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Bernard Charlot

O PROFESSOR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA:


UM TRABALHADOR DA CONTRADIÇÃO

Bernard Charlot *

RESUMO

O artigo pretende confrontar as injunções da sociedade contemporânea com o que


está vivendo o professor “normal”, isto é, a professora que atua a cada dia numa
dessas salas de aula que constituem a realidade educacional brasileira. O professor
enfrenta contradições que decorrem da contemporaneidade econômica, social e
cultural: deve ensinar a todos os alunos em uma escola e uma sociedade regidas pela
lei da concorrência, transmitir saberes a alunos cuja maioria quer, antes de tudo,
“passar de ano” etc. Essas contradições, porém, não são um simples reflexo das
contradições sociais; arraigam-se, também, nas tensões inerentes ao próprio ato de
ensino/aprendizagem. O artigo analisa como essas tensões tornam-se contradições
na sociedade contemporânea. Destaca seis pontos. O professor é herói ou vítima? É
“culpa” do aluno ou do professor? O professor deve ser tradicional ou construtivista?
Ser universalista ou respeitar as diferenças? Restaurar a autoridade ou amar os alunos?
A escola deve vincular-se à comunidade ou afirmar-se como lugar específico?
Palavras-chaves: Professor – Ensino – Contemporaneidade – Contradições

ABSTRACT

THE TEACHER IN CONTEMPORARY SOCIETY: A WORKER OF


CONTRADICTION
The article intends to confront the injunctions of the contemporary society with
what the normal professor is living, that is, the teacher who acts every day in one
of these classrooms that constitute the Brazilian educational reality. The professor
faces contradictions that follow from the economic, social and cultural
contemporaneousness: he must teach to all the pupils in a school and a society
dominated by the rule or competition, transmit knowledges to pupils whose majority
wants, more than everything, to be promoted to the next grade, etc. These
contradictions, however, are not simples consequences of the social contradictions;
they are rooted, also, in the peculiar tensions between teaching and learning. The
paper analyzes how these tensions become contradictions in the contemporary
society. It emphasizes six questions. Is the professor hero or victim? Who is guilty,

* Doutor e Livre-Docente em Ciências da Educação. Professor Emérito da Universidade de Paris 8. Professor-Visitante no


Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas
Educação e Contemporaneidade (EDUCON). Endereço para correspondência: Universidade Federal de Sergipe, Núcleo de
Pós-Graduação em Educação (NPGED), Cidade Universitária Prof. “José Aloísio de Campos”, Av. Marechal Rondon, s/n
Jardim Rosa Elze – 49100-000 São Cristóvão/SE. E-mail: bernard.charlot@terra.com.br

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O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição

pupil or professor? Must the professor be traditional or constructivist? Must he/she


be universalist or respect differences? Must he/she demonstrate authority or must
he/she love pupils? Must school be linked with the community or must school be
emphasized as a specific place?
Keywords: Teacher – Teaching – Contemporaneousness – Contradictions

Em 1999, António Nóvoa publicou um artigo inti- 1. A escola e o professor na encruzi-


tulado “Os Professores na Virada do Milênio: do lhada das contradições econômicas,
excesso dos discursos à pobreza das práticas”. No sociais e culturais
resumo do artigo, ressaltou os seguintes pontos.
Até a década de 50 do século XX, a escola
A chave de leitura do artigo é a lógica excesso-pobre-
za, aplicada ao exame da situação dos professores:
primária cumpre funções de alfabetização, trans-
do excesso da retórica política e dos mass-media à missão de conhecimentos elementares e, como di-
pobreza das políticas educativas; do excesso das lin- ziam no século XIX, “moralização do povo pela
guagens dos especialistas internacionais à pobreza educação”. Poucas crianças seguem estudando
dos programas de formação de professores; do ex- além desse nível primário. Aliás, no Brasil, uma
cesso do discurso científico-educacional à pobreza grande parte da população nem é alfabetizada, por
das práticas pedagógicas e do excesso das “vozes” não entrar na escola primária ou nela permanecer
dos professores à pobreza das práticas associativas pouco tempo. Quanto aos jovens das classes po-
docentes. Não recusando um pensamento “utópico”, pulares, saem da escola para trabalhar na roça,
o autor critica as análises “prospectivas” que reve- numa loja, etc., sejam eles bem-sucedidos ou fra-
lam um “excesso de futuro” que é, ao mesmo tempo, cassados. Para as crianças do povo, a escola não
um “déficit de presente” (NÓVOA, 1999).
abre perspectivas profissionais e não promete as-
Quando se reflete sobre os desafios encarados censão social, com exceção de uma pequena mi-
pelos professores na sociedade contemporânea, é noria que, muitas vezes, passa a ensinar na escola
preciso não esquecer a advertência: ao acumular primária. Os jovens oriundos da classe média con-
palavras ou expressões como “globalização”, “ino- tinuam estudando além da escola primária, mas,
vações”, “sociedade do saber”, “novas tecnologi- na maioria das vezes, esses estudos os levam às
as de informação e comunicação”, corre-se o risco posições sociais a que já eram destinados.
de sacrificar a análise do presente à visão proféti- Portanto, a escola não cumpre um papel im-
ca do futuro. Contudo, em uma sociedade cujo pro- portante na distribuição das posições sociais e
jeto é o “desenvolvimento” e que está vivendo uma no futuro da criança e, conseqüentemente, a vida
fase de transformações rápidas e profundas e em dentro da escola fica calma, sem fortes turbu-
se tratando da formação das crianças, é difícil evi- lências. Alunos fracassam, mas esse fracasso é
tar a perspectiva do futuro quando se fala da edu- apenas um problema pedagógico, não acarreta
cação. Parece-me possível superar a dificuldade conseqüências dramáticas e, sendo assim, não é
analisando as contradições que o professor con- objeto de debate social. Não se fala sobre a “vi-
temporâneo deve enfrentar. Elas decorrem do cho- olência escolar”; decerto, há atos de indisciplina
que entre as práticas do professor atual e as e pequenas violências entre as crianças, mas
injunções dirigidas ao futuro professor ideal. São estão na “ordem das coisas” e não preocupam a
elas, a meu ver, que levam ao “excesso dos discur- opinião pública e os professores. Isso não signi-
sos”. Essa é a chave de leitura deste artigo, que fica dizer que não haja debates sobre a escola,
pretende confrontar as injunções da sociedade con- por exemplo, na década de 30 no Brasil. Não se
temporânea com o que está vivendo o professor discute, porém, o que está acontecendo dentro
“normal”, isto é, a professora que atua a cada dia da escola; debate-se o acesso à escola e a con-
numa dessas salas de aula que constituem a reali- tribuição do ensino para a modernização do país.
dade educacional brasileira. As contradições relativas à escola são contradi-

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ções sociais a respeito da escola e não contradi- diplomas superiores aos dos demais alunos para
ções dentro da escola. conquistar as melhores vagas no mercado de tra-
Em tal configuração socioescolar, a posição balho e ocupar as posições sociais mais lucrativas
social dos professores, a sua imagem na opinião e prestigiosas. A escola vira espaço de concorrên-
pública, o seu trabalho na sala de aula são clara- cia entre crianças.
mente definidos e estáveis. O professor é mal pago, Em segundo lugar, as novas camadas sociais
mas é respeitado e sabe qual é a sua função social que ingressam para a escola, em particular para o
e quais devem ser as suas práticas na sala de aula. último segmento do ensino fundamental, importam
Essa configuração histórica muda por inteiro a para o universo escolar comportamentos, atitudes,
partir dos anos 60 e 70 do século XX. Na maioria relações com a escola e com o que nela se estuda,
dos países do mundo, a escola passa a ser pensada que não combinam com a tradição e até com a
na perspectiva do desenvolvimento econômico e função da escola. Esses “novos alunos” encontram
social; é o caso nos Estados-Unidos, na França, no dificuldades para atender às exigências da escola
Japão e nos países do Sudeste Asiático, no Brasil, no que diz respeito às aprendizagens e à disciplina.
nos países africanos, etc. Essa nova perspectiva Ademais, já se desenvolvem novas fontes de in-
leva a um esforço para universalizar a escola pri- formação e de conhecimento, em especial a tele-
mária e, a seguir, o ensino fundamental. Dessa visão, mais atraentes para os alunos do que a escola.
época para cá, aos poucos ingressam na escola, Em terceiro lugar, os professores sofrem novas
em níveis cada vez mais avançados, rapazes e pressões sociais. Já que os resultados escolares
moças pertencentes a camadas sociais que, outro- dos alunos são importantes para as famílias e para
ra, não tinham acesso à escola ou apenas cursa- “o futuro do país”, os professores são vigiados,
vam as primeiras séries. Esse movimento de criticados. Vão se multiplicando os discursos so-
expansão escolar é organizado e pilotado, antes de bre a escola, mas também sobre os professores.
tudo, pelo Estado. No entanto, os salários dos professores permane-
Doravante, o fato de ter ido à escola, ter estu- cem baixos e, no Brasil, até muito baixos. Com
dado até certo nível de escolaridade, ter obtido um efeito, o salário auferido por uma categoria profis-
diploma abre perspectivas de inserção profissional sional não depende apenas da importância social
e ascensão social. Com efeito, estudos e diplomas da sua função e da competência requerida para
permitem conseguir empregos gerados pelo desen- cumpri-la, mas, também, da raridade das pessoas
volvimento econômico e social e pela expansão da aptas a ocupar a mesma vaga. Ora, com a expan-
própria escola. Começa a se impor um novo mo- são da escola, em particular nas camadas sociais
delo de ingresso na vida adulta, modelo esse que populares, desprovidas das redes relacionais que
articula nível de estudos a posição profissional e possibilitam conseguir os empregos mais cobiça-
social. Apesar das taxas elevadas de desemprego dos, são cada vez mais numerosas as pessoas di-
e da importância da economia informal, esse mo- plomadas e aptas a ensinar.
delo já predomina no Brasil: a história escolar de Por todas essas razões, a contradição entra na
uma criança acarreta conseqüências importantes, escola e desestabiliza a função docente. A socie-
efetivas ou potenciais, para sua vida futura. dade tende a imputar aos próprios professores a
Em tal configuração socioescolar, a contradi- responsabilidade dessas contradições. Até as prá-
ção entra para a escola. ticas pedagógicas, cuja eficácia parecia compro-
Primeiro, porque, doravante, importa muito o vada pela tradição, são questionadas e criticadas:
fato de ter sido bem-sucedido na escola ou, ao con- começa a ser desprezado o professor “tradicional”.
trário, fracassado, o que torna mais angustiada a Perduram até os dias atuais as funções confe-
relação dos alunos e dos pais com a escola e mais ridas à escola nos anos 60 e 70, os pedidos a ela
tensa a sua relação com os professores. A nota e o endereçados, as contradições que ela deve enfren-
diploma medem o valor da pessoa e prenunciam o tar e, portanto, a desestabilização da função do-
futuro do filho. Não basta tirar uma nota boa e cente. Nessa base, contudo, dá-se uma nova gui-
obter um bom diploma, é preciso conseguir notas e nada nas décadas de 80 e 90. Esta é geralmente

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O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição

atribuída à “globalização”, fenômeno bastante es- Hoje em dia, o professor já não é um funcionário
curo nas mentes, mas percebido como ameaça e que deve aplicar regras predefinidas, cuja execu-
exigência inelutável. Na verdade, a própria globa- ção é controlada pela sua hierarquia; é, sim, um pro-
lização, isto é, o desenvolvimento de redes trans- fissional que deve resolver os problemas. A injunção
nacionais pelas quais transitam fluxos de merca- passou a ser: “faça o que quiser, mas resolva aquele
dorias, serviços, capitais, informações, imagens, problema”. O professor ganhou uma autonomia pro-
etc., até agora surtiu poucos efeitos diretos em fissional mais ampla, mas, agora, é responsabilizado
países como o Brasil (CHARLOT, 2007). As mu- pelos resultados, em particular pelo fracasso dos
danças, incluídas aquelas que dizem respeito à es- alunos. Vigia-se menos a conformidade da atuação
cola, decorrem das novas lógicas neoliberais, im- do professor com as normas oficiais, mas avaliam-
pondo a sua versão da modernização econômica e se cada vez mais os alunos, sendo a avaliação o
social. Essas lógicas são ligadas à globalização, mas contrapeso lógico da autonomia profissional do do-
constituem um fenômeno mais amplo. Podem ser cente. Essa mudança de política implica numa trans-
resumidas da seguinte forma. formação identitária do professor.
Primeiro, tornam-se predominantes as exigên- Para resolver os problemas, o professor é con-
cias de eficácia e qualidade da ação e da produção vidado a adaptar sua ação ao contexto. A escola e
social, inclusive quando se trata de educação. os professores devem elaborar um projeto políti-
Em segundo lugar, essas exigências levam a co-pedagógico, levando em conta as característi-
considerar o fim do ensino médio como o nível de- cas do bairro e dos alunos, mobilizar recursos
sejável de formação da população em um país que culturais e financeiros que possibilitem melhorar a
ambiciona enfrentar a concorrência internacional eficácia e a qualidade da formação, tecer parceri-
e a abrir as portas do ensino superior a uma parte as, desenvolver projetos com os alunos etc. Essas
maior da juventude. Por um efeito de feedback, novas exigências requerem uma cultura profissio-
crescem as exigências atinentes à qualidade do nal que não é a cultura tradicional do universo do-
ensino fundamental. cente; o professor, que não foi e ainda não é formado
Em terceiro lugar, a ideologia neoliberal impõe para tanto, fica um pouco perdido.
a idéia de que a “lei do mercado” é o melhor meio, O professor deve, agora, pensar de modo, ao
e até o único, para alcançar eficácia e qualidade. mesmo tempo, “global” e “local”. Há de preparar
Multiplicam-se as privatizações, inclusive, em al- os seus alunos para uma sociedade globalizada e,
guns países, em especial no Brasil, as do ensino, também, de “ligar a escola à comunidade”.
quer fundamental, quer médio, quer superior ainda Esse global, o professor encontra-o, sobretudo,
mais. De modo geral, a esfera na qual o Estado sob forma da cultura informática. Esta o coloca
atua diretamente reduz-se. O Estado recua, em face a uma tripla dificuldade.
proveito do “global” e, ainda, do “local”, beneficia- Primeiro, o acesso fácil a inumeráveis informa-
do pelo recuo do Estado. ções, graças à Internet, faz com que o docente já
Por fim, desenvolvem-se em ritmo rápido no- não seja para o aluno, como foi outrora, a única,
vas tecnologias de informação e comunicação: nem sequer a principal fonte de informações sobre
computador, Internet, CD-ROM, celular. Dessa o mundo. Sendo assim, é preciso redefinir a fun-
forma, nascem e crescem espaços de comunica- ção do professor, para que este não seja desvalori-
ção e informação que escapam ao controle da es- zado. Mas esse trabalho de redefinição ainda não
cola e da família e que fascinam particularmente foi esboçado.
os jovens: MSM, Orkut etc. Ademais, o interesse dos alunos pela comuni-
Todas essas transformações têm conseqüênci- cação por Internet e por celular faz com que eles
as sobre a profissão docente, desestabilizada não leiam cada vez menos textos impressos, enquanto
apenas pelas exigências crescentes dos pais e da esse tipo de textos permanece a base da aprendi-
opinião pública, mas também na sua posição pro- zagem escolar da língua e da cultura escolar, e in-
fissional (nas escolas particulares), na sua posição ventam novas formas lingüísticas em uma
diante de seus alunos, nas suas práticas. comunicação “pingue-pongue”.

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Por fim, o professor é convidado a utilizar es- vezes, a educação infantil, acentuam essa focali-
sas novas tecnologias no seu ensino e as escolas zação dos alunos e dos professores sobre a nota.
recebem computadores. O professor alega que não O próprio professor encarna essa contradição
foi formado para tanto. É verdade, mas há dois radical: sonha em transmitir saberes e formar jo-
obstáculos ainda maiores ao uso pedagógico des- vens, mas vive dando notas a alunos. De forma
sas novas tecnologias. Primeiro, existe uma dife- mais ampla, o professor trabalha emaranhado em
rença entre “informação” e “saber”: como usar as tensões e contradições arraigadas nas contradições
informações disponibilizadas pela Internet para econômicas, sociais e culturais da sociedade con-
transmitir ou construir saberes? Se não for desen- temporânea.
volvida uma reflexão fundamental sobre esse as-
sunto, os computadores permanecerão nos 2. As contradições no cotidiano: a pro-
armários das escolas, ou numa sala trancada. Se- fessora na escola e na sala de aula
gundo, a “forma escolar”, isto é, as estruturas de
espaço e tempo das escolas, a forma como os alu- O professor é uma figura simbólica sobre a qual
nos são distribuídos em turmas, os modos de avali- são projetadas muitas contradições econômicas,
ar não combinam com o uso pedagógico do sociais e culturais. Contudo, seria um erro consi-
computador e da Internet. derar que as contradições enfrentadas pela pro-
Como já mencionado, o professor defronta-se, fessora1 , no cotidiano, são um simples reflexo das
ainda, com novos tipos de alunos, cujos modos de contradições sociais. A situação é mais complexa.
pensamento pouco condizem com o que requer o Existem tensões inerentes ao próprio ato de edu-
sucesso escolar. Ao levar à idéia de uma constru- car e ensinar. Quando são mal geridas, essas ten-
ção, ou reconstrução, do saber pelo aluno, de for- sões viram contradições, sofridas pelos docentes e
ma ativa, em um processo de mobilização pelos alunos. Os modos como se gerem as tensões
intelectual, as pesquisas em Psicologia, Sociologia, e as formas que tomam as contradições depen-
Epistemologia, Educação propõem ao professor dem da prática da professora e, também, da orga-
uma solução, amplamente difundida pelos centros nização da escola, do funcionamento da Instituição
de formação. Contudo, a proposta “construtivis- escolar, do que a sociedade espera dela e lhe pede.
ta”, por valiosa que seja em si, implica formas de Portanto, as contradições são, ao mesmo tempo,
organização e de avaliação escolares diferentes das estruturais, isto é, ligadas à própria atividade do-
que estruturam a escola atual. Resta o construti- cente, e sócio-históricas, uma vez que são molda-
vismo como injunção endereçada ao professor, vara das pelas condições sociais do ensino em certa
mágica que poderia resolver os problemas atuais época. São essas tensões e contradições, na sua
da escola, dos professores e dos alunos. dupla dimensão, que tentarei analisar aqui.
Por fim, o professor sofre os efeitos de uma
contradição radical da sociedade capitalista con-
temporânea. Por um lado, esta precisa de traba- 2.1. O professor herói e o professor
lhadores cada vez mais reflexivos, criativos, vítima
responsáveis, autônomos – e, também, de consu-
midores cada vez mais informados e críticos. Por Quando se observam as palestras públicas so-
outro lado, porém, ela promove uma concorrência bre a escola e os debates que se seguem, percebe-
generalizada, em todas as áreas da vida, trate-se se uma situação interessante: o palestrante fala à
de produção, de serviço, de lazer e até de beleza. platéia como se esta fosse constituída por profes-
Sendo assim, uma formação cada vez mais ambi- sores heróis, professoras santas ou militantes e, a
ciosa é proposta a alunos visando cada vez mais à seguir, intervêm no debate professores e professo-
nota e não ao saber. As avaliações nacionais
(SAEB, ENEM, no Brasil) e internacionais (PISA) 1
Uso a palavra professor quando se trata da figura simbólica que
encarna a função docente e as palavras professor ou professora
e o vestibular brasileiro, que norteia o ensino mé- quando penso na pessoa singular que cumpre essa função, no
dio e, de forma indireta, o ensino fundamental e, às cotidiano.

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O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição

ras que se sentem vítimas da sociedade, dos pais, discurso é certo, mas incompleto: quem quiser, pode,
dos alunos, das Secretarias de Educação etc. Do contanto que assuma a postura de herói, santo,
mesmo modo, para quem falam os professores militante. O problema é que há, no Brasil, cerca de
universitários e demais formadores de docentes? 2,4 milhões de “funções docentes”2 . Será que te-
Para professoras que encarnam o patrimônio uni- remos de esperar que tanta gente se converta ao
versal do saber, que entendem tudo de Piaget, heroísmo para mudar a escola brasileira?
Vygotsky, Freud, Marx e mais alguns, que adoram Os docentes têm consciência dessa injunção
se comunicar com os jovens e, ainda, redigir pla- heróica e reclamam. Recentemente, após uma
nejamentos detalhados, que amam todas as crian- palestra em que tinha explicado que os alunos se
ças, até as mais violentas e chatas e, além disso, queixam da rotina escolar e avançado a idéia da
que não pedem “receitas” para conseguirem ser escola como lugar de aventura intelectual, recebi,
heroínas e santas. O que é essa profissão em que, por escrito, a seguinte “pergunta”, que foi bastante
para ser um bom profissional, deve-se ser santo ou aplaudida pela platéia de professores.
militante? No discurso pedagogicamente correto, O professor está sempre errado.
cadê a professora “normal”, isto é, a professora * é jovem: não tem experiência
que prefere ir à praia ou namorar a dar aula de * é velho: está superado
matemática? Isso não significa dizer que não seja * chama atenção: é grosso
uma boa professora. Qual é exatamente a função * não chama atenção: não tem moral
daquele discurso heróico? * usa a língua portuguesa corretamente: ninguém
A esse respeito, vale refletir sobre a função entende
desempenhada, nos debates sobre a escola, pelos * fala a linguagem do aluno: não tem vocabulário
exemplos de escolas famosas, que se tornaram * tem carro: chora de barriga cheia
radicalmente diferentes das escolas triviais – como, * anda de ônibus: é coitado
* o aluno é aprovado: deu mole
nos dias atuais, a escola portuguesa da Ponte, cuja
* o aluno é reprovado: perseguição.
história é divulgada pelo Brasil, com talento, por Como implementar uma aventura intelectual nas
José Pacheco, um dos seus atores (PACHECO, escolas, marcadas por transformações sociais?
2003; 2006). Não há dúvida alguma de que essa
escola seja interessante, como é a sua apresenta- Esse texto evidencia três fenômenos. Primeiro:
ção por José Pacheco. O problema é outro: por o professor tem consciência de estar preso em dis-
que esse exemplo comove tanto professoras que cursos contraditórios. Segundo: ele interpreta es-
nunca tentaram fazer o mesmo e, na sua maioria, sas contradições em termos pessoais, ainda que
iriam recusar tal aventura se lhes fosse proposta? entenda que são ligadas a transformações sociais.
Avanço a hipótese de que tais exemplos e, de for- Terceiro fenômeno: essa situação gera vitimização,
ma mais geral, os discursos heróicos sobre a edu- indignação e desmobilização profissional.
cação e a escola, satisfazem a “parte do sonho” Por um lado, o herói da Pedagogia. Por outro, a
que subsiste nas professoras, por mais difíceis e vítima, mal paga e sempre criticada. Falta o pro-
afastadas do ideal que sejam as suas condições fessor normal, que trabalha para ganhar um salá-
reais de trabalho. O professor herói é o Eu Ideal rio e sustentar sua família, que vive situações
coletivo que possibilita às professoras agüentarem esgotantes e, também, prazeres dos quais pouco
o seu trabalho cotidiano. Do lado da Instituição de fala, que se sente objeto de críticas, mas, afinal de
formação, ele é a prova de que “isso é possível”, contas, orgulha-se do trabalho feito, que ensina com
que quem quer mesmo mudar, pode. Desse ponto rotinas provadas, mas, às vezes, abre parênteses
de vista, existe uma convergência implícita entre construtivistas.
os propagadores de exemplos famosos e o discur- Ao silenciar, o professor normal conforta-se, o
so universitário pedagogicamente correto, apesar que Peter Woods (1990) chama de “estratégias de
do desprezo explícito para com a universidade 2
É difícil conhecer o número exato de docentes, uma vez que
manifestado, muitas vezes, por esses propagado- muitos têm dois empregos ou até três. Por isso, contabilizam-se
res. Os discursos são iguais: quem quiser, pode. O as “funções docentes”.

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sobrevivência”. O primeiro objetivo do professor, Sendo assim, permanentemente, ela deve pres-
explica ele, é sobreviver, profissional e psicologi- sionar o aluno, negociar, procurar novas aborda-
camente, e só a seguir vêm os objetivos de forma- gens dos conteúdos ensinados, adaptar o nível da
ção dos alunos. Quanto mais difíceis as condições sua aula, sem por isso renunciar à transmissão do
de trabalho, mais predominam as estratégias de saber. Existe, portanto, uma tensão inerente ao ato
sobrevivência. Avanço a hipótese de que são es- de ensino/aprendizagem. Quando o aluno não con-
sas estratégias de sobrevivência, e não uma miste- segue aprender, sempre chega um momento em
riosa “resistência à mudança”, que freiam as que é difícil não levantar a questão de saber de
tentativas de reforma ou inovação pedagógica. quem é a culpa. Do aluno, que é burro, ou da pro-
Quem propõe uma mudança significativa desesta- fessora, que não sabe ensinar? Não é apenas um
biliza as estratégias de sobrevivência do professor problema pedagógico; é o valor pessoal e a digni-
e este não recusa a mudança, mas a reinterpreta dade de cada um que está em jogo.
na lógica de suas estratégias de sobrevivência – o Trata-se de uma tensão, e não de uma contra-
que, muitas vezes, acaba por esvaziar o sentido da dição, mas sempre a tensão pode gerar contradi-
inovação. ção e conflito. Com efeito, em tal situação, logo a
Esse balanço do professor, entre herói e vítima, professora ultrapassa os limites da pressão peda-
é um efeito estrutural, inerente à própria situação gógica legítima e, irritada, recorre a meios que fe-
de ensino, como será explicitado na próxima seção rem o direito do aluno a ser respeitado. O aluno,
deste artigo. Entretanto, pode ser mais ou menos por sua vez, não deixa de se vingar da humilhação
amplo. Quando o professor se sente amparado pela provocada pelos xingamentos e castigos e pelo pró-
sociedade e pela Instituição escolar, trata-se ape- prio fracasso em aprender.
nas de um balanço de pouca amplitude, que se Esse deslize da tensão para o conflito é rápido
manifesta quando ocorrem dificuldades profissio- na sociedade contemporânea. Como foi mencio-
nais particulares. Mas quando a sociedade e a pró- nado, o sucesso e o fracasso escolar já não são
pria Instituição escolar abandonam o professor e somente assuntos pedagógicos, uma vez que acar-
até o criticam, como fazem hoje em dia, esse ba- retam conseqüências importantes para o futuro
lanço torna-se um marco da identidade profissio- profissional e social da criança. Logo, a relação
nal e social do professor. pedagógica torna-se mais tensa do que outrora. Pior
ainda: enquanto o sucesso escolar requer uma
mobilização intelectual do aluno, este vive a escola
2.2. “Culpa” do aluno ou “culpa” do cada vez mais na lógica da nota e da concorrência
professor? e cada vez menos na da atividade intelectual. Não
vai à escola para aprender, mas para tirar boas
Só pode aprender quem desenvolve uma ativi- notas e passar de ano, sejam quais forem os meios
dade intelectual para isso e, portanto, ninguém pode utilizados, às vezes, com o respaldo dos pais. As
aprender no lugar do outro. Às vezes, quando um minhas pesquisas sobre a relação com a escola e
aluno não entende as explicações da professora, com o saber evidenciaram uma crescente defasa-
esta gostaria de poder entrar no seu cérebro para gem entre nota esperada e mobilização intelectual
fazer o trabalho. Mas não pode: por mais seme- do aluno. Para este, quem é ativo no ato de ensino/
lhantes que sejam os seres humanos, são também aprendizagem é, antes de tudo, o professor
singulares e, logo, diferentes. Quem aprende é o (CHARLOT, 2005). Nessa lógica, cabe ao aluno
aluno. Se não quiser, recusando-se a entrar na ati- ir à escola e escutar o professor, sem bagunçar,
vidade intelectual, não aprenderá, seja qual for o brincar nem brigar. Posto isso, o que ocorrerá de-
método pedagógico da professora. Nesse caso, pende do professor: se este explicar bem, o aluno
quem será cobrado pelo fracasso? O próprio alu- aprenderá e obterá uma boa nota. Se a nota for
no, mas igualmente a professora. Em outras pala- ruim, será porque o professor não explicou bem. O
vras, o aluno depende da professora, mas, também, aluno que escutou o professor se sente injustiçado
esta depende daquele. quando tira uma nota ruim: quem deveria ter essa

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O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição

nota é o próprio professor, aquele que, para cúmu- car é, antes de tudo, obter que a Razão controle e
lo da injustiça, deu-lhe essa nota! domine as emoções e paixões. Muitas vezes, obje-
Professor é quem aceita essa dinâmica, nego- ta-se à pedagogia tradicional que ela exige das cri-
cia, gere a contradição, não desiste de ensinar e, anças comportamentos que não condizem com a
apesar de tudo, mas nem sempre, consegue for- natureza destas. Mas é precisamente porque são
mar os seus alunos. contrários à natureza que a escola os requer. A
pedagogia tradicional visa a emancipar a Razão
2.3. Tradicional ou construtivista? humana das cadeias da emoção, do corpo, da na-
tureza. “Soma sema”, diz Platão: o corpo é um tú-
As professoras brasileiras, como a maioria dos mulo e a educação é ascensão do mundo sensível
docentes, no mundo inteiro, são basicamente tradi- para o mundo inteligível das Idéias (PLATÃO,
cionais. Entretanto, essas professoras tradicionais 2002). Nos séculos XVI e XVII, considera-se que
sentem-se obrigadas a dizer que são construtivis- a natureza infantil é corrupta e que o papel da edu-
tas! Têm práticas tradicionais porque a escola é cação é livrar a criança da corrupção. Bérulle fala
organizada para tais práticas e, ainda que seja indi- “do estado da infância, estado mais vil e abjeto da
retamente, impõe-nas. Declaram-se construtivis- natureza humana, depois do da morte” e os peda-
tas para atenderem à injunção axiológica: para ser gogos de Port-Royal declaram: “O diabo ataca as
valorizado, o docente brasileiro deve dar-se por crianças e elas não o combatem” (CHARLOT,
construtivista. A contradição permanece suportá- 1979, p.117). Ainda no século XVIII, Kant escre-
vel, haja vista que, por um lado, trata-se das práti- ve: “A disciplina transforma a animalidade em hu-
cas e, por outro, de simples rótulos. No entanto, manidade (...). É assim, por exemplo, que se enviam
ela entretém certo mal-estar ou até cinismo entre logo de início as crianças à escola, não com a in-
os professores e tende a ocultar, atrás daquela opo- tenção de que lá aprendam alguma coisa, mas a
sição entre “tradicional” e “construtivista”, as ver- fim de que se habituem a permanecer tranqüila-
dadeiras dificuldades e contradições que enfrenta mente sentadas e a observar o que se lhes orde-
a professora brasileira. na” (CHARLOT, 1979, p. 73).
“Tradicional” passou a ser um insulto, evocan- Mudou por inteiro a nossa representação da cri-
do a poeira das antigas casas e as lixeiras da peda- ança, com Rousseau, com o advento da burguesia
gogia. Além do insulto, de que se trata exatamente? e, mais ainda, no século XX, com a legitimação do
Descartemos a hipótese de que esse adjetivo desejo e a valorização de tudo quanto é “natural”.
remete à transmissão de um patrimônio. Esta é uma Portanto, o discurso histórico da pedagogia tradicio-
das funções fundamentais da educação e da esco- nal é ultrapassado, claro está. Todavia, será que se
la e, nesse sentido, seja qual for o seu funciona- pode considerar resolvida a questão que ela levan-
mento e sua pedagogia, uma escola não pode deixar ta, isto é, a da estruturação do sujeito humano por
de ser tradicional. A representação do professor normas éticas e sociais? Não seria este o problema
considerado “tradicional”, ainda que permaneça um fundamental enfrentado por muitas professoras, na
tanto vaga, ajunta certo feitio e supostos métodos. sala de aula contemporânea: disciplinar e estruturar
É rotulado como tradicional o professor que crianças que vivem na cultura do prazer imediato e
confere uma grande importância à disciplina, ao já não agüentam qualquer frustração?
respeito, à polidez, o que lhe vale a fama de ser O professor é, também, rotulado como tradici-
severo. Desprezar essa postura pedagógica é um onal, quando utiliza os mesmos métodos pedagógi-
pouco paradoxal, uma vez que a sociedade con- cos dos professores das gerações anteriores. Vale
temporânea reclama da escola que já não educa refletir sobre esse argumento. Primeiro, não cor-
as crianças, não ensina a polidez aos alunos, não responde à realidade atual: nenhum professor en-
consegue conter a violência, impor a sua autorida- sina como faziam outrora. Muitos gostariam de
de etc. Mais ainda: o que é assim apontado como fazê-lo, mas isso se tornou impossível, já que tan-
atitude do professor é, na verdade, o fundamento tas coisas mudaram. Segundo, o argumento não
filosófico da pedagogia tradicional. Para esta, edu- corresponde à realidade histórica. Acredita-se que

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Bernard Charlot

é tradicional o professor que ministra aulas exposi- (VYGOTSKY, 1987). Disso, podemos deduzir que
tivas a alunos passivos. Na verdade, esse método a função do professor não é apenas acompanhar os
não é tradicional, é um desvio ocorrido no século alunos em processos construtivistas, mas também,
XX. A pedagogia tradicional solicita muito a ativi- de forma mais “tradicional”, pôr em circulação sig-
dade do aluno, que, no ensino primário, faz exercí- nificações desconhecidas pelo aluno. Segundo,
cios e, no ensino secundário, redige versões, temas, Vygotsky explica que o “saber científico”, no qual
dissertações, etc. Alain, melhor representante da ele inclui o saber escolar, difere do “saber comum”,
pedagogia tradicional no século XX, escreve, a res- ou “cotidiano”, por possuir três características: é
peito das salas de aula onde o professor sempre consciente, voluntário, sistemático. Cabe salientar
fala: “odeio essas pequenas sorbonnes” (ALAIN, que Piaget e Bachelard, por mais “construtivistas”
1969). A característica do método tradicional é que sejam, consideram também a sistematicidade
outra: o professor explica o conteúdo da aula e as como um marco da cientificidade. Ora, a questão
regras da atividade e o aluno aplica o que lhe foi da sistematização é o principal obstáculo em que
ensinado. Primeiro vêm o saber e as regras e, a esbarram os métodos de ensino construtivistas. Por
seguir, a atividade do aluno. si só, a atividade intelectual dos alunos não os leva
Desse ponto de vista, o construtivismo opera, aos saberes sistematizados e institucionalizados e
de fato, uma ruptura fundamental. Ser construti- às palavras que os acompanham. Sempre chega um
vista não significa, como se pensa muitas vezes, momento em que a professora deve substituir as
ou, melhor, como se fala sem pensar, ser moderno, palavras criadas pelos alunos por aquelas que são
dinâmico, inovador. Como se toda e qualquer ino- admitidas pela comunidade científica. E sempre che-
vação fosse boa... Ser construtivista é opor ao ga um momento em que a professora deve propor,
modelo tradicional da aula seguida por exercícios ou completar, uma síntese do que foi construído pe-
de aplicação um modelo em que a atividade vem los alunos; estes constroem paredes, não edificam
primeiro: ao tentar resolver problemas, a mente do casas, muito menos aqueles palácios e catedrais que
aluno mobiliza-se e constrói respostas, que são vias se chamam Ciências.
de acesso ao saber. Piaget, um dos pais do cons- Posto isso, faz-se claro que a questão funda-
trutivismo, mostrou que as estruturas intelectuais, mental não é saber se a professora é “tradicional”
desde as mais simples, isto é, as da percepção, até ou “construtivista”, mas como ela resolve duas ten-
as mais complexas, isto é, as do pensamento ope- sões inerentes ao ato de ensino e ao de educar.
ratório formal, são construídas e transformadas pela Ensinar é, ao mesmo tempo, mobilizar a ativida-
atividade da criança e do adolescente (PIAGET, de dos alunos para que construam saberes e trans-
1976). Bachelard, outro pai do construtivismo, evi- mitir-lhes um patrimônio de saberes sistematizados
denciou que, na história da ciência, o saber nasce legado pelas gerações anteriores de seres huma-
do questionamento e se constrói por retificações nos. Conforme os aportes de Bachelard, o mais im-
sucessivas (BACHELARD, 1996; SILVA, 2007). portante é entender que a aprendizagem nasce do
A importância desses achados, em particular na questionamento e leva a sistemas constituídos. É essa
esfera pedagógica, é grande: hoje, ninguém pode viagem intelectual que importa. Ela implica em que
negar que a atividade de quem aprende é o funda- o docente não seja apenas professor de conteúdos,
mento da aprendizagem. Entretanto, o construtivis- isto é, de respostas, mas também, e em primeiro
mo não fecha o debate sobre os métodos, ao lugar, professor de questionamento. Quanto aos alu-
contrário do que se pensa, às vezes. Deve-se, tam- nos, às vezes, andarão sozinhos, com discreto acom-
bém, levar em consideração os aportes de Vygotsky panhamento da professora e, outras vezes, cami-
– que está tanto na moda quanto o construtivismo, nharão com a professora de mãos dadas. O mais
sem que se preocupe muito com a coerência entre importante é que saibam de onde vêm, por que an-
as duas abordagens... Primeiro, Vygotsky ressalta dam e, ainda, que cheguem a algum lugar que valha
que a criança nasce num mundo onde lhe preexis- a pena ter feito a viagem.
tem significações (palavras-conceitos), que devem Essa tensão entre construir saberes e herdar
ser transmitidas à criança e apropriadas por ela um patrimônio é inerente ao ato de ensinar, mas,

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O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição

como já mencionado, a força da tensão e as for- os objetivos de espírito crítico e autonomia procla-
mas que ela toma dependem das configurações mados por ela. Numa situação dessas, os momen-
sócio-históricas. tos construtivistas constituem conquistas da
As professoras ensinam em escolas cuja for- professora, conforme a inteligência epistemológica
ma básica foi definida nos séculos XVI e XVII: e pedagógica, mas à contracorrente da ordem soci-
um espaço segmentado, um tempo fragmentado, oinstitucional da escola contemporânea.
uma avaliação que diz o valor da pessoa do aluno. Em segundo lugar, a injunção construtivista ne-
Essa forma escolar condiz com a pedagogia tradi- gligencia o fato de que a professora trabalha em
cional. É nela que a professora é convidada a ser uma instituição. Ser construtivista implica em des-
construtivista e a usar o computador e a Internet... pertar nos alunos um desejo de aprender, acompa-
Imaginemos uma professora que leve a sério a in- nhá-los numa caminhada cheia de obstáculos
junção construtivista: mobiliza os seus alunos em superados, de erros retificados, de problemas re-
pesquisas, desenvolve projetos, pratica uma avali- solvidos, de angústias, de mal-entendidos, de in-
ação formadora, diagnóstica e reguladora. E, no compreensões. Ser construtivista é trabalhar num
final do mês, do semestre ou do ano, a sua diretora mundo afetiva e intelectualmente turvo. Ora, o que
lhe pede... a nota dos alunos! Aliás, essa própria quer a instituição? Definir, delimitar, organizar, ge-
diretora sofre a pressão dos pais e da Instituição rir racionalmente, controlar. Qualquer instituição
escolar, pública ou particular, que querem notas. O carrega no seu DNA um fantasma de domínio e
que pode fazer aquela professora? Atribuir a mes- de transparência: pretende assinar os objetivos,
ma nota a todos os alunos? “Deu mole”, como diz determinar os processos, avaliar os resultados.
o professor cujo texto citei. Atribuir-lhes notas di- Decerto, as instituições da sociedade contemporâ-
ferentes? Neste caso, os alunos não estudarão mais nea, por razões que explicitamos, houveram de
para levar a cabo a pesquisa e o projeto, mas para delegar responsabilidades aos atores sociais e, as-
tirar a melhor nota possível. sim, abriram espaços de autonomia. Mas a institui-
De forma mais geral, a injunção construtivista, ção escolar da sociedade contemporânea continua,
por mais fundamentada que seja do ponto de vista mais do que nunca, a avaliar, avaliar, avaliar e a
teórico, negligencia muitos dados atinentes ao exer- pedir notas, notas, notas. Aliás, nos países onde
cício da função docente na sociedade contempo- existe o vestibular, a instituição nem precisa insis-
rânea. Destacarei aqui dois obstáculos que a tir: o professor e o próprio aluno interiorizaram a
professora há de ultrapassar se quiser ser mesmo notação como função central do ensino.
construtivista ou introduzir momentos construtivis- Em tal situação, o que pode fazer a professo-
tas na sua prática pedagógica. ra? O que ela faz: ter práticas tradicionais, que nem
Primeiro obstáculo: os próprios alunos não são precisa esconder, e, às vezes, abrir parênteses
construtivistas. A injunção construtivista supõe alu- construtivistas, que a instituição e a própria pro-
nos prestes a se investirem numa atividade intelec- fessora realçam logo que aparece um debate pe-
tual. Mas o maior problema que a professora atual dagógico. Uma estudante universitária, que
encontra é, precisamente, conseguir mobilizar os seus chamarei aqui de Maria, me contou a seguinte his-
alunos numa atividade intelectual. Como já foi men- tória. Quando cursava a licenciatura de pedago-
cionado, eles vão à escola para, antes de tudo, tirar gia, tinha uma professora doida pelo construtivismo
notas boas e passar de ano e, ademais, consideram e Maria, que já ensinava, teve de preparar e expe-
que é a professora quem é ativa no ato de ensino/ rimentar, numa sala com quarenta alunos, em um
aprendizagem. Quanto maior a pressão exercida pela bairro popular, uma aula construtivista. Colocou os
nota, mais os alunos desenvolvem estratégias de alunos em pequenos grupos, bateu fotografias e, a
sobrevivência: frear o professor, colar, decorar os seguir, voltou a sua aula normal, de tipo tradicional
conteúdos sem entendê-los etc. Isso não significa participativo. Na universidade, mostrou as fotogra-
que os alunos sejam idiotas ou não gostem de refle- fias e narrou, como se tivesse ocorrido, o que teria
tir; significa, sim, que tentam sobreviver numa es- acontecido se tivesse feito a aula construtivista ideal
cola que os coloca em situações que contradizem ansiada pela sua professora universitária. Esta ado-

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rou. Os demais estudantes que já tinham uma ex- de índio saído da tribo? E de qual cultura se trata,
periência de ensino entenderam de imediato o jeiti- da dos homens ou das mulheres? O que fazer, ain-
nho que Maria tinha utilizado e parabenizaram-na da, quando essa diferença cultural transmite for-
depois da aula: “Maria, você deveria fazer teatro”. mas de dominação? A professora do Rio Grande
Será que conseguiremos mudar as escolas brasi- do Sul deve mesmo educar jovens gaúchos “ma-
leiras com tais práticas universitárias de formação chos”? Qual é o conteúdo do imperativo “respeitar
dos professores? as diferenças culturais” e quem explica ao docen-
te o que significa exatamente?
2.4. Ser universalista ou respeitar as Na escola contemporânea, o professor deve,
diferenças? também, respeitar as diferenças dos seus alunos e
individualizar o seu ensino. Mais uma vez, a idéia é
A escola é universalista, pelo menos nas socie- simpática, mas qual é o seu significado exato? “Co-
dades democráticas, e não pode deixar de sê-lo. locar o aluno no centro”, disse o Ministério fran-
Por duas razões. cês da educação. Concordo, desde que me digam
Primeiro, porque a educabilidade de todos os o centro do quê... Se se tratar de dizer, sob outra
seres humanos é, ou deveria ser, o princípio básico forma, que a escola foi criada para que os alunos
do professor: qualquer ser humano sempre vale aprendam e não para que os docentes ensinem, o
mais do que fez e do que parece ser. conselho é pertinente. Mas não resolve o proble-
Segundo, a escola não pode deixar de ser uni- ma: o que significa “individualizar” o ensino de prin-
versalista porque a sua especificidade é a de divul- cípios e saberes universais e das normas estrutu-
gar saberes universais e sistematizados, ou seja, rando a atividade intelectual? Quem o explica à
saberes cuja verdade depende da relação entre professora? A professora que se vire...
elementos em um sistema, e não da sensibilidade Mais ainda: a escola contemporânea não deve
pessoal e da interpretação de cada um. Não signi- apenas respeitar as diferenças, ela deve, também,
fica dizer que a escola seja puro espaço da Razão fazer aparecer e registrar diferenças entre os alu-
e desconheça a sensibilidade, o corpo, a imagina- nos. Voltemos à questão da nota, central em uma
ção. Mas, até quando ela cuida destes, ela introduz instituição que deve produzir uma hierarquia esco-
regras, normas. Inventar uma história requer ima- lar prenunciando e legitimando a hierarquia social.
ginação, mas é necessário, também, escrever um Imaginemos, novamente, a situação da professora
texto e isso não se faz de qualquer jeito. Uma pin- cujos alunos obtivessem 10 a cada prova. O que
tura de criança, por mais bonita que seja, não é um vai lhe dizer a sua diretora? “Parabéns, colega, você
quadro de Picasso. A luta que o professor de Edu- é uma boa professora”? Ou: “deu mole”? No en-
cação Física ensina é diferente da briga de rua com tanto, o discurso oficial afirma que todos os alunos
socos e pontapés. devem ser bem-sucedidos e que a professora deve
Mas, na sociedade contemporânea, o profes- ensinar para todos. E o discurso pedagógico pro-
sor, trabalhador do universal e da norma, deve tam- clama que a Razão é universal e que qualquer ser
bém ensinar às crianças respeitarem as diferenças humano pode ser educado e ensinado. Mas, ape-
culturais. Essa idéia é simpática e não contradiz sar desses discursos lindos, que todos os alunos
diretamente a vocação universal da escola: todos tirem a nota 10 parece um exagero e a professora
os seres humanos participam de uma cultura, mas que ousasse fazer isso não ganharia parabéns e
sempre se trata de uma cultura particular. O pro- boa fama... De fato, existe, no imaginário da insti-
blema é outro: quais são aquelas diferenças cultu- tuição, a idéia de que, em toda turma, há alunos
rais que se deve respeitar? A cultura africana do preguiçosos, fracos, dedicados, talentosos e até,
antepassado remoto da criança preta de Salvador? quando a safra é boa, geniais e que, portanto, uma
A cultura alemã, italiana, polonesa do antepassado professora séria não pode deixar de atribuir notas
do jovem gaúcho – o qual, ademais, tem também diferenciadas. Mas a instituição segue discursan-
alguns portugueses entre os seus antepassados? do sobre a educabilidade do ser humano, a Razão
Qual diferença cultural se deve respeitar no filho universal e a escola democrática.

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O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição

2.5. Restaurar a autoridade ou amar Nos dias atuais, para muitos jovens, ela toma a for-
os alunos? ma da arbitrariedade e da violência policial. Não
se trata, evidentemente, de promover esse tipo de
Não há educação sem exigências, normas, au- autoridade, mas uma autoridade legítima. Qual pode
toridade. Educar é possibilitar que advenha um ser ser, ao ver dos jovens, o fundamento de tal autori-
humano, membro de uma sociedade e de uma cul- dade?
tura, sujeito singular e insubstituível. Queira-se ou A idade? Claro que não. A sociedade contem-
não, isso implica em uma disciplina do desejo e porânea valoriza a juventude, que os adultos pro-
numa estruturação do sujeito por normas – o prin- curam prolongar a todo custo, e não gosta dos
cípio de realidade, diria Freud; o “Nome-do-Pai”, jovens, a quem ela fecha as portas do mercado de
diria Lacan. Deste ponto de vista, o objetivo da trabalho e culpa por todos os males do mundo. Não
pedagogia tradicional permanece legítimo e válido, há pior mistura para desvalorizar os adultos e, por-
mesmo que os recursos que ela usa, isto é, o recal- tanto, a autoridade adulta, aos olhos dos jovens.
que do desejo e a imposição da norma, sejam ul- Será que o saber pode ser fundamento da auto-
trapassados, na sociedade contemporânea em ridade legítima? Se fosse o caso, os professores
particular. não teriam tantos problemas nas suas salas. Além
Não há educação sem simpatia antropológica disso, como uma sociedade que elege o dinheiro
dos adultos para com os jovens da espécie huma- como medida universal de qualquer coisa, incluí-
na, aquela simpatia espontânea que nos leva a dos o esporte e a arte, e que paga muito mal aos
amimar e afagar os “bebezinhos” e demais “fofi- seus professores pode esperar que estes restau-
nhos” que têm a sorte ou o azar de cruzarem os rem a autoridade?
nossos caminhos. Resta a cidadania, de que tanto se fala nos di-
Esse balanço entre autoridade e mimo e, de ais atuais. O problema é que, muitas vezes, con-
modo mais geral, a ambivalência é uma caracte- fundem-se cidadania e vínculo social. A noção de
rística inerente à relação dos adultos com os jo- vínculo social remete ao conjunto de relações que
vens. Na escola da sociedade contemporânea, ele estabelecemos com pessoas com quem comparti-
toma a forma da dupla injunção para resgatar a lhamos um espaço de vida: conversas, interesses
autoridade perdida e para amar os alunos. Come- comuns, ações coletivas, respeito mútuo etc. O
cemos pela questão da autoridade. conceito de cidadania diz respeito à esfera política:
A “violência escolar” é um dos maiores proble- ela exprime o fato de que os membros de uma de-
mas que os professores devem enfrentar hoje em terminada sociedade têm direitos e deveres defini-
dia. De fato, essa expressão genérica remete a dos por leis, que foram elaboradas em um processo
fenômenos bastante diferentes: agressões físicas, coletivo e valem para todos. Ensinar alunos a te-
ameaças graves, pequenas brigas, assédio, pala- cerem vínculos sociais de reciprocidade é, claro
vras racistas, indisciplina escolar, indiferença os- está, um objetivo educacional. Mas essa ambição
tentatória para com o ensino e a vida escolar oficial, esbarra na existência das desigualdades, dos fenô-
incivilidades etc. Mas não se pode negar que a menos de dominação e, no Brasil, daquele cinismo
transgressão das normas esteja acometendo a es- social escancarado cotidianamente pelas notícias
cola contemporânea, bem como a família e, de modo sobre a corrupção política. Sendo assim, o discur-
mais amplo, a sociedade. Em face desse proble- so sobre a “cidadania”, que, na verdade, trata do
ma, multiplicam-se os apelos para restaurar a au- vínculo social, tende, por bem intencionado que seja,
toridade (versão de direita) ou para educar os jovens a cumprir uma função ideológica: pobres, sejam
à cidadania (versão de esquerda). bem comportadinhos, não incomodem a classe
Os professores gostariam de restaurar a auto- média com seus comportamentos. Ao contrário, o
ridade. Mas resta saber como... conceito de cidadania tem um valor crítico, haja
No Brasil, historicamente, a autoridade foi de- vista que destaca a igualdade de direitos e deve-
finida pelas relações de força impostas pela escra- res, o interesse geral, a preeminência da lei. Mas é
vidão, o coronelismo, a ditadura populista ou militar. preciso levar a sério esse conceito quando se qui-

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ser educar os alunos à cidadania. Isto requer a aos acusados em geral são assegurados o contra-
existência de uma comunidade escolar regida pela ditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
lei e não pela vontade do mais forte e pela arbitra- ela inerentes” (artigo LV). Na escola, o aluno acu-
riedade. Ora, a escola vivenciada pelo aluno, aquela sado não tem direito ao contraditório, à ampla de-
que pretende educá-lo à cidadania, não é uma co- fesa, nem a um processo. O Direito é para adultos
munidade de cidadãos. e não para crianças? Neste caso, a cidadania tam-
Primeiro, o seu Regimento interno não é uma bém é para adultos e não para crianças.
lei, mas um diktat imposto pelos poderosos. Não Além de ser emaranhado em todas essas con-
passa de um conjunto de regras ditando deveres tradições, o professor considera que deve “amar
dos alunos e silenciando os seus direitos – salvo o os alunos”. Amar os alunos que nem fingem escu-
direito de estudar e ser educado, que, convenha- tar o professor e até, às vezes, o insultam e amea-
mos, não é muito atraente para os alunos. Uma lei çam? Amar os alunos que batem uns nos outros e
define direitos e deveres. O Regimento das esco- se injuriam com palavras racistas? Desta vez, tra-
las só lista proibições, incluídas, às vezes, as mais ta-se mesmo de heroísmo.
estranhas. Por que as escolas proíbem tatuagens, Novamente, é preciso recorrer à análise.
piercings, brincos nas orelhas dos rapazes? Sem, Já evoquei a simpatia antropológica dos adultos
por isso, deixar de falar de direito à diferença e para com os jovens da espécie humana. É claro
igualdade de gênero... O ponto não é saber se são que quem não sente essa simpatia não deve ensi-
práticas feias ou lindas, é interrogar a legitimidade nar. Se “amar os alunos” significa isso, tudo bem.
da escola em se meter em tais assuntos. Até que Mas esse “amor” é, por natureza, diferente do que
se saiba, nenhum brinco impede ao aluno escutar a sentimos por nossas próprias crianças. É o senti-
professora – que, por sinal, usa brincos. Essa não mento que une as gerações que se sucedem. Des-
é uma questão de pedagogia ou educação escolar; te ponto de vista, o uso na escola das palavras “tio”
é, sim, um “arbitrário cultural” e uma “violência e “tia”, que remetem a uma relação entre gera-
simbólica”, como diria Bourdieu; arbitrário e vio- ções, é pertinente, ainda que “professor” e “pro-
lência inscritos no Regimento da escola. fessora” sejam preferíveis, por serem mais
Segundo, uma lei vale para todos, incluídos aque- específicas.
les a quem incumbe aplicar a lei. Ora, o Regimen- Além dessa relação antropológica, quem leu
to interior da escola nada diz sobre os direitos e Freud sabe que se desenvolvem, também, relações
deveres do pessoal da escola. Não se trata de cair afetivas entre professores e alunos, inclusive rela-
na demagogia: os direitos e deveres dos professo- ções implicitamente e, na maioria das vezes, in-
res não podem ser semelhantes aos dos alunos, conscientemente, sexualizadas. Vale notar, por sinal,
uma vez que existem funções diferentes na esco- que as professoras, sustentando a idéia de que “se
la. Mas há de se definir também direitos e deveres deve amar os alunos”, silenciam essa dimensão da
dos professores, do diretor, da merendeira, do por- relação. Essas relações afetivas, porém, podem ser
teiro etc. Quando um aluno falta ou chega atrasa- positivas ou negativas. Além disso, constituem um
do, deve justificar a falta ou o atraso. E a fato, e não uma obrigação. Um professor não tem
professora? Os alunos não têm de se meter nisso? obrigação afetiva alguma para com os alunos. Deve
Neste caso, o Regimento não é uma lei e a escola respeitar a sua dignidade, deve fazer tudo o que
não é um espaço de cidadania. puder para formá-los; não é obrigado a “amá-los”.
Por fim, a escola não respeita os Direitos do Não se pode assentar a escola democrática sobre
Homem e do Cidadão, aqueles que a Carta da sentimentos. A escola democrática é aquela onde
ONU e a Constituição Federal brasileira enunci- o professor ensina e educa todos os alunos, incluí-
am. “Ninguém pode ser juiz e parte, no mesmo dos os de quem não gosta e os que não gostam
processo”: esse é um princípio básico do Direito. dele. Claro que a situação é melhor quando pro-
Na escola, o professor briga com um aluno, julga e fessor e aluno gostam um do outro, mas isto não
castiga. A Constituição brasileira de 1988 diz: “aos é obrigação nenhuma, nem fundamento da esco-
litigantes, em processo judicial ou administrativo, e la. A escola não é lugar de sentimento, mas lugar

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O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição

de direitos e deveres. Essa escola é que pode en- particular na sua relação com o dinheiro. Por cau-
sinar a cidadania. Se uma professora, além de ter sa da sua atividade profissional, tendem a colocar
de gerir e superar todas as tensões e contradi- o saber no topo da escala de valores e o dinheiro
ções que mencionei, tiver, ainda, de lidar com as no mais baixo escalão. Ainda hoje, os professores
ambivalências do sentimento, tornar-se-á, sim, he- de Filosofia, funcionários assalariados, criticam os
roína ou vítima. Sofistas, que vendiam o seu saber, e identificam-
se com Sócrates que, por mais genial que fosse, só
2.6. A escola vinculada à comunidade podia espalhar de graça as suas idéias porque, oci-
ou a escola lugar específico? oso, vivia às custas de sua mulher. Entretanto, na
sociedade contemporânea, o dinheiro mede o va-
A escola é um lugar específico, como já co- lor de tudo e os professores, considerando que o
mecei a explicar quando falei de universalismo salário deve corresponder ao nível de estudo, jul-
versus respeito às diferenças. A escola é um lu- gam que deveriam ser muito mais pagos do que
gar que requer uma forma de distanciamento para são. Fazem greve. Greve dos trabalhadores do
com a experiência cotidiana. O que, nesta, é situ- espírito e dos educadores da juventude? Fica mal...
ação vivenciada e contextualizada, objeto do meio Portanto, quando os professores fazem greve, não
ambiente, torna-se, na escola, objeto de pensa- é apenas para ganhar mais dinheiro, como é o caso
mento, de discurso, de texto. Ademais, a escola quando se trata de outros trabalhadores; é, expli-
fala aos alunos de objetos que não se encontram cam os professores, para poderem estudar, com-
no mundo cotidiano deles e, às vezes, em nenhum prar livros e, afinal de contas, proporcionar aos
mundo sensível e leva-os para universos que ape- alunos uma melhor formação.
nas existem no pensamento e na linguagem. Sen- Lugar específico, a escola não ensina o que se
do assim, a escola é fundamentalmente um espaço pode aprender na família e na comunidade, não
de palavras que possibilitam a objetivação do ensina do mesmo modo que a família e a comuni-
mundo e o distanciamento para com ele e que dade. Se o fizesse, não serviria para nada. Entre-
abrem janelas para outros espaços e tempos, para tanto, a escola deve ser “vinculada à comunidade”.
o imaginário e o ideal. Além disso, a escola é um Para um francês, essa injunção (mais uma...) soa
lugar onde a própria linguagem vira objeto de lin- estranha. Com efeito, na história da França, a “co-
guagem, de segundo nível: na escola, fala-se so- munidade” foi lugar de influência dos nobres e dos
bre a fala. padres e, hoje em dia, ela é percebida como espa-
Essa especificidade estende-se aos compor- ço de propaganda do fundamentalismo islâmico.
tamentos e às relações. Não se pode comportar- Na cultura francesa, “comunidade” opõe-se a “Re-
se na escola como se faz fora dela; é um mundo pública” e a escola comunitária é a negação da
diferente. Em particular, os conflitos, que não po- escola republicana. Mas a história do Brasil é ou-
dem deixar de surgir na escola, como nos demais tra e, portanto, outros também são o sentido e o
lugares, já que ela é lugar de vida e encontro en- valor da palavra “comunidade”. No Brasil, a co-
tre seres humanos, devem ser geridos pela pala- munidade foi, historicamente, lugar de resistência
vra, em determinados limites, e não pela pancada à colonização (os índios), à estrutura escravista (os
e pelo insulto. quilombos), às várias formas de dominação, explo-
Essa especificidade diz respeito, também, ao ração e desvalorização e espaço de auto-organi-
professor e à professora. Aos olhos dos alunos, zação dos migrantes. A comunidade é lugar de
ainda nos dias atuais, é um pouco esquisito encon- resistência, de memória, de dignidade. Sendo as-
trar a sua professora no supermercado, sem se- sim, é socialmente legítimo preconizar o vínculo
quer falar daquela que dança ou namora. Tudo o entre a escola e a comunidade. Vinculada à comu-
que evoca o corpo do professor e, mais ainda, da nidade, a escola é “nossa” escola e não “a escola
professora, segue sendo objeto de mal-estar, brin- deles”, dos dominantes.
cadeira ou desejo. Os próprios professores interio- Essa ligação é legítima, também, do ponto de
rizam essa especificidade da figura docente, em vista pedagógico. Com efeito, por importante que

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Bernard Charlot

seja a especificidade da escola, qual seria o seu professora compartilha o espaço de vida dos seus
valor se o que se aprende na escola fizesse sentido alunos, em especial o dos seus alunos pobres, aque-
apenas dentro da escola? Conhecer novos mun- les que encontram mais dificuldades na escola. A
dos, ter acesso a formas ideais, objetivar o mundo conciliação é difícil, ainda, porque se espera cada
e distanciar-se da experiência cotidiana, perceber- vez menos da professora que ela leve os alunos ao
se a si mesmo como ser de Razão e de Imagina- encontro do universal e que ela lhes proporcione
ção, tudo isso só vale quando diz algo, indiretamente, as chaves de compreensão da sua vida, e cada vez
a respeito da minha vida, do meu mundo, da minha mais que ela possibilite aos nossos filhos serem
experiência, de quem eu sou e posso vir a ser. O aprovados no vestibular.
universalismo e a especificidade da escola são le- Herói, o professor brasileiro? Vítima? A meu
gítimos à medida que contribuem para esclarecer ver, na sociedade contemporânea, ele é, antes de
o mundo particular da criança singular e ampliá-lo. tudo, um trabalhador da contradição. Como o poli-
Legítimos, o universalismo da escola e a defe- cial, o médico, a assistente social e alguns outros
sa da sua especificidade. Legítimo, também, o pro- trabalhadores, ele consta daqueles cuja função é
jeto de vincular a escola à comunidade que a rodeia. manter um mínimo de coerência, por mais tensa
Ademais, é possível a conciliação entre as duas que seja, em uma sociedade rasgada por múltiplas
ambições. Mas não é nada fácil, sobretudo na so- contradições. São trabalhadores cujo profissiona-
ciedade contemporânea. Porque, em um país ur- lismo inclui uma postura ética. E, se possível for, o
banizado como é o Brasil, cada vez menos a senso de humor.

REFERENCIAS

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Recebido em 25.05.08
Aprovado em 25.05.08

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