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Da “Senhora do Monte Carmelo” à “Senhora do Escapulário”:

Origem e evolução da invocação Nossa Senhora do Carmo

A devoção a Nossa Senhora do Carmo, também conhecida por Nossa Senhora do Carme-
lo, do Monte Carmelo, ou do Monte Carmo, é uma devoção universal cuja antiguidade remon-
ta às próprias origens da Ordem do Carmo, no Monte Carmelo (situado na Alta Galileia, no
norte de Israel), nos finais do século XII, e que desde os primórdios se intitula Ordem dos
Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo.
A imagem que nos vem de imediato à mente quando falamos de Nossa Senhora do
Carmo é a da Virgem Maria vestida com o hábito carmelita (túnica castanha e capa branca),
segurando no braço esquerdo o Menino Jesus e na mão direita o escapulário.
Mas nem sempre assim foi. De facto, esta representação iconográfica de Nossa Senho-
ra do Carmo, tão comum nos nossos dias, aparece pela primeira vez nos finais do século XVI.
A nível legislativo, por exemplo, só no Capítulo Provincial dos Carmelitas portugueses, cele-
brado no Convento do Carmo de Lisboa em abril de 1689, se determinou que se vestissem as
imagens de Nossa Senhora com o hábito da Ordem do Carmo.
Perguntamo-nos então: Se nem sempre foi assim, como chegamos aqui?

Para iniciarmos o nosso itinerário, começamos por salientar que na formação da “ima-
gem” da Senhora do Carmo, os estudiosos da espiritualidade carmelita distinguem, geral-
mente, três períodos que apresentam características especiais, mas estreitamente ligados
entre si: 1) Nos séculos XIII e XIV predomina a imagem de Maria como Patrona, a Mãe de Je-
sus, Senhor da Terra Santa, e Senhora do lugar; 2) nos séculos XIV e XV, preferiu-se a imagem
de Maria como Virgem Puríssima, isto é, a Virgem, a Imaculada, a “Amiga do Pai Celeste”, a
“Mulher do Apocalipse”, também unida à figura da Mãe do Redentor; 3) e desde o século
XVI até aos nossos dias, adquire preponderância a imagem de Maria como Senhora do Esca-
pulário, que preserva do Inferno e livra do Purgatório.
Querendo, porém, evidenciar os traços essenciais da figura de Maria para podermos
compreender a imagem que atualmente está plasmada na invocação Nossa Senhora do
Carmo, iremos distinguir somente dois períodos: 1) das origens até ao século XV, e 2) do sé-
culo XVI até os nossos dias, visto que é na transição do século XV para o XVI que aparece a
figura da Senhora do Carmo como Senhora do Escapulário, que predomina até hoje.

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1. “A Senhora do Monte Carmelo” (das origens ao século XV)

A Ordem do Carmo ou Ordem dos Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte


Carmelo teve a sua origem num grupo de eremitas latinos que viviam no Monte Carmelo, e
que desde os finais do século XII se tinham estabelecido “junto à Fonte” (Regra Carmelita, 1),
por antonomásia, a “fonte de Elias”, no Wadi 'ain es-Siah, a 4 Km ao sul da cidade de Haifa
(Israel). Entre os anos 1206-1214, Alberto, Patriarca de Jerusalém, a pedido deles, codificou a
sua maneira de viver e agrupou-os numa comunidade, dando-lhes uma “fórmula de vida”,
que foi reconhecida oficialmente como Regra pelo Papa Inocêncio IV, a 1 de Outubro de
1247, pela bula Quae honorem Conditoris. Notemos, no entanto, que neste primeiro docu-
mento que temos sobre a origem da Ordem do Carmo, não há nenhuma alusão à Virgem
Maria.
A ligação entre a Virgem Maria e os carmelitas encontra-se, nas origens, no facto de es-
tes, no primeiro quartel do século XIII, lhe terem dedicado o seu primeiro oratório no Monte
Carmelo, situado no meio das celas, onde se reuniam «todos os dias pela manhã para parti-
cipar na celebração eucarística», como prescreve a Regra Carmelita (n. 14). Um livro-guia
francês para os peregrinos da Terra Santa intitulado La citez de Jerusalem, escrito entre 1220
e 1231, testemunha aí a existência de «uma pequena igreja de Nossa Senhora». A razão para
dedicar a sua primeira Igreja a Maria, Mãe de Jesus, significava, na conceção feudal reinante
naquele tempo, não somente o facto de se colocarem ao serviço da Igreja, mas também de
estarem completamente à disposição da Senhora, numa consagração pessoal, confirmada
com um juramento. Os primeiros carmelitas escolheram, então, a Virgem Maria como Patro-
na.
Forçados a deixar a Terra Santa e a emigrarem para a Europa, a partir de 1238, devido à
incursão dos muçulmanos, os carmelitas trouxeram com eles a devoção a Santa Maria do
Monte Carmelo difundindo-a pela Europa.
Quanto a estes primeiros tempos devemos notar que na sua origem o título Santa Ma-
ria do Monte Carmelo – que aparece nos documentos pontifícios, pela primeira vez, só em
1252, numa bula do papa Inocêncio IV, e fora destes documentos, alguns anos antes–, não se
refere a uma imagem especial ou a um novo aspeto de culto. A referência que se dá ao mon-
te no nome da Senhora é simplesmente geográfica-histórica, como indicação do lugar onde
nasceram os carmelitas. Isto é notório nos títulos das suas igrejas, nos quais os carmelitas
acentuarão os aspetos da Maternidade divina, da Virgindade, da Imaculada Conceição, da

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Anunciação… Vão, no entanto, acentuando alguns aspetos que posteriormente, no século
XVI, vão sintetizar na imagem da Senhora do Escapulário:

a) Patrona – Mãe

Esta é a imagem que, como vimos, nasce com as primeiras gerações carmelitas (sécu-
los XIII-XIV) e que permanecerá sempre como convicção forte e essencial, tendo como base
a maternidade divina, tema a que, posteriormente, se acrescenta o da Virgindade de Maria,
o da sua mediação da graça e a reflexão sobre o mistério da Imaculada Conceição e da
Anunciação, bem como da Assunção. Para ela concorreram o forte cristocentrismo, expres-
so na Regra Carmelita, que informa a devoção mariana do Carmelo e a tomada de consciên-
cia da função de Maria (a Mãe do Senhor, “a Senhora do lugar”), no mistério de Cristo e da
Igreja.

b) Virgem Puríssima

A imagem de Maria como Virgem Puríssima (Virgo Purissima) é fruto e expressão da


profunda reflexão feita pelos carmelitas, nos séculos XIV-XV, sobre a Virgindade de Maria.
Esta reflexão está implícita na forte ligação dos teólogos carmelitas com a Imaculada Con-
ceição e manifesta-se também na inclusão, nos finais do século XV, da palavra “Virgem” no
título oficial da Ordem. Chega-se então a ver Maria como irmã e a exaltar nela a máxima pu-
reza.
A noção de Maria como irmã pode estar implícita no título da Ordem como Irmãos da
Bem-aventurada Maria do Monte Carmelo. Mas fora as referências ocasionais de alguns au-
tores, só no século XV Maria foi explícita e diretamente chamada de irmã dos carmelitas. Foi
o carmelita Arnoldo Bóstio (+1499) quem, na sua obra De patronatu et patrocinio B. V. Mari-
ae…, melhor sintetizou esta intuição: «O humilde irmão do Carmelo pode exultar e cantar de
alegria: “Vede! A Rainha do Céu é minha irmã; posso agir com confiança e viver sem medo”».
Com o termo “irmã” os carmelitas alimentavam o sentimento de familiaridade com Maria e
estimulavam a sua imitação na disponibilidade e docilidade à Palavra do Senhor.
Com o termo pureza os carmelitas consideravam a virgindade de Maria como a condi-
ção necessária à união com Deus, como condição existencial que exclui todo o pecado e
afastamento de Deus e da conformidade com a sua vontade, mais do que no mero sentido
de integridade física. Esta devoção à “Puríssima” é a continuação do culto à Anunciação: a

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pureza é o que une Maria a Deus na Anunciação. Maria é a Pura, de coração indiviso, total-
mente aberta a Deus (modelo supremo de vacare Deo).

2. “A Senhora do Escapulário” (do século XVI aos nossos dias)

Sintetizando as imagens de Maria Patrona-Mãe e Virgem-Irmã, a partir do século XV, os


Carmelitas começaram a relacionar a Senhora do Carmo com o Escapulário, difundindo entre
os leigos a devoção mariana usando como mediação pastoral a imagem de Maria, Senhora
do Escapulário, que preserva do Inferno e livra do Purgatório. De tal modo o fizeram que
esta veio a tornar-se a figura dominante dos últimos séculos. A partir dos finais do século XVI
até hoje, com efeito, a devoção a Nossa Senhora do Carmo converte-se na devoção a Nossa
Senhora do Escapulário. A própria festa principal da Ordem, que desde 1306, era a da Imacu-
lada Conceição, passou a ser, a partir de 1609, a Festa do Escapulário, no dia 16 de Julho.
Progressivamente foi-se estendendo a várias nações (Portugal: 1679), e depois a toda a Igre-
ja, com o Papa Bento XIII (1726).
A grande difusão que teve a devoção a Nossa Senhora do Carmo deveu-se não só à
grande propagação das Confrarias do Escapulário, mas sobretudo às duas “promessas do
Escapulário”, ligadas a duas visões marianas, ambas relacionadas com o hábito da Ordem do
Carmo (escapulário, a primeira, e capa branca, a segunda): 1) preservação ou isenção do In-
ferno (salvação eterna), ligada à visão de S. Simão Stock (séc. XIII); 2) libertação ou resgate
do Purgatório (no primeiro Sábado após a morte), o chamado “privilégio sabatino”, baseado
numa alegada visão do Papa João XXII (séc. XIV), contada na chamada Bula Sabatina, que o
Papa teria emanado após uma aparição da Virgem Maria.
Dado que, tanto a historicidade da visão de S. Simão Stock como a autenticidade da
Bula Sabatina, são duas questões bastante complexas e problemáticas, que têm sido objeto
de longo debate, sobre elas não nos vamos deter aqui. Para um aprofundamento sugerimos
a consulta dos números da revista Carmelo Lusitano elencados no final. Além disso, muito
para além da sua precisa valorização histórica, ambas as promessas reportadas nas visões
estão unidas a verdades teológicas importantes: a maternidade espiritual de Maria e sua in-
tercessão em favor dos irmãos e irmãs do seu Filho, afirmadas pelo Concílio Vaticano II, no
capítulo VIII da constituição dogmática Lumen gentium (LG): «Esta maternidade de Maria na
economia da graça perdura sem interrupção, desde o consentimento, que fielmente deu na
anunciação e que manteve inabalável junto à cruz, até à consumação eterna de todos os
eleitos. De facto, depois de elevada ao céu, não abandonou esta missão salvadora, mas, com
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a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna. Cuida,
com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda
na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com
os títulos de advogada, auxiliadora, socorro, medianeira. Mas isto entende-se de maneira
que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia do único mediador, que é Cristo. […]
Esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la; sente-a constante-
mente e inculca-a aos fiéis, para mais intimamente aderirem, com esta ajuda materna, ao seu
mediador e salvador» (n. 62).

a) Primeira promessa mariana: Preservação do Inferno

A “primeira promessa” – preservação ou isenção do inferno (salvação eterna) –, tam-


bém chamada de “grande promessa”, está ligada a uma venerável tradição da Ordem do
Carmo, segundo a qual a Virgem Maria teria aparecido ao carmelita inglês S. Simão Stock,
em 1251, quando este, na sua profunda aflição pela situação angustiosa em que se encontra-
va a Ordem, implorava o auxílio da grande Protetora, recitando a antífona Flos Carmeli (Flor
do Carmelo). Trazendo nas mãos um escapulário, disse-lhe: «Este será o privilégio para ti e
para todos os carmelitas: o que morrer com ele não padecerá o fogo eterno».
Deixando de lado a personagem Simão Stock e a historicidade da sua visão (narrada
apenas a partir dos inícios do século XV, no Catálogo dos Santos Carmelitas), uma questão
que divide a opinião dos estudiosos entre afirmação e negação, concentremo-nos no conte-
údo da dita visão: o que está em questão é a salvação eterna e a proteção de Maria na hora da
morte. Além disso, como bem advertem os Superiores Gerais de ambos os ramos do Carme-
lo (O. Carm. e OCD), na carta circular sobre os 750 anos do Escapulário, «a verdade central da
história da visão é a experiência viva do Carmelo: Maria, sua Patrona, protegeu o Carmelo e
assegurou-lhe a perseverança; as orações de Maria são eficazes para assegurar a vida eter-
na» (n. 22).

b) Segunda promessa mariana: Libertação do Purgatório

O sentido da proteção de Maria, já expresso na “primeira promessa”, irá ser acentua-


do, na tradição do Carmelo, com um novo aspeto por uma outra visão, esta atribuída ao Pa-
pa João XXII: é o chamado “privilégio sabatino”, contido na chamada Bula Sabatina (docu-
mento atribuído ao mesmo Papa, datado de 3 de Março de 1322, mas que provavelmente
teve a sua origem na Sicília no decorrer do século XV).

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Nesta “segunda promessa”, a Virgem Maria promete a libertação do Purgatório no sá-
bado imediato à morte, não só aos carmelitas, mas também a todos os membros da Confra-
ria da Ordem. Para estes últimos há certas condições: receber e usar durante toda a vida o
“sinal do Hábito”, isto é, a capa branca (e não o escapulário!), viver em castidade segundo o
próprio estado, recitar as horas canónicas, ou, se não sabem ler, jejuar nos dias estabeleci-
dos pela Igreja e abster-se de carne nas quartas e sábados, além da sexta-feira, exceto no dia
de Natal. A libertação do purgatório aconteceria pela descida pessoal da Virgem Maria ao
Purgatório.
Agregado à pregação sobre a devoção do escapulário, depressa o “privilégio sabatino”
conquistou grande popularidade. Em Portugal, por exemplo, a partir dos finais do séc. XVI,
começaram a aparecer imagens e pinturas representando os devotos da Virgem do Carmo a
serem libertados do fogo do Purgatório, como o documentam, por exemplo, os vários estu-
dos sobre o tema do historiador Flávio Gonçalves (1929-1987), nos anos 60 do século passa-
do.
Colocando de lado a questão da autenticidade da bula bem como da visão nela conti-
da, importa salientar que neste chamado “privilégio sabatino” estamos no contexto da
“mediação materna” de Maria, ou, segundo a terminologia do Concílio Vaticano II, função
materna para com os homens (LG 60), maternidade na economia da graça (LG 62), função salví-
fica subordinada (LG 62), «agora e na hora da nossa morte», e da dedicação do sábado à
memória de Santa Maria.

Em jeito de conclusão: Uma invocação querida do povo português

Com a figura da Senhora do Escapulário, que a própria arte divulgará com ênfase, em
que sintetizando os aspetos das figuras de Maria como “Patrona” e “Virgem Puríssima” se
concretiza de um modo sensível a sua proteção, através das duas “promessas do Escapulá-
rio”, resumidas pelos seus devotos na frase atribuída à Virgem Maria: «Na vida protejo, na
morte ajudo, e depois da morte salvo», chegamos à etapa final da evolução da invocação
Nossa Senhora do Carmo. Podemos, pois, afirmar que a imagem que atualmente está plas-
mada na invocação Nossa Senhora do Carmo é a da Senhora do Escapulário, começada a ser
difundida a partir do século XVI.
Em Portugal, por obra dos Carmelitas, tanto da Antiga Observância (O. Carm.), que
começou por se estabelecer em Moura, por volta dos finais do século XIII, ou princípios do
século XIV, e se expandiu posteriormente com a abertura de novos conventos nos séculos
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seguintes, como da Reforma Teresiana (Carmelitas Descalços – OCD), nos finais do século
XVI, bem como das Confrarias que surgiram ligadas às mesmas, a invocação Nossa Senhora
do Carmo ganhou uma grande difusão, vindo a tornar-se numa das mais populares e mais
queridas do povo português.

Não queremos deixar de salientar, ao terminarmos este breve itinerário, o facto de que
a crescente atenção e divulgação do Escapulário entre os fiéis, produziu um disseminado
devocionismo, baseado nas indulgências e privilégios, e levou a perder ou a reduzir um ele-
mento importante e bastante fecundo da mariologia carmelita, que importa revalorizar: a
Senhora do Carmo como ideal da mais perfeita personificação da aspiração da Ordem do Car-
mo, que é ter um CORAÇÃO PURO, preparado para a união com Deus.

Para Aprofundar

No sentido de aprofundar o que ficou dito nesta breve síntese recomendamos a leitura
dos artigos dos carmelitas Emanuel Boaga e Ismael Martínez, publicados na revista Carmelo
Lusitano, números 12 (1994) e 19 (2001), respetivamente.

Manuel Quintãos

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