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Amar anegritude 1

'
Janaina Damace no Gomes
18 Clementina de Jesus durante peça Rosa de Ouro, Rio de Janeiro, RJ, e. 1962
A admiração e a amizade de Firmo por Cle- maioria de nós aprendeu a se ver. Clementina
mentina eram tão profundas que ela quase se gosta do que vê no espelho, muitos de nós
tornou madrinha de um de seus filhos. Odes- ainda não. Clementina amplia a percepção
tino e certo pudor não possibilitaram que isso do que é belo para além das restrições etárias
se concretizasse, mas a amizade de ambos e de cor. Urna mulher preta, sempre muito
transcende através das imagens. Firmo fo- alegre, sorridente, autoconfiante. O que ela
tografou Clementina várias vezes. Sozinha ou tem a nos dizer?
na companhia de seus amigos, corno João da A "descoberta tardia" de Clementina tem
Baiana, em casa, cozinhando para a família, urna implicação direta em sua trajetória vi-
caminhando pela cidade, embaixo de urna ár- sual: na quase totalidade de suas imagens
vore, tornando sol, preparando -se para os conhecidas, ela é retratada já idosa. Não
shows. Ela foi a sua maior musa. me lembro de ter visto imagens de Clemen-
Clementina de Jesus (1901-1987) já era co- tina jovem. Ternos imagens de 23 dos seus
nhecida no circuito musical da Zona Norte 86 anos, grande parte delas realizadas por
quando foi apresentada a Hermínio Bello de Firmo, que começou a clicá-la ainda no início
Carvalho - amigo muito próximo de Firmo - de suas apresentaçõ es.
e, pouco tempo depois, aos 64 anos, começou Em 1979, Clementina de Jesus já contava
a se apresentar artisticamente em shows na 78 anos quando foi fotografada , por Walter
Zona Sul e por todo o Brasil. Era por volta Firmo, em frente à sua penteadeira , na casa
de 1963, 1964. É por esses tempos que seus em que vivia em Lins de Vasconcelos. Com
registros visuais começam a se popularizar. efeito marmorizad o e com um grande espe-
1 Neste texto irei propor uma Clementina se tornou um fenômeno da mú- lho, vemos em cima do móvel uma garrafa de
reflexão sobre a obra de Walter sica brasileira pelo seu belo timbre de voz, álcool, algodão, papéis, perfumes, santinhos,
Firmo a partir da lógica dos uma escova para cabelos crespos, o reflexo
encontros. Primeiramente com
por sua interpretação e por nos reconectar
à cultura negra rural do vale do Paraíba. Mas, da carna por arrumar ("a bagunça que é bem
Clementina de Jesus (1979),
então com Zózimo Bulbul além da voz, Clementina foi também um fenô- do nosso jeitinho': como me disse Firmo);
(2002) e, finalmente, com meno visual. Preta de pele muito escura, alta, ao centro e em destaque, Nossa Senhora
Pixinguinha (1973). Creio que dona de urna voz grave, muito vaidosa, quase da Glória, sua santa de devoção, e à direita
esses encontros - que também sempre vestida de branco, portava em cena e dela, o reflexo de Clementina, que se olha no
se tornaram, em maior ou
fora dela figurinos que remetiam à cultura espelho e sorri. Sua penteadeira transmuta-
menor grau, amizades -
caracterizam e ilustram as e à religiosidade negra, embora fosse cató- -se em altar. Nossa Senhora é representa da
ideias de afetividade e de lica fervorosa. O lenço na cabeça era urna de
2
logo após sua assunção, já com a coroa e o
amorosidade que Firmo suas marcas. De uso muito comum entre as menino Jesus também coroado nos braços.
utiliza constantement e para mulheres negras da área rural e de regiões Ela é a rainha do céu. Seu véu azul contrasta
definir seu trabalho. Gostaria mais pobres, ele era um forte marcador de com a túnica branca, sinal da pureza e da
de agradecer a leitura e as
contribuições que Rosenilton
classe, que remetia às figuras das mammies, santidade de Maria. A genialidade de Firmo
Oliveira, Ruth-Anne Maciel, das trabalhadoras domésticas. Algumas das coloca Clementina também no altar ao lado
Raquel Menezes e Victor representaç ões icônicas da escritora Caro- direito e num plano levemente posterior ao
Epifania deram a este texto. lina de Jesus, por exemplo, mostram-n a de de Maria, e constrói um paralelo entre elas,
2 Ver SILVA, Rubens Alves da. lenço na cabeça. Mas cobrir a cabeça pode como se a imagem de Clementina derivasse
Negros católicos ou catolicismo
negro?. Belo Horizonte:
tanto remeter a urna marca de subalterni- da imagem santa, como um decalque .5 Cle-
Nandyala, 2010. No livro, o dade quanto a urna expressão emancipatória mentina toda de branco, evocando a pureza
autor defende a ideia da e de autocuidado. Clementina também fazia o de Oxalá, o criador, e com seu torso é a Rai-
existência de um catolicismo uso de torsos, que têm urna função protetiva nha na/da terra, a Rainha Quelé. Foi numa
negro em Minas Gerais, nas religiões de matriz africana: eles prote- tarde que Firmo construiu essa cena. Pediu
marcado por uma leitura
gem nosso ori, nosso ponto de contato com para que Quelé se arrumasse para a foto e
particular do catolicismo,
sobretudo através do congado
a espiritualidade e o sagrado. posasse para ele.
e de outras expressões da O sorriso feliz de Clementina ao se olhar ~ão seria a primeira vez que Firmo compa-
cultura negra. Ver também no espelho é de urna beleza atemporal, con- raria urna pessoa negra a uma imagem santifi-
o trabalho de Maria da trastante e disruptiva com o modo pelo qual a
Consolação Lucinda (Umbanda
cada. Ao rememorar a sua já célebre fotografia
e religiões de matriz africana
no vale dos Tambores. Valença,
2012) sobre a religiosidade
a~ro-católica em Valença,
Rio de Janeiro, cidade de
origem de Clementina de Jesus.
17
,j
~.
~
menta pelo qual entendemos o mundoº que v
de Pixinguinha, ele afirma que, sentado em
sua cadeira de balanço, o músico tinha "cara estruturalmente não nos garante esse direito,
pois manter a autoridade visual é fundamen - l
I
de santo': O mesmo fez anos depois ao foto-
grafar Arthur Bispo do Rosário diante de um tal para o exercício necropolftlco. Amar a ne-
agave gigante que simula os raios luminosos gritude, ou seja, reivindicar o direito a olhar
do Cristo em ascensão. Bispo acreditava ser (até) para si mesmo, é reivindicar autonomia
Cristo. Então há nessa fotografia a delicadeza "com base em um de seus primeir os princí-
do reconhecimento, o que significava multo pios: o direito à existência".7
para o artista. Em entrevi sta a Flavia Carpas, Mulher preta, Clementina, idosa, pretís-
Firmo diz que sua intenção ao fotografar Bispo sima, olhando e se orgulhando de si, é uma
era "consag rá-lo em sua altivez': 4 Em outra das construções visuais mais singelas e mais
foto, Bispo está de braços abertos, aludindo importa ntes da fotografia brasileira. Porque
à crucificação. Há uma iconografia religiosa ela exprime uma política que faz com que o
visível na obra de Firmo, talvez por isso os trabalh o de Firmo não possa ser entendido
termos mais usados por ele para falar sobre a como um discurso simples de elogio da bra-
presenç a negra em sua fotografia sejam "glo- silidade, da cultura popular, do nacional, da
rificação" ou "consagração" das pessoas ne- mestiçagem ou da assimilação. Seu trabalho
gras. Nesse sentido, o único modo aceitável nos mostra o que fizemos de nós mesmos, nas
de visualização de sua obra seria o retabular. condições mais duras e extremas de racismo
A imagem de Clementina surge de costas e de desigualdade. Mais do que uma memória
para nós, mas seu rosto está em evidência da nação, o trabalh o de Firmo faz parte de
8
no espelho, sorrind o e olhando para si. Não um "arquivo fotográfico da diáspora", que se
se trata de um olhar narcísico. Para aqueles constitu i enquan to patrimô nio da história
que não têm direito a olhar, poder "se" olhar negra global.
denota (auto)r econhe ciment o. A condiçã o O uso da cor em seu trabalho, para além
especu lar dessa imagem não é simplór ia. das questõe s formais, faz parte de seu dis-
Ela antecip a questõe s de subjetividade para curso cosmopolítico. As cores saturadas, so-
a comun idade negra que se tornara m parte bretudo o azul, funcionam como portais que
da discuss ão pública dos últimos anos. Essas revelam, ou antes propõe m que "a verdade
questõe s ecoam trabalh os como o de Frantz não é uma, a verdad e são várias", a "ver-
Fanon, ao refletir sobre como o olhar (da dade é o que está por vir" e apontam, gritam,
autorid ade/da visualidade branca) organiza reivindicam uma tridimensionalidade, uma
nosso mundo sensível. vontade de existir para além de si. "Eu estava
quase fazendo cinema : diz Firmo. "E isso nin- 3 Otto Lara Resende
Depois tivemos de enfrentar o olhar branco. guém fazia. Todo mundo chegava e fazia o que afirmava que "Clementina,
Um peso inusitado nos oprimiu. O mundo estava lá. Eu realmen te mudei a sistemática mais que devota, é santa
verdade iro invadia o nosso pedaço. No do fotojornalismo dando outro interess e fo- desse altar que é honra e
tográfico à verdade :' 9 glória de nossa nação".
mundo branco, o homem de cor encontra 4 coRPAS, Flávia (org.).
dificuldades na elaboração de seu esquema Entendendo o real como o que está por vir, Walter Firmo: um olhar
corporal. O conhecimento do corpo é uni - do mesmo modo que a verdad e, a obra de sobre Bispo do Rosário. Rio de
camente uma atividade de negação. É um Firmo pode ser inscrita em termos de con - Janeiro: Nau, 2013, p. .,s. 8~ '1
5 FANON, Frantz. Pele negra. ilrrhi0e.1
conhec imento em terceira pessoa. Em travisualidade "por definir a realidade como .l ~ O
aquilo- de-ond e-se-de ve-extr air-sen tido" e máscaras brancas. 'J'rad. :i_¾I
torno do corpo reina uma atmosfera densa Renato Silveira. Salvador:
de incertezas. 5 não como algo mimético:'º EDUFBA, 2008, PP· 104-105.
lnr1i)i1
6 Ver MITCHELL, w. seeing 9 Cos-r~
Amar a negritu de a partir de autores como Com essa dupla necessi dade de apreen - Through Race. aunbridge: li1!otllc:
do¾
Fanon, hooks e Virgínia Bicudo seria reivindi- der e contrar iar um real que existe, mas Harvard Uoiversity tla.11_~0·
car o direito a olhar (até) para si mesmo, olhar não deveria , e um que deveria existir, Press, 2012. ¼•
~'ii.o,
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7 MIRZOEFF, Nicholas. b
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de volta, contravisualizar, percebe r que a cor mas ainda está em devir, a contrav i- % ~<!
"O direito a olhar•. srv -
não é um atributo , mas o próprio enquad ra- sualida de tem criado uma varieda de Educação Temática Digital.
. out -deZ. ~ •~1
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v. 18, n. 4, camp1nas,' (elll' A~ l
2016, p. 750. Dispo~ve b~i
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view/8646472-Acesso e(ll• ~ /t~
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02.05.2022.
18
Clementina de Jesus,
Rio de Janeiro, RJ , 1979
de formatos realistas estrutu rados em lítico, é na expressividade de suas image ns
torno dessas tensões. Poderíamos ter o por intermédio da encenação, das cores, da
cuidado de Bertolt Brecht ao trabalh ar vocação retrati sta, da nomeação dos sujeitos,
com a realidade e os realismos ao pé da da temática (família importa, amigos impor -
letra aqui: ''A realidade não é somen te tam, amore s impor tam, cotidiano impor ta,
tudo o que é, mas tudo aquilo que está celebrar importa, iconicidade import a) que
se tornando. É um processo. Opera por ele mostra corno "nossa s vidas são compl e-
meio de contradições. Se não for perce- xas". Nesses retrato s, pobrez a e beleza não
bida em sua natureza contraditória, não podem ser lidos de modo romântico, mas sim
será nem mesmo percebida:•[ ... ] Essa visceral. O "realismo" de sua obra tenta dar
criação de realidade corno efeito per- sentido à irrealidade criada pela autorid ade
ceptivo sob contradição não é o mesmo da visualidade enquanto, ao mesmo tempo ,
que o realismo, corno usualmente tem propõe urna alternativa real. Não se trata de
sido definido na literatura e nas artes vi- modo algum de urna repres entaçã o simples
suais. Certamente o realismo de meados ou mimética da experiência vivida, mas de
do século x1x, geralmente definido com retrata r realidades existentes e contra pô-las
esse nome, é urna parte dele, como tam- com um realismo diferente. 12
bém o neorre alismo da cultura visual É a autorid ade da visão que cria a irrea-
italiana do pós-gu erra, mas o realismo lidade. A fotografia de Firmo, pelo contrário,
da contravisualidade não é necessaria- projeta realida des possíveis, destin os pos-
mente rnirnético.11 síveis para cada um de nós. Talvez por isso
8 CAMPT, Tina. /mage Matters. seus retrato s tenham se tornad o clássicos.
Archive, Photography, and the Clementina, Pixinguinha, Dona Ivone Lara,
African Diaspora in Europe. Essa condição possibilita entend er a cor no
Durham/Londres: Duke trabalh o de Firmo corno urna forma de en- Cartola, Candeia, Ismael Silva são, em seus
University Press, 2012, p. 69. carnar os sujeitos que estão limitados pela dizeres, "ícones do povo". A noção de ícone
9 COSTA, Rafael. "A realidade bidimensionalidade da fotografia. O verde vem do campo religioso, são imagens de ado-
pelo encanta mento". Gazeta e rosa "berrantes" dos retrato s de Cartola ração que, segundo Nicole Fleetwood em On
do Povo, caderno G, Curitiba . Racial Jeans: Blackn ess and the Public Imagi-
09 .11.2011. Disponível em:
com Nelson Cavaquinho fazem parte desse
www.gazetadopovo.com. desejo existencial. Cor em sua obra é carne. nation, "não eram apenas urna representação
br/cader no-g/a- realidad e- Percebendo a produção visual como ato po- do sagrado, mas elas mesma s um modo de
pelo- encanta mento-
adaod8lwiu66xF5k783gfivy/
Acesso em: 15.03.20 22.
10 MIRZOEF F, Nicholas. Op. cit.,
p. 750.
11 Ibidem, p. 749 .
12 Ibidem, pp. 756-757. 19
oração':• Para a autora, os ícones negros, que
3
minha postu ra nunca foi de usar o ver-
na cultu ra popular são as celebridades com bal, discu rsar em uma mesa. Trabalho
pode r de perm anên cia no circuito cultural, numa linguagem muda. A fotografia se
fazem "part e da produção e da circulação de aprop ria disso. Através dessa sutileza,
uma narra tiva racial" 14 semp re em disputa.
posso fazê-la gritar.15
Mas não é possível contr olar o modo como
noss as .imagens são vistas, porq ue elas po- Mora
ndo nos Estad os Unidos em 1967, no
dem rapid amen te cair numa inter preta ção auge
do deba te sobre direi tos civis, Firmo
colonial da negri tude, sobre tudo quan do entro
u em contato com o trabalho de fotógra-
categorizadas em term os que normalmente fos negro
s, como Gordon Parks e, em poucos
apris ionam a existência negra. anos, sua obra, junta ment e com a de Parks,
Nesse sentido, admi rar as cores de seu tra- James Van
Der Zee, Maneta Sleet, Carrie Mae
balho por si só é algo estéril. É preciso ter um Weem
s, Janu ário Garcia, Peter Magubane,
comp romi sso político com as perso nage ns Seyd
ou Ke1ta, Santu Mofokeng, Rotimi Fani-
apres entad as. Para isso, precisamos nos per- - Kayo
de, entre outros, mudo u a histó ria da
gunt ar se é possível universalizar a huma ni- fotog
rafia mundial. Porque, assim como eles,
dade a parti r das personagens negras que ele Firmo
compreende que é necessário "amar a
apres enta ou se terem os sempre que recorrer negri
tude': como propõe bell hooks no ensaio
às ideias de brasilidade, de mestiçagem, de "Ama
ndo a negritude como resistência política':
nacio nal como uma form a de licença para texto
que compõe o livro Olhares negros: raça
pode r adm irar sua obra sem ferir os brios e
representação. Nele, a autor a explora o im-
coloniais da branq uitud e.
pacto das imag ens odiosas sobre o negro na
Firm o estav a com 30 anos, e Quelé já era construção
de nossa subjetividade e afirma
recon hecid a pelo grand e público quando ele que
é imperativa uma muda nça no camp o
foi pass ar uma temp orad a em Nova York. da
produção visual que perm ita que pessoas
Cont ratad o pela revis ta Manchete, um dia negra
s acessem um repertório mais amplo de
o chefe de redaç ão o cham ou e, à guisa de repre
sentação de si. Firmo e os outros tantos
brinc adeir a, most rou-l he a carta que tinha fotóg
rafos citados são algumas das pessoas
receb ido de um jorna lista que estav a no que ajuda
m a cons truir essa muda nça, ex-
Brasi l. Nela, o tal jorna lista dizia não en- press
a, por exemplo, no olhar amor oso de
tend er como a Edito ra Bloch podia ter en- Clem
entina para si mesma.
viado como corre spon dente inter nacio nal Se numa sociedade racista, a norm a é o
um "mau profissional, analfabeto e negro". ódio e
o auto-ódio, como nos most ram ostra -
A reaçã o diant e desse episódio explícito de balho
s de bell hooks, Frantz Fanon e Virgínia
racis mo veio em form a de indignação e de Bicud
o, amar a negri tude comp reend e um
uma adesã o diret a ao slogan black is beau - percu
rso necessário de cura. Não é à toa que
tiful [pret o é lindo!J em dois níveis: em seu Firmo
define a cor em seu trabalho em termos
próp rio corpo, pela adoção do penteado afro; de
amor pelo povo e pela cultura negra, mas é
e em sua fotografia, ao cons truir ao longo neces
sário enten der que o direito a olhar não
dos últim os 50 anos um dos mais belos per- se
restringe à ideia de autorrepresentação.
curso s visuais dedic ados à população negra
Uma difer ença entre Firm o e os outro s
em todo o mund o. fotógrafos é a amplitude do que cada um fo-
tografou. Tendo acesso a todas as regiões do
Era a époc a da pílula, dos Beatles, do
país (mais negr o do mund o depo is da Ni-
Woodstock, do "negro é bonito". Deixei
géria), Firmo dialogou tanto com a cultu ra
meu cabelo crescer, e começou a parte
urba na quan to com a cultu ra rural brasi -
política do meu traba lho. Fui para as
leira, em suas mais disti ntas dime nsõe s
ruas, para as fábricas, para as festas
most rando a complexidade da composição'
profa nas e para os músicos, semp re
racial/cultural brasileira e a mulltiplicidade
dand o ênfas e para a negri tude. Mas
negra em seus mais variados contextos. Mas
13 FLEETW OOD, N1coLE,
On Racial Jeans=Blacknessand
the Public Jmagination. NeW
Brunswick: Rutgers UniversilY
Press, 2015, p. 5.
20 14 Ibidem, p. 7.
15 COSTA, Rafael. op. cit,
' . .
a sua obra pode ser lida também em termos Aparticipação de Firmo em Pequena África
transnacionais, a partir daquilo que Paul rompe com o ativismo individual que marca
Gilroy chama de cosmopolitismo negro. Não a sua trajetória. Pela primeira vez ele parti-
apenas porque ele documenta visualmente cipa de um esforço coletivo com militantes
a vida negra para além de nossas fronteiras, negros reconhecidos, como Bulbul.16 Zózimo,
mas, sobretudo, porque acessar a obra de além de ator e diretor, foi o criador do Cen -
Firmo ajuda a preencher as peças faltantes tro Afro Carioca de Cinema e do Encontro
para um entendimento mais amplo do Atlân- de Cinema Negro Brasil, África, Caribe e Ou-
tico Negro. tras Diásporas,'7 em 2007. Com isso, o Centro
Certamente ter as primeiras lições de Afro Carioca se torna uma das referências
fotografia em casa, com seu pai, José, um mundiais do "cinema negro': conceito ainda
homem negro amazônico cosmopolita, teve emergente naquele momento, mas hoje con-
um impacto profundo nas tentativas de au- sagrado por pesquisadores como Janaína Oli-
toinscrição de Firmo. Talvez ali tenha bro- veira. A aproximação entre os dois é um gesto
tado também uma lição dessa amorosidade político importante de ambos os lados. Firmo
reivindicada por ele e por hooks. sempre quis fazer cinema - em algumas de
suas entrevistas, ele expressa esse desejo, em
outras, diz que pensa como cineasta, mas que
a fotografia lhe dava mais liberdade. Em 2002,
Dois homens (negros) de imagem com mais de 60 anos, Firmo e Bulbul eram
expoentes da afrovisualidade no campo fo-
Eram dois homens pretos, já com seus 60 tográfico e cinematográfico. O que, olhando
anos, andando pelas ruas da Pequena África, retrospectivamente, significa muito. Politica-
no centro do Rio de Janeiro. A altura e a pele
mente, o debate pelas cotas disputava a arena
escura e cintilante de Zózimo contrastavam pública, e elas começavam a ser implementa-
com a pele mais clara e a menor estatura de das em instituições como a Universidade do
Firmo. Bonitos, tinham em comum um sorriso Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
fácil e afável, muitas vezes também cáustico, Nesse contexto, retornar à "Pequena África"
uma enorme erudição, o gosto pela música, era singular. Era voltar para onde tudo come-
em especial o jazz e o samba, e um amor ir- çou para a maioria de nós ao chegar a este
redutível pela imagem. Firmo foi o diretor de
lado do Atlântico.18 Era política. Na abertura do
16 Primeiro homem negro fotografia de Pequena África, um curta-me- filme, ouvimos "Cordeiro de Nanã''; logo após
a protagonizar uma novela tragem de 14 minutos, idealizado e dirigido os créditos iniciais, vemos um plano aberto
em rede nacional, em 1969. por Zózimo Bulbul, lançado em 2002. Como do frontispício da igreja de Santana, na praça
Seu filme Alma no olho,
parte do elenco, outro sexagenário: o ator e Onze, e, em seguida, planos com detalhes da
de 1973, é um clássico da
cinematografia brasileira. diretor de cinema Waldir Onofre, famoso pela fachada do prédio. Na sequência, são apresen-
17 Com direção de Biza Vianna, direção do filme As aventuras amorosas de tadas fachadas de casas de uma vila da praça
Viviane Ferreira e Janaína um padeiro (1975). Douglas Silva, o Dadinho Onze, onde Douglas Silva apresenta a Pequena
ReFem e curadoria de Janaína de Cidade de Deus, filme também lançado em África e surge conversando com Tia Jurema,
Oliveira, o festival encontra-se 2002 (Zózimo tira a arma da mão de Dadinho
em sua 21ª. edição.
antiga moradora do bairro. São as primeiras
18 Durante a realização do
e coloca no lugar a história negra), e Fláviaimagens cinematográficas de Walter Firmo.
filme, em 2002, ainda não Souza da Cruz, atriz, cantora, produtora, fim-
Os enquadramentos, a cor, a temporalidade do
havia evidências da localização dadora do Grupo Afrolaje e do Aqualtune (im- filme têm nitidamente a sua assinatura.
concreta do cais do Valongo (o portante coletivo de mulheres negras), tam- Ana Paula Alves Ribeiro, num texto em que
que só ocorreu em 2011). Para bém fazem parte do elenco. No filme, ainda analisa como surge a cidade na obra de Zó-
Mônica Lima, este foi "o centro
estão presentes Tia Jurema, da praça Onze, e zimo, nos lembra que Santana é um dos mo-
do local de desembarque do
maior número de africanos Mercedes Guimarães, do Instituto Pretos No- dos como Nanã é visualizada por seus filhos.
escravizados que chegaram vos. Zózimo e Onofre se conheciam de longa É a avó que ensina, a matriarca. Tia Jurema
vivos às Américas. Em data, no passado tinham participado de Cinco também é Nanã na conversa com Douglas.
nenhuma outra parte do vezesfavela (1962) e Ganga Zumba (1963). Para Ribeiro, Zózimo estabelece uma relação
mundo desembarcaram tantos
cativos trazidos da África como
nessa cidade". LIMA, Mônica.
"História, patrimônio e memória
sensível: o cais do Valongo no
Rio de Janeiro". Outros Tempos,
V. 15, n. 26, 2018, pp. 98-111.
21
próxim a com essa região da cidade em toda únicos fotógrafos negros a atuarem na pu-
~
a sua obra, pois ele blicidade carioca. E, se tinham um ativismo
visual import ante, escolhe ram destino s po-
vivenc ia uma cidade que é retrato de líticos distintos e legítimos.
resistê ncia e, de forma mais evidente, Mas isso não significa que Firmo tenha fi-
da resistê ncia e da memór ia negras cado alheio à existência da militância negra
do Rio de Janeiro : frequen tadores das organizada. Em uma das partes mais sensíveis
gafieiras e dos bailes, sambis tas, pros- de nossa entrevista, uma de suas lembranças
titutas, artistas de rua, compan hias de foi a de que frequen tar os espaços de socia-
teatro, entre outros. Passante andarilho bilidade da militância negra fez com que ele
flâneu r - Zózimo se constit~i como ob~ se sentisse verdad eirame nte bonito pela pri-
servad or privilegiado do Rio de Janeiro, meira vez, pois sentiu que as moças o olhavam
mas não de qualqu er Rio de Janeiro .[ ... ] com interesse, algo que não ocorria da mesma
São as transfo rmaçõe s do Centro da forma em outros meios nos quais circulava.
cidade, reconh ecido por Zózimo como
negro, que ele vai se interes sar em fil-
mar, registrar, esquad rinhar e, acima de
tudo, docum entar. 1s Aloto jamais realizada
De modo similar, podem os compa rar a traje- Tenho pensado as imagens produzidas por su -
tória visual de Firmo e seu apreço sobretudo jeitos negros em termos de contravisualidade
pela Zona Norte, lugar de urna sociabilidade e esforços de autoinscrição visual. A primeir a
privilegiada da comun idade negra, especial- tenta dar conta da reivindicação, nos termos
mente por meio do samba. Ela era outra Pe- de Nicholas Mirzoeff, do direito a olhar (a his-
quena África no Rio de Janeiro, assim como tória, o mundo, o real, quem nos olha), que em
tantas outras que encont rou em suas viagens última instância é o direito à (própria) existên-
pelo mundo . cia. Nesse sentido, defino afrovisualidade como
Se o encont ro entre Clementina e Firmo uma contravisualidade, ou seja, um modo pelo
poderi a ser denom inado como um encon- qual sujeitos negros reivindicam para si o di- 19 RIBEIRO , Ana Paula
tro afetivo-político - pensan do com Stuart reito a olhar. No caso da fotografia, trata-s e Alves. "Rio de Janeiro e sua
Hall, 20 que o cotidiano e a vida pessoal e, com herança africana: histórias
menos de um desejo de inscrição do já dado,
hooks, que os afetos são expoentes da política contadas por Zózimo
mas de entend er os esforços de autoinscrição Bulbul': Todas as Artes:
e que as amizad es negras são pouco visualiza- fotográfica como ação política na luta por di- Revista Luso-Brasileira de
das, sobretu do quando se trata de amizades reitos, na demanda de novos modos de estar e Artes e Cultura, v. 3, n. 3,
intergê nero e interge raciona is -, seu encon- devir no mundo e, portanto, da realidade por- p. 68.
tro com Zózimo é um encont ro político-afe- vir. Assim sendo, a desobediência da obra de 20 Ver: HALL, Stuart
tivo. No caso de Zózimo, o convite para que (org.). Representation:
Walter Firmo, através de sua convicção de que Cultural Representation
Firmo fosse seu diretor de fotografia era fra- a fotografia pode construir e propor novas ver- and Cultural Signifying
terno, mas também uma convocação política dades e novas realidades, invoca os momentos Practices. Londres/
a um dos nossos mais talentosos fotógrafos, em que estética e política possibilitam o que Thousand Oaks/Nova Delbi:
que embor a tivesse uma import ante produ- Ana Lúcia Silva Souza chama de Letramentos Sage/Open University, 1997.
ção visual antirra cista, ainda era distant e do de reexistência. 23 O entend imento de práti- 21 Ver: NERES, Vilma e
ativism o político organizado. Apenas como SANTOS, Elisângela de
cas de autoinscrição visual que ensejam uma Jesus. "Leci e Januário:
lembra nça, uma das principais instituições reexistência devem levar em conside ração escrevivências negras
antirra cistas do Brasil - o Instituto de Pes- duas recomendações de Achille Mbernbe, ao contemporâneas na
quisa de Culturas Negras ÜPCN) - teve como analisar as formas de autoinscrição africanas: música e fotografia" . Jdeias,
uma de suas principais lideranças Januário v. 8, n. 2, pp. 83-112, jul./
Garcia (1943-2021), 21 outro expoente da cons- Antropologicamente, à obsessão com a
dez. 2017. Disponível em:
trução do "arquivo fotográfico da diáspo ra periodicos.sbu.unica!IlP·
singula ridade e a diferença, devem os br/ojs/index.php/ideias/
negra". 22 Por anos, ambos foram colegas e os opor a temátic a da igualdade. Para nos article/view/86512671174 80·
22 cAMPT, Tina. Op. cit.
23 SOUZA, Ana Lúcia
Silva. Letramentos de
reexistência - Poesia,
grafite, música, dança:
_.....
22 hip-hop. São Paulo:
Parábola . 2011.
afastarm os do ressentim ento e da la- cadeira de balanço no quintal de casa. Firmo
mentação sobre a perda de um nom e o então jovem jornalista Muniz Sodré foram
propre, deve-se abrir um espaço inte- enviados à casa do músico para realizar uma
lectual para repensarm os aquelas tem - entrevista. Ao partir, Walter estava feliz, pois
poralidades que estão, sempre simulta- sabia que talvez tivesse realizado um dos seus
neamente, se ramificando em diversos principais trabalhos.
futuros diferente s, e ao fazerem isso O último encontro ocorreu às pressas. Her-
abrem caminho para a possibilidade de mínio Bello de Carvalho convidou Firmo para
múltiplas ancestralidades. Sociologica- ir à casa de Pixinguinha em Ramos, aquela
mente, deve ser dada atenção às práticas mesma que ele havia visitado em 1967. Era
cotidianas através das quais os africanos 17 de fevereiro de 1973, sábado de Carnaval.
reconhecem o mundo e mantêm com ele A pedido de Hermínio, Firmo não levou sua
uma familiaridade sem precedentes, ao câmera, pois a visita tinha o intuito de dar
mesmo tempo em que eles inventam uma força para um amigo que estava pre-
algo que pertence tanto a eles quanto cisando de apoio moral. Na casa de Pixinga,
ao mundo em geral. 24 Walter e Hermínio puderam ouvir o amigo
tocar a flauta transvers al pela qual havia se
Firmo questiona o ordename nto do mundo tornado famoso, mas que rarament e tocava
sugerido pela visualidade ao propor outros em público. Na verdade, o sax era o seu prin -
meios de divisão do sensível. Ele assume que cipal instrume nto de trabalho. É ele que re-
tem direito a olhar, ele luta pelo seu direito pousa no colo de Pixinguinha naquela foto de
a olhar. Compartilhar de seu olhar não nos 1967. Ao irem embora, a cena da despedida foi
leva a pensar a sua produção sob o ponto de o que mais marcou Firmo: Pixinguinha ficou
vista de uma singularidade ou de uma auten- acenando demorad amente para os dois en -
ticidade negra, o que facilmente cairia num quanto eles partiam de carro para o centro
essencialismo. Ao captar as mais distintas da cidade, e depois para a Zona Sul. Aquele
expressões da vida negra, organiza os nos- aceno - aquele aceno - foi a fotografia que
sos afetos para outra coisa: para a criação Firmo fez somente para si. Horas mais tarde,
de um arquivo sentimental que se ramifica o músico faleceria na igreja Nossa Senhora
em "diversos futuros diferentes e, ao fazerem da Paz, durante o batizado de seu afilhado.
isso, abrem caminho para a possibilidade de Próximo dali, Firmo e Hermínio brincavam
múltiplas ancestralidades". 25 o Carnaval na Banda de Ipanema.
Em 1967, surgiu uma das nossas imagens Acho que tem algo de poético em saber que
mais icónicas, "aquela onde repousa a feli- o acervo de Pixinguinha e o de Walter Firmo
cidade": lá está Pixinguinha sentado em sua se avizinham no Instituto Moreira Salles.
Janaina Damaceno Gomes é graduada em filosofia e mestra em educação pela Unicamp. Doutora
em antropologia pela usP, atualment e é professora adjunta da Faculdade de Educação da Baixada
Fluminense (Febf) da Uerj e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorial idades (PPCult)
da UFF e coordenad ora do Grupo de Pesquisas Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem
Negra. É uma das fundadoras do Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine).
24 MBEMBE , Achille.
"As formas africanas de
autoinscrição". Estudos
Afro-Asiáticos, ano 23, n. 1,
2001, p. 17.
25 Ibidem.
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