1) O documento discute os desafios para implementar a atenção integral à saúde da mulher na prática assistencial, incluindo a necessidade de compreender as questões de gênero e as peculiaridades das mulheres.
2) Historicamente, a medicina contribuiu para definir papéis de gênero distintos, vendo as mulheres como fisiologicamente inferiores e destinadas principalmente às funções reprodutiva e doméstica.
3) Apesar de mudanças nas últimas décadas, as mulheres ainda enfrentam dupla j
1) O documento discute os desafios para implementar a atenção integral à saúde da mulher na prática assistencial, incluindo a necessidade de compreender as questões de gênero e as peculiaridades das mulheres.
2) Historicamente, a medicina contribuiu para definir papéis de gênero distintos, vendo as mulheres como fisiologicamente inferiores e destinadas principalmente às funções reprodutiva e doméstica.
3) Apesar de mudanças nas últimas décadas, as mulheres ainda enfrentam dupla j
1) O documento discute os desafios para implementar a atenção integral à saúde da mulher na prática assistencial, incluindo a necessidade de compreender as questões de gênero e as peculiaridades das mulheres.
2) Historicamente, a medicina contribuiu para definir papéis de gênero distintos, vendo as mulheres como fisiologicamente inferiores e destinadas principalmente às funções reprodutiva e doméstica.
3) Apesar de mudanças nas últimas décadas, as mulheres ainda enfrentam dupla j
A saúde é um direito humano deve mover-se, então, no sentido da fundamental que deve ser promoção da saúde, além das suas compreendida como um recurso responsabilidades de prover serviços para a vida, não sendo somente a clínicos e de urgência. Os serviços de ausência de doenças. Saúde é o saúde precisam adotar uma postura resultado de um processo de abrangente que perceba e respeite as produção social que expressa a peculiaridades sociais e culturais, qualidade de vida de uma população, apoiando as necessidades individuais e entendendo-se qualidade de vida como comunitárias para uma vida mais uma condição de existência dos saudável. A reorientação dos serviços homens no seu viver cotidiano, de saúde requer mudanças na representado por um conjunto educação e no ensino dos integrado de recursos sociais e profissionais da área de saúde, pessoais. buscando induzir transformações
No campo do atendimento à na atitude e na organização desses
saúde da mulher, para que o conceito serviços para que focalizem as de integralidade seja efetivamente necessidades globais do indivíduo, implementado faz-se necessário como pessoa integral. transformar a tradicional abordagem Diversos desafios se colocam baseada nas características para a implementação da atenção anatomo-fisiológicas do sexo feminino integral à saúde da mulher na prática em uma condução direcionada para assistencial. A abordagem das as questões referentes às questões relacionadas ao gênero peculiaridades de gênero. feminino, presente na elaboração de diversas políticas públicas, precisa ser a ascensão do poder médico, compreendida e incorporada por consolidou-se um novo modo de gestores e principalmente pelos pensar as distinções de gênero: as profissionais de saúde. Esses diferenças corporais se instalaram profissionais, responsáveis diretos progressivamente como referência pelo atendimento à população, do feminino e do masculino. No sexo possuem fundamental papel na biológico, médicos, biólogos, aplicação cotidiana dos conceitos de anatomistas e fisiologistas viram a integralidade e equidade, origem de uma irredutível diferença transformando-os em ação entre homens e mulheres expressada concreta, capaz de modificar os não somente na ordem níveis de saúde da população. físico-anatômica, como também em 1. Gênero: Conceituação, uma ordem moral e social. Em seu afã Historicidade e Importância Sanitária de definir a “mulher”, eles
Gênero e sexo são muitas vezes promoveram um intenso debate
considerados como sinônimos, quando público sobre a domesticidade e a
na verdade correspondem a inferioridade das mulheres, a vocação
conceitos distintos. Segundo Schraiber maternal, a sexualidade perigosa, o
& D’Oliveira (1999), enquanto sexo pudor feminino, a pouca aptidão para
indica uma diferença genética e a política e as ciências etc.,
anatômica inscrita no corpo, gênero contribuindo para fundamentar a
indica a construção social, material e exclusão das mulheres da esfera da
simbólica a partir desta diferença. O cidadania e a negação de sua
gênero, como elemento constitutivo autonomia e subjetividade.
das relações sociais entre homens e A constituição da obstetrícia
mulheres, é uma construção social e como conhecimento prático e histórica. É construído e alimentado disciplinar, no século XIX, transforma com base em símbolos, normas e o parto de um evento social ligado à instituições que definem modelos de cotidianidade das mulheres em um masculinidade e feminilidade e padrões evento médico e hospitalar. As de comportamento aceitáveis ou não ciências obstétricas conferem para homens e mulheres. significados práticos ao modelo
Segundo Martins (2004), no biológico das diferenças sexuais,
século XIX, com o triunfo da biologia e atualizando em um campo de
conhecimentos práticos e disciplinares a visão da para a identificação histórica e especificidade da natureza feminina e cultural do feminino como da vocação maternal da mulher. “fisiologicamente patológico”. Desta A ginecologia também se forma, o conhecimento científico estrutura como especialidade no relacionado ao funcionamento do século XIX, definida como a “ciência corpo da mulher contribuiu de forma da mulher”, tomando como objeto de importante para a definição de conhecimento e intervenção médica a papéis sociais distintos entre os sexualidade e os órgãos sexuais gêneros, sendo ao homem atribuído a femininos. Com seu advento, função de provedor e à mulher a aprofundou-se a ideia da diferença função doméstica e reprodutiva. sexual radical das mulheres e Estas funções foram legitimadas conformou-se definitivamente um através de campo de práticas médicas substratos biológicos relacionados a diferenciado, para uma categoria aspectos anatômicos e fisiológicos diferenciada de clientes: as mulheres. inerentes ao sexo, e por isso Para esses médicos, os órgãos imutáveis. sexuais determinariam a natureza Entretanto, nas últimas décadas nervosa, frágil e inconstante da do século passado, questões de mulher, e sua predisposição a doenças natureza sócio econômica e perturbações mentais, moldando colaboraram na modificação dos assim suas capacidades sociais. A papeis sociais relacionados ao gênero. sexualidade feminina foi representada As mulheres passaram não somente a como perigosa e paradoxal, oscilando auxiliar, como muitas vezes a ser entre a ausência de desejo – definido responsável pela renda familiar. Essa como a normalidade – e o desejo atualização ideológica dos gêneros, na excessivo – fator de perturbações figura da “nova mulher independente” físicas, psíquicas e morais. que controla sua fecundidade, trabalha Independente de como se fora e tem seu dinheiro “próprio”, manifestavam, procurava-se uma acabam por ocultar o etiologia sexual para as doenças das aprofundamento da dupla jornada, da mulheres, pois estas estariam exploração e da forma em que estas inequivocamente determinadas por seu estratégias contribuem para a sexo. reprodução da desigualdade em nível Estes fatores concorreram de gênero e de classe social (Giffin, 2002). mais horas do que os homens e que, A situação de saúde envolve pelo menos, metade do seu tempo é diversos aspectos da vida, como a gasto em atividades não remuneradas, relação com o meio ambiente, o lazer, o que diminui o seu acesso aos bens a alimentação e as condições de sociais, inclusive aos serviços de trabalho, moradia e renda. No caso saúde. das mulheres, os problemas são A Síntese de Indicadores Sociais agravados pela discriminação nas 2002, do IBGE, apresenta os seguintes relações de trabalho e a sobrecarga dados: a população feminina ocupada com as responsabilidades com o concentra-se nas classes de trabalho doméstico. Outras variáveis rendimento mais baixas – 71,3% das como raça, etnia e situação de mulheres que trabalham ganham até pobreza realçam ainda mais as dois salários mínimos, contra 55,1% dos desigualdades. As mulheres vivem mais homens, e a desigualdade salarial do que os homens, porém adoecem aumenta conforme a remuneração. A mais freqüentemente. A vulnerabilidade proporção de homens que ganham feminina frente a certas doenças e mais de cinco salários mínimos é de causas de morte está mais 15,5% e das mulheres é de 9,2%. No que relacionada com a situação de se refere ao trabalho doméstico, as discriminação na sociedade do que mulheres dedicadas a essa atividade com fatores biológicos. (19,2%) e que não recebem As desigualdades sociais, remuneração (10,5%) é bem maior do econômicas e culturais se revelam no que a dos homens (0,8% e 5,9% processo de adoecer e morrer das respectivamente). populações e de cada pessoa em Assim, da mesma maneira que particular, de maneira diferenciada. De diferentes populações estão expostas acordo com os indicadores de saúde, a variados tipos e graus de risco, as populações expostas a precárias mulheres e homens, em função da condições de vida estão mais organização social das relações de vulneráveis e vivem menos. O relatório gênero, também estão expostos a sobre a situação da População Mundial padrões distintos de sofrimento, (2002) demonstra que o número de adoecimento e morte. Partindo-se mulheres que vivem em situação de desse pressuposto, é imprescindível a pobreza é superior ao de homens, incorporação da perspectiva de que as mulheres trabalham durante gênero na análise do perfil epidemiológico e no planejamento de relegadas ao segundo plano, por ações de saúde, que tenham como serem consideradas restritas ao objetivo promover a melhoria das espaço e às relações privadas. condições de vida, a igualdade e os Naquele momento tratava-se de direitos de cidadania da mulher. revelar as desigualdades nas 2. O Movimento feminista é a política condições de vida e nas relações
de atenção integral da saúde da entre os homens e as mulheres, os
mulher. problemas associados à sexualidade e
à reprodução, as dificuldades No Brasil, a saúde da mulher foi relacionadas à anticoncepção e à incorporada às políticas nacionais de prevenção de doenças sexualmente saúde nas primeiras décadas do transmissíveis e a sobrecarga de século XX, sendo limitada, nesse trabalho das mulheres, responsáveis período, às demandas relativas à pelo trabalho doméstico e de criação gravidez e ao parto. Os programas dos filhos. materno-infantis, elaborados nas décadas de 30, 50 e 70, traduziam Durante seus primeiros anos de
uma visão restrita sobre a mulher, atuação política, o movimento
baseada em sua especificidade feminista buscou construir uma base
biológica e no seu papel social de mãe organizacional apoiado em grupos
e doméstica, responsável pela criação, autônomos e, ao mesmo tempo,
pela educação e pelo cuidado com a expandir seu alcance levando suas
saúde dos filhos e demais familiares. propostas a organizações de classe,
sindicatos e universidades. Uma das No âmbito do movimento reivindicações do movimento feminista feminista brasileiro, esses programas consistia no direito da mulher ao foram vigorosamente criticados pela controle de seu corpo, permitindo um perspectiva reducionista com que exercício da sexualidade livre da tratavam a mulher, que tinha acesso ameaça da gravidez não desejada, a alguns cuidados de saúde no ciclo expressando uma nova consciência do gravídicio-puerperal, ficando sem corpo feminino, e uma busca das assistência na maior parte de sua vida. transformações das questões de Com forte atuação no campo da gênero. saúde, o movimento de mulheres contribuiu para introduzir na agenda As mulheres organizadas
política nacional, questões, até então, argumentavam que as desigualdades
nas relações sociais entre homens e mulheres se traduziam também em Integral à Saúde da Mulher (PAISM). O problemas de saúde que afetavam PAISM foi também influenciado pelos particularmente a população feminina. movimentos sanitaristas, principalmente Por isso, fazia-se necessário na adoção de uma perspectiva criticá-los, buscando identificar e integral de saúde e defesa da propor processos políticos que universalidade. Divulgado em 1983, promovessem mudanças na sociedade representava um raro exemplo de e consequentemente na qualidade de colaboração entre Estado e sociedade vida da população. civil, constituindo em uma das Com base naqueles argumentos, primeiras iniciativas governamentais foi proposto que a perspectiva de de incorporação de princípios mudança das relações sociais entre feministas em políticas públicas de homens e mulheres prestasse suporte saúde. à elaboração, execução e avaliação O PAISM adotou uma atitude das políticas de saúde da mulher. As revolucionária ao enfocar a saúde da mulheres organizadas reivindicaram, mulher de forma integral, fugindo da portanto, sua condição de sujeitos de abordagem limitada à saúde direito, com necessidades que reprodutiva, e abrangendo tudo aquilo extrapolavam o momento da gestação que era preconizado em termo de e parto, demandando ações que lhes desenvolvimento de políticas e proporcionam melhoria das condições programas setoriais equitativos em de saúde em todos os ciclos de vida. termo de gênero. No entanto, Ações que contemplassem as enormes dificuldades vêm sendo particularidades dos diferentes enfrentadas para implantar grupos populacionais, e as condições efetivamente a integralidade e a sociais, econômicas, culturais e equidade no interior de um sistema de afetivas, em que estivessem inseridos. saúde que tende a seguir um modelo As primeiras experiências de de especialização na clínica e elaboração de políticas públicas com verticalidade dos programas. Por perspectiva de gênero ocorreram na outro lado, assim como ocorreu em década de 80. Particularmente relação ao Sistema Único de Saúde relevante foi a articulação entre as (SUS), ao ser circunscrito a uma universidades, o movimento feminista e proposta assistencial, o PAISM não se o Ministério da Saúde que veio a consubstanciou como projeto de resultar no Programa de Assistência saúde de âmbito multisetorial. O processo de implantação e avanços no campo dos direitos sexuais implementação do PAISM apresentou e reprodutivos, o Ministério da Saúde especificidades no período de 84 a publicou em 2004 “A Política Nacional 89 e na década de 90, sendo de Atenção Integral à Saúde da influenciado, a partir da proposição do Mulher” que incorpora num enfoque SUS, pelas características da nova de gênero, a integralidade e a política de saúde, pelo processo de promoção da saúde como princípios municipalização e principalmente pela norteadores. As ações de saúde reorganização da atenção básica, por propostas por esta política meio da estratégia do Programa enfatizam: a melhoria da atenção Saúde da Família. Estudos realizados obstétrica, o planejamento familiar, a para avaliar os estágios de atenção ao abortamento inseguro, o implementação da política de saúde da combate à violência doméstica e mulher demonstram a existência de sexual e o cuidado à saúde da dificuldades na implantação dessas adolescente e da mulher no climatério. ações e, embora não se tenha um Agrega, também, a prevenção e o panorama abrangente da situação em tratamento de mulheres vivendo com todos os municípios, pode-se afirmar HIV/AIDS, as portadoras de doenças que a maioria enfrenta ainda crônicas não transmissíveis, incluindo dificuldades políticas, técnicas e saúde mental, e de câncer administrativas. Além disso, a ginecológico. Além disso, amplia as organização e financiamento ações para grupos historicamente precários deste programa não têm alijados das políticas públicas (lésbicas, permitido um desempenho satisfatório mulheres negras, indígenas, residentes tanto no atendimento às necessidades em zonas rurais e mulheres em básicas no ciclo gravídico-puerperal, situação de prisão), nas suas quanto na assistência a outros especificidades e necessidades. Esta problemas de saúde. Como política ainda propõe diretrizes para a conseqüência observa-se um relativo humanização e a qualidade do esvaziamento dos seus aspectos mais atendimento, questões ainda pendentes criativos e inovadores, reduzindo-o, na atenção à saúde das mulheres. na maioria das vezes, a metas focalizadas e à assistência gineco 3. O sistema de saúde e a atenção à obstétrica tradicional. mulher Classicamente, assistência à saúde da Com o objetivo de consolidar os mulher refere-se ao atendimento de a fragmentação no atendimento à condições de saúde relacionadas às mulher, visto que questões de ordem funções reprodutivas, sobretudo o não reprodutiva dificilmente são atendimento ao ciclo gravídicio avaliadas durante este contato com o puerperal e a anticoncepção, sendo sistema. ainda incluídos o controle do câncer Por outro lado, o atendimento à de colo uterino e mama. Entretanto, mulher por condições não as principais causas de contato das relacionadas à reprodução, sejam mulheres com o sistema de saúde são agudas ou crônicas, carece da de natureza não-reprodutivas, com abordagem de gênero. Não há, destaque para as doenças crônicas. rotineiramente, preocupações com No Brasil, segundo o Sistema de características próprias da mulher, Informação de Mortalidade (2003), as sejam de ordem biológica, psicológica, principais causas de morte da cultural ou social. Na maioria das população feminina são as doenças vezes, nem mesmo questões relativas cardiovasculares, destacando-se o às diferenças anátomo-fisiológicas são infarto agudo do miocárdio e o consideradas. acidente vascular cerebral; as O atendimento fragmentado, neoplasias, principalmente o câncer de baseado nas alterações biológicas e mama, de pulmão e o de colo do centrado em intervenções útero; as doenças do aparelho tecnológicas, não se limita ao respiratório, marcadamente as atendimento à mulher, sendo pneumonias; doenças endócrinas, constitutivo do modelo biomédico nutricionais e metabólicas, com predominante na assistência à saúde. A destaque para o diabetes; e as causas interferência na saúde da mulher externas. dessas características do modelo Baseando-se na concepção assistencial reflete-se nas respostas reprodutiva, foram estruturados insuficientes às necessidades de serviços específicos para o saúde, enfrentadas ainda de forma atendimento à saúde da mulher, o que indistinta entre mulheres e homens, auxiliou na facilitação do acesso aos estes historicamente considerados cuidados com a saúde reprodutiva. como o padrão de normalidade. Estes serviços, entretanto, acabaram Outro aspecto do sistema de por se contrapor ao princípio da saúde a ser considerado, que apesar abordagem integral, contribuindo para de não se restringir à saúde da mulher tem importante influência na ilustram como necessidades abordagem deste grupo populacional, é tecnológicas, definidas pelas grandes a comercialização da saúde, própria indústrias da saúde, foram aceitas das economias de mercado e sua como verdades sanitárias. Através de capacidade de definir necessidades. intenso trabalho de propaganda entre As lucrativas indústrias de o público leigo e entre os equipamentos e fármacos profissionais médicos, as indústrias relacionam-se com a saúde como um farmacêuticas difundiram a ideia que bem de consumo, a ser adquirido a a menopausa constitui um estado custos cada vez mais elevados. patológico, que como tal necessitaria Iniciando-se antes do nascimento e de tratamento medicamentoso de estendendo-se até a velhice e a morte, longo prazo. a mulher é objeto permanente de A equidade é um importante promoção de consumo de bens e ponto a ser destacado na discussão serviços que afirmam visar a do atendimento à mulher, visto existir promoção da sua saúde, beleza, diferenças nítidas entre mulheres de sexualidade e felicidade geral (Barros, diferentes classes sociais no que se 1991 apud Silver,1999). relaciona a vários aspectos da Assim, a oferta e utilização de assistência, sobretudo ao acesso a tecnologias médicas são orientadas serviços e insumos. Apesar da pelos interesses de mercado e não transformação das práticas e por razões de interesse sanitário. ideologias dominantes, o gênero é um Esta tentativa de medicalizar a vida da sistema entre outros que atuam de mulher é altamente lucrativa, legitimada forma entrelaçada no plano social, em ampla, e enviesada, literatura com resultados às vezes científica, que precisa ser avaliada contraditórios, diferentes para cuidadosamente. Os profissionais de mulheres em variadas situações saúde têm papel fundamental na sociais, econômicas e culturais afirmação deste cenário, e como (Giffin, 2002). consequência de uma formação Na discussão da assistência à profissional acrítica, incorporam, saúde da mulher é fundamental avaliar indiscriminadamente, a sua prática, a qualidade do atendimento nos tecnologias em saúde. serviços de saúde, determinando a A terapia de reposição hormonal capacidade destes serviços em (TRH) é um dos vários exemplos que contemplar todas as condições de saúde com ações de promoção, reprodutivos, religião, prevenção, assistência e orientação sexual, condição recuperação, assegurando atenção familiar ou médica. integral e individualizada. Garantir acesso à consulta Estes princípios têm uma clara pode não ser suficiente, pois em aplicabilidade para a saúde da mulher muitas vezes a qualidade da atenção é em geral, no que tange tanto aos tão precária que em pouco ou nada problemas não reprodutivos como aos contribuem para melhoria da saúde da problemas reprodutivos e sociais. A mulher. incorporação desses conceitos na
Correa & Petchesky (1994, apud prática cotidiana dos serviços
Silver, 1999) propuseram quatro certamente contribuiria para
princípios para constituir as bases melhoria da assistência, com
éticas dos direitos reprodutivos e conseqüente impacto positivo na
sexuais: qualidade de vida das mulheres.
• o respeito à integridade A experiência demonstra que é
corporal, entendido como o necessário não apenas ter boas
direito de segurança e controle intenções e um programa
sobre o próprio corpo e normativamente correto, como o
incorporando o princípio da PAISM, para garantir atendimento de
integralidade; qualidade à mulher. É preciso
• o respeito à pessoa, a seus desenvolver, cada vez mais, a
desejos e suas experiências, capacidade de gerenciar os serviços
considerando a mulher como a e formar profissionais da saúde
responsável pelas tomadas de orientados a uma assistência integral e
decisão em relação à sua saúde; humana, com equidade, e sem o uso
• a igualdade, aplicando-se tanto abusivo de tecnologias médicas.
nas diferenças homem e Entretanto, a formação dos
mulher, como entre mulheres profissionais de saúde carece, em sua de diferentes classes social, maioria, de conteúdos relacionados a idade, nacionalidade e etnicidade; aspectos não biológicos da saúde. No • o respeito às diversidades – as que se refere especificamente à diferenças entre as mulheres formação médica, nota-se o em valores, cultura, desejos predomínio da lógica cartesiana mecanicista e dos conceitos flexnerianos, e a não incorporação de enfrentar os problemas do binômio saberes provenientes das ciências saúde-doença da população nas sociais e humanas relacionadas à esferas familiar e comunitária, e não saúde. Os profissionais assim apenas na instância dos serviços. formados não se apresentam Entretanto, observam-se sensibilizados nem suficientemente algumas incongruências neste sentido, instrumentalizados para lidar com as ao se analisar diretrizes traçadas múltiplas dimensões do processo pelas mesmas instâncias gestoras saúde-doença, dificultando de forma para a formação médica. A análise da determinante a mudança de um resolução do Conselho Nacional de modelo biologicista e fragmentado Residência Médica (2004), órgão do para uma atenção holística e integral. Ministério da Educação, que dispõe O Ministério da Saúde e o sobre conteúdos do Programa de Ministério da Educação instituíram em Residência Médica de Obstetrícia e 2002 o Programa Nacional de A ginecologia demonstra a manutenção Incentivo a Mudanças Curriculares dos conceitos dominantes em relação nos Cursos de Medicina (Promed) com tanto à formação médica quanto à o objetivo de incentivar as escolas abordagem à saúde da mulher. Os médicas a incorporar mudanças aspectos biológicos, com destaque pedagógicas significativas nos para as questões reprodutivas da currículos dos cursos de medicina. O saúde da mulher, são predominantes, Promed apresenta uma proposta de senão exclusivos. Questões relativas intervenção no processo formativo aos aspectos sociais, culturais e para que os programas de graduação psicológicos, assim como discussões possam deslocar o eixo da formação sobre gênero são negligenciadas. médica – centrado na assistência Desta forma, como conseguir individual prestada em unidades que os princípios norteadores do hospitalares – para um outro em que a PAISM sejam implementados na formação esteja sintonizada com o prática assistencial? Não há programa, SUS, em especial com a atenção independente de sua excelência básica – considerando as dimensões teórica e técnica, que consiga êxito sociais, econômicas e culturais que se em um contexto marcado por baixo fazem presentes no processo de investimento de ordem estrutural e adoecimento humano –, no sentido de processual, além de recursos preparar os profissionais para humanos com formação conceitual não consonante com os princípios de construção de planos e programas. integralidade propostos. Faz-se necessária a incorporação dos princípios propostos na prática
5. Conclusão cotidiana dos serviços, que devem
A implementação das políticas de contar com suficientes recursos
atenção integral à saúde da mulher é financeiros e com recursos humanos
um desafio posto para o sistema de capacitados a executar este novo
saúde. Estas políticas apresentam modelo.
caráter contra-hegemônico à medida Estes desafios somente serão
que introduzem conceitos de superados com a articulação dos assistência à saúde que se diversos segmentos sociais envolvidos contrapõem a maneira histórica de na questão. Estado, profissionais de se compreender o processo saúde e usuárias precisam trabalhar saúde-doença: sexo x gênero, de maneira colaborativa no biologismo x holismo, integralidade x desenvolvimento de estratégias que fragmentação. induzam a reorganização da atenção
A mudança de modelo de à saúde da mulher no sentido da
assistência não depende somente da integralidade e equidade.