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CAPITULO V

SOBRE O SONO E A MORTE

Para a mãe é natural considerar seu filho recém-nascido co­


mo um prolongamento narcísico dela mesma e ter com ele uma
relação fusional. Isso lhe permite interpretar, à sua maneira, os
estados de sofrimento de seu filho e, portanto, decidir o que ele
sente ou do que necessita. Da mesma maneira, as mães tentam
intuitivamente proteger seus bebês do impacto de fatores ambien­
tais excessivamente penosos. Mas há mães (como a Senhora A.
e a Senhora R, de quem acabamos de falar) que, por razões in­
conscientes, continuam a vivenciar seus filhos como parte delas·
mesmas muito além da infância. Quando existe pouco "espaço"
psíquico potencial entre mãe e filho (como pode ser o caso se a
mãe sente a necessidade angustiada de controlar os pensamen­
tos, as emoções e as fantasias de sua prole), a criança a quem li
falta esse espaço vital ao longo de toda sua infância pode ter uma
certa dificuldade para organizar sua própria realidade psíquica,
para se proteger das situações que a ameaçam, para se aliviar nos
momentos de dor psíquica, em suma, para realizar sozinha as fun­
ções maternantes.
É freqüente essas falhas na comunicação entre o bebê e a
mãe se manifestarem nos primeiros meses de vida. O lactente in­
variavelmente exprime os conflitos psíquicos de modo psicosso­
mático, sendo que os sinais mais primitivos são alterações nas

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funções fisiológicas fundamentais, como a respiração, a diges­
tão, a evacuação e o sono. Os problemas psicossomáticos do be­
bê podem afetar esta ou aquela função vital; vou limitar-me aqui,
poré.·", a considerar os distúrbios do sono na criança pequena.
HH TEA TROS DO CORPO SOBRE O SONO E A MORTE 89

Diversos fatores pesaram para esta escolha: a insônia infantil é As pesquisas de Freud sobre a psicologia dos sonhos levaram­
um fenômeno comum; o ciclo sono-vigília é um indicador sutil no postular que, quando adormecemos, uma parte da libido
das primeiras fases do desenvolvimento do ego. Podemos des­ recusa-se a regredir até esse estado desprovido de sonhos que é
cobrir o protótipo mais antigo da atividade psíquica na capaci­ o narcisismo primário. Esta parte põe em movimento o proces­
dade que a criança tem de adormecer e permanecer adormecida. so alucinatório que constitui a própria essência do sonho. SegUndO~
Finalmente, esta capacidade proporciona uma ilustração escla­ a teoria freudiana, sua função é cuidar das necessidades frustra­
recedora do funcionamento psíquico na criança pequena e é con­ das ou dos desejos excitantes ou assustadores que, de outra for­
~. siderada, pelos pesquisadores no assunto, como modelo de toda ma, perturbariam aquele que dorme. A partir do fato de que exis- l

',. a patologia psicossomática do início da infância (Fain, Kreisler, tem desde o nascimento condições neurobiológicas que regem a
SSoulé, 1974). atividade alucinatória (e mesmo antes do nascimento já é possí­
A insônia infantil, quando grave o suficiente para compro­ vel descobrir ciclos REM no feto), podemos presumir que a in­
meter o prognóstico vital, manifesta-se habitualmente nas pri­ sônia infantil grave é sinal de que o bebê não é capaz de efetuar
meiras semanas de vida, e os bebês em questão não dormem mais a retirada do mundo libidinal e narcísico, ato para o qual está ~
do que três ou quatro horas em cada ciclo de vinte e quatro ho­ biologicamente programado. Se o pediatra afasta problemas or- ~
ras. Muitas dessas criancinhas apresentam também descargas mo­ gânicos e condições ambientais perturbadoras, é muito provável
toras de tipo autodestrutivo, durante as quais se ferem fisicamente. que estejamos diante de um caso patológico de relação mãe-bebê.
A capacidade de dormir, assim como a de sonhar, não pode ser Nesse contexto, poderíamos perguntar-nos por que deter­
remetida a um nível de funcionamento puramente neurobiológi­ minadas criancinhas parecem incapazes de internalizar o papel
da mãe enquanto guardiã do sono. Ao contrário, esses bebês agi­
coo Embora durante as primeiras semanas de vida o sono e o des­
tados buscam sem descanso no mundo exterior a fonte da satis­
pertar estejam intimamente ligados a necessidades biológicas (isto
fação libidinal e narcísica que deveria prevalecer em seu mundo
é, a fome desperta o bebê e a satisfação desta necessidade o im­
psíquico interior. A energia psíquica expressa na atividade libi­
pele ao sono), o ato de adormecer - e, em particular, o de per­
dinal e na atividade de busca do objeto tem um efeito desorgani­
manecer adormecido - deve estar libidinalmente investido se o zador tanto no nível psicológico quanto no somático do desen­
bebê estiver destinado a alcançar não somente a saúde física, mas volvimento com conseqüências potencialmente mortais. O ciclo
também a saúde mental. O adormecer e o próprio sono devem de choramingar incessante, de agitação, de bater com a cabeça,
ser vivenciados como atividades que trazem ao bebê um senti­ só se quebra quando a mãe torna a pegar o bebê no colo para
mento interior de bem-estar. Se, ao contrário, o bebê vivencia embalá-lo. As pesquisas de Fain, Kreisler e Soulé mostram-nos
o fato de adormecer num estado de abandono angustiado, os dis­ que essas mães manifestam duas maneiras distintas de relacionar·
túrbios do sono constituem um risco potencial. se com seus bebês: por um lado, vemos mães que parecem inves­
Fain (1971, 1974) descreve dois esquemas de sono infantil.
No primeiro, a criança experimenta um sentimento de satisfa­
tir seu bebê de um interesse narcísico transbordante, o que leva
a uma superestimulação constante; por outro lado, vemos ou­
t
ção e de fusão com a mãe e é por isso mesmo levado a um estado tras que exprimem um interesse visivelmente insuficiente por seu
libidinal de paz interior que, de acordo com Freud, podemos cha­ bebê, o que provoca nele enorme frustração. Em determinado
mar de narcisismo primário. O segundo modelo de sono é prece­ número de mães, consideradas dentre as pessoas estudadas, era
dido de um episódio de frustração, de sofrimento e de tensão do­ possível observar um tipo de vaivém entre essas duas posições,
lorosa durante o qual o bebê adormece como em estado de esgo­ o que mergulhava o bebê em estado de confusão evidente.
tamento. O segundo tipo é apenas um sono puramente fisiológi· A partir das pesquisas efetuadas sobre os distúrbios do so­
CO, enquanto o primeiro é profundamente impregnado de ele­ no di), início da infância, poderíamos concluir que é a qualidade
l\Ientos Iibidinais e narcísicos. do ir~vestimento narcísico da mãe que determina a qualidade do
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sono de seu bebê. Quando a internalização do universo quase Entrevistas preliminares


fusional mãe-bebê desmorona, as necessidades fisiológicas do bebê
deixam de ter condições de estarem ligadas libidinalmente no plano Sophie, psiquiatra de vinte e seis anos, ocupa um cargo im­
interno e, como conseqüência, não funcionam normalmente. portante para sua idade. Apresenta-me um pedido de ajuda ur­
( Em resumo, o bebê que só consegue dormir quando é em­ gente por motivo de depressão e de alcoolismo cada vez mais gra­
/ balado pela mãe não foi capaz de construir uma imagem interna ve. Seus problemas com o álcool remontam ao início da adoles­
~ de mãe que lhe permitiria normalmente conciliar p sono após a cência: roubava uísque na casa de seus pais e, com muito pra­
mamada. Essa construção exige que a própria mãe tenha um mun­ zer, bebia um pouco toda vez que se sentia tensa e inquieta.
do interno que lhe permita não somente fundir-se de maneira nar­ Dedica·se aos doentes de quem cuida no ambiente hospitalar, mas
císica com seu bebê durante o período do aleitamento, mas tam­ teme que sua tensão e sua compulsão a beber terminem por afe­
bém que deseje que o bebê a dispense durante certo número de tar a qualidade de seu trabalho. Já teve dois graves acidentes de
horas; isso implica uma mãe qlle atribua importância a outros automóvel quando dirigia em estado de embriaguez.
1 aspectos de sua vida adulta - sua vida sexual, seus interesses
profissionais e domésticos, assim como sua vida social. Se o be­
Tenta também encontrar razões para seus fracassos nas re­
lações amorosas. Exclusivamente homossexual, não tem qualquer
bê estiver destinado a tornar-se simplesmente o objeto das grati­ desejo de tornar-se heterossexual, mas sonha com poder cons­
ficações libidinais e narcísicas da mãe, haverá não somente um truir uma relação mais estável com uma amante. Acha que faz
grave risco de distúrbios desde o início da vida, como também "exigências excessivas" para tomar o tempo de suas amantes,
podemos prever um desmoronamento num estádio ulterior do que está sempre querendo "criá-las de novo" ou "reparar tudo
amadurecimento dos fenômenos transicionais descritos por Win­ o que lhes faltou na infância", mas também, às vezes, "tenta I
nicott. Ist'ti l'QUua vez, predisporá o futuro adulto potencial humilhá-las" por razões que não compreende. Quanto ~~o \
à_~riação daquilo que chamei de obietos transicionais patológi­ sexual de suas relações, afirma que somente O prazer d.ado à par­
cos ou "objetos transitórios" (McDougall, 1982a). Estes podem ceira tem importância; ela própria não suporta qualquer tipo de
assumir a forma de substâncias ou ~relacionamentosdos Quais cirlCiã. A presença de uma amante à noite tem grande impor­
I ~l~_a~peii<:leráde maneira adicta ou d~portarnentossexuais tância; urna' vez que não conse ue dormir se e 'v r sozinha.
adictivos. Os modelos adictivos destinam-se a reduzir o sofrimento -.--~Iiso Tevou-nos a a ar de sua insônia. Lembrava-se de que
mental e os conflitos psíquicos e, nessa medida, são necessários durante toda a vida tivera dificuldades para adormecer e, uma
para representar o papel da mãe da infância do indivíduo. As vez adormecida, ocorria-lhe freqüentemente acordar com senti­
adicções são também tentativas mágicas de preencher o vazio do mentos de terror, porém sem ter nenhuma lembrança de seus so­
mundo interior, onde falta uma representação internalizada de nhos. Seus pais muitas vezes evocavam suas insônias de quando
uma instância maternal reconfortante, e para restaurar, ainda ela era bebê. "Segundo minha mãe, era-lhe impossível me lar­
que fugazmente, o ideal diádico primitivo onde cessa qualquer gar, me colocar no berço, Imediatamente eu me punha a berrar.
excitação afetiva. Uma economia psíquica adictiva está algumas Ela diz que eu praticamente não dormia, a não ser quando ela
l.. vezes aliada à distinção psicossomática, na medida em que as duas me embalava." Seus pais guardavam a impressão de que duran­
1] tendências têm origens similares. O relato que se segue, fragmento te os seis meses que se seguiram ao seu nascimento, eles pratica­
de análise de uma paciente cujos sintomas incluíam insônia per­ mente não dormiram: Sophíe urrava, cravava as unhas em si mes­
sistente (desde o início da infância), além de crises de eczema e ma ou se balançava em seu berço. Após esse período, a insônia
alcoolismo incipiente desde a adolescência, poderia servir para diminiu de intensidade. Sophie passou a dormir mais' normalmen­
I ilustrar algumas das conseqüências, a longo prazo, dessa falta,
desde bem cedo, de internalização da instância maternal tran­
te.iembora seu sono continuasse muito leve. Sofria também de
a:Jma infantil e de algumas alergias alimentares, mas esses pro­
qüilizadora. blemas desapareceram por volta dos dez anos. Essas reminiscên­
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cias levaram Sophie a falar de seus pais. Ela é filha única de um últimos dez anos vinha sofrendo de eczema, mas que achava que
pai italiano oriundo da classe operária e de uma mãe francesa isso não era algo que merecesse destaque. A primeira crise so­
de um meio burguês. Ambos tinham tido uma educação católica breveio após sua primeira relação sexual com uma mulher. O fato
rígida. Seu pai em particular era muito severo com relação a tu­ de ela falar nisso com tanta reticência impediu-me de explorar
do o que dizia respeito à sexualidade (fiquei sabendo mais tarde mais esses dados, embora eu deva admitir que desejava saber mais,
que ele ficava muito orgulhoso de contar como tinha repreendi­ pois eu tinha tido uma outra paciente, também homossexual, que I
do em público sua irmã de dezessete anos porque ela estava de tivera sua primeira crise de eczema após uma aventura amorosa.
mão dada com um rapaz). "Compreendi muito cedo que, para ~ Isso me levara a formular diversas hipóteses que descrevi em ou­
o meu pai, todas as mulheres representavam o mal." Ao longo $ tra obra (McDougall, 1982a. capítulo I).
dos anos, seu pai estabelecera um empreendimento muito lucra­ A partir dessas entrevistas preliminares, concluí que os pais
tivo. "Ele é generoso. Está sempre me oferecendo dinheiro, mas de Sophie sofriam ambos de um considerável desespero interior
tenho a impressão de que tenta comprar a minha afeição" ... "Dá e de angústia neurótica e que sua mãe provavelmente lutava contra
muito pouca atenção à minha mãe, como se ela estivesse sob mi­ angústias psicóticas. ligadas às funções corporais, que projetava
nha responsabilidade. Quando viajava, costumava dizer-me: 'To-, em sua filha. Tivessem fundamento ou não essas hipóteses, era
me conta da sua mãe. Agora você ~Qmem da famílm:." "Aca­ assim que Sophie vivenciava as imagens internas de seus pais.
bei por me encher da maneira como ela exigia a minha presença Em conseqüência, apesar da irritação que eles lhe despertavam
o tempo todo e me queixei ao meu pai. No fim, ele me deu di­ por sua intrusão incessante em sua vida e por todas as suas exi­
nheiro para comprar o apartamento onde moro - mas ainda vou gências, ela passava grande parte de sua vida a "repará-los" à
pagar tudo a ele!" sua maneira. Não somente era uma dedicada clínica geral para
A mãe de Sophie não perdia uma só oportunidade de dizer eles e para outros membros da família, mas ainda, por vias in­
que a família de seu pai era bem inferior à dela. Seu pai e sua conscientes, conforme vim a saber mais tarde, sua escolha pro­
mãe faziam constantemente observações depreciativas sobre as fissional e sua preferência sexual eram também uma resposta àqui­
relações sexuais e sobre o amor, assim como acerca do destino lo que acreditava que os pais esperavam dela.
das mulheres. "Pareciam querer que eu levasse uma vida na qual Sua inteligência e seu profundo desespero fizeram-me aceitá­
não houvesse lugar para o sexo. Quando decidi dizer-lhes que la para uma análise, embora eu estivesse bastante pessimista quan­
era homossexual, meu pai expressou seu desprezo, mas minha to aos eventuais resultados terapêuticos em função de seus ter­
mãe recebeu a notícia com calma." rores, que me pareciam muito arcaicos, porém mascarados por
Sophie descreveu sua mãe como uma mulher que se preocu­ sua sintomatologia manifesta.
pava excessivamente com a maneira como sua filha se alimenta­ A análise começou alguns meses depois, à razão de quatro
va, se lavava e se vestia. Ao longo de toda sua infância e de sua' sessões por semana e durou seis anos. Ao final do primeiro ano,
adolescência fizeram-lhe várias lavagens estomacais e tomou to-S Sophie sentiu-se à vontade para falar de sua primeira crise de
dos os tipos de remédios por razões obscuras. Sua mãe sempre 1 eczema. Tinha tido sua primeira experiência sexual durante a ado­
falava da dificuldade de educar as crianças. Antes do nascimen- ' lescência, com' uma professora de sua escola, uma mulher a quem
to de Sophie, sua mãe tivera gêmeos natimortos. "Após meu nas­ admirava muito. No dia seguinte, percebeu que sua mão direita
cimento ela jurou que não ia ter mais nenhum filho" (parece que, e seu braço estavam cobertos de uma erupção maciça, vermelha
em seguida, Sophie se convenceu de que tinha nascido com um e que ardia. Dias depois, o clínico geral diagnosticou um ecze­
sexo que não era o seu e, além disso, mantinha uma fantasia de ma. Por diversas vezes em seguida apareceram erupções na mão
que devia ser igual a dois meninos). dire\f'd, mas ela nunca conseguiu associá-las a qualquer experiência
No final de nossa segunda entrevista, quando perguntei a
precisa, como quando da primeira crise. É claro que Sophie in­
Sophie se tinha algo mais a me dizer, ela me informou que nos
terpretou essa erupção como punição somática pelo pecado se­
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SOBRE O SONO E A MORTE 95

xual. Sem dúvida, a interpretação era plausível, mas à medida que ela me amava, e, ao mesmo tempo, estrangulava a minha
que a análise progrediu não somente descobrimos que, quando vida, dilacerando-me com suas próprias mãos."
o eczema de Sophie era particularmente grave, o acesso coinci­ O amor-ódio de Sophie por sua mãe resumia-se nas seguin­
tes recordações: exigia atenção constante, mas ao mesmo tempo
dia com a execução de algum desejo incestuoso proibido (suas
temia-a como um enfeitiçamento mortal. Lentamente tomou cons­
amantes representando o papel da mãe tão desejada da infância ciência de que, em sua relação com suas amantes, ela se identifi­
que a segurava ternamente no colo), mas percebemos também cava numa certa medida com sua mãe. As mãos amorosas não
que essas crises sobrevinham em relação com aquilo que até en­ desejavam somente acariciar e possuir, mas também estrangular
tão tinha sido uma raiva insuspeitada e uma cólera destruidora e dilacerar.
contra suas amantes. Por trás dessas manifestações pontuais, che­ Podemos supor que, mesmo que tais sentimentos não pos­
l gamos a discernir que Sophie buscava em suas parceiras a ima­ sam explicar de forma adequada o eczema de Sophie, nem cons­
p gem idealizada de sua mãe, quando o ódio contra sua mãe, igual­ tituir um sintoma histérico, o fato de que o eczema atingia ape­
mente forte, tinha sido afastado e abatido pela recusa. nas suas mãos faz, entretanto, evocar um simbolismo de tipo pré­
Nos momentos em que Sophie sentia que eu não conseguia genital primitivo. Talvez devêssemos mais uma vez pensar numa
proporcionar-lhe paz interior e a segurança de poder ter o direi­ forma arcaica de histeria na qual os vínculos verbais e o esque­
to legítimo de viver e amar, do qual necessitava desesperadamente, ma corporal consolidado representam apenas um papel secun­
sua cólera se concentrava na relação analítica. Essas manifesta­ dário. Será que Sophie estaria livre desse sintoma se tivesse po­
ções transferenciais levaram-nos a rastrear sua origem até as re· dido realizar suas fantasias de agressão e de violência? Falando
cordações distorcidas da relação de Sophie com sua mãe. Tendo de seus afetos, ela fazia movimentos como se arranhasse suas pró­
sempre mantido uma imagem muito idealizada de uma mãe to­ prias mãos e exprimia sentimentos de abandono e desolação quan­
talmente devotada, acrescentou a esta uma segunda representa· do evocava incidentes ocorridos em suas relações com suas aman­
ção baseada em sua convicção de que sua mãe desejava exercer tes. Perguntei-me então se estaria revivendo em seu corpo os sen­
"controle físico e mental absoluto" sobre ela. Um dia, quando timentos da criancinha aflita que, conforme lhe haviam dito, sei
evocava o intenso interesse pelo estudo de línguas estrangeiras, } arranhava em seu berço na busca desesperada da mãe ausente,
disse: "Minha mãe só se interessa pelas línguas mortas... Acho grito mudo para pedir colo nos únicos braços que tinham o po­
que era a língua que reservava para mim... Seu desejo não era der de lhe proporcionar o sono. Tenham fundamento ou não es­
de que eu tomasse o meu lugar entre os vivos, mas de qu~ eu vi­ sas hipóteses, seu eczema lentamente se dissipou à medida que
vesse em sua cabeça, morta." a dimensão subjacente de cólera e terror ligados à relação com
Por volta dessa época, Sophie relatou-me um acontecimen­ sua mãe foi podendo ser verbalizada e não reapareceu ao longo
to importante de seu passado relativo à sua insónia e à sua ne­ de seus últimos anos de análise.
cessidade de ter uma parceira, uma mulher, junto dela para con­ Da mesma forma, o alcoolismo de Sophie representava o
seguir adormecer. "Eu tinha nove anos quando meus pais me papel de uma tentativa de escapar aos estados afetivos insupor­
autorizaram a ter um quarto só para mim. Ficava bem em frente táveis de cólera e de abandono que ela não conseguia conter nem
ao quarto deles, e minha mãe não me permitia fechar a porta. elaborar. Suportava com dificuldade a dor mental causada por
Fixou um espelho à porta de seu quarto e, como esta também sentimentos negativos intensos e, durante os primeiros três anos
era mantida aberta, ela podia me vigiar o tempo todo, para ver de nosso trabalho conjunto, recorria constantemente ao álcool
o que eu estava fazendo ou se estava dormindo. Durante anos para reduzir tensões desse tipo. Recusou-se a seguir o conselho
da minha adolescência, ela exerceu esse controle pelo espelho sobre dç,iseus amigos no sentido de procurar a Associação dos Alcoó·
mim. Após minha primeira experiência homossexual, toda noite látras Anónimos, argumentando que estava decidida a descobrir I
eu batia a minha porta quando ia me deitar." E concluiu: "Sei através da investigação psicanalítica, as razões de sua fraailida·
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de. Pouco a pouco alcançamos esse objetivo, o que fez com que paz de colocá-lo em prática. Pedi-lhe que viesse falar comigo,
beber deixasse de representar para ela uma ameaça de suicídio. mas ela respondeu que não deixaria que eu lhe "inspirasse espe­
Devo observar que, ao longo desses três anos, por maior que fosse rança mais uma vez". Dois meses depois, suicidou-se. A nOtíciat
o seu sofrimento e o grau de sua tensão interna ou seu estado de sua morte causou-me uma tristeza imensa e fui invadida por
de saúde, Sophie nunca abandonou os seus doentes e constante­ um doloroso sentimento de fracasso. Em minha tentativa de cui- .
mente subordinava suas necessidades às deles. Embora sua de­ dar de minha própria dor e de avançar um pouco mais na com­
dicação fosse uma ajuda inestimável em sua atividade profissio­ preensão de minha paciente, comecei a redigir meus pensamen­
nal, era tão absorvente que ela negligenciava a criança aflita em tos e a partilhá-los com colegas por ocasião de um congresso de
seu mundo interior; como esta criança abandonada por ela apre­ psiquiatria (McDougall, 1985).
sentava tantas necessidades, esse desequilíbrio constituia uma es­ Fiquei sabendo que, antes de executar sua decisão desespe­
pécie de hemorragia narcísica. rada, Sophie deixara uma carta para seus pais (como um dia ela
Através de um trabalho analítico árduo sobre seus sentimen­ tinha me dado a entender que faria), na qual lhes assegurava sua
tos viol~ntamente ambivalentes a propósito de suas parceiras se­ dedicação, porém explicava que não podia viver sem Béatrice.
xuais, Sophie afinal foi capaz de criar uma relação amorosa es­ Um dos colegas de Sophie contou-me que seus pais recusaram­
tável com uma mulher um pouco mais nova do que ela, Béatri­ se a acreditar que a perda da amante fosse a causa determinante
ce, que parecia necessitar da força de Sophie, de seus conselhos do suicídio de sua filha. Com toda a probabilidade, eram inca­
e de seus cuidados. Apesar disso, ela própria se sentia superde-r pazes de compreender que Béatrice fora investida como SUbSti-,
pendente em relação à sua amante e sofria de crises de angústia I tuto materno vital e que sua partida deixara Sophie tão vazia e
dificilmente controláveis e de insônia tenaz toda vez que Béatri- \ perdida como estivera em sua infância, quando se agitava e ur­
ce era obrigada a ausentar-se em virtude de seu trabalho. Sua ( rava em seu berço sem conseguir conciliar o sono. Como pode­
carência desesperada era evidente, e Sophie informou-me de sua riam compreender que Sophie, desprovida ao mesmo tempo de
decisão de suicidar-se caso essa carência se tornasse intensa de­ uma mãe interna e de uma mãe externa para reconfortá-la, só
mais. Possuia uma caixinha cheia de comprimidos que deveriam desejava a morte?
permitir-lhe executar seu projeto. Pedi-lhe que me confiasse es­ Como quisessem contatar pessoas que tinham tido impor­
ses comprimidos. Ela pareceu muito comovida com meu pedi­ tância para Sophie, seus pais enviaram a cópia de uma fotogra­
do, mas recusou. fia de sua filha para anunciar seu luto. Eu também recebi uma.
Chegou um momento em que uma infidelidade por parte de Eles haviam escolhido uma fotografia algo trágica, mas que mos­
Béatrice levou-a a maquinar planos precisos para matar sua aman­ trava bem a expressão de gravidade e de intensidade de Sophie.
te e até para comprar o revólver com o qual executaria seu pla­ Entretanto, para minha máxima consternação, percebi que, no
no. Foi um período tenso para Sophie e para mim. Eu tratava local onde se esperava que constassem a data do nascimento e
seu projeto como um delírio paranóico e, pouco a pouco, So­ a data de óbito, seus pais, talvez transtornados de sofrimento,
phie também veio a considerá-lo dessa maneira. Com isso con­ tinham inscrito datas que pareciam indicar que Sophie vivera so-~
seguiu reconquistar o amor de Béatrice e lentamente sua vida vol­ mente entre o dia de sua morte e o dia de seu enterro, isto é, cin- (
tou a se estabilizar. Em virtude de determinadas circunstâncias co dias! Pensei com tristeza que tudo acontecia como se sua fi- (
que despertaram o medo de perder seu amor, que ela considera­ lha, tão investida por ambos de modo narcisico, nunca tivesse,
va como a sua própria vida, decidiu finalmente sair de Paris com alcançado realmente uma exiBtência pessoal e distinta. Talvez fosse (
sua amante e encerrou sua análise. excessivo esperar que compreendessem que a homossexualidade
Um ano depois, recebi uma carta de Sophie informando-me era a única proteção de que Sophie dispunha contra a autodes­
de que sua amiga a tinha abandonado. Lembrou-me de seu anti­ truição. Eles a amavam e odiavam como parte deles próprios e
go projeto de homicídio, mas acrescentou que agora não era ca- não como um individuo distinto com suas próprias necessidades
I)X TEATROS DO CORPO

c seus próprios desejos. Será que, aos olhos deles, ela alcançou
a condição de independência somente no momento em que se ma­
tou - um ato que eles absolutamente não tinham planejado e
sobre o qual não exerceram controle algum?
Talvez esse:engano trágico da parte dos pais de Sophie trans­
I
mitisse algo dessas forças mortíferas insuspeitadas que podem
passar de uma geração a outra e transmitir às crianças pequenas
a convicção de que seu destino é aceitar sua inexistência coríiõ
Indivíduos separados aos olhos de seus pais. As defesas mobili­
zadas ara enfrentar essa amea a de ani uilação psí uica impe­
lem um bom número de adultos - a t r a v s o das drogas, •
do alcoolismo, do suicídio - a realizar aquilo que, em sua iDo,
fâneia, inconscientemente acreditavam que pudesse abrir para eles
a única passagem em direção à liberdad~

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