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CARLA JABLONSKI
Autoria
Carla Jablonski
Criação de
Neil Gaiman e John Bolton
Digitalização e Revisão 1
Bruno Matos
Prólogo
Titânia, a rainha do Mundo das Fadas, estava parada perto do muro baixo de
mármore que rodeava o pátio, nos fundos do castelo. O céu do crepúsculo
combinava com seu humor, à medida que a cena pálida e plácida se transformava
em algo escuro e intenso.
“Aquela criança”, ela pensou, “aquela criança veio do reino dos mortais. E,
no entanto, seu poder...” Simplesmente não fazia o menor sentido para ela. A
menos que...
“Será que eu fui enganada?”, ficou pensando, apertando os olhos dourados. 3
Ela não estava enxergando a paisagem à sua frente, os cortesãos passeando pelas
trilhas, os espirituais praticando esportes no lago cristalino, os belos esvoaçantes
revoando por ali, à espera de suas ordens. O que ela via era traição, má fé e
perigo. Ela também ficara confusa com as antigas profecias. Já fazia tantos
anos... O que tinha mesmo acontecido com aquela criança? Pensava que ela tinha
morrido — foi o que lhe disseram —, mas ela própria não tinha testemunhado a
ocorrência. Não deveria ter sido tão tola. Mas, naquele tempo, ela confiava mais
nas coisas, e certas pessoas diziam que só os tolos confiavam. Se fosse hoje, as
coisas teriam sido diferentes, e ela não teria que encarar esta... esta possibilidade
surpreendente.
“Pode ser uma bênção”, percebeu. A raiva por causa da possibilidade de a
criança da profecia ainda estar viva, de terem mentido para ela, não deveria afetar
sua noção de que sua existência poderia representar uma vantagem. Por outro
lado, a profecia poderia não ser nem um pouco verdadeira. E a criança, apesar de
suas suspeitas, poderia estar morta havia muito tempo.
Confiança. Apesar da hesitação, a confiança era a única coisa com que
podia contar — aliás, uma coisa bem traiçoeira. Tamlin nunca tinha mentido para
ela, e isso a fazia lamentar muito mais. Em certas ocasiões, até seria bom se ele
tivesse mentido. No passado, ele escondera dela algumas coisas, mas sempre que
lhe fazia uma pergunta direta, inevitavelmente ele dava uma resposta direta,
mesmo que isso pudesse despertar sua ira.
Era isso. Ele era a única pessoa a quem ela podia perguntar, o único que
poderia descobrir a verdade. Mas como ele reagiria à notícia? “Pode ser que ele
já tenha matado a charada”, ela percebeu. Nesse caso, ela queria ser colocada a
par de qualquer informação nova que ele obtivesse.
Titânia fechou os olhos e sentiu que a brisa ia ficando mais fria à medida
que o sol se escondia no horizonte.
— Venha, meu falcoeiro — convocou Tamlin com a mente, pensando na
imagem dele.
Ouviu um bater de asas e sorriu.
— Por que me chamou? — uma voz resmunguenta quis saber.
A rainha abriu os olhos lentamente. Alto, esguio, musculoso, traidor e
traído, amado e desprezado, Tamlin estava parado à sua frente. O cabelo
castanho liso batia nos ombros, emoldurando o rosto anguloso. Adversário, mas
único amigo verdadeiro. A relação dos dois tinha tanta história que, sempre que
estavam juntos, o ar que os separava parecia ficar mais espesso.
Depois que ele chegou, ela não sabia mais como proceder. Com qualquer
outra pessoa (até com seu marido, o rei Auberon) ela fazia o que queria sem
pensar, sem uma pontinha sequer de preocupação a respeito do que estava
pedindo ou fazendo. No entanto, com Tamlin ela se sentia acossada. Queria que
ele aprovasse sua conduta, principalmente porque raramente o fazia.
Mas ela não olhou para ele. Em vez disso, ficou com os olhos fixos à frente.
Notou alguns dos pequeninos esvoaçantes flutuando por ali e fez um gesto para
que fossem embora. Fofocas não seriam bem-vindas. Fez um sinal com a cabeça
para os dois serventes armados que tinham se colocado discretamente um pouco
além do alcance da audição. Sempre havia diversos guarda-costas por perto. Se 4
ela os dispensasse, isso atrairia atenção demais, ficaria muito óbvio que o assunto
era pessoal.
— Eu tenho pensado... naquele menino — ela disse.
Capítulo Um
“Eu sempre soube que educação física era tortura patrocinada pelo
governo”, Timothy Hunter pensou. “Afinal, forçar a gente a jogar futebol ao ar
livre com este tempo é obviamente um castigo cruel e fora do comum.”
Tim ficava pelas beiradas, meio de fora do jogo. Ele não era muito fã de
esportes — tirando andar de skate. Sentia-se bobo com a roupa de ginástica. Sua
pele estava toda arrepiada e a camiseta larga só servia para mostrar ainda mais
que ele não tinha músculos desenvolvidos. O pai de Tim dizia que ele estava
passando por um estirão de crescimento e que isso era normal aos 13 anos. Mas 5
seus braços e pernas pareciam desajeitados, os pulsos e as canelas finas pareciam
sempre dar um jeito de aparecer nas mangas das camisetas e nas pernas das
calças.
enfiada na grama, enquanto outros três garotos se jogavam sobre ele. Foi aí que
ouviu um grito:
— O Saunders está com a bola! — todo mundo saiu de cima dele, deixando
Tim dolorido e humilhado, sozinho no gramado.
Bem devagar, Tim se sentou. Apalpou o chão e encontrou os óculos. Por
sorte, não estavam quebrados. As costelas de Tim estavam latejando no lugar em
que alguém tinha enfiado o joelho. Ele se sentia pisoteado. Levantou e sentiu-se
ainda pior. Viu que Molly tinha parado de correr para assistir ao fiasco completo.
— Maravilha — resmungou. — Que maravilha. — Começou a correr.
Tinha a intenção de se aproximar dos outros, para provar que não era um fracote
completo. Mas, em vez disso, passou pela aglomeração de jogadores e continuou
a correr. Pegou velocidade e ultrapassou os limites da escola.
— Hunter! — ouviu o professor de educação física, o treinador Michelson,
gritar atrás dele. — Hunter! Aonde é que você acha que está indo?
Tim o ignorou, ignorou tudo. Só enxergava borrões enquanto batia os pés
com força no chão.
“Qual é o meu problema?”, Tim questionava a si mesmo. “Eu sou mesmo
um fracassado. Como é que eu posso ser um mago assim tão poderoso, de quem
o universo inteiro está atrás, se não consigo nem me garantir no pátio da escola?
Já sei por que o Ioiô me abandonou.”
Um passo atrás do outro, a corrida fazia seu corpo estalar, mas era uma
sensação boa, como se estivesse socando um adversário invisível... e esse
inimigo era sua própria confusão. Sentia-se como se fosse explodir.
Essa mudança, esse acontecimento mágico, era algo importante. Importante
demais para ele ficar esperando sentado, importante demais para ficar jogando
aquela porcaria de futebol, importante demais para explicar a alguém. Até
mesmo Molly.
Estava ofegante. Ele não podia desacelerar, não podia parar de correr. O
peito dele doía, mas não parou. A dor era de verdade... ela fazia sentido. Não era
igual às coisas mágicas. Para correr muito, é preciso respirar fundo. Lógica. Suas
idéias iam adquirindo o ritmo de seus pés. Rainhas fadas? Chaves mágicas?
Mundos passados? Tim parou e se agarrou a um poste, curvando o corpo e
arfando. “Como isso aconteceu comigo? Como isso poderia acontecer com
qualquer pessoa?”
Deixou-se escorregar e sentou-se na calçada, encostado no poste, com o
suor escorrendo pelo rosto. Ele sabia que logo sentiria frio, suando daquele jeito
no ar gelado de dezembro, mas não ligava.
“Ninguém ia acreditar em mim. Nem a Molly. E eu não quero que ela ache
que eu fiquei totalmente maluco. Preciso dela como amiga. E ela não vai querer
ser amiga de um louco de pedra. Bom”, pensou, ficando em pé, “provavelmente
vai sim. Ela não abandonaria ninguém só porque essa pessoa merece ser
internada; a Molly não faria isso”. Mas Tim não queria uma amiga que se
preocupasse com ele só por pena. Queria alguém que pudesse ouvir seus 8
segredos, mas como ele poderia falar a respeito de uma experiência que não
conseguia descrever?
Tim deu uma olhada ao redor para ver onde estava e começou a rir. Tinha
corrido até chegar em casa. E tinha ido pelo caminho mais comprido, passando
pelas lojas fechadas com tábuas e por trás do estacionamento. Tinha percorrido
uns quinze quarteirões a mais, mas naquele momento estava a apenas algumas
ruas de casa, no conjunto habitacional Ravenknoll. Era melhor ir para lá mesmo.
Se contasse para ela, Molly ia achar que só tinha sido um sonho, era o que
Tim pensava enquanto caminhava lentamente até a porta de casa. Ele próprio
tinha dificuldade em acreditar que não tinha sido um sonho. Tinha conhecido
Merlin, no tempo do rei Artur. Tinha viajado para os Estados Unidos com John
Constantine em um piscar de olhos, literalmente. É claro que parecia um sonho.
Então, fez uma pausa. “Só que não foi sonho nenhum.”
Tim se arrastou até a porta, e então se lembrou que tinha deixado as chaves
no casaco, no armário da escola.
“Maravilha.” Não daria para entrar na casa de mansinho, na esperança de
que o pai, distraído e deprimido, não o notasse. Ia ter que tocar a campainha e se
explicar. Bom, o dia já estava uma droga mesmo. Por que não piorar mais um
pouquinho?
Bateu na porta. Ouviu a TV alta na sala, e então viu a cortininha da porta se
mexer.
O pai abriu a porta.
— Tim?
Pai e filho se olharam. Tim viu o rosto rechonchudo do pai, o cabelo que ia
rareando, a protuberância sobre a qual seu cardigã se esticava, o botão faltando.
Tim ficou imaginando o que o pai via ao olhar para ele. Percebeu que ele mesmo
parecia acabado; com certeza se sentia acabado.
Opa. Prestando um pouco mais de atenção, percebeu que o pai estava 100%
alerta naquele dia, o que não era muito comum. Havia poucos indícios, mas
estavam todos lá.
O acidente de carro que tinha levado a vida da mãe de Tim também tinha
feito com que o pai perdesse um braço. Naquele dia, a manga vazia do casaco
cinza do pai estava presa para cima com um alfinete, bem arrumadinha. Em
alguns dias (nos piores), o senhor Hunter deixava a manga solta, isso quando
trocava de roupa. Nesses dias, prestava muito menos atenção em Tim, só gritava
para que ele viesse assistir a algum filme antigo em branco e preto na televisão
ou perguntava, distraído, como estava a escola, mesmo que fosse sábado. Nesses
dias, Tim conseguia se safar de qualquer coisa.
— Você perdeu a chave de novo? Vou dizer uma coisa, menino, você só
não perde a cabeça porque está grudada no pescoço.
Tim abriu caminho empurrando-o para o lado e entrou em casa. O pai se
virou e olhou para ele.
— Tim, o que é que você está fazendo em casa uma hora dessas? E cadê a
sua roupa de escola? — O pai começou a segui-lo. — O que foi que aconteceu
com você, menino? Se meteu em alguma briga? 9
Tim não respondeu, só subiu a escada até o quarto, fechou a porta e deitou-
se na cama com a cara enfiada no travesseiro.
Todos os seus músculos doíam. Ele tinha sido pisoteado. Como aquilo era
considerado educação?
O telefone de baixo tocou, e Tim ouviu o pai atender. “Que bom.” Aquilo
significava que ele deixaria Tini em paz por mais um tempinho.
— Pois não. — disse o senhor Hunter. Ouviu-se uma longa pausa, e então
ele voltou a falar em um tom um pouco irritado. — É mesmo? Eu não falaria
neste tom se fosse você. Se alguém aqui é negligente, acho que é o seu professor
de educação física.
“Eu tinha mesmo pensado que o telefonema era algo positivo? Agora eu
vou me ferrar, com certeza.” Tim se levantou e foi até a porta. Abriu uma fresta
para ouvir melhor o que o pai estava dizendo. Não era difícil, já que ele ia
falando mais alto à medida que ia ficando mais irritado.
— Ah é? — disse o senhor Hunter. — E o que você me diz quando o meu
garoto chega em casa com um corte na boca? Ele está se fazendo de durão, mas
acho que está com uma ou duas costelas fraturadas. Aliás, eu estava saindo para
levá-lo para tirar uma chapa.
A testa de Tim se franziu. O pai o estava defendendo perante a escola?
— Tudo bem — explodiu o senhor Hunter. — Mas vamos deixar uma coisa
bem clara: meu Tim não é incorrigível coisa nenhuma. Até logo.
Tim ouviu o pai bater o fone no gancho. Então ouviu os degraus da escada
estalando. Pegou rapidinho um livro da escrivaninha, sentou-se na cama e abriu
em uma página qualquer, esforçando-se para não parecer incorrigível.
— Filho? — o senhor Hunter parou à porta, depois entrou no quarto de Tim.
Parecia pouco à vontade. Sem ter certeza de nada.
Tim não sabia o que aconteceria a seguir, por isso não sabia o que fazer.
— Oi — respondeu.
— Bom, só achei que devia... — o senhor Hunter deu uma olhada no quarto
de Tim, surpreso. — O que é isso? Não tem mais aqueles caras que andam de
skate nas paredes? Agora você gosta de corujas?
— Eu gosto de corujas. Mas todo mundo gosta.
O senhor Hunter se sentou na beirada da cama de Tim.
— Hummm. Está um dia lindo lá fora, não está?
“Mas que conversa mais interessante”, Tim pensou.
— É, está meio parecido com ontem. Para falar a verdade, está bem
parecido com ontem.
— O que eu estou falando é que, como o dia está bem bonito, você podia ir
brincar lá fora.
— Brincar? — Tim ficou olhando para o pai.
Ele parecia inquieto e preocupado, e isso não era muito comum nele. O
estilo do pai tinha mais a ver com melancolia introspectiva.
— Ultimamente tenho achado você um pouco perturbado.
— Perturbado?
“Quem é esse cara”, Tim ficou pensando, “e cadê o meu pai?” 10
— Sério, Tim, você está se transformando em um garoto recluso. Não pense
que eu não reparei.
“Meu pai reparou em mim? Isso é novidade!”
Tirando a surpresa, Tim sentiu que era pouco demais, tarde demais. —
Mas...
— Sem essa de mas — disse o pai, levantando-se. — Pode se vestir e sair
para a rua e se divertir um pouco. Vá andar de skate, jogar bola ou qualquer coisa
assim.
— Tudo bem. Eu vou me vestir e sair de casa para me divertir, então —
respondeu Tim. — Mas prefiro me trocar sozinho, se você não se importar. Eu
consigo, sabe como é. Sei amarrar o sapato e tudo.
— Tim. — O senhor Hunter deu um suspiro e saiu do quarto.
Tim trocou de roupa, colocou um jeans e uma camisa de manga comprida.
Vestiu um moletom, pegou um casaco e saiu de casa.
— Por que você não sai na rua para brincar? — resmungou, imitando a
recomendação vazia do pai. Como se uma rodada de pega-pega fosse resolver os
problemas dele.
“Será que ele acha que eu sou uma criancinha? E que um pouco de ar fresco
seria o bastante para mudar a maneira como eu me sinto?”
Tim chutou uma latinha de refrigerante vazia para a sarjeta. “Ele me chama
de recluso? Olha quem está falando! Não acho que uma pessoa que fica sentada o
dia inteiro na frente da TV tem tempo para reparar nessas coisas. Além disso”,
Tim pensou, abaixando-se para pegar um galho quebrado, “meu pai devia ficar
bem contente com a minha existência solitária”. Tim ia passando o galho pela
cerca de tela quebrada que rodeava um terreno baldio. “Quem puxa aos seus não
degenera, e essas coisas todas que dizem por aí.”
Jogou o galho para o lado. “Acho que eu devia ir falar com a Molly. Sentir
o terreno.” Talvez, se Tim explicasse tudo com cuidado, Molly não fosse ficar
pensando que ele era completamente maluco. Ele sabia que se sentiria melhor se
pudesse contar para alguém. “Não tem ninguém melhor do que a Molly para
guardar um segredo.” Mesmo assim...
Ele tinha chegado ao limite do parque e ainda não tinha se decidido.
— Homem — criança — ouviu atrás de si. Virou-se e viu um homem
corpulento, usando um sobretudo escuro e comprido e um chapéu com abas
largas bem enfiado na cabeça. Tinha o rosto largo e pelancudo, com olhos que
pareciam separados demais. O homem sorriu, e Tim viu que lhe faltavam vários
dentes. Tim teve imediatamente um flashback da Brigada dos Encapotados e se
perguntou se ia começar tudo de novo. Então, o estranho apontou para o céu.
— Olhe lá.
Curioso, Tim olhou para cima. Um grande pássaro voava em círculos no
céu... igual ao que ele tinha visto na escola. Mas logo saiu de vista e se escondeu
atrás de um prédio.
— Ioiô? — murmurou Tim.
Alguém parado atrás dele disse:
— Não, não é o Ioiô.
Tim deu uma guinada para o lado e saiu correndo. De repente, teve certeza 11
de que a pessoa atrás dele iria tentar agarrá-lo e que o cara tosco na frente dele
devia ser uma distração. “De jeito nenhum!”
Tim se embrenhou pelo parque. Logo chegou a uma parte com bosque
cerrado, onde tinha que pular as raízes expostas e se abaixar para não bater nos
galhos. Havia folhas mortas pelo chão, e Tim ouvia atrás de si o barulho das
passadas de seus perseguidores.
Aumentou a velocidade. Na verdade, movimentava os pés com tanta rapidez
que só viu a rede esticada entre dois arbustos depois que já estava preso nela.
— Uou! — gritou quando tropeçou e caiu bem no meio da rede. Viu que
dois homens corpulentos, com chapéus e sobretudos idênticos, seguravam as
pontas da rede reforçada. Quando faltavam apenas alguns centímetros para cair
de cara no chão, uma mão forte puxou sua cabeça para trás pelo cabelo e o
segurou no ar. Tim engoliu em seco. Sentiu a lâmina fria de uma faca na
garganta.
— Se você for um garoto esperto, não vai nem pensar em gritar — disse
uma voz profunda.
“Sem problemas”, Tim pensou. Estava assustado demais para falar.
Os homens que seguravam a rede pareceram surpresos, ao ver o homem que
segurava a faca no pescoço de Tim.
— O que é que você está fazendo aqui? — perguntou um deles.
“O que está acontecendo? Esses tontos não estão trabalhando juntos?” Tim
fazia de tudo para não se mexer. Qualquer movimento fazia com que o homem
puxasse seu cabelo com mais força, e ele definitivamente não queria que a
lâmina da faca entrasse em sua pele.
— Você está aqui para ajudar? — perguntou o outro homem que segurava a
rede. Ele parecia assombrado. — Ela achou que a gente não ia conseguir fazer
isso?
O homem que o segurava ignorou os outros dois. Estava concentrado em
Tim.
— Eu solto você se prometer que não vai fugir.
— Tudo bem — respondeu Tim, engasgado. — Eu prometo.
— Jure pelo seu nome — exigiu o homem. “Bom, isso é uma coisa
completamente diferente”, Tim pensou. “Não vou falar o meu nome para esse
cara. Eu aprendo com os meus erros.”
— Não — declarou Tim.
Encolheu-se um pouco, esperando o que viria a seguir.
Um sorriso torto cruzou o rosto magro do homem.
— Muito bem. Você sabe o valor dos nomes. Sei, sei.
O homem abaixou a faca, mas continuou segurando o ombro de Tim com
firmeza. Sem fazer nenhuma pausa, amarrou com um movimento rápido os
pulsos de Tim com tiras finas de couro. Então cobriu a cabeça do garoto com um
saco. Tim sentiu o homem colocando-o sobre o ombro, como se ele fosse um
saco bem pesado.
— Ei! — reclamou Tim, mas o som ficou abafado por causa do saco.
— Vocês dois, vão para casa — Tim ouviu seu seqüestrador dizer aos 12
outros.
— Ela vai ficar louca da vida se nós voltarmos sem ele — protestou um dos
homens.
Capítulo Dois
Tim sentiu uma onda de calor. O saco que lhe cobria a cabeça ficou
sufocante, e a camiseta grudava na pele suada. Mas quase não sentiu a náusea
rodopiante que experimentara da primeira vez que tinha sido conduzido pela
magia através dos planos da realidade.
“Acho que estou me acostumando”, Tim pensou, “estou virando macaco
velho neste negócio de viagem mágica. Talvez eu devesse pensar em ser guia
astral... ou diretor de cruzeiros para viagens mágicas.”
Sentiu que estava sendo colocado no chão.
— Espere aí — alguém ordenou.
Tim obedeceu. O que mais poderia fazer? O saco que cobria sua cabeça foi
arrancado com brutalidade.
— Ai! — Tim gritou. O saco tinha tirado os óculos de seu rosto, arranhando
a pele. Piscou contra o sol castigante e depois procurou por seus óculos no chão
pedregoso. Detestava se sentir desamparado, o que acontecia quando estava sem
os óculos.
Uma mão grande e enluvada apareceu embaixo do nariz de Tim. Segurava
os óculos dele. Tim apertou os olhos para observar seu raptor.
Ele não tinha muita certeza se o homem estava ou não entregando os óculos
a ele.
— Qual é o problema que você tem nos olhos? — perguntou o homem.
— Não é da sua conta — explodiu Tim.
O homem colocou a mão onde Tim não podia alcançar. Estava claro que
não daria os óculos a Tim até obter uma resposta.
— Tudo bem. Sou míope.
O homem virou os óculos para si e olhou através deles.
— Ah, você precisa deles para ver o que está longe.
“Será que esse cara nunca viu óculos antes? Por onde será que ele anda?”
— Isso. Será que você pode me devolver, por favor?
O homem assentiu com a cabeça e esticou o braço na direção de Tim. Este 13
agarrou os óculos, desajeitado, com os pulsos ainda amarrados. Colocou-os no
rosto e examinou melhor o estranho.
Tim esperou pela reação do homem. Ele podia ficar bravo: era a maior falta
de educação perguntar o nome dos outros. Em vez disso, o certo era perguntar:
“Como você é chamado?”. Isso porque nomes têm poder, Tim descobrira, e
quando a gente sabe o nome de alguém, tem poder sobre essa pessoa. O nome
contava uma verdade a respeito de seu dono.
Tinha demorado um pouco para Tim aprender aquela lição. Mas seus guias
da Brigada dos Encapotados tinham falado o nome dele para diversas pessoas
durante suas viagens, o que, pensando bem, era um pouco perturbador. De
repente, ocorreu-lhe: “Talvez Timothy Hunter não seja meu nome 'de verdade'.
Talvez seja apenas como eu sou chamado.”
Tim resolveu deixar para pensar nas implicações daquela idéia mais tarde.
O homem parecia estar considerando a pergunta, então respondeu:
— Tamlin.
Os olhos de Tim não desgrudaram do rosto marcado do homem. “Será que
este é o nome verdadeiro dele?”
— Então, você sabe o meu nome — Tamlin disse. — Agora você vai me
amaldiçoar?
“Interessante. É o nome verdadeiro dele.”
— Pode me amaldiçoar o quanto quiser — Tamlin disse, quase como se
estivesse desafiando Tim a fazê-lo. — Você não seria o primeiro. Nem o último,
imagino. Meu caminho tem sido assim.
“Mas quanta idiotice”, Tim pensou. As queixas do homem não combinavam
com sua aparência rude.
— Você sente pena de si mesmo o tempo todo? Ou só quando quer
amedrontar os outros?
Tamlin lançou um olhar furioso para Tim e deu um passo em direção a ele.
— Se algum homem me dissesse isso, eu cortaria o coração dele em fatias e
o faria engoli-las até engasgar.
— Tenho certeza que sim — caçoou Tim.
Revirou os olhos para trás, todo dramático.
A cabeça de Tim caiu para trás quando o homem deu um tapa no rosto dele.
— Você precisa aprender a ter respeito, menino.
Tim piscou. Estava mais surpreso do que machucado, mas não ia dar àquele
imbecil a satisfação de vê-lo reagir. Manteve uma expressão impassível.
— Você não tem medo mesmo, isso eu reconheço — disse Tamlin. Tim foi
capaz de detectar aprovação na voz dele. — E você tem visão. Visão suficiente
para saber que algumas verdades não devem ser mencionadas. — Tamlin riu. —
Guarde suas conclusões para si mesmo, menino. Nem todo mundo aprecia esse
tipo de sabedoria. Se você não aprender mais nada comigo, pelo menos se lembre
disso.
Tim não disse nada. Ficou olhando para Tamlin. Não confiava o suficiente
em sua voz naquele momento para abrir a boca.
Tamlin deu um puxão tão forte no amuleto que trazia em volta do pescoço 16
que o cordão arrebentou. Ergueu o objeto, e a pedra brilhou naquela luz
ofuscante. Tim não conseguiu definir aquela cor. Em um minuto, parecia ser azul
Capítulo Três
Capítulo Quatro
19
Tamlin ajoelhou-se, pegou um punhado de areia vermelha e deixou que
escorresse por entre os dedos. Pegou um galho de árvore morto e o colocou na
pequena sacola de couro que adquirira depois de retomar a forma humana. Os
gravetos eram sinais de degradação. “Provas que minha senhora negaria”, Tamlin
pensou, “assim como ela nega todas as descobertas que a incomodam”.
Ainda agachado, pegou outro punhado. Dessa vez, porém, encheu a sacola
de areia. “O que não pode ser visto não ocupa os pensamentos da minha
senhora”, refletiu. “Ela só enxerga o que lhe convém. E tem tanta habilidade para
isso que continua vendo o Mundo das Fadas como um paraíso frondoso, cheio de
belezas naturais. Ela literalmente não consegue enxergar a poeira... ela não vê o
que o Mundo das Fadas se tornou.” Tamlin sacudiu a cabeça. Às vezes, desejava
ser capaz de fazer a mesma coisa.
— Falcoeiro! — uma voz chamou atrás dele. Tamlin virou a cabeça
lentamente, mas não se preocupou em se levantar.
— Mazaran — Tamlin cumprimentou o cortesão da rainha. — Eu não sabia
que você conversava com mortais.
— Minha rainha exige a sua presença, falcoeiro. Acredito que ela esteja
brava com você.
— Está, é? Logo vai ficar ainda mais.
— Poupe-me de sua insolência. Mexa-se. Agora.
— Espere. — Tamlin sentiu a ponta afiada da espada de Mazaran em sua
nuca.
— Esperar o quê? — perguntou Mazaran.
— O vento mudar de direção. — Tamlin pegou mais areia. — Pronto! —
Jogou a areia no rosto de Mazaran.
— Argh! — o cortesão gritou. Suas mãos cobriram o rosto com rapidez, e
ele caiu, primeiro de joelhos e depois de cara no chão.
— Filho de um cão — xingou Mazaran. — Você me deixou cego.
— É, estou vendo — respondeu Tamlin. — Mas é só areia, Mazaran. Chore
um pouco e, quando terminar, não vai estar mais cego do que foi a vida inteira.
Tamlin virou as costas para o cortesão do Mundo das Fadas.
— Coitado do senhor dos elfos — Tamlin gritou para a paisagem vazia. —
Derrotado pela poeira.
Tamlin jogou a cabeça para trás e estendeu os braços. Seu corpo tremelicou
e encolheu: braços em asas, pés em garras. Surgiram penas onde antes só havia
pele. Tamlin se livrava de sua forma humana com a mesma facilidade com que
descartava suas roupas, e mais uma vez transformava-se em falcão.
Suas asas bateram, conduzindo-o cada vez mais alto no céu, enquanto o
cortesão continuava choramingando no chão. A liberdade do vôo era uma
satisfação, e Tamlin nunca se cansava dela.
“Mazaran é igual a todos os habitantes do Mundo das Fadas”, Tamlin ia
pensando enquanto deslizava na direção do castelo da rainha. “Arrogante.
Desdenhoso para com os mortais. E, como todos eles, com inclinação para fazer
vista grossa ao óbvio. Até que algum canalha como eu jogue isso na cara dele.”
Tamlin viu os torreões do castelo atrás da última elevação. A seus olhos, as
colinas onduladas tinham perdido seu aspecto esverdeado, mas ele sabia que a 20
maioria dos habitantes do Mundo das Fadas (talvez todos eles) só via tapetes
verdejantes de capim e de flores. Tamlin enxergava a verdade, mas o resto das
criaturas vivia uma ilusão.
Capítulo Cinco
Tim tinha conseguido voltar vivo daquele deserto estranho, mas ninguém
havia nem notado que ele tinha partido. A escola era a escola, o pai era o pai. O
treinador Michelson estava só um pouquinho mais legal com ele. Essa era a única
coisa que tinha mudado. Molly tinha faltado no dia em que ele voltara e, apesar
de ser bom não ter que encará-la depois daquela exibição ridícula no campo de
futebol, ele sentiu falta de conversar com ela.
Depois da escola, Tim foi para o quarto escrever seu diário.
Tim leu de novo o que tinha escrito. “Bom, parece bem idiota”, pensou.
Segurou o lápis com força e completou: Não sei o que segura a porcaria do 23
mundo. A menos que seja a magia.
Guardou o diário. Precisava se mexer; estava inquieto demais para ficar
trancado dentro de casa.
Seguiu o falcão até a praça, que mais parecia um parque, com bancos,
árvores e pedaços de gramado cobertos de neve. O pássaro desceu voando em
círculos, pousou e, para a surpresa de Tim, transformou-se em homem.
Um homem nu!
Tamlin.
— É você mesmo! — exclamou Tim. Então, ficou vermelho e olhou ao
redor. — Humm. Virar pássaro é uma coisa. Mas você não pode sair andando
pela cidade assim pelado. Mesmo que não estivesse tão frio assim aqui fora.
— É por isso que estamos aqui. Venha comigo.
— Você acha que vai achar um guarda-roupa no parque? — perguntou Tim.
Mais uma vez, tudo tinha ficado muito esquisito.
A alguns metros de distância, um sem-teto estava sentado em um banco,
rodeado de sacolas de supermercado. O homem usava uma jaqueta de sarja
surrada com vários emblemas costurados. Tinha piercing no nariz, e a barba era
cheia e grisalha. Trazia um cachecol enrolado na cabeça calva e, no lugar dos
sapatos, tinha grossos jornais amarrados nos pés. Os braços estavam cruzados
sobre o peito, e ele os esfregava para mantê-los aquecidos.
— Bom dia, Kenny — Tamlin cumprimentou o homem. — Será que você
pode me emprestar uma roupa?
“Então o homem-pássaro do Mundo das Fadas conhece um sem-teto de
Londres”, Tim pensou. “Bem, por que não?”
— Ah, não, meu amigo — a voz de Kenny era tosca e grave, como se ele
não estivesse acostumado a falar. — Onde é que eu estaria agora se ficasse
emprestando as minhas coisas a torto e a direito? É tudo negócio. Você ficou
longe tanto tempo que se esqueceu. Este mundo vai sugar o seu sangue se você
perder os negócios de vista.
— Então vamos chegar a um acordo — argumentou Tamlin.
Kenny revirou umas das sacolas e tirou um monte de roupas amarfanhadas.
Estendeu-as para Tamlin.
— Não coloque as meias até eu achar uns sapatos. — Kenny voltou a
remexer nas sacolas. — Você é daqueles que gostam de botas, não é?
Para Tim, as sacolas não pareciam grandes o bastante para guardar botas,
mas Kenny tirou um par de lá.
— Agora deixe-me dizer o que quero — disse o sem-teto enquanto o
homem-falcão calçava uma das botas. — Já caiu neve demais na minha cabeça
hoje. Preciso dar um tempo deste clima.
— Peça para o Tim — disse Tamlin, amarrando as botas. — Ele é que é o
mago.
— O quê? — reagiu Tim, surpreso. — Você está dizendo que eu devo fazer
alguma coisa para mudar o clima? Eu?
— Você pode até não saber nada, menino, mas isso não o torna menos
mágico.
Os pelinhos da nuca de Tim se arrepiaram. Tamlin tinha acabado de dizer 25
que ele era um idiota?
É claro que ele próprio tinha consciência de que sabia pouco de magia, mas
ouvir isso da boca de Tamlin era uma coisa completamente diferente!
“Neve, retire-se para longe daqui. Eu a estou banindo para... para... o lugar de
onde a neve vem, que eu não sei onde fica”.
Não adiantou nada. A neve continuava caindo sobre seu cabelo, seu rosto.
Seus ombros caíram quando abaixou os braços, derrotado. Não tinha condições
de olhar Tamlin nos olhos, com medo de enxergar decepção ali.
— Eu... eu tentei — disse.
— É, tentou — concordou Tamlin. — Deu para sentir o seu esforço. — A
voz de Tamlin era gentil. Tim sentiu a mão do homem em suas costas. — Agora,
diga uma coisa: se eu dissesse a você que estava com sede, você ia mandar trazer
um rio para mim?
Tim olhou para o rosto de Tamlin.
— Que pergunta mais besta. Claro que não.
Tamlin sorriu.
Tim devolveu o sorriso quando entendeu o que Tamlin estava dizendo.
— Ahhh — disse.
Tamlin fez um sinal com a cabeça.
— Não há necessidade de carregar um rio, não é mesmo? Especialmente se
um copo é o bastante. Agora tente outra vez. Eu ajudo.
Tim estava ansioso para tentar de novo. Olhou para Kenny, sem saber muito
bem por onde começar.
— Há cristais rendados caindo por todos os lados — começou Tamlin. —
Sinta-os.
Tim se concentrou, permitindo-se sentir a neve de verdade, como uma coisa
delicada e isolada, e não como um aglomerado maciço de frio molhado.
— Eles vão caindo, parecem rodinhas voadoras de gelo — continuou
Tamlin.
Não estava acontecendo nada. Era difícil demais.
— Eles estão em todo lugar — reclamou Tim. — O que eu posso fazer
quanto a isso?
— Não estão em todo lugar — corrigiu Tamlin. — Há espaço entre eles. O
espaço faz curvas entre eles. Dança em cima, em volta e embaixo deles. Pegue
este espaço. Sinta-o. Molde-o.
Tim sentiu suas mãos se erguerem involuntariamente, como se houvesse
energia se movimentando através delas, guiando-as. Sentiu o ar entre os cristais
de gelo. Forçou o espaço a se abrir, separando as rodinhas voadoras de água
congelada umas das outras. Nem sequer tocou com a mente aqueles flocos.
Em vez disso, trabalhou o espaço entre eles, exatamente como Tamlin tinha
dito. Viu Kenny sorrir.
— Que garoto bacana você arrumou, Tamlin. Cuide bem dele.
Tim ficou de queixo caído. A neve continuava a cair por todos os lados,
menos em cima de Kenny. Era como se ele tivesse uma bolha protetora que a
neve não era capaz de romper.
Animado, Tim voltou-se para Tamlin: 27
— Você...
— Se eu ajudei? — Tamlin sorriu. — Não.
— Eu... eu me senti como se... como se estivesse dando um nó, mas não
com as mãos.
— Você foi bem, Tim. Muito bem.
Era formidável ouvir aquele homem forte e contido dizer aquilo.
— Você fez isso com o seu próprio poder — garantiu Tamlin. — Este
encanto foi obra sua, não minha.
Tim não conseguiu conter o sorriso aberto que se espalhou por seu rosto. O
orgulho de ter conseguido fez sua pele formigar de calor, apesar da neve. “Eu
consegui”, pensou. “Incrível. Eu realmente fiz isso. Eu trabalhei com a magia. Eu
fiz uma coisa acontecer.”
— Tam — disse Kenny. — Se você quiser acessórios, é só vir buscar. —
Estendeu um chapéu e uma luva de couro. — Foi meio difícil achar essas coisas,
mas não quero que você se sinta enganado.
Tim ficou imaginando o que estava acontecendo. Como Kenny podia saber
que Tamlin precisaria daquilo? Será que ele já sabia que Tamlin ia aparecer
pelado em Londres?
Tamlin abaixou a cabeça e olhou para o chapéu que Kenny segurava com as
mãos estendidas, mas não fez menção de pegá-lo. Tim bateu os pés no chão para
se aquecer. “Por que tanta demora?” Dificilmente seria porque Tamlin não tinha
gostado do que Kenny tinha escolhido para ele. Para Tim, não parecia que
Tamlin ligava muito para estilo.
— Não adianta franzir a testa para mim, seu passarinho velho — caçoou
Kenny. — Este chapéu é para você. Igual às ostras com suas pérolas. Então
pegue logo e se anime para sair daqui. Rápido, meu amigo. O mais rápido que
você puder.
— Vou levar o chapéu e a luva. Só isso — decidiu Tamlin. — O revólver eu
não quero.
“Revólver?” A cabeça de Tim se virou subitamente. Tamlin estava
colocando o chapéu na cabeça enquanto Kenny enfiava alguma coisa em uma das
inúmeras sacolas que o rodeavam. Por que é que Kenny teria oferecido um
revólver para Tamlin?
— O-o que está acontecendo? — perguntou Tim. Tamlin caminhou até ele,
colocou um braço sobre seus ombros e fez com que começasse a andar.
— Está na hora de irmos embora.
Tim torceu o pescoço, tentando olhar para Kenny.
— Você nem se despediu dele.
— Tim, vamos. Agora.
“Opa,” A Brigada dos Encapotados tinha falado com ele daquele mesmo
jeito brusco algumas vezes. Geralmente significava que alguém estava tentando
matá-lo.
Tamlin tomou velocidade, e Tim ficou pensando se estavam sendo
seguidos... e se Tamlin tinha algum destino em mente.
Antes de Tim dar mais um passo, queria respostas. Cravou os calcanhares 28
na neve e forçou uma parada.
— Espere um pouquinho — disse. — Você ainda não me disse por que
voltou aqui. Quero saber o que você quer comigo.
— Tim, aproveite bem o tempo que você tiver neste mundo — disse Tamlin
com tristeza. — Nunca se esqueça de que, tanto na vida quanto na magia, o poder
está nas pequenas coisas. E na verdade.
Tim ficou olhando para o homem. Aqueles conselhos pareciam de
despedida, do tipo que os adultos dão quando acham que não vão voltar a ver
você.
— Que coisa mais comovente — desprezou Amadan. — Vamos, falcoeiro.
Já deixamos a rainha esperando tempo demais.
— Adeus — despediu— se Tamlin, colocando a mão no ombro de Tim.
— Espere — Tim agarrou o braço de Tamlin. — Aquilo que você disse.
Não pode ter falado sério. — Engoliu em seco. Doía falar. — Você não vai ser
arrastado nem esquartejado nem nada assim só porque... só porque...
Tamlin não disse nada. Simplesmente desapareceu das mãos de Tim. Um
minuto antes estava lá, mas pareceu dissolver-se no nada e, então, não estava
mais lá. Nem ele nem Amadan.
Tim caiu de joelhos sobre a neve.
— Você estava com medo de que ele me machucasse — murmurou. — E eu
choraminguei e implorei. — A vergonha tingiu as bochechas de Tim e o fizeram
engasgar mais do que as garras de Amadan. — E agora você está encrencado.
Você disse que veio aqui atrás da minha ajuda, e em vez disso eu compliquei
ainda mais a situação.
— Não se preocupe muito com o seu pai.
Tim olhou para adiante e viu Kenny, o sem-teto, ali parado.
— O quê?
— Você é surdo, cara? Eu disse para não se preocupar com o seu pai. Ele
sempre foi perturbado, e sempre será. Está no sangue. Mas também acho que
você já deve saber disso a esta altura.
Tim parecia confuso.
— O que é que o meu pai tem a ver com isso? Ele não sabe diferenciar
perigo de... — Tim parou. Percebeu que Kenny estava olhando para ele, sorrindo.
— Espera aí um pouquinho... Você não está falando do meu pai coisa
nenhuma... Você está dizendo... você está tentando dizer que o Tamlin...
Kenny saiu andando, mantendo a proteção contra a neve que Tim lhe dera.
Tim continuou sentando na neve, estupefato.
— Meu pai?
31
Capítulo Seis
Tim ficou vagando pelas ruas, encolhido para se proteger do frio. Não sabia
onde estava nem para onde estava indo, mas não podia ficar parado. Os
pensamentos agitavam-se dentro de sua cabeça.
“Se o seu pai não fosse o seu pai de verdade, você teria percebido sozinho”,
Tim disse a si mesmo. “Quando você tivesse uns 6 ou 7 anos, se não fosse
totalmente desligado, teria percebido. Simplesmente daria para perceber!”
Os pés de Tim batiam com força no chão, deixando pegadas fundas atrás de
si. A neve tinha parado de cair e o vento tinha ficado mais forte, fazendo com
que ficasse ainda mais frio. Tim não sentia nada.
“Se você nunca duvidou que seu pai é seu pai, nem mesmo uma vez na vida,
então isso deve querer dizer alguma coisa, não é mesmo?”
“Ninguém tem exatamente a mesma aparência dos pais.” Tim pensou nos
garotos da escola. “O Bobby Saunders não se parece nada com o pai. E o Brian
Hyde e o pai dele também não são muito parecidos à primeira vista, mas têm
algumas pequenas coisas iguais.”
Pequenas coisas. Não era exatamente isso que Tamlin tinha pedido para ele
procurar?
“Talvez não seja a cor do cabelo que a gente herda do pai. Talvez seja o
formato do nariz, o jeito de andar, ou a atitude em geral. Ou talvez seja o tipo de
corpo. Se você é um mesomorfo ou um endomorfo ou qualquer outro morfo que
existir.”
Tinha chegado a uma porta. À porta de Molly. Seus pés o tinham conduzido
até ali, enquanto seu cérebro dava voltas e mais voltas estonteantes. A mão de
Tim se esticou involuntariamente e tocou a campainha.
Dava para ouvir gritos altos e um bebê chorando atrás da porta; depois,
passos. Ergueu a cabeça, para que pudessem vê-lo pelo pequeno olho mágico na
porta, e ouviu as fechaduras sendo destrancadas. A porta se abriu.
— Oi, Tim — Molly o cumprimentou. Ela usava calça de moletom azul e
um blusão largo, e os pés estavam descalços. Ele reparou que as unhas dos dedos
dos pés dela estavam pintadas cada uma de uma cor, como se ela quisesse
transformar os pés em um arco-íris. — O que você está fazendo aqui?
— Qual é o outro morfo, Molly?
Ela pendeu a cabeça para o lado, e o cabelo escuro escorreu por cima do
ombro. Sem fazer nenhuma pausa, perguntou:
— Você está falando dos filmes de ficção científica, quando o vilão se
transforma em uma outra criatura?
— Não, aquilo que a gente aprendeu na escola. Endomorfo, mesomorfo e...
não consigo me lembrar do outro. 32
Molly riu e colocou as mãos na cintura.
— Timothy Hunter. Você aparece aqui na hora do jantar em meio à neve
para me fazer uma pergunta de biologia. Está louco?
Tim enterrou o queixo no peito e olhou para os tênis. Ele sabia que parecia
tonto... um completo idiota. Começou a dar meia-volta para ir embora.
Sentiu a mão de Molly no ombro.
— Não, você não está louco, mas também não está lá muito bem. Dá pra
ver. — Fez um gesto com a cabeça na direção da sala. — Venha, então. Entre
aqui. Não posso deixar você todo triste aí, preocupado com os ectomorfos neste
frio.
Ela deu um passo para o lado para que ele pudesse entrar.
— São os ectomorfos. — Tirou com a mão alguns flocos de neve do ombro
do casaco dele. — Que gozado você não se lembrar deste, Tim. É o que você é.
Naturalmente magro.
Ela avançou pela sala até a cozinha. A família de Molly era grande. Tim não
tinha muita certeza de quantos eram, já que sempre havia algum parente
hospedado com os filhos. Às vezes, os pais de Molly ficavam fora por longos
períodos. Tinha um bebê em um cadeirão: ele reconheceu que era a irmãzinha de
Molly, Krista. Havia meninos sujos, que tinham entre 2 anos e 7 anos de idade
mais ou menos, um gordo de camiseta regata comendo uma tigela de espaguete e
uma mulher magrinha no fogão. A mulher magrinha com aparência triste era a
mãe de Molly, mas o gordo era estranho para Tim.
— Mãe, o Tim está aqui. Será que a gente pode comer no meu quarto? —
perguntou Molly.
— Faça como quiser — respondeu a mãe de Molly. Serviu uma tigela para
Molly e outra para Tim. — Só se lembre de trazer os pratos para baixo. —
Entregou a tigela para Tim. — Que bom ver você por aqui, Timothy. — Fez um
sinal com a cabeça na direção do gordo. — Este aqui é o meu irmão Patrick, tio
da Molly.
O homem fez um aceno de cabeça para cumprimentar Tim, mas não tirou os
olhos do jornal que estava lendo.
— Oi — disse Tim.
— Venha — chamou Molly, impaciente. Foi subindo a escada em direção
ao quarto. Tim foi atrás dela e fechou a porta.
Molly estremeceu.
— Família — disse. — Não dá para viver com ela, não dá para vir ao
mundo sem ela.
— É... — Tim ficou olhando para a tigela de massa e molho. — E apesar de
estar se sentindo vazio por dentro, sabia que não era de fome. Colocou a tigela na
escrivaninha bagunçada de Molly e se sentou no chão, com as costas apoiadas na
cama desfeita.
— Tim? — Molly sentou-se no chão, ao lado dele. — Qual é o problema?
Tem a ver com o que aconteceu na escola outro dia?
Tim olhou para ela de canto de olho.
— Na escola?
— Você sabe. Você saiu correndo do campo daquele jeito, e o treinador 33
Michelson gritando atrás de você. Você se meteu em confusão?
Tim esfregou o rosto. A partida de futebol parecia tão remota, tão sem
importância àquela altura...
— Acho que eu me dei mal, sim. O treinador Michelson ligou para o meu
pai. Quer dizer...
— Timothy Hunter. Pode ir me contando o que está acontecendo com você
agora mesmo — exigiu Molly. — Você veio aqui por algum motivo, e não acho
que foi para comer macarrão enlatado.
Tim ergueu os joelhos e os abraçou. Por onde devia começar? Como é que
ele poderia articular aquelas palavras? Dava para ver que Molly estava
esperando. Precisava descobrir como fazer aquilo com urgência, mas era uma
coisa importante demais. Ainda maior do que todo aquele negócio de magia. Era
assustador demais até para imaginar. Ele precisava dela, mas, para conseguir
ajuda, ia ter que formar frases, e aquilo parecia extremamente difícil. Impossível,
para falar a verdade.
Fechou os olhos. Talvez se fingisse que só estava falando consigo mesmo
fosse mais fácil. Às vezes, estar com Molly era tão confortável quanto falar
consigo mesmo. Ela o refletia, como um espelho, mas com opinião e ponto de
vista próprios. “Tente”, encorajou a si mesmo. “Como Tamlin disse, não deixe de
fazer nada por medo de passar vergonha.” Estava com medo de que sua voz fosse
falhar, que fosse chorar ou gritar. Tinha medo de fazer papel de bobo, mas tinha
que se arriscar a passar pela humilhação para ser capaz de realizar coisas
grandiosas.
“Não que isso fosse algo grandioso.” Mas era uma coisa grande de verdade.
— Tim. — A voz de Molly era gentil, mas insistente. — Você vai se sentir
melhor. Você sabe que sim.
— Eu... eu descobri hoje... — Tim limpou a garganta e começou de novo.
— Tenho motivos para acreditar que o meu pai não é meu pai de verdade —
soltou de uma só vez.
Não conseguia olhar para Molly. Ouviu quando ela respirou fundo, de
surpresa, e depois sentiu a mão dela em sua canela.
— Não é à toa que você está arrasado. Isso é uma coisa importante demais.
Tim olhou para ela.
— Será que eu sou tão idiota assim? Como é que eu nunca percebi?
— A gente acredita no que os pais dizem para a gente — começou Molly.
— As crianças são assim. É por isso que é tão fácil para os adultos mentir para a
gente.
Tim achou que ela parecia triste, como se estivesse confessando que às
vezes acreditava nos pais sabendo que não deveria acreditar.
— Além disso, que tipo de indicação poderia existir? — Molly mostrou-se
solícita. — Como é que você ia saber disso? Ei, nem faz muito tempo que você
descobriu... tipo... os fatos da vida. E antes de você saber qual era toda a biologia
por trás disso, por que você questionaria o fato? — Molly riu. — Então, no final
das contas, era mesmo uma questão de biologia.
Tim sacudiu a cabeça, mas sorriu.
— Acho que eu deveria ter estudado mais, então. 34
— E o que foi que o seu pai disse a respeito de tudo isso?
Tim a olhou de lado.
— Qual deles?
Tim franziu a testa. Tamlin com certeza era uma figura mais animada do
que seu pai, que só bebia cerveja e assistia à televisão. Mas não era
especialmente mais legal. Tim não sabia descrever Tamlin muito bem.
Afinal, de vez em quando o cara se transformava em pássaro. “Quer dizer, o
que isso significa?”
Molly virou-se para o lado e apoiou o corpo sobre o cotovelo.
— Em todo caso, não faz a menor diferença, faz?
Surpreso, Tim perguntou:
— Como assim?
— Bom, no final das contas, você continua sendo você mesmo, não é? Não
importa quem seja o seu pai.
Tim sacudiu a cabeça, mas não respondeu. Ela parecia não compreender que
esse era exatamente o X da questão: se pudesse descobrir quem era realmente o
seu pai, isso daria a Tim pistas a respeito de sua própria identidade. Não daria?
— Se você trouxer esse segredo à tona, talvez seu pai acorde. — Molly se
sentou. — De repente, as coisas entre vocês podem até mudar.
— É disso que eu tenho medo — confessou Tim. — Pode mudar tudo. E se
ele não souber, Molly? — Esse pensamento fez seu coração doer por causa do
pai.
Molly pegou as mãos dele.
— A verdade é sempre melhor. Lembre-se disso.
— Vou tentar. — Tim fez uma pausa. — Você tem certeza de que não
pode...
Molly desceu da cama e empurrou Tim na direção da porta.
— Vá — ordenou. — E me ligue assim que vocês terminarem de conversar.
Tim deixou a tigela cheia de espaguete na pia da cozinha e saiu da casa
dela. Tinha ficado muito frio lá fora e, dependendo do estado em que o pai (o
senhor Hunter) estivesse, ele poderia levar a maior bronca por ter demorado a
voltar para casa e não ter ligado.
“Talvez seja só uma brincadeira sem graça”, Tim ia pensando enquanto
corria para casa. Como é que aquilo podia ser verdade? Como é que Tamlin
podia ser o pai dele, aliás? “Quer dizer, como isso seria possível?”
Tim entrou com tudo em casa, passando rapidamente pelo pai e pela
televisão. Correu até o quarto do pai e revirou as gavetas da cômoda. Precisava
de provas, de evidências, algo que lhe revelasse com toda a certeza quem ele
era... de onde tinha vindo.
— Tim, que bagunça é essa que você está fazendo? — perguntou o senhor
Hunter da porta. Tim nem tinha ouvido quando ele subira a escada.
— Estou procurando — respondeu Tim, folheando alguns papéis e
diplomas de escola.
— Posso saber o quê?
“O que eu estou procurando?” Tim se sentou sobre os calcanhares. Estava
procurando alguma verificação, mas não fazia a menor idéia de como isso seria. 36
Ocorreu-lhe uma possibilidade.
— Fotos suas. De quando você tinha a minha idade. — Talvez assim
encontrasse alguma semelhança.
Seria mais fácil verificar se Tim pudesse se comparar com o pai antes de ele
ter ficado todo emotivo e triste.
O pai entrou no quarto.
— Bom, eu não tenho nenhuma. E, mesmo que tivesse, elas não estariam aí.
Então, por favor... largue isso — ordenou de repente.
Tim olhou para o papel que segurava nas mãos. Parecia ter perturbado o pai.
Devia ser importante.
— Isso? — perguntou. — É só a sua certidão de casamento. Sua e da
mamãe.
Tim olhou o documento com mais atenção. “Por que a minha descoberta
incomodou tanto o meu pai?” Então, reparou em uma coisa que não fazia sentido.
— Aqui diz que vocês se casaram em janeiro. — Tim virou-se para o pai.
— Mas o meu aniversário é em junho.
— É — disse o pai com cuidado. — É isso mesmo.
Tim se levantou.
— Eu sou melhor em matemática do que em biologia. Sei fazer as contas. A
mamãe já estava grávida de mim quando vocês se casaram. — Tim ficou meio
tonto quando teve a sensação de que todo o sangue de seu corpo estava indo para
a cabeça. Os ouvidos latejavam, e ele achou que estava ouvindo o barulho do
mar. Virou-se e saiu correndo do quarto.
— Tim, não vá embora! — o pai saiu gritando atrás dele. — Não é o que
você está pensando! Eu amava a sua mãe. Eu queria me casar com ela. Ela era...
Tim ouviu a voz do pai falhar. Ficou tão chocado que parou no meio da
escada. Virou-se e encarou o pai.
— Continue — disse em voz baixa. — Ela era o quê?
— Ela era maravilhosa. Boa demais para este mundo, era o que eu
costumava pensar. — O senhor Hunter deixou a cabeça cair. — Boa demais para
mim, de qualquer modo. — Olhou para Tim de novo. Remexeu nervosamente
nas chaves que trazia no bolso. Deu um sorriso triste. — O fato de ela ter ficado
grávida, do jeito como eu via as coisas, foi muita sorte. Não tenho certeza se a
sua mãe teria se casado comigo se não se sentisse obrigada.
“Será que ele sabe?” Tim examinou o rosto do pai em busca de resposta e
não achou nada. “Será que ele sabe que eu não sou filho dele? Será que a minha
mãe fez ele acreditar que eu era filho dele para que se casasse com ela?”
— Eu não me pareço com você — Tim acabou dizendo, sem encontrar o
olhar melancólico do pai. — Você já reparou nisso?
A distância entre eles (Tim no meio da escada e o pai parado no corredor)
era preenchida por um silêncio tão frágil que a resposta errada poderia fazer com
que se despedaçasse.
— É — disse o senhor Hunter, bem baixinho. — Mas nunca fez a menor
diferença. — A voz dele ficou mais forte. — Nunca fez a menor diferença para
mim... nunca mesmo.
Tim absorveu aquilo. De certo modo, era um alívio. O pai não tinha sido 37
traído, tinha aceitado as coisas como elas eram. E, no entanto...
Tim achou que sua cabeça ia explodir. Só que outras perguntas tinham
surgido. Uma pergunta em cima da outra. Subiu correndo a escada, passou pelo
pai e bateu a porta do quarto atrás de si.
Tim ficou andando de um lado pro outro naquele pequeno espaço. “Se o seu
pai não é o seu pai de verdade e você só se dá conta disso quando está com 13
anos, bom, então você é um imbecil completo, não é?” Fechou as mãos. Bateu na
cintura com força. “E o que é que eu sei realmente agora? Só sei que o pai que
me criou não é o meu pai de jeito nenhum.”
Parou no meio do quarto e esfregou o rosto, como se aquilo fosse ajudá-lo a
pensar. Sentiu a determinação surgindo em meio à confusão. “Então chegou a
hora de descobrir quem é o meu pai de verdade. Que tipo de pessoa teria feito
isso? Engravidado a minha mãe e saído da vida dela? E também da minha!”
Tim largou o corpo em cima da cadeira da escrivaninha. As mãos
procuraram os objetos que estavam jogados sobre a mesa: uma chave, algumas
moedas, um amuleto.
Tim pegou a chave e ficou brincando com ela nas mãos. Tinha sido Titânia,
a rainha do Mundo das Fadas, que lhe dera aquilo, mas o presente quase custara
sua liberdade. Quando Titânia jogou de repente a chave para ele, Tim esqueceu-
se dos perigos de aceitar um presente de qualquer habitante do Mundo das Fadas
e a pegou. Até ficou animado ao descobrir que aquela chave abria a porta de
outros mundos. Mas ficou menos animado quando soube que, de acordo com as
regras do Mundo das Fadas, o fato de a pegar significava que ele seria obrigado a
ficar lá para servir de pajem à rainha. No entanto, Tim ofereceu a Titânia, em
troca, seu Ovo Mundano (um presente de valor igual ou maior), e a chave passou
a ser dele por direito, sem nenhuma obrigação atrelada.
Enfiou a chave no bolso. Então pegou o amuleto.
“Talvez meu pai não tenha fugido. Talvez ele tenha saído voando.”
Tim segurou o amuleto que Tamlin lhe dera e ficou olhando fixamente para
ele. Lembrou-se das palavras de Tamlin.
— Necessidade, foi o que você disse — falou com a Pedra da Abertura. —
A magia responde à necessidade. Tudo bem. Eu preciso saber. Eu preciso saber
agora!
Capítulo Sete
sempre, mas olhe só para ele agora. Não permita que ele o engane. Não é mais
um homem que sente prazer em usar as asas de um falcão. É um falcão que acha
útil fingir que é homem. O que você tem a dizer sobre isso, meu senhor de
rapina?
“Pronto. Isso deve despertar alguma reação nele.” Sua dor fazia com que
sentisse uma vontade desesperada de feri-lo. Por que não estava dando certo?
— Digo que você mascara seus pensamentos com suas palavras — rebateu
Tamlin —, da mesma forma que escondeu a verdade sobre este jardim com
feitiços de glamour.
Os olhos de Titânia brilharam de fúria, mas ela ficou satisfeita ao ver um
toque de raiva nos olhos castanhos de Tamlin. Ele deu um passo para mais perto
da rainha.
— Por que não colhe um pêssego daquela linda árvore, minha senhora? —
Apontou para uma das poucas árvores no pomar que ainda não tinham sido
tragadas pela seca. Pelo tom de Tamlin, Titânia sabia que os frutos da árvore não
passavam de ilusão. — Dê uma boa mordida — caçoou.
Depois de ter quebrado o escudo implacável dele, a máscara de pedra que
carregava, Titânia sabia que passariam a conversar com sinceridade. Ela não
queria nenhuma testemunha.
— Amadan, deixe-nos.
O esvoaçante pairou no ar por um instante, os olhos apertados. Titânia
percebeu que ele tinha ficado ofendido por ter sido dispensado. “Ele está mesmo
ficando arrogante demais, a ponto de ameaçar a segurança”, Titânia observou.
Tinha confiado nele por muito tempo, com muita freqüência e de maneira muito
indiscriminada, principalmente depois que ela e Tamlin tinham se afastado.
— Vá — disse a Amadan.
Ele fez uma mesura suspenso no ar.
— Pois não, minha senhora. O que a agrada, agrada a mim também.
Titânia lutou contra o impulso de dar um tapa em Amadan por ser tão
dissimulado. Será que a criatura achava que ela não percebia suas intenções? Mas
esse problema teria que esperar; havia assuntos mais importantes a tratar.
Ficou observando enquanto Amadan voava para longe. Estava de costas
para Tamlin; não queria que ele visse como estava vulnerável, e não tinha certeza
se conseguiria disfarçar.
— Por que, Tamlin? — perguntou com um pouco mais de lamento na voz
do que gostaria. — Por que você transformou um lugar tão bom em um inferno?
— Tentava manter sua tristeza profunda afastada da voz, mas não conseguia.
— Senhora, não fui eu quem criou esta desolação.
Ela se virou.
— Não acredito em você.
— Este reino está se deteriorando há séculos! — gritou Tamlin,
repentinamente furioso. — Você ainda não tinha percebido porque se recusou
ver. Eu só abri os seus olhos. 40
Ele a segurou pelos braços. Titânia ficou assustada ao ver a paixão e a dor
no rosto dele. Ficou chocada ao perceber que ele estava tão destruído por causa
daquilo quanto ela.
— Isso não importa agora. — Ela não queria ficar remoendo o passado.
Precisava que ele entendesse o medo que ela sentia naquele momento, a crise em
andamento.
— Ouça bem — disse ela, dando um passo na direção dele. — Eu já disse:
desfiz o que tinha feito. Você está entendendo? Eu disse que isso não mudou
nada! Descobri que outros encantos estão sufocando o nosso mundo, e muito.
Olhou para os pés e sacudiu a cabeça, respondendo à pergunta silenciosa de
Tamlin.
— Eu não sei que encantos são esses. Mas são fortes. Muito fortes. Não
posso curar o abismo que criei entre o mundo dos homens e o nosso. Alguém não
está permitindo que isso aconteça.
A rainha ficou examinando o rosto do falcoeiro, esperando a resposta. Ele
precisava ajudá-la, precisava ajudar a todos, ajudar a recuperar o Mundo das
Fadas. Mas será que conseguiria? Será que era capaz?
Tamlin assentiu com a cabeça, como se estivesse examinando a questão
como um todo.
— Precisamos achar um outro tipo de esperança — disse, por fim.
Capítulo Oito
Ele deu um passo e ouviu um estalo. Olhou para baixo e percebeu que
estava pisando em cima de uma pilha de esqueletos. Levantou o pé e pisou com
cuidado alguns centímetros à frente, no espaço livre mais próximo; em seguida,
levou o outro pé, com cuidado.
Tim se esforçou ao máximo para não começar a tremer. Caveiras com olhos
esbugalhados e vazios o encaravam, e todo o pátio estava lotado de caixas
torácicas, ossos de pernas e esqueletos de criaturas que ele não reconhecia.
— Que beleza — murmurou irônico. — Caí na cidade dos ossos.
Olhou para a pequena pilha ao seu lado e constatou horrorizado que os
ossos tinham várias marcas de dentadas. Aquelas criaturas não tinham
simplesmente morrido ali: tinham servido de refeição para alguém (ou para
alguma coisa).
“Acho que não é aqui que eu quero estar”, Tim resolveu. Examinou o muro.
“Não parece ser muito difícil. Não deve ser pior do que escalar o muro do
estacionamento.” Mas, em Londres, perto de casa, o muro era feito para que ele
não pudesse entrar. Com o coração apertado, Tim sentia que aquele muro tinha
sido feito para não deixá-lo sair.
Tim escolheu um caminho para subir no muro, tentando não pisar em cima
de outros ossos espalhados, o que era bem difícil. Cada vez que ouvia um estalo,
encolhia-se todo.
Esticou as mãos o máximo que conseguia e enfiou os dedos entre os tijolos
que se esfarelavam. Com um grunhido, deu impulso para cima. Apalpando o
muro, encontrou um lugar para se segurar, então dobrou a perna até achar um
lugar para apoiar o pé. Esticou a perna e fez força com os braços, avançando
mais meio metro muro acima.
“É isso aí”, pensou consigo mesmo. “Moleza.”
Repetiu o procedimento: apoio para a mão, apoio para o pé, grunhido,
subida. Às vezes, avançava só alguns centímetros. Outras vezes, conseguia uma
distância maior. Em todas, arranhava os nós dos dedos, os joelhos e o rosto.
O suor lhe escorria pelas costas. “Já devo estar chegando ao topo”, pensou.
Deu uma olhada para cima. Piscou várias vezes, para ter certeza de que seus
olhos não lhe pregavam uma peça.
“Como isso é possível?” O topo do muro parecia tão distante quanto no
início de seus esforços.
“Não parecia ser um muro tão alto assim lá do chão”, pensou, rangendo os
dentes e esticando o braço mais uma vez. “Devia ter uns cinco ou seis metros, e
um monte de rachaduras e saliências para eu me apoiar.”
Soltou um rugido. Seus ombros ardiam de tanto esforço, e os braços
estavam moles por causa da exaustão dos músculos.
“Parecia uma escalada bem fácil. Só tem um problema. Nunca dá para
chegar ao topo.”
— Ah-ham — Tim ouviu alguém pigarrear lá embaixo. — Atrevo-me a
sugerir que você não está familiarizado com o paradoxo de Zenão. Se estivesse, 43
escolheria um objetivo mais útil pelo qual se esforçar.
Tim torceu o pescoço para olhar para baixo. Um homem de sobretudo de
veludo, camisa de babados e calça pelo joelho olhava para ele. O cabelo ruivo e
ensebado caía da testa larga até a gola alta e engomada. Da altura em que se
encontrava, no meio do muro, Tim não conseguia distinguir bem o rosto do
homem, mas dava para perceber que tinha alguma coisa esquisita nele.
— Desça aqui, meu menino. Vamos dar início à sua educação com um
aperitivo do pensamento clássico.
A voz do homem era aguda, como se estivesse choramingando, ou como se
o nariz dele fosse pequeno demais. Ele também segurava um chicote de cavalo,
mas não estava vestido para montar. “Isso é muito esquisito”, Tim pensou.
— Acho... acho melhor não — respondeu. Olhou para os tijolos e deu
prosseguimento a seu esforço de alcançar o topo do muro.
O homem lá embaixo pigarreou de novo.
— Ah-ham. Bom, então vamos dar início a seus estudos agora mesmo. O
paradoxo, da maneira como é tradicionalmente apresentado, envolve Aquiles,
com seu pé manco, e uma tartaruga. No entanto, é perfeitamente possível ilustrar
a conclusão de Zenão usando um garoto e um muro. Você está ouvindo, menino?
De repente, o homem estava acima dele, em pé no topo do muro. Tim ficou
tão assustado que quase caiu. “Como foi que ele fez isso?”
O homem se ajoelhou, usando o chicote para se equilibrar.
— Nosso garoto sobe até o meio do muro. Ansioso para alcançar a
liberdade, continua subindo, e cobre metade da distância restante. Ainda falta um
trecho entre o garoto e seu objetivo, de modo que o garoto continua subindo sem
parar, apesar de seus braços estarem ficando cansados.
O homem parecia não ter pressa nenhuma para chegar ao fim da história. Os
dedos de Tim se agarravam desesperadamente aos tijolos ásperos. “Por que esse
cara esquisitão não anda logo e acaba essa palestra idiota? Talvez esteja
demorando tanto na esperança de eu perder o equilíbrio e cair lá embaixo”, Tim
desconfiou.
— O garoto olha para cima — prosseguiu o homem, com sua voz chata e
fininha — e, sendo ele um rapaz bem inteligente, finalmente acaba percebendo
que sempre cobre apenas metade da distância. Metade, depois metade da metade,
e depois metade da metade da metade. Ele sempre está a uma metade da
liberdade. Aquiles nunca consegue ultrapassar a tartaruga. O garoto nunca
consegue subir no muro. Creio que você esteja prestes a cair, menino — o
homem disse, curvando-se para a frente de repente. — Talvez seja melhor você
segurar a minha mão.
— Só porque você quer! — exclamou Tim. Ao desviar da mão estendida e
aberta do homem, Tim perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Para sua surpresa, o
homem estava lá para recebê-lo.
Tim ficou de pé, todo desajeitado: não queria que aquele imbecil visse que
estava atrapalhado. Limpando o jeans, tentou retomar a compostura.
— Eu conheço algumas regras — informou ao esquisitão. — Não vou
aceitar nenhum favor seu. Nem presentes. Nem nada.
“Pronto”, Tim pensou, apertando os dentes, “isso deve fazer com que esse 44
cara fique na dele. Ele precisa saber quem é quem. Quer dizer, ele não está
tratando com qualquer garoto de 13 anos de Londres. Não. Não eu.”
Mas o homem só riu.
— Você ficou tempo demais no sol, meu garoto. O calor queimou o seu
cérebro. Você está precisando de uma sombrinha. Agora vamos lá para dentro.
Vamos. Eu insisto.
Tim detestava quando adultos falavam com ele daquele jeito.
— Eu não sou seu garoto — gritou. Chutou um pouco de poeira e depois
alguns ossos na direção do homem, para se garantir. — E não vou entrar na sua...
naquele lugar, seja lá de quem for. Eu não queria estar aqui. E não pretendo ficar
muito tempo.
O homem sacudiu a cabeça e colocou os dedos compridos no meio da testa,
como se estivesse refletindo profundamente.
— Deixe-me adivinhar. Você queria ir para o Mundo das Fadas. Só que
acabou caindo aqui. E, por isso, está decepcionado e, portanto, assumiu esse
comportamento insuportável.
O homem ergueu as sobrancelhas, como se estivesse esperando que Tim
confirmasse sua teoria.
— Bem, menino. Isto aqui é o Mundo das Fadas. — O homem esticou os
braços em um gesto abrangente. — Pelo menos a parte que interessa. Tudo o que
é real. Atrás desses muros — apontou o chicote para o muro do qual Tim acabara
de cair —, é tudo ilusão. Considere-se um sujeito de sorte por ter encontrado este
lugar. Um oásis de racionalidade no meio de um deserto de superstição. —
Ajeitou o chicote embaixo do braço.
Tim estreitou os olhos. Aquele lugar não se parecia nem um pouco com o
Mundo das Fadas. Então, lembrou-se da extensão desértica que vira com Tamlin.
Também não tinha acreditado que aquele lugar tão desolado fazia parte do
Mundo das Fadas. Aquele homem podia muito bem estar dizendo a verdade.
— Agora devemos incluir seu nome no registro-mestre — disse o homem.
— Como é mesmo o seu nome?
Tim deu uma risada jocosa. Aquele cara achava que ele era um completo
imbecil? Ele não ia cair no truque mais velho de todos. Tim chutou um fêmur
grande na direção do homem.
— Osso — respondeu. — João do Osso. E o seu?
— Ahh. Você é um garoto esperto, então?
Tim reparou que o sorriso do homem estava apertado de raiva. Também
percebeu que havia algo de muito errado com a boca do homem. Deu um passo à
frente.
O nariz de Tim se franziu. “Que fedor. Esse maluco bem que podia usar um
anti-séptico bucal extra-forte.” O hálito dele tinha um cheiro podre de sangue
velho e carne em decomposição.
— Por mais que eu aprecie a sua esperteza, detesto impasses — disse o
homem. — Atrasos, digamos assim. Se eu for mais direto, talvez possamos nos
entender com mais rapidez. — Juntou os dedos levemente e formou um pequeno
triângulo com as mãos. Lambeu os lábios. — Proponho um jogo.
— Um jogo — repetiu Tim. Ele não gostou de como aquilo foi dito. 45
Também não fazia idéia de como fugir daquele lugar, e teve que ouvir o que o
cara tinha a dizer.
— Isso mesmo. E, para deixar o jogo mais interessante, pelo que devemos
jogar? Quais serão as apostas? — Um sorrisinho vagaroso tentou tomar conta do
rosto do homem, mas era como se os lábios dele estivessem emperrados. Eles só
se moldaram em um meio sorriso. — Ahhh. Eu sei. Eu sei o que pode servir de
tentação para um garoto inteligente. Eu posso lhe contar quem é o seu pai.
Tim sentiu o couro cabeludo formigar. Como aquele homem podia conhecer
a razão que o levara ao Mundo das Fadas? “Será que ele consegue ler a minha
mente?”
— Isso mesmo. Se você me superar no meu jogo, eu vou lhe contar a
respeito do seu pai, menino.
Tim apertou os olhos.
— Não acredito em você.
— Não? Mas essa é uma pergunta cuja resposta você adoraria saber. Não
tente negar.
Tim engoliu em seco. Não dava para retrucar de maneira inteligente nem
fazer um blefe decente.
— E pense bem nisto — prosseguiu o homem. — Como é que eu ia saber a
pergunta se eu não conhecesse a resposta?
Tim precisou reconhecer que existia algum tipo de lógica distorcida naquele
argumento.
— E se eu perder? — perguntou.
— Se você perder, vai aceitar a minha tutelagem. Vai ser meu aluno. E eu
vou libertá-lo de todas as suas ilusões.
Tim olhou ao redor, para o pátio, para os ossos apodrecidos e quebrados.
Juntou as evidências com o odor inconfundível que emanava do homem.
— Isto é, você vai me devorar...
O homem nem parecia se incomodar por Tim ter deduzido aquilo.
— No final das contas, vou acabar devorando, sim — disse como quem não
quer nada. — Mas você nem vai ligar quando essa hora chegar. Você não vai
ligar nem um pouquinho. — O homem estalou os dedos.
“Caramba”, Tim pensou, “esse cara deve ser daqueles que gostam de raspar
as unhas na lousa”.
— Percebe, eu vou consumir toda a sua magia antes de encostar na sua
carne. Você vai se surpreender ao descobrir que a carne passa a ser algo de
pouquíssima importância quando a alma já foi dilacerada.
Tim engoliu em seco, bem fundo, para impedir que a bile amarga subisse do
estômago para a garganta. Que tipo de monstro seria aquele parado à sua frente?
O homem se ajoelhou e pegou dois pequenos esqueletos. Tim achou que
podiam ter pertencido a esvoaçantes, as criaturinhas lindas e graciosas que ele
tinha visto no palácio da rainha. Manuseando-os com uma delicadeza
surpreendente, o homem ajeitou os ossos para que parassem em pé no meio da
sujeira, posicionados como bonecos macabros. Sem carne. Só ossos.
Tim olhou para o muro mais uma vez. Depois, para a mansão. Depois, para 46
o homem. Que escolha ele tinha?
— Tudo bem — concordou.
“Além do mais”, pensou, “pode ser que eu ganhe”. Em todo caso, ia dar o
melhor de si. O homem voltou a ficar de pé.
— Bravo! — disse. Bateu as mãos tão de leve que nem fez barulho. — Fico
contente por sermos capazes de resolver nossas diferenças de maneira tão
civilizada. Agora temos mundo e tempo suficientes para nos conhecermos
melhor, como dizia o poeta.
Tim se encolheu quando o homem colocou a mão em seu ombro. Tentou
tirá-la dali, mas ele estava segurando bem firme.
— Eu gostaria de explicar a você o axioma que governa a minha vida. — O
homem conduziu Tim na direção da mansão agourenta. — Aqui está o centro de
tudo o que eu faço. Fronti nulla fides, meu saboroso garoto. — Passou o braço
pela frente do rosto, cobrindo a boca, e esfregou os dedos nos lábios como se
estivesse pensando profundamente. Quando abaixou a mão, Tim ofegou. O
homem tinha na boca três fileiras de dentes afiados.
— Não confie nas aparências — declarou o homem.
“O que será esse cara?”, Tim pensou. Ficou olhando para as fileiras de
dentes, que se estendiam de uma orelha à outra, como se as mandíbulas do
homem pudessem se desconjuntar e abrir o bastante para engolir Tim por inteiro.
No meio, onde geralmente ficava a boca dos seres humanos, havia mais duas
fileiras de dentes, uma imediatamente atrás da outra. E todos os dentes pareciam
afiados como navalhas.
O homem caminhou na direção da mansão em ruínas, arrastando Tim
consigo.
— Como você terá a oportunidade de ver, eu tenho uma vocação —
explicou —, um objetivo bastante singular e satisfatório. Estou simplificando o
mundo.
Tinham chegado à soleira da enorme casa. O coração de Tim batia forte,
mas ele sabia que não havia como voltar atrás. O velho Dentuço se assegurara
daquilo. A única esperança de sobrevivência de Tim era, de algum modo, vencer
a criatura.
A porta se abriu. Tim entrou e ouviu o homem trancar a porta atrás dele. A
primeira coisa que Tim percebeu foi o cheiro de morte e de algum produto
químico, que fez com que se lembrasse do laboratório de ciências da escola.
Tim estava em um corredor escuro e cavernoso. Demorou um minuto até
que seus olhos se ajustassem à luz. Quando isso aconteceu, ficou boquiaberto.
Diante dele havia fileiras de vitrines, cada uma com um animal surpreendente
dentro, como se fosse um museu. Havia também criaturas empalhadas, umas
colocadas sobre pedestais, outras presas a quadros de exposição. Todas tinham
um cartão de identificação, apresentando seu número de espécime.
— Estão todos... estão todos mortos — constatou Tim.
— Estão? — perguntou o homem. — Como é que você pode dizer que uma
criatura está morta se nem foi provado que ela algum dia viveu?
Tim deu meia-volta e encarou o homem perverso. 47
— Por que você fez isso com eles?
O homem não ficou nem um pouco perturbado. Na verdade, parecia estar
gostando do ataque de Tim.
Tamlin voava em círculos sobre o Mundo das Fadas. Viu outro lugar morto.
Outra lenda engolida pelo deserto. “Será que aqui era Arraune, onde as mulheres
do lago teciam água e suspiros em seda azul esverdeada? Ou seria Tellis, onde as
esperanças perdidas perambulavam pelas ruas, implorando aos estranhos que as
levassem com eles? Não dá para saber. Alguma coisa engoliu o coração deste
lugar. A vida dele se esvaiu.” 48
Em sua viagem triste e cansativa, Tamlin via terras se desintegrando por
todos os cantos. Estavam sumindo. “O Mundo das Fadas não é nem sombra do
que era quando seus portões se abriram para mim pela primeira vez”, observou.
49
Capítulo Nove
“Que tipo de maluco construiria uma casa dessas?” Tim tinha acabado de
chegar ao fim de mais um corredor sem saída, que levava a lugar nenhum. Só
uma parede sem nada. Deu meia-volta e retornou à passagem principal. O tapete
macio e bordado a seus pés e as fileiras de candelabros sobre sua cabeça não
faziam nada para disfarçar o fato de que a casa era uma armadilha. Pura e
simplesmente.
Tim lembrou-se de outra questão de biologia. Tinha acabado de cair na
prova sobre o comportamento animal. A questão era a seguinte: “Nem todos os
carnívoros são _________, mas todos os _________ são carnívoros”. A tarefa
era preencher os espaços, e tinha sido fácil. A resposta era predadores.
“Predadores não querem simplesmente matar suas presas e devorá-las”, Tim
lembrou. “Assim seria fácil demais. Os predadores gostam de perseguir e de
observar sua refeição. Para o predador, isso é um grande jogo. Um jogo. E foi
exatamente isso que esse cara sugeriu.” Tim não teve dúvida de que aquela casa
era o palácio dos sonhos de qualquer predador.
Nenhuma porta tinha tranca, portanto não dava para se esconder atrás de
alguma delas. Na cozinha, não havia nenhuma faca por perto para se defender.
“Não que eu tenha encontrado a cozinha. Na verdade, esse louco provavelmente
come tudo cru mesmo.” Foi o que percebeu enquanto percorria os longos
corredores e espiava através de entradas em forma de arco.
Tim se viu de volta à porta da frente. Cocou a cabeça. A casa era um
labirinto, com salas que levavam a corredores que voltavam para salas. Tudo era
retorcido e se abria onde não devia. Ele não sabia muito bem como tinha voltado
ao lugar de onde saíra. Ficou parado, com as mãos na cintura, tentando
compreender onde estava.
À esquerda, do outro lado da porta dupla e pesada, Tim ouvia o som alegre
de uma flauta. O esquisitão não estava brincando. Ele gostava mesmo de música.
E nem era tão ruim assim. “Aliás, ele toca de maneira fenomenal, levando em
conta aqueles dentes.” Se tivesse uma boca como aquela, Tim nunca teria
escolhido um instrumento de sopro para tocar.
À sua frente, a sala se abria para a nojenta área de exposição, cheia de
caixas de vidro, pedestais e criaturas tristes empalhadas. Tim tentou não olhar
nenhuma delas nos olhos. O teto era bem alto naquela área, e havia pequenos
balcões de ambos os lados. “A escada em espiral do outro lado da sala deve dar
acesso àquele mezanino”, Tim deduziu.
À direita estava a ampla escadaria de mármore que conduzia aos andares
superiores. Tim gostaria de ter prestado mais atenção na disposição da casa
quando estava do lado de fora. Lembrou-se dos torreões com janelas e... 50
Janelas! Talvez ele pudesse usar a pedra que Tamlin lhe dera para quebrar o
vidro e fugir. Mas ele podia simplesmente cair de novo no pátio com o muro que
não parava de crescer, embora preferisse ficar do lado de fora a continuar preso
ali.
Tim já tinha tentado desejar sair dali com a pedra, mas não tinha acontecido
nada. O amuleto nem tinha a mesma aparência dentro daquela casa horrorosa.
Tinha perdido o lustro e o brilho, parecia uma pedra qualquer. Era como se a
mansão ou aquele homem tivesse anulado a magia da pedra.
“Mas uma pedra é sempre uma pedra.” Tim saiu correndo em direção às
cortinas de brocado que bloqueavam a luz. Puxou-as com brutalidade para o
lado.
Seus ombros caíram. As janelas tinham grades, e pareciam ter uma malha
de aço incorporada a elas.
— Que burrice. — Tim deu uma bronca em si mesmo. — Esse cara joga
este jogo há anos... talvez séculos. Você achou mesmo que seria tão simples
assim?
A frustração tomou conta dele. Afastou-se das janelas com os punhos
fechados, e quando cruzou a passagem em forma de arco, deu um soco no
batente com tudo.
Crrrréééééc.
Tim arregalou os olhos de surpresa quando viu um painel de madeira se
abrir na parede ao lado da passagem. Ficou olhando para o punho e depois para a
abertura escura. Uma passagem secreta. “E parece pequena demais para aquele
esquisitão entrar. Excelente!”
Tim ergueu o corpo até a pequena abertura e fechou a portinhola atrás de si.
Havia poeira por todo lado, e ele tossiu na manga, tentando abafar o som. Agora
que tinha achado um lugar para se esconder, não queria entregar os pontos só por
causa dos ácaros!
Os olhos de Tim se ajustaram à semi-escuridão do espaço apertado, e ele
viu que era, na verdade, o início de um túnel que se ramificava em todas as
direções. Começou a engatinhar, com a intenção de se afastar o máximo possível
da entrada. “Apesar de ele não caber muito bem aqui”, Tim reconheceu, “aquele
cara deve saber da existência desta passagem secreta”.
Tim seguiu pela primeira ramificação, e seu coração se apertou. Ela se abria
exatamente no grande salão principal. Não havia porta secreta para protegê-lo e a
abertura estava escondida atrás de uma vitrine de exposição. Tim notou que
estava exatamente na altura do olhar do louco. Se o homem estivesse em pé em
qualquer lugar do salão, o teria visto na mesma hora.
“Talvez eu possa entrar mais para o fundo do túnel”, pensou, voltando a
engatinhar. Chegou a uma curva e deu de frente para um lance de escada. Ali
quase dava para ficar em pé, então se abaixou um pouco e começou a subir.
Depois de voltas e mais voltas, Tim já não sabia se estava na parte da frente ou
de trás da casa. Não fazia diferença em que lugar estava, desde que o Dentuço
não o encontrasse.
Chegou a um patamar e se apoiou na parede, tentando compreender onde 51
estava.
— Ooops!
Caiu com tudo para trás, de costas.
— Ai! — reclamou.
Sentou-se e cruzou as pernas. “Não era uma parede”, percebeu. “Era só uma
tela pintada para parecer uma. Espertinho.”
“Aqui tem todo tipo de lugar para se esconder”, Tim observou, quando
voltou a engatinhar. “E também é um bom lugar para alguém vir dar um susto em
você enquanto estiver escondido.”
Tim achou uma sala que parecia promissora. Era cheia de frestas, brechas e
porcarias, como baús e montes de tecido. Ele podia se esconder em um baú ou se
cobrir com um dos panos para fingir que fazia parte da mobília.
Tim foi rapidamente até o baú. Estava estendendo a mão para abri-lo
quando sentiu um arrepio na nuca. Tinha alguma coisa errada. Olhou para trás e
engoliu em seco. Uma fileira de facas afiadas saltava da parede atrás dele, com as
pontas em sua direção. Ele estava bem na linha de fogo. Olhou novamente para o
baú.
— Aposto que se eu... — murmurou. Precavido, afastou-se do baú.
Encontrou um atiçador de brasas ao lado da enorme lareira e o apanhou. Deitou-
se no chão o mais longe possível do baú, mas de modo que pudesse alcançá-lo
com o ferro. Segurou o atiçador com as duas mãos e levantou a tampa do baú
com ele.
Twik! Twik! Twik!
As facas voaram pela sala. Sem o corpo de Tim para apará-las, foram se
fincar na tapeçaria pendurada na parede do outro lado.
O atiçador caiu no chão com um ruído. O baú era uma armadilha. Se Tim o
tivesse aberto de frente, teria se transformado em uma almofadinha de agulhas.
Dava para sentir o suor se formando na testa. Precisava ter mais cuidado: cada
sala podia ter sua própria armadilha mortal.
Elevou o corpo até se sentar e então largou o peso sobre os calcanhares.
— Todas essas salas e corredores e altos e baixos dão a impressão de que a
gente vai ficar a salvo — murmurou —, mas só até a gente entrar lá e descobrir
que é uma armadilha.
Ele se sentia exausto. Como poderia sobreviver àquele jogo? O que mais
estaria à espreita, pronto para empalá-lo, sufocá-lo ou mantê-lo prisioneiro até
que aquele homem aparecesse? Respirou fundo e sacudiu a cabeça.
— Não pense nisso — disse a si mesmo. — Ficar vivo. É nisso que você
precisa pensar agora.
Ficou em pé e foi até as facas, que estavam enfiadas na parede até o cabo.
Será que ele ousaria encostar nelas? Pegaria uma para servir como arma? Até
onde sabia, podiam muito bem estar embebidas em veneno. Resolveu arriscar e
fechou os dedos em volta do cabo preto esculpido da faca à sua frente e puxou.
A faca nem se mexeu. Tentou de novo. A mesma coisa. Era como se a
lâmina estivesse enfiada em cimento endurecido.
— Bom, você não serve para nada — disse à parede de facas.
“Continue jogando”, lembrou a si mesmo. “Se você se concentrar em ficar 52
inteiro, todo o resto vai se resolver sozinho. Pelo menos é assim que funciona nos
contos de fadas”, pensou.
Tim retomou sua busca por um lugar para se esconder, ou ao menos para
encontrar uma maneira de estar sempre um passo à frente de seu anfitrião
predatório. Reparou que o som da flauta tinha cessado, mas não tinha certeza se
era por estar fora do alcance do som ou porque o homem tinha começado a caçá-
lo.
“Contos de fadas. Porcarias de contos de fadas.” Tim se ergueu até uma
pequena abertura na parede. Como era de se esperar, conduzia a outro túnel. Este
estava bem empoeirado, como se não fosse usado havia muito tempo. Aquilo
pareceu um bom sinal para Tim.
“De certo modo, os monstros nunca parecem tão reais quanto os príncipes e
as princesas”, Tim pensou. “Parece que os ogros e os gigantes nunca têm a
mínima chance. Até os alfaiatezinhos corajosos e as órfãs fazem picadinho deles.
E vivem felizes para sempre. É sempre assim que as histórias acabam.” Bom, só
que agora ele estava em um conto de fadas da vida real, completo, com seu
próprio monstro, e assim percebeu o quanto aquelas histórias eram improváveis.
“Provavelmente porque são contadas por adultos. Mais mentiras...”
Tim viu uma claridade no fim do túnel em que estava. Será que podia
mesmo ser uma saída? Já que não havia pegadas na passagem estreita, e havia
um monte de teias de aranha, talvez fosse uma saída de que o homem tinha se
esquecido. Tim tomou velocidade, batendo os joelhos e a cabeça no percurso até
o fim do túnel.
— Uau! — exclamou.
O túnel se abria sobre uma plataforma estreita. Se Tim tivesse ido mais
rápido, teria caído direto para o outro lado. Era uma queda livre de uns dez
metros.
Olhou para baixo e viu um pátio cheio de ruínas e ossos. No topo de uma
pilha de esqueletos, havia uma menininha, certamente uma vítima recente. Ainda
estava usando um lindo vestido esvoaçante e trazia uma tiara na cabeça. Parecia
ser uma princesinha, ou uma menina que estava brincando de se fantasiar. O
corpo estava retorcido e quebrado. Ele não sabia dizer se aquele homem
horroroso a tinha matado ou se ela tinha saltado para a morte do exato lugar onde
ele se encontrava.
Tim encheu-se de horror e de tristeza profunda pela menininha. Começou a
engasgar. “Talvez ela fosse inteligente e corajosa. Talvez tudo tivesse dado certo
para ela se estivesse numa historinha de ninar. Mas não estava. E eu também não
estou. Então, preciso me recompor.”
“Isto aqui está indo de mal a pior para pior ainda.” Tim rangeu os dentes.
Estava determinado a não permitir que aquele homem bestial o superasse.
— Eu não vou desistir! — declarou. Sua voz ecoou pelo pátio. —
Simplesmente, não vou desistir! Eu vou ganhar de você por mim, por aquela
menininha por esta terra... seja ela o Mundo das Fadas ou não!
Tim tentou se acalmar, recuou e começou a procurar outro lugar para se
esconder. Por que estes túneis são assim tão baixos?, Tim se perguntou. “Será 53
que o Cara Arrepiante cabe aqui? Fico imaginando se aquele sujeito anda muito
de quatro. Acho que ele é maluco o bastante para isso.” A mente dele divagava
para distraí-lo da visão terrível da menina.
“Ou talvez...” Tim parou de engatinhar. Ficou paralisado com uma mão
longe do chão e um joelho erguido. “Ou talvez seja por que ele não ande sempre
de pé. Talvez ele não tenha sempre duas pernas. Ele pode se transformar em
alguma espécie de animal quando está em casa.”
Tim pousou a mão e o joelho no chão. Todos os músculos de seu corpo
doíam por causa de sua jornada desajeitada pelas idas e vindas naquela mansão
bizarra. Continuava sendo perseguido e ainda não tinha encontrado nenhum lugar
para se esconder.
Uma nova idéia ocorreu a Tim. Talvez se esconder não fosse a melhor
opção. “Os outros... as vítimas anteriores”, raciocinou, “parece que todos
tentaram se esconder e olhe só o que aconteceu”.
Mas ele precisava fazer alguma coisa. Não podia ficar lá simplesmente
esperando para ser transformado em petisco. Mas o quê?
Tim chegou a uma passagem arqueada para um corredor comprido com
chão de mármore e várias portas fechadas.
Ficou em pé e tentou abrir com cuidado a porta mais próxima dele. Estava
trancada. Surpreso, experimentou a maçaneta enfeitada mais uma vez. Em todas
as suas explorações, ainda não tinha encontrado nenhuma porta trancada. Pelo
menos até aquele momento.
“Isto é mesmo interessante...”
Capítulo Dez
Se a porta estava trancada, então era óbvio que o dono da casa não queria
que ninguém entrasse ali. Por isso mesmo, era o lugar onde Tim queria estar.
Mas como ele iria entrar? Tim enfiou as mãos no bolso enquanto pensava
sobre o assunto. Apalpou a pedra que Tamlin lhe dera. Como não tinha
funcionado antes, ele não achava que fosse voltar a funcionar. Não naquela
situação nefasta.
Os dedos da outra mão se fecharam em volta de alguma coisa dura. Tirou o
objeto do bolso.
Tim ficou olhando para a chave antiquada. Franziu a testa. Ele tinha
esquecido completamente que a levara consigo.
Aquela chave quase tinha custado sua liberdade... talvez agora pudesse
salvá-lo. 54
Esperava que funcionasse. Não achava que haveria um outro mundo atrás
daquela porta... apenas segurança ou informação. Chegou perto da porta e
colocou a pesada chave na fechadura, com grande esperança de que seu plano
funcionasse. Ouviu um clique prazeroso, e a porta se abriu.
Tim estava em uma enorme biblioteca. Havia mais livros naquela sala do
que Tim jamais vira em qualquer outro lugar. Mais do que na escola, mais do que
na livraria. Até mais do que na biblioteca que ficava a três quadras da casa de
Molly. Guardou a chave de novo no bolso e deu mais um passo para dentro.
As prateleiras iam do chão ao teto, e havia fileiras e mais fileiras delas. A
maioria dos livros parecia velha e empoeirada, mas também havia alguns novos.
Tim deu uma volta na primeira estante, na esperança de ter uma noção do
tamanho da sala. Na parede havia mais daquelas vitrines horrendas. Dessa vez,
Tim se forçou a olhar. Sabia que sua vida dependia de descobrir o máximo
possível sobre o modo de agir do Dentuço.
A primeira vitrine abrigava um animal grande, uma espécie de cruzamento
entre um leão e uma águia. O cartão de identificação pendurado ao lado dizia:
GRIFO. ESPÉCIME NÚMERO 21. Tim caminhou mais um pouco junto à
parede e deparou com um pedestal, onde havia outro animal que também parecia
ser em parte leão. Só que esse tinha cabeça de mulher, e Tim lembrou-se de uma
civilização antiga da aula de história. Era uma esfinge. Lembrou-se de ter
aprendido a respeito da esfinge gigante que ainda existia no Egito, e que essa era
a versão grande de milhares de estatuazinhas daquela criatura encontradas por
todo o país.
“Talvez o motivo de haver tantas estátuas dela seja porque ela existiu no
passado”, Tim pensou. “E agora não sobrou nenhuma, provavelmente por causa
do projeto de exterminação desse cara. Como foi mesmo que ele disse? Ah, já
sei.”
— Simplificar o mundo — balbuciou Tim.
Chegou a uma plataforma baixa. Não havia nada sobre ela.
— Que estranho.
Olhou para a etiqueta na parede e seu coração deu um pulo. HABITANTE
DO MUNDO DAS FADAS, era o que dizia.
Até então, Tim não tinha visto nada preparado para exibir humanos.
— Claro, dããã — Tim caçoou de si mesmo. — A gente não exibe aquilo
que come.
Espiou uma fileira de estantes e percebeu que havia no centro da biblioteca
um grande espaço vazio em que não tinha reparado antes. Curioso, foi até lá para
ver melhor.
— Ah, não! — engoliu em seco.
Uma criatura extraordinária estava sobre um pedestal no meio da sala.
— Você é tão lindo — murmurou Tim. — E ele pegou você também.
Havia um unicórnio à sua frente, silencioso e imóvel, rodeado pelas
estantes. Tim sabia que ele não estava mais vivo, mas precisava chegar mais
perto. Queria tocá-lo, acariciá-lo, passar os dedos em sua crina branca. Não fazia
mal se aquilo parecia estúpido. O unicórnio era tão maravilhoso que 55
simplesmente atraiu Tim em sua direção.
— Pare! Pare agora mesmo! — gritou Tim. Deu um pulo para cima da
plataforma e abraçou o pescoço do unicórnio. Não ligava para o que o homem
pensava a respeito dele, ou se estava fazendo papel de idiota. Ele simplesmente
não ligava.
— Não consigo mais ouvir a sua voz. Nem mesmo para ficar vivo mais
cinco minutos. Não vale a pena. Não vou me esconder de você, então pode fazer
o que você quiser. Só não faça estardalhaço. Você é um esquisitão mentiroso que
fede a carne podre. E se acha o maior gênio do mundo. Mas você não é nada.
Nada!
Tim se agarrou ao unicórnio, de costas para o homem, sem saber o que
aconteceria no momento seguinte.
Houve uma longa pausa. O corpo de Tim tremia de uma mistura de raiva e
medo. Ele sabia que a qualquer momento as triplas fileiras de dentes do homem
poderiam ser cravadas em seu pescoço.
Mas nada disso aconteceu.
— Que costume mais encantador esse seu de pensar sempre com o coração,
meu chuchuzinho — disse o homem. — Suas palavras são realmente muito
meigas. Muito bem. Nos vemos daqui a pouco.
Tim ficou esperando enquanto ouvia os passos do homem se afastando. A
porta se fechou, deixando-o sozinho na biblioteca.
“Bom, não exatamente sozinho.”
— Talvez ele nos coloque juntos em exposição — disse Tim para o
unicórnio. — Depois que terminar de comer a minha alma e tudo o mais. Você
tem que reconhecer, isso faz sentido. — Tim pulou para o chão e ficou na frente
do pedestal. — E à sua esquerda, senhoras e senhores — anunciou com uma voz
retumbante de locutor de rádio —, ao lado dos cães com asas, temos aquele
unicórnio idiota e aquele menino ainda mais idiota.
Tim deu uma risada tremida e soltou o peso do corpo sobre o pedestal.
Acomodou-se entre as patas da frente do unicórnio e ergueu os joelhos até o
peito dele.
— Tudo bem. Este é um péssimo lugar para se esconder — disse. — Mas é
um lugar tão bom quanto qualquer outro para esperar. — Ergueu o rosto e olhou
para a cabeça do unicórnio. — Tudo bem se eu falar com você, não é? É que eu
não quero que as minhas últimas palavras sejam: “Bom, Tim, isso foi a maior
burrice, não foi?”, exatamente o que eu vou dizer se começar a falar comigo
mesmo.
Tim repousou o queixo no joelho.
— Acho que, na verdade, não dá para se esconder dele. Mas acredito que
ele deva ficar muito contente ao ver a gente tentando. Eu não quero dar a ele
nenhum motivo para sorrir. — Tim estremeceu. — Detesto quando ele sorri.
Uma fileira de dentes deveria bastar para qualquer pessoa.
“Aqueles dentes.” Tim ergueu a página que tinha arrancado do livro do
homem, a última página que tinha sobrado. “Ele é isto na verdade, não é? Foram 60
os dentes que entregaram. Um manticora. Ou será o manticora? Talvez só exista
um.”
Ficou olhando fixamente para a página. “Pense, Tim”, deu uma bronca em
si mesmo. “Um mago de verdade não ia só ficar sentado aqui. Um mago de
verdade faria alguma coisa.”
Ainda assim, ele não conseguia fazer mais nada além de ficar olhando para
a página. “Tudo bem”, Tim pensou, procurando alguma idéia, “preciso elaborar
um plano.”
— Meu amigo John Constantine provavelmente faria uma armadilha com
um maço de cigarros vazio ou qualquer coisa do tipo — explicou para o
unicórnio. — A Zatanna diria alguma coisa de trás para frente, tipo: “Arocitnam,
áv es ratac”. Tem também o Tamlin, o cara que pode ser o meu pai. Ele diz que a
magia responde à necessidade e que o poder está nas pequenas coisas.
Torceu o pescoço para olhar o rosto do unicórnio.
— Então, unicórnio, qual seria a pequena coisa que me ajudaria a convocar
a magia para sair deste lugar?
Tim virou-se de novo e ergueu o desenho do manticora. Apertou os olhos,
como se enxergar a figura de outro ângulo pudesse ajudá-lo a ter uma idéia.
— Eu podia tentar enfiar uns alfinetes aqui ou colocar fogo no papel. Mas
acho que eu precisava saber o nome dele para dar certo. Ou será que basta saber
o que ele é?
“Acho que posso tentar, de qualquer jeito.”
— Só tem um problema — explicou ao unicórnio. — Não tenho nem
alfinete nem fósforo.
— Alfinetes? Fósforos? Você lançaria um feitiço mortal contra mim às
escondidas? E eu achando que nós tínhamos nos entendido...
Surpreso, Tim ergueu os olhos. Ele não tinha ouvido o homem entrar. Só
que ele não era mais homem. Um manticora enorme, em tamanho natural,
gigantesco, estava parado à sua frente. Era como se a ilustração que tinha nas
mãos tivesse ganhado vida... só que ampliada umas mil vezes.
A cabeça do homem não tinha mudado: o mesmo cabelo ensebado, a mesma
boca grotesca, as mesmas três fileiras de dentes. Só que agora ela estava em cima
de um corpo de leão enorme.
Antes que Tim pudesse fazer qualquer movimento, o manticora pulou em
cima dele, agarrou sua canela com as patas e o puxou para fora do pedestal.
A folha de papel saiu voando e Tim caiu com tudo no chão.
— Me solte! — gritou. Ele esperneava e distribuía socos, acertando tudo
que estava ao seu alcance. Ficava se mexendo de um lado pro outro, para impedir
que o manticora conseguisse um bom ângulo para morder seu pescoço.
Nada daquilo parecia desanimar o manticora. Ele continuava falando
calmamente.
— Soltar? Ah, não, acho que não. — O manticora sentou em cima de Tim,
tirando quase todo o ar de seu corpo. O rabo de escorpião tremelicava, e dos
dentes escorria um veneno amarelo-esverdeado.
— Minha intenção era gastar um tempo para educá-lo. Servir de Sócrates 61
para Platão antes de devorá-lo. Mas, que pena, você fez com que eu mudasse de
idéia.
Tim empurrava a fera com toda a força que tinha, tentando fazer com que
ele saísse de cima de seu peito. O manticora segurou os braços dele com suas
enormes patas.
— Pare de se debater — o manticora ordenou.
O esforço de Tim fez com que ficasse suado, e seu pulso escorregou de
baixo de uma das patas pesadas do manticora. Usou a mão livre para dar um soco
forte no nariz do animal.
O manticora recuou com um urro, permitindo a Tim que se soltasse um
pouco antes de o manticora voltar com tudo pra cima dele, arranhando seu braço
enquanto o prendia de novo no chão. Tim ficou estupefato com a visão de seu
próprio sangue jorrando, manchando as páginas do livro, arrancadas e espalhadas
pelo chão ao redor deles.
— Ah, está doendo — reclamou Tim. Tentou se encolher, agarrando os
joelhos, mas o manticora o segurava firme.
— Eu mandei você parar de se debater, não foi?
— Manticora — declarou Tim, enquanto o mundo rodava ao seu redor. —
Eu sei quem você é. E sei uma outra coisa também. Não ligo a mínima para o que
você acha... este unicórnio é de verdade!
Tim ouviu um relincho bem alto. Ficou maravilhado ao ver a transformação
extraordinária pela qual o unicórnio estava passando. A pelagem branca da
criatura começou a brilhar, como se tivesse sido acendida de dentro. Cada
músculo bem definido saltou e voltou à vida com um espasmo. O unicórnio
ergueu a cabeça e piscou os olhos que já não eram mais de vidro. Tim tinha
conseguido! A magia tinha respondido a uma necessidade. E Tim tinha usado
aquela magia para trazer o unicórnio de volta à vida.
A cabeça humana do manticora voltou-se para trás de supetão.
— O quê? — gritou. — Não! Como é possível?
O unicórnio andou um pouco para trás. Um raio de energia invadiu a sala.
Seu chifre faiscava. Quando as duas patas da frente se ergueram no ar, Tim
reparou que a página do manticora estava grudada em um dos cascos do
unicórnio. “Meu sangue”, Tim percebeu, “é o que está fazendo o papel ficar
grudado”.
O unicórnio pousou as patas no chão com um estrondo. Usou o chifre para
rasgar a folha presa ao casco e depois o enterrou bem no coração do manticora.
— Argghhhhhhh! — A criatura urrou de agonia.
Saiu de cima de Tim e caiu ao seu lado.
62
Capítulo Onze
Tamlin voava, voava, sem ter muita certeza de como encontrar sua presa, o
responsável por aquele pesadelo. Foi quando tudo começou a mudar.
Tamlin voava em círculos sobre a terra, admirado. Viu flores brotarem de
pedras, rios inundando seu leito repentinamente. Era como se uma fotografia em
branco e preto estivesse sendo colorida com tintas cintilantes.
— Quem diria! — exclamou. — A terra voltando a ser o que era. Como foi
que isso aconteceu?
Agora Tamlin tinha um novo objetivo: descobrir o grande mago responsável
por aquele milagre, que era capaz de romper os encantos que nem a própria
Titânia podia desfazer.
De seu ponto de observação privilegiado, bem alto no céu, Tamlin foi capaz
de determinar o centro do florescimento da magia. As mudanças milagrosas
provinham de um só lugar.
Tim estava com sede. Morrendo de sede. Achava que nunca sentira tanta
sede na vida. Nem durante a aula de educação física. Nem depois de uma sessão
de skate. Nem mesmo no meio do verão.
Alguma coisa o cutucou. Abriu os olhos lentamente e teve que estreitar os
olhos para enxergar o unicórnio branco olhando para ele. A linda criatura tinha
cutucado Tim delicadamente com o chifre.
— Ah, é você — disse Tim. — Você se importa se eu ficar deitado aqui um
pouquinho? Só até que tudo pare de girar. Obrigado.
“Espera aí. Eu não deveria estar aterrorizado? Não estou travando um
combate mortal com uma criatura maligna? Ah, é...”E tudo começou a voltar à
sua mente.
— Ei, cadê o manticora? — perguntou ao unicórnio. — Ele estava bem...
aaaaiiii! — Tim gemeu ao se sentar.
Foi aí que ele viu o manticora. Só que já não era mais exatamente o
manticora. Tinha se transformado em um monte de areia com o formato de
manticora.
— Ah, ele está aí — balbuciou. Olhou para o unicórnio. — Como foi que
você fez isso? Não que eu esteja reclamando, veja bem. — Tim se debruçou
sobre a pilha de pó de manticora.
— Ha! Ele pegou você. — Tim caçoou da criatura. — Ou talvez nós é que
pegamos você. Sei lá. Bem feito, Sócrates.
Tim levantou-se lentamente, seu corpo todo tremia. Ele precisou se apoiar
na lateral do corpo do unicórnio para se equilibrar. Apertou o braço que 63
continuava a sangrar e olhou em volta de si.
O pátio já não estava mais cheio de ossos. Estava tomado por flores. O
fedor tinha ido embora e perfumes se espalhavam na brisa agradável. De repente,
no muro que não parava de crescer tinha aparecido uma porta, e Tim e o
unicórnio passaram para o outro lado.
— Olhe só para isto — murmurou o garoto. Havia colinas verdejantes à sua
frente. Tim estava mesmo muito fraco, mas não foi capaz de se segurar e saiu
caminhando pelo meio do capim alto, maravilhado com a surpreendente
paisagem. Então o manticora não estava mesmo mentindo. Estavam realmente no
Mundo das Fadas, e agora o reino estava se restaurando em volta dele.
— Que legal! — exclamou.
Então, de repente, sentiu que estava quase sem energia e desmaiou.
Tamlin bateu suas asas fortes e se dirigiu rapidamente para a fonte. Seu
coração deu um salto e subiu até a boca.
Era o garoto. E a criança não estava sozinha. Estava sendo vigiada pela
criatura mais pura que existe, o unicórnio.
“O que será que o Tim está fazendo aqui?”, Tamlin perguntou a si mesmo.
“Como foi que ele chegou até aqui?” A resposta lhe veio como uma lufada de
clareza. “Eu dei a ele a Pedra da Abertura, e ele abriu um caminho até este
mundo. Eu já devia saber. As profecias são verdadeiras. Meu filho está vivo, e é
cheio de magia.”
Tamlin pousou e assumiu a forma humana. O unicórnio fez um aceno com o
chifre para cumprimentá-lo e depois saiu galopando.
Tamlin se ajoelhou ao lado do garoto.
— Timothy — disse, tentando acordar a criança.
— Falando naquela coca-cola — o garoto murmurou. Tim sentiu mãos —
mãos humanas — virarem seu corpo com cuidado.
— Tim, você está queimando, menino.
Tim ergueu os olhos e viu um rosto. “Eu conheço este rosto, não é mesmo?
Conheço. Cabelo comprido e liso, olhos castanhos. Bochechas. O que Tamlin
tinha dito mesmo? Ah, sim.”
— Não, eu não estou queimando. Estou com frio. Faz horas que estou com
frio.
Os braços fortes de Tamlin pegaram Tim no colo, erguendo-o em um
abraço. Então Tamlin apoiou Tim sobre uma pedra, fazendo com que seu corpo
ficasse reto. Parecia que assim era mais fácil de respirar. Ele largou todo o peso
do corpo em cima da pedra; a inspiração era fraca, a exalação era quente.
Ele queria falar e contar a Tamlin o que tinha feito, mas não tinha energia
para compor as frases. Acabar com aquele manticora e depois ver todas as flores
do Mundo das Fadas retornarem foi brilhante. Ele tinha certeza de que Tamlin
iria pensar a mesma coisa. Tim queria que Tamlin se orgulhasse dele. Mas não
conseguia se lembrar por quê.
— A gente deu um jeito naquele manticora velho — informou Tim, quando
juntou o ar suficiente para falar. — Eu e o unicórnio. — Por que doía tanto para 64
falar? Tanto esforço para um som tão baixinho. — Pelo menos, acho que sim.
— Manticora? — repetiu Tamlin. — Você viu o manticora? Aqui?
Tim achou que Tamlin parecia meio que aterrorizado. Bom, a coisa toda
tinha sido bem aterrorizante.
— Ah-hã — respondeu Tim. — Ele é muito feio. Quer dizer, era feio. Antes
de virar pó.
— Tim, ele mordeu, arranhou ou picou você?
— Acho que sim. Não sei.
Tim achou que a voz de Tamlin soava quase sombria. “Talvez eu devesse
abrir os olhos e conferir a expressão dele.” As pálpebras de Tim tremeram de
leve. “Melhor não. É difícil demais.”
— Ei, eu precisava perguntar uma coisa para você — murmurou Tim. —
Alguma coisa importante. Mas não consigo me lembrar o que era.
Tim sentia as mãos fortes de Tamlin sobre si, como se o estivessem
examinando à procura de algo. Tamlin deu tapinhas de leve nas pernas de Tim, e
virou sua cabeça primeiro para um lado, depois para o outro.
— Eu ainda estou com aquela pedra que você me deu — sugeriu Tim. Será
que era aquilo que ele estava procurando? Ele não queria que Tamlin achasse que
tinha sido descuidado.
Tamlin puxou as mangas de Tim para cima.
— Pelos deuses! — exclamou. Pegou no braço de Tim em um local que
estava dolorido. — Este arranhão é profundo e terrível!
— Tudo bem — Tim acalmou Tamlin, com a voz bem fraquinha. — Não
está mais doendo. Não muito.
Tamlin continuava segurando o braço de Tim.
— Quanto tempo faz, menino? Há quanto tempo ele arranhou você com a
pata?
Tim retirou o braço das mãos de Tamlin e cobriu o rosto, tapando os olhos.
O sol estava forte demais. Feria seus olhos até mesmo quando estavam fechados.
Sentiu uma risada subindo em seu peito, mas não sabia muito bem por quê.
— Sabe, acabei de entender tudo. Entendi mesmo. Eu sei o que segura o
mundo. Só que não é uma coisa. Não é nada material, na verdade. É a vida... é a
Morte.
A luz causticante estava enfraquecendo. A escuridão que o rodeava era bem
mais confortável. Naquele fundo de veludo negro, Tim podia distinguir uma
silhueta se formando. Uma silhueta conhecida.
— Ela é bonita. Ela é muito bonita.
Uma jovem de camiseta preta sem mangas e jeans, com uma tornozeleira
que era um berloque pendurado em uma fita preta, estava parada na frente de
Tim, sorrindo. Ele se lembrava dela. Ele a tinha encontrado no fim do universo,
para onde o maluco do Mister Io o tinha levado.
“Bom, pelo menos ela não é uma total desconhecida”, pensou. Finalmente
relaxou e se deixou levar... para o nada.
65
Capítulo Doze
— Para você é fácil dizer — explodiu. — Não é você que vai morrer.
— Ei, você pode se apoiar no Cavendish se quiser — sugeriu a moça. — Ou
simplesmente segurá-lo. Ele é bom para isso.
— Cavendish? — Tim apertou os olhos e a observou. Do que é que ela
estava falando?
— Ele está bem atrás de você. Espere. — Esticou a mão atrás de Tim e
pegou um urso de pelúcia. — Ele não é o urso mais inteligente do mundo, mas
pelo menos sabe quando ficar de boca fechada.
Tim ficou olhando para o ursinho. Será que ela estava louca? O que ele iria
fazer com um brinquedo idiota? Mas também não queria deixá-la brava. Achou
que, já que ela era a Morte, se ficasse brava haveria sérias conseqüências. Ajeitou
o ursinho no colo.
— Desculpe, Tim — ela disse. — Achei que você ia demorar um pouco
mais para entender tudo. Mas você compreendeu tudo com tanta rapidez que eu
nem tive tempo de prepará-lo.
Ela fez um cafuné no cabelo dele.
— Mas você tem uma gargalhada bem sincera, devo dizer. Quando contei
quem eu era e você caiu no riso, quase me esqueci de que você é um mago.
“O que será que isso quer dizer?”, Tim perguntou a si mesmo. “Magos não
têm senso de humor? Ou será que ela quis dizer que a vida de um mago é tão
cheia de dor, confusão e tragédia que não sobra nenhum motivo para rir?” Tim
colocou aquele pensamento de lado para se concentrar no momento presente.
— Então, deixe-me ver se entendi bem — disse Tim, bem devagar. Viu que
estava apertando o ursinho um pouco demais. — Estou morto. Que engraçado,
sempre achei que ia ser mais do que isto.
— Você não está morto, acredite. — A moça deu leves tapinhas no joelho
de Tim. — Eu saberia se você estivesse. Mas você está bem perto disso, ou eu
não o teria trazido até aqui. Não com tanta facilidade, quer dizer.
— Você me trouxe até aqui?
A moça assentiu com a cabeça.
— Ah-hã. O veneno do manticora é terrível. É assim que eles gostam. Se
você estivesse no seu corpo agora, estaria agonizando. E quando digo agonia, não
estou falando só de dor.
— Mas... — Tim tentou compreender. — Você quer dizer que me trouxe
para cá para eu não sofrer? Que coisa mais bizarra.
A moça parecia confusa.
— Por quê?
Era tão óbvio para Tim... por que ela não entendia?
— Bom, porque você é a Morte, ora.
— Não tem nada de bizarro nisso — a moça respondeu. — A Morte e o
sofrimento não andam necessariamente juntos. Ei, será que você pode fazer um
favor para nós dois?
— Humm, claro. — Que favor ela podia pedir a ele? Preparou-se para o 68
pior.
— Não deixe o chá esfriar — disse com um sorriso.
Tim retribuiu o sorriso. Ela era engraçada. Gostava dela, apesar de ser a
Morte.
Parecia que ela o estava estudando.
— Você circula bastante, hein? — ela disse. — Mesmo para um mago.
Tim pousou a caneca de novo.
— Eu preferia que você parasse de me chamar disso.
— Tudo bem. Você circula bastante, ponto final. Por que você foi se enfiar
no Mundo das Fadas?
— Ah. — Ele ficou mexendo no pé do ursinho de pelúcia. — Eu só estava...
estava tentando descobrir quem é o meu pai. É meio... meio... — A voz dele
começou a falhar. — Complicado — concluiu. “Não”, disse a si mesmo,
enfiando as unhas na palma da mão. “Eu não vou chorar.”
Sentiu um enorme nó na garganta, e não conseguia dissolvê-lo por mais que
engolisse. A visão ficou embaçada quando as lágrimas encheram seus olhos.
Ele se sentiu humilhado por chorar na frente dela. Ela ia achar que ele era o
maior bebezão. Tim se dobrou em dois, esmagando o ursinho no colo, quando
tentou esconder o rosto. Seus ombros tremeram por tentar deixar os soluços
presos dentro do peito. Mas ele sabia que a moça o estava vendo chorar. Não
dava para fingir que não estava.
— Isso... isso é uma idiotice — ele disse com a voz engasgada. Tirou os
óculos e enxugou o rosto. Ficou olhando para os dedos molhados. — Elas nem
são de verdade, não é mesmo? Estou imaginando que estou chorando.
— Hummm. Não sei — disse Morte. — Para mim, parecem lágrimas de
verdade. — Ela se ajeitou em cima do braço do sofá e enfiou os pés em baixo de
si. — Por que você não fala mais desse negócio de pai?
— Dá tempo? — Ele nunca tinha enfrentando a morte iminente antes. Não
sabia quanto ia demorar aquilo tudo.
— Temos tempo.
Tim enxugou o rosto na manga, depois colocou os óculos de volta no rosto.
Limpou a garganta algumas vezes.
— Você só está tentando ser legal. Obrigado, mas eu não preciso conversar.
Vou ficar bem. — Colocou o ursinho de pelúcia entre ele e Morte no sofá. Não
queria parecer uma criancinha que precisava de um bicho de pelúcia.
— Bom, não estou tentando não ser legal, isso eu garanto. Mas eu perguntei
principalmente porque quero saber. Que história é essa?
Tim suspirou. Como é que ele ia conseguir explicar aquilo tudo? Ele
próprio ainda estava tentando entender...
Tamlin estava sentado ao lado do corpo de Tim, que estava ficando rígido.
O garoto ficava azul, e seus membros tremiam à medida que o veneno ia
traçando seu caminho abominável através de seu corpo.
“A criança fez...” Tamlin pensou, então interrompeu a si mesmo. “O que é 69
que eu estou dizendo? 'A criança'? Meu filho, quero dizer. Meu filho fez renascer
a terra. Meu filho rompeu o encanto que nem a própria Titânia conseguiu
desfazer. Ele derrubou um adversário que nenhum paladino do Mundo das Fadas
Capítulo Treze
Morte continuava esperando. Já fazia um tempo que Tim não dizia nenhuma
palavra. Pensou que não fazia sentido contar a ela sua história. Por que deveria
fazê-lo?
— Até parece que você se importa — ele balbuciou. — Olha, sinto muito.
Não estou com disposição para acabar com o tédio eterno de ninguém agora —
ele disse a ela. Cruzou os braços e ficou olhando fixamente para a frente.
— Perdão? — Morte parecia estupefata. Ela se levantou. — Você não quer
conversar comigo? Tudo bem, mas tenho novidades para você, espertinho. Eu
não gosto muito de ser insultada. — Pegou sua caneca e foi para a pia.
Abriu a torneira e começou a lavar a louça. 72
Tim arrependeu-se de suas palavras no mesmo instante.
— Moça? — Ele continuava sem conseguir chamá-la de Morte. — Não foi
minha intenção insultá-la.
— Amadan, estou ocupado demais para saber por onde você anda. Mas, se
você ficar onde está só mais um pouquinho, tenho certeza de que vou arrumar um
tempinho para matá-lo.
Amadan saiu voando sem proferir mais nem uma palavra.
Tamlin preparou a outra vela.
— Foi Merlin quem me ensinou a assumir a forma de falcão — disse a Tim,
apesar de saber que a criança não podia escutá-lo. — Ele me ensinou muita coisa
além disso.
Chorou sobre o vinho que bebia quando me contou a história de como ficou
ao lado do leito de morte de Artur em Avalon, ouvindo o rei gemer ao ser
arrebatado pela morte durante o sono.
Tamlin tirou várias ervas da sacola e espalhou por cima do corpo de Tim.
— “Eu poderia tê-lo curado”, Merlin me disse com sua voz velha e cansada
— Tamlin lembrou. — “Então por que não curou?”, perguntei, sem acreditar
muito. “Você está caçoando de mim”, Merlin respondeu com os olhos faiscando.
Ergueu as mãos e elas se transformaram em fogo por um instante. Achei que ele
queria me mandar para o fogo dos infernos. Então ele se afundou de novo na
cadeira e, com uma voz amarga, cheia de aversão a si mesmo, disse: “Não, você
não entende. Como é que poderia entender?”. E foi aí que ele me contou a
respeito do feitiço.
Tamlin estudou o serviço artesanal que tinha feito. As ervas estavam no
lugar, as velas estavam acesas, as palavras tinham sido lembradas.
— É — disse Tamlin. — O feitiço.
Capítulo Catorze
— Você não precisa se preocupar com nada — ele disse, em tom acusatório.
— Não, não preciso. Ah, olha só! Achei! — Estava segurando um envelope
e sorria.
Tim não queria nem saber o que ela tinha encontrado. Parecia que ela não
estava prestando atenção ao que ele dizia. Estava mais preocupada com aquele
envelope do que com ele.
— Ninguém pode obrigar você a fazer qualquer coisa que não queira. Nem
adultos, nem fadas... ninguém! — reclamou Tim. — E você nunca se perde,
sempre sabe o que está fazendo e tal. Você tem essa sua missão esquisita. —
Sacudiu a cabeça e ficou olhando para ela. — Você é tão feliz, e isso também é
muito esquisito.
— Missão esquisita? — Ela riu. — Isso é mesmo muito bom. — Por fim
sua expressão ficou mais séria e ela olhou diretamente para ele. — Tim, tudo o
que você disse é verdade. Talvez você devesse perguntar a si mesmo... — Ela
mesma interrompeu o discurso e parecia estar ouvindo alguma coisa ao longe. —
Oops, tarde demais. Desculpe, Tim. Chegou a hora da missão esquisita.
Tim ficou olhando para ela, boquiaberto. Ela estava prestes a contar alguma
coisa importante e ia sair assim?
— M-m-mas... mas não é justo! — ele protestou.
— Você tem razão. Não é mesmo.
Tim desmaiou quando tudo ficou preto e rodopiante de novo.
“A dor”, Tamlin pensou. “É só dor. Logo termina. A morte que ele teria
agora é minha.” Tamlin gemia de agonia, retorcendo-se em sua cadeira-trono.
“Quando o sacrifício estiver completo, minha vida vai ser dele.”
— Tamlin? — Morte apareceu na frente dele. — Você pode relaxar agora.
A voz dela era simpática e verdadeira, tinha um tom de sinos tocando.
Tamlin sentiu que estava se elevando de seu corpo e indo na direção dela.
— Senhorita? A criança vai ficar...
— Ah, o Tim vai ficar bem — assegurou. Fez um sinal com a cabeça para o
lado. — Mas é uma pena que vocês dois não tenham tido a oportunidade de
conversar um pouco. Ele queria fazer uma pergunta a você.
Tamlin olhou para baixo, para seu filho. A vida que Tamlin tinha
sacrificado já começava a reanimar o garoto. Os membros retorcidos de Tim se
esticaram, sua pele começou a recuperar a tonalidade natural.
— Devemos deixá-lo enfrentar Titânia sozinho? — Tamlin voltou-se para a
moça que ele sabia ser o anjo da morte. — Titânia acredita que me ama e vai
culpá-lo pela minha morte. Ela vai ficar irada. Cruel.
— O Tim vai conseguir se virar — disse Morte. — Você vai se surpreender
com a capacidade desse menino. Vamos.
Tamlin assentiu com a cabeça, e os dois desapareceram.
Tim se virou. O movimento derrubou uma vela, fazendo com que a cera 78
quente pingasse em sua mão.
— Ai! — exclamou. Sentou-se e olhou ao redor. — Hã? Se isto aqui for o
meu enterro, alguém deve estar bem decepcionado.
isso teria... sobre os dois? E saber que o pai de verdade tinha se sacrificado para
que Tim pudesse sobreviver... Ele sacudiu a cabeça. Como é que iria aceitar
aquilo?
Tim dobrou uma esquina, e a luz de um poste iluminou seu reflexo na
vitrine de uma loja escura. Parou e ficou olhando para si mesmo.
— Então, Timothy Hunter, quem é você? — perguntou. — Tudo bem, fique
aí de boca fechada — ele tirou um sarro do próprio reflexo. — Ou será que você
só está escondendo o jogo? Essa deve ser uma boa idéia mesmo, nestes tempos
tão estranhos. — Ele sorriu. — Talvez você não seja assim tão burro quanto
parece, Hunter.
Hunter. Percebeu que seu sobrenome só era Hunter porque a mãe tinha se
casado com o senhor Hunter. Se ela tivesse se casado com Tamlin, o nome de
Tim seria... qual?
Foi aí que ele compreendeu. Timothy Hunter, então, não podia ser seu nome
“de verdade”. Era só o jeito como o “chamavam”.
Então, qual seria seu nome verdadeiro?
— Não, muito obrigado — disse a seu reflexo. — Já fiz perguntas demais
por hoje.
Foi para casa. Dessa vez, esvaziou a cabeça e ficou feliz simplesmente
porque o ar frio o fazia lembrar-se de que tinha pulmões, que o céu da noite
estava estrelado e que, de algum modo, tinha salvado um mundo inteiro.
***
81