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O desespero incessante da vida

sem Deus
Por Wagner Kaba

uitos ateus se comprazem em afirmar que os crentes são pessoas iludidas pela
idéia da existência de Deus. Muitos discordarão desta alegação, inclusive o autor
deste artigo. Mas este texto não tem como foco analisar a suposta ilusão
daqueles que crêem e sim, analisar uma ilusão freqüente compartilhada por
muitos daqueles que não crêem: a idéia de que Deus é irrelevante para a
questão do sentido da vida. Será que se pode declarar a morte de Deus e,
mesmo assim, alegremente afirmar que a vida possui sentido?

Os cientistas afirmam que o universo está fadado a morrer. Como ele está em expansão
desde o Big Bang, tudo que nele existe está se tornando cada vez mais distante. Com o passar do
tempo, as estrelas perderão seu calor e irão morrer. Deste modo, o universo se tornará cada vez
mais frio, e sua energia irá se esgotar. O espaço ficará repleto de cadáveres estelares que serão
tragados por buracos negros. E até mesmo os buracos negros serão consumidos e irão se evaporar.
Assim, todas as coisas estão condenadas a desaparecer sob os escombros de um mundo
agonizante. Tudo o que foi construído pelo homem desaparecerá sem deixar nenhum vestígio. Não
haverá nenhum ser vivo para contar alguma história e nenhum outro para ouvi-la. “Tudo aquilo que já
formou você, as montanhas, as estrelas e tudo o mais será uma coisa só: um mar escuro de energia.
Um mar cada vez mais frio, inerte. Sem nada nem ninguém para acender a luz.” [1]

Neste cenário, faz alguma diferença fundamental o fato de o universo algum dia ter existido?
Quer o universo tenha surgido ou não, no final das contas o resultado é o mesmo: um vazio negro,
frio e inerte. Assim, como tudo acaba em nada, não faz diferença nenhuma se algo existiu ou não.
Portanto, o universo não tem um sentido fundamenta [2].

Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao ser humano. Se Deus não existe, o homem está
condenado a desaparecer como se nunca houvesse existido. Deste modo, no final das contas, não
fará diferença nenhuma o fato de algum homem ter surgido sobre a face da terra. A humanidade,
portanto, não tem mais importância do que um enxame de mosquitos ou uma vara de porcos, pois
seu fim é o mesmo. O mesmo processo cósmico cego e mecânico que a vomitou no início um dia
acabará por engoli-la [3]. No final, todos os esforços humanos terão sido em vão. A contribuição dos
cientistas para o avanço da ciência, os esforços dos pacifistas para promover a paz, as pesquisas
médicas para descobrir a cura de doenças, o trabalho dos humanitaristas para erradicar a pobreza –
no final, tudo o que custou tanto para ser conquistado, muitas vezes à custa de inúmeras vidas,
desaparecerá como se nenhum esforço houvesse sido realizado. Desta forma, tudo acaba em nada
e, portanto, o homem é nada.

O filósofo William Lane Craig apresenta o quadro em que estamos inseridos:

Se cada pessoa deixa de existir quando morre, que sentido fundamental pode ser dado à sua
vida? Realmente faz diferença se ela existiu? Pode ser dito que sua vida foi importante porque
influenciou outros ou afetou o curso da história. Mas isso mostra apenas um significado
relativo da sua vida, não um sentido fundamental. Sua vida pode ter importância relativa a
certos acontecimentos, mas qual é o sentido fundamental desses acontecimentos? Se todos os
acontecimentos não têm sentido, então que sentido fundamental pode haver em influenciá-
los? No final das contas, não faz diferença.” [4]
Mesmo assim, muitos ateus insistem em dizer que a vida possui propósito. “A vida não vem
com um manual de instruções indicando seu sentido”, dizem eles. “Somos nós que o criamos. E é
isto o que faz a vida tão maravilhosa. Podemos escolher o que queremos, que sentido e que rumo
queremos dar a ela.”

Inventar um sentido para a vida pode até ajudar uma pessoa a se sentir bem. Mas esta
invenção não passa de um auto-engano para ajudar a suportar a dura realidade da existência, visto
que a vida continua sem sentido em termos objetivos do mesmo jeito.

Se Deus não existe, o que é o homem? Ele é apenas um subproduto acidental da natureza
que evoluiu recentemente em um ponto de poeira infinitesimal perdido em algum lugar de um
universo hostil e sem sentido e que está condenado a perecer individualmente e coletivamente em
um espaço relativamente curto de tempo[5]. Nesta ordem de idéias, homem é mero produto do acaso
e não há propósito nenhum em sua existência. E nenhuma tentativa de se inventar um sentido para a
existência poderá mudar estes fatos. Portanto, inventar um sentido para sua vida não passa de um
exercício de auto-engano.

Além de tudo, o universo não adquire sentido apenas porque alguém lhe atribui algum.
Suponha que duas pessoas dêem sentidos diferentes ao universo. Quem tem razão? A resposta, é
claro, nenhuma das duas. O mundo sem Deus permanece sem sentido em termos objetivos, não
importa o que as pessoas pensem. Assim, atribuir um sentido ao universo não passa de um exercício
de auto-engano [6].

Mas por que esta discussão sobre o sentido da vida é tão importante? A resposta é que, para
ser feliz, o homem necessita de um sentido para sua existência. Por quê? Porque o homem se
alimenta de auto-estima. Uma auto-estima baixa pode levar facilmente à depressão e ao suicídio. E
dificilmente alguém pode manter elevada sua auto-estima se descobrir que sua vida não tem nenhum
propósito.

Assim sendo, se Deus não existe, a vida não tem sentido. E se a vida não tem sentido, o homem que
possui consciência desta verdade terá uma séria dificuldade para ser feliz. Portanto, a existência de
um Deus amoroso é uma peça importante para a construção da felicidade.

A única solução que um ateu pode oferecer diante do absurdo da vida sem Deus é enfrentar este
absurdo e procurar viver com coragem. O filósofo ateu Bertrand Russell, por exemplo, sugeriu que
devemos construir nossas vidas “sob o firme fundamento do desespero incessante”:

Que o homem é o produto de causas que não possuíam conhecimento do fim que estavam
alcançando; que sua origem, seu crescimento, suas esperanças e crenças, seus amores e
temores, não passam do resultado de colisões acidentais de átomos; que nenhum fogo,
nenhum heroísmo e nenhuma intensidade de pensamentos e emoções podem preservar uma
vida além do túmulo; que todo labor de todas as eras, todas as devoções, toda inspiração,
todo brilhantismo do gênio humano estão fadados à destruição na grande morte do sistema
solar e que todo o templo das conquistas humanas deve ser inevitavelmente soterrado
debaixo dos escombros de um universo em ruínas – todas estas coisas, se não estão além das
controvérsias, são quase tão certas que nenhuma filosofia que as rejeite pode ter esperanças
de se sustentar. Somente sobre a base destas verdades, somente sobre o firme fundamento do
desespero incessante, pode-se construir seguramente, de agora em diante, a habitação da
alma.” [7]
Na hipótese de que o ateísmo seja verdadeiro, estamos diante deste quadro terrível sobre a
condição humana. Mas se o Cristianismo é verdadeiro, então existe um poder de amor por trás do
universo. Um poder pessoal de amor tão grande que todos os homens e mulheres, velhos e crianças
são especiais para ele. Ele ama tanto o ser humano que há um significado em cada vida. Ele
realmente sabe sobre a queda de todos os pardais e, até mesmo, os cabelos de cada pessoa estão
contados.

Por derradeiro, este texto não realizou nenhum esforço para demonstrar a existência de um
Criador Divino. Também não houve nenhuma tentativa para se refutar a idéia de que a crença no
sobrenatural é uma ilusão. Para se atingir estes objetivos seria necessário um espaço muito maior.
Por isso, o propósito deste artigo foi simplesmente o de enunciar as alternativas de forma clara. Se
Deus não existe, a vida é um absurdo e o homem deve construir sua existência sobre o “firme
fundamento do desespero incessante”, conforme palavras do filósofo ateu Bertrand Russell. Se o
Deus cristão existe, todas as pessoas são especiais para ele e possuem valor e significado.

É possível demonstrar racionalmente que o cristianismo é uma cosmovisão mais plausível do


que o ateísmo[8]. No entanto, mesmo que as evidências para o ateísmo e para o cristianismo fossem
equivalentes, uma pessoa racional deveria escolher o último. Todo ser humano deve buscar a
verdade e evitar o erro. Mas, se as evidências que suportam as duas cosmovisões são ambíguas,
não parece sensato preferir o desespero e a ausência de sentido do que uma vida com propósitos.

NOTAS

[1] NOGUEIRA, Salvador. Para onde vamos? Disponível em


http://super.abril.com.br/revista/246/materia_revista_261312.shtml?pagina=1
[2] CRAIG, William Lane. A veracidade da fé cristã: uma apologética contemporânea. Tradução Hans
Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2004. P. 59.
[3] Ibidem, p. 59.
[4] Ibidem, p. 58.
[5] Idem, A imprescindibilidade de bases meta-éticas teológicas para a moralidade. Disponível em
http://www.apologia.com.br/?p=9
[6] Idem, op. cit., p. 64,65.
[7] RUSSELL, Bertrand. A free man´s worship. Disponível AQUI
[8] A pessoa que desejar analisar as evidências em favor da verdade do Cristianismo pode estudar os
seguintes livros: CRAIG, William Lane. A veracidade da fé cristã: uma apologética contemporânea. São
Paulo: Vida Nova, 2004; GEISLER, Norman; TUREK, Frank. Não tenho fé suficiente para ser ateu. São
Paulo: Editora Vida, 2006; STROBEL, Lee. Em defesa de Cristo. São Paulo: Editora Vida, 2001; Idem,
Em defesa da fé. São Paulo: Editora Vida, 2002. Pode-se estudar também os artigos disponíveis no blog
Apologia http://www.apologia.com.br

Santo Hilário de Poitiers


(c. 316-367)

«Sobre a Santíssima Trindade»


A un i ão e n t r e o Pa i e o F i l h o

«Eu e o Pai somos um só»1.


omo os hereges não podem negar estas palavras, ditas de modo tão absoluto, as
corrompem e as falseiam no sentido de sua impiedade, para torná-las condenáveis.
Tentam limitá-las a uma simples unanimidade, como se no Pai e no Filho a unidade fosse
só de vontade e não de natureza, isto é, como se fossem eles uma só coisa, não pelo que
são, mas pelo que querem.

A tal interpretação adaptam, a seu modo, aquele passo dos Atos dos Apóstolos onde se diz:
"a multidão dos crentes era um só coração e uma só alma" 2. Almas e corações em número plural
podem se unificar pela convergência das vontades a um único objeto. Servem-se também os hereges
do que está escrito aos coríntios: "quem planta e quem rega são um só" 3. Nesses dois haveria
unidade moral, porquanto não difere o ministério instituído para a salvação.

Abusam também daquilo que disse o Senhor, quando rogou ao Pai a salvação das nações
que creriam em si: "Não só por estes rogo, mas também pelos que hão de crer em mim mediante a
sua palavra, a fim de que todos sejam um, assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti; que eles
também sejam um em nós" 4. Ora, como os homens não podem dissolver-se em Deus, nem misturar-
se num conglomerado indistinto, sua unidade lhes virá só de uma vontade unânime. Quando os
homens fazem o que é do agrado de Deus - argumentam - a harmonia dos espíritos os associa.
Logo, concluem, não é a natureza, mas a vontade que os unifica.

Ignora a sabedoria quem a Deus ignora. E como a sabedoria é o Cristo, está fora da
sabedoria quem ignora o Cristo ou só o conhece através dessa gente que prefere ver no Senhor de
majestade, no Rei dos séculos e Deus unigênito, uma simples criatura, em vez do verdadeiro Filho. E
se se obstinam são ainda mais estultos na defesa de sua mentira. Deixando de lado por ora a
questão da unidade do Pai e do Filho, podemos perfeitamente refutá-las com as mesmas armas que
empregam.

De fato, quando se diz que a alma e o coração dos fiéis eram um, pergunto se isso não
acontecia pela fé comum. Sim, pela fé é que o coração e a alma dos fiéis eram uma só coisa.
Interrogo agora se essa fé é uma ou múltipla. Uma só, certamente, como aliás já o Apóstolo no-la
assegura, pregando ser uma a fé, um o Senhor, um o batismo, uma a esperança e um só Deus. Ora,
se pela fé, isto é, pela natureza de uma só fé, todos eram um, como não aceitarás física a unidade
dos que são um pela natureza da única fé?

Todos, na verdade, tinham renascido para a inocência, a imortalidade, o conhecimento de


Deus, a fé e a esperança. E se essas coisas não podem divergir entre si, pois também a esperança é
uma só, e Deus é único, único é o Senhor, e único o banho regenerador, quem poderia dizer que elas
são unificadas mais pelo acordo de vontade que por própria natureza? E que, igualmente, só pela
vontade são unificados os que renasceram para aqueles bens? Se, porém, foram, antes,
regenerados para a natureza de uma mesma vida e eternidade, (pelo que seu coração e sua alma se
faziam um só), não podemos aqui falar de mera unidade moral: muitos são um só na regeneração da
mesma natureza.

Não estamos falando de nós mesmos, nem arranjamos algumas citações falsificadas,
corrompendo o sentido das palavras para iludir os nossos ouvintes. Mantendo a forma da sã doutrina,
só acolhemos e prezamos o que é genuíno. O Apóstolo, em verdade, ensina, ao escrever aos
gálatas, que a unidade dos fiéis lhes vem da natureza dos sacramentos: "todos os que fostes
batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo; não há mais nem gentio nem grego, servo nem livre,
homem nem mulher: todos sois um só em Cristo Jesus" 5. Se, pois, tantos são um só, apesar da
grande diversidade de nações, condições e sexo, quem poderá supor que isso lhes vem do mero
consenso moral? Não será, antes, da unidade do sacramento, um só batismo, onde todos se
revestiram do único Cristo?

Que vem aqui fazer a mera concórdia das vontades, quando eles são um só, precisamente
porque se revestiram do Cristo único, mediante a realidade do batismo único?

Quando diz a Escritura serem um só o que planta e o que rega, não é também porque,
renascidos eles mesmos de um só batismo, constituem, por sua vez, um ministério único na
administração do banho regenerador? Não fazem, porventura, a mesma coisa? Não são um só, em
um só? Ora, os que são um só pela mesma coisa, são assim por natureza, não apenas por vontade.
Tornaram-se um, e são, ao mesmo tempo, ministros da mesma coisa e do mesmo poder.

Sirvo-me sempre das alegações opostas pelos tolos, para demonstrar sua tolice. E claro:
sendo a verdade firme e imutável, tudo o que uma inteligência perversa e insensata arranja para
contradizê-la, vindo em sentido oposto, há de aparecer forçosamente falso e estulto.

Procurando enganar-nos os heréticos arianos com o texto que diz: "eu e o Pai somos uma só
", aduziram também outra palavra do Senhor, para levar a que se pensasse (em vez da unidade de
natureza e da não diversa divindade) numa simples união de mútuo amor e concórdia de vontades. E
este o texto: "para que todos sejam um só; assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que eles
também sejam um em nós". Exclui-se, evidentemente, das promessas evangélicas quem se exclui da
fé das mesmas. O crime da inteligência ímpia faz perder a esperança, que é simples. Ora, não ter o
conhecimento daquilo que constitui o objeto da fé, merece não castigo, mas prêmio, pois o maior
estipêndio da fé é esperarmos o que não conhecemos. A última loucura da impiedade é, ou não crer
nas coisas que conhece, ou corromper o conhecimento do que deve crer.

Mas ainda que a impiedade mude o sentido daquelas palavras, nem por isso perdem o
verdadeiro significado. O Senhor roga ao Pai para que os que crerem nele sejam um só e, como ele
mesmo está no Pai e o Pai nele, também sejam neles um só. Por que vens agora introduzir a simples
concórdia, a unidade de alma e coração, fundada exclusivamente na harmonia das vontades? Seria
assim, com plena propriedade da expressão, se o Senhor, ao dirigir-se ao Pai, tivesse usado termos
como estes: Pai, assim como nós queremos uma só coisa, também eles queiram uma coisa, e
sejamos todos um só pela concórdia das vontades...

Terá acaso a própria Palavra ignorado a significação das palavras? Não saberá a Verdade
dizer coisas verdadeiras? Falou com astúcia a Sabedoria? Aquele que é a Força terá sido incapaz de
dizer o que queria? Ora, ele falou, enunciando os puros e verdadeiros mistérios da fé evangélica.
Nem se limitou a falar para só mostrar, mas ensinou à nossa fé nestas palavras: "que todos sejam
um só; assim como tu, Pai, és um em mim e eu em ti, que eles também sejam um em nós". O pedido
do Cristo é, primeiro, "para que todos sejam um só"; em seguida, mostra o modelo da unidade a
seguir, nestas palavras: "assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que eles sejam também um em
nós". Como o Pai está no Filho e o Filho no Pai, assim todos sejam um no Pai e no Filho, segundo o
modelo e a forma da sua unidade!

Mas porque só ao Pai e ao Filho compete a unidade por natureza (pois Deus não pode ser de
Deus, nem o Unigênito provir do Pai eterno, senão na sua original natureza), assim também, para
que se ressalve ao Filho a sua essência de origem e se reconheça à sua divindade a mesma verdade
da Fonte de onde ela procede, eis que o Senhor, solícito em dissipar toda dúvida à nossa fé, se
apressa a ensinar-nos nas citadas palavras a natureza dessa absoluta unidade. Segue-se, pois: "a
fim de que o mundo creia que tu me enviaste". O mundo vai crer na missão do Filho, se todos os que
crerem nele forem um no Pai e no Filho.
E como serão, logo acrescenta: "e eu lhes darei a glória que tu me deste". Pergunto então se
glória é o mesmo que "vontade". Vontade é inclinação da mente, glória é reflexo ou dignidade da
natureza. Logo, o que o Filho deu aos seus fiéis não é vontade, mas glória, aquela que ele recebeu
do Pai. Se, com efeito, tivesse dado não glória, mas vontade, já nossa fé não teria prêmio, pois
estaria obrigada por uma vontade prefixada e não livre 6. A doação da glória constitui o bem indicado
nas palavras que se seguem: "para que sejam um como nós o somos". É para que sejam todos um,
que a glória por ele recebida do Pai é dada aos crentes. São todos um só na glória concedida, pois
não é outra a que ele dá senão a que ele recebe, nem para outro fim é dada senão para que todos
sejam um. E, como pela glória dada pelo Filho aos fiéis, todos são um, pergunto como há de ter o
Filho uma glória menor do que a do Pai, se aos próprios crentes a glória do Filho eleva à unidade da
glória do Pai. Sem o aspecto da esperança humana, a palavra do Senhor será talvez insólita, mas
seguramente não é infiel. Pois, embora fosse temerário esperar isso, seria irreligioso deixar de crer
no autor tanto da fé quanto da esperança ali contida.

Bem, trataremos melhor deste assunto a seu tempo. Por ora, baste-nos ver que nossa
esperança não é vã ou temerária. Concluindo: todos são um pela glória que o Filho recebe do Pai e
confere aos fiéis. Afirmo a fé e ao mesmo tempo fico sabendo a causa da unidade. Só falta
compreender melhor a razão por que essa glória dada ao cristão é capaz de fundar tal unidade.

Não querendo o Senhor deixar algo incerto, referiu-se a um efeito da sua ação física, quando
exclamou: "para que todos sejam um, como nós somos um só. Eu neles e tu em mim para que sejam
perfeitos na unidade"7.

Tenho vontade de perguntar agora aos que pretendem existir entre Pai e Filho unidade
puramente moral, se hoje o Cristo está em nós na verdade da natureza, ou numa simples concórdia
de vontades.

Se, com efeito, o Verbo se fez carne e, se na Ceia do Senhor nós tomamos verdadeiramente
esse Verbo-carne, como não há de permanecer ele em nós fisicamente? 8 Nascido homem, não
assumiu, de modo inseparável, a natureza mesma de nossa carne? E no mistério do seu corpo, dado
a nós em comunhão, não o juntou à natureza de sua carne sua divindade eterna? Logo, todos são
um só, porque no Cristo está o Pai e em nós o Cristo.

Quem nega que o Pai esteja fisicamente em Cristo, deve primeiro negar que ele mesmo
esteja fisicamente em Cristo e o Cristo em si. É porque em Cristo está o Pai, e em nós o Cristo, que
nós somos também feitos uma só coisa.

Se é verdade que Cristo assumiu a carne de nosso corpo, e que o homem nascido de Maria é
Cristo; se é verdade que nós recebemos em mistério a carne de seu corpo (e por isso mesmo
seremos um, pois o Pai está nele e ele em nós), como ousam asseverar uma unidade puramente
moral, quando pelo sacramento a propriedade natural (da Carne assumida por Cristo e por nós
comida) é mistério da perfeita unidade?

Não se deve falar das coisas de Deus segundo o espírito do homem e do século. Nem numa
pregação violenta e imprudente. Da pureza das palavras divinas devemos excluir a perversidade de
um entendimento ímpio e estranho. Leiamos simplesmente o que está escrito e entendamos o que
lermos: é o modo de exercitar a perfeita fé. Tudo que dissermos da realidade física de Cristo em nós,
ou foi dele mesmo que aprendemos, ou então é ímpio e estulto o que afirmamos. Mas ele mesmo diz:
"Minha carne é verdadeiramente comida e meu sangue verdadeiramente bebida. Quem come a
minha carne e bebe o meu sangue, fica em mim e eu nele"9. Quanto à verdade da carne e do
sangue, não há lugar para dúvida: é verdadeiramente carne e verdadeiramente sangue, como vemos
pela própria declaração do Senhor e por nossa fé em suas palavras. Esta carne, uma vez comida, e
este sangue, bebido, fazem que sejamos também nós um em Cristo, e o Cristo em nós. Não é isto
verdade? Não o será para os que negam ser Jesus Cristo verdadeiro Deus! Ele está, pois, em nós
por sua carne e nós nele, e ao mesmo tempo o que nós somos está com ele em Deus.

Jesus mesmo atesta quão realmente estejamos nele pelo mistério da comunhão de sua carne
e sangue, dizendo: "o mundo já não me vê; vós, porém, me vereis, pois, eu vivo e vós vivereis; pois
eu estou no Pai e vós em mim, e eu em vós" 10. Se tencionou referir-se apenas a uma unidade de
vontade, por que estabeleceu esta graduação e ordem na consumação da unidade? Não foi senão
para que se cresse que ele está em nós pelo mistério dos sacramentos, como está no Pai pela
natureza da sua divindade, e nós nele, por sua natureza corporal. Ensina-se, portanto, que pelo
nosso Mediador se consuma a unidade perfeita, pois enquanto nós permanecemos nele, ele
permanece no Pai, e, sem deixar de permanecer no Pai, permanece também em nós, e assim nós
subimos até à unidade do Pai! Ele está no Pai fisicamente, segundo a origem de sua eterna
natividade, e nós estamos nele fisicamente, enquanto também está em nós fisicamente.

Quão real seja esta unidade em nós, atesta-o, dizendo: "Quem come a minha carne e bebe o
meu sangue permanece em mim e eu nele"11. Só aquele no qual o Senhor estiver poderá estar nele.
Ele somente assume a carne daquele que o receber.

Já tinha o Senhor ensinado antes o mistério desta perfeita unidade, ao dizer: "Assim como me
enviou o Pai, que vive, e eu vivo pelo Pai, o que comer a minha carne também viverá por mim"12.

Ele vive, pois, pelo Pai e do mesmo modo como vive pelo Pai nós vivemos por sua carne.

Toda comparação, realmente, se emprega para determinar a forma que se quer dar a
entender. Seu fim é fazer-nos atingir uma realidade segundo o modelo proposto.

Esta é, pois, a causa de nossa vida: que, por sua carne, tenhamos o Cristo em nós. Nós
somos corporais, mas destinados a viver por ele segundo a mesma condição em que ele vive pelo
Pai. Se, portanto, vivemos por ele, fisicamente, segundo a carne, isto é, alcançando a natureza de
sua carne mesma, como é que ele não tem fisicamente o Pai, segundo o espírito, se é pelo Pai que
ele vive? Vive realmente pelo Pai; sua origem por geração não lhe confere uma natureza diversa, e é
pelo Pai que é o que é, nunca se separando por qualquer dessemelhança sobrevinda. Por sua
geração tem em si o Pai na força da mesma natureza.

Se quisemos recordar tudo isto foi porque os hereges, afirmando falsamente uma simples
unidade moral entre o Pai e o Filho usavam o exemplo de nossa própria unidade com Deus. Para
eles, era como se, unidos ao Filho e ao Pai por mero vínculo de obséquio e vontade religiosa,
estivéssemos excluídos de qualquer comunhão física pelo sacramento da carne e do sangue. Ora, a
verdade é que, pela comunicação da própria honra do Filho e pela existência do próprio Filho em nós
por sua carne, e de nós nele, de modo corporal e inseparável, se tem de professar o mistério de uma
unidade real e verdadeira.

NOTAS:
1 Jo 10,30
2 At 4,32
3 lCor 3,8
4 Jo 17,20
5 Gl 3,27
6 Sto. Hilário não quer negar que a fé seja um dom de Deus, o que, aliás, expressamente afirma em
outros lugares deste mesmo tratado (como, por ex., 1. VIII, n. 30). Aqui só afirma, sem entrar em maiores
distinções, que a fé supõe vontade livre.
7 Jo 17,22
8 "Fisicamente", isto é, não apenas afetivamente
9 Jo 6,56
10 Jo 14,19
11 .To 6,56
12 Jo 6,57.

São Gregório Nazianzeno

«Poema sobre a Natureza Humana»


 

 
ntem, abatido pela tristeza, sozinho e longe de todos, sentei-me à sombra de um bosque, meditando em meu coração. Gosto desse
remédio nos sofrimentos, o de me entreter silenciosamente comigo mesmo. O murmúrio da brisa, junto ao chilrear dos pássaros e
ao sussurro das ramagens, trazia prazer ao coração aflito. As cigarras, no alto das árvores, cantando sonoramente ao sol,
acrescentavam um ruído que acabava de encher o bosque. Perto ainda, um córrego de água pura vinha banhar-me os pés e
deslizava da mata como orvalho refrescante. Eu, porém, absorvido na dor, não cuidava de nada disso, pois o espírito em tais
condições se recusa a qualquer prazer. Interiormente agitado, entregava-me a uma luta onde eram minhas palavras que se
debatiam. Quem fui? Quem sou? Quem serei? Não sei responder claramente, como não o sabem tampouco os mais sábios que
eu. Envolto por uma nuvem, ando errante sem nada possuir, mesmo em sonhos, de tudo aquilo que desejo. Sim, somos peregrinos
na terra e sobre todos nós se erguem a nuvem azul da carne. Mais sábio do que eu é quem melhor sabe expulsar a mentira loquaz
de seu coração.

Eu sou. Explique-se-me o que é isso. Uma parte de mim já se foi, sou outro neste instante, e outro serei ainda se continuo a existir.
Nada é estável. Assemelho-me ao curso de um rio turbulento que sempre avança sem nada ter fixo. Dir-me-ás o que sou em tudo
isso? Ensina-me ao menos o que sou para ti. Permaneço aqui um momento, mas cuida que eu não fuja de ti... Não atravessarás de
novo o rio do mesmo modo como o atravessaste, não reverás o mortal que já viste uma vez.

Existi inicialmente na carne de meu pai, depois minha mãe me acolheu e provenho de ambos. Fui em seguida uma carne
confusa, massa informe, antes que homem, sem palavras nem espírito, tendo na mãe meu túmulo.. Sim, nós estamos
duas vezes no túmulo, pois nossa vida também se termina na corrupção. Esta vida que percorro, vejo que se despende
anos que me trazem o funesto envelhecimento. E se, partindo da terra, sou acolhido numa vida sem fim, como se diz, vê
se a vida não contém a morte, e se a morte não é para ti a vida, contrariamente ao que pensas.

Nada tenho sido. Por que sou sem cessar avassalado pelos males, como se não mudasse jamais? Pois só os males, entre os
mortais, são imutáveis, inatos, inseparáveis e não envelhecem. Apenas saído do seio de minha mãe, verti a primeira lágrima; e
haveria de encontrar tantas e tão grandes calamidades! Derramava lágrimas antes de tocar a vida! Ouvimos falar de uma região,
como outrora Creta, onde não havia animais ferozes, e de outra isenta da neve. Mas nunca se ouviu de um mortal que deixasse
esta vida sem que tristes penas o atingissem. A doença, a pobreza, o parto, a morte, o ódio, os maus, as feras do mar e da terra,
as dores: eis a vida! Conheci muitos males sem alegria, mas não conheci jamais a alegria completamente isenta de sofrimento,
desde o fatídico fruto que degustei e o inimigo invejoso que me marcou com o signo da amargura.

Carne, eis o que devo dizer-te, a ti, tão difícil de se curar, inimiga suave, a quem a luta jamais abate, fera atroz que cruelmente
acaricias, fogo que refresca - ó coisa espantosa! Mais espantoso porém seria se acabasses por te tornares minha amiga!

E tu, ó minha alma, ouvirás por tua vez a linguagem que te convém. Quem és? donde vens? qual o teu ser? quem te estabeleceu
como sustentáculo de um morto? Quem te ligou aos tristes grilhões da vida, sempre inclinada para as coisas da terra? Como foste
misturada ao grosseiro, tu que és sopro? à carne, tu que és espírito? Ao pesado, tu que és leve? São qualidades que se opõem
mutuamente e se combatem... Se vieste à vida, engendrada ao mesmo tempo que a carne, quanto então essa união tem sido
perniciosa para mim! Sou imagem de Deus e me tornei filho da torpeza. Temo que o desejo tenha sido a causa do nascer de algo
tão digno de honra. Um ser fugidio me gerou e sofreu a corrupção. Eis-me, então, homem, mas cessarei de sê-lo e me tornarei
cinzas: são estas minhas últimas esperanças?

Ao contrário, se és celeste, quem és tu e donde vens? Aspiro sabê-lo, instruí-me! Se tens o sopro de Deus por origem e Deus
mesmo por destino - como julgas - rejeita o vício e acreditarei em ti! Porque não convém que o puro seja maculado, mesmo
levemente; as trevas não pertencem ao sol, o filho da luz não vem do espírito mau. Como és atormentada a tal ponto por Belial, tu
que intimamente estás unida ao Espírito divino? Se com tal ajuda ainda te inclinas para a terra, então é grande a violência de tua
maldade!

E se não vens de Deus, qual a tua natureza? Ah! temo ser presa de vão orgulho: Deus me plasmou, depois houve o Paraíso, o
Éden, a glória, a esperança, o preceito, o dilúvio destruidor do mundo, a chuva de fogo, e a seguir a Lei, esse remédio escrito, e
finalmente o Cristo, que uniu sua natureza à nossa para trazer socorro a meus sofrimentos através de seus divinos sofrimentos,
para divinizar-me, graças a sua condição humana; e apesar de tudo isso mantenho um espírito indômito, sou como o javali furioso
que se mata precipitando-se sobre o ferro!

Que bem se acha na vida? A luz de Deus? Mas as trevas invejosas e odiosas dela me afastam! Não me beneficio dela. Os maus
não me dominam sob todos os aspectos? Por que, apesar de todos os meus sofrimentos, não lhes sou ao menos igual? Estou
abatido até a terra, até ao cabo de minhas forças; o temor divino me fez vergar; dia e noite me abatem preocupações; o orgulho
derrubou-me ao seduzir-me traiçoeiramente, calcou-me aos pés. Cita-me tudo o que há de terrível: o negro Tártaro, o Flégeton 2, os
tormentos, os demônios que são os carrascos de nossa alma. Tudo isso os maus têm como fábulas, só considerando o que está
diante de si e é bom. O temor do castigo não corrige sua maldade. Mas preferiria ver os maus não punidos, mesmo no futuro, antes
que me afligir agora por castigos devidos à sua maldade! 3

Mas, por que então cantar assim as dores dos homens? A dor se estende sobre toda a nossa estirpe... Aliás, nem a terra é sem
abalos, os ventos agitam o mar, as horas se sucedem em delírio, a noite põe fim ao dia, a tempestade obscurece o ar, o sol tira a
beleza às estrelas, as nuvens tiram-nas ao sol, a lua se renova, o próprio céu não é senão parcialmente brilhante por seus astros.
E tu, Lúcifer, tu estavas outrora entre os coros angélicos e, agora, invejoso, tombaste vergonhosamente dos céus!

Mas, ó Trindade, reino venerável, sê-me propícia! Nem vós escapastes à língua dos efêmeros insensatos! O Pai, primeiro, depois o
Filho em sua majestade, e enfim o Espírito do grande Deus foram objetos de injúrias.

Aonde, porém, infeliz aflição, tu me arrastas? Cala-te! Acaso, tudo não é pequeno em relação a Deus? Cala-te diante do Verbo!

Não, não foi em vão que Deus me criou! (Eis que estou indo contra o que eu mesmo cantei: são as fraquezas de nosso espírito).
Agora és trevas, um dia serás razão e compreenderás tudo, seja vendo a Deus, seja devorando-te pelo fogo.

Quando meu espírito me fez ouvir estes cantos, minha dor serenou E assim tarde deixei o bosque sombrio e voltei à vida, ora
alegrando-me com um pensamento, ora consumindo o coração no sofrimento, o espírito sempre em luta!

NOTAS:
1 Apresentamos em prosa a tradução desta famosa peça, redigida originalmente cm verso. a. P. GALLAY, o.c. Lycn, 1941.
2. Plageton : Rio do inferno, na literatura antiga
3. Outra interpretação: Meus sofrimentos são tais que, para me libertar deles, aceitaria ver impunidos os maus.

FONTE:
GOMES, C. Folch; Antologia dos Santos Padres. Ed. Paulinas, II edição revista, SP, 1985, pp. 248-250.

     

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