Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
org
ISSN 2177-3548
[1] Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) | Título abreviado: Masculinidade hegemônica e déficit de autocuidado à saúde | Endereço para correspondência:
Universidade Federal de São Carlos – Programa de pós-graduação em Psicologia – Nível doutorado. Rod. Washington Luís, km 235 – SP-310 – São Carlos/SP. Cep
13565-905 | Email: alex.psico.2009@gmail.com | doi: org/10.18761/PACa15gh45
(Skinner, 1981). Neste nível são selecionadas práti- trole das regras dos grupos com os quais ele intera-
cas culturais por meio da interação da pessoa com ge. Fazer parte de uma cultura implica em aprender
o ambiente durante o tempo de existência de um determinados padrões comportamentais, e ter ou-
grupo social (Moore, 2018). As práticas culturais tros padrões enfraquecidos, sob controle das con-
são selecionadas à medida que as consequências tingências sociais mantidas por tais grupos, que
por elas produzidas (produto agregado) favorecem exercem o poder de dispor consequências. Ressalta-
a sobrevivência de um grupo (Skinner, 1981). se que “o indivíduo está sujeito a um controle mais
De acordo com Silva e Laurenti (2016), os ní- poderoso quando duas ou mais pessoas manipulam
veis de seleção constituem, respectivamente, a di- variáveis que possuem um efeito comum sobre seu
mensão orgânica na filogênese (o organismo), pes- comportamento” (Skinner, 2003, p. 352).
soal na ontogênese (a pessoa) e reflexiva aprendida Para Skinner (2003) as estratégias de controle
nas práticas culturais (self). Este aspecto multidi- que ocorrem entre os membros de um grupo po-
mensional favorece uma compreemsão comporta- dem ser explicadas pelo condicionamento operan-
mental do gênero. Para as autoras seria na dimen- te, através da existência de contingências culturais,
são pessoal do ser humano (a ontogênese), que pois “o bom comportamento é reforçado e o mal
a noção de gênero pode ser construída de forma punido. A estimulação aversiva condicionada gera-
comportamental. da pelo mal comportamento como resultado da pu-
Segundo Silva e Laurenti (2016) o gênero, em nição se associa a um padrão emocional chamado
termos comportamentais, designa os padrões com- vergonha” (Skinner, 2003, p. 354-355). Destaca-se
portamentais de homens e mulheres considerados que a característica de bom ou mal, como a de cer-
normais em uma dada cultura, que foram apren- to e errado, são contextuais e não essencialistas, na
didos de forma operante no nível ontogenético, medida em que “geralmente se denomina o com-
através de condicionamento operante. A classes de portamento de um indivíduo de bom ou certo na
comportamentos operantes chamada de gênero não medida em que reforça outros membros do grupo e
pode ser esclarecida unicamente pela filogênese, mal ou errado na medida em que se torna aversivo”
mas também pela ontogênese e a cultura. (Skinner, 2003. p. 353). Dessa forma, classes de res-
Ainda sobre a seleção no nível cultural, perce- postas operantes reforçadas em uma cultura podem
be-se que é um tema presente em diversas publica- sofrer punição em outra, recebendo equivalências
ções de Skinner (1971, 1989, 2003) e de outros ana- diferentes: de certo ou errado, bom ou ruim, a de-
listas do comportamento, tais como Baum (2005) pender das contingências culturais compartilhadas
e Gleen (2004, 2010). Nessa perspectiva teórica, a em cada grupo.
cultura é: Já as práticas culturais “dizem respeito a padrões
comportamentais de indivíduos ou de pessoas se
um termo que remete a conjunto de contingên- comportando em grupo, modeladas e mantidas pe-
cias sociais, isto é, contingências de reforçamen- las contingências sociais definidoras de uma dada
to e punição mantidas pelos membros de um cultura” (Fernandes, Carrara, & Zilio, 2017, p. 277).
grupo em contextos específicos. Isso implica Práticas culturais referem-se então ao produto das
dizer que há relações típicas dessa cultura entre contingências sociais, possibilitando a aprendiza-
as pessoas e seus ambientes; nesse sentido, di- gem, manutenção e eventual evolução de uma classe
zemos que um sujeito faz parte de uma cultura de respostas operantes compartilhadas pelos mem-
se as contingências sociais que a caracterizam bros de um grupo em um determinado contexto.
possuírem alguma função no controle de seu Para ilustrar as práticas culturais, ou compor-
comportamento (Fernandes, Carrara, & Zilio, tamentos frequentes compartilhados por uma dada
2017, p. 276). população, Skinner (1971) refere:
A cultura então refere-se à maneira como con- como as pessoas vivem, como criam seus filhos,
tingências de reforçamento e punição são dispostas como coletam ou cultivam comida, em quais ti-
aos indivíduos, em diferentes contextos, sob con- pos de habitações eles vivem, o que vestem, que
jogos costumam jogar, como tratam uns aos ou- O processo de socialização do gênero inicia-se
tros, como governam uns aos outros, e assim por muito cedo, através de dispositivos como roupas,
diante. Esses são os costumes, os comportamen- decoração do quarto, brinquedos e sobretudo prá-
tos habituais, de um povo. (Skinner, 1971, p. 126). ticas parentais de introdução da criança na cultura,
por isso socialização e papel de gênero são concei-
Os grupos sociais controladores das contingên- tos complementares (Bettis & Ferrey, 2016). Esta
cias culturais podem ser identificados na literatura exposição tem início no grupo familiar, amplian-
de Skinner (2003) enquanto agências de controle: o do-se nas escolas, demais instituições sociais e na
governo e a lei, a religião, a psicoterapia, o controle sociedade de forma ampla, caracterizando a ação
econômico e a educação, sobretudo. Para Skinner constante das agências de controle (Malott, 1996;
(2003) as agências de controle são grupos de pessoas Miller, 2016; Mizael, 2018; Skinner, 2003).
que possuem o poder de organizar e manejar con- A maneira desigual como a cultura dá acesso
tingências em um dado ambiente social. Cada uma a consequências reforçadoras e punitivas, tanto
dessas agências possui técnicas de controle específi- para meninos quanto para meninas, inicia-se nas
cas com diferentes efeitos nas práticas culturais. interações familiares e continua nas contingências
presentes na escola, nas relações conjugais, no am-
biente de trabalho, enfim, no ambiente social de
A aprendizagem da masculinidade forma ampla. Por meio deste processo, mulheres
hegemônica segundo a análise do e homens são submetidos a contingências sociais,
comportamento e implicações para sob poder das agências de controle, que proveem
a saúde do homem consequências de forma tal que a emissão de alguns
comportamentos só será reforçada se eles forem
Tanto na concepção da teoria de gênero quanto na consistentes com os modelos, estereótipos e expec-
perspectiva do behaviorismo radical, as diferenças tativas referentes ao gênero no qual são alocados.
de gênero são um subproduto do tipo de tratamen- No decorrer do processo de socialização, alguns
to, da educação formal e informal que crianças, de comportamentos seriam reforçados socialmente,
ambos os sexos, recebem da sociedade ao longo de tendo maior probabilidade de ocorrência, enquan-
suas vidas, bem como da exposição intensa aos es- to outros – incompatíveis com os papéis de gênero
tereótipos sobre o que é permitido para “ser uma dominantes – seriam punidos. Um exemplo dessa
menina” e “ser um menino” a que são expostas em prática é a escolha de brinquedos. Meninos tendem
seus ambientes sociais. Sem extrapolar os limites te- a escolher brinquedos “masculinos”, como armas
óricos das duas áreas, parece plausível afirmar que ou carros, pois provavelmente os pais irão reforçar
ambos descrevem processos muito semelhantes, essa escolha – e punir caso o menino escolha brin-
havendo convergência em pelo menos dois aspec- quedos “femininos” como bonecas. Com o passar
tos: o gênero como uma aprendizagem e a ação da do tempo, alguns padrões de “comportamento mas-
cultura determinando aquilo que será aprendido. culino” que foram reforçados são fortalecidos em
O paradigma da aprendizagem social a respeito outras contingências sociais. Esse exemplo ilustra
das masculinidades “parte do pressuposto de que como os comportamentos de homens são condi-
comportamentos, crenças e atitudes de gênero são cionados de forma operante, assumindo função so-
aprendidos em ambientes sociais por meio de pro- cial e modelando papeis de gênero com os quais ele
cessos básicos de reforço, punição, modelagem e passa a se identificar (Miller, 2016).
aquisição de esquemas ou sistemas de crenças de No caso dos meninos, a punição dos compor-
gênero” (Addis & Cohane, 2005, p. 637). Uma das tamentos não consistentes com o modelo de mas-
principais premissas do modelo é que as mascu- culinidade vigente, provavelmente acarreta em res-
linidades são repertórios complexos, com status pondentes como vergonha/culpa e outros eventos
normativo e prescritivo, que possibilitam a alguns privados, como autopercepção de erro, já o refor-
homens acesso a contextos e posições sociais pri- çamento dos comportamentos assumidos como
vilegiados. “masculinos” eliciaria efeitos emocionais agradáveis
(Skinner, 2003). Como resultado, é fortalecido um Esses operantes condicionados podem ser de-
repertório rígido sobre o que significa ser homem, nominados também como comportamentos de
que inclui comportamentos aceitáveis e inaceitáveis risco. O constructo comportamento de risco é defi-
dentro desse estereótipo – por exemplo, a crença nido como qualquer atividade realizada por indiví-
de que um homem precisa ser agressivo (Addis & duos, com frequência e intensidade tais, que acar-
Cohane, 2005). retem maior risco de doenças, acidentes ou agravos
O trabalho de Nicolodi e Hunziker (2021) que à saúde física e mental (Moura, Torres, Cadete, &
conceituou o termo patriarcado na perspectiva Cunha, 2018). Os principais comportamentos
comportamental, pode ser útil para descrever mais de risco referidos desta população (Brasil, 2008;
contingências que compõem o ambiente social no Arruda & Marcon, 2018; Addis & Mahalik, 2003;
qual o repertório de meninos é modelado em pa- Husaini, Moore, & Cain, 1994; McKay, Rutherford,
drões de masculinidade. Para as autoras, a socieda- Cacciola, Kabasakalian-McKay, & Alterman, 1996;
de atual ainda apresenta práticas patriarcais. As au- Figueredo, 2005) são apresentados na figura 1, de
toras asseveram que no tipo de cultura denominada acordo com a frequência encontrada nos estudos.
patriarcal são “criadas e mantidas regras sociais que Buscou-se também identificar na figura 1 a quais
controlam e mantém o comportamento social de classes poderiam pertencer, se de eventos privados
mulheres e homens na execução de tarefas diferen- ou públicos, considerando a maneira com que fo-
ciais em função do gênero” (Nicolodi & Hunziker, ram descritos nos estudos.
2021, p. 171). A respeito da função desses comportamentos,
Segundo Nicolodi e Hunziker (2021) o patriar- supõe-se que haja dois processos comportamentais
cado é apresentado como comportamentos indivi- envolvidos na manutenção dos operantes condicio-
duais ou práticas coletivas que são mantidos por nados de comportamento de risco à saúde. O pri-
contingências culturais. No patriarcado há regras e meiro é a seleção, por meio do condicionamento
contingências desiguais para os gêneros, que man- operante, de comportamentos incompatíveis com
tém o desequilíbrio histórico entre eles e priorizam o cuidado à saúde – típicos do modelo da mas-
o gênero masculino no acesso a poderosos refor- culinidade hegemônica já descrito, proporciona-
çadores sociais ligados a independência, dinheiro, do pelas contingências reforçadoras no contexto
poder, prestígio e dominação. de uma cultura patriarcal. A apresentação de tais
A predominância da cultura patriarcal, favorece contingências reforçadoras poderiam produzir res-
a seleção e manutenção de padrões comportamen- pondentes agradáveis associados ao sentimento de
tais consistentes com o modelo de masculinidade orgulho, poder e virilidade
hegemônica (Nicolodi & Hunziker, 2021). Nesse O segundo desses processos é a baixa frequên-
contexto acredita-se que as classes de operantes, cia de comportamentos importantes para o cuida-
públicos e privados, que são selecionados no nível do a saúde – provavelmente por fuga e esquiva por
ontogenético e cultural produzam excessos e défi- sua associação ao feminino – tais como: observar
cits comportamentais relacionados também a di- mudanças corporais e sensações somáticas, pedir e
ficuldades no autocuidado, que os vulnerabiliza a aceitar ajuda, perceber-se e ser exposto como vul-
determinados problemas de saúde. Isso ocorre pois: nerável, procurar o serviço de atenção básica, man-
ter relações sociais não violentas e engajar-se em
muitas das tarefas necessárias à busca da ajuda atividades de promoção de saúde. Este repertório
de um profissional de saúde, como confiar nos de fuga e esquiva pode tornar-se funcional, pois
outros, admitir a necessidade de ajuda, reco- evitaria a apresentação de consequências sociais
nhecer a existência de um problema físico ou aversivas, produtoras de respondentes desagradá-
emocional, entram em conflito com as crenças veis como culpa e vergonha. Ambos os processos
rígidas do autocontrole, da resistência física, do são apresentados na figura 2.
controle emocional e na suposta invulnerabili- Como é admitido em muitas pesquisas consul-
dade (Addis & Mahalik, 2003, p.7). tadas, os homens expõem-se intensamente às si-
tuações de risco em decorrência do estereótipo de
gênero masculino (Brasil, 2008; Craig, Garfiel, & engessadas sobre o que é ser homem (eventos pri-
Rogers, 2008; Braahler & Maier, 2015). Entretanto, vados), quanto os comportamentos de risco, pro-
este paradigma parece conter algumas divergências priamente ditos (eventos públicos), são respostas
em relação a uma perspectiva comportamental: por operantes que compõem um encadeamento com-
sua descrição excessivamente topográfica, por pro- portamental complexo, portanto uma não pode
por relações causais entre eventos de mesma na- ser causa da outra, visto que são eventos de mesma
tureza e por não contemplar, em alguma medida, natureza. Seriam então, ambos, selecionados pelas
relações funcionais sujeito/ambiente. contingências da ontogenia de cada homem sob a
Pautando-se na análise do comportamento po- ação das contingências culturais, como já descrito
de-se hipotetizar que tanto as percepções rígidas e anteriormente.
Sendo assim, na cultural patriarcal, com suas A masculinidade hegemônica seria uma prática
estratégias de controle diferenciais para o acesso cultural que, ao ser descrita em termos de topografia
a reforços direcionadas aos homens, estariam as de respostas, apresenta déficits de comportamentos
contingências mantenedoras tanto da forma como de autocuidado a saúde em muitos homens. Esse
os homens percebem-se e descrevem-se, quanto déficit parece ser mantido funcionalmente tanto por
na maneira pública com que se comportam em contingências de reforço positivo quanto de reforço
relação à saúde. As percepções, ideias, valores, negativo, com respostas que assumem a função de
conceitos e regras referentes ao papel de gênero fuga e esquiva. Portanto considera-se que o objetivo
masculino seriam então eventos antecedentes, deste estudo foi alcançado. A teoria comportamental
que se relacionam funcionalmente com a classe de mostrou-se pertinente na discussão deste problema.
operantes típicas de autocuidado à saúde de ho- Contudo, considera-se que há fragilidades no
mens. Enquanto ocasião, reduzem a probabilidade estudo. As discussões foram centralizadas na apren-
de ocorrência desta classe de resposta, porém não dizagem da masculinidade hegemônica, priorizan-
causando-a ou explicando-a do-a em detrimento da existência de outros tipos
Esta inferência encontra algum suporte nas de masculinidades. Reconhece-se também que os
concepções de Skinner (1986; 2003) ao propor comportamentos de risco assumidos por muitos ho-
que são as contingências culturais, presentes em mens possuem outros determinantes (institucionais,
ambientes sociais verbais, que mantém a ocorrên- financeiros, educacionais, geográficos) que não pu-
cia das práticas culturais. Propõem-se também deram ser explorados. Os princípios comportamen-
que a formulação realizada por Skinner (1969) tais citados no texto foram básicos, certamente nas
sobre a função das regras pode ser um arcabouço contingências culturais típicas de uma organização
profícuo para compreender processos comporta- social patriarcal há outros processos complexos,
mentais existentes na relação entre concepções, como o comportamento privado e a subjetividade, o
valores e estereótipos de gênero e a manutenção comportamento governado por regras e o comporta-
de comportamentos de risco por muitos homens. mento simbólico. Embora tenham sido referidos no
A pesquisa de Nicolidi e Hunziker (2021) já apon- texto, também não foram conceitualmente explora-
tou para a ocorrência do controle de regras ao dos em função dos limites metodológicos.
concluir que a cultura patriarcal age também por Frente às conclusões alcançadas algumas per-
regras, controlando o comportamento de homens guntas abrem-se como possibilidade para pesqui-
e mulheres. sas futuras: Como seria possível um planejamen-
to cultural que selecione tipos de masculinidades
menos opressoras e mais saudáveis? Que outros
Conclusões processos comportamentais podem explicar a re-
lação entre as concepções rígidas de masculinidade
O objetivo deste artigo foi, através de uma análise e comportamentos de risco a saúde? Como a famí-
conceitual, discutir a aprendizagem da masculini- lia, os cuidadores e os educadores podem interagir
dade hegemônica na perspectiva analítico compor- com crianças, do sexo masculino, de forma a não
tamental, admitindo os comportamentos de risco à fortalecer um repertório com características do
saúde como operantes condicionados decorrentes modelo hegemônico? Por fim, como profissionais
desta aprendizagem. Por meio do aporte teórico de saúde que atendem essa população podem or-
utilizado é possível inferir que o processo de sele- ganizar, nas suas rotinas assistências, contingências
ção por consequências modela frequentemente, em que: a. favoreçam a aprendizagem de um repertó-
meninos desde a infância, um repertório público rio funcionalmente mais saudável? b. forneça con-
e privado correspondente com o modelo de mas- textos que ajudem esses homens a discriminar tais
culinidade denominado hegemônico. Durante esse contingências referentes as suas masculinidades,
processo a ação das agências de controle, garantin- bem como os problemas oriundos delas? c. enga-
do o reforçamento diferencial através da cultura je-os de forma ativa e responsável nas mudanças
patriarcal é fundamental. mencionadas anteriormente?