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MINHAS ORIGENS REMONTAM A TI, SENHOR

O tema da autoridade
Anna Bissi

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

Neste livro estão reunidas algumas conferências feitas em


abril de 1982, no Curso de Formação de Mestres de Noviciado e
Juniorado, promovido pela USMI e apresentadas, com retoques,
às superioras do Piemonte (Itália), no curso da USMI regional,
em junho de 1983.
Quisemos satisfazer o desejo daqueles que nos pediram
um texto escrito para ulteriores reflexões a respeito dos
conteúdos apresentados. Esperamos que outros também possam
encontrar alguma sugestão útil para se viver o serviço da
autoridade como chamado a tornar-se manifestação do amor e da
vontade do Pai, que em nós colocou as fontes da vida.
O ponto de vista destas páginas é essencialmente
psicológico. Com efeito, deu-se particular atenção à dimensão
humana, entendida como possível obstáculo e, ao mesmo tempo,
como riqueza potencial a ser posta a serviço do Reino de Deus.
O texto é um convite implícito a encararmos um caminho
de integração em que o humano em nós, conhecido aceito, se
transforme em oportunidade de crescimento na capacidade de
amar a Deus e aos irmãos, sobretudo aqueles que o Senhor, de
maneira especial, confiou à nossa solicitude paternal e maternal.

INTRODUÇÃO

Há um chamado para alguém assumir, na vida religiosa, a


função de autoridade, quer como responsável pela formação,
quer como superiora. É um convite implícito do Senhor para
servir, estar disponível, mas sobretudo para abrir o coração, a
fim de que, em todas as dimensões, seja cada vez mais
semelhante ao de Cristo: aquele coração que, como ele próprio

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confidenciou a Felipe, como que censurando-o, revela o coração
do Pai (cf. J0 14,19).
Ora, a misericórdia de Deus — Bondade infinita, sem
limites, que Jesus nos deu a conhecer de forma tangível -,
manifesta-se através de duas características especiais,
intimamente relacionadas com o papel que toda superiora ou
mestra deve cultivar. Os dois aspectos, por sua vez, remetem aos
termos hebraicos usados para definir este tipo de amor, cuja
explicação encontramos na Encíclica de João Paulo II Dives in
Misericórdia:
- hesed, vocábulo de conotação mais masculina, paterna, que
significa fidelidade à promessa, a si mesmo, responsabilidade
para com o próprio amor que chega até a perdoar;
- rahamim, palavra mais feminina, materna, que indica uma
necessidade interior, visceral, de amar, que se exprime na
ternura, paciência, compreensão, benevolência.
Toda Irmã, chamada pelo Pai a ser, na comunidade,
expressão do seu amor e da sua vontade, deve esforçar-se para
usar de misericórdia para com as demais, procurando equilibrar
estas duas dimensões do amor: de um lado, a capacidade de ser
guia, líder de uma comunidade, expressão, portanto, de um papel
mais forte, mais "masculino", mais paterno; e de outro, a de ser
"mãe no Espírito", revelação daquele amor materno, delicado,
terno, que Deus tem por nós.
Neste curso, seguiremos esta dupla subdivisão: na
primeira parte, deter-nos-emos, sobretudo, no tema da liderança,
ao passo que na segunda, observaremos as qualidades mais
"maternas" do papel de superiora ou mestra.
A palavra de Deus servir-nos-á de guia neste caminho.
Nela, com efeito, reencontramos as duas "faces de Deus", postas
em relevo, de maneira diversa, conforme a sensibilidade do autor
bíblico. Reencontramos, também, os gestos concretos, as
atitudes psicológicas que podem servir de exemplo e de
inspiração neste caminho nada simples. Sobre isto faremos
apenas uma breve referência, deixando a cada qual a tarefa de

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aprofundar, na oração e na reflexão, aquilo que o Senhor lhe
sugerir.
Em Ez 34,11-16, Deus se revela como o pastor, o guia do
seu povo. Os verbos preferidos pelo autor, neste texto,
apresentam algumas indicações concretas e sugerem as ações
"características" de um líder. Diz Ezequiel:
"Certamente eu mesmo cuidarei do meu rebanho e o
procurarei". O verdadeiro pastor não é um guia que espera o
momento em que os outros, atraídos pelo seu fascínio ou pelo
seu poder, vão procurá-lo. Ele é o primeiro a movimentar-se,
com gestos de proteção, ciente das dificuldades e dos problemas
daqueles que lhe são confiados.
"Cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos os lugares
por onde se dispersaram." O verdadeiro guia é um centro
unificador. Nas inumeráveis ocasiões de dispersão da vida
cotidiana, na contínua tentação de assumir falsas identidades, o
líder deve intuir os desvios, as atrações enganosas, os trilhos que
levam para longe de casa, preocupando-se com reconduzir aos
verdadeiros valores aqueles que se transviaram.
"Apascentá-las-ei em um bom pasto." O líder tem
cuidado de alimentar e aumentar o desejo de lugares de oração, a
liturgia, o repouso do coração; lugares de recuperação para nós,
que cotidianamente vivemos na dispersão do mundo em que o
Pai quis nos Inserir.
"Aí repousarão." Ele está atento às necessidades
concretas, físicas e psíquicas das pessoas que lhe são confiadas.
Sem ser perfeccionista, respeita os ritmos e os tempos de cada
uma delas.
"Buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a
que estiver desgarrada." O líder não julga aquele que se afasta,
pois sabe que a estrada de uma consagração radical é cheia de
dificuldades. Por isso com alguém que se tenha desgarrado,
procura compreendê-lo, compadecer-se dele e acolhê-lo com
disponibilidade.
"Pensarei a que estiver fraturada e restaurarei a que estiver
abatida."
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O verdadeiro líder intui as feridas e as doenças do
coração alheio, e está sempre disposto a oferecer a sua ajuda
concreta. Não se aproveita da fraqueza do outro para obter
aquilo que deseja, mas procura restaurar-lhe as forças.
"Apascentarei com o direito." O verdadeiro líder não faz
acepção de pessoas, não se deixa levar pela capacidade ou pela
simpatia. Está atento, sobretudo, a não conceder privilégios a
ninguém, amando a todos de todo coração.
Este aspecto masculino da misericórdia divina,
exemplificado na imagem do bom Pastor, liga-se naturalmente a
uma outra figura que exprime o modo como Deus amou e
conduziu seu povo: a do "Servo". Também aqui os exemplos
seriam incontáveis: desde Jesus até os grandes líderes do povo
de Israel, corno Moisés, Jeremias, Abraão. Também a
paternidade de Deus se transformou em serviço: pensemos no
cântico de Isaías no qual Javé, o grande, o poderoso, o
invencível, é apresentado como sendo aquele que preparará para
o seu povo um banquete de alimentos suculentos e de vinhos
refinados (cf. Is 25,6).
Repare-se bem neste "preparará"; poder-se-ia ter dito
"convidará" para um banquete, e o próprio verbo nos teria falado
de um Deus muito próximo, disposto a repartir com os homens
as primícias do seu amor, a sentar-se à mesa com eles, para
partilhar as alegrias de uma intimidade familiar em meio à
abundância dos bens. Neste caso, porém, Deus ter-se-ia revelado
como um bom "chefe de família", magnânimo e generoso, que
não guarda as próprias riquezas e sim as coloca à disposição de
todos.
O nosso Deus, porém, é muito mais do que isto; senta-se
à mesa conosco, mas somente depois de ter-se tornado nosso
servo, depois de ter providenciado, preparado, disposto tudo,
servido a mesa. E não se trata apenas de uma imagem poética,
mas de uma intuição do profeta, que encontrará sua plena
realização num fato histórico, palpável. Não nos referimos
somente a Jesus servo, que na última ceia depõe as vestes e lava
os pés aos apóstolos; pensamos no "banquete" do Calvário, no
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qual o Filho se oferece ao Pai e este oferece o Filho, à
humanidade inteira, o "alimento suculento" do seu corpo e o
"vinho fino" do seu sangue.
Para terminar, recordemos que a liderança de Deus
exprime-se também sob a face da maternidade. Pensemos no
trecho de Oséias 11,1.3-4.8-9 no qual Deus aparece qual uma
mãe que acode o filhinho.
Esta Imagem, que suscita ternura em cada um de nós e
gratidão pelo amor delicado de que nos sentimos objeto, é, na
realidade, extremamente ousada. Oséias teve a coragem de
descrever-nos a misericórdia de Deus, comparando-a à ternura
de uma boa mãe, uma dona de casa, que cuida do seu filho e lhe
prodigaliza gestos de delicada atenção, gestos estes que fazem
parte da nossa experiência, da nossa observação cotidiana:
"ensina-lhe a caminhar, tomando-o nos baços", "levanta-o contra
o seu rosto" (atitude característica das senhoras russas), "inclina-
se para ele para alimentá-lo".
Encontramos, pois, na liderança uma componente cotidiana,
serena, simples, materna, como deve ter sido simples, límpido,
materno, compreensivo, delicado o modo como Maria foi a guia
espiritual de Jesus.
É a isto que Deus chama cada superiora ou mestra de
noviças, exigindo dela o compromisso de harmonizar
cotidianamente as duas componentes da liderança, a fim de
chegar a amar com o coração de Deus as irmãs que ele lhe
confiou.

A AUTORIDADE COMO GUIA

RADICALlDADE DO CHAMADO PARA O SERVIÇO DA


AUTORIDADE

Como vimos, os termos “superiora" ou “formadora"


remetem-nos imediatamente a um compromisso de serviço que
vem diretamente de Deus, a um mandato para fazer determinado
papel no interior da comunidade. Estes termos, à primeira vista,
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inserem-nos numa dinâmica espiritual na medida em que são
sinal de um apelo a ser instrumento de transmissão do amor e da
vontade do Pai.
Quando Deus se dirige a nós, seu apelo atinge toda a
pessoa, não só a nossa realidade espiritual de religiosas inseridas
numa comunidade determinada, mas também o nosso ser de
pessoas físicas, com relações sociais e características
psicológicas próprias. O convite de Deus envolve-nos
completamente, sem excluir parte alguma.
Procuremos, agora, compreender em que consiste esta qualidade
radical do convite.
Se dizemos que ele nos envolve completamente,
globalmente, afirmamos implicitamente que ele assume para nós
significados especiais logo num primeiro nível de vida, o físico,
o biológico, ligado ao fato de sermos seres viventes . As
modalidades com que isto se verifica nos são explicitadas
também através de uma simples observação da natureza:
podemos, assim, notar como nela o Senhor colocou, seguindo o
princípio de ordem e harmonia que guia toda a sua obra criadora,
alguns instintos, leis e regras que regem o viver em grupo. Nisto
podemos encontrar alguns princípios básicos que caracterizam,
num nível social mais elevado, a convivência civil, e num nível
ainda mais alto, a vida comunitária.
Examinemos rapidamente estes princípios :
- Principio de obediência. A palavra obediência vem do latim,
“ob audire" que significa ”escutar". Encontramos já num nível
biológico esta capacidade de obediência, na atitude de escutar o
ambiente, de observá-lo e responder às suas mensagens. Como
simples mas claro exemplo desta “obediência natural”,
pensamos na evolução de algumas espécies de orquídeas, que
mudam de forma, tornando-se cada vez mais semelhantes a uma
vespa, para atrair a si o macho, promovendo assim a fecundação;
-' Outro' princípio' é o do instinto gregário: os animais mais
evoluídos não poderiam continuar a existir, se os membros da
espécie vivessem isolados uns dos outros. Por outras palavras, a
sobrevivência da espécie depende da capacidade de viver em
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grupo. Nisto podemos ver, com toda a transparência e sempre
com o olhar admirado diante da sabedoria divina, as bases
biológicas da vida social e comunitária.
Este tipo de vida social, se bem que primitivo, tem
características bem precisas:
- É, antes de mais nada, uma atitude protetora em relação à
espécie, mesmo com risco da sobrevivência do indivíduo. Se, no
meio de uma manada, um búfalo percebe a aproximação do
caçador, costuma arriscar a vida, movimentando-se ou fazendo
barulho, para salvar a dos companheiros.
Existe, pois, já neste nível infra-humano, certa “capacidade de
amor", a ponto de se poder perguntar quanta sabedoria não terá
adquirido Jesus, em Nazaré, observando atentamente a natureza
e a vida dos animais. Talvez tenha sido neles que ele tenha
descoberto os primeiros sinais do amor, como antes dele já o
tinham feito os salmistas, exprimindo-o depois nas estrofes
poéticas das suas composições;
- Ao lado desta atitude protetora encontramos outra,
representada pela função de autoridade, que caracteriza a
passagem de uma estrutura menos evoluída, por exemplo um
cupim, a uma mais avançada, como a manada, na qual sobressai
sempre um líder como guia do grupo.
É sabida a estória do animal já velho que se retira para morrer,
deixando não só o grupo, mas também a função, a outro animal
mais jovem, capaz de exercer “dignamente" o papel de “chefe" .
Os problemas tornam-se mais complexos quando, de um
nível pouco evoluído, como é justamente o animal, se passa a
falar de pessoa humana, realidade não meramente fisiológica
mas também psicológica, social e sobretudo espiritual-racional,
ou seja, capaz de juízos de valor e de transcender-se a si própria
em busca de algo que a supera. Nesses níveis, a autoridade
assume significados diversos.

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SIGNIFICADOS SIMBÓLICOS DA LIDERANÇA

Toda pessoa, ao entrar na vida religiosa, e sobretudo no


ato da consagração, aceita submeter-se a um guia a quem se liga
com voto de obediência e a cuja autoridade submete-se,
independentemente dos dotes, das capacidades, das qualidades
da pessoa a quem foi confiado tal papel. Outro aspecto, porém,
pode estar presente: esta mesma pessoa, embora declarando-se
disposta a aceitar o líder da comunidade, pode experimentar,
interiormente, reações psicológicas que escapam à sua lucidez,
sem deixar de influir negativamente no seu comportamento.
Tudo se passa como se ao termo “superiora" ou “mestra" fossem
atribuídos inconscientemente significados diversos.
Procuremos explicar, sucintamente, afastando-nos
embora do nosso tema, a maneira como isto pode acontecer.
Toda e qualquer realidade pode evocar significados diversos em
cada um de nós. Tomemos como exemplo a realidade “corpo":
- para uma pessoa doente o corpo é a causa dos seus sofrimentos,
das suas dores e dificuldades;
- para um manequim é o instrumento de trabalho ao qual deve
dedicar o máximo desvelo;
- para dois esposos é o meio com o qual demonstram um ao
outro o amor recíproco.
Estes dados bastam para lembrar-nos como percebemos a
realidade, antes de tudo, emotivamente, despertando ela
inconscientemente em nós uma avaliação inicial, como: “isto me
agrada”, “não me agrada”, seguida, só num momento posterior,
de um juízo de ordem racional: “isto fica bem", “não fica bem".
Assim, na época de transferências, o nome de uma casa
da nossa comunidade evoca em nós, antes de mais nada,
pensamentos do tipo: “Tomara que eu seja mandada para lá!" ou:
"Deus me livre de ser transferida para lá!" Somente num
momento posterior é que conseguimos predispor-nos a uma
dócil aceitação da vontade de Deus.
O mesmo pode suceder em relação à autoridade,
superiora ou mestra, não tanto por causa da própria pessoa, mas
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devido àquilo que ela representa. Podem 'coexistir, assim, duas
avaliações: uma racional, pela qual todos estão de acordo a
respeito da necessidade da presença de uma responsável dentro
da comunidade religiosa; e uma emotiva, que leva a assumir
atitudes ambivalentes e contraditórios, baseadas numa avaliação
da realidade de tipo puramente emocional. Continuando nossas
reflexões, procuraremos levar em consideração estes dois
aspectos. Na primeira parte, procuraremos examinar alguns dos
significados simbólicos atribuídos à autoridade pelas pessoas a
ela submetidas; num segundo momento, verificaremos como a
própria responsável pode perceber o próprio papel. Falaremos,
sobretudo, da relação entre mestra de noviças e as noviças, mas
somente por motivos práticos. Tudo quanto dissemos, com
efeito, pode ser aplicado também à relação entre superiora e
súditas.

A NOVIÇA DIANTE DA AUTORIDADE

A autoridade como “ameaça" contra a qual é preciso


revoltar-se
Neste caso, a pessoa da mestra pode ser
inconscientemente percebida pela noviça como perigosa, como
ameaça potencial à sua auto-estima. A jovem, com a melhor boa
fé, prometeu viver numa comunidade onde será guiada por uma
irmã, no crescimento espiritual, obedecendo a esta mesma irmã.
Ao mesmo tempo, porém, diante de qualquer ordem e até de um
pedido, pode sentir-se agredida, desvalorizada, não amada,
tratada como criança, incapaz. A ordem é equiparada a um
ataque pessoal, do qual é preciso defender-se, sobretudo com a
revolta, que pode manifestar-se de diversos modos:
- uma forma mais aberta, de raiva declarada, manifestada através
de brigas, “cenas”, ataques diante de uma ordem da superiora, de
um pedido seu ou de um lembrete; ou então com acusações do
tipo:. “É marcação pura! Ela não me entende!”, fruto do
mecanismo de projeção, ou seja, de atribuição de motivações
injustificadas diante da autoridade;
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- uma forma mais sutil, muito freqüente nas comunidades
femininas: o vitimismo. Ao menor pedido da mestra, a noviça se
coloca logo em posição de vítima, sem levar em conta as causas
objetivas, que podem ter motivado o pedido. Neste caso, a
agressividade se exprime sobretudo sob a forma de crítica; de
contínua lamúria, de insinuações;
- uma maneira ainda mais sofisticada de revolta é a que toma a
forma de resistência passiva: uma oposição silenciosa, que
consiste em simplesmente não fazer, não obedecer, ir em frente,
como se a ordem ou o pedido sequer tivessem sido apresentados,
embora não se opondo verbalmente nenhuma resistência. A
noviça sempre atrasada para a oração está enviando este recado
agressivo: "As regras de vocês, seus horários, não me interessam
nem um pouco!" Aquela outra que sempre encontra um meio de
adiar um serviço devido à comunidade, que se esquece de
fornecer o detergente, de retirar da geladeira os alimentos, está
procurando, indiretamente, prejudicar o grupo, manifestando,
assim, implicitamente, a própria recusa, a sua revolta
inconsciente contra aquilo que dela foi exigido, a rebelião diante
do que vê como perigosa imposição.

A autoridade como "dominação" da qual é preciso se


livrar
A mestra pode, não raro, ser inconscientemente vista
como "fiscal": neste caso não estamos mais no terreno da
rebelião, como no caso precedente, mas mais no da autonomia..
A líder é aceita da boca para fora, mas ao mesmo tempo é
percebida como ameaça, enquanto possível entrave à própria
procura de independência. É vista como dominação contra a qual
é preciso reagir, criando para si pequenos espaços de liberdade
pessoal, nos quais seja possível levar a própria vidinha
totalmente isolada das outras. A autonomia, neste caso, é
negativa na medida em que é excessiva e inflexível. Quando a
noviça é incapaz de sequer expor à própria mestra os próprios
planos ou desejos a fim de discernir com ela atividades e
compromissos a assumir; quando passa a ocultar iniciativas,
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mesmo inocentes ou lícitas, para administrá-las por conta
própria, quando não se sente disposta a partilhar com a
responsável ou com as irmãs novidades que dizem respeito à sua
vida, alegrias e dores, pode-se estar certo da presença de uma
necessidade de autonomia imatura, como reação à presença de
outrem, de modo especial dos superiores, encarada como
controle.

A autoridade como "fonte de afeto e de apoio"


É o caso da noviça que afirma, da boca pra fora,
depender de Deus, obedecer a ele, na pessoa da mestra. Na
realidade, ela obedece, mas é porque, inconscientemente, nutre
expectativas a respeito da superiora, sobretudo de índole afetiva.
Em linguagem psicológica poderíamos dizer que ela age por
“identificação", processo segundo o qual um indivíduo adota “o
comportamento de outra pessoa ou de um grupo porque este
comportamento está associado a uma relação gratificante,
existente entre o indivíduo e esta pessoa ou este grupo". Em
outras palavras, a noviça pode estar agindo apenas porque
inconscientemente levada por pensamentos como este: “Faço
tudo o que a mestra exige de mim, porque assim, pondo-me de
acordo com ela, ela me estimará, me amará". A obediência será,
assim, de tipo utilitário; um meio para se conseguir o amor, a
atenção, a estima de alguém.
Estas considerações não têm a finalidade de reforçar em
ninguém propósitos de rigidez, do tipo: "O melhor mesmo é não
satisfazer os desejos afetivos das jovens a mim confiadas". Com
efeito, sabemos perfeitamente que, em quanto pessoas, todos
temos necessidade da compreensão, do apoio dos outros e que
em nossas comunidades se deve criar também uma atmosfera de
serenidade e de acolhimento recíproco. A comunhão fraterna não
é somente um compromisso, é também, se bem que não
unicamente, um dom do Senhor, num nível não só espiritual,
mas também psicológico, humano; é o “cêntuplo" a respeito da
casa, da família, do grupo que deixamos.

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As reflexões acima devem, antes, favorecer os
questionamentos a respeito do tipo de relacionamento que se
deve estabelecer com as pessoas pelas quais somos responsáveis,
estimulando em nós perguntas do tipo: “Quanto dou? Muito ou
muito pouco?", “Sem acepção, ou privilegiando alguém em
detrimento de outros?"
Tais reflexões devem, em resumo, levar-nos a examinar-nos
cotidianamente a respeito da “qualidade" do nosso amor.

A presença do inconsciente como convite a usar de


misericórdia
A presença destas possíveis reações diante da autoridade,
reações não raro contraditórias com os valores da vida religiosa,
poderia não só estimular a nossa curiosidade a respeito das
causas destes fenômenos, como também favorecer francamente a
expressão de juízos em relação às irmãs. A psicologia, neste
caso, ajuda-nos ao mesmo tempo a compreender e a não julgar,
lembrando-nos de que, freqüentemente, comportamentos como
os mencionados páginas atrás provêm de motivações
inconscientes, 'fora do controle da pessoa. Tais comportamentos
normalmente nascem não tanto da má vontade ou da
deslealdade, mas de limitações humanas, que acabam se.
transformando em desafio.
- Em Deus, desafio para o amor: a longa expectativa do Pai
misericordioso, a sua exigência de doar-se sem sequer ouvir as
palavras do filho pródigo arrependido, o crescendo na
intensidade dos gestos de afeto, a festa da volta, a restituição ao
filho da dignidade perdida são todos sinais desta “reação divina"
às limitações humanas.
- Em nós, ao contrário, as limitações provocam rejeição, não
aceitação, separação, revolta. O chamado a assumir o papel de
responsável por uma comunidade é um convite implícito de
Deus a preencher o abismo existente entre reação humana e
reação divina diante da experiência humana das limitações dos
outros; é um convite todo especial para ser, dentro da
comunidade, testemunhas da misericórdia, sinal daquele abraço
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acolhedor com que o Pai recebeu na sua casa o filho, obrigado,
pela fome e pela pobreza. a voltar para ele.
Certamente, esta não é lá uma tarefa multo simples,
principalmente quando as pessoas a nós confiadas são ocasião de
dificuldades, de sofrimento. Entretanto, pode ajudar-nos a
lembrar de que, freqüentemente, elas se comportam mal porque
não podem, não conseguem, não vêem a possibilidade de agir
diversamente: a falta de tolerância, a angústia, a incapacidade de
controlar os próprios impulsos, por ex., podem desenvolver nelas
o sarcasmo; a agressividade no julgar pode levá-las a reagir mal
ao anúncio de uma ordem. A incapacidade de intuição pode
fazê-las crer que têm razão quando se sentem maltratadas,
vítimas de injustiças, mortificadas. O Evangelho recomenda-nos
exatamente o dever de não julgar, e isto, não como um simples
convite ao exercício da humildade, mas como que a sublinhar a
radical incapacidade humana de compreender as profundezas do
coração, nosso e dos outros.
Por isso, recordamos que, na medida do possível, nos
aproximemos das limitações alheias com o máximo de respeito,
para poder distinguir, para além do erro, a ferida do coração,
algo que faz reagir somente porque faz sofrer. Destarte, a noviça
rebelde com a qual você convive e que é freqüentemente causa
de sofrimento pode, talvez, estar reagindo não contra você, mas
em conseqüência de experiências passadas que terão sido para
ela ocasião de dificuldades e de dor.
Estas considerações não pretendem dispensar ninguém de
um esforço para verificação da vocação, ou de exortar e
estimular as noviças a um crescimento humano e espiritual.
Tudo isto deve ser feito, porém só pode ser realizado com
verdadeira eficácia por um coração que procura compreender,
por quem vê, antes de mais nada, a trave que está no próprio
olho e compreende como, freqüentemente, os problemas não
surgem do desinteresse, da má vontade, mas da falta de lucidez.
E aqui a psicologia pode ser-nos de ajuda. Esta ciência,
por muitos considerada como “julgadora", é, na realidade, um
convite implícito à misericórdia.
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É ela que nos ajuda a compreender como,
freqüentemente, o mal não é querido, como o erro esconde a dor
e faz compreender mais em profundidade as últimas palavras de
Jesus na cruz: “Pai. perdoai-lhes porque não sabem o que fazem"
(Lc 23.34).
Os homens, que o mataram, realmente não sabiam o que
estavam fazendo: não só ignoravam a identidade de Filho de
Deus naquele que haviam pregado na cruz, como também aquilo
que os levava a manifestar uma agressividade tão desapiedada e
desumana, procurando desculpá-la com justificativas do tipo:
“Blasfemou!"
À crueldade deles. Jesus reage exercitando o ministério
da misericórdia.
A ciência, a partir da grande descoberta de Freud a
respeito da presença do inconsciente, não fez outra coisa senão
comprovar aquilo que Jesus já havia dito na cruz: não sabemos
aquilo que fazemos.
Isto não deve senão reforçar em nós uma humilde consciência da
nossa pobreza humana e uma misericordiosa aceitação das
limitações alheias, aliada a um recurso a todos os meios
necessários para promover em nós e nos outros um caminho de
crescimento e de libertação interior.

A RESPONSABILIDADE DIANTE DA PRÓPRIA


AUTORIDADE

O exercício da autoridade como "fonte de ameaça"

O chamado a ser responsável por uma comunidade como


superiora ou como formadora pode ser, às vezes, encarado como
"perigoso". Os motivos costumam ser: - uma função de tanta
responsabilidade exige muita competência: de um lado, exige-se
conhecimento adequado da organização e de outro, - fator muito
mais relevante - uma capacidade de animação como “guia
espiritual" do grupo. Se bem que não deva exagerar seu poder, a

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superiora deve ser alguém que dá um tom à vida comunitária e
para isso são necessários dotes humanos e espirituais.
Por isso, as pessoas com conflitos no que diz respeito à
área da estima pessoal, aquelas que se sentem sempre incapazes,
inadequadas, não à altura da situação, podem encarar a sua tarefa
como uma ocasião próxima de fracasso; - além disso, o papel de
responsável expõe não só pelo que diz respeito ao já mencionado
aspecto das maiores capacidades necessárias, mas também pelo
papel central na vida comunitária: a superiora é a mestra que
deve conceder as licenças, discernir, decidir se convém aprovar
ou desaprovar. Esta responsabilidade é “perigosa” porque pode
atrair agressividade, julgamentos, ciúmes. A mestra ou a
superiora está sempre na ordem do dia na vida comunitária:
tanto os seus “sim" como os seus “não” provocam polêmica;
suas escolhas suscitam reações, mexendo com os conflitos das
freiras: insegurança, pouca estima pessoal, procura de afeto; suas
palavras podem ser percebidas como ataques, como sinais de
falta de estima e, às vezes, até como desprezo.
O papel de formadora é visto como ameaça, sobretudo
por pessoas inconscientemente tão vulneráveis que não podem
aceitar em si limitações. Às vezes, na vida religiosa, dá-se o
seguinte: freiras que conhecemos, valorizamos, capazes de uma
aproximação e de compreensão, uma vez nomeadas para uma
comunidade, mudam completamente. Não admitem ter-se
enganado ou errado, chegando ao cúmulo de dizer “meias
mentiras” para não reconhecer os próprios enganos, falando de si
mesmas como modelos acabados de perfeição, tornando-se
assim intolerantes diante das limitações dos outros, a respeito
dos quais parecem não experimentar a menor empatia.
Quando se pergunta, na comunidade, o motivo de tais
mudanças, alguns tendem a atribuí-las ao orgulho, a um conceito
demasiado elevado do próprio cargo. Outros, não sem malícia,
chegam a pensar que fulana tenha fingido uma falsa humildade
para conseguir um alto “cargo”, humildade esta que, em seguida,
jogou às traças, uma vez alcançado o objetivo. Na realidade,
trata-se quase sempre de pessoas que, uma vez assumida a
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função, tornam-se de tal forma ansiosas que acabaram adotando
estas atitudes rígidas, quase “onipotentes", como reação à
ameaça incerta no novo cargo: a de vir a exibir diante de todos a
própria fragilidade.
O problema fundamental, pois, como se deduz
claramente deste último exemplo, não surge tanto ou unicamente
da percepção da própria liderança como “perigosa", mas das
reações a esta “ameaça". Ao invés de aceitar conscientemente o
temor de perder a própria estima, tentando vivê-lo como mais
uma ocasião de colocar nas mãos de Deus tudo o que há em nós:
qualidades, limitações, incapacidades, medos, tendemos a
defender-nos, negando ou reprimindo a angústia, transformando
o medo em domínio, em poder.

Exercício da autoridade como "meio de poder"


Na política ou na economia, para citar apenas dois
exemplos, a liderança é muito procurada, pois é vista como meio
de controle, de poder. Na vida religiosa, porém, a autoridade é
serviço, e seria muito difícil conseguir conciliar este desejo de
dominação com uma vida pobre, casta e obediente. Todavia, é
bom lembrar que, freqüentemente, a nossa insegurança, aliada à
falta de confiança em Deus, pode levar-nos a nos comportar
como verdadeiros “sargentos", como mulheres de tal forma
apavoradas diante da perspectiva de perder a estima, a ponto de
querer controlar tudo e todos, sempre e em qualquer situação.
Assim é que vemos pessoas que querem mandar sempre e
em toda parte, jogando fora o princípio de co-responsabilidade
(considerado apenas uma bela idéia) para levar para as reuniões
da comunidade, contanto que "na prática, a teoria seja outra";
usando como arma de defesa, diante das irmãs que ousam
lembrar-lhe isso, a acusação de revolta e orgulho.
Assim também, a mestra que recebe como ataque pessoal
toda e qualquer opinião emitida, que não “bate" exatamente com
a sua e, em resposta, tende a impor o seu ponto de vista como
único e de validade perene.

16
Na maioria das vezes, esta vontade de poder não passa de
compensação: a superiora procura impor-se nos campos em que
se sente mais segura, deixando de lado aqueles em que se sente
mais vulnerável.
Tentemos imaginar, por ex.., a situação de uma mestra
não muito preparada culturalmente (quando não, no campo
específico da vida religiosa) que passa a conviver com duas
noviças, ambas com diploma de curso superior. Neste caso, ou a
pessoa tem equilíbrio suficiente para colocar a própria segurança
na vontade de Deus, que lhe confiou esta função,
independentemente dos títulos acadêmicos; ou então, mais ou
menos inconscientemente, será levada a experimentar um
sentido de ameaça, interpretando a maior cultura das noviças
como possível ocasião de demonstrar o seu escasso valor. O
risco, então, está em pôr-se na defensiva, martelando alguns
aspectos dá vida, por exemplo, o organizacional, no qual se sente
“mais à vontade", de preferência a outros que podem pôr à
mostra a sua insegurança. O exagero chega, então, a ser a tônica,
passando a superiora a descurar o papel fundamental de
animadora, guia espiritual, responsável pelo discernimento. É
assim que encontramos mestras ou superioras totalmente
desinteressadas da vida espiritual das irmãs, não estimulando a
participação na liturgia, deixando debilitar a oração comunitária,
enquanto travam verdadeiras batalhas em torno de ninharias,
como a quantidade de alimento, a maneira de segurar a vassoura
ou de estender uma roupa.
Às vezes, é fácil notar a total falta de uma hierarquia de
valores. Em defesa do amor-próprio, a superiora acaba se
emaranhando de tal forma nestas bagatelas, a ponto de tornar
dramática a vida comunitária, perdendo-se em ninharias que, em
relação à dinâmica especial do grupo, adquirem sentido
altamente simbólico. Encontramos casas de formação ou
comunidades em que ninguém é jamais advertido, mesmo diante
de sérios inconvenientes (vida de oração praticamente
inexistente, desinteresse no apostolado), ao passo que uma
“mania" qualquer, por pequena que seja, uma pequena
17
desobediência, uma oposição irrelevante (não querer trocar de
prato à mesa como fazem todos, lavar mais freqüentemente os
cabelos, fazer meditação no quarto e não na capela - supondo-se
que o objetivo não seja o de tirar uma soneca...) tornam-se
defeitos imperdoáveis, que as mestras podem julgar do seu
“sagrado dever" eliminar.
Uma das obrigações fundamentais da superiora é,
portanto, a de adotar uma escala de valores bem clara, a fim de
poder verificar quais os âmbitos da sua competência, quais os
aspectos a respeito dos quais intervir e aqueles, ao contrário, que
convém ignorar, como irrelevantes para um crescimento humano
e espiritual das pessoas que lhe estão confiadas.
Para poder cumprir com simplicidade e alegria de
coração o próprio dever, é ainda importante saber questionar-se
a respeito de alguns pontos:
- as minhas intervenções teriam sido realmente necessárias, ou,
pelo contrário, supérfluas, brotadas mais da minha necessidade
de auto-afirmação do que de reais necessidades das pessoas a
mim confiadas?
- omiti intervenções que teriam sido indispensáveis, por medo da
crítica, da recusa, da agressividade que teriam provocado nas
minhas irmãs? Não terei recusado carregar a cruz?
- em que baseio eu a estima? Nas minhas qualidades, nos meus
dotes, capacidades, ou no amor que Deus -demonstrou para
comigo, chamando-me à vida religiosa? O perigo, com efeito,
está em depositar confiança, não no interior, e sim, muito
freqüentemente, no exterior, na função, que passa assim a ser
administrada como “propriedade privada", com a qual a pessoa
acaba se identificando totalmente. É preciso, então, recordar
sempre que a função fundamental da autoridade é a de tornar-se
supérflua, desaparecer, sonhando com o dia em que a sua
presença não será mais necessária e pondo nisto a sua alegria e
realização pessoal.

18
O exercício da autoridade como "procura de compensação
afetiva"

É o caso da superiora que, percebendo seu papel central


na comunidade, vê nisso um meio de conseguir mais atenção,
mais afeto, maior interesse pela própria pessoa. É aí que se
notam algumas reações especiais:
- o permissivismo: a superiora cede sempre, concorda com tudo,
nada proibindo, temerosa de perder o afeto e o apoio de cada
freira em particular e da comunidade inteira;
- uma atitude de vaidade muito sutil, derivada de uma
interpretação do próprio papel, não como ocasião de serviço ao
qual se é chamado, mas como um direito a ser mais obsequiada,
reverenciada, servida. amada.
Neste caso. a pessoa não percebe a contradição entre este
tipo de raciocínio e o significado da vocação. Se, de um lado, é
verdade que as "súditas" têm, um nível puramente humano, o
dever da boa educação, e mais ainda o de exercitar a caridade
fraterna em relação a todos, inclusive os superiores. continua
sendo igualmente verdade que estes últimos devem estar atentos
para não transformar o direito em pretensão, seguindo critérios
radicalmente anti-evangélicos. É bom perguntar-se de vez em
quando:
- "quanto tenho dado com espírito de verdadeira gratuidade?";
- "quantas repreensões aos indivíduos ou à comunidade brota da
procura do seu bem e não do meu interesse?";
- "o que quero eu? O amor de Deus ou o "incenso" das minhas
irmãs"?
- "de quem quero? De Deus. escolhido como único bem, ou das
irmãs, impedindo-as de canalizar todas as energias para o Reino
de Deus?"
Não se pretende com isso afirmar que a amizade, as
relações afetuosas devem ser proscritas dos nossos ambientes.
Devemos, porém, antes de tudo, ter em mira construir
comunidades evangélicas, cujos membros procuram, em
primeiro lugar, crescer no amor a Deus e aos irmãos. Um trecho
19
tirado da palavra de Deus pode servir-nos de inspiração,
oferecendo-nos importantes sugestões a respeito do modo de ser
comunidades, fraternidades tipicamente femininas. Trata-se do
texto de Lc 1,39-56, no qual é descrito o encontro de Maria com
Isabel, a página evangélica dedicada “à amizade feminina". Nele
podemos notar algumas atitudes fundamentais:
- O encontro de Maria com Isabel nasce da caridade da Virgem.
Não obstante a situação precária (naquele tempo não era nada
fácil viajar, menos ainda para uma mulher em adiantado estado
de gravidez), sabedora da longa distância a enfrentar, além dos
dissabores e encontros perigosos, Maria deixa a casa e o esposo,
impulsionada pelo amor e pelo desejo de tornar-se útil à prima já
velha que ela sabe estar em situação ainda mais difícil. Assim
também nós: não é o desejo de receber, e sim a necessidade
incoercível do coração de doar-se de modo gratuito é que deve
constituir a força motriz e o guia dos nossos encontros; .
- a caridade de Maria encontra, em Isabel, palavras proféticas; o
menino salta-lhe no seio e ela intui a verdade: o Esperado de
todas as nações se encarnou no seio da Virgem que lhe está
diante. Esta profecia brota de um coração generoso (com efeito,
Lc 1,6 afirma que Isabel e seu marido Zacarias eram “justos "),
que não conhece a inveja e sabe reconhecer a presença do
Senhor naquela que lhe está diante. Assim é que deveriam ser
também os nossos encontros, informados pela capacidade de
reconhecer Jesus presente no outro, e pelo espírito profético que
nos torna capazes de discernir aquilo que o Senhor vai
realizando naqueles que vivem junto de nós;
- o encontro se transforma em partilha, tornando-se uma troca
“dos segredos do rei", as "grandes coisas" que o Senhor realizou
nas duas mulheres. Assim devia acontecer também conosco:
encontrar-nos juntos não para falar de banalidades, ou para
trocas de agressividade em forma de críticas ou “indiretas”, mas
para comunicar-nos, reciprocamente, aquilo que o Senhor vai
realizando em nós e na História;
- a partilha torna-se louvor. Do coração de Maria brota a oração
mais límpida, mais profunda, mais rica de confiança e amor que
20
jamais brotou de um coração de mulher. Do mesmo modo, os
nossos encontros deveriam levar-nos ao desejo de cantar
incessantemente os louvores daquele que também em nós fez
“maravilhas”;
- enfim, a partida. Maria só permanece três meses junto da
prima. Toda verdadeira relação, assim como toda verdadeira
experiência de vida comunitária, não pode esgotar-se em si
mesma, mas deve necessariamente transformar-se em
apostolado. Maria deve levar o seu Jesus a outros, assim como
Isabel deverá envolver-se na sua tarefa educadora. O mesmo
deve valer para nós: a vida comunitária é um meio, um
testemunho, não um fim em si. Também nós, como Maria,
devemos parar um pouco, porque, como ela, somos chamadas a
levar Jesus ao mundo.

O EXERCÍCIO DA AUTORIDADE COMO CONVITE À


TRANSCENDÊNCIA

Observávamos no começo que o chamado de Deus ao


serviço da autoridade atinge toda a pessoa, a sua realidade física,
biológica, a psicossocial, e encontra a sua resposta mais
adequada e a adesão mais total na capacidade humana de auto-
transcendência, que torna a pessoa disponível para acolher o
convite de Deus ao serviço das irmãs, com atitudes de total
adesão à sua vontade. É isto que nos permite criar equilíbrio e
harmonia interior, para colocar todo o nosso ser nas mãos de
Deus.
O crescimento nesta capacidade de integração representa
um esforço contínuo e requer uma constante tentativa de
superação das próprias tendências psicológicas; é uma ascese
que nos estimula a dar alguns difíceis “passos interiores":
- do desejo de dependência à solidão criativa, para estarmos
dispostos a amar todas as irmãs da mesma maneira,
independentemente de quanto desejaríamos receber;

21
- da insegurança e medo à capacidade de dizer abertamente a
própria opinião, de ir contra a corrente, lembradas de que "é o
medo da impopularidade que produz os falsos profetas " ;
- do desejo de dominação à capacidade de deixar que todos
colaborem, compartilhando a autoridade com a participação;
- do vedetismo à capacidade de deixar emergir os dotes e os
talentos das irmãs com as quais se vive, de modo especial se a
sua idade, maior preparo intelectual, experiência pastoral podem
levar-nos a encará-las como "ameaça", como possíveis rivais.
Existe, pois, sempre uma contínua tensão entre a nossa
realidade psicossocial e a espiritual-racional. Esta tensão reflete
a tensão vivida pelo povo de Israel diante da autoridade: os
conflitos entre Saul e Samuel refletem, com efeito, a diferença
entre duas concepções de autoridade: ou como fonte de poder ou
como dom de Deus para o serviço dos irmãos.
Trata-se, pois, de renovar-se continuamente, para
compreender melhor a si mesmas e as irmãs e colocar-se, com
coração convertido, a serviço dessas mesmas irmãs.
Lembremos, antes de terminar esta parte, alguns "meios”
capazes de ajudar o nosso crescimento:
A capacidade de propor para si mesmo metas realistas J
seja no que diz respeito ao próprio papel, seja no que diz respeito
às tarefas da comunidade. Quem exige demasiado de si mesmo
ou dos outros está condenado ao fracasso. Pode acontecer que
alguém ponha, inconscientemente, como ponto de honra o
progresso da comunidade: as pessoas se sentem “corajosas",
“capazes", se a comunidade é “de vanguarda", aberta, capaz de
empreendimentos inovadores. O fato de estimular a comunidade
pode, realmente, ser positivo, sinal de disponibilidade para o
Reino, antídoto contra o perigo de esclerose das nossas
estruturas. Nalguns casos, entretanto, as exigências tendem ao
excesso, não respeitando o ritmo das irmãs, que assim costumam
ser culpadas, se não respondem à altura às expectativas da
superiora.
O que fica dito a respeito das comunidades vale também
para certos superiores que mais “são agitados" do que realmente
22
agem: sempre e em toda a parte disponíveis, de uma
disponibilidade excessiva, que mascara uma inconsciente busca
de segurança. Também aqui podemos notar eventuais exageros;
ao passo que nossa vida deve ser harmoniosa, exigindo um justo
equilíbrio entre atividade e repouso, repouso este que deve ser
concedido tanto aos outros como a si mesmo. Lembremos o
exemplo de Jesus que, consciente do cansaço dos seus, tomou-os
à parte, a fim de que repousassem com ele num lugar sossegado.
Outro meio importante é o conhecimento de si e, por
conseqüência, o uso de meios psicológicos apropriados, como a
consulta e a psicoterapia. A este respeito, podem ser úteis
algumas sugestões:
- é bom recordar que existem diversos tipos de psicologia e que
alguns deles estão em aberta contradição com a visão
antropológica bíblica, com o conceito de homem tal como é
apresentado pelo cristianismo. Não basta "usar a psicologia",
mas é sempre importante perguntar-se "qual psicologia?", antes
de confiar-se a um psicólogo;
- já é tempo de superar o conceito de psicologia entendida como
sendo “ajuda para casos de perturbação". O conhecimento de si é
um meio de enfrentar mais clara, aberta e objetivamente as
próprias limitações, tomando-se maior consciência dos próprios
dotes e riquezas, a fim de dispor de si mesmo ainda mais radical
e totalmente ao serviço de Deus. É, pois, necessário a coragem
de usar destes meios na primeira pessoa. Aconselhá-los
unicamente aos outros é, pelo menos em parte, enviar
implicitamente esta mensagem: “Você é que tem limitações, por
isso precisa de ajuda; eu, não!”
Meio insubstituível para um amor cada vez maior a Deus
e às irmãs é a oração:
- como ausculta do Espírito que chama toda mestra, toda
superiora a ser sua humilde colaboradora;
- como atitude de confiança para com Deus, que sempre garantiu
a sua graça àqueles a quem confia um encargo, uma tarefa
específica;

23
- como consciência da própria pobreza diante de Deus que
“olhou para a humildade da sua serva” e, ao mesmo tempo, fé
corajosa na ajuda oferecida por ele. A atitude chocante de Jesus
diante da figueira estéril dá o que pensar: não é tempo de frutos e
Jesus pretende encontrá-los já maduros para serem comidos.
Com esta exigência absurda, ele nos brinda com um profundo
ensinamento a respeito das leis da esterilidade e da fecundidade
no Reino dos. céus. O nosso frutificar não depende das leis
humanas, da capacidade, dos dotes, das qualidades das pessoas,
mas da quantidade de confiança que temos a coragem de
depositar unicamente em Deus.
A vida comunitária oferece como ulterior ocasião de
crescimento a revisão de vida, momento em que a superiora
pode favorecer o esclarecimento dos conflitos comunitários, sem
envolver-se com os dinamismos psicológicos, mas também sem
fechar os olhos diante dos problemas.
A revisão de vida deve ser enfrentada num clima evangélico, e o
Evangelho é quem diz:
- “Ama o próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27b), convidando-
nos, portanto, a ser francos, nos limites da caridade;
-“Tira primeiro a trave do teu olho para depois poderes enxergar
o cisco no olho do teu irmão” (Lc 6,42), convidando-nos, assim,
a primeiramente tomar consciência das nossas limitações
pessoais, a fim de corrigir-nos;
-“Seja o vosso falar 'sim, sim; não, não'” (Mt 5.37), querendo-
nos assim capazes de enfrentar os problemas com abertura,
sinceridade, firmeza, coragem;
- finalmente, diante dos nossos temores, nos lembra que “quem
age na verdade, vem a conhecer a luz” (Jo 3,21).
Um último meio de crescer na capacidade de amar é a
vida comunitária como lugar de reconciliação recíproca e
constante. O papel de superiora a que, como lembrávamos atrás,
está na maioria das vezes no centro de conflitos comunitários,
torna-se ocasião proporcionada pelo Senhor para exercitar-nos
no perdão misericordioso e no humilde pedido de perdão àqueles
que, sem o querer, podemos ter ofendido.
24
A AUTORIDADE COMO MATERNIDADE ESPIRITUAL

Lembrávamos na introdução que, junto a uma


componente mais forte, mais viril, do serviço da autoridade,
expressa na capacidade de ser guia, líder, encontramos outra,
mais feminina, mais delicada e materna. O próprio Paulo não
hesita em usar termos tipicamente femininos, quando escreve
aos gálatas: "Meus filhos, por quem eu sofro de novo as dores do
parto, até que Cristo seja formado em vós" (Cl 4,19), e aos
tessalonicenses: "Fomos no melo de vós como uma mãe que
alimenta e cuida dos próprios filhinhos" (17s 2,7). Percorrendo
as páginas da Bíblia, seríamos levados espontaneamente a pensar
que, não obstante o uso de uma linguagem tipicamente maternal,
os protagonistas deste crescimento, os detentores deste papel de
autoridade como "guia no Espírito" são, sempre e em toda a
parte, homens. Lembremos, apenas para citar alguns exemplos,
além do supramencionado Paulo, também Filipe, o eunuco, Eli e
Samuel. Esta reflexão pode ser comprovada também a partir da
nossa história de comunidades religiosas de vida ativa, na qual,
até um passado muito recente, e talvez ainda hoje, não só a
direção espiritual pessoal, mas até o aprofundamento da
espiritualidade da Congregação era, em geral, confiado a
homens e não se ousava pensar numa mulher como possível
mestra e mãe no Espírito.
Observando atentamente a Escritura, notamos, porém,
que estas considerações não são corretas. No mistério da
Encarnação está insinuado também o mistério da maternidade
espiritual. Jesus, como homem, teve guias no crescimento "em
sabedoria e graça", e não podemos imaginar Maria, sua mãe,
excluída de uma tarefa que, como mulher séria e meditativa, sem
dúvida alguma levou a bom termo.
Já se disse que Maria ensinou a Jesus somente isto: realizar em
sua vida aquilo que ela própria tinha respondido ao anjo: "Eis
aqui a serva do Senhor".
Desta forma, portanto, afirma-se implicitamente que foi
justamente da mãe de Jesus que se veio a saber o sentido da sua
25
existência, e que foi dela também que ele terá aprendido aquela
capacidade de amor oblativo que o teria levado a dar a vida
pelos homens. Existe, portanto, na história da salvação, uma
mulher a quem foi confiada a inestimável tarefa de ser, no
Espírito, mãe do Filho de Deus. É nesta mulher que qualquer
superiora pode espelhar-se, na missão a ela confiada.
A tarefa de Maria tem, entretanto, características
especiais, que a tornam "única", não podendo ser comparada a
nenhuma outra.
No que diz respeito à definição de "mãe espiritual" dada
à mestra de noviças ou à superiora de comunidade, continua,
para a nossa mentalidade suspeitosa, a insistência em querer
utilizar termos e modalidades já ultrapassadas, remanescentes de
épocas superadas, de tempos que idealizavam a maternidade e,
partindo de uma visão não muito clara da feminilidade,
limitavam-lhe o valor ao papel de mãe, de "anjo do lar",
transferindo, entre outras coisas, estes mesmos significados
também para o âmbito da vida religiosa.
Podemos, pois, examinar o problema e perguntar-nos se,
nos dias de hoje, não esteja um tanto superado, um pouco "fora
de moda" falar de "mães no Espírito".

MATERNIDADE ESPIRITUAL: "CLICHÊ


TRADICIONAL" OU NOVA CAPACIDADE DE AMOR"?

Não obstante o temor de usar termos desencarnados,


pensamos poder falar de "maternidade espiritual", sem medo de
cair no clichê que consiste em fazer de cada mulher só e
unicamente uma "mãe". Procuraremos, ao contrário, incentivar o
uso desta qualificação tipicamente feminina atribuída a quem
exerce uni papel de autoridade.
Um primeiro motivo está ligado a uma realidade
biológica, o corpo humano, que, no caso da mulher, está, de
maneira especial, destinado à maternidade, na medida em que é
feito para uma "dupla acolhida":
- acolher o corpo do homem, no ato sexual;
26
- acolher o filho, numa longa e paciente expectativa, até que ele
seja formado dentro dela e a deixe. A arte tem testemunhado
com freqüência este aspecto acolhedor, típico da feminilidade;
basta pensar nos suaves ovais dos rostos das madonas ou em
uma das obras-primas da escultura, a Pietà de Miguelângelo,
ninho hospitaleiro para o corpo de Cristo crucificado.
Dentro desta realidade mais concreta, biológica, são
especificados a seguir, alguns traços característicos da
feminilidade e da masculinidade. Muito já se discutiu sobre a
diferença natural ou artificial entre a psicologia feminina e a
masculina. Acenaremos apenas ao assunto. por extrapolar este o
nosso interesse especifico. Há quem sustente existir uma
diferença inata entre a psicologia de ambos os sexos, como
também há quem diga o contrário: esta diferença seria fruto de
uma educação segundo a qual ao homem sempre se ensinou a ser
mais ativo e à mulher sempre foi inculcado assumir uma atitude
de passividade.
Não há como negar a influência de sistemas educativos
distorcidos, baseados em lugares-comuns, hoje superados. Não
parece, porém, que isto seja suficiente para determinar uma total
ausência de diferença num nível psicológico. Como dizíamos,
esta diferença tem origem nos diversos significados dos corpos,
significados estes já presentes no ato sexual que requer, em
ambos os parceiros, um abandono confiante, mas que se
caracteriza, no que diz respeito ao homem, pela atitude de tomar
a iniciativa de dar-se, e no que diz respeito à mulher, pela
acolhida e pela gratidão pelo dom do outro.
A maternidade espiritual mergulha, pois, suas raízes
nesta realidade biopsíquica ligada à estrutura do corpo humano.
Tem, entretanto, sua razão de ser numa outra realidade,
igualmente concreta, a realidade histórica: na nossa cultura é
confiado à mulher um papel educativo todo especial, ligado,
sobretudo, ao lado afetivo, de excepcional importância para o
crescimento dos filhos.
A esta altura poder-se-ia objetar que estas características
só são aplicáveis a quem é realmente mãe, a quem fez a
27
experiência da maternidade; ao passo que aquelas que
renunciaram, pela consagração religiosa, a esta dimensão terrena
do próprio ser mulher, jamais compreenderão o sentido da
maternidade.
Basta, porém, observarmos atentamente a realidade para
notar como, no uso corrente, o termo "mãe" tem significados
mais complexos, não se limitando apenas a indicar a experiência
da geração. Quem, por exemplo, ousaria protestar, ao ouvir
chamar de "mãe" uma mulher que tenha adotado um filho e que,
embora não o tenha dado à luz na carne, gera-o continuamente,
dando-lhe vida efetivamente e intelectualmente?
Há, pois, outras características que especificam melhor a
maternidade. Ser mãe não quer dizer, só ou acima de tudo, gerar.
A uma criança nascida e imediatamente retirada daquela que lhe
tenha dado a vida física dever-se-á procurar um objeto de amor
substitutivo, que representará para ela a verdadeira mãe, porque
só esta, com a sua atenção, seu afeto e seu estímulo, é que fará
dela uma verdadeira pessoa.
Ser mãe é, portanto, antes de mais nada, ter capacidade
afetiva, ter "capacidade de amar" de modo realmente oblativo,
gratuito, com um afeto que não visa recompensa, mas que só
deseja educar, ver crescer, amadurecer. O termo, pois, pode
muito bem ser aplicado àquela que, numa comunidade, tem a
tarefa de promover o crescimento e o amadurecimento espiritual
das pessoas a ela confiadas.
Dizíamos que a maternidade se caracteriza, sobretudo,
pela capacidade de amor generoso e oblativo, capacidade que
não nasce em nós por geração espontânea, pois que é antes o
resultado de esforço e fadiga. Toda criatura, com efeito, leva em
si este mistério: o de ter nascido para amar, sendo que o amor, o
afeto dado aos outros, é sempre diminuído pela presença de
limitações, e sempre colorido com uma tintura de egoísmo.
Isto não quer dizer que não se deva tender ao amor. Pelo
contrário, que devemos freqüentemente ou continuamente
verificar que espécie de amor damos aos outros.

28
Examinaremos, pois, juntamente, algumas distorções do
nosso modo de amar.

O Amor Narcisista
Dizíamos que todo amor tem sempre alguma dose de
egoísmo; existem, porém, amores baseados unicamente, se bem
que inconscientemente, na procura de si mesmo, da própria
satisfação pessoal. É conhecida a história de Narciso, o belo
jovem que, vendo sua imagem refletida na água de um lago,
acabou apaixonando-se por ela.
O mito grego proporcionou aos psicólogos a ocasião de
intuir uma característica toda especial da alma humana, capaz de
enamorar-se de si mesma ou de outrem somente enquanto
imagem possível, reflexo da própria pessoa. O narcisista pode
"amar" os outros somente na medida em que espera obter uma
resposta positiva, em forma de admiração, de "exaltação" ou,
pelo menos, de elogio. O relacionamento somente perdura na
medida da duração da reação positiva do outro. Quando esta não
se dá mais, ou quando encontra outra pessoa capaz de maior
dose de admiração, ou de badalação com mais "classe", mais
gratificante, portanto, então o primeiro parceiro é mandado às
traças como imprestável. O narcisista comporta-se, pois, também
nos relacionamentos interpessoais, de acordo com o moderno
anúncio de publicidade: "use jogue fora!"
Esta linguagem pode parecer chocante, sobretudo se
transportada para o nosso contexto de cristãs consagradas. Mas
basta pensar nas nossas experiências de vida em comum, na
nossa dificuldade de amar os outros, para ver como isto,
infelizmente, é verdadeiro também entre nós, e com mais
freqüência do que parece.
Sirva de exemplo o caso de tensões com a superiora,
numa comunidade: a irmã Fulana está em aberta oposição a ela,
achando que é demasiado exigente, rígida, pré-conciliar. Para
melhorar o clima da comunidade, a Madre geral envia uma nova
freira, a irmã Sicrana, jovem professa e totalmente inexperiente
de uma comunidade que não seja casa de formação. A irmã
29
Fulana, vendo uma jovem capaz, de idéias arejadas, começa logo
a "fazer a cabeça" dela contra a superiora. Forma-se assim uma
aliança, motivada naturalmente por uma única razão: "A
necessidade de mudar a comunidade, para o bem de todos e
felicidade geral das irmãs". No ano seguinte, a superiora é
transferida, sendo Fulana nomeada para o seu lugar.
A partir de então, a revolta da amiga contra a autoridade,
aquela mesma revolta que ela própria tinha apoiado quem sabe
até fomentado, cessa como por encanto. É que agora esta atitude
lhe amedronta, por constituir uma ameaça, um perigo para o seu
poder. Começa, então, a afastar-se de Sicrana, logo agora que
esta começa a alimentar as primeiras expectativas de ver
realizadas as tão propaladas mudanças na comunidade. Até a sua
opinião a respeito da jovem irmã muda completamente: de
totalmente positiva passa a totalmente negativa. De fato, suas
alianças, de agora em diante, deverão dirigir-se não mais às
"rebeldes" mas às "conformistas", pois é justamente destas que
ela espera o apoio à sua "liderança". O relacionamento só podia
vir abaixo; agora, que não serve para mais nada, a jovem deve
ser jogada ao lixo, sem lamento sem remorso diante do
pensamento de ter contribuído negativamente para a sua
primeira decepção de vida comunitária.
Outras vezes o narcisismo pode ser mais sutil, assumindo
formas ambivalentes: o lado positivo da outra pessoa, as suas
qualidades, podem, ao mesmo tempo, agradar e apavorar: os
dotes da irmã, da noviça, são percebidos como positivos e
ameaçadores a um tempo. Assim, de um lado, podem ser usados
de modo vicário, para aumento de crítica, motivo para tratar com
frieza ou pôr em evidência os defeitos da irmã. Por ex., em se
tratando de falar das noviças com estranhos, a mestra não pode
evitar comportar-se como certas mães que não conseguem falar
de outra coisa que não seja o seu tema preferido: as brilhantes
qualidades dos próprios filhos. Na comunidade, ao invés, a
tendência é a de pôr em evidência os lados negativos, as
fraquezas, diminuindo, ao mesmo tempo, a importância das

30
qualidades da outra, a fim de que nenhuma nuvem venha a toldar
a bela imagem que ela deseja oferecer de si própria.

O Amor Inconstante
Aqui a pessoa não é levada a usar dos outros como coisa,
mas sim, atormentada por uma contínua insegurança e, às vezes,
também desconfiança em relação aos que a rodeiam. Um nada
pode jogar por terra o relacionamento, que vive constantemente
ameaçado. Geralmente trata-se de um problema que mergulha
suas raízes no passado: a pessoa não terá conseguido criar para si
uma "confiança básica", crer que seja alguém digna de afeto,
atenção e amor. Os relacionamentos, mesmo com as pessoas a
quem mais ama, são vistos como perigosos: qualquer coisinha
pode destruir um relacionamento construído em anos. Por
conseguinte, o que se verifica é uma contínua atenção prestada
ao comportamento do outro, acompanhada de contínuas
interrogações: "O que será que fulano está para fazer? Estará de
mal comigo? Será que me perdoou mesmo? Não preferirá fulano
de tal? Não me terá esquecido?" Como remédio contra estas
dúvidas, costuma-se lançar mão dos seguintes expedientes:
— o controle, ou seja, a continua vigilância, às vezes até
inconsciente, para ver quanto a pessoa dá ao sujeito e aos
demais;
— o esforço por manter o outro preso, usando para isso os meios
mais diversos: presentinhos multiplicados, para conquistar a sua
afeição, atenções especiais, pedidos etc.;
— a chantagem sentimental; como que a dizer: "Se não consigo
conquistá-lo por bem, lançarei mão das minhas limitações"; "se
não se interessa por mim porque não me ama, será pelo menos
obrigado a fazê-lo porque lhe darei ocasião de preocupar-se
comigo".
Tudo o que foi dito acima serve para pôr em relevo a
importância da emotividade e lembrar-nos de que com
freqüência, esta pode ser usada inconscientemente como meio de
dominação.

31
Tudo isso fica ainda mais claro quando se passa à
agressividade. É evidente que uma explosão de raiva,
principalmente diante de outras pessoas, ainda mais quando
provinda de uma pessoa de relevante importância psicológica (a
superiora, a mestra, a amiga do coração) tem efeito imediato no
estado de ânimo: amedronta, faz cambalear a estima,
provocando sensação de solidão, de incompreensão. É, pois, um
convite expresso à mudança, uma forma de coerção.
Nós, mulheres, então, somos mestras nisto, sendo muito
mais "sofisticadas" que os homens neste particular: conhecemos
meios muito menos evidentes de forçar a barra, por exemplo, as
lágrimas. Em si mesmas, essas só podem ser um dom de Deus,
uma válvula para emoções incontroláveis e que constituem uma
das nossas cruzes cotidianas. São também sinal da nossa
capacidade de arrependimento, da consciência das nossas
limitações e do mal que podemos causar aos demais. Não é à toa
que na peça teatral de Sartre, "Entre quatro paredes", os
personagens daquele inferno feito pelos próprios protagonistas
não possuem espelhos onde comparar realisticamente a própria
imagem com as lágrimas a derramar, sinal da sua incapacidade
de arrependimento.
Além da culpa e do sofrimento pelo mal cometido, as
lágrimas exprimem também empatia, participação na dor alheia.
Assim é que o Evangelho as coloca também nos olhos de Jesus,
que se comove pela morte do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-
17), ou então diante da multidão de "ovelhas sem pastor" (Mc
6.34), ou ainda quando reflete sobre a rejeição de Jerusalém,
cujos filhos ele quisera acolher "como uma galinha acolhe os
pintainhos sob as asas" (Lc 13,146 e Lc 19,41).
Pois são estas mesmas lágrimas que, na vida comunitária,
podem freqüentemente transformar-se em arma poderosa.
Podem tornar-se veículo de mensagens carregadas de
agressividade, com a finalidade de descarregar sobre outros um
peso emotivo, obrigando-os, assim, por vias indiretas, a mudar o
comportamento. De fato, antes que digam: "Como sou infeliz!",
as lágrimas já terão dito: "Desgraçada! Fica aí me vendo chorar e
32
não move uma palha!" Essas mesmas lágrimas, quando surgem
nos olhos das noviças justamente depois de um encontro em que
a mestra as terá ajudado a tomar consciência de alguns aspectos
da sua vida, podem muito bem representar, mais do que um
profundo arrependimento, também uma maneira inconsciente de
fazer com que a autoridade se sinta culpada, reprovada por ter
dito palavras que fazem sofrer. Nestes casos, há quase sempre
algo de indiscreto, e ate de teatral no comportamento: a pessoa
nada faz para controlar ou dissimular seus sentimentos, mas
parece até deleitar-se com esta exibição de sofrimento diante dos
outros. Então, é importante, para o próprio bem e para o bem dos
outros, verificar a própria reação:
— a tendência é sempre a de adocicar o que foi dito, para
garantir a tranqüilidade a qualquer preço? Será bom perguntar-se
se este comportamento é motivado sempre pela procura do bem-
estar das pessoas ou, pelo contrário, por trás disso tudo não se
esconde o desejo de livrar-se do sentimento de culpa, com o
risco de fazer evaporar o próprio esforço educativo. Ter pressa
de consolar, muitas vezes pode significar enviar implicitamente
este recado: “Não me interessa muito que, daquilo que lhe disse,
você aprenda e possa crescer no seu caminho de fé; o importante
é que você esteja calma e possamos todos viver felizes e
satisfeitos";
— pode-se também reagir de maneira totalmente oposta,
tornando-se excessivamente rígido ou duro: há mestras que, mal
vêem chorar uma noviça, começam logo a corrigi-la, chamando-
a de "criança". Também aqui é preciso perguntar-nos se se trata
realmente de uma intervenção oportuna. Assim agindo, a pessoa
corre o risco de revelar, implicitamente, a angústia e a tensão
que nela brotam à vista das lágrimas alheias. Destarte, enquanto
julga aparecer perante os outros como uma pessoa forte, incapaz
de ligar para "ninharias", na realidade o que ela acaba revelando
é a extensão do seu medo.
Outro meio de controlar emotivamente as pessoas com
quem lidamos é a retirada do afeto, o clássico "ficar de nariz
torcido". Quem "torce o nariz" não diz nada, simplesmente
33
desliga-se da vida comunitária: na realidade, porém, torna-se o
centro dos acontecimentos, dominando tudo. Um domínio sutil,
não raro muito eficaz. Com efeito, todos, vendo-lhe o mau
humor, são levados a perguntar-se não só o que terá acontecido,
mas sobretudo "o que terei eu feito de errado, para provocar
isto?"
Nas comunidades numerosas, sobretudo, é sempre
interessante observar a dinâmica de grupo quando entra no
refeitório uma superiora "de nariz torcido", ou quando se cruza
com ela no corredor. A tensão vai num crescendo; os gestos para
restabelecer a concórdia se multiplicam, e pode-se estar certo de
que um único pensamento, embora não publicamente
confessado, se apodera da maioria das freiras: "O que terei eu
feito para enfurecer de tal modo a superiora?"
É com o nariz torcido que se consegue dominar o maior
número de pessoas. Pode-se falar de dominação todas as vezes
que há uma tentativa de modificar o comportamento dos outros,
também porque raramente conseguem as pessoas controlar seu
sentimento de culpa, evitando gestos inoportunos de pacificação.
De qualquer forma, o "nariz torcido" é sempre uma violência: a
comunidade vê-se obrigada a carregar o peso da explosão desta
agressividade recalcada. Peso porque, se de um lado, e
diferentemente das manifestações declaradas de ira, a agressão
não for tão direta, de outro lado, produzirá muito mais angústia,
pelo fato de ninguém, afinal de contas, saber ao certo quem foi
que errou e em quê.
Também aqui, como no caso das lágrimas, a melhor
solução continua sendo a de pensar duas vezes antes de
satisfazer os caprichos daquela que pega birra, ou de irritar-se e
forçar o outro a mudar de comportamento, com a eventual
ameaça de pagar com a mesma moeda; tanto a primeira como a
segunda atitude só revelam uma coisa: a incapacidade de lidar
com esta forma sofisticada de agressividade, não ajudando a
resolver nada. Ignorar o mencionado comportamento é
igualmente ineficaz: a pessoa corre o risco de habituar-se a ele,
continuando com o mesmo estilo por toda a vida. A melhor
34
saída, como sempre, é pôr as coisas em prato limpo,
possivelmente sem apelar para conotações emotivas: dizer, por
exemplo, "Mas como?!", fazendo ver as desvantagens para a
pessoa e para a comunidade. Será melhor que dizer um "Vou te
mostrar com quantos paus se faz uma canoa!"
É, pois, sempre indispensável a reflexão sobre a própria
capacidade de amar. Eis algumas perguntas que nisto nos
poderão ajudar:
— Que espécie de expectativa nutro em relação aos outros? Não
confio jamais em ninguém, por medo de decepção, isolando-me,
assim, da comunidade, e assumindo atitudes de frieza e de
distância?
— Ou, pelo contrário, confio em todo o mundo
indiscriminadamente, acabando por pagar caro pela minha
ingenuidade, quando venho a saber que minhas confidências já
são do domínio público, o meu afeto recusado, ou considerado
como coisa de pouca monta?
— Consigo estabelecer um relacionamento positivo com uma
pessoa na qual confio, mas continuo sempre ansioso por causa
deste mesmo relacionamento? A menor incompreensão, como:
um ímpeto de impaciência, uma falta de atenção, um
esquecimento, vejo logo, de modo excessivo, o peso de uma
culpa inexistente ou irrelevante, acabando por tornar-me chato
com os meus pedidos de perdão? Se a falta, ao invés, deve ser
debitada à pessoa amiga, considero-a como traição, suficiente
para um rompimento?

Amor Possessivo
É o caso da pessoa capaz de estabelecer um
relacionamento positivo, mas positivo até demais, a ponto de se
tornar "indissolúvel"... Para o narcisista, como vimos, o outro
não passa de reflexo da sua pessoa, fonte de satisfação para ele.
Para o emocionalmente instável, é "algo de bom" que, logo em
seguida, por causa de um acontecimento banal, pode
transformar-se em "mau". Para quem ama de maneira
possessiva, o outro é sempre "bom", e de tal forma "bom" que se
35
torna indispensável, alguém de quem é impossível separar-se. A
mestra de noviças possessiva acaba virando uma "galinha
choca", sempre rodeada pelas noviças. Isto até que pode
favorecer a coesão interna do grupo, os relacionamentos
interpessoais, facilitando o clima emotivo da comunidade. Mas,
ao mesmo tempo, pode transformar-se num recurso para "cortar
as asas", impedindo novas experiências capazes de revelar-se
frutíferas para a pessoa e para a difusão do Reino. Não nos
esqueçamos de que, para ajudar a crescer, é preciso favorecer um
justo equilíbrio entre senso de pertença à comunidade, ao grupo,
e capacidade de autonomia. A "mestra-choca", entretanto, só
favorece uma única experiência repetitiva: aquela de "deixar-
como-está-para-ver-como-fica". Tudo na santa paz...
Tudo o que se disse a respeito de "promover novas
experiências" pode dar margem a diversas interpretações, não
raro contrastantes. Por isso, julgamos úteis alguns
esclarecimentos.
Na mentalidade corrente, a palavra "experiência" assume
conotações especiais, tornando-se automaticamente sinônimo de
"situação agradável, gratificante, satisfatória". Esquece-se,
assim, com facilidade, de outros aspectos que fazem parte da
experiência humana, tais como: a dificuldade, o cansaço, a
renúncia, a frustração. Pedir aos jovens da atual geração uma
experiência criativa significa ajudar a crescer também nesta
dimensão. Com efeito, muitos deles foram educados para a
permissividade; nunca experimentaram a dureza da dificuldade e
do cansaço, nem também a alegria da conquista, do lutar por
algo que dê sentido à existência.
A vida religiosa, especialmente no período de formação,
deve ter a coragem de voltar a propor claramente a pedagogia
cristã — a da cruz —. Não para voltar à rígida severidade do
passado, mas para favorecer o verdadeiro crescimento das
pessoas, ajudando-as, desde o início do seu itinerário de fé, a
enfrentar realisticamente a vida. É este um caminho de
respeitosa adesão às palavras do Evangelho, que nos lembram
como o grão de trigo deve morrer para poder produzir fruto (Jo
36
12,24), como também às leis escritas na natureza, às normas
evidentes do "bom senso". Não está por acaso aplicando o
critério da "cruz", da renúncia, da não-gratificação, a mãe que
começa o desmame do nenê, ou mais ainda, que deixa de correr
para junto do bercinho a qualquer vagido, ou pune o filho para
inculcar-lhe o senso do perigo e as primeiras regras da
convivência social?
Às vezes, ao contrário, corremos o risco de comportar-
nos como certas mães permissivas e demasiado
condescendentes. Observemos, por exemplo, o que acontece se
uma noviça "em crise" é mandada, para um período de
experiência, a uma comunidade distante da casa de formação.
Geralmente a escolha cai na chamada "comunidade melhor",
aquela na qual o clima é tranqüilo, sereno, com superiora
maternal, afável, compreensiva e tudo. O resultado da
experiência é geralmente avaliado por todos como positivo.
Permanece, porém, de pé a pergunta a respeito de como a noviça
tenha podido verificar a própria capacidade de inserção na vida
comunitária. E que, ao invés de ter sido posta à prova mediante a
antecipação daquilo que poderá ser o seu futuro, incluídos os
aspectos positivos e negativos, procurou-se, pelo contrário,
resguardá-la contra um possível fracasso. Assim, a noviça ficou
privada de uma "tomada de consciência objetiva" das suas
capacidades num ambiente que espelhe realisticamente a
situação comunitária normal.
E olhe que esta tendência não se observa somente durante
o período de formação. Basta ver os critérios habitualmente
empregados quando da iniciação de novas formas de apostolado.
O certo seria prefixar-se um fim bem preciso, a procura do
verdadeiro bem para a difusão do Reino de Deus, que tem como
conseqüência a escolha das pessoas certas, embora levando em
conta as possibilidades objetivas da Congregação. Na maioria
das vezes, ao contrário, a primeira coisa que se faz é escolher "as
Irmãs desajustadas" (as eternas insatisfeitas, as vítimas, as
agressivas), criando em seguida um projeto de comunidade, de
apostolado, feito "sob medida" para elas. Assim, deixando de
37
lado intenções boas ou más, acaba-se traindo o sentido da vida
religiosa, com prejuízo das próprias pessoas. Parece que não
temos consciência de que, se estas pessoas são insatisfeitas,
incontentáveis, agressivas, isto pode ser indício de dificuldades
em nível psíquico, sendo utópico, pois, achar que os problemas
serão automaticamente resolvidos, jogando tais freiras "no
fogo". Uma nova experiência pode ser, com efeito, gratificante,
ainda mais quando a pessoa se julga "escolhida a dedo". A
alegria, porém, costuma durar pouco, sendo logo seguida de
tensão e angústia: é que a escolhida, ao tomar consciência da
nova tarefa, percebe logo a magnitude da responsabilidade
correspondente, que a coloca em situação de fazer triste figura
diante de toda a comunidade. E assim, justamente aquilo que
visava diminuir a insatisfação acaba se revelando como nova
fonte de tensão e de dificuldades.
O critério de escolha, baseado na satisfação pessoal, não
só é alheio ao Evangelho, mas até anti-evangélico. Jesus sempre
buscou, acima de tudo, a vontade do Pai, não os interesses das
pessoas. Não seguiu critérios de simpatia na escolha dos
apóstolos. Deixou sua própria mãe na solidão de Nazaré. Muitas
vezes foi duro, severo com os seus, educando-os para a
superação dos conflitos, das expectativas irreais de sucesso,
fazendo-os ver, antes de mais nada, com o testemunho da
própria vida, o abismo existente entre a procura de si mesmo e o
amor ao Reino.
Ainda a respeito do assunto da experiência, lembremos
como, às vezes, a tendência é a de propor experiências já de
antemão tidas como satisfatórias, baseados num critério de
satisfação pessoal, de gratificação. Há mais: na maioria das
vezes, somos também tentados de atribuir a tais experiências
poderes miraculosos, esquecidos de que as estruturas
psicológicas inconscientes podem alterar, tranqüilamente, o
sentido daquilo que se vivencia, diminuindo-lhes o alcance.
Alguns exemplos concretos poderão ajudar-nos a compreender
melhor o que foi dito.

38
Virou moda, sobretudo nas casas de formação, a acolhida
aos jovens, o "vem e vê" de Jesus. Longe de nós deixar de ver
nisto um sinal de crescimento, uma transformação de nossas
casas que, de "fortalezas" que eram, refúgio contra o "mundo",
como nos era inculcado, passam a ser centros de hospitalidade e
de testemunho de vida em comum. Isto, porém, não nos dispensa
de usar de perspicácia na avaliação de tais experiências, a fim de
não corrermos o risco de aplicar critérios demasiado otimistas,
julgando de uma vocação com base na convivência de poucos
dias, sem levar em conta as distorções possíveis em ambas as
partes. No que diz respeito à futura aspirante, com efeito, as
expectativas irreais que se dão quase sempre nos inícios de
qualquer relacionamento com a instituição vocacional podem
levá-la a avaliar pouco objetivamente a situação. Por exemplo, a
jovem pode interpretar a gentileza das irmãs para com ela (e,
com a atual crise de vocações, não tenhamos dúvida de que a
acolhida só pode ser das melhores...) como sendo característica
fundamental da vida religiosa, esquecendo-se de que o Senhor a
chama para um caminho de solidão com ele. As irmãs, por sua
vez, diante de tanto entusiasmo, acabam pensando que a jovem
tenha sido atraída por valores realmente verdadeiros, sem
perceber como a euforia, a novidade ou, ainda pior, a percepção
distorcida da situação com base em conflitos não resolvidos,
estejam condicionando a escolha.
Ninguém está querendo, com isto, sustentar a inutilidade
das comunidades de acolhida, menos ainda diminuir o valor da
hospitalidade; trata-se apenas de lembrar que considerar uma
única experiência como predisposição para a vida religiosa pode
provocar efeitos deletérios.
Mais um exemplo concreto, a respeito da tendência a
mistificar a experiência é o de achar que se podem resolver todos
os problemas das pessoas em formação, proporcionando-lhes
experiências, estágios, fora da comunidade. Só que nos
esquecemos de perguntar qual é o nível do programa. Por outras
palavras, se se trata de dificuldades ligadas à inexperiência, à
imaturidade, à idade muito jovem da pessoa em formação, ou, ao
39
invés, de problema totalmente diferente. Tomemos como
exemplo uma noviça que, antes de entrar na vida religiosa, se
tenha sempre dedicado ao estudo. Durante o postulantado, teve
de completar a sua preparação, e, no ano de noviciado, teve de
aprofundar temas relativos à vida religiosa. É claro que a uma
pessoa assim faltou oportunidade de inserção na vida prática,
possibilidade de relacionamentos interpessoais, de verificação de
suas capacidades em âmbitos não estritamente culturais. Neste
caso, é indispensável, para seu crescimento, uma experiência
capaz de arrancá-la do interesse intelectual, levando-a a
confrontar-se com as dificuldades concretas da vida cotidiana.
Quando, ao invés, o problema se situa em outro nível, e
as dificuldades são devidas, não à inexperiência, mas a conflitos
psicológicos inconscientes, é utópico achar que o mero passar do
tempo ou a mudança de ambiente possa ter qualquer influência
séria sobre a pessoa, ajudando-a a mudar. Aqui também se corre
o risco de confundir com a realidade expectativas puramente
irreais. A noviça, depois de ter passado um mês numa outra casa,
fazendo uma experiência pastoral, volta toda entusiasmada, certa
de ter superado todas as dificuldades, baseada na satisfação pela
descoberta feita da sua capacidade e maleabilidade. Donde
julgar-se nascida para a vida religiosa. Ela só não percebe ter-se
tratado de uma experiência completamente postiça, isto é, longe
de se poder comparar com uma experiência de vida religiosa,
porque caracterizada por uma falta de compromisso definitivo,
limitada por um espaço de tempo demasiado breve.
A mesmíssima pessoa pode ficar, ao invés, de tal forma
ansiosa, ante a perspectiva de um fracasso, de tal forma incapaz
de aceitar as próprias limitações, que necessariamente
interpretará como positiva a experiência feita, com medo
(inconsciente) de ter de enfrentar-se com o negativo em si
mesma, ou então por temor de ter de examinar os seus limites
diante dos superiores, correndo o risco de ser recusada, quando
não, mandada embora da comunidade .
A fim de permitir que as pessoas a nós confiadas cresçam
através de experiências, é preciso, pois, usar critérios de
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prudência e de sabedoria evangélicas. É preciso, ao mesmo
tempo, esforçar-se, como dissemos, por favorecer o
desenvolvimento da própria capacidade de amar, de maneira não
possessiva, a fim de se estar em condições de aceitar a
experiência que existe em todo relacionamento de amor: a da
expropriação, que consiste na humilde aceitação da perda, do
abandono, do afastamento. Na maioria das vezes, porém, nosso
amor não passa de posse, dominação, controle. Isto, quando
conseguimos superar o narcisismo primitivo, conseguindo,
diferentemente daqueles que não conseguem confiar em
ninguém, estar em condições de perceber com objetividade as
pessoas amadas, sem alternâncias de confiança e desconfiança.
Conseguimo-lo, porém, precisamente porque o outro é visto
como um bem precioso para a nossa vida, procurando tê-lo
sempre junto de nós, valendo-nos, para isso, de todos os meios,
por exemplo, valorizando excessivamente o aspecto comunitário
em relação ao aspecto apostólico; impedindo novas experiências,
obstaculizando as amizades interpessoais, dentro da
comunidade, considerando as irmãs como possíveis rivais.
A experiência do amor não possessivo deve passar, ao
invés, sempre pela perda do outro que necessariamente deverá
um dia separar-se de nós. Se isto vale para qualquer relação, é
muito mais verdadeiro para a experiência da maternidade
espiritual. Quem o diz é Von Balthasar :
Ao nascer, já começamos a morrer, e assim como os
homens costumam fugir diante da morte, assim também as mães
costumam agarrar-se aos filhos para não correr ao encontro da
morte, que a separa deles. Na realidade, com o parto a mãe já foi
expropriada: pode acompanhar ainda por um pouco o filho que
lhe escapa, enquanto ele dela necessita, mas isto deve acontecer
na renúncia. Algo semelhante acontece com as nossas obras, de
modo especial com aquelas mais pessoais, mais espirituais. Uma
vez iniciadas, não nos pertencem mais, ficando à disposição da
divina Providência.
Isto que Von Balthasar escreve a respeito das obras, em
geral, vale, talvez numa medida ainda maior, para as pessoas.
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Também a respeito delas é preciso experimentar a
expropriação, a passagem pelo vazio, na tristeza do abandono,
transformando o senso de depressão e de perda numa
experiência criativa, através da humilde aceitação desta dor
natural, tipicamente humana, antecipação da única experiência a
que nenhuma criatura pode subtrair-se: a da morte. É o que diz o
psicólogo norte-americano O. Kernberg :
Todo relacionamento humano está condenado a acabar, e
a ameaça da perda, do abandono e, em última análise, da morte é
mais forte naqueles casos em que o amor é mais profundo.
Também a consciência deste fato aprofunda o amor.
Se, pois, é verdade, como garante o poeta , que o amor atinge as
profundezas no momento da separação, é, também verdade que,
como acabamos de dizer, "a consciência deste fato aprofunda o
amor". E para nós, religiosas, não só o amor àquela pessoa que
deixamos livre de nos abandonar, mas também e sobretudo o
amor a Deus. Assim, a separação e a perda são ocasião de
reafirmarmos a nossa escolha de consagração e de reencontrar na
pessoa de Cristo o amigo, o irmão, o esposo da nossa vida.

O Amor Distante
É o daquela mestra ou superiora capaz de amar, ser
compreensiva, dar liberdade ao outro, mas sem chegar jamais a
um relacionamento de intimidade, de demasiada aproximação,
de intensa partilha. É o amor temeroso do relacionamento
interpessoal e, portanto, interessado em manter distância. Os
meios para manter esta distância afetiva variam muito: inúmeros
compromissos extra-comunidade; abertura e acolhida excessiva
para com pessoas estranhas de modo que as irmãs não se
encontrem nunca sós; tendência a preocupar-se mais com os
aspectos organizacionais do que com os pessoais. No diálogo
privado, tais pessoas falam de valores, mas de maneira
impessoal, demonstrando, não raro, embaraço. Às vezes são
gentis até demais, sorridentes, embaraçadas, como se
inconscientemente temessem perder a própria autonomia toda
vez que não conseguem manter uma grande distância. Trata-se,
42
quase sempre, de pessoas que, inconscientemente, percebem o
seu próprio desejo de afeto, mas se apavoram diante dele,
medrosas de perder a própria estima, sentindo-se dependentes.
Trata-se de pessoas bondosas mas inflexíveis. As pessoas se
sentem bem ao lado delas, contanto que se lhes deixe o controle
da situação, a certeza de que não correm o risco de aproximar-se
demais e, conseqüentemente, sofrer a frustração da perda, da
distância, da solidão.

MÃES NO ESPÍRITO
Lembrávamos, no inicio deste capítulo, que não é o ato
de procriar que caracteriza a maternidade, e sim uma disposição
do coração que torna a pessoa capaz de amar, purificando-a das
contínuas limitações que deturpam o amor, para torná-lo sempre
mais semelhante ao de Deus, cuja misericordiosa benevolência
para com o homem já no Antigo Testamento era comparada ao
amor de uma mãe, como nos lembram as palavras de Isaías:
"Como uma mãe consola um filho, assim eu vos consolarei" (Is
66,13).
"Por acaso uma mãe é capaz de esquecer-se do filho? Pois bem,
se elas o esquecessem, eu, pelo contrário, não te esquecerei
jamais" (Is 49,15).
Disposição do coração que não é substituto da maternidade
humana, embora realizando-a numa dimensão particular, a de
uma oblação total num plano diferente, não em favor de uma
pessoa mas em nível universal, em que a nossa feminilidade é
reencontrada e dilatada na medida do Reino de Deus.
Também esta, como a maternidade física, é a acolhida de
um dom, do dom de Deus, que se transforma e concretiza em
amor generosamente oferecido.
Nem está isenta do sacrifício, do sofrimento; antes, é
caracterizada por um aspecto sacrifical especial, que encontra o
seu significado no interior de um chamado específico, o qual
implica renúncia àquela reciprocidade do amor cuja exigência
está tão arraigada no coração humano, e que acontece e se
realiza no casamento. É esta ausência de partilha que faz da
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nossa "maternidade" uma experiência de vazio permanente,
colocando-a num nível mais secreto, mais recôndito, profundo,
solitário, E é isto que a transforma numa experiência de
gratuidade, de fidelidade desinteressada, como o gesto das
"mulheres dos aromas", desejosas de expressar seu afeto por
Jesus até depois da sua morte.
A "maternidade espiritual" revela, assim, o sentido
profundo da vida consagrada:
— esta segue as leis silenciosas da fecundidade do Reino dos
céus: é maternidade escondida, como a de Maria de Nazaré
cotidiana e comum, perceptível somente aos olhos dos pequenos
e dos simples que, como o velho Simeão, sabem ler a presença
do divino no cotidiano, no usual;
— nasce da dócil aceitação da vontade de Deus, como para
Maria. Jesus louvou, usando palavras duras apenas na aparência,
não a capacidade gerativa de sua mãe, mas a virtude que
caracterizou todos os instantes de sua vida: a generosa
disponibilidade para ouvir a palavra de Deus e pô-la em prática
(Lc 11,28);
— é doação gratuita, generosa, sem reservas, é "vida doada que
se consome por Cristo, aliviando o que sofre, comunicando a
toda a casa a novidade inaudita da generosidade do coração" ;
— é capacidade de compaixão, no sentido mais próprio do
termo, como aproximação do outro, padecendo com ele;
partilhando, para reviver o sim de Maria não mais na quietude de
Nazaré, mas no adensar-se das trevas ao pé da cruz.
Em Maria, seio acolhedor do Filho crucificado,
encontramos um exemplo acabado de maternidade espiritual:
nela, solidão, coragem, capacidade de perdão, misericórdia estão
unificadas num único gesto de abandono e de adesão total à
vontade de Deus. Por Isso é que a invocamos como Mãe não só
de Cristo, mas também da Igreja.
Com ela, toda responsável por uma comunidade pode
encetar um novo caminho
— de crescimento pessoal, na capacidade de amar;
— de intimidade com Deus, Esposo, Mestre e Pai.
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E se, para concluir, quisermos encontrar um mestre
contemporâneo, alguém que tenha compartilhado e expresso
com limpidez e sem rodeios o sentido da experiência de
formador, podemos procurar, nas páginas de Thomas Merton ,
palavras de ajuda e de encorajamento.
Faz seis meses que fui nomeado mestre dos estudantes, e
olhei dentro dos seus corações, carregando-me com os seus
fardos. Nem sempre vi claro, nem consegui carregar com
galhardia esses fardos, e por dias a fio ficamos girando no
mesmo lugar, caindo em fossos, por se tratar de um cego
guiando outros cegos.
Não sei se eles descobriram algo do novo ou se sejam
capazes de amar mais a Deus, ou se os ajudei de alguma maneira
a encontrar a si mesmos, ou seja, a perder a si mesmos. Mas uma
coisa descobri: o tipo do trabalho que um dia temi, porque
pensava que teria interferido na "solidão" é na realidade o único
verdadeiro atalho para a solidão. É preciso ser de alguma
maneira eremita, antes que a responsabilidade para com os
outros possa ajudar-nos a caminhar no deserto.
Mas já que Deus nos chamou para a solidão, tudo aquilo
que tocamos nos conduz à solidão. Tudo aquilo que nos toca é
capaz de fazer de nós outros tantos eremitas, na medida em que
não insistimos em fazer o trabalho por nós mesmos, fabricando o
nosso eremitério.
Qual é o meu novo deserto? O seu nome é compaixão.
Não há deserto algum tão terrível, tão árido e tão frutífero como
o deserto da compaixão. É o único deserto que florirá realmente
como o lírio. Tornar-se-á oásis, florirá e brilhará de alegria. No
deserto da compaixão, a terra sedenta se transforma em fontes de
água; nela, os pobres possuem todas as coisas. Não há fronteiras
que isolem os habitantes desta solidão, na qual vivo só, isolado,
como a Hóstia sobre o altar, o pão de todos os homens, que
pertence a todos e a ninguém, pois Deus está comigo, sentado
sobre as ruínas do meu coração, pregando o sou Evangelho aos
pobres.

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Por acaso pensais que eu tenha uma vida espiritual? Não
a tenho. Sou a própria indigência, sou silêncio, sou pobreza, sou
solidão, pois renunciei à espiritualidade para encontrar Deus; e
ele prega em voz alta no mais profundo da minha indigência,
dizendo: "Derramarei meu espírito sobre os teus filhos, e eles
germinarão entre as ervas, como o salgueiro junto à torrente" (Is
44,3-4). "Ouvireis ainda os filhos de que eu estava privado, dizer
aos teus ouvidos: “O lugar é apertado para mim, fazei-mo um
mais amplo, para que eu possa morar nele” (Is 49,20). Morro de
amor por ti. compaixão: eu te tomo por minha senhora; assim
como Francisco desposou a pobreza, eu esposo a ti, rainha dos
eremitas e mãe dos pobres.

46

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