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Saúde da Mulher

Atenção integral à saúde da mulher: desafios para


implementação na prática assistencial

Neste contexto, o setor saúde


A saúde é um direito humano deve mover-se, então, no sentido da
fundamental que deve ser promoção da saúde, além das suas
compreendida como um recurso responsabilidades de prover serviços
para a vida, não sendo somente a clínicos e de urgência. Os serviços de
ausência de doenças. Saúde é o saúde precisam adotar uma postura
resultado de um processo de abrangente que perceba e respeite as
produção social que expressa a peculiaridades sociais e culturais,
qualidade de vida de uma população, apoiando as necessidades individuais e
entendendo-se qualidade de vida como comunitárias para uma vida mais
uma condição de existência dos saudável. A reorientação dos serviços
homens no seu viver cotidiano, de saúde requer mudanças na
representado por um conjunto educação e no ensino dos
integrado de recursos sociais e profissionais da área de saúde,
pessoais. buscando induzir transformações

No campo do atendimento à na atitude e na organização desses


saúde da mulher, para que o conceito serviços para que focalizem as
de integralidade seja efetivamente necessidades globais do indivíduo,
implementado faz-se necessário como pessoa integral.
transformar a tradicional abordagem Diversos desafios se colocam
baseada nas características para a implementação da atenção
anatomo-fisiológicas do sexo feminino integral à saúde da mulher na prática
em uma condução direcionada para assistencial. A abordagem das
as questões referentes às questões relacionadas ao gênero
peculiaridades de gênero. feminino, presente na elaboração de
diversas políticas públicas, precisa ser a ascensão do poder médico,
compreendida e incorporada por consolidou-se um novo modo de
gestores e principalmente pelos pensar as distinções de gênero: as
profissionais de saúde. Esses diferenças corporais se instalaram
profissionais, responsáveis diretos progressivamente como referência
pelo atendimento à população, do feminino e do masculino. No sexo
possuem fundamental papel na biológico, médicos, biólogos,
aplicação cotidiana dos conceitos de anatomistas e fisiologistas viram a
integralidade e equidade, origem de uma irredutível diferença
transformando-os em ação entre homens e mulheres expressada
concreta, capaz de modificar os não somente na ordem
níveis de saúde da população. físico-anatômica, como também em
1. Gênero: Conceituação, uma ordem moral e social. Em seu afã
Historicidade e Importância Sanitária de definir a “mulher”, eles

Gênero e sexo são muitas vezes promoveram um intenso debate

considerados como sinônimos, quando público sobre a domesticidade e a

na verdade correspondem a inferioridade das mulheres, a vocação

conceitos distintos. Segundo Schraiber maternal, a sexualidade perigosa, o

& D’Oliveira (1999), enquanto sexo pudor feminino, a pouca aptidão para

indica uma diferença genética e a política e as ciências etc.,

anatômica inscrita no corpo, gênero contribuindo para fundamentar a

indica a construção social, material e exclusão das mulheres da esfera da

simbólica a partir desta diferença. O cidadania e a negação de sua

gênero, como elemento constitutivo autonomia e subjetividade.

das relações sociais entre homens e A constituição da obstetrícia


mulheres, é uma construção social e como conhecimento prático e
histórica. É construído e alimentado disciplinar, no século XIX, transforma
com base em símbolos, normas e o parto de um evento social ligado à
instituições que definem modelos de cotidianidade das mulheres em um
masculinidade e feminilidade e padrões evento médico e hospitalar. As
de comportamento aceitáveis ou não ciências obstétricas conferem
para homens e mulheres. significados práticos ao modelo

Segundo Martins (2004), no biológico das diferenças sexuais,

século XIX, com o triunfo da biologia e atualizando em um campo de


conhecimentos
práticos e disciplinares a visão da para a identificação histórica e
especificidade da natureza feminina e cultural do feminino como
da vocação maternal da mulher. “fisiologicamente patológico”. Desta
A ginecologia também se forma, o conhecimento científico
estrutura como especialidade no relacionado ao funcionamento do
século XIX, definida como a “ciência corpo da mulher contribuiu de forma
da mulher”, tomando como objeto de importante para a definição de
conhecimento e intervenção médica a papéis sociais distintos entre os
sexualidade e os órgãos sexuais gêneros, sendo ao homem atribuído a
femininos. Com seu advento, função de provedor e à mulher a
aprofundou-se a ideia da diferença função doméstica e reprodutiva.
sexual radical das mulheres e Estas funções foram legitimadas
conformou-se definitivamente um através de
campo de práticas médicas substratos biológicos relacionados a
diferenciado, para uma categoria aspectos anatômicos e fisiológicos
diferenciada de clientes: as mulheres. inerentes ao sexo, e por isso
Para esses médicos, os órgãos imutáveis.
sexuais determinariam a natureza Entretanto, nas últimas décadas
nervosa, frágil e inconstante da do século passado, questões de
mulher, e sua predisposição a doenças natureza sócio econômica
e perturbações mentais, moldando colaboraram na modificação dos
assim suas capacidades sociais. A papeis sociais relacionados ao gênero.
sexualidade feminina foi representada As mulheres passaram não somente a
como perigosa e paradoxal, oscilando auxiliar, como muitas vezes a ser
entre a ausência de desejo – definido responsável pela renda familiar. Essa
como a normalidade – e o desejo atualização ideológica dos gêneros, na
excessivo – fator de perturbações figura da “nova mulher independente”
físicas, psíquicas e morais. que controla sua fecundidade, trabalha
Independente de como se fora e tem seu dinheiro “próprio”,
manifestavam, procurava-se uma acabam por ocultar o
etiologia sexual para as doenças das aprofundamento da dupla jornada, da
mulheres, pois estas estariam exploração e da forma em que estas
inequivocamente determinadas por seu estratégias contribuem para a
sexo. reprodução da desigualdade em nível
Estes fatores concorreram de gênero e de classe social (Giffin,
2002). mais horas do que os homens e que,
A situação de saúde envolve pelo menos, metade do seu tempo é
diversos aspectos da vida, como a gasto em atividades não remuneradas,
relação com o meio ambiente, o lazer, o que diminui o seu acesso aos bens
a alimentação e as condições de sociais, inclusive aos serviços de
trabalho, moradia e renda. No caso saúde.
das mulheres, os problemas são A Síntese de Indicadores Sociais
agravados pela discriminação nas 2002, do IBGE, apresenta os seguintes
relações de trabalho e a sobrecarga dados: a população feminina ocupada
com as responsabilidades com o concentra-se nas classes de
trabalho doméstico. Outras variáveis rendimento mais baixas – 71,3% das
como raça, etnia e situação de mulheres que trabalham ganham até
pobreza realçam ainda mais as dois salários mínimos, contra 55,1% dos
desigualdades. As mulheres vivem mais homens, e a desigualdade salarial
do que os homens, porém adoecem aumenta conforme a remuneração. A
mais freqüentemente. A vulnerabilidade proporção de homens que ganham
feminina frente a certas doenças e mais de cinco salários mínimos é de
causas de morte está mais 15,5% e das mulheres é de 9,2%. No que
relacionada com a situação de se refere ao trabalho doméstico, as
discriminação na sociedade do que mulheres dedicadas a essa atividade
com fatores biológicos. (19,2%) e que não recebem
As desigualdades sociais, remuneração (10,5%) é bem maior do
econômicas e culturais se revelam no que a dos homens (0,8% e 5,9%
processo de adoecer e morrer das respectivamente).
populações e de cada pessoa em Assim, da mesma maneira que
particular, de maneira diferenciada. De diferentes populações estão expostas
acordo com os indicadores de saúde, a variados tipos e graus de risco,
as populações expostas a precárias mulheres e homens, em função da
condições de vida estão mais organização social das relações de
vulneráveis e vivem menos. O relatório gênero, também estão expostos a
sobre a situação da População Mundial padrões distintos de sofrimento,
(2002) demonstra que o número de adoecimento e morte. Partindo-se
mulheres que vivem em situação de desse pressuposto, é imprescindível a
pobreza é superior ao de homens, incorporação da perspectiva de
que as mulheres trabalham durante gênero na análise do perfil
epidemiológico e no planejamento de relegadas ao segundo plano, por
ações de saúde, que tenham como serem consideradas restritas ao
objetivo promover a melhoria das espaço e às relações privadas.
condições de vida, a igualdade e os Naquele momento tratava-se de
direitos de cidadania da mulher. revelar as desigualdades nas
2. O Movimento feminista é a política condições de vida e nas relações

de atenção integral da saúde da entre os homens e as mulheres, os

mulher. problemas associados à sexualidade e


à reprodução, as dificuldades
No Brasil, a saúde da mulher foi
relacionadas à anticoncepção e à
incorporada às políticas nacionais de
prevenção de doenças sexualmente
saúde nas primeiras décadas do
transmissíveis e a sobrecarga de
século XX, sendo limitada, nesse
trabalho das mulheres, responsáveis
período, às demandas relativas à
pelo trabalho doméstico e de criação
gravidez e ao parto. Os programas
dos filhos.
materno-infantis, elaborados nas
décadas de 30, 50 e 70, traduziam Durante seus primeiros anos de

uma visão restrita sobre a mulher, atuação política, o movimento

baseada em sua especificidade feminista buscou construir uma base

biológica e no seu papel social de mãe organizacional apoiado em grupos

e doméstica, responsável pela criação, autônomos e, ao mesmo tempo,

pela educação e pelo cuidado com a expandir seu alcance levando suas

saúde dos filhos e demais familiares. propostas a organizações de classe,


sindicatos e universidades. Uma das
No âmbito do movimento
reivindicações do movimento feminista
feminista brasileiro, esses programas
consistia no direito da mulher ao
foram vigorosamente criticados pela
controle de seu corpo, permitindo um
perspectiva reducionista com que
exercício da sexualidade livre da
tratavam a mulher, que tinha acesso
ameaça da gravidez não desejada,
a alguns cuidados de saúde no ciclo
expressando uma nova consciência do
gravídicio-puerperal, ficando sem
corpo feminino, e uma busca das
assistência na maior parte de sua vida.
transformações das questões de
Com forte atuação no campo da
gênero.
saúde, o movimento de mulheres
contribuiu para introduzir na agenda As mulheres organizadas

política nacional, questões, até então, argumentavam que as desigualdades


nas relações sociais entre homens e
mulheres se traduziam também em Integral à Saúde da Mulher (PAISM). O
problemas de saúde que afetavam PAISM foi também influenciado pelos
particularmente a população feminina. movimentos sanitaristas, principalmente
Por isso, fazia-se necessário na adoção de uma perspectiva
criticá-los, buscando identificar e integral de saúde e defesa da
propor processos políticos que universalidade. Divulgado em 1983,
promovessem mudanças na sociedade representava um raro exemplo de
e consequentemente na qualidade de colaboração entre Estado e sociedade
vida da população. civil, constituindo em uma das
Com base naqueles argumentos, primeiras iniciativas governamentais
foi proposto que a perspectiva de de incorporação de princípios
mudança das relações sociais entre feministas em políticas públicas de
homens e mulheres prestasse suporte saúde.
à elaboração, execução e avaliação O PAISM adotou uma atitude
das políticas de saúde da mulher. As revolucionária ao enfocar a saúde da
mulheres organizadas reivindicaram, mulher de forma integral, fugindo da
portanto, sua condição de sujeitos de abordagem limitada à saúde
direito, com necessidades que reprodutiva, e abrangendo tudo aquilo
extrapolavam o momento da gestação que era preconizado em termo de
e parto, demandando ações que lhes desenvolvimento de políticas e
proporcionam melhoria das condições programas setoriais equitativos em
de saúde em todos os ciclos de vida. termo de gênero. No entanto,
Ações que contemplassem as enormes dificuldades vêm sendo
particularidades dos diferentes enfrentadas para implantar
grupos populacionais, e as condições efetivamente a integralidade e a
sociais, econômicas, culturais e equidade no interior de um sistema de
afetivas, em que estivessem inseridos. saúde que tende a seguir um modelo
As primeiras experiências de de especialização na clínica e
elaboração de políticas públicas com verticalidade dos programas. Por
perspectiva de gênero ocorreram na outro lado, assim como ocorreu em
década de 80. Particularmente relação ao Sistema Único de Saúde
relevante foi a articulação entre as (SUS), ao ser circunscrito a uma
universidades, o movimento feminista e proposta assistencial, o PAISM não se
o Ministério da Saúde que veio a consubstanciou como projeto de
resultar no Programa de Assistência saúde de âmbito multisetorial.
O processo de implantação e avanços no campo dos direitos sexuais
implementação do PAISM apresentou e reprodutivos, o Ministério da Saúde
especificidades no período de 84 a publicou em 2004 “A Política Nacional
89 e na década de 90, sendo de Atenção Integral à Saúde da
influenciado, a partir da proposição do Mulher” que incorpora num enfoque
SUS, pelas características da nova de gênero, a integralidade e a
política de saúde, pelo processo de promoção da saúde como princípios
municipalização e principalmente pela norteadores. As ações de saúde
reorganização da atenção básica, por propostas por esta política
meio da estratégia do Programa enfatizam: a melhoria da atenção
Saúde da Família. Estudos realizados obstétrica, o planejamento familiar, a
para avaliar os estágios de atenção ao abortamento inseguro, o
implementação da política de saúde da combate à violência doméstica e
mulher demonstram a existência de sexual e o cuidado à saúde da
dificuldades na implantação dessas adolescente e da mulher no climatério.
ações e, embora não se tenha um Agrega, também, a prevenção e o
panorama abrangente da situação em tratamento de mulheres vivendo com
todos os municípios, pode-se afirmar HIV/AIDS, as portadoras de doenças
que a maioria enfrenta ainda crônicas não transmissíveis, incluindo
dificuldades políticas, técnicas e saúde mental, e de câncer
administrativas. Além disso, a ginecológico. Além disso, amplia as
organização e financiamento ações para grupos historicamente
precários deste programa não têm alijados das políticas públicas (lésbicas,
permitido um desempenho satisfatório mulheres negras, indígenas, residentes
tanto no atendimento às necessidades em zonas rurais e mulheres em
básicas no ciclo gravídico-puerperal, situação de prisão), nas suas
quanto na assistência a outros especificidades e necessidades. Esta
problemas de saúde. Como política ainda propõe diretrizes para a
conseqüência observa-se um relativo humanização e a qualidade do
esvaziamento dos seus aspectos mais atendimento, questões ainda pendentes
criativos e inovadores, reduzindo-o, na atenção à saúde das mulheres.
na maioria das vezes, a metas
focalizadas e à assistência gineco 3. O sistema de saúde e a atenção à
obstétrica tradicional.
mulher
Classicamente, assistência à saúde da
Com o objetivo de consolidar os
mulher refere-se ao atendimento de a fragmentação no atendimento à
condições de saúde relacionadas às mulher, visto que questões de ordem
funções reprodutivas, sobretudo o não reprodutiva dificilmente são
atendimento ao ciclo gravídicio avaliadas durante este contato com o
puerperal e a anticoncepção, sendo sistema.
ainda incluídos o controle do câncer Por outro lado, o atendimento à
de colo uterino e mama. Entretanto, mulher por condições não
as principais causas de contato das relacionadas à reprodução, sejam
mulheres com o sistema de saúde são agudas ou crônicas, carece da
de natureza não-reprodutivas, com abordagem de gênero. Não há,
destaque para as doenças crônicas. rotineiramente, preocupações com
No Brasil, segundo o Sistema de características próprias da mulher,
Informação de Mortalidade (2003), as sejam de ordem biológica, psicológica,
principais causas de morte da cultural ou social. Na maioria das
população feminina são as doenças vezes, nem mesmo questões relativas
cardiovasculares, destacando-se o às diferenças anátomo-fisiológicas são
infarto agudo do miocárdio e o consideradas.
acidente vascular cerebral; as O atendimento fragmentado,
neoplasias, principalmente o câncer de baseado nas alterações biológicas e
mama, de pulmão e o de colo do centrado em intervenções
útero; as doenças do aparelho tecnológicas, não se limita ao
respiratório, marcadamente as atendimento à mulher, sendo
pneumonias; doenças endócrinas, constitutivo do modelo biomédico
nutricionais e metabólicas, com predominante na assistência à saúde. A
destaque para o diabetes; e as causas interferência na saúde da mulher
externas. dessas características do modelo
Baseando-se na concepção assistencial reflete-se nas respostas
reprodutiva, foram estruturados insuficientes às necessidades de
serviços específicos para o saúde, enfrentadas ainda de forma
atendimento à saúde da mulher, o que indistinta entre mulheres e homens,
auxiliou na facilitação do acesso aos estes historicamente considerados
cuidados com a saúde reprodutiva. como o padrão de normalidade.
Estes serviços, entretanto, acabaram Outro aspecto do sistema de
por se contrapor ao princípio da saúde a ser considerado, que apesar
abordagem integral, contribuindo para de não se restringir à saúde da
mulher tem importante influência na ilustram como necessidades
abordagem deste grupo populacional, é tecnológicas, definidas pelas grandes
a comercialização da saúde, própria indústrias da saúde, foram aceitas
das economias de mercado e sua como verdades sanitárias. Através de
capacidade de definir necessidades. intenso trabalho de propaganda entre
As lucrativas indústrias de o público leigo e entre os
equipamentos e fármacos profissionais médicos, as indústrias
relacionam-se com a saúde como um farmacêuticas difundiram a ideia que
bem de consumo, a ser adquirido a a menopausa constitui um estado
custos cada vez mais elevados. patológico, que como tal necessitaria
Iniciando-se antes do nascimento e de tratamento medicamentoso de
estendendo-se até a velhice e a morte, longo prazo.
a mulher é objeto permanente de A equidade é um importante
promoção de consumo de bens e ponto a ser destacado na discussão
serviços que afirmam visar a do atendimento à mulher, visto existir
promoção da sua saúde, beleza, diferenças nítidas entre mulheres de
sexualidade e felicidade geral (Barros, diferentes classes sociais no que se
1991 apud Silver,1999). relaciona a vários aspectos da
Assim, a oferta e utilização de assistência, sobretudo ao acesso a
tecnologias médicas são orientadas serviços e insumos. Apesar da
pelos interesses de mercado e não transformação das práticas e
por razões de interesse sanitário. ideologias dominantes, o gênero é um
Esta tentativa de medicalizar a vida da sistema entre outros que atuam de
mulher é altamente lucrativa, legitimada forma entrelaçada no plano social,
em ampla, e enviesada, literatura com resultados às vezes
científica, que precisa ser avaliada contraditórios, diferentes para
cuidadosamente. Os profissionais de mulheres em variadas situações
saúde têm papel fundamental na sociais, econômicas e culturais
afirmação deste cenário, e como (Giffin, 2002).
consequência de uma formação Na discussão da assistência à
profissional acrítica, incorporam, saúde da mulher é fundamental avaliar
indiscriminadamente, a sua prática, a qualidade do atendimento nos
tecnologias em saúde. serviços de saúde, determinando a
A terapia de reposição hormonal capacidade destes serviços em
(TRH) é um dos vários exemplos que contemplar todas as condições de
saúde com ações de promoção, reprodutivos, religião,
prevenção, assistência e orientação sexual, condição
recuperação, assegurando atenção familiar ou médica.
integral e individualizada. Garantir
acesso à consulta Estes princípios têm uma clara
pode não ser suficiente, pois em aplicabilidade para a saúde da mulher
muitas vezes a qualidade da atenção é em geral, no que tange tanto aos
tão precária que em pouco ou nada problemas não reprodutivos como aos
contribuem para melhoria da saúde da problemas reprodutivos e sociais. A
mulher. incorporação desses conceitos na

Correa & Petchesky (1994, apud prática cotidiana dos serviços

Silver, 1999) propuseram quatro certamente contribuiria para

princípios para constituir as bases melhoria da assistência, com

éticas dos direitos reprodutivos e conseqüente impacto positivo na

sexuais: qualidade de vida das mulheres.

• o respeito à integridade A experiência demonstra que é

corporal, entendido como o necessário não apenas ter boas

direito de segurança e controle intenções e um programa

sobre o próprio corpo e normativamente correto, como o

incorporando o princípio da PAISM, para garantir atendimento de

integralidade; qualidade à mulher. É preciso

• o respeito à pessoa, a seus desenvolver, cada vez mais, a

desejos e suas experiências, capacidade de gerenciar os serviços

considerando a mulher como a e formar profissionais da saúde

responsável pelas tomadas de orientados a uma assistência integral e

decisão em relação à sua saúde; humana, com equidade, e sem o uso

• a igualdade, aplicando-se tanto abusivo de tecnologias médicas.

nas diferenças homem e Entretanto, a formação dos


mulher, como entre mulheres profissionais de saúde carece, em sua
de diferentes classes social, maioria, de conteúdos relacionados a
idade, nacionalidade e etnicidade; aspectos não biológicos da saúde. No
• o respeito às diversidades – as que se refere especificamente à
diferenças entre as mulheres formação médica, nota-se o
em valores, cultura, desejos predomínio da lógica cartesiana
mecanicista e dos conceitos
flexnerianos, e a não incorporação de enfrentar os problemas do binômio
saberes provenientes das ciências saúde-doença da população nas
sociais e humanas relacionadas à esferas familiar e comunitária, e não
saúde. Os profissionais assim apenas na instância dos serviços.
formados não se apresentam Entretanto, observam-se
sensibilizados nem suficientemente algumas incongruências neste sentido,
instrumentalizados para lidar com as ao se analisar diretrizes traçadas
múltiplas dimensões do processo pelas mesmas instâncias gestoras
saúde-doença, dificultando de forma para a formação médica. A análise da
determinante a mudança de um resolução do Conselho Nacional de
modelo biologicista e fragmentado Residência Médica (2004), órgão do
para uma atenção holística e integral. Ministério da Educação, que dispõe
O Ministério da Saúde e o sobre conteúdos do Programa de
Ministério da Educação instituíram em Residência Médica de Obstetrícia e
2002 o Programa Nacional de A ginecologia demonstra a manutenção
Incentivo a Mudanças Curriculares dos conceitos dominantes em relação
nos Cursos de Medicina (Promed) com tanto à formação médica quanto à
o objetivo de incentivar as escolas abordagem à saúde da mulher. Os
médicas a incorporar mudanças aspectos biológicos, com destaque
pedagógicas significativas nos para as questões reprodutivas da
currículos dos cursos de medicina. O saúde da mulher, são predominantes,
Promed apresenta uma proposta de senão exclusivos. Questões relativas
intervenção no processo formativo aos aspectos sociais, culturais e
para que os programas de graduação psicológicos, assim como discussões
possam deslocar o eixo da formação sobre gênero são negligenciadas.
médica – centrado na assistência Desta forma, como conseguir
individual prestada em unidades que os princípios norteadores do
hospitalares – para um outro em que a PAISM sejam implementados na
formação esteja sintonizada com o prática assistencial? Não há programa,
SUS, em especial com a atenção independente de sua excelência
básica – considerando as dimensões teórica e técnica, que consiga êxito
sociais, econômicas e culturais que se em um contexto marcado por baixo
fazem presentes no processo de investimento de ordem estrutural e
adoecimento humano –, no sentido de processual, além de recursos
preparar os profissionais para humanos com formação conceitual
não consonante com os princípios de construção de planos e programas.
integralidade propostos. Faz-se necessária a incorporação dos
princípios propostos na prática

5. Conclusão cotidiana dos serviços, que devem

A implementação das políticas de contar com suficientes recursos

atenção integral à saúde da mulher é financeiros e com recursos humanos

um desafio posto para o sistema de capacitados a executar este novo

saúde. Estas políticas apresentam modelo.

caráter contra-hegemônico à medida Estes desafios somente serão


que introduzem conceitos de superados com a articulação dos
assistência à saúde que se diversos segmentos sociais envolvidos
contrapõem a maneira histórica de na questão. Estado, profissionais de
se compreender o processo saúde e usuárias precisam trabalhar
saúde-doença: sexo x gênero, de maneira colaborativa no
biologismo x holismo, integralidade x desenvolvimento de estratégias que
fragmentação. induzam a reorganização da atenção

A mudança de modelo de à saúde da mulher no sentido da

assistência não depende somente da integralidade e equidade.

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