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Samara Leonel

Doutorado em LEM
LET00079
Prof. Carlos Augusto Bonifácio Leite

O jeitinho dos dois lados da fronteira: malandragem e malevaje

A América Latina, com sua história cruel de colonização e dominação, não teve como
escrever sua história por linhas retas. A sobrevivência aqui exigiu a elaboração de outros
modos de driblar as hierarquias e experimentar uma vida que fugisse dos moldes oficiais,
onde houvesse outra maneira de se obter as coisas sem o enfrentamento de uma burocracia
pesadíssima e inerte, de um sistema de trabalho exploratório e de privilégios para as classes
superiores que minam ainda mais quaisquer possibilidades de êxito e felicidade para os que
estão mais abaixo.
Em função desse estado de coisas, se formam a figura do malandro e do compadrito
(ou patotero, ou guapo, ou malevo, ou taita, ou cachafaz), no Brasil e na Argentina, ligados
diretamente aos estilos musicais do samba e do tango. E cada um, a sua maneira, se torna
uma representação de suas identidades nacionais, ainda que totalmente desvinculadas do ideal
de cidadão, pregada por seus estados. Em sua tese, Adriana dos Santos Menezes (2012, p.
135) nos aponta que Borges acreditava que isso acontece porque o povo não se sentia
identificado com o Estado. Creio que no Brasil se pode pensar do mesmo modo, já que aqui
também não temos uma situação em que o poder estabelecido se alinhe com as necessidades
dos cidadãos.
Tanto o malandro quando o compadrito são idealizados por sua habilidade de, acima
dos homens normais, se negarem a se submeter às condições de trabalho a eles reservada
(MENEZES, 2012, p. 128), o que é considerado fruto de astúcia, que os tornaria superiores
aos otários que submetem ao regime de trabalho escorchante, o mané, no vocabulário
brasileiro. É ainda curioso como os fãs desses personagens, que por eles se sentem
representados, em geral fazem parte da grande massa de trabalhadores que seguem as regras e
suporta a opressão do regime de trabalho.
Diferentemente do malandro que nasce urbano, dentro do esquema de conhecimentos
e favores da cidade, o compadrito é descendente do gaucho idealizado. A idealização do
gaucho e transformação de sua figura em símbolo de identidade nacional se deu com a
publicação de Martin Fierro (MENEZES, 2012, p. 131), que transformou as qualidades
consideradas negativas, como a brutalidade e a trapaça, em coragem e inteligência, num
processo muito parecido com o que os movimentos tradicionalistas do RS fizeram com o
gaúcho no RS. Nos dois casos, esse mundo gaúcho no interior já não existia mais quando
essas figuras se estabeleceram.
Do gaucho, veio o compadre, aquele que vinha do interior para se instalar nos
arrabaldes da cidade e, deste, o compadrito, que seria o filho dessa geração vinda do campo
que tomaria como modelo a postura do compadre. (MENEZES, 2012, p. 132) Mas ainda,
segundo a autora, na época do tango-canção, assim como no tempo em que Borges escreveu
sobre o tango, o compadrito também já existia mais na mitologia tanguera que na realidade.
De certo modo, a grande diferença com o malandro brasileiro é que o tango trabalha
com figuras que são tradições ficcionais e idealizadas, enquanto o malandro é bem palpável,
cotidiano e contemporâneo. Tem algo dele em cada um de nós – ainda que nunca posto em
prática.

Ambos usam armas brancas: o malandro, a navalha, que é a arma discreta, rainha das
ruas. O compadrito conta com uma série de facas e adagas, provenientes do manejo com a
carne. Se o malandro tem um vocabulário próprio, o lunfardo na linguagem tanguera deixa
claro o contato com a marginalidade – é um dialeto opaco para “la gente”. A passagem pela
prisão é quase obrigatória e a cafetinagem como profissão aparece ainda mais constantemente
nas letras de tango que no samba.

Música

Partindo dos estilos musicais, ainda que venham da mesma mescla com as raízes
africanas, onde o tango-milonga opta pelo drama, o samba normalmente escolhe a saída
satírica – mesmo que haja violência, mesmo que exista uma tristeza.
Assim como o samba nasceu da influência da musicalidade negra nas festas dos
brancos, do som dos terreiros, o tango, como dança, surgiu da forma como os compadritos, os
negros e os mestiços dançavam a milonga e o candombe. Outra influência também seria o
“duello criollo”, à faca, que explicaria as duplas formadas por homens no surgimento do
estilo.
A dramaticidade recheada de superlativos, que separa o tango da leveza das letras do
samba, seria influência da payada, com seu caráter de desafio a um oponente.

Mulheres, chamuyo e tragédias


O papel ocupado pelas mulheres nos dois imaginários é semelhante, outra vez, a
diferença é de tratamento.
A milonguita tem uma atitude muito semelhante à da mulher da orgia, prefere os
prazeres da noite às obrigações de uma mulher de família. Pode ser a compadrita de um
dançarino, sua parceira imbatível, mas sua relação não é permeada pelo romantismo. Até
porque, ele não cabe ao compadrito.
Este é, por definição, “que sepa el chamuyo al revés”, o que ganha duas mulheres a
cada uma que o deixa, o rei dos conquistadores, que não perdoa nenhuma. Um dos nomes
para essa figura tanguera é cachafaz, que veio do apelido de Ovídio José Bianquet (1885 -
1942)1, considerado um dos maiores dançarinos de tango de todos os tempos. O tango que
fala sobre ele, com letra de Angel Villoldo, não mede palavras:

El cachafaz es un tipo
de vestir muy elegante
y en su presencia arrogante
se destaca un gran señor.
El cachafaz, donde quiera,
lo han de encontrar muy tranquilo
y si saca algún filo
se convierte en picaflor.

El cachafaz, bien lo saben,


que es famoso bailarín
y anda en busca de un festín
para así, florearse más.
El cachafaz cae a un baile
recelan los prometidos,
y tiemblan los maridos
cuando cae el cachafaz.

El cachafaz, cuando cae a un bailecito


se larga; pero muy de parada
y no respeta ni a casada;
y si es soltera, mejor.
Con mil promesas de ternura
les oferta, como todos, un mundo de grandezas
y nadie sabe que la pieza no ha pagado
y anda en busca afligido, el acreedor.2

Essa postura é necessária porque, se para o malandro, casar e formar família (sem ser
com a mulher de malandro, que vai apanhar e sustentar a casa) lhe custa o risco de
“regenerar-se” e perder a boêmia, para o compadrito ou taita, entregar-se a um amor
verdadeiro é aflojar, perder a fibra e a identidade. Menezes nos cita o caso do Patotero
Sentimental, em que o personagem rejeita uma mulher de amor verdadeiro já que “La patota
me miraba... ¡y no es de hombre el aflojar!” – e essa pressão de pertencimento do grupo o faz
ignorar o choro da moça. (2012, p.147)

1
Wikipedia, El Cachafaz
2
Tango El Cachafaz, de Ángel Villoldo, 1937. Os grifos são meus.
Nesse contexto, sobram dois papéis para as mulheres: a que apanha e sustenta seu
homem, que obviamente terá outras, porque não pode render-se ao amor; ou a que o deixa
pela própria noite, sem render-se ao amor ela mesma.
No samba, os dois casos são levados com certeza leveza, as pancadas e reconciliações
são tomadas com certo humor. No caso da mulher da orgia, o abandonado se irrita e volta para
noite também.
No tango, a visão é sempre mais dramática. Ou a mulher se perdeu pela sedução do
homem cruel, ou é uma degenerada que se perdeu pelos prazeres da noite, às vezes
abandonando a família que a criou. A ideia de vício e decadência são sempre muito mais
intensas que na contraparte brasileira da mulher que não escolheu o bom modelo de mãe de
família.

Conclusões ligeiras
Numa sociedade tão abertamente injusta e calcada em privilégios como a América
pós-colonial, os caminhos corretos e estabelecidos não parecem tão corretos assim. Por mais
trabalhador e honesto que seja, o homem comum não consegue se identificar com seu
opressor, que encontra cada vez mais razões para impedir seu acesso ao mínimo, para
desfrutar da vida enquanto todo o trabalho fica nas classes mais baixas.
Esse tipo de sociedade cria o “jeitinho”, a maneira de driblar a sociedade e obter um
pouco de prazer da vida, ainda que por caminhos não tão legais assim. Nesse contexto, o
malandro e o compadrito representam mais seus pares que os modelos exemplares que o
Estado desejaria.
Sua astúcia inteligente e sua coragem em resolver seus temas de honra por si mesmos
os permite escapar do jogo de cartas marcadas e obterem algo para si mesmos. Contam com a
habilidade na briga, com a destreza na dança, com a lábia com as mulheres e sempre uma
maneira ardilosa de escaparem da faina de trabalho diário. Viver a noite, a boemia, a música e
estar com as mulheres mais belas – não é para todos, mas é desejo de todos.
Tanto a malevaje quanto a maladragem aparecem nas letras das canções como destino
(MENEZES, 2012, p. 253), no caso do tango, um fardo (talvez pela relação mais estreita com
a criminalidade e o vício); do samba, uma distinção. É para os bambas, os escolhidos, os bons.
De todo modo, essa vida “privilegiada” ainda parece mais justa e acessível ao homem
comum que a vida de vantagens dos endinheirados, que sequer precisam de talentos ou
qualidades para desfrutá-la, além do próprio nascimento.
Assim, com maior ou menor dramaticidade, a América Latina criou sua própria
espécie de escolhidos, de espertos, de mestres da noite – nobres do reino dos despossuídos,
dos mestiços e dos contraventores das leis impossíveis.

Referências

Compadrito. In: Wikipedia, a Enciclopédia Livre. Disponível em: <


https://es.wikipedia.org/wiki/Compadrito> Acesso em: 12.jan.2020

DICCIONÁRIO ARGENTINO. Palabras, modismos y más. Disponível em:


https://www.diccionarioargentino.com/> Acesso em 20.dez.2020

El Cachafaz. In: Wikipedia, a Enciclopédia Livre. Disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/El_Cachafaz> Acesso em: 04.dez.2019

FLORES, Rafael. Personajes del Tango: El Cachafaz. Disponível em: <


http://www.esto.es/tango/personajes/Cachafaz.htm> Acesso em: 20.jan.2020

MENEZES, Andreia dos Santos. Entre Pátrias, Pandeiros e Bandoneones. O embate entre
vozes marginais e disciplinadoras em composições de samba e tango (1917 – 1945). 2012.
Tese (Doutorado em Letras) – Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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