, uma vez que conhecemos melhor alguns elementos dessa cul-
tura. O modelo foi o seguinte: imagens seguidas de pequenos textos, com
informações para que os alunos pudessem responder algumas breves per-
guntas ou fazer um jogo, como uma palavra cruzada, por exemplo.
Assim, temos proposto nossas atividades, sempre da maneira mais
otimista possível, pois é fato que levar o latim até as pessoas que estão fora
da realidade acadêmica é, em qualquer situação, algo desafiador, mas
nosso trabalho tem nos mostrado que há espaço para que os Estudos Clás-
sicos no Brasil transcendam os muros das universidades e cheguem até as
escolas, por exemplo.
Temos enfrentado alguns desafios, como a falta de resposta dos alu-
nos. Em uma atividade presencial, a sua reação poderia nos direcionar
para diferentes propostas pedagógicas e temas a serem trabalhados, con-
tudo, sem esse retorno, ainda não temos dados suficientes para avaliar
como nossa proposta foi recebida. Por outro lado, segundo relato dos pró-
prios professores da instituição, a falta de resposta não ocorre apenas
conosco e a escola tem enfrentado ainda uma forte evasão escolar, o que
parece ser um obstáculo à tarefa de todos nós. Começamos, então, orien-
tados pela equipe da escola, a imprimir as atividades como uma possível
forma de contornar o problema. Esses materiais têm ficado disponíveis
para a retirada na secretaria da escola, juntamente com os materiais das
disciplinas curriculares. Mesmo assim, os retornos ainda são poucos7.
Não negamos que isso seja frustrante, mas o que mais se ressalta em
meio a essas experiências junto à escola tem sido o fato de que conquista-
mos lá um espaço, mais um para as Letras Clássicas. Terminada a
pandemia, teremos ainda esse espaço? Haverá possibilidades de

7
Está em fase de elaboração pela PROEX uma página que reúna propostas de atividades de todos os projetos de
ensino de língua do programa. Esperamos que esta seja mais uma oportunidade para interagir com pessoas
interessadas pelo conteúdo clássico.
Fernanda C. Sousa; Diego A. Lopes; Gabriel R. Sacramento; Ramon de T. Roldi | 19

estendermos as aulas até a escola? Há um grande e antigo debate sobre o


ensino de latim nas escolas do Brasil, sabemos; o que os rumos do nosso
trabalho nesse período indicam são alternativas para que se mantenham,
de alguma maneira, os estudos clássicos atuantes, buscando, junto com
nossos colegas do ensino fundamental, um ensino público, gratuito e de
qualidade, mesmo com todas as adversidades, novas e antigas, enfrenta-
das.

Referências

F. C. SOUSA, D. LOPES, G. R. SACRAMENTO, R. de ROLDI. O ensino de latim no Brasil:


um passado e várias perspectivas. Trem De Letras, Vol. 6, nº 2, dezembro de 2020,
Disponível em: https://publicacoes.unifal-mg.edu.br/revistas/index.php/tremdele-
tras/article/view/1347.

Site da escola parceira: https://sites.google.com/view/escolamunicipaltancredonevesjf.


Acesso em 08/03/2021.
2

Dos Aedos ao Twitter: escola e


divulgação científica em tempos de pandemia

Fernanda Cunha Sousa 1


Bárbara Gonçalves da Silva 2
Isadora de Souza Belli 3
Luiza Diniz Araújo 4
Pablo de Moraes Moreira da Silva 5

Enquanto o mundo se preparava para festejar o fim do ano 2019, ci-


entistas chineses descobriram um novo tipo de coronavírus6. Começou,
então, o ano de 2020, e com ele os rumores sobre esse vírus que assolaria
a humanidade. Logo, em meio a verão, sol, confetes e purpurinas carna-
valescas, a situação começou a parecer cada vez mais próxima de nós,
brasileiros.
Em meados de março, com o avanço da pandemia de Covid-19, foram
decretadas medidas de quarentena no Brasil. A Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF) suspendeu todas as atividades presenciais, dentre elas,
o projeto de extensão “Contos de Mitologia”, que atua junto a uma escola
municipal próxima ao campus, com o objetivo de levar elementos de lín-
gua, literatura e cultura clássicas para além do ambiente acadêmico.
A rotina anterior, quando as atividades eram presenciais, difere
muito da que é possível realizar desde então. Os bolsistas realizavam

1
Doutora em Letras - Linguística e professora da área de Estudo Clássicos da Faculdade de Letras da UFJF,
coordenadora do projeto de extensão “Contos de mitologia” e líder do Grupo de pesquisa “CirceA”.
2
Licenciada em Letras - Português e suas respectivas Literaturas pela UFJF, voluntária do projeto.
3
Mestranda em Letras: Estudos Literários pela UFJF, voluntária do projeto.
4
Graduanda em Letras – Português, Latim e suas respectivas literaturas pela UFJF, bolsista do projeto.
5
Mestrando em Linguística pela UFJF, bolsista do projeto.
6
Informação disponível em: Coronavirus: What did China do about early outbreak?
<<https://www.bbc.com/news/world-52573137>> acesso em 23/02/2021
Fernanda C. Sousa; Bárbara G. da Silva; Isadora de S. Belli; Luiza D. Araújo; Pablo de M. M. da Silva | 21

intervenções em turmas do 5º ano do ensino fundamental da Escola Mu-


nicipal Tancredo Neves durante as aulas de língua portuguesa com
contação de histórias, jogos temáticos, trabalhos sobre gêneros de escrita
e preparação da atividade final de cada ano letivo. Isso nos permitia grande
aproximação das turmas e docentes, identificação das dificuldades de cada
aluno e impacto positivo tanto em seu aprendizado quanto na formação
profissional dos membros da equipe.
Percebemos que ficaríamos com nossas rotinas suspensas por um
longo período e começamos a discutir a reestruturação de nossas ações,
primeiramente por meio de estudos teóricos com vistas à publicação de
um artigo acadêmico7 e à apresentação de uma comunicação no 1º Ciclo
de debates do CirceA8. Em seguida, nos dedicamos a debater sobre como
trabalhar de modo que pudéssemos interagir de forma prazerosa com o
conteúdo clássico, e com aqueles que por ele se interessam, em meio ao
desafio sem precedentes que se colocava para todos.
Enquanto as instituições de ensino discutiam sobre a retomada das
atividades, a equipe optou por buscar novas formas de interagir. Vislum-
brou-se a possibilidade de contribuir para a democratização do acesso à
informação, voltando-nos para as redes sociais. A rede escolhida para isso
foi o Twitter, após observarmos o sucesso de perfis de divulgação científica
e acadêmica de diferentes áreas. Assim, passamos a ter também como ob-
jetivo promover o contato de um público mais amplo, em geral adulto, com
elementos da língua latina, da literatura e da cultura clássica, mesclando a
linguagem descontraída das redes sociais com o embasamento bibliográ-
fico próprio da pesquisa acadêmica, por meio do perfil @contosmitologia.

7
Título: “Ovídio no Twitter: divulgação científica em tempos de pandemia”, ainda no prelo.
8
O Círculo de Estudos da Antiguidade (CirceA) é um grupo de pesquisa (cadastrado junto ao CNPq) e de estudos
(cadastrado junto à SBEC), ao qual o projeto de extensão “Contos de mitologia” está vinculado.
22 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Para essa nova experiência, foi necessária uma revisão do material de


que já dispúnhamos, além de novas pesquisas para que pudéssemos sin-
tetizar os temas e elaborar postagens simples e objetivas, adaptando nossa
linguagem e também o seu formato, de modo a adequá-lo às característi-
cas estruturais da rede social escolhida. Passamos a adotar, então, três
formatos de postagens para explorar diferentes aspectos comunicativos
possíveis: a thread, narrativa na qual, em razão do limite de 280 caracteres
por publicação, é feita uma sequência de tweets9vinculados, o que permite
a veiculação de mais informações e referências teóricas sem perder a di-
namicidade; os memes e os testes, que geram grande interação por meio
de compartilhamentos e respostas, como temos observado.
A página já conta com 262 seguidores, entre alunos, professores de
diversas instituições de ensino superior e interessados em Estudos Clássi-
cos em geral. A seguir, alguns exemplos dos formatos utilizados:
Thread:
Já que as cobras iniciaram a revolução dos bichos brasileira, a thread
de hoje é para contar pra vocês como surgiu a Píton.../ Tudo começou após
um grande dilúvio (que não é exatamente aquele de Noé)... A terra, por
causa da umidade e da exposição ao calor do sol, começou a germinar vida
espontaneamente. Aquele solo se tornou extremamente fecundo./ Da
mesma forma que acontece nas margens do Rio Nilo após as cheias, nessas
terras fecundas, há a formação de vidas de animais dos mais variados tipos
e espécies./ A terra era tão fértil e potente que, sem nenhuma intenção,
acabou gerando uma serpente extremamente poderosa e que viria a ser o
terror dos novos povos criados, a Píton./ Como a Píton dominava grande
parte da montanha, para salvar a todos, Apolo cravou-a com mil dardos,
que nunca tinham sido usados, a não ser para caça, quase ficando sem

9
tweet: nome atribuído às publicações feitas na rede social Twitter.
Fernanda C. Sousa; Bárbara G. da Silva; Isadora de S. Belli; Luiza D. Araújo; Pablo de M. M. da Silva | 23

nenhum./ Assim, ele a exterminou, e seu veneno escorreu por todas as


feridas./ Para que ninguém se esquecesse dessa história, Apolo, então, ins-
tituiu aqueles que seriam, basicamente, os precursores dos Jogos
Olímpicos, chamados de Jogos Píticos, com base no nome da serpente der-
rotada./ O nome da Pitonisa, sacerdotisa do templo de Apolo em Delfos,
também surge dessa história. (disponível na versão completa, com gifs in-
clusos, em: https://twitter.com/contosmitologia/status/12831482181
59816706)

" "
(disponível em: https://twitter.com/contosmitologia/status/1315727890995085312)
24 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

" "
(disponível em: https://twitter.com/contosmitologia/status/1299057261600477184)

Após iniciarmos nossas atividades via Twitter, a nossa escola parceira


retomou a interação com os alunos por meio de uma página, em que ati-
vidades didáticas de todas as disciplinas são postadas semanalmente de
modo a assegurar a continuidade dos estudos, buscando driblar as inúme-
ras dificuldades impostas tanto aos profissionais da educação quanto aos
alunos e a seus núcleos familiares.
Decidimos auxiliar nessa difícil tarefa de elaborar material interes-
sante, leve e significativo didaticamente. Uma aba foi disponibilizada para
nós na parte direcionada às turmas de 5º ano e começamos a desenvolver
exercícios que pudessem ser feitos através da ferramenta Google Forms,
já conhecida por ser utilizada pelas professoras regentes. Assim também
seria possível identificar a participação discente e ajustar as ações de
acordo com as interações. Cada material foi montado com uma temática,
apresentada por um pequeno texto seguido de atividades para que os alu-
nos pudessem refletir sobre sua leitura. E, assim como no Twitter,
escolhemos temas relacionados ao cotidiano, a uma informação de grande
circulação ou uma curiosidade que permitisse também discutir o mundo
atual.
Fernanda C. Sousa; Bárbara G. da Silva; Isadora de S. Belli; Luiza D. Araújo; Pablo de M. M. da Silva | 25

Uma das atividades elaboradas está, por exemplo, relacionada ao


nome das cores e dos animais em latim e pede que se relacionem as pala-
vras latinas a seus correspondentes em português, com a finalidade de
demonstrar a proximidade entre as duas línguas. Foi possível, por meio
desse exercício falar sobre a origem do termo “vacina”10:

" "

Logo, identificamos que muitos não respondiam aos exercícios, o que


nos levou a pensar em diversas razões para a baixa adesão, como

10
Site onde esta e as demais atividades propostas podem ser consultadas:
https://sites.google.com/view/escolamunicipaltancredonevesjf.
26 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

dificuldades relacionadas à internet e ao modo de acesso, que podem de-


sestimular ou mesmo impedir a interação. Após novas conversas com a
equipe da escola, que também passava por essas dificuldades, começamos,
então, a imprimir as atividades, que passaram a ficar também disponíveis
para a retirada na secretaria da escola, juntamente com os materiais das
disciplinas curriculares. Mesmo assim, os retornos ainda são poucos, o que
tem sido bastante frustrante. Estamos, neste momento, discutindo com a
equipe da escola alternativas para diminuir esse problema.
Ainda assim, a experiência tem sido rica para a formação dos mem-
bros da equipe, pois, além dos novos desafios impostos com relação à
adaptação de conteúdo para diferentes finalidades e públicos, sem perder
de vista os princípios que nos guiam, temos podido vivenciar as transfor-
mações pelas quais a educação tem passado no país. Consideramos a
internet uma tecnologia de informação e comunicação que tende cada vez
mais a se interligar à atividade educativa e isso pode ser muito positivo.
Mas temos acompanhado que, sem apoio, treinamento, estruturas ade-
quadas para todos os envolvidos no processo, as diferenças socioculturais,
e consequentemente econômicas, tendem a se acirrar, uma vez que im-
pactam diretamente o trabalho que pode ser realizado com os diferentes
públicos.
Há profissionais engajados em fazer o melhor trabalho possível, alu-
nos interessados e núcleos familiares preocupados, mas, sem investimento
e planos de ação coordenados em diferentes níveis, estamos entregues a
iniciativas isoladas, que embora tenham muito mérito, não conseguirão
impedir os prejuízos que virão para toda a sociedade. Como educadores
que somos, esta tem sido uma experiência de muito aprendizado e angús-
tia, buscando fazer o nosso possível sem deixar de nos indignar pelo fato
de ainda ser pouco.
Fernanda C. Sousa; Bárbara G. da Silva; Isadora de S. Belli; Luiza D. Araújo; Pablo de M. M. da Silva | 27

Referências

Coronavirus: What did China do about early outbreak? Disponível em:


https://www.bbc.com/news/world-52573137. Acesso em 23/02/2021.

Meme: Anfitrião e Homem Aranha. Disponível em: https://twitter.com/


contosmitologia/status/1316063644963295240. Publicado em 13/10/2020.

Teste: Quem é você no ERE? Disponível em: https://twitter.com/


contosmitologia/status/1315727890995085312. Publicado em 12/10/2020.

Thread: Píton. Disponível em: https://twitter.com/contosmitologia/status/


1283148218159816706). Publicada em 14/07/2020.
3

Entre Bits e Papel Machê:


o Teatro de Bonecos em Tempos de Pandemia

Amanda Coelho Honório 1


Danielle Motta Araujo 2
Glaudiney Moreira Mendonça Junior 3
Paulo Roberto Barbosa Souza 4

O Grupo Paideia de Teatro de Bonecos completará, em julho de 2021,


19 anos de jornada. Nasceu em 2002 dentro do curso de Letras da Univer-
sidade Federal do Ceará, numa disciplina de estágio na qual era preciso
elaborar uma aula diferenciada de incentivo à leitura e à cultura. Pensando
em unir Cultura Clássica e Teatro de Bonecos, nós, do Grupo Paideia, mon-
tamos uma peça intitulada A Escolha de Páris, narrativa que conta o
motivo mítico que desencadeou a guerra de Troia, descrita na Ilíada de
Homero. Foi um desafio, visto algumas pessoas acharem a combinação um
tanto quanto inusitada, mas, com a aprovação e o incentivo da maioria de
colegas e professoras(es), a peça foi montada e o grupo criado. De 2002
para cá, o Paideia produziu mais três espetáculos de Teatro de Bonecos:
Psiquê e Eros (2003), A Escolha de Páris (Reformulação em 2006) e Lisís-
trata (2011/2017).

1
Mestra em Educação Profissional e Tecnológica, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará,
amandacoelhoh@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/3166015909292513.
2
Mestra e doutoranda em Letras, Universidade Federal do Ceará, danimitologiagrega@gmail.com,
http://lattes.cnpq.br/5515386274033107.
3
Mestre em Ciência da Computação, Universidade Federal do Ceará, glaudiney@gmail.com,
http://lattes.cnpq.br/7706674770409286.
4
Graduado em História, Universidade Estadual do Ceará, e mestrando em Letras, Universidade Federal do Ceará,
paulo.souza0911@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/9511482502763746.
Amanda C. Honório; Danielle M. Araujo; Glaudiney M. M. Junior; Paulo R. B. Souza | 29

" "" ""

"
Figura 1: Imagens de divulgação.
Fonte: autores.

Em 2020, durante a pandemia, o Paideia, que integra o Núcleo de


Cultura Clássica da UFC, buscava uma alternativa para suas atividades e,
então, a convite da professora Ana Maria César Pompeu, uma das
30 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

personagens mais emblemáticas da peça Psiquê e Eros, a pequena Psiquê,


fez uma participação num evento organizado pela SBPC (Sociedade Brasi-
leira para o Progresso da Ciência), um manifesto intitulado Marcha pela
Vida no qual a SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos) participou
de uma mesa intitulada Máscaras pela vida: Estudos Clássicos durante a
Pandemia. Depois desse momento, o grupo começou a pensar na possibi-
lidade de fazer apresentações das peças on-line e, então, resolvemos
adaptar duas peças para o formato on-line.

" "
Figura 2: Participação de Psiquê no encontro da SBPC.
Fonte: autores.

Psiquê e Eros

Com roteiro inspirado no mito de Cupido e Psiquê contado por Lúcio


Apuleio em Metamorfoses (obra também conhecida como O Asno de Ouro)
do século II EC, o espetáculo Psiquê e Eros (2003) é o mais encenado pelo
Grupo Paideia. O mito conta a história de uma jovem extremamente bela
que causava admiração e adoração em todos, o que despertou a inveja na
própria Vênus (Afrodite), a deusa do amor e da beleza. Tal inveja vai
Amanda C. Honório; Danielle M. Araujo; Glaudiney M. M. Junior; Paulo R. B. Souza | 31

culminar na aproximação de Psiquê com o filho de Vênus, Cupido (Eros).


A narrativa, então, nos apresenta os sofrimentos de Psiquê em busca de
seu amado.
Como o mito é contado por uma velha a uma moça, e Lúcio a escuta,
já metamorfoseado em asno, decidimos, portanto, manter a solenidade
inicial do narrador, conservando a figura da contadora de histórias, aquela
que conta porque viu ou ouviu falar. Nas peças presenciais, a narradora
não é um boneco e a atriz fica fora da barraca narrando a história e, muitas
vezes, contracenando e interferindo com os bonecos. Já na apresentação
virtual, optou-se pela atuação da narradora apenas com a voz. Se por um
lado a narradora presente fisicamente se aproxima da plateia, a “narra-
dora-voz”, não materializada, acrescenta ao espetáculo uma presença
imaterial, como uma entidade contadora de histórias.
No nosso roteiro, transformamos a travessia de expiações de Psiquê
numa grande jornada heroica feminina. A protagonista transforma, assim,
a narrativa de teor trágico numa comédia, através do exagero nas suas
ações e de suas reclamações a cada desafio. A linguagem utilizada no texto
é a coloquial, com fortes características da oralidade no contexto do Nor-
deste brasileiro. Nossa Psiquê é ativa e engraçada, enfrenta os obstáculos
impostos, toma decisões, erra e acerta na sua jornada, apesar de contar
com ajuda sobrenatural. A isso se deve o título Psiquê e Eros, que reco-
nhece o protagonismo de nossa heroína, ao invés de Cupido e Psiquê,
nome pelo qual a história é mais conhecida.
A arte, assim como outras áreas, precisou se reinventar em 2020 ao
se deparar com uma pandemia. Decidimos, assim, adaptar nossas peças
para ambiente virtual, mesmo com os membros do grupo em suas respec-
tivas residências, respeitando o isolamento social, por isso, os bonecos
ficaram na casa de quem iria manipulá-los. A primeira peça a passar pela
32 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

metamorfose foi Psiquê e Eros, encenada via StreamYard5, com transmis-


são ao vivo pelo YouTube6, no dia 16 de outubro de 2020 às 20 horas.
Optou-se por utilizar um fundo neutro para minimizar a sensação de dis-
tanciamento quando eles contracenassem. Foi necessário que cada
manipulador(a) tivesse uma câmera e um microfone, e o StreamYard fez
a função de juntar as imagens em uma única cena.
Durante os preparativos para a apresentação, inicialmente passamos
o texto sem os bonecos, realizando adaptações ao contexto histórico, social
e midiático do momento, como costume em nossas revisões, tudo isso feito
em reuniões on-line. Em seguida, dividimos os bonecos e materiais que
seriam utilizados na peça e iniciamos os ensaios virtuais. Nos ensaios, além
de passar o texto, foi preciso planejar o controle das telas, trilha sonora e
áudio de cada integrante do grupo (quem aparecia ou falaria em cada cena,
disposição de telas...). Ademais, foi preciso uma adaptação também ao
novo “espaço”, tendo em vista as diferenças entre atuar em uma barraca,
de modo presencial, e atuar em uma tela retangular com dimensões e ori-
entação mutantes ao longo da apresentação. A distância entre o boneco e
a câmera foi outra variável que consideramos e o close no rosto da perso-
nagem surgiu como mais um recurso humorístico. A “participação” das
mãos dos bonequeiros também se tornou interessante de modo a dar mais
vida aos bonecos, efeito o qual não utilizamos nas apresentações presenci-
ais.
Mesmo com “erros” ao vivo, pelo próprio nervosismo de uma “rees-
treia” ou pelas falhas de internet, foi uma experiência excelente, com uma
repercussão bastante positiva entre o público. Talvez a cena do encontro
de Psiquê com as irmãs seja a que mais simboliza a adaptação da peça para
o meio virtual. Nas apresentações presenciais, a reunião das três irmãs

5
https://streamyard.com/
6
https://www.youtube.com/watch?v=Kw2b3hrIwoI&t=3386s
Amanda C. Honório; Danielle M. Araujo; Glaudiney M. M. Junior; Paulo R. B. Souza | 33

acontece no castelo de Psiquê, mas no meio virtual, o encontro ocorreu por


videoconferência, com as personagens respeitando o isolamento social;
um dos momentos mais cômicos da peça.

" "
Figura 3: Live de Psiquê com as irmãs.
Fonte: autores.

A escolha de Páris

Como 2020 foi ano de eleições municipais no Brasil, decidimos ence-


nar também A Escolha de Páris, já que a peça apresenta a explicação mítica
para a Guerra de Troia, a partir de uma sátira ao processo eleitoral. O mito
narra uma escolha que Paris, príncipe de Troia (mas até então acreditando
ser um humilde pastor) deve realizar para decidir qual deusa é a mais bela.
Entre as candidatas estão: Hera, a deusa do matrimônio, Atena, a deusa da
batalha e da sabedoria, e Afrodite, a deusa do amor. Cada uma oferece um
prêmio, caso seja escolhida.
A peça foi encenada via StreamYard com transmissão ao vivo pelo
YouTube7, no dia 29 de novembro de 2020 às 19 horas. Porém, na versão
do Grupo Paideia, as três deusas precisam trabalhar um pouco mais para
conquistar o voto do humilde pastor de ovelhas. Além de tentar comprar
voto, elas fazem campanha pela Grécia, gravam propagandas eleitorais

7
https://www.youtube.com/watch?v=q9rWftwN3_c
34 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

para os meios de comunicação (com direito a jingles elaborados e gravados


por integrantes do grupo) e participam de um debate via internet mediado
por Bonner, o paciente apresentador.
Presencialmente, as candidatas contavam com uma equipe de corre-
ligionários que saía da barraca e interagia com a plateia, distribuindo
“santinhos” e buscando conseguir mais apoio para suas respectivas divas.
Com a adaptação para a internet, a interação com o público ganhou palco
no chat ao vivo, no qual o público poderia expressar opiniões, as quais
foram exibidas em tela durante o espetáculo, fazer perguntas para as can-
didatas durante o debate e votar em uma pesquisa de intenção de voto
compartilhada via Google Formulário.

" "
Figura 4: Apresentador Bonner interagindo com as candidatas no debate.
Fonte: autores.

Das inúmeras atividades que organizamos neste período de isola-


mento social, uma das mais prazerosas, sem sombra de dúvidas, foi a
experiência de adaptar a peça para o ambiente virtual. Foi um grande de-
safio, principalmente porque decidimos apresentar as duas peças na
íntegra, e isso exigiu que nos reinventássemos em todo o processo, do
Amanda C. Honório; Danielle M. Araujo; Glaudiney M. M. Junior; Paulo R. B. Souza | 35

ensaio à apresentação. Mas algo no espetáculo foi imutável, estava lá, como
sempre esteve e sempre estará: a magia sempre viva dos bonecos.

Ficha técnica

Textos: Grupo Paideia

Direção: Grupo Paideia

Bonequeiras(os): Amanda Coelho, Danielle Motta, Delano Borges e Glaudiney Mendonça

Trilha sonora: Washington Forte e Paulo Roberto Souza

Operação nas plataformas virtuais: Glaudiney Mendonça e Washington Forte

Jingles: Amanda Coelho, Danielle Motta, Glaudiney Mendonça, Paulo Roberto Souza e Wa-
shington Forte

Vídeos de campanha das deusas: Washington Forte


4

COVID-19, Górgias e a comunicação científica

Vicente Brazil 1

Testemunhamos atônitos no último ano, 2020, a ascensão de uma


horda obscurantista na sociedade brasileira, a qual, através de uma coor-
denação sistêmica e orgânica de disparos de mensagens disseminadoras
de notícias falsas em redes sociais, produziu, reproduziu e fundamentou
uma série de discursos de oposição e descrédito para com a produção aca-
dêmico-científica.
O mais inacreditável desta situação toda é que um segmento consi-
derável da população aderiu de maneira entusiasmada à narrativa
anticientífica vigente – assistimos atônitos à supremacia informacional e
veritativa do conglomerado midiático de Mark Zuckerberg (WhatsApp, Fa-
cebook, Instagram) sobre as formas e fontes tradicionais de divulgação
científica.
Impôs-se assim à comunidade acadêmica mundial a necessidade de
discussão da questão daquilo que se pode definir como “comunicação ci-
entífica”, isto é, a emergência de um debate sobre a capacidade dos
consórcios científicos traduzirem seus dados, informações e conteúdos –
de natureza muito específica e determinados por uma gramática muito
peculiar –, para uma linguagem acessível à população em geral.
Avaliação em “duplo-cego”, randomização de ensaios clínicos, imuni-
dade global, foram termos técnicos que passaram a povoar nosso cotidiano
discursivo através de sua divulgação nos noticiários diários, porém, o

1
Doutor em Filosofia, docente da Universidade Estadual do Ceará. Membro do NUCLAS-UFC.
Vicente Brazil | 37

problema que persiste é: a população com precário letramento científico


entende sobre o que falam os cientistas, médicos e demais autoridades sa-
nitárias?
A constatação desconfortável que se reconhece diante desse estado-
de-coisas pandêmico é que a comunicação dos resultados investigativos
obtidos pelas agências científicas precisa ser urgentemente aperfeiçoada,
estabelecida de modo não ambíguo e pensada para um público exotérico
aos círculos de iniciados nas ciências.
Tal limitação dos respeitadíssimos institutos de pesquisa em todo
mundo lembra muito uma cena do Górgias de Platão, mais especifica-
mente os passos 456a -457c; neste momento do diálogo o grande sofista
esclarece ao filósofo a natureza de sua téchne, testemunhando ao seu in-
terlocutor um acontecimento que caracteriza de modo singular sua arte:

[...] muitas vezes eu me dirigi, em companhia de meu irmão e de outros mé-


dicos, a um doente que não queria tomar remédio nem permitir ao médico
que lhe cortasse ou cauterizasse algo; sendo o médico incapaz de persuadi-lo
eu enfim o persuadi por meio de nenhuma outra arte senão a da retórica.
(PLATÃO. Górgias, 456a-b)

A narrativa deste evento é paradigmática para a apresentação e defi-


nição daquilo que Platão – através de Górgias – definirá como retórica. A
nomeação e exemplificação da téchne que o sofista detém será de extrema
importância para o esforço de diferenciação que o discípulo de Sócrates
implementará no restante do diálogo.
Retomando a cena narrada pela personagem Górgias, diante das li-
mitações argumentativas do profissional médico para tornar evidente ao
doente a necessidade do tratamento, o sofista/retor agiu em favor da vida,
do que é útil e da ciência. Fica assim evidente, como o próprio Platão afir-
mará em outro momento, agora no Fedro, que: “[...] nem por isso, o que
38 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

estiver de posse da verdade a conseguirá impor sem recorrer à arte da


persuasão!” (PLATÃO, 260d).
Numa tentativa de associar estes fragmentos do texto platônico com
nosso atual estado pandêmico surgem algumas questões que podem ser
levantadas: Precisariam então, as instituições científicas contemporâneas,
de um sofista? Isto é, da figura de um profissional capaz de compreender
sobre aquilo que se investiga e traduzir de modo significativo para a lin-
guagem do público em geral? Em resumo, de alguém com habilidades de
realizar uma efetiva comunicação científica?
O assentimento a estas hipóteses, tão inesperadas como evidentes,
dependerá antes de mais nada da quebra de alguns paradigmas pejorati-
vos tradicionalmente estabelecidos. Em primeiro lugar, é necessário
reconhecer que – com uma argumentação propositalmente construída
para beneficiar a elaboração dramática da personagem Sócrates no diálogo
– Platão apresenta uma perspectiva caricatural do pensamento gorgiano,
distorcendo-o de modo explícito como bem se pode constatar a partir da
simples comparação entre as afirmações do Górgias platônico feitas no di-
álogo e as hipóteses teóricas do sofista propriamente dito presentes nos
fragmentos que restaram da sua obra e nos são acessíveis atualmente2.
Esse indivíduo que – a partir do séc. IV a.C., nos diálogos platônicos
e, como uma herança pedagógica, também nos textos aristotélicos – será
rotulado de sofista/retor poderia muito bem ser denominado de filósofo –
o que seria uma ruptura com determinada tradição que, depois de vinte e
quatro séculos, ainda continua apostando numa caracterização antago-
nista entre filósofos e sofistas. Além disso mudaria consideravelmente o

2
O excelente artigo de Dinucci (2010) evidencia de modo bastante claro a empresa platônica retórica, através da qual
diz-se de Górgias aquilo que ele nunca defendeu para que Sócrates possa ser apresentado de modo triunfal na cena
dramática.
Vicente Brazil | 39

status de confiabilidade daquilo que o sofista faz e diz perante esta mesma
tradição.
A necessidade de superação desta dicotomia retórico-artificial, elabo-
rada com fins específicos no pensamento platônico, entre sofistas e
filósofos já é um consenso nos estudos filosófico-historiográficos contem-
porâneos sobre a Antiguidade (Cassin, 2005; Kerferd, 2003; Untersteiner,
2012).
Aquilo que se definirá no registro platônico como retórica – neolo-
gismo do séc. IV a.C. criado pelo próprio Platão para diferenciar Sócrates
dos seus interlocutores – poderia ter como sinônimo a própria dialética3.
Desta forma, argumentar retoricamente como um sofista, não significa
manipular falaciosamente os outros, e sim, fomentar uma forma de refle-
xão que envolva os indivíduos de uma maneira holística – racional e
emocionalmente.
Finalizada essa digressão – justificada por sua natureza reabilitante
da obra e tradição sofística – parece mais que evidente que em um tempo
obtuso como o nosso, em que somos acometidos de modo simultâneo
tanto por uma pandemia viral como por uma peste informacional, que a
atuação de um pensador capaz de transmitir aquilo que é útil para a lin-
guagem da população em geral faz-se extremamente necessária.
A atuação de nosso sofista contemporâneo aliado da ciência e da vida,
como bem se espera dele, não se dará por via de um discurso moralista –
até porque os adeptos deste tipo de modalidade discursiva em nossa soci-
edade são a parte mais aguerrida da horda negacionista4. Muito menos

3
O já clássico texto de Schiappa (1992) demonstra que as oposições sofistas-filósofos, retórica-dialética, são artificiais
e posteriores ao séc. V a.C., uma vez que toda a doxografia anterior ao séc. IV a.C. e a obra de Platão trata os termos
de modo naturalmente intercambiável. O que Schiappa conclui é que a tradição dos comentadores leu a produção
pré-platônica a partir da ótica que este estabeleceu, sem levar em consideração a perspectiva dos próprios pensadores
do séc.V a.C.
4
Um sofista riria da inutilidade a que se presta aquele que tenta ensinar virtudes morais aos outros (PLATÃO. Mênon,
93c), a areté que deve ser cultivada é a política, pois através dela a nossa sociabilidade terá alguma viabilidade.
40 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

através de um apelo ao reconhecimento de uma certa verdade como fato


evidente, indubitável e até extramundano – pois a estratégia fundamenta-
lista-pseudorreligiosa dos defensores dos movimentos anticiência e
antivacina é exatamente propagar um tal tipo de verdade.
A imprescindibilidade de um Górgias hodierno demonstra-se na ne-
cessidade insuperável de retomarmos o lógos ao seu devido lugar, a
centralidade da vida. Como defende o sofista no Elogio de Helena (§8), o
único déspota de nossa sociedade deve ser a discursividade. E quando cada
indivíduo apropria-se do lógos ele torna-se autônomo, criativo e criador
na realidade em sua volta5.
Os dados científicos não podem ser escondidos, reservados a uma su-
posta casta superior de indivíduos que tem um conhecimento elevado e
que desejam tratar as informações com exclusividade. Publicidade, análise
e divulgação científica, este deve ser o caminho para esclarecimento da
sociedade. Quem o fará? Senão o sofista, que alguém urgentemente o faça.

Referências

CASSIN, Bárbara. O efeito sofístico. São Paulo: Editora 34, 2005.

DINUCCI, A. L. Górgias 448 C- 460 b: Sócrates estabelecendo as fundações da crítica à


retórica através de sua concepção de technê. O Que nos Faz Pensar (PUCRJ), v. 28,
p. 215-231, 2010.

KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo: Loyola, 2003.

GÓRGIAS. Elogio de Helena e Tratado do não-Ente. Tradução de Maria Cecília M. N.


Coelho. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999.

PLATÃO. Górgias. Daniel R. N. Lopes tradução, ensaio introdutório e notas. 2.ed. São
Paulo: Perspectiva, 2016.

5
Esta é uma compreensão bem diferente do legado sofístico em comparação àquela que se cristalizou em certa
herança manualística transmitida ao longo dos séculos.
Vicente Brazil | 41

______. Fedro. Edição bilíngue. Tradução e apresentação José Cavalcante de Souza. São
Paulo: Editora 34, 2016.

SCHIAPPA, E. Rhêtorikê: What's in a name? Toward a revised history of early Greek rhe-
torical theory. Quarterly Journal of Speech, 78:1, p. 1-15, 1992.

UNTERSTEINER, Mario. A Obra dos Sofistas: uma interpretação filosófica. São Paulo:
Paulus, 2012.
5

Aesopica em tempos de pandemia: as fábulas


de Esopo e o Ensino de Filosofia do Ensino Médio

Gabriele Cornelli 1
Henrique Fróes 2
Euler Carvalho 3

Pedimos licença para iniciar esse texto com a reprodução da fábula A


raposa com o ventre inchado a título de epígrafe. Diz o texto:

Uma raposa faminta, como visse no buraco de uma árvore pão e carne, deixa-
dos por um pastor, entrou e comeu-os. Todavia, de barriga inchada e visto não
poder sair, pôs-se a chorar e a lamentar-se. Ao passar por ali outra raposa que
escutou os seus gemidos, aproximou-se e perguntou a causa. Quando perce-
beu o que havia acontecido, disse-lhe: ‘Pois tens que permanecer aqui até que
voltes ao que eras antes de entrar e dessa forma sairás facilmente.’ A fábula
mostra que as dificuldades das circunstâncias resolve-as o tempo.4

Eis que, como a raposa da fábula, fomos pegos de surpresa pelas cir-
cunstâncias, no caso, a irrupção da pandemia do Coronavírus no Brasil a
partir do mês de março de 2020. Nós, no caso, éramos um grupo de mem-
bros5 do Cátedra Unesco Archai e do Programa de Pós-Graduação em

1
Gabriele Cornelli é professor de Filosofia Antiga da Universidade de Brasília. Diretor da Cátedra UNESCO Archai
sobre as Origens Plurais do Pensamento Ocidental e docente do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da UnB.
2
Henrique Fróes é professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal na área de Filosofia. Possui mestrado em
Metafísica e em Psicologia Clínica e Cultura e, atualmente, é doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Metafísica da Universidade de Brasília.
3
Euler Carvalho é professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Possui pós-graduação lato sensu na área
de Língua Portuguesa.
4
ESOPO. Aesopica, p. 117. Tradução de Nelson Henrique da Silva Ferreira. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra
5
Fizeram parte do Projeto Aesopica: Gabriele Cornelli (coordenador), Arthur Sobreira, Erick Araujo, Erick D'Luca,
Fernanda Pio, Henrique Fróes, Henrique Modanez de Sant’Anna, Mariana Belchior e Rosane Maia.
Gabriele Cornelli; Henrique Fróes; Euler Carvalho | 43

Metafísica da Universidade de Brasília (UnB) ─ composto por professores


universitários, alunos da graduação, do mestrado e do doutorado ─ que se
encontrava nos primeiros estágios de elaboração e desenvolvimento de um
projeto de extensão voltado para alunos de Ensino Médio das escolas pú-
blicas do Distrito Federal. De repente, como a raposa presa no interior da
árvore, ficamos isolados. De nossas casas, fomos tentando entender o novo
mundo que se descortinava, marcado pela necessidade do distanciamento
social e pelo consequente fechamento das escolas.
Passado o susto e a paralisia iniciais, aos poucos fomos nos adaptando
ao novo normal e pensando como colocar em prática o Projeto Aesopica:
filosofia, ética e sabedoria popular. Nascida do desejo de sempre repensar
e questionar o entendimento acerca das origens da filosofia ocidental e a
constituição do cânon dos textos clássicos, nossa proposta era promover a
reflexão ética e o aprofundamento nas grandes questões filosóficas a partir
de fábulas pertencentes ao corpus esópico, entendendo que a familiaridade
dos alunos com esse gênero literário, o caráter simbólico e de aparente
simplicidade desses textos proporcionam um ponto de partida ideal para
a proposição de debates e questionamentos que efetivamente mobilizem a
atenção e o interesse dos alunos.
Com esses propósitos em mente, topamos o desafio de implementar
o projeto ainda em 2020, mesmo tendo em vista que a rede pública de
ensino do Distrito Federal havia optado por retomar as atividades exclusi-
vamente por meio do ensino remoto. O Projeto Aesopica, então, precisou
ser adaptado para a nova realidade educacional. Em parceria com o Centro
Educacional Gisno6, foi acordado que as aulas seriam dadas no âmbito da

6
Situado em área nobre do Plano Piloto de Brasília, o Centro Educacional (CED) Gisno foi fundado em 1971 e atende
atualmente aproximadamente 1.080 alunos, oriundos das mais diversas regiões do Distrito federal e do Entorno. A
instituição atende a estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Além disso, oferece à
comunidade a Educação de Jovens e Adultos, tanto no 2º como no 3º segmentos, bem como o Ensino Especial.
44 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

disciplina Parte Diversificada (PD)7 referente ao 4º bimestre do ano letivo


de 2020. No total, nove turmas participaram das atividades desenvolvidas:
cinco do 2º ano e quatro do 3º ano, totalizando 221 alunos ativos na pla-
taforma Google Sala de Aula, utilizada pela Secretaria de Educação do
Distrito Federal na viabilização do ensino remoto.
Para possibilitar o diálogo e a interação direta entre professores e
alunos, optamos por ministrar as aulas por meio de videoconferência, uti-
lizando, para isso, a plataforma Google Sala de Aula, disponibilizada pela
Secretaria de Educação do Distrito Federal. Desse modo, foram realizados
seis encontros de periodicidade semanal. Mas, para contemplar a possibi-
lidade do estudo assíncrono, as apresentações eram gravadas e
disponibilizadas posteriormente aos alunos. Após as aulas, era solicitado
aos estudantes que respondessem a um questionário composto de 2 ques-
tões objetivas referentes ao conteúdo ministrado a título de avaliação.
Cada integrante do Projeto Aesopica ficou responsável por escolher
uma fábula e desenvolver um plano de aula a partir dela. Um dos desafios
propostos foi o de relacionar cada narrativa com textos (em seu sentido
mais amplo) e temáticas atuais. Àqueles com domínio do grego clássico,
foi solicitada uma tradução própria do texto, na tentativa de acessar o seu
sentido mais original. Utilizou-se como tradução de referência a realizada
por Nelson Henrique da Silva Ferreira, que está disponibilizada de forma
gratuita pela Imprensa da Universidade de Coimbra8.
Escolhemos fazer a apresentação de cada fábula por meio de um ví-
deo, na tentativa de ressaltar o caráter originário de oralidade das fábulas.
Para isso, os textos já traduzidos (ou apenas selecionados em tradução já
existente) tiveram que ser adaptados para a linguagem audiovisual. Na

7
O conteúdo da disciplina PD é definido pelas próprias instituições escolares e integra a Parte Diversificada da Matriz
Curricular para o Ensino Médio regular - diurno da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal, de acordo com o
CONSELHO DE EDUCAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL, Parecer nº 88/2006.
8
Ver referência na nota de rodapé nº 4
Gabriele Cornelli; Henrique Fróes; Euler Carvalho | 45

narração desses, procurou-se utilizar uma variedade de vozes, sem perder


de vista a necessidade de se garantir a representatividade de gênero.
A primeira aula foi reservada para a realização da apresentação do
Projeto Aesopica e dos membros da equipe, assim como para uma expla-
nação sobre a fábula enquanto gênero textual e a sua origem histórica. O
professor Gabriele Cornelli chamou a atenção para a especificidade das fá-
bulas de Esopo: “Ao contrário do que poderíamos pensar hoje, elas não
foram escritas para serem contadas às crianças. Aliás, talvez fosse melhor
nem contar algumas delas para os pequenos, seja pela violência, seja pelo
tema pesado que abordam, ou mesmo pela moral que procuram passar”,
explicou. Para ele, as fábulas convidam o ouvinte a um jogo no qual ele
precisará mobilizar a sua interpretação da narrativa para dela extrair uma
verdade ou ensinamento. Concebidas para serem expostas oralmente, as
fábulas pressupõem uma comunidade formada entre aquele que narra e
aquele(s) que ouve(m). “É nesse contexto que começa o milagre da Filoso-
fia, ou seja, no ato de falar sobre e na abertura para o diálogo”, detalhou.
No segundo encontro, os alunos foram conduzidos por Arthur So-
breira a uma insinuante trilha interpretativa que teve início com a fábula
A andorinha e os pássaros9, passou pela Alegoria da Caverna de Platão e
terminou em trechos da trilogia cinematográfica Matrix. Nessa interpre-
tação, a andorinha, tal como o herói platônico, consegue libertar-se de sua
armadilha/prisão e retorna junto aos seus para alertá-los dos perigos que
correm. “Esse retorno nos lembra que somos seres essencialmente políti-
cos. A gente precisa dos nossos e se preocupa com eles”, detalhou. Já a
necessidade de efetuar escolhas e os motivos que nos levam a decidir pelas
opções existentes aproximou a fábula de uma cena do filme Matrix Relo-
aded, no qual o herói Neo trava um diálogo com a personagem Oráculo.

9
ESOPO. Aesopica, p. 123. Tradução de Nelson Henrique da Silva Ferreira. Lisboa: Imprensa da Universidade de
Coimbra
46 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

“Quando você acredita em um político que chega prometendo mundos e


fundos de forma fantasiosa, você não foi convencido por ele: você escolheu
acreditar. O que precisamos é entender porque decidimos acreditar”,
exemplificou Arthur.
A terceira aula foi ministrada por Erick Araújo e aprofundou as refle-
xões éticas iniciadas no encontro anterior. A partir da fábula A raposa e o
lenhador10, ele levantou uma série de questionamentos aos alunos: deve-
mos sempre falar a verdade, independentemente da situação? Um
contrato estabelecido entre as partes pode se sobrepor a um dever moral
universal? A ação moral deve ser decidida com base em um cálculo de suas
consequências? Os seres humanos têm o dever de se preocupar com o
bem-estar animal? Após explicar as bases do utilitarismo ético, Erick pro-
pôs uma crítica dessa corrente a partir da exibição de cenas dos filmes O
homem que sabia javanês, baseada na obra de Lima Barreto, e Watchmen,
nas quais vemos exemplos de argumentos típicos dessa tradição filosófica.
“O utilitarismo nos dá a possibilidade de justificar o mal a um grupo de
pessoas ou de seres em nome da obtenção de um suposto bem que bene-
ficiaria um maior número de pessoas”, questionou.
No quarto encontro, Fernanda Pio propôs uma aproximação entre a
fábula A raposa e o bode no poço11 e o filme de terror Annabelle 3: De volta
para casa. A partir da análise da motivação dos personagens, ela procurou
mostrar como podemos ser cegados pelos nossos desejos, adotando uma
postura ingênua que nos faz minimizar os riscos inerentes a determinadas
ações. “Qual seria a relação entre desejo e ingenuidade? Diante de um
grande desejo, a gente seria mais ingênuo do que o normalmente somos?”,
indagou. Fernanda também relacionou o fenômeno das fake news a uma

10
ESOPO. Aesopica, p. 115. Tradução de Nelson Henrique da Silva Ferreira. Lisboa: Imprensa da Universidade de
Coimbra
11
Ibid., p. 109.
Gabriele Cornelli; Henrique Fróes; Euler Carvalho | 47

“vontade de acreditar” dos consumidores desses conteúdos, a despeito das


evidências contrárias. Para finalizar, ela promoveu uma reflexão sobre o
papel da confiança e de seus limites nas nossas relações cotidianas.
A quinta aula, ministrada por Mariana Belchior, baseou-se na fábula
O leão e o rato reconhecido12 para discutir questões sobre a vida em socie-
dade e, em especial, aquelas relativas ao comportamento dos brasileiros
durante a pandemia. “Em 2020 a importância da coletividade tornou-se
mais presente. Foi um ano em que se fez muito apelo para a necessidade
da empatia, ao mesmo tempo em que observamos uma forte tendência ao
individualismo”, afirmou. Mariana trouxe para a discussão os dilemas éti-
cos surgidos nesse ano, como os enfrentados pelos trabalhadores que, se
por um lado, não podiam manter-se em isolamento social, por outro, as-
sim procedendo, colocavam em risco seus familiares e sua comunidade. “É
preciso colocar-se no lugar dos outros antes de julgarmos o comporta-
mento de cada um”, defendeu.
Na última aula da série, Erick D’Luca explorou a relação entre estética
e moralidade. A partir da fábula A raposa e o leopardo13, ele iniciou a aula
indicando que o termo intelecto tem para Esopo um sentido também mo-
ral: não só significa inteligência e uso da razão, mas também aquilo que
guia nossas ações, uma espécie do que hoje chamamos consciência moral.
A partir de variados exemplos, como as clássicas obras de Michelangelo (A
criação de Adão) e de Goya (Saturno devorando um filho), bem como de
materiais mais contemporâneos, como cenas do filme Capitão América: O
primeiro vingador, ele procurou relacionar a beleza e a feiura não só com
as qualidades intrínsecas aos objetos, mas também com a ação dos agentes
morais. Erick finalizou a aula exibindo o clip da música Salão de Beleza, de
Zeca Baleiro. “Os versos falam na beleza do erro, do engano e da

12
Ibid., p. 172.
13
Ibid., p. 111.
48 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

imperfeição, destacando, assim, a nossa própria condição humana mortal


e imperfeita, que não deve ser encarada como feia ou desprezível. Pelo
contrário, há que se procurar a beleza dessa condição”, refletiu.
Nesse breve relato, abstemo-nos de descrever as falas e reflexões dos
alunos: eles conseguiram superar a timidez inicial e o distanciamento ine-
rente às aulas ministradas por videoconferência e não se furtaram a
responder às questões levantadas pelos professores. Assim, nem as cir-
cunstâncias adversas impediram a prática do diálogo que, em nosso
entendimento, é o fim esperado pelo corpus esópico, que nos convida
ainda hoje a dar-lhes um (ou vários) significado(s) pelo esforço de inter-
pretação coletivo.
Os vídeos e os roteiros das aulas do Projeto Aesopica podem ser con-
sultados na página da Cátedra UNESCO Archai:
http://www.archai.unb.br/aesopica

Bibliografia

ANONIME. Vie d' Ésope. Introdução, tradução e notas de C. Jouanno. Paris: Les Belles
Lettres, 2006.

ANONIMO. Romanzo di Esopo. Introduzione e texto critico a cura de F. Ferrari. Milano:


Rizzoli, 1997.

ESOPO. Aesopica. Tradução de Nelson Henrique da Silva Ferreira. Coimbra: Imprensa da


Universidade de Coimbra, 2014.

HOLZBERG, N. Fable: Aesop. Life of Aesop. in Schmeling, G. (ed.) The novel in the ancient
world. Boston: Brill Academic Publishers, 2003, pp. 633-9.

KURKE, L. Aesopic conversations. Popular tradition, cultural dialogue and the inven-
tion of Greek prose. Princeton: Princeton University Press, 2011.

MINOIS, G. A humanização do riso pelos filósofos gregos. In: História do riso e do escár-
nio. Tradução de Maria Elena O. O. Assumpção. São Paulo: Editora da UNESP, 2003,
p. 49-76.
Gabriele Cornelli; Henrique Fróes; Euler Carvalho | 49

PAPATHOMOPOULOS, M. Ho bios tou Aisopou. He parallage. G. Ioannina, 1990.

PERRY, B. E. (ed.) Vita Aesopi Vulgaris Qualis Exstat Unice In Codice G; Vita Aesopi Wes-
termanniana. In: Aesopica. A series of texts relating to Aesop or ascribed to him.
Urbana: University of Illinois Press, 2007 (1a ed. 1952).

______ The text tradition of the Greek Life of Aesop. In: Transactions and Proceedings
of the American. Philological Association, v. 62, p. 198-244, 1933.
6

LEC-UFF na quarentena:
uma experiência de encontros virtuais

Beethoven Alvarez 1
Glória Braga Onelley 2
Greice Drumond 3
Renata Cazarini 4

1 Apresentação

O presente texto se configura como uma espécie de relatório de ati-


vidades do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos Clássicos da
Universidade Federal Fluminense (LEC-UFF) e de suas atividades durante
a pandemia. O grupo é cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do
CNPq5 e está associado à Pós-Graduação em Estudos de Linguagem do Ins-
tituto de Letras da UFF. Este relato surge como fruto da apresentação oral
do LEC-UFF realizada em 27 de agosto de 2020 durante o II Seminário de
Grupos de Estudo promovido pela SBEC.
O LEC-UFF é um grupo de pesquisa que, desde 2018, reúne, em um
espaço coletivo de troca e desenvolvimento, uma comunidade de interes-
sados e interessadas nos estudos que tratam do mundo antigo em suas
diferentes abordagens. O grupo congrega docentes e discentes (de gradu-
ação e pós-graduação) de Língua e Literatura Grega e Latina, de História
Antiga, de Filosofia, de Estudos da Tradução e de Recepção, e de outras

1
Professor de Língua e Literatura Latina da Universidade Federal Fluminense (UFF) e líder do Laboratório de Estudos
Clássicos (LEC-UFF)
2
Professora de Língua e Literatura Grega (UFF) e vice-líder do LEC-UFF
3
Professora de Língua e Literatura Grega (UFF)
4
Professora de Língua e Literatura Latina (UFF)
5
Espelho do grupo: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/366050.
Beethoven Alvarez; Glória Braga Onelley; Greice Drumond; Renata Cazarini | 51

áreas afins, da própria UFF bem como de outras universidades, como


UFRJ, UFRRJ e UERJ.
As atividades do LEC-UFF objetivam fomentar a área de Estudos
Clássicos na graduação e na pós-graduação em âmbito local e regional e se
traduzem, na prática, na orientação de estudantes (em projetos de moni-
toria, desenvolvimento acadêmico, iniciação científica, extensão,
mestrado, doutorado etc.); na promoção da circulação de resultados de
pesquisa de seus membros e do restante da comunidade científica; na or-
ganização de eventos científicos (como o Seminário de Estudos Clássicos,
o SEC-UFF, e o Simpósio anual do LEC); e no suporte a atividades de ou-
tros grupos próximos e parceiros, como o Núcleo de Tradução & Criação
(ntc/UFF), o grupo de pesquisa Filologia, Línguas Clássicas e Línguas For-
madoras da Cultura Nacional (FILIC-UFF), o Núcleo de Estudos de
Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA-UFF), o grupo de
pesquisa em Semiótica e Discurso (SEDI-UFF) e o Centre for the Public
Understanding of Greek and Roman Drama (Universidade de St. An-
drews).

2 Membros pesquisadores

Hoje são membros pesquisadores do LEC-UFF:

• Alexandre Santos de Moraes (História/UFF),


• Beethoven Alvarez (Líder, Letras/UFF),
• Bruno Salviano Gripp (Letras/UFF),
• Eduardo da Silva de Freitas (Letras/UFRJ),
• Fábio Paifer Cairolli (Letras/UFF),
• Fernanda Messeder Moura (Letras/UFRJ),
• Glória Braga Onelley (Vice-Líder, Letras/UFF),
• Greice Ferreira Drumond (Letras/UFF),
• Leonardo Ferreira Kaltner (Letras/UFF),
• Maria Fernanda Garbero de Aragão (Letras/UFRRJ),
52 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

• Renata Cazarini de Freitas (Letras/UFF), e


• Thaíse Pereira Bastos Silva Pio (Letras/UFF).

A lista de membros discentes pode ser conferida em:


http://lec.uff.br/estudantes/.

3 Atividades do LEC-UFF

Além das atividades de pesquisa dos projetos individuais docentes e


da orientação de discentes, seja em projetos de monitoria, de iniciação ci-
entífica, ou de extensão, seja em orientações de mestrado e doutorado, que
se mantiveram ativos durante a pandemia, os membros do LEC-UFF pro-
movem e organizam outras atividades, como:

3.1 Coordenação da pós-graduação lato sensu em Cultura, Língua e


Literatura Latina

Desde 2008, o Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do IL-


UFF oferece o curso de pós-graduação lato sensu em Cultura, Língua e
Literatura Latina. Atualmente o curso é coordenado pelo professor Fábio
Cairolli. A especialização congrega pesquisadores e interessados em geral
com diversas formações cujos temas de interesse estejam relacionados à
antiguidade clássica.

3.2 Coordenação dos cursos de extensão de latim e grego no PROLEM


(Programa de Línguas Estrangeiras Modernas)

Desde 2016, o curso de latim e, desde 2018, o curso de grego são ofe-
recidos à comunidade como cursos de extensão pelo Programa de Línguas
Estrangeiras Modernas (PROLEM) do IL-UFF. São coordenadores pedagó-
gicos a professora Glória Onelley (grego) e o professor Beethoven Alvarez
(latim).
Além de atender interessados de forma geral no aprendizado de latim
e grego, o curso é uma excelente oportunidade de iniciação à docência para
Beethoven Alvarez; Glória Braga Onelley; Greice Drumond; Renata Cazarini | 53

os alunos da graduação e pós-graduação da UFF que atuam como instru-


tores.
As turmas se mantiveram ativas, em formato remoto, com atividades
síncronas e assíncronas, durante a pandemia; as novas turmas de 2021.1
seguirão o modelo de ensino a distância. Mais informações em: http://pro-
lem.uff.br/.

3.3 Organização do Seminário de Estudos Clássicos (SEC-UFF)

A história de mais de 30 anos do Seminário de Estudos Clássicos da


UFF remonta a 1985, quando, na 37ª Reunião da Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência (SBPC), é fundada a Sociedade Brasileira de Estu-
dos Clássicos (SBEC). Antes mesmo da 1ª Reunião Anual da SBEC, em
1986, organizam-se Subsecretarias Regionais para serem órgãos de coor-
denação local e apoio à Secretaria Geral da SBEC, naquele momento,
sediada na UFMG, em Belo Horizonte. Uma dessas Subsecretarias é a SE3
(Estado do Rio de Janeiro, exceto capital), que ainda em 1985 organiza o
Seminário de Estudos Clássicos, em conjunto com a UFF. Durante os pri-
meiros anos do estabelecimento da SBEC, a SE3 realiza com a UFF ainda
mais dois eventos nos mesmos moldes: o II e III Seminário de Estudos
Clássicos, em 1986 e 1987. Depois, até 2009, um total de vinte edições do
Seminário, organizadas em parceria com a UFF, são realizadas, quando se
encerram as atividades das Secretarias Regionais da SBEC.6[3]
Desde então, alguns professores de Letras Clássicas com apoio de ou-
tros Departamentos continuam organizando o Seminário de Estudos
Clássicos da UFF. Desde 2018, com a instituição do LEC-UFF, o evento

6
Um histórico detalhado sobre a criação da SBEC encontra-se no texto SBEC 20 anos: uma história, da professora
Zélia de Almeida Cardoso, publicado no site da SBEC: https://www.classica.org.br/download/
download?ID_DOWNLOAD=5. Veja Cardoso (2005).
54 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

passa a ser organizado por membros do Laboratório e se constitui como o


mais importante encontro científico promovido pelo grupo.7
A 27ª edição do SEC-UFF será realizada entre 10/03/2021 a
28/04/2021 e terá como tema “Civilização e Violência”. Mais informações
em: http://lec.uff.br/.

3.4 Organização do Simpósio do LEC-UFF

No final de 2018, para celebrar a criação do Laboratório de Estudos


Clássicos da UFF, realizou-se o I Simpósio do LEC-UFF, que é um evento
monotemático de curta duração e que, normalmente, ocorre em uma tarde
com duas mesas-redondas. O tema do primeiro encontro foi “Tradução
em cena: ontem e hoje”. Em 2019, a segunda edição teve como tema “Aris-
tófanes e Petrônio em sala de aula”.
Em 11 e 17 de dezembro de 2020, de forma remota, promoveu-se o
III Simpósio do LEC-UFF sobre “Os caminhos dos afetos na Antiguidade
Clássica”, cujas mesas podem ser vistas em nosso canal do YouTube,
https://youtube.com/lecuff.

3.5 Promoção do Cineclube Matrizes Clássicas e Clube Ler o Mundo Antigo

Dois projetos de caráter extensionista que funcionam como equipa-


mentos culturais virtuais vinculados ao LEC-UFF, o Cineclube Matrizes
Clássicas e o Clube Ler o Mundo Antigo mobilizaram quatro bolsistas de
graduação durante a pandemia, assim contribuindo para o combate à eva-
são discente e ao desalento estudantil.
Desde 2018, o Cineclube Matrizes Clássicas se propõe a trazer a ex-
periência cinematográfica para os membros internos e externos à
universidade, a fim de discutir temas da Antiguidade que ainda

7
Com um pouco mais de informações, pode-se ler uma breve história do SEC-UFF em:
https://seminariodeclassicasuff.wordpress.com/historia/. Veja Alvarez (2017).
Beethoven Alvarez; Glória Braga Onelley; Greice Drumond; Renata Cazarini | 55

reverberam no mundo contemporâneo: misoginia, opressão, justiça. No


entanto, devido à pandemia de Covid-19, as atividades presenciais acadê-
micas foram suspensas. Como consequência do isolamento social
prolongado, o projeto migrou para o ambiente virtual com o intuito de
continuar a promover os estudos clássicos e a sua recepção. A programa-
ção intitulada “Sala Escura Virtual 2020” ocorreu em quatro sessões entre
agosto e outubro: as três primeiras foram via Google Meet, e a última, em
parceria com o Centro de Artes UFF, pelo YouTube, contando com a par-
ticipação de Julio Bressane, diretor de “Cleópatra”.
Todas as atividades do Cineclube podem ser conferidas em:
https://cineclubematrizesclassicasuff.wordpress.com/.
O Clube Ler o Mundo Antigo foi implementado em 2020 como me-
dida de apoio às atividades acadêmicas não presenciais durante a
pandemia. Entendendo a leitura crítica de textos da Antiguidade ocidental
como basilar na construção coletiva do conhecimento na vasta área das
humanidades, a curadoria da programação de 24 encontros, realizados
pelo Google Meet entre setembro e dezembro, abordou o repertório épico
e dramático, incluindo análises de docentes convidados da UFF sobre os
poemas épicos Ilíada e a Odisseia de Homero, além dos tradutores-docen-
tes das peças trágicas Édipo Tirano, de Sófocles, e Tiestes, de Sêneca.

4 O projeto LEC-UFF na quarentena

Com o adiamento do início das aulas do primeiro semestre de 2020


na Universidade Federal Fluminense, anunciado no dia 13 de março por
meio da Instrução de Serviço n. 004, devido à pandemia mundial do novo
coronavírus (COVID-19), o LEC-UFF, reunindo-se remotamente com seus
membros, decide dar início a uma nova atividade de apresentação de pes-
quisas.
56 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

As primeiras apresentações, que tiveram início no dia 22 de abril de


2020, consistiram em palestras virtuais nas quais os membros do LEC-
UFF apresentaram seus temas atuais de pesquisa. Esses encontros foram,
inicialmente, voltados às alunas e alunos de graduação dos cursos de Le-
tras, História e Filosofia, em especial, calouros, com quem já havíamos
travado um primeiro contato por e-mail. Pensando em nossa comunidade
acadêmica interna, as apresentações on-line eram uma forma de dar aos
estudantes as boas-vindas à universidade. Os encontros semanais davam
um panorama e faziam uma introdução às diferentes linhas e metodolo-
gias de pesquisa relacionadas com os Estudos Clássicos, e ajudavam ainda
a fazer uma apresentação dos professores estabelecendo, assim, uma pro-
ximidade entre discentes e docentes durante o período de suspensão das
atividades acadêmicas presenciais. Apenas em 14 de setembro de 2020
teve início a vigência de um novo calendário acadêmico com atividades de
ensino no formato remoto.
De abril a setembro, realizamos, então, pouco mais de vinte apresen-
tações do LEC-UFF na Quarentena. Com o passar do tempo e com a ampla
divulgação de nossos encontros e graças à participação de professores de
outros centros de pesquisa e ensino, nosso público-alvo se ampliou sensi-
velmente, ao ponto de termos, em nossa audiência, participantes de todas
as cinco regiões do País, às vezes num mesmo encontro. Com tamanha
amplitude, decidimos seguir com nossos encontros acadêmicos on-line,
mesmo quando as aulas tiveram início em setembro, com as atividades
remotas síncronas e assíncronas regulares.
Com nossos encontros, notamos que a divulgação das apresentações
das pesquisas desenvolvidas por professoras e professores e pós-graduan-
dos ampliou o acesso do corpo discente ao que se faz dentro dos muros da
universidade, em especial, ao que é produzido não só pelo LEC-UFF mas
também por outros centros de pesquisa, despertando ainda mais o
Beethoven Alvarez; Glória Braga Onelley; Greice Drumond; Renata Cazarini | 57

interesse dos estudantes ao que se pesquisa em nossa área. Isso pôde ser
constatado, por exemplo, em nosso retorno às atividades de ensino remoto
no que concerne às disciplinas da área de Estudos Clássicos: muitos alunos
já tinham algum conhecimento e até mesmo leitura dos assuntos aborda-
dos em aula, mesmo alunos “de primeira viagem”.
As falas semanais do LEC-UFF na Quarentena trataram de temas com
tamanha diversidade de abordagem que tornou possível apresentar pers-
pectivas bastante amplas sobre as múltiplas leituras e interpretações da
produção textual e imagética da Antiguidade que chegou até nós, desde as
investigações feitas em escavações de sítios arqueológicos na Grécia, pas-
sando pelo estudo da transmissão dos textos antigos à sua recepção e
releituras contemporâneas. Pesquisas que desenvolvem interpretações
dos textos da filosofia clássica, da patrística; estudos da retórica, da gra-
mática renascentista, do gênero dramático – comédia e tragédia –, da
poesia épica, da poesia lírica, de literatura helenística, mitografia, investi-
gações sobre dança e performance, e análises desenvolvidas pelos critical
studies de recepção clássica e pela área dos Estudos da Tradução em diá-
logo com os Estudos Clássicos foram apresentados e debatidos nos 30
encontros organizados pelo LEC-UFF em 2020.
Muitas dessas apresentações (25) foram gravadas e disponibilizadas
em nosso canal do YouTube e hoje constituem rica videoteca de conteúdo
sobre pesquisas do mundo antigo.

5 LEC-UFF nas redes e palavras finais

Em virtude do distanciamento físico, a única forma encontrada de


manter a comunicação com a comunidade acadêmica interessada viabili-
zou-se pela intermediação tecnológica. As redes sociais promoveram uma
integração fundamental para a realização das atividades do Laboratório e
ainda expandiram nossos horizontes de atuação.
58 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Hoje divulgamos nossas atividades e de outros grupos pelo Instagram


(@lec.uff), em que temos quase 700 seguidores, e pelo Facebook (face-
book.com/groups/lec), além do já mencionado canal do YouTube, com
quase 380 inscritos. Além disso, criamos uma lista de e-mails que já conta
com mais de 400 inscritos com a finalidade de divulgarmos informações
sobre eventos do LEC-UFF e de outros grupos.
Nessa nossa experiência durante a pandemia de COVID-19, além de
tudo, constatamos que manter o espaço, ainda que virtual, do projeto LEC-
UFF na Quarentena, um espaço de divulgação e encontro, promoveu um
salutar estreitamento dos laços de compromissos acadêmicos e de afeto
entre os pesquisadores do grupo, de outros grupos e universidades, seus
membros discentes e toda a comunidade também não acadêmica interes-
sada nos temas da Antiguidade e seus desdobramentos até a atualidade.

Referências

ALVAREZ, B. Breve história dos mais de 30 anos do Seminário de Estudos Clássicos


da UFF, 2017. Disponível em: <https://seminariodeclassicasuff.wordpress.com/his-
toria/>. Acesso em: 01 fev. 2021.

CARDOSO, Z. de A. SBEC 20 anos: uma história. Disponível em: <https://www.clas-


sica.org.br/download/download?ID_DOWNLOAD=5>. Acesso em: 01 fev. 2021.

CINECLUBE MATRIZES CLÁSSICAS. Site, 2018. Disponível em: <https://cineclubematri-


zesclassicasuff.wordpress.com>. Acesso em: 01 fev. 2021.

LEC-UFF. Canal do YouTube, 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/lecuff>.


Acesso em: 01 fev. 2021.

LEC-UFF. Site, 2018. Disponível em: <https://www.lec.uff.br>. Acesso em: 01 fev. 2021.
7

Grupo de estudos, pathos e pandemia 1

Ana Lúcia Magalhães 2

Há formas triviais de considerar o tema das paixões normalmente


incontroláveis, modos conduzidos pela ideia de que sejam um perigo e um
inimigo difícil de combater. Por outro lado, pensa-se em uma aproximação
positiva ao tema, centrada em que as paixões sejam uma potencialidade e
que talvez seja preciso unicamente ordená-las sem tentar reprimi-las.
O Grupo ERA – Estudos Retóricos e Argumentativos da PUC-SP –
compõe-se de 45 pesquisadores, entre mestrandos, mestres, doutorandos,
doutores e alunos da graduação e, como seu nome, tem foco nos estudos
da retórica. É comum que se pensem grupos de estudos como voltados
essencialmente para o logos, para a pesquisa pura, porém é nosso pressu-
posto que o ERA é movido também pelo pathos e tomamos o período de
pandemia como reforço a tal presunção.
Embora não tenhamos intenção de nos aprofundar no pensamento
de filósofos e pensadores acerca da paixão neste texto, uma vez que cada
um deles investigou o assunto, acreditamos ser importante entender seu
conceito e de que maneira o aplicamos ao grupo.

1
Publicação do Grupo ERA – Estudos Retóricos e Argumentativos, PUC-SP
2
Doutora em Língua Portuguesa (Rhetoric PhD), Professora Titular Faculdade de Tecnologia Cruzeiro (Full
Professor, Technological State of Sao Paulo College), Coordenadora do Curso Superior de Eventos - Cruzeiro/SP
(Events Management College Course, Coordinator).
60 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Grécia Antiga: Sócrates, Platão e Aristóteles

Pensamos o pathos como categoria retórica capaz de despertar o au-


ditório (PERELMANM 1996) individual ou coletivo, universal, único ou
formado por si mesmo.
Apesar de Meyer (2003, p; XVII) considerar que “tudo começou com
Platão, talvez mesmo com Sócrates e os sofistas”, esses últimos que já se
referiam à pluralidade das opiniões, à habilidade de constranger, impelir,
intimidar, se necessário, para defender as teses que se apresentavam, a
Mitologia mostra os deuses como seres consideravelmente passionais. São
inúmeras as situações: por exemplo, Urano, descrito como déspota, por
medo, devora os próprios filhos. Zeus, por sua vez, é um deus que se irrita,
causa transtornos a pessoas, transforma-as em animais ou promove cata-
clismas (HESÍODO, 2009).
Os gregos clássicos contribuíram com o entendimento do pathos, daí
tratarmos o assunto a partir desses estudiosos e delimitarmos a paixão
não no sentido psicanalítico de sua raiz – passio – sofrimento, porém na
acepção de o indivíduo ser afetado por algo. Carvalho da Silva (2006) re-
força que a cultura clássica conferia grande relevância ao pathos, uma vez
que as paixões da alma contribuíam para com o bem-estar pessoal e cole-
tivo, as escolhas do modo de vida e com as próprias condições de busca de
verdade – cerne da Filosofia, ou seja, o pathos dizia respeito a uma forma
de ser e de se posicionar. É preciso lembrar que o pathos não está ligado
apenas ao bem-estar, mas a todos os estados de alma.
Sócrates é sempre mostrado por Platão como pessoa que, embora
afetado por paixões, tem efetiva capacidade de governá-las e nunca se
deixa vencer pelas emoções. Aliás, Sócrates afirmou que as paixões só fo-
gem ao controle se o sujeito não está verdadeiramente decidido a controlá-
las. O controle das paixões aparece habitualmente nos Diálogos em que
Sócrates é representado como pessoa que nunca se deixa vencer pelas
Ana Lúcia Magalhães | 61

emoções, mas sabe exercer controle sobre as respostas a respeito de si e


de seus interlocutores. Assim, há boas razões para pensarmos que tenha
sido um mestre do controle das paixões em si e em despertar tal estratégia
nos outros.
Para Sócrates o conhecimento era a virtude e esse intelectualismo
ético pressupõe que o logos determinava a práxis. Na sua dialética, Sócra-
tes buscava a essência, ou seja, aquilo que estava no ser: ao abordar as
pessoas ou por elas ser abordado, simulava aceitar as afirmações de seu
interlocutor para em seguida, com bom humor, apontar suas contradições
e se aproximar da verdade. A maiêutica era aquele momento mágico em
que se dava a descoberta da verdade, o que só era possível porque, segundo
ele, a verdade estava oculta na alma.
Em Platão, conforme Magalhães (2012), a alma humana seria afetada
por paixões (pathemata), em número de quatro: as ilusões, os corpos sen-
síveis, as matemáticas e as ideias. Quando, no livro VI da República, fala
sobre a Alegoria da Caverna, apresenta a teoria do conhecimento (gnosio-
logia) e a teoria do ser (ontologia). Há dois modos de realidade sensível:
eikasia (coisas: imagens, sombras, reflexos) e pistis (objetos: corpos vivos,
corpos naturais) e dois modos de mundo inteligível: dianoia (elementos
matemáticos, quânticos) e noética (as ideias). Todos esses estão fora do
homem e o afetam, portanto, são afecções, ou melhor, paixões. O homem
platônico, como ser essencialmente passional no sentido de ser afetado
pelo que está fora, sujeita-se às diversas paixões.
Nesse contexto, surge Aristóteles que se dedica à produção de uma
teoria da argumentação e da retórica, em resposta ao logos platônico que,
por meio de proposições e demonstrações, acaba por transportar o homem
a um jogo de paixões (novamente a alegoria da caverna). Ao sistematizar
a retórica, inclui a paixão, uma das três provas tratadas na sua obra: ethos,
pathos e logos. Em linhas gerais, o ethos refere-se ao caráter, à imagem
62 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

que o orador transmite por meio do seu discurso, à imagem que o indiví-
duo permite que seja observada pelo outro; o pathos está ligado ao
componente emocional, passional, que o discurso desperta no auditório e
o logos refere-se também ao orador, porém associado à sua capacidade de
convencimento, ao seu conhecimento de mundo.
Aristóteles afirma que os desejos fazem parte da natureza humana
tanto quanto a razão e não vincula a virtude à falsa expectativa de uma
vida livre de emoções ou paixões3. No segundo livro da Arte Retórica con-
ceitua emoções ou paixões como: “todos aqueles sentimentos que,
causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são se-
guidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as
outras paixões análogas, assim como seus contrários”. (ARISTÓTELES,
2000, p. 5).

Grupo ERA, pathos e pandemia

Após breve entendimento retórico-filosófico do pathos, tentamos ve-


rificar qual o impacto da pandemia sobre as pesquisas do Grupo ERA.
Enquanto algumas escolas cerraram as portas seja por imposição gover-
namental, por decreto, escolha, medo ou outro motivo reconhecidamente
procedente neste momento, o grupo manteve suas atividades não apenas
inalteradas, mas inovou.

3
As paixões, segundo Aristóteles, são em número de 14: 1) cólera, impulso de vingança,; 2) calma, o contrário da
cólera, um estado de paz;3) amor(amizade), desejo de bondade em relação ao outro; 4)ódio (inimizade), sentimento
de afastamento do outro, desejo do mal ao outro; 5) temor(medo), dor ou distúrbio decorrente da projeção de um
mal iminente, penoso; 6) confiança, contrário do medo, é a antecipação daquilo que conduz à segurança; 7) vergonha,
dor ou perturbação em relação ao presente, passado ou futuro; 8) impudência (desvergonha), ocorre de acordo com
a imagem estabelecida de nós, porém, não causa dor, promove indiferença 9) favor (amabilidade): bondade
desinteressada em fazer ou devolver o bem ao outro; 10) compaixão (piedade, misericórdia): sensação de dor,
considerada mal destrutivo ou doloroso; 11) indignação: pesar pelos que parecem felizes sem o merecer ou que gozam
de sucesso imerecidamente; 12) inveja, angústia perturbadora dirigida a um igual, dor sentida porque outros têm o
que é desejado; 13) emulação movimento de imitação do outro; 14) desprezo, contrário da emulação, ocorre com as
pessoas que estão em posição de serem imitadas e tendem a sentir desprezo por aqueles que estão sujeitos a
quaisquer males.
Ana Lúcia Magalhães | 63

Foram conservadas as reuniões quinzenais de forma online, interca-


ladas com palestras a cada semana em que não estavam previstas as
reuniões, de forma que as atividades praticamente duplicaram. Nos meses
de maio e junho, houve oito palestras ministradas por pesquisadores na-
cionais e internacionais. Em agosto, além das reuniões, o grupo participou
de duas palestras. O Colóquio que ocorre no final de cada ano juntamente
com o Seminário Internacional aconteceu também de forma online em de-
zembro e contou com 200 participantes. Entre as atividades, foram
apresentadas quatro palestras internacionais, duas mesas-redondas com
pesquisadores nacionais e internacionais e 26 comunicações. Além dessas
atividades, foi produzido um livro, fruto do estudo anual e lançado durante
o colóquio.
Considerando a dedicação e empenho como os membros do grupo se
comportaram e têm se conduzido durante a pandemia, pode-se depreen-
der que só foram possíveis porque movidos em boa parte pelo pathos, não
conforme conceitua Sócrates, para quem a paixão é um estado de insani-
dade e precisa ser dominado, mas de acordo com Platão, que coloca o
homem como indivíduo necessariamente afetado pelas paixões e Aristóte-
les, que as considera úteis. Em outras palavras, as atividades só foram
possíveis porque movidas pelo pathos aristotélico: amor, confiança, com-
paixão e calma foram algumas identificadas nas práticas elencadas.
Podemos acrescentar Agostinho, que acredita nas paixões como parte
do homem e Tomás de Aquino que, a partir de Aristóteles, trata em espe-
cial do amor e crê na redenção. Neste momento o grupo trabalhou com
amor e dedicação. Lembramos ainda, durante a pandemia e apesar dela,
de Hegel, que tem uma visão paradoxal da paixão: por um lado é fonte de
mal e deve ser combatida, mas, “sem ela nada de grandioso se fez”. Em-
bora estejamos em momento difícil, por meio do pathos é possível dizer
que o Grupo ERA conseguiu grandes feitos.
64 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Referências

ARISTÓTELES, Arte Retórica e Arte Poética. Trad. A. Lofgren. São Paulo: Edições de
Ouro, 1970. Data do trabalho original: 350 a.C.

HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues & Hans Harden. 2ª Edição.
Brasília: Editora UNB, 2008. Data da publicação original: 1892 (publicação póstuma
de notas de aula).

MAGALHÃES, A.L.; FERREIRA, L.A. A Retórica do Medo. Franca, SP: Cristal, 2012

PLATÃO. A República. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Clássicos Garnier. Difusão Europeia
do Livro, 1965. Data do trabalho original: ca. 375 a.C.
8

A epidemia no mediterrâneo antigo:


experiência entre os gregos e os romanos

Alair Figueiredo Duarte 1


José Roberto de Paiva Gomes 2
Maria Regina Candido 3

Diante do cenário atual apresentado pelos institutos de pesquisas,


evidenciamos que sem uma vacina eficaz contra o Covid 194, as incertezas
quanto ao futuro continuarão a pairar e a gerar diversas teorias sem bases
científicas5. Vivenciamos o negativismo diante da epidemia assim como,
por uma terceira via, o pragmatismo daqueles que alertam para o descaso
das políticas públicas junto aos mais necessitados. A matéria do jornal Le
Monde Diplomatic Brasil6, destaca que a pandemia do Coronavírus expôs,
de forma abrupta, as faces cruéis da extrema desigualdade social, econô-
mica e urbana no Brasil. Consequentemente, os efeitos da pandemia têm-
se alastrado rapidamente nos grupos mais vulneráveis por diversos

1
Doutor em História Antiga/PPGHC/UFRJ e PROATEC/UERJ
2
Doutor em História Antiga/PPGHC/UFRJ e Pós-Doc PPGH/UERJ
3
Prof.a Associada de História Antiga PPGH/UERJ e PPGHC/UFRJ, Coordenação do NEA/CEHAM/ UERJ/ Pesquisador
de Produtividade do CNPq.
4
A pandemia do coronavírus 2 relacionado à síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), causador da doença
do coronavírus 2019 (COVID-19), que emergiu no final de 2019 em Wuhan, Província de Hubei, China, rapidamente
se disseminou por todos os continentes, aumentando exponencialmente o número de infectados e ocasionando
milhares de mortes no mundo. Ver World Health Organization - WHO. Coronavirus disease (COVID-19) pandemic
[Internet]. Geneva: World Health Organization; 2019 [cited 2020 Apr 26]. Available from:
https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019
5
Entidades como a Organização Mundial de Saúde (OMS) não apoiam essas medidas, pois apontam que não há
comprovação científica para tal. Além disso, diversos testes com cloroquina e hidroxicloroquina foram suspensos,
após não apresentarem bons resultados no combate ao novo Coronavírus. Em 30 de junho, a Sociedade Brasileira
de Infectologia (SBI) divulgou uma nota para alertar sobre os riscos desses tratamentos precoces. "Nos últimos dias,
muito tem se divulgado nas redes sociais a respeito do uso de medicamentos para a covid-19. Várias destas
divulgações que circulam nas mídias sociais são inadequadas, sem evidência científica e desinformam o público", diz
o comunicado (LEMOS, 2020).
6
Ver edição 162, https://diplomatique.org.br/
66 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

fatores, dentre eles: a dificuldade de manter condições de isolamento social


necessárias para impedir a contaminação, a precariedade de atendimento
do sistema de saúde, que não consegue absorver o excesso de demanda,
ou mesmo, pela fome que não permite aos desfavorecidos e contaminados
resistirem ao vírus. Segundo a reportagem do jornal, não é por acaso que
os índices de letalidade pela Covid 19 são maiores nas áreas urbanas que
detém precariedades de infraestrutura e de serviços públicos
(DIPLOMATIC, 2020).
O impacto da doença traz a memória dos helenistas e romanistas a
narrativa de Tucídides sobre a praga que assolou a polis dos atenienses em
430 a.C. e que se prolongou até o ano de 426 a.C. assim como as pragas
do período dos Antoninos em 166 d.C. Principalmente se considerarmos a
sensação de impotência, desordem social e precariedade fomentada e
acrescida pela disseminação do medo gerado na sociedade dos gregos e
dos romanos. Neste artigo nos propomos trazer uma análise da emergên-
cia das epidemias e o impacto causado junto às sociedades gregas e
romanas visando repensar a similitudes com o nosso tempo presente e
dessa forma nos conscientizarmos que as epidemias fazem parte da traje-
tória humana.
O discurso de Tucídides, tornou-se o suporte de informação sobre os
drásticos acontecimentos que ocorreram em meio a Guerra do Peloponeso
em 430 a.C. Segundo a narrativa do autor, a doença teve origem na Etió-
pia, seguiu o seu curso através do Egito, percorreu a Líbia e se alastrou
pelos outros territórios do Império dos Persas (TUCÍDIDES, II,48). A nar-
rativa do autor deixa transparecer que através de um carregamento de
grãos, proveniente da região do Egito, a epidemia aportou no Porto do Pi-
reu, avançando rapidamente em direção a ágora, espaço urbano de Atenas
através dos Longos Muros (LITTMAN, 2009, p.458). O resultado foi im-
pactante, gerando o medo e causando a desordem social em todo o
Alair Figueiredo Duarte; José Roberto de Paiva Gomes; Maria Regina Candido | 67

cotidiano da polis dos atenienses. O historiador Tucídides tornou-se um


importante relator dos sintomas e dos efeitos da epidemia pelos quais a
população ateniense fora acometida, pois o narrador, além de testemunho
do ocorrido, foi também vítima da peste/loimos e sobreviveu ao flagelo.
Nos chama a atenção na narrativa do autor, o modelo de discurso de
análise dos fatos, definidos por alguns como método histórico
(LONGRIGG, 2000, p.55) e outros consideram o discurso de Tucídides
muito próximo da narrativa da Escola Hipocrática (A. Parry,1969, p.106).
Temos que considerar que a narrativa do autor descreve a morte como
espetáculo e expõe o sofrimento humano diante da doença. O discurso
torna-se semelhante ao modelo narrativo das dramaturgias apresentadas
no teatro de Atenas do período clássico (JOUANNA,2012, p.56).
Tucídides em meio a desordem social, afirma que nem os médicos
foram capazes de enfrentar a doença, pois desde o início, tinham de tratá-
la sem lhe conhecer a natureza (TUCIDIDES, II,47). Ao descrever o pro-
cesso de sintomas da peste, embora não consiga identificá-la,
pesquisadores trazem a problemática do modelo discursivo de Tucídides.
Scholars consideram que o discurso de Tucídides aplica o modelo descri-
tivo do surto epidêmico, seguindo o modelo de narrativa vigente entre os
iatroi/physicoi, ou seja, o discurso seguia de acordo com os termos médi-
cos usados pela Escola Hipocrática (JOUANNA, 2012, p.55). Em geral, na
literatura grega, o impacto da guerra e disseminação de doença seriam
motivados pela animosidade dos deuses em relação aos humanos, ou seja,
guerra e doenças eram atribuídas a ira dos deuses contra os mortais
(LONGRIGG, 2000, p.55). Tucídides traz um olhar alternativo ao narrar
que nos primeiros dias do verão, os peloponésios e seus aliados invadiram
a Ática, devastando as regiões por onde passavam e que poucos dias após
a entrada dos inimigos na Ática, a doença se manifestou pela primeira vez
entre os atenienses (TUCÍDIDES, II,47). O autor deixa transparecer que a
68 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

doença foi motivada pelas ações humanas decorrentes da Guerra do Pelo-


poneso, cuja entrada foi pelo porto do Pireu e o contágio se deu devido as
aglomerações de pessoas do meio rural que se refugiaram nos templos,
entre os muros e na ágora de Atenas. A situação foi se agravando devido
às precárias condições sanitárias e de alimentação, atingindo a insalubri-
dade diante do excesso de cadáveres insepultos em estado de putrefação
que resultou na contaminação do ar local. Nos causa estranheza o fato de
o autor não relatar as ações efetivas realizadas pelos integrantes da escola
hipocrática que estavam presentes no local e que realizaram alguns pro-
cedimentos médicos visando à cura.
Em relação aos romanos, a peste antonina ou peste dos Antoninos foi
uma epidemia que assolou a Roma e depois se espalhou pelo Império Ro-
mano, em 166 e perdurando até 180. Esta epidemia tinha como sintomas
febre, erupções cutâneas e diarreia, descritas pelo médico gregos Cláudio
Galeno na obra Methodus Medendi. Entre as anotações de Galeno, médico
de Marco Aurelio Antonius, ele destaca um cenário de crise e de ausência
de liderança entre os romanos, fato que agravou e dificultou estabelecer
os procedimentos de cura. A medicina hipocratica galenica, como ficou co-
nhecida, prescreveu o início do processo da doença e a conduta médica
baseada na etiologia e no diagnóstico, cujos resultados visavam alcançar
um tratado técnico médico, ou seja, seguiam as prescrições da escola hipo-
crática cujos tratamentos foram usados em períodos posteriores.
Acreditamos que a repercussão da doença se deve ao fato de ter causado a
morte dos imperadores Lúcio Vero (169) e Marco Aurélio (180).
De acordo com o historiador Dion Cassio (LXXII, 14.3-4), a praga ma-
tou mais de duas mil pessoas por dia em Roma, revelando uma alta taxa
de mortalidade. Estudos recentes sobre epidemias estimam que o total de
mortos ultrapassou mais de 5 milhões de pessoas (HOPKINS, 2002, p.24).
Martin Sicker (2000, p.196) considera que a epidemia teve origem externa
Alair Figueiredo Duarte; José Roberto de Paiva Gomes; Maria Regina Candido | 69

à urbis romana, pois apareceu durante o cerco romano à cidade de Selêu-


cia na Província da Partia 165–166. Eutropio (XXX, 6. 24) descreve que a
praga se alastrou por entre os romanos quando estavam estacionados na
região da Babilônia. Segundo as biografias dos imperadores, o início da
doença se deve ao fato de o imperador Lucio Vero ter profanado uma
tumba sagrada da Babilônia, outra narrativa afirma que um soldado ro-
mano teria invadido uma tumba de uma divindade solar. Amiano
Marcelino no seu Res Restae7 reportou que a peste se espalhou para a Gália
e entre as legiões romanas comandadas pelo imperador Lucio Vero estaci-
onadas nas proximidades do Rio Reno.
A partir das análises da documentação sobre o tema, o pesquisador
Donald R. Hopkins conclui que a epidemia começou junto às legiões roma-
nas que lutavam na Mesopotâmia e lideradas pelo general Avidius Cassius
em 164/165, o general foi forçado a retirar a tropa da região. Durante o
processo de retorno, os soldados foram contaminados com a doença a par-
tir da região de Parthia (Pérsia) passando pela Síria e chegando a Península
Itálica. A epidemia durou muito tempo entre os romanos, fato que resultou
em milhares de vítimas diárias mortas, entre elas o imperador Lucio Vero
e mais tarde Marcus Aurélio (HOPKINS,2002, p.22).
O episódio da praga dos Antoninos se aproxima muito do caso da
gripe espanhola, que foi dissipada pelo mundo por meio da movimentação
de um acentuado contingente de indivíduos provenientes do exército du-
rante a Primeira Guerra Mundial. a peste antonina seguiu o mesmo
processo de propagação, ou seja, por meio do retorno ao solo romano, das
legiões estacionadas e comandadas por Lucio Vero e de Marco Aurélio. Ali-
ado a esta situação, incorre o fato de que a higienização na época do

7
A obra completa de Amiano abarcava um período de quase trezentos anos da história romana, narra sobre o reinado
de Constâncio II até a Batalha de Adrianópolis. O conteúdo relatado nos livros trata do período contemporâneo ao
autor no qual o próprio Amiano torna-se um dos personagens de sua obra ao narrar seus feitos como soldado do
exército de Juliano.
70 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Império Romano era feita de maneira rudimentar, apesar da proliferação


de cloacas, construção de aquedutos e de casas de banho, as aglomerações
contribuíram para a disseminação da peste entre os romanos (HAYS,
2005, p.18).
Outro fator agravante foi a falta de soldados romanos disponíveis vi-
sando a manutenção do vasto império, fez com que Marco Aurélio
recrutasse quaisquer homens capazes de empunhar uma espada e lutar:
escravos libertados, criminosos e gladiadores. Um dos resultados cruciais
foi que se esgotou a oferta de gladiadores para o entretenimento da popu-
lação, com menos jogos tinha menos diversão, fato que fomentou junto a
maior parte de população romana a exigência de mais entretenimento du-
rante um momento de precariedade de grãos e expansão da fome. Eriny
Hanna (2015, p.1) argumenta que "a cultura romana, o urbanismo e a in-
terdependência entre cidades e províncias" facilitaram a disseminação de
doenças infecciosas. Cidades com aglomerações, precariedades dietéticas
e a acentuada transumância na Península Itálica promoveram a desnutri-
ção e a falta de medidas sanitárias contribuiu para que as cidades romanas
se tornassem o epicentro para a transmissão de doenças.
Em relação à origem da doença, Kyle Harper (2009) sugere um viés
alternativo, tendo a peste se originado na África, como resultado de mu-
danças climáticas que disseminaram um surto de varíola. O historiador
australiano Rafe de Crespigny (2007, p.514-515) especula que a praga pode
ter se originado na China, durante a Dinastia Han, antes do ano 166 de
acordo com relatos feitos em registros chineses históricos. A peste afetou
as relações comerciais na região do Oceano Índico cuja ação pode ter de-
sencadeado o processo de desestruturação do Império Romano no
Ocidente. Boak (2019) argumenta que o surto de peste, em 166 d.C., con-
tribuiu para um declínio no crescimento populacional, levando os militares
a recrutar mais camponeses para compor a legião romana, resultando em
Alair Figueiredo Duarte; José Roberto de Paiva Gomes; Maria Regina Candido | 71

menor produção de alimentos de origem agraria e falta de apoio para as-


suntos cotidianos na administração das cidades, enfraquecendo Roma
diante das invasões dos bárbaros
Na perspectiva de Flynn McLynn (2009, p.457), o mundo antigo era
assolado por dolorosas doenças, como sarampo, varíola, malária, tubercu-
lose, hanseníase, tifo, difteria, tétano, poliomielite, além da peste bubônica
(McLynn, 2009, p.457). Consideramos que todas estas doenças emergiram
através do contato próximo entre os homens e os animais em processo de
domesticação. Donald R. Hopkins considera que a varíola tenha sido intro-
duzida na Europa a partir dos contatos comerciais com o norte da África.
O autor afirma que a varíola consistiu em catastrófica epidemia que asso-
lou o Império Romano durante o reinando do Imperador Marcus Aurelio
Antonius e que foi registrada pelo iatros grego Galeno (130-200 d.C.)
(HOPKINS,2002, p.22).
Tanto Hipócrates quanto Galeno deixaram registradas as suas obser-
vações dos sintomas de doenças que muito contribuíram para o
desenvolvimento da medicina europeia por um longo periodo. Segundo
Littmans, Galeno descreveu que a praga dos Antoninos era caracterizada
pela febre, inflamação nas mucosas e garganta, em seguida surgiam o vô-
mito e a diarreia junto com erupções pustulares que chegavam às
ulcerações fatais (LITTMANS,1973, p.244). O interessante que Galeno
menciona que o sintoma da epidemia era muito similar à praga que asso-
lou os atenienses descrita por Tucídides, porém ambos se eximem de
relacionar a peste aos ritos religiosos na busca da cura.
A propósito da peste que assolou a polis dos atenienses no século V
a.C. e a atuação religiosa dos asclepíades (integrantes do thiasos do deus
Asclépius), detêm aproximações com o culto do deus Apolo. Segundo o
discurso mítico helênico, Asclépius é filho de Apolo, deus das artes e da
beleza, detinha qualidades mânticas que podiam amaldiçoar com sua ira,
72 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

provocando a chegada de males que causavam epidemias e mortandade


assim como possibilitava a cura de várias doenças (BRANDÃO, 1987, p. 90-
91)8.
Filho de Apolo com a ninfa Coronis, Asclépius foi educado pelo cen-
tauro Quíron,9 um ser profundo conhecedor de ervas e dos processos de
curas de doenças. Asclépius recebeu os seus ensinamentos e fez grandes
progressos, chegando até mesmo a ressuscitar mortos. Dentro da narra-
tiva mítica, Asclépius foi citado, como médico, na célebre expedição dos
Argonautas, em companhia de heróis como Jasão, Peleu, Héracles, os Dios-
curos (Castor e Pólux) (BRANDÃO, 1987, p. 90-91). Em Epidauros se
estabeleceu o templo de Asclépius, um grande centro de peregrinação, na
qual milhares de peregrinos buscavam ser agraciados pelas bênçãos da
cura até os fins do século V a.C. Epidauro tornou-se um espaço da prática
da medicina alternativa, visando restituir a saúde dos corpos e mentes do-
entes, cujos primeiros curandeiros eram praticantes da magia, produziam
poções mágicas e manipulação de ervas. (BRANDÃO, 1987, p. 91)
Junto aos romanos, os deuses também foram evocados para auxiliar
na cura de epidemias, como tentativa de se amenizar os efeitos da

8
Na Ilíada, Apolo envia a peste ao acampamento do exército grego devido o chefe da aristocracia guerreira,
Agamemnon, ter ultrajado seu sacerdote Crises. Quando Calcas, o áugure do seu exército, adverte que a discórdia
entre Aquiles e Agamemnon, assim como a peste entre suas hostes, trata-se de uma maldição divina, os gregos
reúnem-se em assembleia mantendo o seguinte diálogo: “Que deus moveu a discórdia e a luta entre eles? Foi o filho
de Leto e Zeus. Contra o rei irritado, uma peste divina, as suas hostes, enviou, e seus guerreiros pereciam, porque o
Atrida ultrajou Crises, seu sacerdote” (HOM. Ili. I, v 10).
9
Quíron, nome grego que é, possivelmente, uma abreviatura de Keirourgós, "que trabalha ou age com as mãos",
cirurgião, pois que esse Centauro foi um grande médico, que sabia muito bem compreender seus pacientes, por ser
um médico ferido. Filho do deus Crono e de Fílira, pertencia à geração divina dos Olímpicos. Pelo fato de Crono ter-
se unido a Fílira sob a forma de um cavalo, o Centauro possuía dupla natureza: equina e humana. Vivia numa gruta,
no monte Pélion, e era um gênio benfazejo, amigo dos homens. Sábio, ensinava música, arte da guerra, da caça e
postura moral, mas, sobretudo, entre seus ensinamentos estava a medicina. Foi o grande educador de heróis: Jasão,
Peleu, Aquiles e Asclépio. Quando do massacre dos Centauros por Héracles, Quíron, que estava ao lado do herói e
era seu amigo, foi acidentalmente ferido por uma flecha envenenada do filho de Alcmena. O Centauro aplicou
unguentos sobre o ferimento, mas este era incurável. Recolhido à sua gruta, Quíron desejou morrer, mas nem isso
conseguiu, porque era imortal. Por fim, Prometeu, que nascera mortal, cedeu-lhe seu direito à morte e o Centauro
então pôde descansar. Conta-se que Quíron subiu ao céu sob a forma de constelação do Sagitário, uma vez que a
flecha, em latim sagitta a que se assimila o Sagitário, estabelece a síntese dinâmica do homem, voando através do
conhecimento para sua transformação, de ser animal em ser espiritual.
Alair Figueiredo Duarte; José Roberto de Paiva Gomes; Maria Regina Candido | 73

epidemia, o imperador Marco Aurelio determinou que fosse celebrado um


lectisternium10, cerimônia purgativa na qual se oferecia uma ceia aos deu-
ses, representados por seus bustos e imagens (os senadores mortos pela
praga também foram homenageados com tal honraria). Segundo McLynn,
na História Augusta, Heliogabalus (9.1) afirma que Marco Aurélio convo-
cou todos os ritos conhecidos através dos seus respectivos sacerdotes e
purificou a cidade de Roma (MCLYNN, 2009, p. 334;).
Concluímos que os processos epidêmicos que assolaram o Mediter-
râneo detêm uma nova tendência historiográfica, colocando-a como um
dos fenômenos a ser agregado às explicações para o processo de Atenas
perder a guerra para Esparta e mais tarde proceder à desarticulação do
Império Romano. As tendências populacionais na antiguidade, utilizando
como método a demografia moderna mostra que houve um declínio na
população rural e provincial no Ocidente a partir de meados do século II.
Além disso, o estudo demonstrou que o Império Romano Tardio foi alvo
de uma deficiência acentuada nos recursos humanos e que essa escassez
de mão-de-obra motivou a desarticulação da administração de Roma. Esta
proposta lança uma nova perspectiva sobre as atividades econômicas de-
talhadas pelas políticas populacionais do Império Ocidental.
As pestes estão associadas a perdas de vidas, trazendo explicações
econômicas baseadas no desabastecimento de grãos que gera precarieda-
des alimentares, campo propício para a disseminação de doenças entre a
população mais carente. Podemos afirmar que as pragas virais e males
epidêmicos sempre ocorreram entre os humanos e sempre estarão associ-
adas a perdas de vidas, ao pânico e ao caos em qualquer sociedade.
Exatamente por afetarem em maior ou menor grau as economias, atingem

10
Define-se como uma cerimônia propiciatória que consistia em oferecer um banquete aos deuses. O termo lectum
sternere deriva da ideia de espalhar, pois as divindades eram representadas por estátuas e por representações em
madeiras, cera, bronze.
74 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

o abastecimento em suas diversas ramificações gerando precariedades ali-


mentares, propiciando um maior número de disseminação das doenças
entre os grupos de contingente mais carente da população. Outro aspecto
que devemos ressaltar refere-se às aglomerações de contingentes acome-
tidos pela epidemia associados às atividades mercantis e militares, como o
carregamento de grãos em Atenas, o retorno das legiões para Roma e dos
soldados na gripe espanhola. O movimento de contingentes adoecidos,
ajudou na proliferação e morte pela pandemia. As epidemias no Mediter-
râneo antigo nos trazem a memória um cenário muito próximo ao que
vivenciamos na atualidade.

Bibliografia

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Michigan: University of Michigan Press, 2019.

BRANDÂO, J. Mitologia Grega. Petrópolis: Editora Vozes (2ª Ed.), 1987.

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DIODORUS SICULUS. Library of History. Translated by Oldfather, C. H., Loeb Classical.


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UJVARI, S. C. A História e Suas Epidemias. São Paulo: Senac, 2003.


9

Podcast Archai

Beatriz de Paoli 1
Fernanda Israel Pio 2
Gabriele Cornelli 3

Desde 2014, quando a Apple adicionou ao Iphone o aplicativo Apple


Podcasts, uma mídia um tanto complicada que até então era utilizada prin-
cipalmente por super-geeks, o podcast acabou rapidamente conquistando
o mundo e encontrando seu lugar em nossos ouvidos. Mais do que uma
inovação tecnológica extraordinária – no fundo, os podcasts nada mais são
do que programas de rádio on demand – o hábito de ouvir podcasts acabou
por se tornar uma inovação social extraordinária. Carregar suas histórias,
seus comentaristas preferidos, ouvi-las enquanto se está cozinhando ou
lavando louça, no ônibus, em um almoço solitário, na academia, se tornou
parte de nossa rotina cotidiana.
Nós da Cátedra UNESCO Archai sobre as Origens Plurais do Pensa-
mento Ocidental (www.archai.unb.br) da Universidade de Brasília,
sempre atentos e atentas aos meios contemporâneos de comunicarmos
nossa paixão pela Antiguidade, reconhecemos imediatamente que o isola-
mento social provocado pela pandemia nos obrigaria a trilhar novos
caminhos tecnológicos para que nosso trabalho de ensino, pesquisa e

1
Beatriz de Paoli é professora de Língua e Literatura Grega da UFRJ e editora associada da Archai: As Origens do
Pensamento Ocidental e da Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos.
2
Fernanda Israel Pio é advogada e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de
Brasília. Editora Assistente do Plato Journal.
3
Gabriele Cornelli é professor de Filosofia Antiga da Universidade de Brasília. Diretor da Cátedra UNESCO Archai
sobre as Origens Plurais do Pensamento Ocidental e docente do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da UnB.
78 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

extensão não ficasse também isolado e distante. Os tradicionais seminários


de Quarta-feira da Cátedra passaram imediatamente para as plataformas
digitais (antes para a Cisco Webex, depois para o Youtube); nosso XVII
Seminário Internacional Archai, em cooperação com a recém-criada Red
BraBA (Rede Brasília-Buenos Aires de Filosofia Antiga) foi realizado pelo
Zoom ao longo do segundo semestre de 2020; nosso projeto de extensão
Aesopica, pensado para ser oferecido nas escolas públicas de ensino médio
do Distrito Federal, foi transferido para a plataforma Meet da Secretaria
de Educação do DF e oferecido como projeto-piloto para a Escola Gisno de
Brasília.
As horas diárias passadas na frente da tela, em infinitas reuniões e
seminários, apontavam para um esgotamento rápido dessa forma de co-
municação. Os primeiros sinais de cansaço, não somente dos olhos, foram
evidentes e imediatamente a capacidade criativa da Cátedra começou a se
mover em busca de alternativas.
Foi no momento em que a UnB decidiu voltar às aulas de forma re-
mota que surgiu a ideia de atingirmos as muitas energias e competências
dos integrantes da Archai para complementarmos de maneira criativa a
oferta didática, estudando atividades diversas, em uma luta que se tornaria
semanal contra o tédio da tela e a evasão determinada pelo distanciamento
social e pelas atividades de cuidado de casa e familiares impostas a alunas
e alunos pela pandemia.
Nesse contexto, Gabriele Cornelli, Diretor da Archai, ainda no mês de
junho de 2020, em conversas com os pós-graduandos Gustavo Gomes e
Fernanda Pio, lançou a ideia de produzirmos alguns podcasts para com-
plementar a oferta didática da disciplina de Filosofia Antiga. Com a ajuda
preciosa de Marcela Diniz, radialista da Rádio Senado e voz das vinhetas
do Podcast Archai, encontramos o melhor caminho tecnológico para uma
produção que fosse ao mesmo tempo de qualidade profissional e gratuita.
Beatriz de Paoli; Fernanda Israel Pio; Gabriele Cornelli | 79

Imediatamente, como é um pouco o estilo da Cátedra, ao percebermos as


possibilidades de comunicação oferecidas pelo meio, nos demos conta de
que o projeto de alguns podcasts, originalmente pensados para a oferta
didática, havia se tornado em nossas mãos um projeto bem mais ambici-
oso. Nasceu assim o Podcast Archai: um canal de podcasts, publicados em
ritmo semanal, que abrange toda a área dos estudos clássicos em língua
portuguesa. Cada podcast é dedicado a uma personagem antiga clássica,
que é apresentada por uma colega ou um colega classicista. Há assim sem-
pre duas personagens em jogo em cada episódio: antes de entrarmos na
conversa sobre a personagem histórica, o podcast demora-se na trajetória
pessoal e de pesquisa do convidado ou da convidada. Escutamos, nesses
primeiros 17 episódios, histórias de vida acadêmica e verdadeiras confis-
sões, casos divertidos de vocações improváveis para os estudos clássicos,
percursos pessoais e intelectuais nos quais muitos e muitas de nós classi-
cistas deste lado do Oceano acabamos nos reconhecendo. Cada
personagem é apresentada sob uma perspectiva particular: em lugar de
um retrato enciclopédico, preferimos sempre explorar o ponto de vista so-
bre a personagem de nosses convidades, sem qualquer pretensão de
exaustividade. Pelo contrário, estamos em busca do Homero de Leonardo,
da Safo de Lethícia, do Crátilo de Luísa.
No meio do semestre, sentimos a necessidade de uma nova voz (e
cabeça pensante) para o Podcast Archai, e Beatriz (Bia) de Paoli passou a
integrar a produção com a competência e o entusiasmo que todos bem
conhecem. Arthur Sobreira entrou mais para o final do ano para ajudar
com a pós-produção.
As estatísticas da audiência nos surpreenderam: 2500 plays nos apli-
cativos, mais que o dobro se contarmos também o Youtube. O que mais
nos animou todavia foi o retorno de colegas e amigues, que nos contaram
de cafés da manhã de sextas-feiras (dia da semana em que o podcast é
80 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

publicado), de preparação de almoços e jantares acompanhados por nos-


sas conversas.
Gabriele Cornelli, que assina as descrições de cada episódio, admite
ter pegado um gosto especial em escrevê-las: o desafio é aquele do traba-
lho, irremediavelmente imperfeito, de captar em poucas palavras escritas
a dinâmica das conversas de cada episódio. Decidimos colocá-las a seguir
como talvez a melhor apresentação destes primeiros 17 episódios do Pod-
cast Archai.
Para quem ainda não achou o Podcast Archai na rede, a página prin-
cipal é https://anchor.fm/podcast-archai. Aqui se podem encontrar os
links para os melhores aplicativos (Spotify, Apple Podcasts, Google Pod-
casts, Breaker, Radiopublic e mais outros apps) e tem até a possibilidade
de deixar uma mensagem (áudio ou escrita) para a equipe de produção da
Archai. Mas os podcast estão também disponíveis pelo Youtube, na página
http://www.youtube.com/c/ArchaiUNESCOChairUniversidadedeBrasília
Seguem abaixo as descrições dos primeiros 17 episódios do Podcast
Archai:
Episódio 1 – Epicteto
Aldo Dinucci (UFS) conversa sobre o filósofo estóico Epicteto. No tom
das discussões socráticas, a conversa entrelaça a história de um filósofo
que foi escravo e a trajetória pouco comum de um pesquisador brasileiro,
as relações perigosas entre filosofia e o poder e... uma dica sobre como se
cozinham bagels.
Ep. 2 – Esopo
Adriane Duarte (USP) conversa sobre sua formação, o que a levou a
escrever literatura infantil e o alcance das fábulas de Esopo. Adriane conta
também a fábula preferida de seu pai e as peripécias da vida (romance) de
Esopo. Moral do podcast: quem quer agradar todo mundo acaba não agra-
dando ninguém.
Beatriz de Paoli; Fernanda Israel Pio; Gabriele Cornelli | 81

Ep. 3 – Heráclito
Marcus Mota (UnB) conversa sobre Heráclito, sua música e Eudoro
de Sousa. Os retratos de Eudoro e de Heráclito acabam por se sobreporem
em algum momento. As palavras de Marcus Mota desenham um tecido
musical e filosófico inédito. Para quem quiser ouvir as ipsissima verba de
Eudoro sobre Heráclito, aconselhamos este video:
https://www.youtube.com/watch?v=bwKX4...
Ep. 4 – Horácio
Guilherme Gontijo Flores (UFPR) conta sobre sua formação literária
e sobre como a tradução é a ponte entre a academia e a poesia dele. O
episódio é dedicado ao poeta Horácio: Guilherme fala de sua amizade com
Mecenas, que colocava muito alho na comida, de sua proximidade com
Augusto, para o qual todavia recusou um poema épico, e da Vila Sabina.
No episódio falamos de um projeto muito legal de Guilherme Gontijo Flo-
res, o Coestelário:https://www.blogdacompanhia.com.br/co...
Ep. 5 – Augusto
Paulo Martins (USP) fala de como na fila do xerox foi convencido a
estudar latim, e de como sua carreira entrelaçou desde sempre poesia e
política. O episódio é dedicado ao imperador Augusto: se fala de suas pro-
fundas reformas religiosas e políticas e da impressionante máquina de
propaganda que sustentou um projeto de poder duradouro e que mudou
o rosto da República romana.
Ep. 6 – Alexandre, o Grande
Henrique Modanez de Sant’Anna (UnB) fala de Alexandre, o Grande.
A conversa encontra as encruzilhadas entre Oriente e Ocidente, a definição
do poder e os caminhos de uma das personagens mais incríveis da história
antiga.
Ep. 7 – Dionisio I, de Siracusa
82 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Maria Beatriz Borba Florenzano (MAE/USP) fala de Dionisio I de Si-


racusa, um dos mais longevos e poderosos tiranos do mundo antigo, desde
uma das cidades mais belas e poderosas do mundo antigo. Beatriz ainda
conta sobre a trajetória de uma arqueóloga no Brasil, o atenocentrismo
dos estudos clássicos e o urbanismo antigo grego. Para quem quiser co-
nhecer mais:www.labeca.map.usp.br
Ep. 8 - Crátilo
Luisa Severo Buarque de Holanda (PUC-Rio) fala de sua trajetória na
filosofia antiga, do professor de filosofia dela no ensino médio, de como ler
a filosofia antiga grega pelas filosofias não-europeias, de politeísmos anti-
gos e atuais. E de Crátilo, personagem secundária e frequentemente
cômica na história da filosofia, mas que Platão coloca para conversar com
Sócrates sobre os nomes no diálogo homônimo.
Ep. 9 – Heródoto
Carmen Soares (Universidade de Coimbra) fala de como virou clas-
sicista graças ao conselho da irmã, de quanta matemática é preciso para
estudar grego, de seus estudos sobre alimentação antiga, do Mestrado em
Culturas da Alimentação da Universidade de Coimbra. E de Heródoto, pai
da história, da centralidade do conflito em sua obra, da pesquisa dele sobre
gentes e terras, de sua escrita labiríntica, perfeita para almas que gostam
de vadiar. E ainda de quando, no encontro da Europa com o Novo Mundo,
Heródoto deixa finalmente de ser considerado um mentiroso. O email de
Carmen Soares é cech.carmensoares ARROBA gmail.com
Ep. 10 – Helena
Maria Cecília de Miranda Coelho (UFMG) fala de sua formação na
UnB, da biblioteca de Eudoro de Sousa, de sua paixão pela recepção dos
clássicos no cinema e das emoções na retórica. A conversa é sobre Helena,
uma personagem fictícia, complexa, disputada, ambígua e famosa também
Beatriz de Paoli; Fernanda Israel Pio; Gabriele Cornelli | 83

pelo Elogio que Górgias fez a ela, bela metáfora para o poder persuasivo
do discurso.
Ep. 11 – Lucrécio
Rodrigo Gonçalves (UFPR) fala de Lucrécio e de seu poema subver-
sivo e terapêutico ao mesmo tempo, quase um livro de auto-ajuda. E de
prazer e epicurismo, de sua formação clássica, de como foi ser professor
de latim aos 23 anos, de quando surgiu a ideia do grupo Pecora Loca, de
poesia, tradução, greves estudantis e heavy metal.
Ep. 12 – Sólon
Delfim Ferreira Leão (Universidade de Coimbra) fala de seu trabalho
como pesquisador e docente de estudos clássicos de uma das Universida-
des mais antigas do mundo, de como quase foi matemático, de sua paixão
pela editoria científica aberta e de seu trabalho à frente da prestigiosa Im-
prensa da Universidade de Coimbra. E ainda da acusação injusta de
conservadorismo contra a área de estudos clássicos e das vantagens de ser
um classicista português e lusófono. E de Sólon, uma figura discreta mas
paradigmática, já clássico desde a Antiguidade. Sólon em sua poliedrici-
dade de sábio, legislador/estadista e poeta, homem de transição e
fronteiras, um aristocrata progressista nas encruzilhadas das origens do
mundo ocidental.
Ep. 13 – Eumáquia, de Pompéia
Marina Cavicchioli (UFBA) fala de sua trajetória como historiadora e
arqueóloga, de suas viagens com mochila nas costas pela Itália em busca
de seus antepassados, e nos introduz às escavações de Pompeia. Pelas vias
da cidade Marina nos apresenta a uma mulher de Pompeia: Eumáquia.
Uma businesswoman, uma mulher empreendedora, e claramente não a
única em Pompeia e no mundo antigo. Eumáquia sai de uma quase-ano-
nimidade direto para nosso Podcast Archai. Se fala em um certo momento
da “Casa di Venere in conchiglia” de Pompeia. Para quem tiver a
84 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

curiosidade de olhar para a imagem dessa Vênus na concha:


http://www.pompeiitaly.org/it/scavi-d...
Ep. 14 – Safo
Lethícia Ouro (PPGm/UnB) fala de sua experiência como professora
no colégio Pedro II, de sua trajetória pela filosofia antiga no Rio de Janeiro.
E de Safo, uma poetisa extraordinária, uma filósofa arcaica, fundadora de
uma escola em que as mulheres aprendem sobre o amor, a beleza, o corpo
atravessado por diversas representações de gênero e sexualidade.
Ep. 15 – Díke
JAA Torrano (USP) fala de como começou pela Metafísica, de sua pai-
xão pela tradução, que é a melhor maneira de ler, e de como a intuição na
vida acadêmica o levou sempre para os caminhos certos. Torrano lê tre-
chos de suas belas traduções para falar da genealogia mítica hesiódica da
justiça, Díke, como uma das estações, filha de Zeus e Têmis, a fonte do
poder e o ser em sua totalidade, uma ordem imanente ao equilíbrio do
mundo. Mas também da justiça como ordem da cidade e como trabalho,
que insere o ser humano na ordem divina do mundo. Nos versos de Ho-
mero, Díke encontra uma sociedade aristocrática e guerreira, com um
código de honra muito forte, mas ainda a mesma visão do mundo, que é
aquela do pensamento mítico arcaico: um ser humano sempre em uma
interlocução direta com a divindade.
Ep. 16 – Luciano de Samósata
Jacyntho Lins Brandão (UFMG) fala de seu gosto pelas línguas e de
como cresceu em um convento das Carmelitas. Do dia em que chegaram,
em uma caixa de livros na casa da mãe dele, duas gramáticas de grego, e
dos abaixo-assinados que ele fazia para ter aulas de grego na graduação.
Como os gregos acabam sempre no Oriente, ele também acabou na Meso-
potâmia e está terminando a tradução do Enuma Elish. Jacyntho ainda fala
da pré-história da SBEC e da programação do primeiro congresso, feita
Beatriz de Paoli; Fernanda Israel Pio; Gabriele Cornelli | 85

literalmente com papel, cola e tesouras, como o lema “Começar de novo”.


E de Luciano de Samósata, um sofista e polígrafo sírio, criado na paideia
grega e vivendo no mundo romano. Sendo bárbaro, é recebido no espaço
multicultural romano como se fosse grego. De como descobriu um volume
da obra dele, emprestado por um colega, e se impressionou com os seus
diálogos cômicos. Acabou por estudar a alteridade nos diálogos de Luciano,
que espelha a própria alteridade de romano, grego e bárbaro de Luciano.
Um verdadeiro pensador da cultura, um escritor interessado naquilo que
acontece no tempo dele. O modelo de seu diálogo cômico é o diálogo pla-
tônico, tanto que no dicionário de filósofos gregos do Goulet Luciano está
lá. O riso de Luciano é uma grande ideia filosófica.
Ep. 17 – Homero
Leonardo Antunes (UFRGS) fala de como se apaixonou pelos clássi-
cos e por Homero e como decidiu musicar os proêmios de Ilíada e Odisséia.
De como articula os universos da cultura geek com os estudos clássicos,
sendo gamer e tendo crescido em uma casa de programadores. Os dois
lados de Leonardo helenista e nerd se encontraram especialmente neste
ano de pandemia e deste encontro nasceu o projeto das aulas de Grego
online e dos jogos com temática grega em seu Canal Youtube. E falamos
de Homero, da eterna questão de quem foi ele, que acompanha todos seus
estudos e traduções. Homero foi milhares de pessoas que escreveram um
tesouro poético da Humanidade. No final, Leonardo deixa uma extraordi-
nária palhinha da música dele. A pedido, aqui vai o Canal Youtube de
Leonardo Antunes: https://www.youtube.com/c/LeonardoAntunes
Para todes que nos ouviram, nosso agradecimento mais sincero e o
convite para nos acompanhar no próximo ano.
Brasília, 28 de dezembro de 2020.
10

Ao Hades em busca da salvação: Rãs de Aristófanes e


a humanidade ridícula e heroica de Dioniso

Jane Kelly de Oliveira 1

Moraes Moreira, Flavio Migliaccio, Aldir Blanc, Rubem Fonseca, Da-


niel Azulay, Sérgio Andrade Sant’Anna, Abraham Palatnic, Naomi
Muranata, Martinho Lutero Galati de Oliveira, Antonio Bivar, Daisy Lúcidi,
Paulo César Santos (Paulinho do Roupa Nova), Maria Alice Vergueiro,
Chica Xavier, Emilio di Biasi, Mc. Dumel, Vanusa, Nicette Bruno...
Em 2020, o ano da pandemia, quando morreram, e ainda morrem,
um número assombroso de pessoas, em sua maioria anônimos (mesmo
que protagonistas na vida de alguém), perdemos também muitos artistas,
intelectuais, indivíduos que atuaram na música, teatro, televisão, litera-
tura, artes plásticas etc. Eram pessoas engajadas em produções artísticas
que representam um espectro que vai do mais erudito ao mais popular e
cujas mortes provocaram comoção pública.
Neste contexto, voltar o olhar para as Rãs, comédia de Aristófanes
posta em cena no século V a.C., em Atenas, ganha nuances ainda mais ex-
pressivas, pois evidencia a busca utópica por um passado irrecuperável.
Na comédia, diante de um anfiteatro composto por um público sub-
merso em uma guerra que já durava mais de 25 anos, que tinha enfrentado
também uma epidemia responsável por matar, aproximadamente, um
terço da população, e que vislumbrava, equivocadamente, o fim vitorioso
da Guerra do Peloponeso, Aristófanes colocava em cena um deus Dioniso

1
Professora Associada na Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Grupo de Estudo da SBEC: LINCEU –
Visões da Antiguidade Clássica.
Jane Kelly de Oliveira | 87

atrapalhado, alijado de competências que lhe são atribuídas pela tradição


mitológica. É o deus do teatro, mas não convence quando tenta assumir
um personagem e se disfarçar de Héracles. Já resgatou sua mãe Sêmele do
submundo, mas não sabe o caminho do Hades. O mesmo deus de Bacan-
tes, de Eurípides, capaz de extasiar a rainha Ágave e suas companheiras
para que assassinem o príncipe de Tebas, Penteu, como uma vingança pela
impiedade da família real, é retratado como covarde e indeciso em Rãs.
Esse deus, destituído de sua divindade, saudoso de Eurípides, que ha-
via morrido recentemente, parte em uma viagem de resgate que pretende
restaurar ao mundo dos vivos seu tragediógrafo preferido. Dioniso, não
tem coragem, não tem competência, tem apenas seu luto e o plano fantás-
tico e utópico – tão típico dos heróis das comédias de Aristófanes – de
resolver os problemas insolúveis do mundo que o cerca.
Atenas de 405 a.C., ano da apresentação de Rãs, vivia grande crise
social, econômica, militar, política e artística. Na comédia, a arte dramática
é retratada como órfã, pois os três maiores tragediógrafos – Ésquilo, Sófo-
cles e Eurípides – haviam morrido. Por isso a cidade estava sem os maiores
expoentes do gênero. Dioniso, então, empreende uma catábase ao Hades
e tenta recuperar Eurípides das trevas.
Qual a grande importância do teatro na Atenas antiga? Qual a grande
importância da arte em momentos de crise comunitária, nacional ou mun-
dial? Como entender o empenho de Dioniso em devolver Eurípides à luz?
Artistas, desde sempre, nos ajudam a digerir a dor, são suporte para
continuarmos, mesmo quando nos fazem sentir uma dor simulada. Esse
ensaio estético do sofrimento nos prepara e nos coloca alertas, toca nas
emoções mais profundas e nos lembra de nossas potencialidades e insufi-
ciências. Lembra-nos de que somos mortais. Lembra-nos de que estamos
vivos.
88 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Artistas e profissionais ligados à arte compuseram a linha de frente e


nos defenderam da ameaça persistente, da ansiedade esmagadora, e da
pressão a que estivemos submetidos durante todo ano que agora se en-
cerra. As mortes em nossa volta e a impossibilidade de viver plenamente
o luto passam pelo filtro da arte que torna tudo reflexão.
2020 exigiu dos artistas e do público a arte de se reinventar. Assisti-
mos teatro nas telas dos computadores, shows de músicas foram
rebatizados lives, oficinas de artistas plásticos foram transferidas para as
salas de visitas de suas casas, orquestras inteiras se apresentaram, mas
cada músico em sua própria casa, numa transmissão síncrona da sinfonia.
Essa capacidade magnífica de adaptação, talvez guiada pela certeza da ne-
cessidade da arte em tempos tão críticos, sinaliza o quão importante é
lembrarmo-nos dos artistas que se foram e o quão importante foi repre-
sentar para o público da Atenas clássica a busca pelo tragediógrafo mais
popular da época e que havia falecido muito recentemente.
Em uma crítica direta ao comportamento da, na época, secretária da
cultura do governo federal brasileiro, Regina Duarte, que, de modo avil-
tante, menosprezou publicamente os artistas brasileiros que haviam
morrido durante a pandemia de coronavírus, Gregório Duvivier, no episó-
dio “Leveza” de seu programa Greg News2, diz que “a arte é memória viva
em movimento”. A arte se apoia em obras anteriores produzindo um
moto-contínuo de forma que a inovação sempre é homenagem aos que já
foram.
O artista, por meio de sua obra, se relaciona com pessoas que nem
conhece, forma opiniões e empresta sua voz a formadores de opinião. A
vida do artista traz significado para vida de um povo – ajuda a comunidade

2
DUVIVIER, Gregório. Greg News: Leveza. [S. l.]: HBO Brasil, 2020. Episódio 8. 4ª temporada. 1 vídeo (29min.27s.).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Vs-a4Rs2ygc. Acesso em: 09 dez. 2020.
Jane Kelly de Oliveira | 89

a significar e a rever suas práticas. Daí a vida e a morte de um artista serem


tão importantes para a sociedade, seja em que época for.
As mortes de pessoas conhecidas, admiradas, relevantes no cenário
artístico-cultural causam a sensação de orfandade comunitária e acabam
por, diante de tantas mortes, franquear o luto coletivo, tornando pública a
dor do indivíduo e da comunidade. A morte de uma pessoa pública faculta
processar a morte coletivamente e viver o luto silenciado de tantas mortes
de pessoas anônimas.
Percebemos viva e fisicamente a importância de um artista que se foi.
E, por causa da pandemia do coronavírus, olhamos o Dioniso aristofânico
como esse herói que, desesperadamente, precisa se apegar ao passado,
àquele tempo em que as angústias eram menores.
Das surpresas que a arte nos traz, uma fala da monumental peça
Odisseia, da Cia. Hiato, apresentada em 2018, lança luz à (im)potência de
que somos dotados:

Fomos feitos pra acabar,


A gente sabe disso.
Mas a gente continua tentando permanecer.
É isso que nos faz ridículos.
É isso que nos faz heroicos.

O heroísmo ridículo de Dioniso em Rãs, a humanidade do deus es-


trangeiro, é que faculta a catábase e o resgate, não de Eurípides, seu
dramaturgo predileto, mas de Ésquilo, representante de um passado mais
esplendoroso da cidade, melhor conselheiro para o povo e capaz de guiar
os atenienses para uma saída da crise.
Essa humanidade mortal, ridícula e heroica, capaz de abrir mão de
desejos pessoais em prol de um bem comum, necessita de âncoras, de mo-
tivos para permanecer. Mesmo que a esperança venha de um passado
90 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

irremediavelmente perdido, mas que nos sirva de imagem para um futuro


melhor.
Assim, terminamos 2020 – o ano frustrante, mortífero, enlutado –
confiantes nas conquistas dos humanos, ridículos e heroicos, capazes do
artifício de sempre renovar as esperanças e continuar em busca do futuro
que nos aguarda, afinal, “um sonho a mais não faz mal.”3

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ARISTÓFANES. As Rãs Tradução de Américo da Costa Ramalho. Coimbra: Edições 70,


1996.

ARISTÓFANES. As Rãs. Tradução de Maria de Fátima Silva. Coimbra – São Paulo:


Imprensa da Universidade de Coimbra - Annablume, 2014.

DUVIVIER, Gregório. Greg News: Leveza. [S. l.]: HBO Brasil, 2020. Episódio 8. 4ª
temporada. 1 vídeo (29min.27s.). Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=Vs-a4Rs2ygc. Acesso em: 09 dez. 2020.

3
Verso de “Whisky à go go”, música composta por Michael Sullivan e Paulo Massadas, e um dos maiores sucessos
do grupo musical Roupa nova, cujo vocalista faleceu recentemente por covid -19.
11

Discurso político: reflexões sobre as


estratégias argumentativas para incitação
do pathos em tempos de pandemia 1

Mariano Magri 2

Considerações Iniciais

Independentemente da perspectiva teórica e das nomenclaturas uti-


lizadas, é lugar-comum o entendimento de que um processo
argumentativo não se limita à questão da materialidade discursiva. Ainda
que o discurso seja o condutor explícito das estratégias que visam persua-
dir, a sua efetividade depende de fatores que estão associados a questões
sociais e psicológicas dos envolvidos. Argumentar, portanto, é um pro-
cesso que estabelece uma estreita relação entre quem fala com o que fala
com quem ouve. Cada uma das dimensões dessa relação envolve um uni-
verso de técnicas e é objeto de estudos de várias áreas do saber. Neste
ensaio, o objetivo é refletir, sob a ótica dos estudos retóricos, sobre algu-
mas definições que demonstram como o que fala (logos) é capaz de atingir
as emoções de quem ouve (pathos) em tempos de pandeia.

Logos, Pathos e seus reflexos no Ethos

Visto pela ótica de Aristóteles (2013), Perelman & Olbrechts-Tyteca


(2000) e Meyer (2018), as estratégias argumentativas devem levar em
consideração que não falamos ao intelecto de nosso auditório, ou seja, para
o discurso obter efetividade, o logos, por si, não é suficientemente eficaz.

1
Ensaio entregue à SBEC. Grupo ERA – Estudos Retóricos e Argumentativos – PUC/SP.
2
Doutorando no programa de Língua Portuguesa da PUC/SP.
92 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Segundo Aristóteles (2013), o objetivo da Retórica é encontrar os melhores


meios para se chegar à persuasão a cada situação e uma das condições
essenciais para alcançar esse objetivo é a produção de um discurso que
afete as emoções dos ouvintes. Para Perelman & Olbrechts-Tyteca (2000),
uma teoria da argumentação não pode ser concebida com a redução à evi-
dência, porque, para persuadir, é necessário empregar técnicas que
aumentem a disposição dos espíritos dos ouvintes às teses apresentadas.
Ao conjunto dessas técnicas, esses autores chamaram de Nova Retórica.
Meyer (2018), por sua vez, sem negar as proposições anteriores, diz que a
Retórica renasce quando uma ideologia se desmorona. Sempre que um
objeto de certeza é submetido à discussão, é necessário negociar a distân-
cia entre os sujeitos em torno de uma questão.
Ainda que cada um desses autores encontre um ângulo para concei-
tuar Retórica, há consenso sobre dois aspectos: a) argumentação e retórica
se confundem quando o objetivo estiver associado a afetar a emoções dos
ouvintes ou a aumentar a disposição dos espíritos às teses apresentadas
ou, ainda, diminuir a distância entre sujeitos sobre uma questão; e b) o
discurso necessita da anuência do ouvinte para ser efetivo.
O orador, então, por meio da linguagem, deve fazer uso de estratégias
argumentativas que despertem a disposição do auditório na direção de
seus objetivos. Em relação aos discursos políticos, o objetivo está sempre
associado à utilidade, ou seja, discursa-se com o propósito de levar o audi-
tório a concordar com ideias ou ações a serem tomadas com a finalidade
de atingir vantagem coletiva. Sob essa perspectiva, as paixões exercem pa-
pel fundamental.
Como são humanas e universais, parte-se de Aristóteles (2013) para
elencar as paixões possíveis de ser acessadas pelo discurso: cólera, tran-
quilidade, amor, ódio, medo, confiança, pudor, despudor, benevolência,
compaixão, indignação, inveja, emulação e desprezo e seus contrários.
Mariano Magri | 93

Para analisar como essas paixões são provocadas, toma-se fragmentos dos
discursos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e dos presidenci-
áveis Ciro Gomes e Marina Silva acerca da necessidade de uma política
mais efetiva para minimizar os impactos da pandemia3.
Miriam Leitão: Presidente Fernando Henrique, a gente está diante
de uma situação tão sulrreal que é o Ministério da Saúde querendo escon-
der os números, né? A gente só viu isso na ditadura militar, quando
naquele surto da meningite [...] Como se faz para lutar contra uma coisa
como essa?
Fernando Henrique Cardoso: [...] a mim me chocou muito ver
aquela reunião ministerial. E o povo todo deve ter visto aquilo. Por que
viu o quê? Que não tem rumo. Não preciso repetir os problemas que fo-
ram levantados aqui. Diante desses problemas, o que foi dito? Nada. Nada,
realmente, nada. Tivemos palavrões em grande quantidade; tá bem, cada
um fala do jeito que sabe, mas uma demonstração pública de incapacidade
de dar rumo ao Brasil [...] mostrou que o Brasil está sem rumo; nós já
sabíamos, talvez, alguns já sabiam, porque essa falta de sensibilidade em
relação à pandemia é tremenda; mas imaginar que você, hoje, vai escon-
der dados é ridículo; simplesmente ridículo, porque os dados vão
aparecer; os mortos existem, não é uma invenção da mídia [...] então, é
dentro da cabeça das pessoas que estão mandando no Brasil que as teias
de aranha tão impedindo de ver a realidade. E não vendo a realidade como
que vai governar? Não tem como. Cabeça vai pra cá, cabeça vai pra lá.
Quem sofre? Nós todos. Então, acho que realmente o momento é de in-
dignação; não é simplesmente você registrar o que está acontecendo; é
com raiva. Não é possível! Nós temos um grande País, nós temos um fu-
turo possível. É necessário trabalhar para construir esse futuro e esse

3
Os discursos foram produzidos em uma entrevista produzida pela emissora Globo New, mediada pela jornalista
Miriam Leitão. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=01c35flu1G0. Acessado em julho de 2020.
94 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

futuro é juntos. Não dá pra você que tem responsabilidade de comando


ficar disseminando a discórdia.

É possível observar que o discurso do ex-presidente faz várias inves-


tidas para angariar a indignação, medo, falta de confiança e ódio com as
expressões “chocou” “não tem rumo”, “incapacidade de dar rumo”, “essa
falta de sensibilidade”, “os mortos existem”, “Quem sofre?”, “o momento
é de indignação”, “é com raiva”, ”Não é possível!”, “ficar disseminando a
discórdia”. Verifica-se que toda a investida do orador não está em direção
de uma contraproposta, mas de um ataque ao ethos do presidente, evi-
dente nas passagens “aquela reunião ministerial”, ”não tem rumo”,
“tivemos grandes palavrões”, “falta de sensibilidade”, “disseminando dis-
córdia”.
Miriam Leitão: Eu queria passar a palavra agora pro ministro Ciro
Gomes, mas a gente tava conversando sobre os números, né, a manipula-
ção de números. Mas queria que você falasse também sobre o fato de que
essa tensão na rua, porque a qualquer momento pode surgir também e
esse é outro perigo. Tem o perigo da pandemia e tem o período de infil-
trado que provoque um conflito [...] chamando de terroristas os
manifestantes antigoverno... ministro Cirro Gomes (passou a palavra).
Ciro Gomes: Olha, essa doença, esse vírus assassino ele nem tem va-
cina, hoje, apesar de todo esforço, nem tem remédio, apesar de todo
charlatanismo com que, inacreditavelmente, um político como Bolsonaro
prescreve remédio na televisão. Nós estamos chegando muito perto
mesmo do fim do mundo, sob esse ponto de vista. Nunca vi, um político,
por mais ilustrado que seja, e o Bolsonaro é um boçal, ficar prescrevendo
remédio que não tem sustentação científica nem nada. Portanto, a infor-
mação nesse caso é o único caminho para prevenção. Por quê? Porque o
Mariano Magri | 95

isolamento social, os atos de higiene, álcool gel, lavar mão, manter distan-
ciamento, usar máscara, tudo essa ferramenta só chegará ao povo,
especialmente ao nosso povo mais sofrido, mais simples, se tiver uma pe-
dagogia e a informação nesse caso é essencial [...] Portanto, essa escalada
do Bolsonaro é crime, como a Marina já falou.

O discurso de Ciro Gomes apela às emoções pelas fortes expressões


que incitam a cólera e o ódio nas expressões: “esse vírus assassino”, “ape-
sar de todo esforço”, “apesar de todo charlatanismo”,
“inacreditavelmente”, “estamos chegando muito perto mesmo do fim do
mundo”, “essa escalada é crime”. Ao mesmo tempo, o discurso investe na
criação de uma imagem negativa do presidente, evidente em “um político
como Bolsonaro prescreve remédio na televisão”, “o Bolsonaro é um bo-
çal”, “essa escalada do Bolsonaro é crime”.

Miriam Leitão: O que é mais importante nesse momento do Brasil.


Nessas aflições todas que estamos vivendo tudo ao mesmo tempo e o que
é preciso fazer neste momento de mais importante... Marina (passa a pa-
lavra).
Marina Silva: [..] Que a gente possa, nesse momento, estar unidos
em torno de um projeto de país e não de um projeto de poder; de uma
visão de reconstrução da nossa nação e não apenas do calendário das elei-
ções. É isso que vai fazer a diferença e que vai reconquistar o laço social
entre uma população que está desiludida, né, e as lideranças políticas que
ela que tem de decidir quais são.

A presidenciável Marina Silva apela às paixões por meio de discursos


que explicitam o antagonismo “o que eu quero” versus “o que eu tenho”,
96 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

evidenciado nas expressões “em torno de um projeto de país e não de um


projeto de poder”, “reconstrução da nossa nação e não apenas do calendá-
rio das eleições”. Há também o apelo à geração de confiança em
“reconquistar o laço social” e “lideranças políticas que ela tem de decidir
quais são”.

Considerações Finais

O discurso político lida com as expectativas futuras de uma sociedade.


Em tempos de pandemia, que ninguém sabe ao certo qual será esse futuro,
os discursos se inflamam contra o poder instituído, na medida em que não
encontram respostas minimamente satisfatórias. Obviamente, não pode-
mos concluir, por meio de três fragmentos, que os discursos políticos em
tempos de pandemia possuem essas características em sua maioria, mas,
pelos três oradores analisados, pudemos considerar que os discursos inci-
tam as paixões por meio da descaracterização do ethos do poder instituído.
As estratégias não foram em direção à proposição de alternativas, mas, tão
somente, de criticar a condução da política atual.

Referências

ARISTÓTELES. A retórica. São Paulo: Edipro. 2013.

CARDOSO, Fernando Henrique; GOMES, Ciro; SILVA, Marina. Entrevista concedida à


jornalista Miriam Leitão. Globo News. 07/06/2020. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=01c35flu1G0. Acessado em julho de 2020.

MEYER, Michel. Questões de retórica: linguagem, razão e sedução. São Paulo: Biblioteca
70. 2018.

PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins


Fontes. 2000.
12

Os Estudos Clássicos na Pandemia.


Antígone 2020: diário de um ano pandêmico

Adriane da Silva Duarte 1

[Isso não é um ensaio, no sentido acadêmico do termo, mas é uma


tentativa. Tentativa de capturar o que foi, do ponto de um professor uni-
versitário, de uma classicista, esse inusitado ano de 2020.]

10 de março
Aula sobre a Tebas de Sófocles no Instituto Moreira Sales dentro do
curso Cidades por Escrito. Falar sobre Tebas é tratar da peste e de cadáve-
res insepultos. A covid já está pegando forte na Europa e há um clima de
apreensão no ar – uns poucos casos já foram notificados em São Paulo.
Encontro amigos e é notável a hesitação: como cumprimentar, com um
toque de cotovelos como pede o novo protocolo? Vamos de beijo e abraço
mesmo e seja o que Deus quiser. Último café em mesa coletiva. As aulas
seguintes já seriam online.

11 de março
Conferência na VI Semana de Estudos sobre o Período Helenístico, na
USP. Último evento presencial do ano. Os convidados estrangeiros, da Itá-
lia e da Grécia, cancelaram a vinda na última hora dadas as restrições de
viagem e falaram por videoconferência. Por via das dúvidas, já trazia o
álcool gel na bolsa. Durante o dia, a confirmação do primeiro caso de

1
Professora Associada de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo, bolsista em Produtividade em
Pesquisa do CNPq e líder do Grupo de Pesquisa Estudos sobre o Teatro Antigo.
98 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

corona na Universidade, justo um aluno da Faculdade. Vou à biblioteca já


desconfiada de que não ficaria aberta muito tempo mais para retirar o li-
vro de Fernando de Azevedo, No tempo de Petrônio. Ensaios de
Antiguidade Latina (1923). Esse livro atravessou a quarentena comigo
(ainda está aqui, sobre a mesa), a ponto de eu decidir escrever um artigo
sobre o Fernando de Azevedo latinista. Em dez dias as atividades presen-
ciais no campus estariam suspensas, os prédios fechados e vazios.

23 de março
Dia previsto para a primeira reunião no ano do Grupo de Pesquisa
Estudos sobre o Teatro Antigo. Na agenda, a discussão de texto sobre as
emoções trágicas, tema que investigaremos no biênio. Não imaginávamos
que experimentaríamos intensamente o binômio terror e piedade nos pró-
ximos meses. Com o avanço da epidemia (a quarentena começaria a valer
no dia seguinte), tivemos que cancelar o encontro. Nesse primeiro mo-
mento, ficou tudo em suspensão na incerteza de quanto tempo durariam
as medidas de isolamento; depois, veio o imobilismo dada a angústia de
viver na cidade que se tornou o epicentro da doença no país. Só retomarí-
amos as atividades em agosto, virtualmente.

30 de março
Primeira atividade à distância: uma banca de doutorado – em licença
prêmio, eu estava sem aulas no semestre. Hoje a vida na tela já está nor-
malizada, mas então foi tudo bem estranho e um pouco triste. Estranho,
porque começamos a desenvolver o dom da ubiquidade, do estar na sessão
de defesa de tese, na sala de casa e na casa dos outros ao mesmo tempo,
vivendo o lá, o aqui e o acolá. Triste, porque os candidatos foram privados
de ter ao lado, nesse momento de celebração, sua família e amigos. Mas é
vida que segue e todas as defesas agendadas para o ano aconteceram.
Adriane da Silva Duarte | 99

abril...maio...
Meses-reticências. Dificuldade em se concentrar, tentando dar conta
das tarefas entre um panelaço e outro: mais bancas, reuniões, pareceres,
artigos prometidos. Entre esses, uma comunicação comparando duas tra-
duções de Antígone, da Anne Carson para o VI Encontro Tradução dos
Clássicos no Brasil, inicialmente previsto para maio. Antígone ganha no-
vos contornos e se torna concreta durante a pandemia. Enquanto relia a
peça e suas traduções, covas rasas eram abertas nos cemitérios da cidade.
Em março, o prefeito, por ironia Covas no sobrenome, lançou um decreto
restringindo os ritos funerários:

“BRUNO COVAS, Prefeito do Município de São Paulo, no uso das atri-


buições que lhe são conferidas por lei [...], DECRETA:
Enquanto perdurarem a situação de emergência e o estado de cala-
midade decorrentes da pandemia da Covid-19, a partir do momento em
que o total diário de sepultamentos em cemitérios públicos no Município
de São Paulo for superior a 400 (quatrocentos), serão plicadas as seguintes
regras:

I - fica proibida a celebração de velórios no Município de São Paulo em locais públi-


cos, em atendimento às recomendações dos órgãos de vigilância sanitária e
epidemiológica;
II - fica autorizado o Serviço Funerário do Município de São Paulo, sob a coordenação
da Secretaria Municipal das Subprefeituras, a determinar os locais de sepulta-
mento dos falecidos, mesmo que diverso do local pretendido por seus familiares;
III - fica autorizada a realização de sepultamentos em período noturno, compreen-
dido entre às 18h (dezoito horas) e às 6h (seis horas).”

Não se proibiram os enterros e tais restrições têm respaldo em me-


didas sanitárias, mas ainda assim há de se reconhecer a dor dos que se
100 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

veem privados de homenagear seus mortos. Antígone representa todos os


que sofrem com as interdições impostas pela pandemia e não encontram
empatia da parte de governantes que dão de ombros para o luto daqueles
que perderam entes queridos para a doença. E daí, não é mesmo? Por ou-
tro lado, fechados em casa somos todos antígones condenados ao
encerramento, contemplando a morte. Hoje isso pode soar um tanto dra-
mático, mas então já eram 3000 mortos só no município (agora, 14000) e
as ambulâncias não paravam de passar num memento mori perpétuo.

5 de junho
Anunciada a suspensão dos concursos de ingresso, livre-docência e
titular. Tudo adiado para 2022 por determinação de lei federal. Passei os
primeiros meses do ano escrevendo o Memorial e preparando a documen-
tação para prestar o concurso de Titular. Já estava até inscrita. Frustração.

julho
A revisão da tradução de Quéreas e Calírroe vai de vento em popa. A
publicação do romance de Cáriton, parada na editora fazia tempo, desen-
cantou. Editor, revisora e tradutora trabalhando cada um em sua casa,
numa troca de mensagens constante e o livro ganhando corpo.

25 de julho
Em razão da pandemia, pela primeira vez uma transmissão direta do
teatro de Epidauro: Os Persas, de Ésquilo, em produção do Teatro Nacio-
nal da Grécia. Uma catarse para os classicistas. Belíssima montagem, mas
do que mais gostei foi daquela horinha, antes do espetáculo começar, em
que a câmera mostrava o teatro se enchendo lentamente, a tarde caindo...
Do meu sofá, tinha a impressão de estar lá, sentada nos últimos bancos da
arquibancada.
Adriane da Silva Duarte | 101

Agosto
Finalmente caiu a ficha do desafio que seria preparar as aulas para o
2º semestre. Na distribuição de aulas, couberam-me disciplinas novas ou
que não dava há muitos anos e teria que preparar os cursos do zero, só
com o que tinha à mão, nas estantes, ou que podia encontrar na internet
– a biblioteca seguia fechada e a importação de livros difícil pela restrição
do tráfego aéreo. Todo o material deveria ficar disponível para os alunos,
que enfrentavam dificuldades ainda maiores e as aulas, dadas de forma
síncrona, gravadas. Com a ajuda de colegas que tiveram que se adaptar às
novas plataformas no susto já no 1º semestre, aprendi a usar os recursos.
Alguns compartilharam comigo arquivos. Descobri muita coisa boa na
rede e consegui montar programas mais interessantes do que pensava ser
possível. A necessidade é a mãe da invenção.

10 de agosto
Retomada as reuniões do Grupo de Pesquisa. Muito bom rever todos,
mesmo que cada um em seu quadrado. Uma coisa boa foi poder ter de
volta os membros que moram fora de São Paulo e que só encontrávamos
esporadicamente. O vírus que distancia também aproxima.

12 de agosto
Chegaram os exemplares de Quéreas e Calírroe! Agora ele pertence
aos leitores.
Nesse ano de lives e podcasts gravei minha contribuição para o da
Archai-UNB, sobre Esopo – depois viriam outras. Importante tornar visí-
veis as nossas pesquisas e nisso esse ano foi muito produtivo. Demos a
cara e nos vimos muito também. Assisti várias, mas foram tantas as
102 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

iniciativas que ficou inviável acompanhar tudo, afinal muitas são as lives
para uma única vida.

20 de agosto
Participei do primeiro evento virtual, um debate sobre o filme de Li-
liana Cavani, Os Canibais, promovido pelo Cineclube Matrizes clássicas, da
UFF. O filme traz Antígone para o contexto das lutas políticas na Itália dos
anos setenta. De novo mergulhei na personagem. A abertura é marcante:
corpos espalhados pela cidade, os pedestres ignorando-os e desviando
como se fossem apenas obstáculos ao caminho. Tudo a ver.

18 de setembro
Início das aulas. Ensino remoto emergencial, o nome já prenuncia. Só
para emergências, que o bom mesmo é a sala de aula. Um propósito: tentar
tornar os alunos, cada um isolado em seu espaço privado, em uma turma.
Às vezes mais bem sucedido, outras vezes, menos. Ainda assim, bom voltar
a encontrar os estudantes.

16 de novembro
4ª Jornada do Romance Antigo: Eros e Afrodite, também no ciberes-
paço. Novo desafio. Em certo sentido, mais difícil de organizar do se fosse
presencial. Será que a internet vai segurar? O grande número de inscrições
(o triplo do usual) de todo o Brasil mostra que o sistema híbrido, na terra
e na nuvem, para os eventos veio para ficar.

17 de novembro
Entrevistas dos candidatos a ingresso no PPG Letras Clássicas – a se-
leção do primeiro semestre foi adiada por causa da covid. Tudo na
telinha... vamos nos adaptando.
Adriane da Silva Duarte | 103

Depois de um respiro entre setembro e outubro, nova investida do


vírus. Os jornais noticiam alta de casos e de hospitalizações. A USP recuou
de voltar com as atividades presenciais (inicialmente dos funcionários) no
campus. Ao que tudo indica estamos num looping sem fim...

20 de novembro
Dia da Consciência Negra. Revejo Antigone in Ferguson para debater
em aula. A ideia da Theater of War Productions é fazer a leitura dramática
das tragédias para promover o diálogo e superar traumas, no caso ligados
ao racismo estrutural. Esse ano, depois da morte de George Floyd (e, entre
nós, de João Alberto Freitas), voltou com tudo no formato virtual. Cada vez
mais importante conectar os clássicos com a agenda do nosso tempo, esse
“rumor do lado de fora da janela”, como quer Ítalo Calvino.

27 de novembro
Finalmente Antígone. O VI Encontro Tradução dos Clássicos no Brasil
acontece em formato digital. Anne Carson recria a heroína de Sófocles em
antigonick, mas ela ainda morre no final (minha tradução):

é sexta à tarde
lá vai Antígone ser sepultada viva
está lá
em todo caso
pode-se dizer
que é normal
racional
perdoável
ou mesmo na definição mais insana justo
só que não
13

Teatro em pandemia

Tereza Virgínia R. Barbosa 1


Anita (Anna) Mosca 2
Truπersa 3

Politicamente incorreto nos dias de hoje, o teatro antigo (o clássico


ateniense e o helenístico também) exige, como se sabe, proximidade, aglo-
merações, movimento e contato em seções de aproximadamente duas
horas, grandes eventos e máscaras – inadequadas, com vazão na boca e
nos olhos, o que, definitivamente, não está de acordo com as atuais reco-
mendações sanitárias. Plateias lotadas4, em arquibancadas onde circulam
comes e bebes e não há delimitação exata dos assentos. Festa cidadã, tera-
pia coletiva.
Evidentemente, esta modalidade antiga da função cênica – pensada
no modelo aristotélico, para provocar a catarse – se dava, nos tempos em
que era permitido conviver sem grandes restrições, tanto entre atores e
diretores, na σκηνή, no προσκήνιον e no λογεῖον quanto no próprio

1
UFMG – GTT/CNPq
2
(UFMG)
3
A Truπersa, na configuração pandêmica, constitui-se com os seguintes membros: Alice Mesquita, Anita (Anna)
Mosca, Anselmo Bandeira, Antonio Edson (Grupo Galpão), Daniel Grunmann, Elisa Almeida, Guilherme Mello, Julio
Guatimosim, Thaís (Lima e Sena) Ciccarini.
4
Rabinowitz, 2008, p. 21: “As performances começavam de madrugada; em algumas peças, como Agamêmnon de
Ésquilo, a aurora é mencionada e teria sido real; do mesmo modo, em Antígona e Ájax de Sófocles fala-se sobre o
que aconteceu na noite anterior. As pessoas teriam começado a chegar, se tivessem vindo de longe na Ática, durante
a noite. Podemos pensar em filas para adquirir bilhetes para um concerto de rock, ou para algum festival sem
assentos reservados. O festival durava cinco dias e cada um era uma imensa aventura de dia inteiro; as pessoas na
plateia comiam e bebiam normalmente durante as performances. Deste modo, não devemos imaginar um espaço
silencioso. O público era ativo participante, não passivo. As peças foram primeiramente realizadas ao ar livre, à luz
do dia, para uma grande audiência (as estimativas variam, entre 6.000 e 14.000). O pano de fundo era a cidade de
Atenas (...). Infelizmente, muita coisa não pode ser dita com segurança sobre o teatro físico do século V, por causa de
mudanças subsequentes (...); muitas das imagens que temos em nossas mentes vêm do teatro em Epidauro, que é a
partir do século IV.” Todas as traduções aqui apresentadas são de nossa responsabilidade.
Tereza Virgínia R. Barbosa; Anita (Anna) Mosca; Truπersa | 105

θέατρον, lugar onde os espectadores deviam administrar suas emoções,


sobretudo aquelas que geram o desejo de distanciamento radical (φόβος)
e aproximação solidária (ἔλεος).
Administrar emoções violentas, que Aristóteles, na Poética, propõe-
como as mais eficazes para a produção da catarse, acreditamos, é não
somente útil e saudável, mas urgente, particularmente para comunidades
e países em crise, sobretudo no que diz respeito à prática da cidadania em
tempo de pandemia.
Povo com brilho próprio e alternativas inteligentes para circunstân-
cias de risco, os helênicos também sofreram, confirma Tucídides5, com
uma epidemia assustadora nos idos da Guerra do Peloponeso (431-404
a.C.): essa matéria de “sofrência” eles conheciam bem; e, por isso, talvez
fosse oportuno observar manifestações das emoções violentas que Aristó-
teles indica como geradoras de catarse e o que o teatro antigo comunica
sobre as reações humanas no confronto com a morte, o luto pelos mortos
e as perdas coletivas. Com referência ao tópico, parece-nos ser conveniente
e salutar, revisitar teatros, rever tragédias e comédias áticas.
Contudo, a Covid-19 decretou a morte dos teatros, anfiteatros, teatros
de arena e até mesmo das casas de espetáculo. Todos eles foram, indiscri-
minadamente, transformados em cenotáfios.
Decretou, mas seremos subservientes a isso? Haverá alternativas
para nós “teatreiros”?
É do conhecimento de todos que o teatro primitivo, com o sacrifício
purificatório de animais, foi paulatinamente se tornando cada vez mais
simbólico, abstrato, etéreo, e a sensação que temos no momento é que ele
tende a se virtualizar – e “viralizar” – cada vez mais: estamos perdendo
nossos corpos.

5
História da Guerra do Peloponeso, Livro II: 47-51.
106 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Um ensaio de Thomas R. Martin no The Washington Post, com título


impactante, A plague can wipe out peoples – and democracies6, e texto con-
tundente, pode servir como interlocutor para nós, estudiosos da
antiguidade, e para os empreendedores culturais contemporâneos, os
quais, por vezes, pensam em aspectos mais restritos e pontuais da cultura
– preocupados que são com as minorias – e se recusam a alargar seus ho-
rizontes em um tempo e espaço mais largos, mesmo vivenciando uma
pandemia que ataca no macro, sem distinção de redutos ou guetos.
Segundo Martin, em Atenas, como hoje, acreditou-se que a doença se
espalhou por motivos políticos:
A doença foi uma epidemia – que infectou pessoas em toda a África
Oriental e no Sudoeste da Ásia, bem como na Grécia. Alguns dos atenien-
ses acreditavam que seus inimigos, liderados pelos espartanos, haviam
introduzido propositalmente a doença em seu território, envenenando o
abastecimento de água. A infecção provavelmente foi trazida para Atenas,
de maneira não intencional, por viajantes, que a negócios (importação e
exportação), iam e vinham constantemente pelo movimentado porto in-
ternacional da cidade-estado. (Martin, The Washington Post, April, 14th,
2020)
À época, de acordo com as fontes antigas, Tucídides principalmente,
o distanciamento social era impossível. Surpreendido, o serviço de assis-
tência e saneamento da cidade tornou-se absolutamente ineficaz e a
pestilência se espalhou. O governo democrático de Atenas se enfraqueceu,
a observância das leis afrouxou e tradições culturais que mantinham a so-
ciedade ateniense unida foram abandonadas. A democracia adoeceu.
Tucídides relatou que a ilegalidade explodiu por toda a cidade que
ficou lotada, já que as pessoas tentavam desesperadamente tomar de

6
Uma peste pode exterminar povos – e democracias.
Tereza Virgínia R. Barbosa; Anita (Anna) Mosca; Truπersa | 107

outros tudo aquilo o que podiam para sua própria preservação. Aqueles
que ainda não haviam se infectado começaram a ignorar, até mesmo zom-
bar das normas de comportamento de longa data. Alguns deles festejaram
como se não houvesse amanhã, mergulhando em todas as fontes possíveis
de prazer, sem parar, até que ficassem sem forças ou dinheiro. Outros es-
peravam que seus parentes morressem logo para que pudessem assumir
suas propriedades e, então, eles também poderiam participar de orgias
numa espécie de autocomplacência. (Martin, The Washington Post, April,
14th, 2020)
Como se vê, a situação se assemelha com o que vivemos hoje, nos
bastidores de nossa história nacional. E isso sem contar com o apagamento
das homenagens fúnebres, a ira contra os monumentos tradicionais de
cultura, a profanação dos templos etc. E foi assim lá como cá. E apesar da
aparente solidariedade geral e do medo preventivo, a coisa foi de mal a
pior.
Enfim, μεταβολή, a ἀναγκή cruel, a ὕβρις e o despreparo gerou uma
tragédia sem precedentes que durou dois anos. Martin, no artigo mencio-
nado, dá a seguinte recomendação: devíamos “deixar de lado o amargor
por nossos sofrimentos e parar de procurar bodes expiatórios”. Ainda que
haja consternação geral, se cuidarmos apenas de nossos próprios interes-
ses, a sociedade como um todo irá perecer.
Mas o que cabe a nós, pesquisadores, professores, estudiosos, atores
e artistas, de imediato fazer? Nada senão mostrar a cara e fazer ver que os
temas universais abordados nos clássicos, no cânone, testemunhos bani-
dos do mundo pós-moderno, têm máxima relevância. Afinal, aprendemos
muito sobre o presente ao visitar estes passados.
Na Truπersa, reunimo-nos virtualmente para a checagem cênica da
tradução direta do grego ao português da tragédia Hécuba de Eurípides.
Produzida em 2018-2019, a tradução carecia do teste de palco. Frustrados
108 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

com as regras de distanciamento – as quais acatamos por motivos cidadãos


óbvios – colocamo-nos na empreitada da confecção de um audiodrama
destinado à audição nos carros, durante trabalhos braçais, ocasiões opor-
tunas (e até inoportunas) do confinamento.
Seguimos a tradição Truπersa de dicção e ambientação contemporâ-
nea. Queríamos enfrentar as perdas, os mortos inumados sem ritos, os
oportunismos políticos, os discursos ambíguos na construção de um espe-
táculo terapêutico (catártico) que visasse a expurgação da dor daqueles
que tiveram, em suas famílias, entre seus amigos e colegas de trabalho,
mortos da Covid-19. Constituímos uma equipe de professores (Tereza Vir-
gínia R. Barbosa e Thaís Lima)7 e discentes do curso de Teatro, Letras,
Belas Artes e Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
artistas profissionais. O espetáculo aural – ainda em processo – leva, na
direção, a assinatura da atriz napolitana Anita Mosca (http://anita-
mosca.com/).
Assim, durante a pandemia, a trupe reuniu-se virtualmente, praticou
e registrou o evento terrível do passado como catarse do presente. As falas
foram gravadas, discutidas, recolocadas. Inúmeras associações entre esse
estado sanitário de exceção, demandado pelo novo “Coronel Vírus” e o
drama psíquico de um pós-guerra, foram construídas de modo a reanali-
sar condutas de vida e valores.
Os atores enfrentaram todo o período de quarentena em terapia ca-
tártica e na companhia de Hécuba, que foi utilizada como fármaco, produto
terapêutico e curativo. Esperamos que, findo o período de isolamento, pos-
samos empreender ensaios físicos e cumprir nosso papel de difusores de
conhecimento e mais ainda, de semeadores de bons relacionamentos

7
Respectivamente Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade Federal de Ouro Preto.
Tereza Virgínia R. Barbosa; Anita (Anna) Mosca; Truπersa | 109

cidadãos – sem nunca perder de vista o bem comum e a força da unidade


democrática, corpo sólido, consistente e coletivo.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2007.

ARISTÓTELES. The Poetics of Aristotle. Tradução e comentários de Stephen Halliwell.


Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1987.

RABINOWITZ, Nancy Sorkin. Greek tragedy. Oxford: Blackwell Publishing, 2008.

THUCYDIDES. History of the Peloponnesian War. Volume I. With an English Translation


of Charles Forster Smith. London, Cambridge: Heinemann and Harvard University
Press, 1956.

MARTIN, Thomas R. A plague can wipe out peoples – and democracies. The
Washington Post. Apr. 14, 2020. Disponível em: https://www.washingtonpost.
com/outlook/2020/04/14/plague-can-wipe-out-peoples-democracies/
14

A “peste de Atenas” e o coronavírus:


ensejo para reler Tucídides?

Bruno Amaro Lacerda 1

No Livro II da História da Guerra do Peloponeso, Tucídides apresenta


um relato detalhado e impressionante da “peste de Atenas”, doença que
dizimou mais de um terço da população da cidade entre os anos de 430 e
426 a.C. Sua narração teria interesse especial em tempos de coronavírus?
Certamente, apesar das diferenças. Os gregos, ao contrário de nós, não
tinham a perspectiva de uma vacina, nem métodos científicos para identi-
ficação do patógeno agressor. As semelhanças, contudo, chamam a
atenção. Assim como hoje, a peste não foi propriamente “de Atenas”, pois
se propagou, pelo deslocamento de pessoas, como uma verdadeira pande-
mia, atingindo todo o mediterrâneo. Tanto agora como naquela época,
constatamos as limitações da ciência, evidenciadas pelo desconhecimento
dos médicos sobre como lidar com uma doença nova. A dificuldade de en-
contrar um remédio adequado, o risco maior dos cuidadores e a ilusão da
imunidade são também pontos em comum. Por fim, não aceitando o im-
ponderável, as pessoas apontaram culpados (os da época eram os
espartanos e seus aliados, que teriam “jogado veneno” nos poços da ci-
dade). A descrição de Tucídides, lida nestes tempos difíceis, nos faz pensar
na fragilidade humana e suscita compaixão. Foi o que motivou a tradução
bilíngue dos parágrafos a seguir, selecionados de sua monumental obra.

1
Professor Associado da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Membro do Grupo de Tradução de Teatro
(UFMG/CNPq).
Bruno Amaro Lacerda | 111

[47.2] τοῦ δὲ θέρους εὐθὺς ἀρχομένου [47.2] Logo no começo do verão, os pelo-
Πελοποννήσιοι καὶ οἱ ξύμμαχοι τὰ δύο μέρη
ponésios e seus aliados, com dois terços de
ὥσπερ καὶ τὸ πρῶτον ἐσέβαλον ἐς τὴν
suas forças, invadiram, como antes, a Ática
Ἀττικήν (ἡγεῖτο δὲ Ἀρχίδαμος ὁ Ζευξιδάμου
Λακεδαιμονίων βασιλεύς), καὶ καθεζόμενοι (liderados por Arquídamo, filho de Zeuxí-
ἐδῄουν τὴν γῆν. damo, rei dos lacedemônios) e,
estabelecidos, devastavam o país.
[47.3] καὶ ὄντων αὐτῶν οὐ πολλάς πω ἡμέρας [47.3] Mas, estando não muitos dias na
ἐν τῇ Ἀττικῇ ἡ νόσος πρῶτον ἤρξατο γενέσθαι
Ática, a doença se manifestou primeiro en-
τοῖς Ἀθηναίοις, λεγόμενον μὲν καὶ πρότερον
tre os atenienses; conta-se que surgiu
πολλαχόσε ἐγκατασκῆψαι καὶ περὶ Λῆμνον
καὶ ἐν ἄλλοις χωρίοις, οὐ μέντοι τοσοῦτός γε antes alhures, caindo no entorno de Lem-
λοιμὸς οὐδὲ φθορὰ οὕτως ἀνθρώπων οὐδαμοῦ nos e de outras regiões, mas decerto não
ἐμνημονεύετο γενέσθαι. havia lembrança de uma praga ou destrui-
ção de homens como essa ter ocorrido em
parte alguma.
[47.4] οὔτε γὰρ ἰατροὶ ἤρκουν τὸ πρῶτον [47.4] Nem mesmo os médicos sabiam, de
θεραπεύοντες ἀγνοίᾳ, ἀλλ’ αὐτοὶ μάλιστα
início, como tratá-la, e, entre eles, a letali-
ἔθνῃσκον ὅσῳ καὶ μάλιστα προσῇσαν, οὔτε
dade era enorme, pois estavam mais perto
ἄλλη ἀνθρωπεία τέχνη οὐδεμία· ὅσα τε πρὸς
ἱεροῖς ἱκέτευσαν ἢ μαντείοις καὶ τοῖς τοιούτοις [dos doentes], tampouco alguma técnica
ἐχρήσαντο, πάντα ἀνωφελῆ ἦν, τελευτῶντές humana surtia efeito. Tudo quanto à frente
τε αὐτῶν ἀπέστησαν ὑπὸ τοῦ κακοῦ dos santuários suplicavam, os apelos aos
νικώμενοι.
oráculos e coisas desse tipo, tudo foi inútil,
até que, vencidas pelo mal, as pessoas de-
sistiram dessas medidas.
[48.1] ἤρξατο δὲ τὸ μὲν πρῶτον, ὡς λέγεται, [48.1] Começou primeiro, pelo que dizem,
ἐξ Αἰθιοπίας τῆς ὑπὲρ Αἰγύπτου, ἔπειτα δὲ καὶ
na Etiópia além do Egito, depois chegou no
ἐς Αἴγυπτον καὶ Λιβύην κατέβη καὶ ἐς τὴν
Egito, na Líbia e em muitos outros territó-
βασιλέως γῆν τὴν πολλήν.
rios do Rei.
[48.2] ἐς δὲ τὴν Ἀθηναίων πόλιν ἐξαπιναίως [48.2] Subitamente ela caiu sobre a cidade
ἐσέπεσε, καὶ τὸ πρῶτον ἐν τῷ Πειραιεῖ ἥψατο
dos atenienses, e atacou primeiro os mora-
τῶν ἀνθρώπων, ὥστε καὶ ἐλέχθη ὑπ’ αὐτῶν ὡς
dores do Pireu, de tal sorte que os
οἱ Πελοποννήσιοι φάρμακα ἐσβεβλήκοιεν ἐς
τὰ φρέατα· κρῆναι γὰρ οὔπω ἦσαν αὐτόθι. peloponésios foram por eles acusados de
ὕστερον δὲ καὶ ἐς τὴν ἄνω πόλιν ἀφίκετο, καὶ ter jogado veneno em seus poços. Pois
ἔθνῃσκον πολλῷ μᾶλλον ἤδη. ainda não havia fontes naquele lugar. De-
pois chegou até a cidade alta, e aí a
mortalidade aumentou muito.
112 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

[48.3] λεγέτω μὲν οὖν περὶ αὐτοῦ ὡς ἕκαστος [48.3] Diga, então, cada um, seja médico
γιγνώσκει καὶ ἰατρὸς καὶ ἰδιώτης, ἀφ’ ὅτου
ou leigo, algo sobre a sua origem provável
εἰκὸς ἦν γενέσθαι αὐτό, καὶ τὰς αἰτίας ἅστινας
e sugira as causas pelas quais foi possível
νομίζει τοσαύτης μεταβολῆς ἱκανὰς εἶναι
δύναμιν ἐς τὸ μεταστῆσαι σχεῖν· ἐγὼ δὲ οἷόν ocorrer uma reviravolta tão grande, capaz
τε ἐγίγνετο λέξω, καὶ ἀφ’ ὧν ἄν τις σκοπῶν, εἴ de alterar tanto a situação. Eu, se consigo,
ποτε καὶ αὖθις ἐπιπέσοι, μάλιστ’ ἂν ἔχοι τι direi como ela se apresentava, os sinais
προειδὼς μὴ ἀγνοεῖν, ταῦτα δηλώσω αὐτός τε
para poder se precaver, caso aconteça de
νοσήσας καὶ αὐτὸς ἰδὼν ἄλλους πάσχοντας.
novo; principalmente para que se saiba de
antemão e não se desconheça o que ela é,
exporei essas coisas, visto que eu mesmo
estive doente e vi outros sofrerem.
[49.1] Τὸ μὲν γὰρ ἔτος, ὡς ὡμολογεῖτο, ἐκ [49.1] Aquele ano, concordava-se, de todos
πάντων μάλιστα δὴ ἐκεῖνο ἄνοσον ἐς τὰς
os demais tinha sido o mais livre de doen-
ἄλλας ἀσθενείας ἐτύγχανεν ὄν· εἰ δέ τις καὶ
ças e de outras enfermidades. Mas se
προύκαμνέ τι, ἐς τοῦτο πάντα ἀπεκρίθη.
alguém estivesse previamente doente, to-
das [as doenças] se transformavam nessa.
[49.2] τοὺς δὲ ἄλλους ἀπ’ οὐδεμιᾶς [49.2] Em outras situações, sem motivo al-
προφάσεως, ἀλλ’ ἐξαίφνης ὑγιεῖς ὄντας
gum e sendo saudáveis, de repente
πρῶτον μὲν τῆς κεφαλῆς θέρμαι ἰσχυραὶ καὶ
ocorriam fortes calores na cabeça, verme-
τῶν ὀφθαλμῶν ἐρυθήματα καὶ φλόγωσις
ἐλάμβανε, καὶ τὰ ἐντός, ἥ τε φάρυγξ καὶ ἡ lhidão e queimação dos olhos, e as partes
γλῶσσα, εὐθὺς αἱματώδη ἦν καὶ πνεῦμα internas, tanto da faringe como da língua,
ἄτοπον καὶ δυσῶδες ἠφίει· imediatamente ficavam da cor de sangue e
exalavam um hálito atípico e fétido.
[49.3] ἔπειτα ἐξ αὐτῶν πταρμὸς καὶ βράγχος [49.3] Após essas coisas vinham os espir-
ἐπεγίγνετο, καὶ ἐν οὐ πολλῷ χρόνῳ
ros e a rouquidão, e não muito tempo
κατέβαινεν ἐς τὰ στήθη ὁ πόνος μετὰ βηχὸς
depois a doença descia para o peito, provo-
ἰσχυροῦ· καὶ ὁπότε ἐς τὴν καρδίαν στηρίξειεν,
ἀνέστρεφέ τε αὐτὴν καὶ ἀποκαθάρσεις χολῆς cando uma forte tosse. E quando se alojava
πᾶσαι ὅσαι ὑπὸ ἰατρῶν ὠνομασμέναι εἰσὶν no estômago, seguiam-se vômitos de bile
ἐπῇσαν, καὶ αὗται μετὰ ταλαιπωρίας μεγάλης. de todos os tipos mencionados pelos médi-
cos, seguidos de grande fadiga.
[49.4] λύγξ τε τοῖς πλέοσιν ἐνέπιπτε κενή, [49.4] Em muitos casos ocorriam soluços
σπασμὸν ἐνδιδοῦσα ἰσχυρόν, τοῖς μὲν μετὰ
secos, causando fortes espasmos, que às
ταῦτα λωφήσαντα, τοῖς δὲ καὶ πολλῷ ὕστερον.
vezes cessavam logo, mas outras vezes so-
mente muito tempo depois.
Bruno Amaro Lacerda | 113

[49.5] καὶ τὸ μὲν ἔξωθεν ἁπτομένῳ σῶμα οὔτ’ [49.5] No contato externo, o corpo não fi-
ἄγαν θερμὸν ἦν οὔτε χλωρόν, ἀλλ’
cava completamente quente, nem
ὑπέρυθρον, πελιτνόν, φλυκταίναις μικραῖς καὶ
amarelado, mas avermelhado, pálido e pe-
ἕλκεσιν ἐξηνθηκός· τὰ δὲ ἐντὸς οὕτως ἐκάετο
ὥστε μήτε τῶν πάνυ λεπτῶν ἱματίων καὶ quenas pústulas surgiam na pele.
σινδόνων τὰς ἐπιβολὰς μηδ’ ἄλλο τι ἢ γυμνοὶ Internamente, contudo, se aquecia de tal
ἀνέχεσθαι, ἥδιστά τε ἂν ἐς ὕδωρ ψυχρὸν σφᾶς modo que não se podia cobrir os doentes
αὐτοὺς ῥίπτειν. καὶ πολλοὶ τοῦτο τῶν
com vestimentas leves e tecidos finos, pois
ἠμελημένων ἀνθρώπων καὶ ἔδρασαν ἐς
φρέατα, τῇ δίψῃ ἀπαύστῳ ξυνεχόμενοι· καὶ ἐν eles preferiam ficar nus, desejosos que se
τῷ ὁμοίῳ καθειστήκει τό τε πλέον καὶ jogasse água fria neles. E muitos dos ho-
ἔλασσον ποτόν. mens que não foram tratados se lançaram
nos poços, atormentados pela sede que pa-
recia não ter fim. E era sempre assim,
tivessem bebido muita ou pouca.
[51.2] ἔθνῃσκον δὲ οἱ μὲν ἀμελείᾳ, οἱ δὲ καὶ [51.2] Uns morriam pela falta de cuidados,
πάνυ θεραπευόμενοι. ἕν τε οὐδὲ ἓν κατέστη
outros apesar dos muitos tratamentos. Não
ἴαμα ὡς εἰπεῖν ὅτι χρῆν προσφέροντας
foi encontrado remédio algum, pode-se di-
ὠφελεῖν· τὸ γάρ τῳ ξυνενεγκὸν ἄλλον τοῦτο
ἔβλαπτεν. zer, que fornecesse a ajuda necessária. O
adequado para um prejudicava o outro.
[51.3] σῶμά τε αὔταρκες ὂν οὐδὲν διεφάνη [51.3] Nenhum corpo, fosse resistente ou
πρὸς αὐτὸ ἰσχύος πέρι ἢ ἀσθενείας, ἀλλὰ
fraco, se mostrou forte o bastante para su-
πάντα ξυνῄρει καὶ τὰ πάσῃ διαίτῃ
portá-la, que a todos colhia, mesmo com
θεραπευόμενα.
toda a dieta prescrita.
[51.4] δεινότατον δὲ παντὸς ἦν τοῦ κακοῦ ἥ τε [51.4] Mas, de todas as coisas, o mais terrí-
ἀθυμία ὁπότε τις αἴσθοιτο κάμνων (πρὸς γὰρ
vel do mal era a apatia dos doentes por ele
τὸ ἀνέλπιστον εὐθὺς τραπόμενοι τῇ γνώμῃ
atingidos (a sua mente, imediatamente, se
πολλῷ μᾶλλον προΐεντο σφᾶς αὐτοὺς καὶ οὐκ
ἀντεῖχον), καὶ ὅτι ἕτερος ἀφ’ ἑτέρου entregava à desesperança, ficavam abati-
θεραπείας ἀναπιμπλάμενοι ὥσπερ τὰ πρόβατα dos no juízo, sem ter como suportá-la),
ἔθνῃσκον· καὶ τὸν πλεῖστον φθόρον τοῦτο bem como os cuidados de um em prol do
ἐνεποίει.
outro, que facilitavam a contaminação de
tal maneira que morriam como rebanho.
Isto foi o que causou a maior perda de vi-
das.
[51.6] ἐπὶ πλέον δ’ ὅμως οἱ διαπεφευγότες τόν [51.6] Aqueles que tinham sobrevivido
τε θνῄσκοντα καὶ τὸν πονούμενον ᾠκτίζοντο
mostravam, em relação aos mortos e doen-
διὰ τὸ προειδέναι τε καὶ αὐτοὶ ἤδη ἐν τῷ
tes, maior compaixão, porque conheciam
θαρσαλέῳ εἶναι· δὶς γὰρ τὸν αὐτόν, ὥστε καὶ
114 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

κτείνειν, οὐκ ἐπελάμβανεν. καὶ ἐμακαρίζοντό de antemão e por si mesmos os sintomas e


τε ὑπὸ τῶν ἄλλων, καὶ αὐτοὶ τῷ παραχρῆμα
já não os temiam. Com efeito, pensavam
περιχαρεῖ καὶ ἐς τὸν ἔπειτα χρόνον ἐλπίδος τι
que a doença não atacaria para matar por
εἶχον κούφης μηδ’ ἂν ὑπ’ ἄλλου νοσήματός
ποτε ἔτι διαφθαρῆναι. duas vezes. E eram felizardos não somente
aos olhos dos outros, mas eles mesmos,
em seguida, tomados pela alegria do mo-
mento, se agarravam à vã esperança de
que nunca mais uma doença poderia matá-
los.

Referências

THUCYDIDE. La Guerre du Péloponnèse. Livre II. Texte établi et traduit par Jacqueline
de Romilly. Paris: Belles Lettres, 1973.

THUCYDIDES. History of the Peloponnesian War. Volume I. With an English Translation


by Charles Forster Smith. London, Cambridge: Heinemann and Harvard University
Press, 1956.
15

Estudando gênero na Antiguidade Oriental:


reflexões de uma jovem pesquisadora

Caroline Schmidt Patricio 1

Há quase dois anos e meio, iniciei meu percurso de pesquisa en-


quanto bolsista de iniciação científica no Laboratório de Estudos da
Antiguidade Oriental (UFRGS), coordenado pela Profª. Dra. Katia Pozzer,
tendo como assunto principal do meu trabalho a representação das mu-
lheres nos selos-cilindros do território que correspondia à Mesopotâmia.
Para quem é do campo de Estudos de Gênero, parece razoável que nos
voltemos para as sociedades Antigas, porém, tal visão não é unânime,
mesmo entre os pesquisadores de História Antiga. Ainda existe um pensa-
mento muito retrógrado sobre o estudo tanto de História (s) Antiga (s)
quanto da aplicabilidade de análises feministas que abordam gênero nes-
sas áreas.
Acredito que há um fetichismo colonial pelo passado como o berço da
civilização, principalmente quando pensamos na Antiguidade “Clássica”.
Como se fosse um grande desrespeito que se questionem certas “verdades”
destas sociedades primeiras. Fazer um trabalho de revisão é propor novos
caminhos de fazer sentido do passado e, obviamente, isso significa abalar
estruturas de uma área por inteiro, o que pode incomodar muitas pessoas
que não querem ter que revisitar seus trabalhos com uma visão crítica. É
importante que todo cientista que lida com História da Humanidade,

1
Caroline Schmidt Patricio é estudante do curso de graduação em História da Arte da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e bolsista CNPq do Laboratório de Estudos da Antiguidade Oriental (LEAO) coordenado pela
professora Katia Pozzer.
116 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

independente da área, esteja preparado para se reinventar e se atualizar.


Conforme diz a professora Zainab Bahrani da Columbia University, um
dos grandes nomes do Estudo de Gênero na Antiguidade Oriental e minha
principal referência, “O conhecimento histórico está, portanto, em fluxo.
Não é um banco de dados estável ao qual podemos adicionar mais e mais
informações para uma imagem mais verdadeira. É um conhecimento que
precisa ser constantemente reavaliado, reanalisado e interrogado.”
(BAHRANI, 2001, p. 26)2.
Reavaliar, reanalisar e interrogar requerem um envolvimento e com-
promisso do pesquisador com uma metodologia decolonial, uma
metodologia que não aceita termos universalistas e fórmulas prontas so-
bre realidades complexas. Penso que, para ser pesquisador, é preciso lidar
com indeterminações e incertezas; saber atravessar estes espaços indefi-
nidos que levam a mais questionamentos que verdades estabelecidas. De
forma alguma isto significa uma relativização desenfreada de termos e si-
tuações, muito pelo contrário. Fazendo uma analogia, é como se o
pesquisador tivesse uma mesa de ferramentas na sua frente e precisasse
de algumas delas para resolver seu problema. O pesquisador sabe, inicial-
mente, a natureza de seu problema, então tem certa noção da natureza do
instrumento também - não utilizamos um martelo, por exemplo, para de-
sobstruir um cano. Aliás, utilizar um martelo para desobstruir um cano
demonstra total desconhecimento do seu objeto - e, assim, pode testar di-
ferentes ferramentas que podem ser aplicadas naquele problema. Ou seja,
tensionar nossas metodologias até que achemos a que melhor consegue
explicar nossa questão na pesquisa.
Esta reflexão sobre metodologias que não davam conta de problemas
em toda sua complexibilidade foi o que nos levou a diferentes formas de

2
Todos os textos traduzidos foram feitos de forma livre pela autora do ensaio.
Caroline Schmidt Patricio | 117

lidar com Teoria de Gênero e sua aplicabilidade em diferentes contextos.


Na verdade, ainda antes, metodologias universalistas, que deixavam de
fora questões de gênero, raça, classe e que se encaixavam numa visão bi-
nária irreal do mundo que levaram ao desenvolvimento de áreas
específicas como a por mim estudada, “Uma parte crucial da tarefa de re-
cuperar as histórias daqueles que não definiram suas culturas nem
desempenharam papéis dominantes nelas é o desenvolvimento de novas
metodologias” (MILES apud WESTENHOLZ, 1990, p.511). Tenho para
mim que qualquer pesquisa atual que busque analisar uma sociedade e
não considere os campos citados acima não é uma pesquisa que está atenta
e compromissada com um fazer científico, de fato, rigoroso para os parâ-
metros atuais exigidos por essa nova leva de jovens cientistas.
Um ponto para mim, enquanto uma pesquisadora que possui certas
ideias freireanas sobre educação3 - o início do fazer científico - é entender
os motivos que me levaram a pesquisar algo. A partilha destes motivos e a
explicação deles se parecem um exercício que aproxima o leitor do autor
do texto (eu). Afinal, a comunicação é um dos pilares importantíssimos
das ciências. É por meio da comunicação que nossos feitos são difundidos
entre os pares e entre os curiosos.
O meu primeiro “por que” é “Por que estudar Gênero na Antiguidade
Oriental?”. Muitos acham que tal pergunta não precisa de resposta porque
é uma escolha pessoal que todo pesquisador tem direito de ter. Nem toda
pesquisa precisa impactar o mundo ou se provar importante para o
mundo. E, de fato, posso concordar com a última afirmação, em partes.
Uma valoração de “impacto” no mundo já me parece um conceito bastante
equivocado. Um trabalho obviamente precisa ser importante,

3
Educação aqui como um fazer autônomo, não uma sala de aula rígida aos moldes da educação atual que temos na
maioria das escolas espalhadas pelo nosso País. A educação que temos nos primeiros questionamentos sobre o mundo
quando ainda somos pequenos aprendizes curiosos.
118 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

principalmente, para a sua área e reconhecido pelos seus pares, porém,


nada impede que sejamos, também, defensores do nosso campo de pes-
quisa. Para defendermos nosso campo, acredito eu, precisamos acreditar
nele e na sua importância. Aqui, gostaria de compartilhar dois argumentos
que formulei para responder minha pergunta para mim mesma - e para
me prevenir de possíveis questionamentos.
Muito se difunde pelo mundo uma ideia de dominação masculina
como um fato verídico dado pela natureza de nossos corpos. O falo seria o
símbolo de poder e, o seu portador, o detentor do poder adquirido através
daquele. Porém, tal argumento do sexo biológico como um determinante
social é frágil. O corpo, e não apenas o gênero, também é um construto
social. Um corpo não é masculino - possui atributos tidos como masculi-
nos: agressividade, assertividade… - por possuir um pênis. O corpo é o
espaço em que convergem a cultura da classe dominante e a subjetividade
(BAHRANI, 2001). Portanto, nossas genitálias não são a parte “natural” do
corpo, enquanto a identidade de gênero, a parte “social”. Nosso corpo é
um espaço complexo que constrói uma cultura visual e é por ela também
construída, bem como os corpos no passado. Quando olhamos para a Me-
sopotâmia, não existem rastros suficientes que atestam um culto ao falo
como uma figura de poder. Muito pelo contrário, as imagens normalmente
retratam genitálias femininas, e os falos encontrados aparecem como ofe-
rendas, por exemplo, à deusa Ishtar. O que também não significa que a
vulva tenha sido um signo de poder. Para pensar o corpo na cultura me-
sopotâmica, é preciso entendê-lo como “uma série não total de partes,
energias e substâncias, bem como aspectos incorpóreos como reflexos,
imagens e o nome” (BAHRANI, 2001, p. 116).
Assim, o primeiro argumento para estudar gênero na Antiguidade
Oriental é que, olhar para o passado, e especificamente para outras cultu-
ras, nos leva a reflexões fundamentais sobre a gênese da dominação
Caroline Schmidt Patricio | 119

masculina e nos ajuda a excluir argumentos essencialistas baseados em


teorias Ocidentais que tentam se afirmar como universais.
A construção do próximo argumento partiu do contato com o pre-
conceito e da fetichização que a Cultura do Oriente Médio sofre. Não são
poucas as vezes em que mulheres ocidentais se colocam como as bastiãs
da liberdade e olham para alguns costumes das mulheres orientais como
quase alienígenas, o que leva aquelas a tentarem “trazer a verdade sobre
o que é ser uma mulher livre”. Indo por partes, a condição da mulher Oci-
dental não é um exemplo de liberdade. Nossa entrada no mercado de
trabalho, que por muitas teóricas feministas estadunidenses e francesas
foi apontada como a possível ‘liberdade’, na verdade nos transformou em
trabalhadoras assalariadas que cumprem tripla jornada de trabalho. Não
só não nos libertamos do lar como também nos amarramos intimamente
ao Capital. Isso para não entrarmos em termos de que o “direito de traba-
lhar” para algumas sempre foi a única escolha para outras ou na questão
do trabalho reprodutivo e de cuidados que exercemos de forma totalmente
gratuita. O estudo da Antiguidade Oriental, discorro aqui meu segundo
argumento, nos proporciona um diferente olhar sobre signos históricos
como, por exemplo, em relação ao véu. Segundo Justel, “o uso do véu entre
as mulheres do Antigo Oriente Próximo não tinha o mesmo significado
que no mundo árabe atual: entre as primeiras era um sinal de distinção
social, beleza ou castidade” (JUSTEL, 2011, p.381). A moral da cidadã Oci-
dental para se colocar como um possível exemplo a ser seguido de
liberdade “almejada pelas pobres mulheres Orientais escondidas atrás de
seus véus” é uma reprodução colonial da cultura Ocidental como a Cultura
Oficial cujos valores são embasados na razão da sua sociedade em detri-
mento da selvageria das outras sociedades. Ou seja, uma completa falha
no exercício de Alteridade.
120 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

Nos estudos da Antiguidade Oriental, quando lidamos com gênero ou


não, é fundamental que abandonemos conceitos quase inconscientes da
filosofia Ocidental binarista que nos perseguem ao longo da nossa gradu-
ação e que constituem a base cultural da nossa sociedade. Por isso, torna-
se importante que estejamos sempre revisando nossa forma de ver a His-
tória e produzir conhecimento. O fazer decolonial, imprescindível para o
pesquisador da área de História Oriental, é um exercício que exige um
olhar crítico diante das certezas do mundo. Nunca esqueçamos: a ciência
é feita, principalmente, de perguntas, não de respostas.

Referências

BAHRANI, Zainab. Women of Babylon: gender and representation in Mesopotamia /


Zainab Bahrani. Londres: Routledge, 2001.

JUSTEL, Josué. Mujeres y género en la historiografía del Próximo Oriente Antiguo: pasado,
presente y futuro de la investigación. ARENAL, 18:2; julio-diciembre 2011, p. 371-
407.

WESTENHOLZ, Joan G. Towards A New Conceptualization Of The Female Role In


Mesopotamian Society. A review article of: La Femme dans le Proche-Orient antique:
XXXiiie Rencontre Assyriologique Internationale (Paris, 7-10 Juillet 1986). Journal
of the American Oriental Society, Vol. 110, No. 3 (Jul. - Sep., 1990), p. 510-521.
16

Coisas que uma tumba nos conta sobre


a vida no Egito do Reino Antigo Tardio

Wellington Rafael Balém 1

Uma inscrição epigráfica egípcia não muito longa, datada de meados


do século 23 AEC, narra, em primeira pessoa, a trajetória do Governador
do Alto Egito Weni, o Velho. O documento foi descoberto na fachada da
sua tumba, na necrópole chamada hoje de Middle Cemetery, em Abidos,
sul do Egito, pelo arqueólogo francês Auguste Mariette, na segunda me-
tade do século 19. Junto com outros objetos oriundos dessa escavação, o
texto hieroglífico foi exposto no Museu do Cairo. Sua transcrição foi publi-
cada no início do século 20, principalmente através do trabalho do
egiptólogo alemão Kurt Sethe, permitindo que esse texto pudesse ter di-
versas traduções e ser incluído em coletâneas de Literatura Egípcia, como
a de Miriam Lichtheim (1973), de William Kelly Simpson (2003) e de Nigel
Strudwick (2005), tornando-se conhecido para além da academia.
O contexto familiar de Weni durante o final da Quinta Dinastia ainda
é pouco conhecido, assim como a importância de sua origem na inserção
na administração do Estado. Sua “autobiografia funerária”2 nos conta que
ele construiu sua carreira servindo aos primeiros reis da Sexta Dinastia,
entre meados do século 24 até meados do 23. Ele ocupou posições na ad-
ministração do palácio durante o reinado de Teti (TPA, 352)3. O
documento descreve o seu envolvimento na administração e na construção

1
Mestre e Doutorando em História (UFRGS), com bolsa CAPES. Pesquisador do Laboratório de Estudos da
Antiguidade Oriental (LEAO/UFRGS).
2
Chamada assim apenas por ter sido escrita em primeira pessoa e por estar em contexto funerário.
3
TPA é a abreviação de Texts from Pyramid Age (STRUDWICK, 2005).
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da pirâmide de Pepi I, no julgamento de uma conspiração no harém (TPA,


353-4), na supressão militar de revoltas (TPA, 354-5). Sob Merenra, regis-
trou-se que Weni assumiu a posição de Governador do Alto Egito,
envolvendo-se especialmente em questões de logística e de abastecimento
(TPA, 356-7). Não são poupados adjetivos para descrever sua retidão, de-
coro e proximidade com os reis aos quais serviu e de como estes o
retribuíram, principalmente com presentes para sua vida funerária.
No Antigo Oriente Próximo não houve um gênero autobiográfico tal
como concebemos hoje, mas são percebidas memórias elaboradas por es-
cribas com intuitos diversos, inclusive agradar ao rei (POZZER, 2014). Ao
nos deslocarmos para o Egito faraônico, vidas individuais também foram
narradas, mas principalmente no contexto funerário. Nesse caso criando,
pelo poder da palavra escrita, uma versão idealizada do morto a ser eter-
nizada para o pós-vida (LICHTHEIM, 1973). Dessa forma, fica evidente que
os episódios narrados ou as virtudes explicitadas não tinham o objetivo de
estabelecer uma narrativa factual. Pelo contrário, frequentemente apre-
sentam elementos que soam exagerados, que omitem derrotas, falhas ou
desventuras e contêm partes com funções ritualísticas, ligadas a uma tra-
dição muito mais antiga, sem que se estabeleça uma relação direta com a
vida pregressa do defunto em si.
Mesmo que haja desconfiança sobre o conteúdo histórico das autobi-
ografias funerárias do Reino Antigo, muitas vezes elas são as únicas
evidências sobre particularidades da administração do Estado ou sobre a
relação dos egípcios com outras populações da Núbia, do Levante e bedu-
ínos. Só isso já justificaria o estudo de casos como o de Weni, o Velho. Mas
elas também se referem a indivíduos cuja análise da trajetória podem am-
pliar nosso entendimento do tempo em que viveram e sobre os próprios
sujeitos. Uma das formas de realizar esse empreendimento é retornar à
tumba (BALÉM, 2017). Depois da primeira descrição da mastaba de Weni
Wellington Rafael Balém | 123

por Mariette, o local só voltou a ser escavado no final dos anos 1990 e início
dos anos 2000 pela arqueóloga estadunidense Janet Richards (2002), que
revelou novas informações arqueológicas sobre esse sujeito e seu contexto.
Os Textos das Pirâmides mostram que a religião funerária do Reino
Antigo era centralizada na imortalidade do rei que, após a morte, se jun-
taria ao deus Rá em sua viagem cósmica. Conhecemos pouco sobre as
práticas de pessoas da não elite, mas os membros da família real e do res-
tante da Corte inicialmente construíam suas tumbas nas necrópoles régias,
como forma de expressar na morte a proximidade com o soberano que
tinham em vida, podendo, assim, tentar gozar da imortalidade também.
Mas, como explicou Allen (2006), gradualmente, indivíduos passaram a
buscar o acesso à imortalidade, não exatamente por intermédio do rei e de
sua proximidade com Rá, mas com o deus Osíris. Isso implicou em diver-
sas transformações nas práticas funerárias, dentre as quais uma maior
complexificação da expressão individual no equipamento funerário nas
províncias, tais como os cemitérios de particulares onde está a tumba de
Weni.
Muitas vezes, a História, pela sua tradição textual e arquivística, su-
bestima a cultura material, mas paga um severo preço por isso. Miller
(2013) argumenta que é preciso superar a divisão artificial entre material
e imaterial, entre natureza e cultura. Tilley (2006) explica que os objetos
são produzidos por meio de relações sociais, ao mesmo tempo produzem
relações sociais, em um processo relacional. Além disso, o objeto também
deve ser observado pela perspectiva biográfica de produção, circulação,
consumo, descarte e ressignificação. Tendo isto em mente, pode parecer
que objetos como aqueles oriundos da tumba de Weni não nos dão ele-
mentos muito precisos. Mas mas basta um olhar mais atento sobre eles
para fazer emergir aspectos valiosos da vida que nãos seriam possíveis de
se obter sem a materialidade.
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Dessa forma, no aspecto material da produção, encontramos os ras-


tros de grupos de trabalhadores e trabalhadoras, cuja especialização se
evidencia na qualidade dos tijolos, na precisão das medidas, no acaba-
mento da arte funerária remanescente. Pelo estilo de construção é
revelado se artistas são locais ou se foram recrutados da Corte para a pro-
dução da tumba em Abidos. Pela qualidade da escrita e dos relevos, o seu
custo. Pelo seu conteúdo, a mentalidade. Não seria a mastaba que circula-
ria, mas as pessoas. E junto com elas vão e vêm seus conhecimentos, suas
ideias, costumes, que podem ser suprimidos pela ideologia régio-funerária
do dono da tumba, ou até objetivados em seu trabalho, em alguns detalhes,
embora a ideia de autoria ainda não existisse. Essa mastaba não foi utili-
zada somente pelo defunto, mas pelos seus familiares que lhe ofereciam
culto funerário, pelas pessoas simples, naquele ou em períodos posterio-
res, que fizeram suas covas rasas em seus arredores. Em períodos de
tensão, que foram bastante comuns, o roubo dos objetos, a reutilização ou
ressignificação do espaço para outro sepultamento ou moradia pode ter
acontecido. O paradeiro do corpo osiriano de Weni é desconhecido.
Estes são apenas alguns dos pontos que podem ser interrogados por
meio da análise da cultura material que envolve a construção de uma
tumba no Reino Antigo Tardio. Sua importância se dá na medida em que
os egípcios e as egípcias despendiam grande parte de sua vida e energia na
produção de suas moradas da eternidade, que poderiam variar não apenas
com base no status e na da riqueza do sujeito, mas de ele estar ou não nas
boas graças do rei. Fazer perguntas adequadas às respostas que a tumba
oferece vai depender da perspicácia do historiador ou da historiadora.
Nem sempre elas poderão ser respondidas de imediato, mas certamente
podem remeter a algumas contradições e a pesquisa em outros mananci-
ais. A narrativa autobiográfica de Weni, outrora na fachada da construção,
é sedutora como forma de dar sentido e preencher certas lacunas, mas é
Wellington Rafael Balém | 125

preciso cuidado para não cair na armadilha da mera reprodução do seu


discurso.
Pelo fato de termos poucas evidências da “vida privada” de Weni, não
nos é possível conhecer elementos como seus hábitos, seu cotidiano fami-
liar, sua saúde, a maneira que seus filhos foram educados, se deixou algum
testamento. Mas o estudo da cultura material revela outras nuances que
permitem ir além dos aspectos mais públicos e idealizados pelo texto epi-
gráfico. Algumas lacunas documentais podem, de fato, ser verossímeis ou
minimamente preenchidas pela reflexão teórica, empírica ou bibliográfica.
Mas outros silêncios podem ser ouvidos pela humanidade da qual compar-
tilhamos, mesmo diante dos mais de quatro mil anos que nos separam:
como manter o que foi conquistado? A riqueza da elite foi feita pela po-
breza de quem? Qual o risco da mudança? Convém lutar ou aceitá-la? E a
apreensão diante de um passo arriscado, a dúvida, a inércia, o erro, a der-
rota, a dor, um passo acertado, um saber, um agir correto? Não há certa
ironia nessa história?

Referências

ALLEN, J. Some aspects of the non-royal afterlife in the Old Kingdom. In: BÁRTA, M. (ed.).
The Old Kingdom Art and Archaeology. Praga: Academy of Science of the Czech
Republic, 2006.

BALÉM, W. R. Weni, o Velho: o problema de uma (auto)biografia egípcia no Reino


Antigo Tardio. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2017.

LICHTHEIM, M. Ancient Egyptian Literature. Berkeley: University of California Press,


1973. v. 1.

MILLER, D. Trecos, Troços e Coisas: estudos antropológicos sobre Cultura Material.


Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
126 | Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos: os estudos clássicos na pandemia

POZZER, K. M. P. Assurbanipal e suas memórias: uma autobiografia na antiguidade?


Clássica, v. 27, p. 107-20, 2014.

RICHARDS, J. Text and Context in Late Old Kingdom Egypt: The Archaeology and
Historiography of Weni the Elder. JARCE, v. 39, 2002.

SIMPSON, W, K. (ed.). The Literature of Ancient Egypt. New Heaven: Yale University
Press, 2003.

STRUDWICK, N. Texts from The Pyramid Age. Atlanta: Society of Biblical Literature,
2005.

TILLEY. C. Objectification. In: TILLEY, C.; et al. (orgs.). The Handbook of Material
Culture. Londres: Sage, 2006.
17

Nem tão isolados assim: o estudo das


relações diplomáticas no Oriente Antigo

Priscila Scoville 1

Em tempos de isolamento social como medida de contenção da pan-


demia do novo coronavírus, o SARS-CoV-2 (mais popularmente chamado
de COVID-19 ou “corona”), as pesquisas acadêmicas, na medida do possí-
vel, acontecem de dentro de casa. Sentimos falta do contato humano, das
conversas, das pesquisas nas bibliotecas e acervos, contudo, não deixamos
de estar conectados. O ano de 2020 proporcionou uma entrada mais efe-
tiva da Academia na Era Digital: os colóquios e simpósios deixaram as salas
de aula e anfiteatros para ressurgirem em ambientes virtuais. Núcleos e
Laboratórios de Estudo de todo o Brasil têm promovido encontros online,
fazendo com que nossas pesquisas circulem mais do que nunca pelo país
(e fora dele).
O estudo da Antiguidade Oriental não é, ainda, uma área consolidada
e tradicional no Brasil, apesar do interesse dos acadêmicos ser crescente.
Como consequência, muitas vezes, as pesquisas não se destacam e acabam
por se isolarem no grande campo da História Antiga, que hoje em dia está
mais focada no Período Clássico por causa de uma longa tradição histori-
ográfica. Não há muitos acervos bibliográficos ou arqueológicos que deem
conta do Oriente Antigo em nosso país, portanto, mais uma vez, a tecno-
logia possibilita o desenvolvimento das pesquisas, por meio de políticas
como o open access. Isolados por conta da COVID-19, ou não, a riqueza de

1
Doutoranda em História (UFRGS), membro do Laboratório de Estudos da Antiguidade Oriental (LEAO).
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materiais e estudos que a internet possui tem a capacidade de saciar nos-


sos anseios e possibilitar pesquisas aprofundadas e sérias. Ademais, uma
vez que os grandes centros europeus e norte-americanos também foram
afetados pela pandemia, os países periféricos (tal como o Brasil) conquis-
taram a chance de participar de eventos no exterior sem a necessidade de
que nossos pesquisadores custeiem suas viagens e as taxas caras, na mai-
oria das vezes, com o próprio bolso.
Admito que essa é uma forma de olhar o copo meio cheio, otimista,
se considerarmos toda a tragédia que a pandemia gerou ao redor do
mundo. Foco-me em refletir com positividade e resiliência, mas me com-
padeço de todos os impactos negativos que o isolamento e o vírus
causaram. Continuamos sem o contato físico, sem o boca a boca, mas con-
seguimos, em pouco tempo, tirar o melhor da situação. É uma prova de
que o ser humano é capaz de se adaptar às condições externas; é uma
forma de jogar a Academia para o contexto atual, digital, ágil e em cons-
tante movimento. Crianças de hoje, desde muito pequenas, já estão em
contato com computadores e smartphones. Por que não trazer isso, tam-
bém, para a pesquisa histórica? É aqui que entram, por fim, meus estudos:
por meio das Humanidades Digitais procuro refletir sobre o isolamento e
as formas de contato no Antigo Oriente Próximo.
As Humanidades Digitais são um campo em ascensão e não têm uma
definição única sobre seu enquadramento, mas, de forma geral, elas
abrangem pesquisas que se munem de instrumentos digitais, seja em
maior ou menor grau. Uso essa abordagem por meio de softwares (Gephi
e NodeXL) que permitem um mapeamento matemático e visual do contato
no Oriente Antigo, a partir da Social Network Analysis, que prioriza as
relações sociais em suas análises (OTTE, ROUSSEAU, 2002). Minhas fon-
tes são correspondências trocadas entre os reis da Mesopotâmia, Anatólia,
Síria e Egito. Esse corpus documental é chamado de Cartas de Amarna e
Priscila Scoville | 129

corresponde a 382 tabletes de argila, mas nem todos são usados por mim.
Restrinjo-me aos documentos referentes aos reinos independentes e he-
gemônicos, isto é: Alashia, Arzawa, Assíria, Babilônia, Egito, Hatti e Mitani
– que compreendem as cartas EA1-44. Por questões de espaço e otimiza-
ção, não entrarei em muitos detalhes sobre a particularidade das fontes,
para isso sugiro a leitura de outros dois artigos de minha autoria (2020 e
2015): um publicado na Revista AEDOS (para um caso mais aplicado ao
meu estudo atual) e outro na Revista Poder e Cultura (para uma base mais
contextual).
O anseio dessa pesquisa surgiu com a percepção de que, desde o en-
sino fundamental, a Antiguidade Oriental nos é apresentada de uma forma
superficial, fortemente carregada pela questão do orientalismo de Said
(2007). Filmes, séries e livros apenas reforçam a ideia do exótico e do bár-
baro. A Mesopotâmia quase deixa de ser uma designação geográfica para
se tornar um reino aos olhos leigos, nesse sentido, o “povo mesopotâmico”
é um só, ignorando-se a pluralidade étnica e cultural da região que resul-
tou em uma dinâmica muito grande. O Egito, por outro lado, é tido como
um lugar tão isolado que é quase um pecado representar estrangeiros no
Vale do Nilo antes do Período Helenístico. A Síria passou a ser resumida
aos fenícios e judeus, esquecendo-se das rotas de comércio e dos demais
povos que circulavam e habitavam a região. A imagem do homem pró-
ximo-oriental distanciou-se da realidade por não estar inclusa no padrão
ocidental – eles são os “outros” do nosso “eu”.
Homens e mulheres da antiguidade não pretendiam ser isolados, pelo
contrário, reconheciam as vantagens em se manter contato com o mundo
exterior. Desse reconhecimento começaram a surgir relações oficiais entre
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cortes ainda no terceiro milênio AEC2. Com o tempo, normas de conduta


começaram a aparecer como forma de estruturar as relações diplomáticas.
Assim, no Segundo Milênio AEC, desenvolveu-se o Sistema de Amarna –
um sistema de diplomacia que envolveu todo o Antigo Oriente Próximo e
reconfigurou as interações na região. Uma das suas premissas é que os
reinos hegemônicos e independentes (citados acima) seriam hierarquica-
mente iguais e nenhum rei poderia tentar se sobressair ao outro. Para isso,
estabeleceram-se regras que ampliavam a visão de mundo doméstico para
o exterior, a partir de um Sistema de Casas regido pela jurisdição divina.
Nesse contexto, a documentação deveria refletir um sistema equili-
brado de poderes, ainda que, por ser um conjunto encontrado no Egito,
reflita as relações concernentes ao domínio egípcio. Para verificar essa dita
paridade, catalogo as cartas selecionadas, destacando os nomes citados, a
origem e o destino. Com base nessas informações e com o auxílio do No-
deXL, foi possível olhar para as fontes de uma forma mais pragmática, sem
considerar, em um primeiro momento, as questões textuais trazidas pelas
cartas. Crio, assim, um banco de dados que me permite calcular os dife-
rentes tipos de centralidade3 de cada indivíduo e reino citado, e o
coeficiente de clusterização (agrupamento) individual e médio.
Não cabe aqui entrar em detalhes sobre o que cada aspecto desses
significa, mas apontar seus resultados iniciais4. A complexidade e o alto
grau de conexão entre cada agente desse sistema são visíveis por meio da
ideia de Pequeno Mundo (ou seis graus de separação). Existe um total de
26 pessoas e 147 relações estabelecidas na documentação selecionada,

2
A primeira correspondência diplomática de que temos registro foi trocada entre os reis Irkab-damu, de Ebla, e Zizi,
de Hamazi, em c. 2300 AEC. Contudo, pelo conteúdo, sabemos que ela não foi a primeira carta trocada (PODANY,
2010, p. 27).
3
Grau de centralidade (número de menções), centralidade de intermediação (caminhos e importância relativa) e
centralidade autovetora (proximidade com agentes influentes).
4
Esse estudo se refere a um trabalho em andamento, que realizo como parte de minha pesquisa de doutorado.
Priscila Scoville | 131

ainda assim, para que qualquer um desses indivíduos entre em contato


com qualquer outro, o maior caminho possível para que a mensagem che-
gue ao destinatário envolve 4 pessoas, sendo que a média pode ser
arredondada para 2. Isso, por si só, já é surpreendente, considerando o
grande espaço geográfico a que se refere. Podemos perceber, também, que
existe um poder de distribuição (aplicado pela diferença entre os graus de
centralidade) e um alto coeficiente de agrupamento (um número mais de
tríades5 maior do que em grupos aleatórios). Essas questões confirmam
que o Sistema Diplomático de Amarna configura um Pequeno Mundo.
O interessante de se notar, contudo, é que a centralidade dos reis he-
gemônicos está em contraste com outros nomes. De fato, os reis se
destacam nas relações – e, mais do que isso, mantêm um padrão bastante
próximo entre eles próprios. A igualdade parece estar presente, mesmo
quando nos voltamos somente à documentação egípcia.
Ao perceber essa engenhosa rede de contatos, fica claro que os reis
do oriente antigo não estavam tão isolados como o senso comum nos leva
a imaginar. A vida era tão dinâmica quanto os dias de hoje. Eram outros
suportes, mas a conversa acontecia e as relações se firmavam mesmo que
pelo uso de intermediários. Os antigos tinham seus mensageiros, hoje te-
mos a internet e as redes sociais. A comunicação certamente é um
componente importante das sociedades, quer sejam de um mundo digital
ou de um mundo de argila.

Referências

OTTE, Evelien; ROUSSEAU, Ronald. Social network analysis: a powerful strategy, also
forthe information sciences. Journal of Information Science, v. 28, n. 6, 2002.

5
Três pessoas que se conhecem mutuamente
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PODANY, Amanda H. Brotherhood of Kings. How International relations shaped the


Ancient Near East. Oxford: Oxford University Press, 2010.

SAID, Edward W. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.

SCOVILLE, Priscila. As definições do tablete foram atualizadas: o Antigo Oriente Próximo


e as Humanidades Digitais. AEDOS, v. 12, n. 26, 2020, pp. 148-167. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/103422

SCOVILLE, Priscila. Egito e Oriente Próximo: Quem é quem nas Cartas de Amarna. Poder
e Cultura, v. 2, n. 3, 2015, pp. 14-29. Disponível em: https://poderecultura.
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