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Três poetas

em Minase
水無瀬三吟百韻
Sôgi, Shôhaku, Sôchô
Três poetas
em Minase
水無瀬三吟百韻
Sôgi, Shôhaku, Sôchô

tradução
Andrei Cunha, Karen Kawana
e Roberto Schmitt-Prym

2021
Copyright © 2021 Andrei Cunha, Karen Kazue Kawana
e Roberto Schmitt-Prym.
Título em japonês: 水無瀬三吟百韻 (Minase sangin hyakuin)
Editor: Roberto Schmitt-Prym
Revisão: Bruno Zitto
Digitação dos poemas em japonês: Bruno Zitto e Gabrielle Miguelez
Design do livro: Andrei Cunha e Roberto Schmitt-Prym
Capa: Andrei Cunha e Roberto Schmitt-Prym
Ilustração da capa: Ohara Koson, “Ameixeira em flor à noite”
(início do séc. XX)
Todos os poemas japoneses
e todas as ilustrações se encontram em domínio público.

Todos os direitos desta edição reservados.

Rua Marquês do Pombal, 788/204


90540-000, Porto Alegre, RS
Fones: (51) 3779.5784 - 99491.3223
www.bestiario.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

S682t Sôgi
Três poetas em Minase / Sôgi, Shôhaku e Sôchô ;
tradução de Andrei Cunha, Karen Kazue Kawana,
Roberto Schmitt-Prym. - Porto Alegre : Class, 2021.
236 p. ; 14cm x 21cm.
Tradução de: Minase sangin hyakuin
Inclui índice.
ISBN: 978-65-88865-58-3
1. Literatura japonesa. 2. Poesia. I. Shôhaku. II.
Sôchô. III. Cunha, Andrei. IV. Kawana, Karen Kazue. V.
Schmitt-Prym, Roberto. VI. Título.
CDD 895.6
2021-2835 CDU 821.521
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura japonesa 895.6
2. Literatura japonesa 821.521
A MAIS BELA
SEQUÊNCIA
POÉTICA
Andrei Cunha

O poema encadeado japonês (renga) surgiu na Corte Imperial


da Era Heian (794–1185), mas só veio a se desenvolver plenamente
como forma na Idade Média. Encontramos sequências poéticas,
trovadores, repentistas, ou ainda versos encadeados, em
diversas culturas do mundo, mas a variedade japonesa apresenta
características inexistentes em outras histórias literárias —
em especial, a codificação de regras para o jogo criativo que
aproximam esse fazer artístico do mundo dos esportes de
equipe mais complexos, como o futebol contemporâneo.
Inicialmente, o hábito de compor esse tipo de sequência
poética era visto como um passatempo menos sério do que a
composição do waka (“poema japonês” propriamente dito). A
primeira “idade de ouro” do poema encadeado corresponde à era
do regente Nijô Yoshimoto (1320–1388), que conferiu prestígio
ao renga, propondo critérios de excelência e organizando
a primeira coletânea de poemas encadeados “sérios”, o
Tsukubashû (c. 1356). A sequência que apresentamos neste livro,
Três poetas em Minase (1488), corresponde a uma segunda fase
da evolução do gênero e foi considerada, desde a época de sua
composição, como exemplo de excelência, ao combinar uma
igual atenção ao formato do jogo e ao estilo poético dos versos.
Nas gerações seguintes, graças ao refinamento de sua arte e ao
uso que foi feito desse texto como material didático no ensino
de composição, a obra de Sôgi, Shôhaku e Sôchô consolidou sua
posição de destaque no cânone literário japonês.

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QUEM ERAM OS TRÊS POETAS?

Pouco se sabe sobre a vida de Sôgi (1421-1502). Era de origem


humilde, ainda que descendente de samurais. Nasceu em 1421,
provavelmente na província de Ômi, a leste da atual Quioto. Aos
trinta anos de idade, já era monge em um importante templo
zen, onde, acredita-se, teria entrado em contato com a cultura
artística de sua época e aprendido a arte da composição do
poema encadeado, dentre outras formas poéticas. Foi aluno do
mestre de renga Sôzei, que tinha contatos na aristocracia, o que
permitiu que Sôgi estudasse literatura com membros da Corte
Imperial (normalmente inacessíveis a um homem de baixa
extração social).
Aos quarenta anos de idade, realizou uma série de viagens
pelo interior do Japão, ensinando a composição de waka aos
potentados locais e escrevendo tratados de poesia e diários de
viagem. Muitos poetas e artistas se afastaram da capital nesse
período, devido aos violentos conflitos que culminaram na
Guerra Ônin (1467-1477).
Em suas viagens pelo interior, Sôgi escreveu diários de
viagem, trabalhou como mentor literário de líderes guerreiros
e visitou lugares distantes mencionados nos textos antigos. Por
um breve período, conseguiu ter aulas com Tô no Tsuneyori,
um poeta descendente de samurais que havia recebido os
valiosos ensinamentos herméticos do Kokindenju, um sistema
de interpretação do Kokin’wakashû1 que não havia sido
registrado por escrito e que só podia ser transmitido de mestre a
discípulo. Posteriormente, Sôgi utilizaria essa experiência como
legitimação de seu status literário, ao abrir a sua própria escola
de composição em Quioto.
Nessa mesma década, estudou também com Shinkei, um
1
Para uma introdução à poesia do Kokin’wakashû, cf. CUNHA, Andrei.
Poemas do Japão antigo: seleções do Kokin’wakashû. Porto Alegre:
Bestiário/Class, 2020.

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mestre da escola de Nijô que valorizava o estilo sóbrio e despojado
— em oposição a seu mestre anterior, Sôzei, que valorizava as
construções brilhantes e os desfechos inesperados. O estilo do
próprio Sôgi, pode-se dizer, é como uma síntese da mestria com
as palavras de Sôzei e da busca pela nobreza de tom de Shinkei.
A obra de Sôgi foi elogiada por Matsuo Bashô pelo estilo sóbrio
e melancólico (sabi) que muitos de seus versos apresentavam; no
entanto, ele também era capaz de ostentar a elegância (miyabi)
que aprendeu com o estudo do Kokin’wakashû. O ponto alto de
sua produção artística se revela em sua capacidade de construir
poemas encadeados harmoniosos em colaboração com seus
discípulos, habilidade reconhecida por seus contemporâneos e
pelas gerações posteriores.
De volta à capital aos cinquenta anos de idade, Sôgi construiu
uma pequena cabana de palha em um ponto isolado da capital
e passou a se dedicar inteiramente à poesia, conduzindo
sessões de poesia encadeada e dando aulas de composição à alta
nobreza. Em 1476, organizou a antologia de verso encadeado
Chikurinshô, colocando em destaque a obra dos seus mestres
Sôzei e Shinkei. Três anos depois, escreveu o ensaio Oi no susami,
em que propõe uma análise de dísticos e tercetos de poemas
encadeados utilizando conceitos próprios do waka, como que
deixando implícita a ideia de que a arte do renga se inscrevia na
prestigiosa tradição da poesia da Corte.
Em outros escritos, Sôgi buscou sistematizar as regras
de composição do poema encadeado com foco no evento, na
reunião, na dinâmica da partida de versos entre poetas —
ajudando a consolidar, assim, a especificidade desse gênero
poético. Como em outras artes que floresceram na Idade Média
japonesa (a cerimônia do chá, o teatro nô, etc.), o renga é uma
construção espaço-temporal coletiva de um lugar à parte,
protegido dos conflitos do mundo, onde imperam o silêncio, a
harmonia, a beleza e a meditação.
Em 1488, com quase setenta anos, foi designado pelo xogum

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para presidir as sessões de renga do templo de Kitano — à
época, a mais alta honra que um autor de poesia encadeada
podia almejar. No mesmo ano, Sôgi e seus discípulos Shôhaku e
Sôchô se reuniram em Minase, no antigo palácio do imperador
Gotoba. Em homenagem ao falecido imperador, que fora um
importante poeta e defensor das artes, eles compuseram Três
poetas em Minase, um poema encadeado de estilo solene e
sério, considerado o exemplo mais perfeito dessa forma poética.
Em 1495, Sôgi lançou a antologia Shinsen Tsukubashû,
incluindo versos encadeados de seus mestres da geração
anterior, assim como composições de seus discípulos mais
próximos, como Shôhaku e Sôchô, e de alunos do alto escalão
militar e da nobreza, documentando a transição do renga de
“arte menor” para gênero central da Idade Média.
Mesmo depois de se instalar nos arredores de Quioto, Sôgi
nunca deixou de viajar, transmitindo seus ensinamentos,
herméticos ou não, a muitos alunos. Foi durante uma dessas
viagens que o mestre veio a falecer, em 1502. Seus discípulos
de todo o Japão, no entanto, se encarregaram de disseminar
os conhecimentos adquiridos do mestre, o que assegurou a
predominância de sua escola na poesia do século seguinte. A
próxima renovação do gênero do poema encadeado viria duas
gerações depois, com Matsuo Bashô, que transformou o haikai
no renga — versão menos “séria” e “respeitada” da arte de Sôgi
— em uma forma poética central da literatura japonesa — e,
finalmente, do mundo.
Shôhaku (1443-1527) era filho de Nakanoin no Michiatsu, um
nobre da Corte Imperial. Teve desde pequeno uma educação
refinada e aristocrática. Aos vinte anos de idade, saiu a
percorrer o Japão, em busca dos lugares tornados famosos pelas
narrativas e poemas. Mesmo sendo de classe alta e detentor de
privilégios, viu sua segurança ameaçada pela eclosão da Guerra
Ônin, o que o levou a deixar a capital e se refugiar no interior,
na província de Settsu (atualmente em Hyôgo). Ali, construiu

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uma cabana de eremita que serviu de base, nos anos seguintes,
para suas peregrinações pelo Japão. No fim da vida, por motivos
de saúde, foi viver em Sakai, à beira do mar. Shôhaku conhecia
profundamente a arte do poema japonês (waka) e do poema
encadeado (renga). Recebeu de seu mestre, Sôgi, os ensinamentos
herméticos sobre o Kokin’wakashû e o Romance do Genji.
Compôs, com Sôgi e Sôchô, dois dos poemas encadeados mais
importantes do cânone japonês: Três poetas em Minase (1488)
e Três poetas em Yuyama (1491). Em 1495, participou da equipe
que compilou a antologia Shinsen Tsukubashû. Deixou uma
antologia de composições suas intitulada Shunmusô, dividida
em duas partes: a primeira, dedicada ao waka; e a segunda, aos
seus versos encadeados.
Sôchô (1448-1532) era filho de um ferreiro da província de
Suruga (atual Shizuoka) e, quando jovem, serviu na casa do
líder militar local, Imagawa no Yoshitada. Aos dezessete anos de
idade, tornou-se monge e, cinco anos depois, foi para a capital,
onde foi discípulo de Ikkyû, o importante mestre zen. Em 1466,
encontrou Sôgi, que viria a ser seu professor de poesia. Na volta
de uma viagem com Sôgi até o norte de Kyûshû, deparou-se com
a capital totalmente destruída pelos conflitos decorrentes da
Guerra Ônin. Refugiou-se em sua província natal, onde atuou
como auxiliar do filho de seu antigo senhor, que havia sucedido
ao pai como líder militar da região. Em 1501, voltou a acompanhar
Sôgi, que estava doente e viria a falecer, sob seus cuidados, no
ano seguinte. Em 1504, foi viver em Utsunomiya, onde se casou
e teve dois filhos. Atuou ainda como uma espécie de mensageiro
diplomático do senhor de sua província em missões à capital,
onde era frequentemente visto nas mansões dos poderosos.
Além de compor, com Sôgi e Shôhaku, Três poetas em Minase
(1488) e Três poetas em Yuyama (1491), participou da equipe
que compilou a antologia Shinsen Tsukubashû. Era um autor
prolífico e deixou mais de uma antologia de composições suas,
além de manuais de poesia, crítica literária, relatos de viagem e

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diários. Dentre os diários, o mais célebre é Sôgi shûenki (1502),
no qual narra os últimos dias de seu mestre, Sôgi. Compunha
também poemas encadeados “cômicos”, gênero que viria,
posteriormente, a dar origem ao mais conhecido haicai.

POR QUE MINASE?

Localizado no que hoje é um bairro do município de Ôsaka,


o Palácio de Minase foi uma das residências preferidas do ex-
imperador Gotoba (1180–1239), soberano japonês da Idade Média
que teve importante papel tanto na política como na literatura.
Gotoba é venerado até hoje como um deus do xintoísmo (kami)
no Santuário de Minase, construído sobre as ruínas da mansão.
Foi ali que Três poetas foi composto, em fevereiro de 1488, como
uma homenagem aos 250 anos da morte do ex-imperador.
Acredita-se que a poesia encadeada tem o poder de agradar os
espíritos, motivo por que muitas vezes ela é objeto de oferenda
em santuários.
A Idade Média japonesa (1185–1603) é o período de transição
entre o classicismo aristocrático, cujo centro era a capital imperial
(atual Quioto) e a cultura urbana e samurai característica de
Edo (atual Tóquio), cidade escolhida por Tokugawa Ieyasu para
sede de seu xogunato. Durante esse longo intermédio de muitos
conflitos e diferentes formas de governo e desgoverno, o poder
imperial se desintegrou aos poucos e se fragmentou nas mãos
dos senhores de terras das diferentes regiões, que lutaram entre
si quase ininterruptamente pelo poder absoluto. Dois xogunatos
(governos militares) buscaram unificar o Japão: o de Kamakura
(1185–1333) e o Ashikaga (1336–1573), deslocando a realidade do
poder político da Corte Imperial para os quartéis.
No início do século XIII, o ex-imperador Gotoba tentou
derrubar o xogunato e restabelecer o poder político da corte
de Quioto. Gotoba é considerado um dos mais inteligentes
e cultos imperadores da história japonesa. Foi patrono de

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poetas e poeta ele mesmo, tendo estudado quando jovem
com o venerável Fujiwara no Shunzei. Gotoba promoveu
inúmeros utaawase (concursos de poesia), ocasiões nas quais
se compuseram muitos dos waka que seriam posteriormente
incluídos no Shinkokin’wakashû — antologia poética que ele
mesmo encomendou aos mais talentosos poetas de sua época,
com a intenção de registrar o esplendor artístico de sua Corte.
No âmbito da política, porém, Gotoba não conheceu vitórias
duradouras. No episódio que ficou conhecido como a Revolta de
Jôkyû (1221), Gotoba decretou a destituição do poder do xogum
e atacou o quartel general de Quioto, forçando o representante
do governo militar a se suicidar. No entanto, logo o xogunato
de Kamakura mobilizou suas forças, invadiu Quioto e baniu o
ex-imperador para a ilha de Oki, de onde ele nunca mais voltou.
Durante a Idade Média, a Corte Imperial e os nobres se
dedicaram à preservação dos ideais estéticos da Antiguidade, tida
como uma era de paz e esplendor, e ao aprofundamento da poética
aristocrática, por meio de recursos como a intertextualidade
e o simbolismo. Esse olhar em direção ao passado é em geral
descrito em termos de uma reação aos tempos de instabilidade
política em que esses poetas viviam. Mesmo buscando resgatar
um ideal clássico, os poetas medievais tinham uma visão de
mundo muito mais pessimista, melancólica e nostálgica do que
os autores que buscavam emular. Temas do budismo, como a
impermanência das pessoas e das coisas, ou ainda a ideia de que
o mundo sensível é uma ilusão a que estamos acorrentados ou
um mero sonho de que precisamos despertar, se tornam muito
mais frequentes nessa época.
Em 1467, houve uma divisão dos daimios em duas facções,
devido a problemas de sucessão. Em consequência, seguiram-
se onze anos de lutas e revoltas, tendo Quioto como centro
das hostilidades (a Guerra Ônin). As disputas cessaram com a
exaustão dos dois exércitos, mas o conflito teve por resultado
o enfraquecimento do poder do xogum e o colapso do sistema

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político feudal. Essa estrutura social instável se prolongou
por cem anos (a “era da guerra civil”). A capital foi totalmente
destruída, bibliotecas foram incendiadas e templos saqueados.
É nesse contexto que Três poetas em Minase foi composto.
O Santuário de Minase, dedicado à memória de Gotoba,
representava, para Sôgi, Shôhaku e Sôchô, o último período de
esplendor da Corte Imperial (e da história literária japonesa).
O espírito de Gotoba estava intimamente associado à beleza
da velha capital — agora destruída e saqueada. Ao dedicarem
suas cem estrofes ao ex-imperador, os três poetas estavam
reivindicando a tradição do waka como base para a sua concepção
estética: em um mundo dividido e instável, as antologias poéticas
imperiais de eras anteriores remetiam a um tempo de unidade e
de harmonia. O hokku (terceto de abertura) de Minase, proposto
por Sôgi, faz referência a um waka de Gotoba:

Shinkokin’wakashû, livro 1, Primavera 1, poema 36:


Composto sobre o tema “água”, para um evento em que se
escreveram poemas em japonês sobre os mesmos tópicos
de poemas chineses.

ao avistar a névoa
no sopé da montanha
sobre o rio Minase:
quem foi que disse
que a noite é do outono?

Ex-Imperador Gotoba

見渡せば山もとかすむ水無瀬川
夕べは秋となに思ひけむ
miwataseba / yamamoto kasumu / minasegawa
yûbe wa aki to / nani omoiken

Neste poema de primavera, o ex-imperador está contestando


Sei Shônagon, autora da Antiguidade que, em seu Livro de
Travesseiro, afirma que o anoitecer é mais corretamente
apreciado no outono — quando seria, segundo ela, mais bonito.

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A passagem em que Sei Shônagon fala sobre isso é o texto de
abertura do Livro de Travesseiro, adotado desde então como
parâmetro de autoridade para a apreciação da natureza no
Japão. Eis como Sôgi faz referência ao poema de Gotoba:

Três poetas em Minase, poema 1 (hokku)

mesmo com neve


há névoa no sopé
dos montes na noite
Sôgi

Segundo as regras de etiqueta para a composição do poema


encadeado sério, o hokku fica a cargo do convidado de maior
senioridade e deve fazer referência ao local e à estação em que
o poema foi composto. Com o verso yamamoto kasumu (“o sopé
do monte se cobre de névoa”) e a palavra yûbe (“anoitecer”), Sôgi
consegue tecer um diálogo intertextual com a divindade do
santuário (Gotoba), além de aludir ao próprio lugar (Minase,
que está presente no waka do ex-imperador) e ao momento
exato da estação (na poesia clássica, fevereiro marca o início da
primavera, quando nas serras sobe a névoa e a neve ainda não
derreteu completamente).
Esse procedimento, chamado honkadori (“ato de tomar outra
canção como base”), é bastante comum na poesia japonesa. A
técnica consiste em incluir no poema palavras, sentimentos ou
ideias de um poema anterior, de maneira que o leitor reconheça
essa referência. O poema anterior é o honka. Muitas vezes,
um ou dois versos são reproduzidos ipsis litteris, levemente
alterados ou ainda parafraseados, adquirindo um novo contexto
e associações. Essa técnica permite enriquecer a teia de
significados do poema.

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AS REGRAS DO JOGO

Segundo o crítico literário Konishi Jin’ichi (1975), a composição


do poema encadeado obedece a tantas regras que, para que um
praticante chegue ao nível mais alto da carreira, exigem-se, em
geral, vinte anos de atividade sob a supervisão de um mestre.
Trata-se de um fazer poético comunitário que precisa de ao
menos dois participantes (existem renga compostos por um
só autor, mas são meros “ensaios” ou “treinos” de preparação
para uma partida com mais poetas). No caso de Três poetas
em Minase, a partida conta com um mestre (Sôgi) e dois
discípulos (Shôhaku e Sôchô). Um escriba, que não participa
da composição, atua como uma espécie de secretário e juiz do
jogo. A cada nova estrofe apresentada, o escriba avalia se ela está
em conformidade com as regras e, se estiver satisfeito, anota
os versos em um papel e os repete em voz alta, assinalando a
vez do próximo participante. Se os versos têm “erros”, o próprio
escriba pode corrigi-los e anotar uma versão “melhorada” da
estrofe. Quando um poeta demora demais para compor sua
parte, o escriba repete a estrofe anterior. Isso pode ocorrer no
máximo duas vezes: se hesitar demais, o poeta perde o turno
para o próximo na roda.
Antes de iniciarem as rodadas de composição, os poetas
definem o número de estrofes que o poema terá. O primeiro
terceto obedece à métrica 5-7-5; o dístico final, 7-7. Entre a
primeira e a última estrofe, alternam-se dísticos e tercetos com
esse mesmo esquema métrico. Um renga pode ter 36 estrofes,
cem estrofes, mil estrofes, ou diversas outras configurações. Na
época em que Sôgi, Sôchô e Shôhaku compuseram Minase, os
renga de cem estrofes eram comuns; a partir de Bashô (no século
XVI), adota-se preferencialmente uma sequência mais curta, de
36 estrofes.
O papel em que é registrada a partida de poesia tem um
formato específico: um retângulo dobrado ao meio na horizontal

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que depois recebe furos na margem direita, pelos quais se
passa um cordão, de maneira a se criar um folheto. Um poema
encadeado de cem estrofes tem quatro folhas dobradas: oito
estrofes na frente da primeira folha, quatorze no verso; quatorze
na frente e no verso da segunda e terceira; e quatorze na frente e
oito no verso da quarta e última.
Depois de o mestre ter proposto os três versos iniciais (hokku,
5-7-5 sílabas), um discípulo compõe os dois versos da segunda
estrofe (wakiku, 7-7 sílabas), que deve ser relacionada de alguma
maneira aos três versos iniciais (em geral, sobre a mesma estação
do ano). A terceira parte, formada por três versos de 5-7-5 sílabas,
desenvolve o tema de maneira diferente, mas conservando algo
do tópico anterior. Esse encadeamento de dísticos de 7-7 sílabas
e de tercetos de 5-7-5 sílabas continua até o poema completar
o número pré-estabelecido de estrofes. As estrofes do corpo do
poema são chamadas de hiraku e a última estrofe, de dois versos
de 7-7 sílabas, é o ageku.
O poema encadeado, como a poesia clássica japonesa de uma
forma geral, paga tributo ao cânone literário que veio antes dele;
assim, o próprio Sôgi recomendava que todo principiante que
desejasse se aventurar no mundo da composição de poemas
encadeados deveria conhecer: o Man’yôshû (antologia poética do
século VIII); todas as antologias poéticas imperiais editadas até
então (ou seja, oito volumes compilados entre os séculos X e XV,
somando mais de dez mil poemas); o Conto da Princesa Kaguya
(século IX); os Contos de Ise (histórias e poemas, também
do século IX); os Contos de Yamato e a História de Utsuho
(século X); a História de Sagoromo (século XI); O Romance do
Genji (um livro do início do século XI com 54 capítulos e cujas
edições contemporâneas ultrapassam as duas mil páginas com
letra miudinha); e catálogos de lugares celebrados nas grandes
obras literárias. Esses textos são registros de um “gosto” estético
extremamente refinado, surgido na classe aristocrática a partir
do século VII, e que se tornou ainda mais exigente, conservador

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e restrito com os séculos.
Não apenas o estilo: a língua falada pelas classes inferiores
no século XV não era a mesma língua clássica da Corte que se
mantém na poesia. Mesmo os temas e o vocabulário permitido
nessa literatura eram determinados por regras de elegância e de
decoro. Evitava-se toda e qualquer alusão a temas considerados
vulgares ou desagradáveis. A poesia clássica tem uma dicção e
gramática determinadas, e mesmo os elementos da natureza
são sistematizados, atribuindo-se mais força simbólica a uns
do que a outros no âmbito da literatura. Assim, grande parte
dos animais e plantas que conhecemos dos haicais de Bashô,
por exemplo, não podiam ser mencionados na poesia “séria” da
época de Sôgi, que se limitava à fauna e à flora que a nobreza dos
séculos anteriores selecionara para as suas antologias. Konishi
Jin’ichi oferece o seguinte catálogo de tópicos possíveis em
um poema encadeado “sério” (as palavras entre parênteses são
exemplificativas de um conjunto maior):

I. Estações do ano: primavera, verão, outono, inverno


II. Fenômenos:
1 Coisas que brilham (sol, estrelas, lua)
2 Turnos
Coisas matutinas (orvalho, aurora)
Coisas vespertinas (entardecer, relâmpago)
Coisas noturnas (vagalumes, pesca com
cormorões)
3 Coisas que sobem (nuvens, névoa, fumaça,
neblina)
4 Coisas que caem do céu (chuva, neve, orvalho,
geada)
5 Montanhas (picos, colinas, pontes pênseis,
cachoeiras)
6 Água (oceano, enseadas, ondas, peixes)
7 Animais (insetos, peixes, pássaros, bichos)
8 Plantas (gramíneas, árvores, bambus)
9 Relações humanas (amizades, subordinados)
10 Xintoísmo (santuários, peregrinações nas
montanhas)
11 Budismo (templos, monges, a flor de lótus)

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12 Amor (homem e mulher, esposo e esposa,
quimono de baixo)
13 Lembranças (o passado, a velhice, cabelo branco)
14 Viagens (barco ancorado, cruzar montanhas)
15 Lugares famosos (mar de Ise, monte Otowa,
aldeia de Katsura)
16 Moradas (aldeias, cabanas, sudare)
17 Vestimentas (quimono de baixo, coisas que se
põe na cabeça)
18 Impermanência (o cemitério de Torinobe, a
jornada final)

(KONISHI, 1975, p. 40–41; minha adaptação)

A semelhança do rol acima com as categorias e listas do


Livro de travesseiro, de Sei Shônagon, não é fortuita: o poema
encadeado é um dos muitos exemplos na história das artes
japonesas de um novo gênero que é criado tendo por referência
o cânone de uma época anterior, considerado como objeto de
estudo e de culto. Outra referência muito óbvia na enumeração
acima são os topoi consagrados em antologias poéticas, como o
Kokin’wakashû (século X) e o Shinkokin’wakashû (século XIII),
que obedecem a uma divisão em livros de acordo com as estações
do ano (incluindo plantas, animais, fenômenos meteorológicos,
etc.) e as relações humanas (amores, adeuses, viagens, etc.).
No século XV, essa cristalização estética começava a ser
acessível a outras classes que não a dos nobres (dos três autores
de Minase, apenas Shôhaku vinha de linhagem aristocrática —
Sôgi era de origem samurai e Sôchô era filho de ferreiro). Isso se
deve ao fato de que as guerras e disputas feudais que assolaram
o Japão durante o século XV aceleraram a fragmentação do
poder da Corte Imperial e dispersaram os artistas e artesãos que
viviam na capital por todo o território japonês. Sôgi, que durante
a maior parte de sua carreira não teve assegurada nenhuma
sinecura do governo, sustentava-se dando aulas de composição
poética a líderes militares que desejavam “adquirir alguma
cultura”. Naquela época, como hoje, essa “cultura” almejada pelas

17
classes ascendentes significava “cultura tradicional de elite”. No
caso do século XV japonês, o prestígio social era associado à
tradição aristocrática.
O encadeamento das estrofes obedece a uma série de regras
minuciosas, chamadas de shikimoku. Cada estrofe deve ter
alguma forma de ligação com a anterior. No entanto, essa mesma
estrofe não pode repetir ideias ou palavras da estrofe que veio
antes da anterior. Isso significa que, para cada estrofe de um
dado poema, há uma interpretação possível se a associarmos
à estrofe precedente, e uma outra interpretação, se ela for lida
junto com a estrofe seguinte. Assim, por exemplo:

Três poetas em Minase, poemas 19–21

outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro
Sôgi
soprando sobre as eulálias
interrompe sonhos o maldito vento
Shôhaku
tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos
Sôchô

No caso de lermos as estrofes 19 e 20 juntas, temos:

outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro
soprando sobre as eulálias
interrompe sonhos o maldito vento

Lidas assim, as duas estrofes fazem referência ao tema da


mulher que atravessa a noite à espera de seu amante que não
vem. A ideia de passar a noite em claro, proposta por Sôgi, tem
uma associação convencional com a palavra uramuru (“odiar, ter

18
ressentimento”), usada por Shôhaku em sua estrofe. Mas, se
juntarmos as estrofes 20 e 21, a interpretação é diferente:

soprando sobre as eulálias


interrompe sonhos o maldito vento
tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos

Do tema da mulher que atravessa a noite à espera de seu


amante, passamos à solidão de um homem idoso que sonha com
seus amigos de infância, mas tem seu sono interrompido pelo
som do vento. Assim, alternando imagens, o poema encadeado
precisa funcionar como microestrutura, tanto na relação de
cada estrofe com as suas adjacentes, como no contraste de
cada estrofe com o que veio antes da estrofe anterior e depois
da seguinte. No plano macro, essas transições temáticas dão
textura ao poema como um todo, criando um equilíbrio entre
repetição e variação, como na música.
Outra característica macroestrutural que aproxima o
poema encadeado da música é o jo-ha-kyû, princípio rítmico da
música e de outras artes da performance, segundo o qual uma
apresentação se caracteriza por uma sequência de três ritmos
— ou velocidades — diferentes: a primeira parte do espetáculo
(jo) é lenta; a segunda parte é cada vez mais rápida (ha); e o final é
em ritmo acelerado (kyû), terminando bruscamente. No renga de
cem estrofes, o jo corresponde às oito primeiras; as 84 seguintes
são o ha; e as últimas oito são o kyû.
O encadeamento de ideias também é limitado por regras
macrotextuais. Se uma estrofe associa o vento com a neve de
primavera, por exemplo, esses dois temas não podem mais
aparecer juntos em outras estrofes do mesmo poema. Dragões
e demônios só podem aparecer uma vez por poema; jardins e
gansos, duas; a lua de primavera, três; a neve, quatro; e assim
por diante. Há regras sobre quantas estrofes é necessário

19
esperar para mencionar de novo um tópico: assim, a lua só pode
reaparecer após três estrofes sem lua. Por fim, alguns grandes
temas, quando surgem, só podem ser abandonados após certo
número de estrofes — se um poeta fala do outono, por exemplo,
os seguintes só mudam de assunto após um mínimo de três e
um máximo de cinco estrofes (cf. STILERMAN, 2016; KONISHI,
1975, para diversos outros exemplos de regras e proibições).

O HAICAI COMO HERDEIRO DO RENGA

Na Antiguidade, havia duas formas principais de waka: chôka


ou nagauta (“poemas longos”) e tanka (“poemas curtos”). Os chôka
são formados por versos alternados de cinco e sete sílabas sem
um limite fixo, finalizando com um dístico de 7-7; já os tanka
são arranjados da seguinte forma: cinco versos de 5-7-5-7-7
sílabas (ou “moras”, como seria a correta designação técnica). A
ausência de rima nos poemas japoneses se deve à simplicidade
de suas sílabas (em geral, compostas apenas por uma consoante
e uma vogal).
Antes de ser uma forma independente, o haicai, gênero
poético japonês mais conhecido no Brasil e no mundo, era o hokku,
a parte inicial de um renga. Na Idade Média japonesa (séculos
XII a XVII), a palavra haikai passa a ser usada na expressão
haikai no renga, para designar um poema de conteúdo cômico2.
Na Era Edo (séculos XVII a XIX), o haikai viria a se separar do
renga “sério”, evoluindo para um gênero independente.
No século XVII, Matsunaga Teitoku (1571–1654) fundou
a escola Teimon, que estabelecia regras de composição e de
apreciação do haikai no renga. Inicialmente sob a liderança de
Teitoku, o haikai se torna moda por todo o país — e quem sustenta
o fenômeno são os poetas de renga. O haikai da escola Teitoku é
2
No Brasil, o texto definitivo de introdução à história do haicai continua
sendo Haikai: antologia e história, de Elza Doi e Paulo Franchetti
(Campinas: UNICAMP, 2012).

20
caracterizado pela comicidade e vulgaridade, com o emprego de
gíria e kango (palavras de origem chinesa, que a poesia clássica
deveria evitar), distanciando-se, assim, das concepções estéticas
do waka, embora mantendo muitos elementos da técnica de
composição da poesia mais séria. Os versos de Teitoku ainda
são de caráter humorístico.
Não satisfeito com o estilo de Teitoku, um grupo liderado
pelo poeta de renga Nishiyama Sôin (1605–1682), de Ôsaka, cria
uma escola chamada Danrin, que se caracteriza pelos haikai
experimentais, livres e inovadores. Enquanto a escola Teimon
ainda preserva em grande medida a elegância da poesia clássica,
a escola Danrin se dedica radicalmente ao jogo de palavras e,
com isso, pela primeira vez o haikai se torna livre da concepção
estética do waka mais ortodoxo.
O hokku, a primeira estrofe do haikai no renga, tinha três versos
de 5-7-5 sílabas e se tornou, com o tempo, uma parte à qual se dava
especial importância, quase independente do resto do poema.
Foi com o poeta Matsuo Bashô que o haikai adquiriu o status de
verdadeira forma artística. Bashô (1644–1694) desenvolveu um
novo estilo, no fim do século XVII, que transcendia a dicotomia
entre o sério e o cômico, adotando uma postura humanista
e buscando uma dimensão espiritual para compreender a
realidade — tudo isso, dentro do limitado espaço do hokku. Seu
estilo, que no início se aproximava ao da poesia chinesa, estava
em constante desenvolvimento. O legado do poeta no contexto
da literatura japonesa é imenso, e suas múltiplas facetas tiveram
diferente apelo para cada uma das gerações posteriores. Sendo
um homem que associava seriedade artística com disciplina
espiritual, Matsuo Bashô estabeleceu um padrão de excelência
para a composição curta que foi seguido pelos grandes mestres
que vieram depois dele.
No final da Era Edo, poemas de três versos de 5-7-5 sílabas
já eram compostos independentemente do haikai no renga.
Grandes poetas, como Yosa Buson (1716–1784) e Kobayashi Issa

21
(1763–1828) compunham poemas de três versos a que não se
seguia uma série de versos encadeados. O estilo do haikai dito
clássico já estava consolidado nesse estágio. Para ser considerado
um haikai, o hokku deve ter três versos de 5-7-5 sílabas (ainda
que a irregularidade métrica ocorra de forma esporádica — e,
muitas vezes, intencional). Ele deve fazer alusão a uma estação
do ano, geralmente por meio de um kigo (“palavra da estação”).
Os kigo dependem de convenções estabelecidas anteriormente
e são uma porta de comunicação com a natureza e com textos
anteriores, em que a palavra já foi utilizada (ou seja, são uma
forma regulada de intertextualidade). Muitas vezes, o hokku tem
um kireji (“letra de corte”) ou elemento gramatical que expressa
corte — no tempo, no espaço, na enunciação, na percepção, ou
em combinações dessas categorias.
É a partir do fim do século XIX que o hokku, isolado do
haikai no renga, torna-se objeto de estudo e ganha importância
enquanto forma literária. O poeta Masaoka Shiki3 decide mesmo
criar um novo nome para a forma poética: haiku, uma fusão da
primeira sílaba de haikai e da segunda sílaba de hokku. Seria um
erro considerarmos que o haiku, na concepção de Shiki, seja um
sinônimo de haikai, ainda que ele tenha suas raízes nesse estilo
poético. O haikai tem uma orientação e dinâmica voltadas para
o coletivo — é uma arte poética comunitária que busca resgatar
e enaltecer as tradições japonesas com o objetivo de aprimorar o
espírito de colaboração, modéstia e delicadeza. O haiku, por sua
vez, é uma arte individual, solitária. Sendo assim, as regras de
elaboração do haiku são diferentes das do haikai no renga.
No Brasil, a percebida concisão sem retórica do haicai
japonês foi o traço que os modernistas adotaram como ideal.
No entanto, muitos estudiosos da história clássica do haicai —
como, por exemplo, Shirane Haruo — afirmam que essa não é a
3
Para uma seleção dos haicais de Masaoka Shiki em tradução, cf. CUNHA,
Andrei; SCHMITT-PRYM, Roberto. SHIKI, inventor do haicai moderno.
Porto Alegre: Bestiário / Class, 2021.

22
principal característica da obra de Bashô e de outros haicaístas
japoneses pré-modernos, que davam mais importância à
justaposição de imagens e a uma elaborada “retórica do
silêncio”. Graças aos estudos de Paulo Franchetti, sabemos que a
obra poética mais importante no contexto da recepção inicial do
haicai no Brasil foi Les Haïkaï (1916), do orientalista francês Paul-
Louis Couchoud. Mesmo o vocábulo adotado aqui para designar
a forma poética vem do título dessa obra hoje esquecida: na
França contemporânea, o haicai se chama haiku.
Dentre os modernistas brasileiros, dois autores já
demonstravam uma intimidade maior com o haicai: Guilherme
de Almeida publica em 1937 uma antologia de composições
próprias, e Manuel Bandeira realiza algumas traduções de Bashô
que têm seu lugar garantido na história da poesia traduzida do
japonês para o português.
O segundo momento da recepção do haicai no Brasil, com os
concretistas, ainda que caracterizado por um aprofundamento
da reflexão sobre o que é um haicai — como gênero textual,
como objeto visual, como poética, como filosofia — também
dependeu de desleituras da metrópole. Dessa vez, em vez de
franceses hoje obscuros, foram os americanos, nas figuras de
Ernest Fenollosa e de Ezra Pound, que serviram de mediadores.
Autores como Haroldo de Campos concebem o haicai de forma
consideravelmente mais sofisticada do que os primeiros
modernistas. No entanto, o ideal de concisão é mais uma
vez enfatizado, agora a partir de uma visão “ideogramática”
da poesia. Essa interpretação da poética japonesa faz todo o
sentido, quando vista como um instrumento de legitimação do
movimento concretista, que buscava uma estética totalizante e
sintética, unindo o visual, o sonoro e o textual.
No entanto, essa não é a única maneira de se contar essa
história. Quatorze anos antes da Semana de Arte Moderna, o
haicai já havia sido trazido ao Brasil pelos imigrantes japoneses.
Do Kasato Maru, o primeiro navio japonês a trazer imigrantes

23
ao porto de Santos, em 1908, desembarcou Uetsuka Shuhei
(1876–1935), que teria escrito (a história pode ser apócrifa) o
primeiro haicai feito em terras brasileiras. Subsequentemente,
o Brasil recebeu Nempuku Sato (1898–1979), que trouxe consigo
os princípios da escola de Masaoka Shiki. Masuda Goga, o maior
haicaísta brasileiro, foi discípulo de Sato. Teruko Oda, a maior
haicaísta brasileira viva, foi discípula de Goga. É a partir das
tradições trazidas do Japão por essa linhagem de poetas que
uma nova vertente de autores de haicai floresce atualmente no
Brasil. No início, esses grupos eram compostos por imigrantes
e descendentes de japoneses. Hoje em dia, no entanto, os
clubes e agremiações de haicai acolhem todo tipo de sócio, e a
produção poética se dá tanto em japonês como em português.
Ao contrário da idealização operada pelos mediadores de língua
francesa e inglesa, que encontramos nas teorias adotadas pelos
poetas brasileiros modernistas e concretistas, esses grupos
desenvolveram um fazer poético em língua portuguesa do
Brasil, que se apropria de maneira mais direta das práticas
dos haicaístas do Japão. Não é à toa que foi essa vertente, mais
“humilde” e menos “intelectualizada” do haicai, que se esforçou
em criar mesmo um repertório de palavras sazonais relacionadas
à geografia brasileira. E não podemos esquecer que a estética
contemporânea do haicai valoriza o “humilde”, o terreno, o
quotidiano, e despreza as idealizações intelectualizantes,
os conceitos esforçadamente sofisticados, as generalizações
metafísicas. Essas ênfases redirecionadas refletem escolhas que
Masaoka Shiki fez para a sua concepção de poesia, em oposição
às tradições mantidas pelos discípulos de Bashô.

ESPECIFICIDADE DO POEMA ENCADEADO

O poema encadeado não é lido como um todo único, coeso,


cujas partes somadas e racionalizadas produzem um sentido
integrado ou cumulativo. Trata-se de um texto — para usarmos

24
termos do imaginário regional europeu — dialético e polifônico.
As estrofes estão em constante diálogo com o que vem antes e
depois delas; no entanto, esse diálogo, pelas regras mesmas
do jogo poético, só se mantém com as partes adjacentes,
desfazendo-se e recomeçando a cada novo encadeamento,
combinando o som de inúmeras vozes, personagens, situações,
atitudes, elementos da natureza, etc., que se materializam pela
duração de cinco versos e logo em seguida dão lugar à próxima
combinação semântica. A unidade não é obtida por coesão
temática, narrativa ou lógica, e sim pela textura da sequência,
com repetições curtas e longas, imagens que aparecem e somem,
saltos de sentido, descontinuidades temporais.
Mesmo formando um poema de cinco versos com a estrofe
que vem antes e outro com a que vem depois, cada “elo” da cadeia
deve, também, poder ser lido como uma peça com diferentes
sentidos em potencial, a depender de como for recombinada
— um sentido que é sempre relacional, provisório, parcial,
efêmero. Na Idade Média, as “unidades estróficas” do poema
encadeado eram apreciadas em mais de um nível: como unidades
autônomas; como unidades em diálogo com as suas adjacentes;
como elemento surpresa com relação à estrofe antecedente; e
como uma figura dentro de uma padronagem de maior escala.
Duzentos anos depois, no tempo de Bashô, essas estrofes ainda
eram compostas em termos dialéticos, como um amálgama de
leituras (com ou sem contexto) dos mesmos versos, que podiam
ser “carregados” de um encontro de poetas a outro, mas que
adquiriam novos sentidos e produziam novas consequências
cada vez que eram retomados — à semelhança de um lance de
um jogador a outro, em um esporte de equipe; ou de um passo
de dança — igual, mas diferente — em duas coreografias.
A modernidade rejeitou o caráter comunitário e relacional
do verso encadeado, e passou a ler os grandes haicaístas como
autores individuais de estrofes autônomas; ora, essa é apenas
uma dentre as muitas leituras possíveis de uma estrofe de

25
poesia encadeada. Foi a modalidade de leitura mais readymade,
que valoriza o ladrilho e não vê o mosaico, que se espalhou
pelo mundo. Há exceções: um exemplo famoso é o “Renga” que
Octavio Paz compôs no início dos anos 1970, em parceria com
Jacques Roubaud, Edoardo Sanguineti e Charles Tomlinson. No
entanto, para se tornar atraente para uma grande quantidade
de leitores em diferentes espaços, épocas e culturas, o poema
encadeado teve de se desfazer de quase todo o seu passado e
contexto. Esperamos trazer, com nossa tradução encadeada
de uma sequência célebre, um novo elemento ao imaginário
brasileiro relacionado ao haicai e às suas origens.

26
Três poetas
em Minase
水無瀬三吟百韻
Sôgi, Shôhaku, Sôchô




NANIBITO WO FUSURU RENGA







廿

Composto no dia 22
do primeiro mês do ano dois
do Período Chôkyô,
no reino de Sua Majestade
o Imperador Gotsuchimikado.

— 1488 —
初表 序
F R E N T E DA P R I M E I R A FO L H A

1

PRIMAVERA

mesmo com neve


há névoa no sopé
dos montes na noite

SÔGI
宗祇

雪ながら山もとかすむ夕べかな
yuki nagara / yamamoto kasumu / yûbe kana 
29
1-2

mesmo com neve


há névoa no sopé
dos montes na noite
as águas correm ao longe
o vilarejo rescende a ameixeiras

No fim da primavera, ainda há neve nas montanhas. A névoa é um


prenúncio da estação das flores. As ameixeiras são as primeiras árvores
que florescem, ainda no fim do inverno.

30
2

PRIMAVERA

as águas correm ao longe


o vilarejo rescende a ameixeiras

SHÔHAKU
肖柏

行く水遠く梅にほふ里
yuku mizu tôku / ume niou sato

31
2-3

as águas correm ao longe


o vilarejo rescende a ameixeiras
o vento sobre o rio
sopra através dos salgueiros —
início de primavera

32
3

PRIMAVERA

o vento sobre o rio


sopra através dos salgueiros —
início de primavera

SÔCHÔ
宗長

河風に一むら柳春見えて
kawakaze ni / hitomura yanagi / haru miete

33
3-4

o vento sobre o rio


sopra através dos salgueiros —
início de primavera
o som da vara que empurra
o barco na clara aurora

34
4

MISCELÂNEA

o som da vara que empurra


o barco na clara aurora

SÔGI
宗祇

舟さす音もしるき明けがた
fune sasu oto mo / shiruki akegata

35
4-5

o som da vara que empurra


o barco na clara aurora
a lua ainda
segue noite adentro
através da bruma?

Não é possível saber se ainda é noite ou se já amanheceu, devido à


densa bruma.

36
5

OUTONO


LUA

a lua ainda
segue noite adentro
através da bruma?

SHÔHAKU
肖柏

月や猶霧わたる夜に残るらん
tsuki ya nao / kiri wataru yo ni / nokoruran

37
5-6

a lua ainda
segue noite adentro
através da bruma?
nos campos cobertos de geada
o outono chega ao seu fim

A lua escondida na neblina torna-se um símbolo do outono (mudança


de estação).

38
6

OUTONO

nos campos cobertos de geada


o outono chega ao seu fim

SÔCHÔ
宗長

霜おく野原秋は暮れけり
shimo oku nohara / aki wa kurekeri

39
6-7

nos campos cobertos de geada


o outono chega ao seu fim
sem pensar em nada
cantam os grilos e os besouros
no seco capim

Kokoro to mo naku, “sem coração”, “sem preocupações”; ou, ainda,


pela interpretação budista, “desprendido das coisas terrenas”. Os grilos
e besouros do outono continuam a cantar, ignorantes do fato de que
em breve chegará o inverno.

40
7

OUTONO

sem pensar em nada


cantam os grilos e os besouros
no seco capim

SÔGI
宗祇

鳴く虫の心ともなく草かれて
naku mushi no / kokoro to mo naku / kusa karete

41
7-8

sem pensar em nada


cantam os grilos e os besouros
no seco capim
além da cerca das casas
vê-se a nudez do caminho

O caminho está despido de vegetação, pois a relva está seca.

42
8

MISCELÂNEA

além da cerca das casas


vê-se a nudez do caminho

SHÔHAKU
肖柏

垣根をとへばあらはなる路
kakine wo toeba / arawanaru michi

F I M DA F R E N T E DA P R I M E I R A FO L H A

43
8-9

além da cerca das casas


vê-se a nudez do caminho
no abismo dos montes
o vilarejo está envolto
pelas tempestades

44
初裏 破
V E R S O DA P R I M E I R A FO L H A

9

MISCELÂNEA

no abismo dos montes


o vilarejo está envolto
pelas tempestades

SÔCHÔ
宗長

山ふかき里や嵐におくるらん
yama fukaki / sato ya arashi ni / okururan
45
9-10

no abismo dos montes


o vilarejo está envolto
pelas tempestades
nunca pensei que fosse
tão triste a solidão

46
10

MISCELÂNEA

nunca pensei que fosse


tão triste a solidão

SÔGI
宗祇

なれぬすまゐぞさびしさもうき
narenu sumai zo / sabishisa mo uki

47
10-11

nunca pensei que fosse


tão triste a solidão
não é hora
de se lamentar
por estar só

48
11


LAMENTO

não é hora
de se lamentar
por estar só

SHÔHAKU
肖柏

今更にひとりある身を思ふなよ
ima sara ni / hitori aru mi wo / omou na yo

49
11-12

não é hora
de se lamentar
por estar só
pois você não sabia
que tudo sempre se altera?

50
12


LAMENTO

pois você não sabia


que tudo sempre se altera?

SÔCHÔ
宗長

うつろはんとはかねて知らずや
utsurowan to wa / kanete shirazu ya

51
12-13

pois você não sabia


que tudo sempre se altera?
que lindo de ver
o orvalho que treme na flor
que triste de ver

O honka (inspiração, intertexto) das estrofes acima é o seguinte waka,


de autoria de Ono no Komachi (Kokin’wakashû 2 Primavera 113):

a flor da cerejeira
perdeu sua cor em
vão minha juventude
passou enquanto eu
distraída olhava a chuva

52
13

PRIMAVERA

que lindo de ver


o orvalho que treme na flor
que triste de ver

SÔGI
宗祇

置きわぶる露こそ花にあはれなれ
okiwaburu / tsuyu koso hana ni / aware nare

53
13-14

que lindo de ver


o orvalho que treme na flor
que triste de ver
os últimos raios de sol
perdem-se na névoa

54
14

PRIMAVERA

os últimos raios de sol


perdem-se na névoa

SHÔHAKU
肖柏

まだ残る日のうちかすむ影
mada nokoru hi no / uchikasumu kage

55
14-15

os últimos raios de sol


perdem-se na névoa
está anoitecendo —
a gritaria dos pássaros
na volta à casa

56
15

PRIMAVERA

está anoitecendo —
a gritaria dos pássaros
na volta à casa

SÔCHÔ
宗長

暮れぬとや鳴きつつ鳥の帰るらん
kurenu to ya / nakitsutsu tori no / kaeruran

57
15-16

está anoitecendo —
a gritaria dos pássaros
na volta à casa
no alto da serra
não há céu que nos guie

No meio do mato, no alto da serra, não se enxerga o céu. O viajante


precisa se guiar pelo canto dos pássaros.

58
16

VIAGEM

no alto da serra
não há céu que nos guie

SÔGI
宗祇

み山をゆけば分く空もなし
miyama wo yukeba / waku sora mo nashi

59
16-17

no alto da serra
não há céu que nos guie
quando a chuva para
gotas ainda caem frias
nas mangas do viajante

Na literatura clássica, as mangas molhadas são uma metáfora fixa do


choro.

60
17

OUTONO


VIAGEM

quando a chuva para


gotas ainda caem frias
nas mangas do viajante

SHÔHAKU
肖柏

晴るるまも袖はしぐれの旅衣
haruru ma mo / sode wa shigure no / tabigoromo

61
17-18

quando a chuva para


gotas ainda caem frias
nas mangas do viajante
a relva por travesseiro
olho a lua que parece pálida

“A relva por travesseiro” (kusamakura) é uma metáfora fixa da


viagem. As viagens eram feitas a pé e o viajante muitas vezes era
obrigado a dormir ao relento.

62
18

OUTONO


VIAGEM


LUA

a relva por travesseiro


olho a lua que parece pálida

SÔCHÔ
宗長

わが草枕月ややつさむ
waga kusamakura / tsuki ya yatsusan

63
18-19

a relva por travesseiro


olho a lua que parece pálida
outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro

As noites em claro se referem ao sofrimento amoroso.

64
19

OUTONO


AMOR

outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro

SÔGI
宗祇

いたづらにあかす夜おほく秋更て
itazura ni / akasu yo ôku / aki fukete

65
19-20

outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro
soprando sobre as eulálias
interrompe sonhos o maldito vento

O vento acorda a mulher que estava sonhando com o amado.

66
20

OUTONO


AMOR

soprando sobre as eulálias


interrompe sonhos o maldito vento

SHÔHAKU
肖柏

夢にうらむる荻の上風
yume ni uramuru / ogi no uwakaze

67
20-21

soprando sobre as eulálias


interrompe sonhos o maldito vento
tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos

68
21


LAMENTO

tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos

SÔCHÔ
宗長

見しはみな故郷人の跡もなし
mishi wa mina / furusatobito no / ato mo nashi

69
21-22

tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos
na jornada da velhice perdi
meus laços com o mundo

70
22


LAMENTO

na jornada da velhice perdi


meus laços com o mundo

SÔGI
宗祇

老のゆくへよ何にかからむ
oi no yukue yo / nani ni kakaran

F I M DA P R I M E I R A FO L H A

71
22-23

na jornada da velhice perdi


meus laços com o mundo
como consolo
restam estes versos
palavras sem cor

“Palavras sem cor” (iro mo naki koto no ha) faz alusão tanto à
literatura quanto às folhas das plantas — que perdem a cor no
inverno. Também encontramos um eco da abertura do “Prefácio em
hiragana” de Ki no Tsurayuki (séc. X): “A poesia japonesa brota do
coração humano, que é a sua semente, e suas folhas crescem como dez
mil palavras”.

72
二表
F R E N T E DA S E G U N DA FO L H A

23


LAMENTO

como consolo
restam estes versos
palavras sem cor

SHÔHAKU
肖柏

色もなきことの葉をだに哀しれ
iro mo naki / koto no ha wo dani / aware shire

73
23-24

como consolo
restam estes versos
palavras sem cor
e o velho amigo de sempre
o céu do entardecer

74
24

MISCELÂNEA

e o velho amigo de sempre


o céu do entardecer

SÔGI
宗祇

それも友なる夕暮の空
sore mo tomo naru / yûgure no sora

75
24-25

e o velho amigo de sempre


o céu do entardecer
cruzando a montanha
nuvens tomam o lugar
das flores caídas

Na poesia tradicional japonesa, é comum o uso do mitate (“ilusão de


ótica” ou “confusão elegante”), que consiste em tomar uma coisa por
outra. Assim, por exemplo, no seguinte poema de Ki no Tsurayuki
(Kokin’wakashû 2 Primavera 89):

flores da cerejeira
que o vento despetala
memórias flutuam
no céu sem água
cheio de vagas

76
25

PRIMAVERA


FLOR

cruzando a montanha
nuvens tomam o lugar
das flores caídas

SÔCHÔ
宗長

雲にけふ花ちりはつる嶺こえて
kumo ni kyô / hana chirihatsuru / mine koete

77
25-26

cruzando a montanha
nuvens tomam o lugar
das flores caídas
é hora! os gansos selvagens
despedem-se da primavera

Os gansos selvagens “voltam para a casa” (ou seja, vão-se embora)


quando chega a primavera. O honka da estrofe 26 é o seguinte poema
de Fujiwara no Yoshitsune (Shinkokin’wakashû 1 Primavera 62):

céu afora os gansos selvagens


na aurora voltam à casa
quando chega a hora
sem pesares vão-se embora
deixam sós a lua e as flores

78
26

PRIMAVERA

é hora! os gansos selvagens


despedem-se da primavera

SHÔHAKU
肖柏

きけばいまはの春のかりがね
kikeba imawa no / haru no karigane

79
26-27

é hora! os gansos selvagens


despedem-se da primavera
espere! vamos olhar
a lua a vagar no céu
mais um pouquinho

80
27

PRIMAVERA


LUA

espere! vamos olhar


a lua a vagar no céu
mais um pouquinho

SÔGI
宗祇

おぼろげの月かは人もまてしばし
oboroge no / tsuki ka wa hito mo / mate shibashi

81
27-28

espere! vamos olhar


a lua a vagar no céu
mais um pouquinho
cochilando sob o orvalho
ao amanhecer de outono

82
28

OUTONO


VIAGEM

cochilando sob o orvalho


ao amanhecer de outono

SÔCHÔ
宗長

かりねの露の秋の明ぼの
karine no tsuyu no / aki no akebono

83
28-29

cochilando sob o orvalho


ao amanhecer de outono
à borda do prado
um vilarejo distante
cobre-se de neblina

84
29

OUTONO

à borda do prado
um vilarejo distante
cobre-se de neblina

SHÔHAKU
肖柏

末野なる里ははるかに霧立ちて
sueno naru / sato wa haruka ni / kiri tachite
85
29-30

à borda do prado
um vilarejo distante
cobre-se de neblina
o vento que vem traz o som
do bater das pisoeiras

O trabalho de pisoar consistia em bater o pano molhado com um bastão


de madeira. Isso dava brilho e firmeza aos tecidos mais encorpados.
Em poesia, o som das pisoeiras trabalhando está associado à vida no
campo e às noites melancólicas.

86
30

OUTONO

o vento que vem traz o som


do bater das pisoeiras

SÔGI
宗祇

吹きくる風は衣うつ声
fukikuru kaze wa / koromo utsu koe

87
30-31

o vento que vem traz o som


do bater das pisoeiras
mesmo em dias frios
visto apenas roupas leves —
anoitece agora

O som do bater das pisoeiras contrasta com a pobreza do poeta, cujas


roupas leves são insuficientes para o frio do inverno.

88
31

INVERNO

mesmo em dias frios


visto apenas roupas leves —
anoitece agora

SÔCHÔ
宗長

冴ゆる日も身は袖うすき暮ごとに
sayuru hi mo / mi wa sode usuki / kuregoto ni
89
31-32

mesmo em dias frios


visto apenas roupas leves —
anoitece agora
meu precário sustento
vem da lenha dos montes

90
32


LAMENTO

meu precário sustento


vem da lenha dos montes

SHÔHAKU
肖柏

たのむもはかな爪木とる山
tanomu mo hakana / tsumagi toru yama

91
32-33

meu precário sustento


vem da lenha dos montes
meus amigos já se foram
nesta estrada da vida
já avisto a chegada

A chegada da estrada da vida é a morte.

92
33


LAMENTO

meus amigos já se foram


nesta estrada da vida
já avisto a chegada

SÔGI
宗祇

さりとものこの世の道はつきはてて
saritomo no / kono yo no michi wa / tsukihatete 
93
33-34

meus amigos já se foram


nesta estrada da vida
já avisto a chegada
tristeza em meu coração —
sem lugar para onde ir

94
34


LAMENTO

tristeza em meu coração —


sem lugar para onde ir

SÔCHÔ
宗長

心細しやいづちゆかまし
kokorobososhi ya / izuchi yukamashi

95
34-35

tristeza em meu coração —


sem lugar para onde ir
desde a manhã de
nosso adeus espero só
que esta vida acabe

96
35

AMOR

desde a manhã de
nosso adeus espero só
que esta vida acabe

SHÔHAKU
肖柏

命のみ待つことにするきぬぎぬに
inochi nomi / matsu koto ni suru / kinuginu ni
97
35-36

desde a manhã de
nosso adeus espero só
que esta vida acabe
o que será que me faz
sentir renascer a paixão?

98
36

AMOR

o que será que me faz


sentir renascer a paixão?

SÔGI
宗祇

猶なになれや人の恋しき
nao nani nare ya / hito no koishiki

F I M DA F R E N T E DA S E G U N DA FO L H A

99
36-37

o que será que me faz


sentir renascer a paixão?
você minha amada
com tanto zelo por mim —
de nada mais preciso

100
二裏
V E R S O DA S E G U N DA FO L H A

37

AMOR

você minha amada


com tanto zelo por mim —
de nada mais preciso

SÔCHÔ
宗長

君を置きてあかずも誰を思ふらん
kimi wo okite / akazu mo tare wo / omouran
101
37-38

você minha amada


com tanto zelo por mim —
de nada mais preciso
ante sua visão
o que resiste?

102
38

AMOR

ante sua visão


o que resiste?

SHÔHAKU
肖柏

その俤に似たるだになし
sono omokage ni / nitaru dani nashi

103
38-39

ante sua visão


o que resiste?
a relva e mesmo as árvores
choram de saudades
da velha capital

A estrofe 39 muda o significado da estrofe 38, que agora não se refere


mais à mulher amada, e sim à “velha capital”.

104
39


LAMENTO

a relva e mesmo as árvores


choram de saudades
da velha capital

SÔGI
宗祇

草木さへふるき都の恨にて
kusaki sae / furuki miyako no / urami nite
105
39-40

a relva e mesmo as árvores


choram de saudades
da velha capital
até na casa em que sofri
as memórias do passado

106
40


LAMENTO

até na casa em que sofri


as memórias do passado

SÔCHÔ
宗長

身のうき宿も名残りこそあれ
mi no uki yado mo / nagori koso are

107
40-41

até na casa em que sofri


as memórias do passado
a lembrança ainda
vívida da mãe querida
me reconforta

108
41


LAMENTO

a lembrança ainda
vívida da mãe querida
me reconforta

SHÔHAKU
肖柏

たらちねの遠からぬ跡になぐさめよ
tarachine no / tôkaranu ato ni / nagusame yo

109
41-42

a lembrança ainda
vívida da mãe querida
me reconforta
passam-se os sóis e as luas
na velocidade do sonho

A estrofe 42 alude a uma metáfora de inspiração budista: a vida


humana é fugaz como um sonho — ou ainda, a nossa vida é uma mera
ilusão.

110
42

MISCELÂNEA

passam-se os sóis e as luas


na velocidade do sonho

SÔGI
宗祇

月日のすゑや夢にめぐらん
tsukihi no sue ya / yume ni meguran

111
42-43

passam-se os sóis e as luas


na velocidade do sonho
parado no porto —
última escala do barco
rumo à distante China

“Sóis e luas” são os dias e os meses ou, por extensão, o tempo. O “barco
que vai à China” é uma imagem comum na poesia clássica, pois muitos
monges e homens sábios japoneses eram enviados ao continente como
estudantes. A cultura chinesa era a cultura central e de elite, tanto para
a poesia como para outras áreas, como a jurídica, filosófica, religiosa,
administrativa, etc. Para um japonês da era clássica, compreender
textos chineses equivaleria, mais ou menos, a saber latim na Europa
pré-moderna.

112
43

VIAGEM

parado no porto —
última escala do barco
rumo à distante China

SÔCHÔ
宗長

この岸をもろこし舟のかぎりにて
kono kishi wo / morokoshibune no / kagiri nite
113
43-44
parado no porto —
última escala do barco
rumo à distante China
ah! quero um rito que me liberte
deste ciclo de reencarnações
Há um famoso poema de Abe no Nakamaro sobre esse mesmo tópico
(Kokin’wakashû 9 Viagens 406, “Ao contemplar a lua da China”):

Conta-se que há muitos séculos Nakamaro foi enviado à China


pelo imperador para realizar seus estudos. Depois de muitos
anos sem poder regressar, permitiram que ele embarcasse em
um navio de embaixada de volta ao Japão. No porto de Ming,
de onde partiria a embarcação, os chineses fizeram uma festa
de despedida em sua homenagem. O poema foi composto ao
anoitecer, quando Nakamaro viu a lua surgir:

vasto firmamento
olhando ao longe
revejo o Japão
por detrás daquela serra
a mesma lua

O navio em que Nakamaro tentou voltar à terra natal naufragou e


ele retornou à China, onde morreu septuagenário, sem nunca rever o
Japão.

114
44


BUDISMO

ah! quero um rito que me liberte


deste ciclo de reencarnações

SHÔHAKU
肖柏

又生れこぬ法を聴かばや
mata umarekonu / hô wo kikaba ya

115
44-45

ah! quero um rito que me liberte


deste ciclo de reencarnações
até nos vermos de novo
meu desvelo como o orvalho
vem e evapora e volta

A vida humana é breve como o orvalho que desaparece sem deixar traço
sob os raios do sol da manhã. Pelos ensinamentos budistas, as pessoas
estão “presas em um ciclo de reencarnações” enquanto não atingem
a iluminação espiritual. Esse ciclo de mortes e renascimentos é visto
como uma punição. A única maneira de se escapar dessa repetição de
erros é se desprendendo das coisas do mundo.

116
45

OUTONO


AMOR

até nos vermos de novo


meu desvelo como o orvalho
vem e evapora e volta

SÔGI
宗祇

逢までと思の露のきえかへり
au made to / omoi no tsuyu no / kiekaeri 

117
45-46

até nos vermos de novo


meu desvelo como o orvalho
vem e evapora e volta
na fria brisa de outono
ainda espero por alguém

118
46

OUTONO


AMOR

na fria brisa de outono


ainda espero por alguém

SÔCHÔ
宗長

身をあき風も人だのめなり
mi wo akikaze mo / hitodanome nari

119
46-47

na fria brisa de outono


ainda espero por alguém
esperanças cantam
em meio às artemísias
um canto vão

Em japonês, o canto é do matsumushi, o “bichinho do pinheiro” — um


inseto que cricrila. Matsu significa “pinheiro”, mas também “esperar”
— neste caso, por alguém que não vem.

120
47

AMOR

esperanças cantam
em meio às artemísias
um canto vão

SHÔHAKU
肖柏

松虫のなく音かひなき蓬生に
matsumushi no / naku ne kai naki / yomogiu ni

121
47-48

esperanças cantam
em meio às artemísias
um canto vão
as cordas votivas demarcam
a montanha onde só mora a lua

122
48

OUTONO


LUA

as cordas votivas demarcam


a montanha onde só mora a lua

SÔGI
宗祇

しめゆふ山は月のみぞすむ
shimeyû yama wa / tsuki nomi zo sumu

123
48-49

as cordas votivas demarcam


a montanha onde só mora a lua
um sino tocando
e adianto o que está por vir —
a madrugada em claro

124
49


LAMENTO

um sino tocando
e adianto o que está por vir —
a madrugada em claro

SÔCHÔ
宗長

鐘にわれただあらましの寝覚して
kane ni ware / tada aramashi no / nezame shite

125
49-50

um sino tocando
e adianto o que está por vir —
a madrugada em claro
sobre a cabeça a geada
aumenta noite após noite

“Geada” refere-se aos cabelos brancos.

126
50

INVERNO



LAMENTO

sobre a cabeça a geada


aumenta noite após noite

SHÔHAKU
肖柏

いただきけりな夜な夜なの霜
itadakikeri na / yonayona no shimo

F I M DA S E G U N DA FO L H A

127
50-51

sobre a cabeça a geada


aumenta noite após noite
nos juncos secos
do inverno um grou
na entrada da gruta

A cabeça branca do grou é como os cabelos brancos do poeta.

128
三表
F R E N T E DA T E RC E I R A FO L H A

51

INVERNO

nos juncos secos


do inverno um grou
na entrada da gruta

SÔGI
宗祇

冬枯れの芦たづわびて立てる江に
fuyugare no / ashitazu wabite / tateru e ni

129
51-52

nos juncos secos


do inverno um grou
na entrada da gruta
à brisa marinha do entardecer
um barqueiro em alto-mar

130
52

MISCELÂNEA

à brisa marinha do entardecer


um barqueiro em alto-mar

SHÔHAKU
肖柏

夕汐風の遠つ舟人
yûshiokaze no / okitsu funabito

131
52-53

à brisa marinha do entardecer


um barqueiro em alto-mar
sem rumo certo
desconheço meu destino —
a névoa que aumenta

O honka dessas estrofes é um poema de Sone no Yoshitada


(Shinkokin’wakashû 11 Amor I 1071):

atravessando o estreito
de Yura o barqueiro
perde seu remo
perde seu rumo
como eu no amor

132
53

PRIMAVERA

sem rumo certo


desconheço meu destino —
a névoa que aumenta

SÔCHÔ
宗長

ゆくへなき霞やいづくはてならん
yukue naki / kasumi ya izuku / hate naran
133
53-54

sem rumo certo


desconheço meu destino —
a névoa que aumenta
na aldeia na montanha
de repente a primavera

Se antes a névoa era um elemento hostil que desorientava o barqueiro,


aqui ela muda de significado, pois a névoa nas serras é um sinal de que
começa a primavera.

134
54

PRIMAVERA

na aldeia na montanha
de repente a primavera

SÔGI
宗祇

くるかた見えぬ山里の春
kuru kata mienu / yamazato no haru

135
54-55

na aldeia na montanha
de repente a primavera
de verdes ramos
as últimas flores de cerejeira
caem pouco a pouco

Há um corte temporal entre as estrofes 54 e 55: do início da primavera,


pulamos a um momento mais adiante, em que as flores de cerejeira já
estão caindo.

136
55

PRIMAVERA

de verdes ramos
as últimas flores de cerejeira
caem pouco a pouco

SHÔHAKU
肖柏

茂みよりたえだえのこる花落ちて
shigemi yori / taedae nokoru / hana ochite
137
55-56

de verdes ramos
as últimas flores de cerejeira
caem pouco a pouco
sob as árvores abro a trilha
ainda cheia de orvalho

138
56

OUTONO

sob as árvores abro a trilha


ainda cheia de orvalho

SÔCHÔ
宗長

木のした分る道の露けさ
ko no moto wakuru / michi no tsuyukesa

139
56-57

sob as árvores abro a trilha


ainda cheia de orvalho
eu sei que é outono mas
a cabana não tem goteiras
a água é das lágrimas

A cabana no fim da trilha é um eremitério, aonde o poeta vai para se


isolar do mundo e meditar.

140
57

OUTONO

eu sei que é outono mas


a cabana não tem goteiras
a água é das lágrimas

SÔGI
宗祇

秋はなどもらぬ岩屋も時雨るらん
aki wa nado / moranu iwaya mo / shigururan
141
57-58

eu sei que é outono mas


a cabana não tem goteiras
a água é das lágrimas
apesar de tudo a lua se aninha
em minhas mangas de musgo

A lua se aninha nas mangas do quimono porque as lágrimas do poeta


estão empoçadas ali. As mangas são “de musgo” devido ao choro
constante.

142
58

OUTONO


LUA



BUDISMO

apesar de tudo a lua se aninha


em minhas mangas de musgo

SHÔHAKU
肖柏

苔のたもとに月はなれけり
koke no tamoto ni / tsuki wa narekeri

143
58-59

apesar de tudo a lua se aninha


em minhas mangas de musgo
agora sabemos
do devoto coração
deste eremita

144
59

OUTONO



BUDISMO

agora sabemos
do devoto coração
deste eremita

SÔCHÔ
宗長

心あるかぎりぞしるき世捨人
kokoro aru / kagiri zo shiruki / yosutebito

145
59-60

agora sabemos
do devoto coração
deste eremita
na calmaria das vagas
vê-se o barco a deslizar

146
60

VIAGEM

na calmaria das vagas


vê-se o barco a deslizar

SÔGI
宗祇

をさまる浪に舟いづる見ゆ
osamaru nami ni / fune izuru miyu

147
60-61

na calmaria das vagas


vê-se o barco a deslizar
manhã tranquila
no céu não há vestígios
das nuvens noturnas

Há um poema de Fujiwara no Tadamichi que usa imagens semelhantes


(Shikawakashû 10 Miscelânea II 380):

remando em alto mar


não sei onde acaba
o vasto céu e suas nuvens
nem onde começa
a branca espuma das vagas

148
61

MISCELÂNEA

manhã tranquila
no céu não há vestígios
das nuvens noturnas

SHÔHAKU
肖柏

朝なぎの空に跡なき夜の雲
asanagi no / sora ni ato naki / yoru no kumo
149
61-62

manhã tranquila
no céu não há vestígios
das nuvens noturnas
são tão brilhantes na neve
as montanhas ao redor

150
62

INVERNO

são tão brilhantes na neve


as montanhas ao redor

SÔCHÔ
宗長

雪にさやけき四方の遠山
yuki ni sayakeki / yomo no tôyama

151
62-63

são tão brilhantes na neve


as montanhas ao redor
minha casinha da serra
nem depois que caem as folhas
me canso de ti

152
63

INVERNO

minha casinha da serra


nem depois que caem as folhas
me canso de ti

SÔGI
宗祇

峯の庵木の葉の後もすみあかで
mine no io / ko no ha no nochi mo / sumiakade
153
63-64

minha casinha da serra


nem depois que caem as folhas
me canso de ti
aprendo a ser só com a voz
do vento entre os pinheiros

Os pinheiros não perdem as folhas no inverno. O poeta aprende com o


vento, da mesma forma que, duzentos anos depois, Bashô preconizaria
que se aprendesse com os pinheiros e com o bambu.

154
64

MISCELÂNEA

aprendo a ser só com a voz


do vento entre os pinheiros

SHÔHAKU
肖柏

さびしさならふ松風の声
sabishisa narau / matsukaze no koe

F I M DA F R E N T E DA T E RC E I R A FO L H A

155
64-65

aprendo a ser só com a voz


do vento entre os pinheiros
quem além de mim
desperta ao amanhecer —
dia após dia

156
三裏
V E R S O DA T E RC E I R A FO L H A

65


BUDISMO

quem além de mim


desperta ao amanhecer —
dia após dia

SÔCHÔ
宗長

誰かこの暁おきをかさねまし
tare ka kono / akatsuki oki wo / kasanemashi

157
65-66

quem além de mim


desperta ao amanhecer —
dia após dia
só a lua sabe
da solidão da viagem

158
66

OUTONO


VIAGEM


LUA

só a lua sabe
da solidão da viagem

SÔGI
宗祇

月はしるやの旅ぞかなしき
tsuki wa shiru ya no / tabi zo kanashiki

159
66-67

só a lua sabe
da solidão da viagem
molhadas pelo orvalho
e agora pesadas de geada
minhas mangas de outono

160
67

OUTONO

molhadas pelo orvalho


e agora pesadas de geada
minhas mangas de outono

SHÔHAKU
肖柏

露ふかみ霜さへしぼる秋の袖
tsuyu fukami / shimo sae shioru / aki no sode
161
67-68

molhadas pelo orvalho


e agora pesadas de geada
minhas mangas de outono
claras plumas de miscantos —
que pena que irão cair

162
68

OUTONO

claras plumas de miscantos —


que pena que irão cair

SÔCHÔ
宗長

うす花すすき散らまくも惜し
usu hanasusuki / chiramaku mo oshi

163
68-69

claras plumas de miscantos —


que pena que irão cair
canta a codorna
triste no frio da sombra
do lado de lá da serra

164
69

OUTONO

canta a codorna
triste no frio da sombra
do lado de lá da serra

SÔGI
宗祇

鶉なくかた山くれて寒き日に
uzura naku / katayama kurete / samuki hi ni
165
69-70

canta a codorna
triste no frio da sombra
do lado de lá da serra
vivo solitária neste campo
onde já houve um vilarejo

166
70


LAMENTO

vivo solitária neste campo


onde já houve um vilarejo

SHÔHAKU
肖柏

野となる里も佗びつつぞすむ
no to naru sato mo / wabitsutsu zo sumu

167
70-71

vivo solitária neste campo


onde já houve um vilarejo
se ele voltar
vai ver com que paixão
esperei por ele

168
71

AMOR

se ele voltar
vai ver com que paixão
esperei por ele

SÔCHÔ
宗長

帰りこば待ちし思を人やみむ
kaerikoba / machishi omoi wo / hito ya min 
169
71-72

se ele voltar
vai ver com que paixão
esperei por ele
de quem será
esse coração tão frio?

Refere-se a uma mulher em uma casa abandonada aguardando


pacientemente a volta de seu amado. De tanto esperar, a mulher tem
ressentimento pelo homem que a abandonou.

170
72

AMOR

de quem será
esse coração tão frio?

SÔGI
宗祇

うときも誰がこころなるべき
utoki mo tare ga / kokoro naru beki 

171
72-73

de quem será
esse coração tão frio?
desde o começo
foram sempre tortuosos
os caminhos do amor

Agora é o homem que responde ao lamento da mulher.

172
73

AMOR

desde o começo
foram sempre tortuosos
os caminhos do amor

SHÔHAKU
肖柏

昔よりただあやにくの恋の道
mukashi yori / tada ayaniku no / koi no michi 
173
73-74

desde o começo
foram sempre tortuosos
os caminhos do amor
quando esquecer é impossível
o mundo se faz amargo

Tréplica da mulher ao homem.

174
74

AMOR

quando esquecer é impossível


o mundo se faz amargo

SÔCHÔ
宗長

わすられがたき世さへうらめし
wasuraregataki / yo sae urameshi 

175
74-75

quando esquecer é impossível


o mundo se faz amargo
isolado na montanha
eu já não devia pensar
em primaveras e invernos

Ao se isolar na montanha, o eremita deveria exercer o desapego das


coisas deste mundo — ou seja, esquecer o passado, não pensar em bens
materiais, etc. Assim, ele alcançaria um nível espiritual mais elevado.
O poeta, no entanto, é incapaz de esquecer.

176
75

MISCELÂNEA

isolado na montanha
eu já não devia pensar
em primaveras e invernos

SÔGI
宗祇

山がつになど春秋のしらるらん
yamagatsu ni / nado haruaki no / shiraruran 
177
75-76

isolado na montanha
eu já não devia pensar
em primaveras e invernos
o mato cresce alto ao redor
da porta de galhos secos

178
76

VERÃO

o mato cresce alto ao redor


da porta de galhos secos

SHÔHAKU
肖柏

植ゑぬ草葉のしげき柴の戸
uenu kusaba no / shigeki shiba no to 

179
76-77

o mato cresce alto ao redor


da porta de galhos secos
adiante da cerca
os campos abandonados —
apenas meio arados

180
77

PRIMAVERA

adiante da cerca
os campos abandonados —
apenas meio arados

SÔCHÔ
宗長

かたはらに垣穂のあら田かへし捨て
katawara ni / kakiho no arata / kaeshi sute 
181
77-78

adiante da cerca
os campos abandonados —
apenas meio arados
a figura do homem se perde
embaçada na chuva da tarde

182
78

PRIMAVERA

a figura do homem se perde


embaçada na chuva da tarde

SÔGI
宗祇

ゆく人かすむ雨の暮れがた 
yuku hito kasumu / ame no kuregata 

F I M DA T E RC E I R A FO L H A

183
78-79

a figura do homem se perde


embaçada na chuva da tarde
ao campo onde eu paro
procurando um abrigo
não vêm rouxinóis

184
名残表
F R E N T E DA Ú LT I M A FO L H A

79

PRIMAVERA

ao campo onde eu paro


procurando um abrigo
não vêm rouxinóis

SÔCHÔ
宗長

宿りせん野を鶯や厭ふらん
yadori sen / no wo uguisu ya / itouran
185
79-80

ao campo onde eu paro


procurando um abrigo
não vêm rouxinóis
a noite é serena
sob as cerejeiras

Os rouxinóis não vêm porque não querem perturbar o silêncio.

186
80

PRIMAVERA

a noite é serena
sob as cerejeiras

SHÔHAKU
肖柏

小夜もしづかに桜咲くかげ
sayo mo shizuka ni / sakura saku kage

187
80-81

a noite é serena
sob as cerejeiras
deixo de lado a lanterna
e fico olhando as flores
na luz gradual da manhã

188
81

PRIMAVERA


FLOR

deixo de lado a lanterna


e fico olhando as flores
na luz gradual da manhã

SÔGI
宗祇

灯をそむくる花にあけそめて
toboshibi wo / somukuru hana ni / akesomete

189
81-82

deixo de lado a lanterna


e fico olhando as flores
na luz gradual da manhã
de quem será em meu sonho
o braço que uso de apoio

190
82

AMOR

de quem será em meu sonho


o braço que uso de apoio

SÔCHÔ
宗長

誰が手枕に夢は見えけん
taga tamakura ni / yume wa mieken

191
82-83

de quem será em meu sonho


o braço que uso de apoio
promessas feitas
com o passar dos anos
são esquecidas

192
83

AMOR

promessas feitas
com o passar dos anos
são esquecidas

SHÔHAKU
肖柏

契らばや思ひたえつつ年も経ぬ
chigiraba ya / omoitaetsutsu / toshi mo hen

193
83-84

promessas feitas
com o passar dos anos
são esquecidas
já sou velho demais
para ir viver nas montanhas

194
84


LAMENTO

já sou velho demais


para ir viver nas montanhas

SÔGI
宗祇

今はのよはひ山もたづねじ
ima wa no yowai / yama mo tazuneji

195
84-85

já sou velho demais


para ir viver nas montanhas
ando tão distante —
assim todos vão pensar
que eu já estou morto

196
85


LAMENTO

ando tão distante —


assim todos vão pensar
que eu já estou morto

SÔCHÔ
宗長

かくす身を人はなきにもなしつらむ
kakusu mi wo / hito wa naki ni mo / nashitsuran

197
85-86

ando tão distante —


assim todos vão pensar
que eu já estou morto
mas o precioso fio da existência
ata-me a este mísero mundo

A vida humana comparada à imagem do colar de contas ou de pérolas


é uma metáfora fixa. A palavra tama significa tanto “contas” quanto
“alma”. Há um famoso poema da Princesa Shikishi sobre esse mesmo
tópico (Shinkokin’wakashû 11 Amor 1034):

vida — colar de contas —


se for quebrar — quebre
se durar mais tempo
guardando segredo —
não sei se aguento

198
86


LAMENTO

mas o precioso fio da existência


ata-me a este mísero mundo

SHÔHAKU
肖柏

さてもうき世にかかる玉の緒
sate mo ukiyo ni / kakaru tama no wo

199
86-87

mas o precioso fio da existência


ata-me a este mísero mundo
minha vida é só contemplar
noite e dia a fumaça subir
do fogo de folhas de pinho

200
87

MISCELÂNEA

minha vida é só contemplar


noite e dia a fumaça subir
do fogo de folhas de pinho

SÔGI
宗祇

松の葉をただ朝夕の煙にて
matsu no ha wo / tada asayû no / keburi nite
201
87-88

minha vida é só contemplar


noite e dia a fumaça subir
do fogo de folhas de pinho
pessoas à beira-mar —
como é que vivem a vida

Há um famoso poema de Minamoto no Sanetomo sobre esse mesmo


tópico (Shinchokusen’wakashû 8 Viagem 525):

quem dera o tempo


parasse e eu ficasse olhando
os pescadores remando
puxando as cordas dos barcos
na praia pela eternidade

202
88

MISCELÂNEA

pessoas à beira-mar —
como é que vivem a vida

SÔCHÔ
宗長

浦わの里はいかにすむらん
urawa no sato wa / ika ni sumuran

203
88-89

pessoas à beira-mar —
como é que vivem a vida
o vento de outono
e o duro travesseiro da praia
dificultam o sono

204
89

OUTONO


VIAGEM

o vento de outono
e o duro travesseiro da praia
dificultam o sono

SHÔHAKU
肖柏

秋風のあら磯枕ふしわびぬ
akikaze no / araiso makura / fushiwabinu

205
89-90

o vento de outono
e o duro travesseiro da praia
dificultam o sono
a voz dos gansos selvagens
e a lua que avança no céu sobre a serra

206
90

OUTONO


LUA

a voz dos gansos selvagens


e a lua que avança no céu sobre a serra

SÔGI
宗祇

雁なく山の月更くる空
kari naku yama no / tsuki fukuru sora

207
90-91

a voz dos gansos selvagens


e a lua que avança no céu sobre a serra
amanhã verei
as gotas de orvalho
nas flores da lespedeza

A lespedeza é um arbusto associado ao outono. O orvalho nas flores


da lespedeza é o pranto dos gansos selvagens. Há um famoso poema
de autoria desconhecida sobre esse mesmo tópico (Kokin’wakashû 4
Outono 221):

os gansos selvagens
que tristonhos passam
deixam suas lágrimas
orvalho no jardim
da minha melancolia

208
91

OUTONO

amanhã verei
as gotas de orvalho
nas flores da lespedeza

SÔCHÔ
宗長

小萩原うつろふをしも猶やみん
kohagihara / utsurou tsuyu mo / asu ya min
209
91-92

amanhã verei
as gotas de orvalho
nas flores da lespedeza
como o prado de Ada
é o coração dessa pessoa

O prado de Ada é o “prado da inconstância”. Era um lugar famoso por


suas lespedezas.

210
92

AMOR

como o prado de Ada


é o coração dessa pessoa

SHÔHAKU
肖柏

あだの大野を心なる人
ada no ôno wo / kokoro naru hito

F I M DA F R E N T E DA Ú LT I M A PÁG I N A

211
92-93

como o prado de Ada


é o coração dessa pessoa
não esqueça o nosso amor
neste mundo impermanente
de sonho e realidade

212
名残裏 急
V E R S O DA Ú LT I M A PÁG I N A

93

AMOR

não esqueça o nosso amor


neste mundo impermanente
de sonho e realidade

SÔGI
宗祇

忘るなよかぎりやかはる夢うつつ
wasuru na yo / kagiri ya kawaru / yume utsutsu
213
93-94

não esqueça o nosso amor


neste mundo impermanente
de sonho e realidade
não sei mais desde quando é
a nostalgia de outrora

214
94


LAMENTO

não sei mais desde quando é


a nostalgia de outrora

SÔCHÔ
宗長

思へばいつをいにしへにせむ
omoeba itsu wo / inishie ni sen

215
94-95

não sei mais desde quando é


a nostalgia de outrora
um Buda se retira
para que outro apareça
neste nosso mundo

A presença de Buda não tem fim — ela se renova sempre.

216
95


BUDISMO

um Buda se retira
para que outro apareça
neste nosso mundo

SHÔHAKU
肖柏

仏たち隠れては又いづる世に
hotoketachi / kakurete wa mata / izuru yo ni
217
95-96

um Buda se retira
para que outro apareça
neste nosso mundo
até no mato seco
sopra o vento de primavera

218
96

PRIMAVERA

até no mato seco


sopra o vento de primavera

SÔGI
宗祇

枯れし林も春風ぞ吹く
kareshi hayashi mo / harukaze zo fuku

219
96-97

até no mato seco


sopra o vento de primavera
montanha na manhã —
depois de noites geladas
se cobre de névoa

220
97

PRIMAVERA

montanha na manhã —
depois de noites geladas
se cobre de névoa

SÔCHÔ
宗長

山はけさいく霜夜にか霞むらん
yama wa kesa / iku shimoyo ni ka / kasumuran
221
97-98

montanha na manhã —
depois de noites geladas
se cobre de névoa
a fumaça sobe mansa
a choupana irradia paz

222
98

PRIMAVERA

a fumaça sobe mansa


a choupana irradia paz

SHÔHAKU
肖柏

煙のどかに見ゆる仮庵
keburi nodoka ni / miyuru kari io

223
98-99

a fumaça sobe mansa


a choupana irradia paz
afinal, mesmo os pobres
são capazes de viver
com retidão

224
99

MISCELÂNEA

afinal, mesmo os pobres


são capazes de viver
com retidão

SÔGI
宗祇

いやしきも身ををさむるは有つべし
iyashiki mo / mi wo osamuru wa / aritsubeshi
225
99-100

afinal, mesmo os pobres


são capazes de viver
com retidão
que para todos os homens
o caminho seja justo

226
100

MISCELÂNEA

que para todos os homens


o caminho seja justo

SÔCHÔ
宗長

人におしなべ道ぞ正しき
hito ni oshinabe / michi zo tadashiki

FIM DO POEMA

227
REFERÊNCIAS
BROWER, Robert. Shôhaku. In: Kodansha Encyclopedia of Japan.
v. 7. Tóquio: Kôdansha, 1983. p. 161-162.

BROWER, Robert. Sôchô. In: Kodansha Encyclopedia of Japan. v.


7. Tóquio: Kôdansha, 1983. p. 208.

CARTER, Steven. Traditional Japanese Poetry: An Anthology.


Stanford: Stanford University, 1991.

FUKUI, Kyûzô. Minase sangin hyôshaku — gendaigoyaku tsuki 


福井久蔵 『水無瀬三吟評釈 附』. Versão kindle. Tóquio:
Yamatouta e-books, 2019 [primeira edição de 1938].

KONISHI, Jin’ichi; BRAZELL, Karen; COOK, Lewis. The Art of


Renga. Journal of Japanese Studies, n. 1, v. 2, p. 29-61, Autumn,
1975.

MINER, Earl. Renga and haikai. In: Kodansha Encyclopedia of


Japan. v. 6. Tóquio: Kôdansha, 1983. p. 296-300.

RAMIREZ-CHRISTENSEN, Esperanza. Emptiness and


Temporality: Buddhism and Medieval Japanese Poetics. Palo Alto:
Stanford University, 2008.

SHIRANE, Haruo. Traces of Dreams: Landscape, Cultural


Memory, and the Poetry of Bashō. Stanford: Stanford University,
1998.

STILERMAN, Ariel. Sôgi, Shôhaku, Sôchô. Poema a tres voces


de Minase. Edição bilíngue. Tradução e posfácio de Ariel
Stilerman. Madri: Sexto Piso, 2016.

TASHIRO, Eliza Atsuko. Os teniwoha nos primeiros tratados


dos poemas renga da Era Medieval japonesa. Estudos Japoneses
(USP), n. 31, v. 1, p. 27-43, 2011.

THORNHILL, Arthur. Sôgi. In: Kodansha Encyclopedia of Japan.


v. 7. Tóquio: Kôdansha, 1983. p. 222-223.

228
COM A PALAVRA, OS TRADUTORES

Andrei Cunha

Desde 2019, tenho trabalhado com o Roberto Schmitt-Prym


na criação de um repertório de poesia japonesa em tradução
com foco em formas e épocas ainda não muito divulgadas
no Brasil. O motivo é, em parte, descaradamente egoísta: eu
leciono literatura japonesa na graduação da UFRGS, e a falta de
bibliografia nacional para indicar aos alunos foi desde sempre
um dos maiores obstáculos no momento de preparar as aulas.
Então, o projeto, da minha parte, é como uma realização de
desejos: vou traduzindo aqueles livros que eu queria muito que
alguém já tivesse traduzido. Três poetas em Minase já estava
desde há muito na minha mira, e aí existe uma motivação
extra: o Brasil é o país do mundo onde mais se escreve haicai
(fora o Japão, claro), mas ainda assim a maioria das pessoas
acha que essa forma poética surgiu já madura e desenvolvida
da cabeça de Bashô — como uma Minerva repentina e asiática,
numa partenogênese sem preparação prévia, contexto ou
tradição. Eu acho que não há detrimento ao gênio de Bashô em
observar que ele pertencia a uma linhagem milenar de poetas,
e que a cristalização por ele proposta das leis da composição
não foi um deus ex machina milagroso, e sim a culminância de
uma história longa e rica de grandes criações verbais. Nesse
continuum literário, Minase foi o momento em que o poema
encadeado adquiriu maioridade artística. Sôgi, o mestre da
partida, teve profunda influência sobre tudo o que veio depois
(inclusive sobre Bashô), mas uma característica importante
da obra que aqui apresentamos é o respeito e reverência que
ela demonstra com o cânone que veio antes dela. É como se
fosse possível sentir, na sucessão dos versos de Minase, a voz
dos poetas passados e a visão dos poetas futuros. Além disso,
mesmo sendo o haicai japonês bem conhecido no Brasil, com

229
inúmeras traduções e antologias, ele é sempre lido como uma
peça discreta, individual — quando, na verdade, antes do século
XIX, ninguém compunha haicai como uma unidade autônoma: a
estrofe de três versos era vista como um elemento constituinte de
um todo maior. Ela podia aparecer no contexto de um diário ou
de um relato de viagem, cuja prosa permitia a compreensão do
momento em que surgiu o poema; ou ainda (e é para isso que se
estudava composição poética na Idade Média japonesa), dentro
de um fazer comunitário que pressupunha a interação criativa
de um número plural de artistas ou entusiastas. À semelhaça
da cerimônia do chá (e, de uma maneira mais ampla, de todas
as artes da performance), a literatura japonesa está imersa em
uma poética do encontro, do momento, da presença, do grupo,
que nem todo o individualismo ocidental, nem todo o mito
romântico do “gênio”, nem toda a Revolução Industrial, nem todo
o capitalismo moderno, nem toda a reprodutibilidade técnica
conseguiram silenciar completamente. Foi por isso, também,
que eu quis que o Minase brasileiro fosse uma tradução encadeada:
quando se abre o processo tradutório para a interação entre três
pessoas, o resultado ganha em pluralidade, em contigência, em
imprevistos — alegres improvisos, que flutuam na superfície da
página em variações e contravozes. O grupo que eu, a Karen e
o Roberto formamos pode parecer heteróclito e idiossincrático,
mas isso foi intencional: a diferença de trajetórias existenciais
que há entre nós é que criou o movimento e a variedade. A voz
elegante, sóbria e rítmica do Roberto soa ainda com mais força
quando justaposta à linguagem luminosa da Karen, que possui
uma precisão interpretativa, uma clareza de visão, que mais de
uma vez me deu inveja (“Mas como é que eu não tinha entendido
isso desse jeito antes?”). Os dois me permitiram uma experiência
tradutória nova e estimulante: quem estava traduzindo o
texto era eu, mas ao mesmo tempo não era eu, era o grupo —
à semelhança daquilo que os manuais de poesia encadeada
determinam para a composição mesma do poema. O objetivo

230
do jogador não é brilhar individualmente — considera-se que
cada participante compôs a contento quando ele incluiu em seus
versos a contribuição do jogador prévio e em seguida preparou o
passe para o próximo poeta. O trabalho, para mim, foi prazeroso
e cheio de uma felicidade de acasos e de encontros. Espero que
essa alegria seja visível para a leitora.

Andrei Cunha é tradutor literário de japonês e professor de Língua e Literatura


Japonesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nasceu em Pelotas
(RS) em 1973 e fez graduação e mestrado em Tóquio, no Japão, onde viveu de
1994 a 2001. Defendeu, em 2016, tese de Doutorado em Literatura Comparada
sobre o Livro de Travesseiro de Sei Shônagon e sua adaptação para o cinema
por Peter Greenaway. Atualmente, é vice-presidente da Associação Brasileira
de Literatura Comparada. Em 2020, recebeu o Prêmio da Associação Gaúcha
de Escritores e o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria especial por seu
livro Cem poemas de cem poetas: a mais querida antologia poética do Japão
(Bestiário, 2019). Junto com Roberto Schmitt-Prym, tem organizado pela
Bestiário uma série de publicações relacionadas à literatura japonesa — em
especial, à poesia.

DÚVIDAS, DESCOBERTAS E APRENDIZADO

Karen Kawana

Quando Roberto Schmitt-Prym me convidou para participar


deste projeto de tradução com ele e o Andrei Cunha, meu
primeiro impulso foi dizer não — afinal, dois meses antes,
eu havia comentado com alguém que não tinha coragem de
traduzir poemas, nem do japonês, nem de qualquer outra
língua. Traduzir poesia sempre me pareceu um desafio muito
grande. São poucas palavras e inúmeras possibilidades — como
eu poderia decidir qual era a melhor alternativa? E versos em
japonês clássico estavam fora de questão. Meu contato com a
poesia clássica japonesa se limitava a alguns versos esparsos com
os quais me deparava enquanto traduzia textos em prosa, e as

231
poucas traduções de poesia nas quais bati os olhos nunca me
entusiasmaram porque soavam mais como frases soltas, peças
de um quebra-cabeça que eu ficava tentando juntar e que não me
diziam muito. Em suma, hesitei, dei uma resposta vaga, disse que
precisava de um tempo para ler uma gramática e um dicionário
de japonês clássico (pouco mais de setecentas páginas) antes de
uma empreitada desse tipo. Não sou formada em Japonês ou em
Letras... sequer tenho uma vivência no Japão. Estudei um pouco
em cursos e depois me concentrei em textos. Fui construindo
um vocabulário de leitura devagar e ainda me considero uma
estudante da língua. Que qualificações eu tenho para traduzir
esses poemas? — eu me perguntava. Mas, aos poucos, fui sendo
seduzida pela ideia — nem são tantos versos assim... — por fim,
decidi que gostaria de ao menos ver como me sairia. A pior coisa
que pode acontecer, é vocês dois terem que consertar minhas
besteiras, certo? — respondi, meio de brincadeira, meio a sério.
E foi assim que me envolvi neste projeto.
Acabei não lendo a gramática (ainda está nos meus planos),
mas tentei me preparar um pouco. Li as traduções que o Andrei já
havia feito, também publicadas pela Bestiário, e fiquei surpresa
com o que encontrei. Aquela sensação de peças de quebra-cabeça
que eu não sabia como juntar desaparecia à medida que lia...
os poemas contavam histórias, tinham sentimento... Gostei
da organização dos poemas na página, com notas explicativas,
original em japonês acompanhado da transliteração — em suma,
o fato de a edição ser bilíngue também me agradou muito. As
notas, empregadas na dose certa, são muito úteis, pois os poemas
japoneses trazem imagens, expressões e palavras que remetem
a outros poemas, a lugares, a estados psicológicos e a estações
do ano, coisas muito sutis. Quem lia e escrevia esses poemas no
passado tinha essas referências em mente, sabia que a “manga
molhada do quimono” é uma metáfora para o choro e que a menção
a vestimentas de musgo indica um eremita, ou monge... além
disso, o musgo, de crescimento lento, traz a ideia da passagem

232
do tempo, de uma longa espera, paciência... assim, uma simples
expressão como “mangas de musgo” já informa ao leitor que se
trata de um asceta, em cujas mangas umedecidas pelas lágrimas
o musgo cresceu lentamente. Cada poema tem várias camadas
de sentido. Sem as notas explicativas, essas informações seriam
perdidas e a leitura se tornaria mais pobre.
Traduzir os poucos versos que me couberam, os do poeta
Shôhaku, transformou-se em um grande aprendizado sobre a
poesia japonesa. Mas confesso que também não foi uma tarefa
tão simples e se, às vezes, chegava a uma tradução que me
agradava logo de cara, outras vezes escrevia várias versões sem
que nenhuma delas me satisfizesse. As opiniões do Andrei foram
muito importantes nessas ocasiões. Sua comparação do poema
encadeado com o futebol e com a dança — atividades nas quais os
movimentos de cada participante são essenciais para a harmonia
do conjunto — é muito apropriada pois, não raro, precisava
acertar meus passes ou passos para melhorar a evolução do
conjunto. Apesar desses pormenores, participar deste projeto foi
uma experiência enriquecedora e intelectualmente estimulante.
Quando li as traduções do Andrei pela primeira vez, elas me
transmitiram uma sensação de familiaridade, de um distante
próximo. Antes de iniciar minha tradução, também li os poemas
e as traduções de haicais feitas por Roberto Schmitt-Prym —
poeta de imagens escolhidas a dedo, muito plásticas e de versos
elegantes —, pois queria saber a que time estava me juntando.
Não sei onde fico entre meus dois colegas, devo ser o elemento
dissonante aqui, mas espero ter produzido algo à altura dos
esforços que ambos têm feito em traduzir e apresentar obras de
poetas e escritores japoneses pouco conhecidos pelos leitores
brasileiros. Da minha parte, só posso agradecer o convite e a
oportunidade de fazer parte deste belo trabalho.

Karen Kazue Kawana é doutoranda em Teoria e História Literária na


UNICAMP. Tem Mestrado em Literatura Japonesa pela USP e Mestrado e
Doutorado em Filosofia pela UNICAMP. Traduziu O limão, coletânea de

233
contos de Motojirô Kajii, e é autora da coletânea de poemas Pequenas coisas
— ambas publicadas pela editora Bestiário.

TRADUÇÃO, ARTE DO ENCONTRO

Roberto Schmitt-Prym

Não sei como os três poetas aqui traduzidos se conheceram,


mas posso falar de como os três tradutores se conheceram.
Em 2018, na Feira do Livro de Porto Alegre, a editora Bestiário
lançou um livro do qual Andrei Cunha participava com um
ensaio. Naquela oportunidade perguntei se ele tinha alguma
tradução para publicar. Pouco depois ele me apresentou a obra
Cem poemas de cem poetas, que foi publicada em 2019 e que
mereceu os prêmios AGES e o Açorianos na Categoria especial.
Depois disso, formamos uma parceria que resultou em outras
publicações importantes de literatura japonesa: Poemas do Japão
antigo; Shiki, inventor do haicai moderno; e Todos os haicais,
de Ryôkan Taigu. Quanto a Karen Kazue Kawana, recebi dela,
em dezembro de 2020, a tradução de um livro que eu sempre
quis publicar: a coletânea de contos O limão, do escritor japonês
Kajii Motojirô. O livro saiu no ano seguinte, junto com Pequenas
coisas, livro de poemas da própria Karen.
A tradução para o português do livro Três poetas em Minase
é outra sugestão de Andrei Cunha, a quem coube a tradução dos
poemas de Sôgi. Os poemas de Shôhaku ficaram a cargo de Karen
Kazue Kawana e a mim coube Sôchô, um poeta que nasceu 508
anos antes mim.
A tradução de Três poetas em Minase foi uma experiência
nova, uma vez que cada poema foi escrito para ser autônomo,
bem como para ser lido como uma coleção contígua. Essa dupla
natureza das composições de renga não permitiu que cada
tradutor cuidasse apenas do seu poeta. Como na composição,
cada tradutor sempre teve que “ouvir” a tradução dos outros.

234
Assim, cada poema foi traduzido de maneira autônoma, mas
também como uma coleção.

Roberto Schmitt-Prym nasceu em 1956, em Panambi, RS. Foi destaque no


Prêmio Apesul Revelação Literária 1979 e no Prêmio Habitasul Correio do
Povo Revelação Literária 1981. Estudou com Charles Kiefer e com Luiz Antonio
de Assis Brasil. Participou das antologias Contos de oficina 35, brevissimos!, e
101 que contam. Publicou a tradução da obra Giacomo Joyce, de James Joyce;
Todos os haicais, de Ryôkan Taigu, e, em cotradução com Andrei Cunha, uma
antologia de haicais de Masaoka Shiki. É autor de Contos vertiginosos (2012),
sombra silêncio (2018) e lugar algum (2020), entre outros. Sobre a sua obra foi
publicado, por Eduardo Jablonski, o livro O belo na obra de Roberto Schmitt-
Prym (2020). Como fotógrafo, realizou sua primeira exposição individual no
Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, em 1990. Desde então,
realizou mais de vinte exposições individuais em museus e instituições no
Brasil e no exterior, exposições coletivas, e recebeu uma dezena de prêmios
em diversos países. Entre outras atuações, destacam-se os cargos de diretor
da Associação Rio-grandense de Artes Plásticas Chico Lisboa, diretor da
Bienal do Mercosul, conselheiro da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e
diretor do Museu Julio de Castilhos.

235




EX ORIENTE LUX








Acabou-se de traduzir
no inverno meridional
do ano de 2021.

Copyright © 2021 Andrei Cunha,


Karen Kawana e Roberto Schmitt-Prym.

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