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em Minase
水無瀬三吟百韻
Sôgi, Shôhaku, Sôchô
Três poetas
em Minase
水無瀬三吟百韻
Sôgi, Shôhaku, Sôchô
tradução
Andrei Cunha, Karen Kawana
e Roberto Schmitt-Prym
2021
Copyright © 2021 Andrei Cunha, Karen Kazue Kawana
e Roberto Schmitt-Prym.
Título em japonês: 水無瀬三吟百韻 (Minase sangin hyakuin)
Editor: Roberto Schmitt-Prym
Revisão: Bruno Zitto
Digitação dos poemas em japonês: Bruno Zitto e Gabrielle Miguelez
Design do livro: Andrei Cunha e Roberto Schmitt-Prym
Capa: Andrei Cunha e Roberto Schmitt-Prym
Ilustração da capa: Ohara Koson, “Ameixeira em flor à noite”
(início do séc. XX)
Todos os poemas japoneses
e todas as ilustrações se encontram em domínio público.
S682t Sôgi
Três poetas em Minase / Sôgi, Shôhaku e Sôchô ;
tradução de Andrei Cunha, Karen Kazue Kawana,
Roberto Schmitt-Prym. - Porto Alegre : Class, 2021.
236 p. ; 14cm x 21cm.
Tradução de: Minase sangin hyakuin
Inclui índice.
ISBN: 978-65-88865-58-3
1. Literatura japonesa. 2. Poesia. I. Shôhaku. II.
Sôchô. III. Cunha, Andrei. IV. Kawana, Karen Kazue. V.
Schmitt-Prym, Roberto. VI. Título.
CDD 895.6
2021-2835 CDU 821.521
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura japonesa 895.6
2. Literatura japonesa 821.521
A MAIS BELA
SEQUÊNCIA
POÉTICA
Andrei Cunha
5
QUEM ERAM OS TRÊS POETAS?
6
mestre da escola de Nijô que valorizava o estilo sóbrio e despojado
— em oposição a seu mestre anterior, Sôzei, que valorizava as
construções brilhantes e os desfechos inesperados. O estilo do
próprio Sôgi, pode-se dizer, é como uma síntese da mestria com
as palavras de Sôzei e da busca pela nobreza de tom de Shinkei.
A obra de Sôgi foi elogiada por Matsuo Bashô pelo estilo sóbrio
e melancólico (sabi) que muitos de seus versos apresentavam; no
entanto, ele também era capaz de ostentar a elegância (miyabi)
que aprendeu com o estudo do Kokin’wakashû. O ponto alto de
sua produção artística se revela em sua capacidade de construir
poemas encadeados harmoniosos em colaboração com seus
discípulos, habilidade reconhecida por seus contemporâneos e
pelas gerações posteriores.
De volta à capital aos cinquenta anos de idade, Sôgi construiu
uma pequena cabana de palha em um ponto isolado da capital
e passou a se dedicar inteiramente à poesia, conduzindo
sessões de poesia encadeada e dando aulas de composição à alta
nobreza. Em 1476, organizou a antologia de verso encadeado
Chikurinshô, colocando em destaque a obra dos seus mestres
Sôzei e Shinkei. Três anos depois, escreveu o ensaio Oi no susami,
em que propõe uma análise de dísticos e tercetos de poemas
encadeados utilizando conceitos próprios do waka, como que
deixando implícita a ideia de que a arte do renga se inscrevia na
prestigiosa tradição da poesia da Corte.
Em outros escritos, Sôgi buscou sistematizar as regras
de composição do poema encadeado com foco no evento, na
reunião, na dinâmica da partida de versos entre poetas —
ajudando a consolidar, assim, a especificidade desse gênero
poético. Como em outras artes que floresceram na Idade Média
japonesa (a cerimônia do chá, o teatro nô, etc.), o renga é uma
construção espaço-temporal coletiva de um lugar à parte,
protegido dos conflitos do mundo, onde imperam o silêncio, a
harmonia, a beleza e a meditação.
Em 1488, com quase setenta anos, foi designado pelo xogum
7
para presidir as sessões de renga do templo de Kitano — à
época, a mais alta honra que um autor de poesia encadeada
podia almejar. No mesmo ano, Sôgi e seus discípulos Shôhaku e
Sôchô se reuniram em Minase, no antigo palácio do imperador
Gotoba. Em homenagem ao falecido imperador, que fora um
importante poeta e defensor das artes, eles compuseram Três
poetas em Minase, um poema encadeado de estilo solene e
sério, considerado o exemplo mais perfeito dessa forma poética.
Em 1495, Sôgi lançou a antologia Shinsen Tsukubashû,
incluindo versos encadeados de seus mestres da geração
anterior, assim como composições de seus discípulos mais
próximos, como Shôhaku e Sôchô, e de alunos do alto escalão
militar e da nobreza, documentando a transição do renga de
“arte menor” para gênero central da Idade Média.
Mesmo depois de se instalar nos arredores de Quioto, Sôgi
nunca deixou de viajar, transmitindo seus ensinamentos,
herméticos ou não, a muitos alunos. Foi durante uma dessas
viagens que o mestre veio a falecer, em 1502. Seus discípulos
de todo o Japão, no entanto, se encarregaram de disseminar
os conhecimentos adquiridos do mestre, o que assegurou a
predominância de sua escola na poesia do século seguinte. A
próxima renovação do gênero do poema encadeado viria duas
gerações depois, com Matsuo Bashô, que transformou o haikai
no renga — versão menos “séria” e “respeitada” da arte de Sôgi
— em uma forma poética central da literatura japonesa — e,
finalmente, do mundo.
Shôhaku (1443-1527) era filho de Nakanoin no Michiatsu, um
nobre da Corte Imperial. Teve desde pequeno uma educação
refinada e aristocrática. Aos vinte anos de idade, saiu a
percorrer o Japão, em busca dos lugares tornados famosos pelas
narrativas e poemas. Mesmo sendo de classe alta e detentor de
privilégios, viu sua segurança ameaçada pela eclosão da Guerra
Ônin, o que o levou a deixar a capital e se refugiar no interior,
na província de Settsu (atualmente em Hyôgo). Ali, construiu
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uma cabana de eremita que serviu de base, nos anos seguintes,
para suas peregrinações pelo Japão. No fim da vida, por motivos
de saúde, foi viver em Sakai, à beira do mar. Shôhaku conhecia
profundamente a arte do poema japonês (waka) e do poema
encadeado (renga). Recebeu de seu mestre, Sôgi, os ensinamentos
herméticos sobre o Kokin’wakashû e o Romance do Genji.
Compôs, com Sôgi e Sôchô, dois dos poemas encadeados mais
importantes do cânone japonês: Três poetas em Minase (1488)
e Três poetas em Yuyama (1491). Em 1495, participou da equipe
que compilou a antologia Shinsen Tsukubashû. Deixou uma
antologia de composições suas intitulada Shunmusô, dividida
em duas partes: a primeira, dedicada ao waka; e a segunda, aos
seus versos encadeados.
Sôchô (1448-1532) era filho de um ferreiro da província de
Suruga (atual Shizuoka) e, quando jovem, serviu na casa do
líder militar local, Imagawa no Yoshitada. Aos dezessete anos de
idade, tornou-se monge e, cinco anos depois, foi para a capital,
onde foi discípulo de Ikkyû, o importante mestre zen. Em 1466,
encontrou Sôgi, que viria a ser seu professor de poesia. Na volta
de uma viagem com Sôgi até o norte de Kyûshû, deparou-se com
a capital totalmente destruída pelos conflitos decorrentes da
Guerra Ônin. Refugiou-se em sua província natal, onde atuou
como auxiliar do filho de seu antigo senhor, que havia sucedido
ao pai como líder militar da região. Em 1501, voltou a acompanhar
Sôgi, que estava doente e viria a falecer, sob seus cuidados, no
ano seguinte. Em 1504, foi viver em Utsunomiya, onde se casou
e teve dois filhos. Atuou ainda como uma espécie de mensageiro
diplomático do senhor de sua província em missões à capital,
onde era frequentemente visto nas mansões dos poderosos.
Além de compor, com Sôgi e Shôhaku, Três poetas em Minase
(1488) e Três poetas em Yuyama (1491), participou da equipe
que compilou a antologia Shinsen Tsukubashû. Era um autor
prolífico e deixou mais de uma antologia de composições suas,
além de manuais de poesia, crítica literária, relatos de viagem e
9
diários. Dentre os diários, o mais célebre é Sôgi shûenki (1502),
no qual narra os últimos dias de seu mestre, Sôgi. Compunha
também poemas encadeados “cômicos”, gênero que viria,
posteriormente, a dar origem ao mais conhecido haicai.
10
poetas e poeta ele mesmo, tendo estudado quando jovem
com o venerável Fujiwara no Shunzei. Gotoba promoveu
inúmeros utaawase (concursos de poesia), ocasiões nas quais
se compuseram muitos dos waka que seriam posteriormente
incluídos no Shinkokin’wakashû — antologia poética que ele
mesmo encomendou aos mais talentosos poetas de sua época,
com a intenção de registrar o esplendor artístico de sua Corte.
No âmbito da política, porém, Gotoba não conheceu vitórias
duradouras. No episódio que ficou conhecido como a Revolta de
Jôkyû (1221), Gotoba decretou a destituição do poder do xogum
e atacou o quartel general de Quioto, forçando o representante
do governo militar a se suicidar. No entanto, logo o xogunato
de Kamakura mobilizou suas forças, invadiu Quioto e baniu o
ex-imperador para a ilha de Oki, de onde ele nunca mais voltou.
Durante a Idade Média, a Corte Imperial e os nobres se
dedicaram à preservação dos ideais estéticos da Antiguidade, tida
como uma era de paz e esplendor, e ao aprofundamento da poética
aristocrática, por meio de recursos como a intertextualidade
e o simbolismo. Esse olhar em direção ao passado é em geral
descrito em termos de uma reação aos tempos de instabilidade
política em que esses poetas viviam. Mesmo buscando resgatar
um ideal clássico, os poetas medievais tinham uma visão de
mundo muito mais pessimista, melancólica e nostálgica do que
os autores que buscavam emular. Temas do budismo, como a
impermanência das pessoas e das coisas, ou ainda a ideia de que
o mundo sensível é uma ilusão a que estamos acorrentados ou
um mero sonho de que precisamos despertar, se tornam muito
mais frequentes nessa época.
Em 1467, houve uma divisão dos daimios em duas facções,
devido a problemas de sucessão. Em consequência, seguiram-
se onze anos de lutas e revoltas, tendo Quioto como centro
das hostilidades (a Guerra Ônin). As disputas cessaram com a
exaustão dos dois exércitos, mas o conflito teve por resultado
o enfraquecimento do poder do xogum e o colapso do sistema
11
político feudal. Essa estrutura social instável se prolongou
por cem anos (a “era da guerra civil”). A capital foi totalmente
destruída, bibliotecas foram incendiadas e templos saqueados.
É nesse contexto que Três poetas em Minase foi composto.
O Santuário de Minase, dedicado à memória de Gotoba,
representava, para Sôgi, Shôhaku e Sôchô, o último período de
esplendor da Corte Imperial (e da história literária japonesa).
O espírito de Gotoba estava intimamente associado à beleza
da velha capital — agora destruída e saqueada. Ao dedicarem
suas cem estrofes ao ex-imperador, os três poetas estavam
reivindicando a tradição do waka como base para a sua concepção
estética: em um mundo dividido e instável, as antologias poéticas
imperiais de eras anteriores remetiam a um tempo de unidade e
de harmonia. O hokku (terceto de abertura) de Minase, proposto
por Sôgi, faz referência a um waka de Gotoba:
ao avistar a névoa
no sopé da montanha
sobre o rio Minase:
quem foi que disse
que a noite é do outono?
Ex-Imperador Gotoba
見渡せば山もとかすむ水無瀬川
夕べは秋となに思ひけむ
miwataseba / yamamoto kasumu / minasegawa
yûbe wa aki to / nani omoiken
12
A passagem em que Sei Shônagon fala sobre isso é o texto de
abertura do Livro de Travesseiro, adotado desde então como
parâmetro de autoridade para a apreciação da natureza no
Japão. Eis como Sôgi faz referência ao poema de Gotoba:
13
AS REGRAS DO JOGO
14
que depois recebe furos na margem direita, pelos quais se
passa um cordão, de maneira a se criar um folheto. Um poema
encadeado de cem estrofes tem quatro folhas dobradas: oito
estrofes na frente da primeira folha, quatorze no verso; quatorze
na frente e no verso da segunda e terceira; e quatorze na frente e
oito no verso da quarta e última.
Depois de o mestre ter proposto os três versos iniciais (hokku,
5-7-5 sílabas), um discípulo compõe os dois versos da segunda
estrofe (wakiku, 7-7 sílabas), que deve ser relacionada de alguma
maneira aos três versos iniciais (em geral, sobre a mesma estação
do ano). A terceira parte, formada por três versos de 5-7-5 sílabas,
desenvolve o tema de maneira diferente, mas conservando algo
do tópico anterior. Esse encadeamento de dísticos de 7-7 sílabas
e de tercetos de 5-7-5 sílabas continua até o poema completar
o número pré-estabelecido de estrofes. As estrofes do corpo do
poema são chamadas de hiraku e a última estrofe, de dois versos
de 7-7 sílabas, é o ageku.
O poema encadeado, como a poesia clássica japonesa de uma
forma geral, paga tributo ao cânone literário que veio antes dele;
assim, o próprio Sôgi recomendava que todo principiante que
desejasse se aventurar no mundo da composição de poemas
encadeados deveria conhecer: o Man’yôshû (antologia poética do
século VIII); todas as antologias poéticas imperiais editadas até
então (ou seja, oito volumes compilados entre os séculos X e XV,
somando mais de dez mil poemas); o Conto da Princesa Kaguya
(século IX); os Contos de Ise (histórias e poemas, também
do século IX); os Contos de Yamato e a História de Utsuho
(século X); a História de Sagoromo (século XI); O Romance do
Genji (um livro do início do século XI com 54 capítulos e cujas
edições contemporâneas ultrapassam as duas mil páginas com
letra miudinha); e catálogos de lugares celebrados nas grandes
obras literárias. Esses textos são registros de um “gosto” estético
extremamente refinado, surgido na classe aristocrática a partir
do século VII, e que se tornou ainda mais exigente, conservador
15
e restrito com os séculos.
Não apenas o estilo: a língua falada pelas classes inferiores
no século XV não era a mesma língua clássica da Corte que se
mantém na poesia. Mesmo os temas e o vocabulário permitido
nessa literatura eram determinados por regras de elegância e de
decoro. Evitava-se toda e qualquer alusão a temas considerados
vulgares ou desagradáveis. A poesia clássica tem uma dicção e
gramática determinadas, e mesmo os elementos da natureza
são sistematizados, atribuindo-se mais força simbólica a uns
do que a outros no âmbito da literatura. Assim, grande parte
dos animais e plantas que conhecemos dos haicais de Bashô,
por exemplo, não podiam ser mencionados na poesia “séria” da
época de Sôgi, que se limitava à fauna e à flora que a nobreza dos
séculos anteriores selecionara para as suas antologias. Konishi
Jin’ichi oferece o seguinte catálogo de tópicos possíveis em
um poema encadeado “sério” (as palavras entre parênteses são
exemplificativas de um conjunto maior):
16
12 Amor (homem e mulher, esposo e esposa,
quimono de baixo)
13 Lembranças (o passado, a velhice, cabelo branco)
14 Viagens (barco ancorado, cruzar montanhas)
15 Lugares famosos (mar de Ise, monte Otowa,
aldeia de Katsura)
16 Moradas (aldeias, cabanas, sudare)
17 Vestimentas (quimono de baixo, coisas que se
põe na cabeça)
18 Impermanência (o cemitério de Torinobe, a
jornada final)
17
classes ascendentes significava “cultura tradicional de elite”. No
caso do século XV japonês, o prestígio social era associado à
tradição aristocrática.
O encadeamento das estrofes obedece a uma série de regras
minuciosas, chamadas de shikimoku. Cada estrofe deve ter
alguma forma de ligação com a anterior. No entanto, essa mesma
estrofe não pode repetir ideias ou palavras da estrofe que veio
antes da anterior. Isso significa que, para cada estrofe de um
dado poema, há uma interpretação possível se a associarmos
à estrofe precedente, e uma outra interpretação, se ela for lida
junto com a estrofe seguinte. Assim, por exemplo:
outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro
Sôgi
soprando sobre as eulálias
interrompe sonhos o maldito vento
Shôhaku
tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos
Sôchô
outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro
soprando sobre as eulálias
interrompe sonhos o maldito vento
18
ressentimento”), usada por Shôhaku em sua estrofe. Mas, se
juntarmos as estrofes 20 e 21, a interpretação é diferente:
19
esperar para mencionar de novo um tópico: assim, a lua só pode
reaparecer após três estrofes sem lua. Por fim, alguns grandes
temas, quando surgem, só podem ser abandonados após certo
número de estrofes — se um poeta fala do outono, por exemplo,
os seguintes só mudam de assunto após um mínimo de três e
um máximo de cinco estrofes (cf. STILERMAN, 2016; KONISHI,
1975, para diversos outros exemplos de regras e proibições).
20
caracterizado pela comicidade e vulgaridade, com o emprego de
gíria e kango (palavras de origem chinesa, que a poesia clássica
deveria evitar), distanciando-se, assim, das concepções estéticas
do waka, embora mantendo muitos elementos da técnica de
composição da poesia mais séria. Os versos de Teitoku ainda
são de caráter humorístico.
Não satisfeito com o estilo de Teitoku, um grupo liderado
pelo poeta de renga Nishiyama Sôin (1605–1682), de Ôsaka, cria
uma escola chamada Danrin, que se caracteriza pelos haikai
experimentais, livres e inovadores. Enquanto a escola Teimon
ainda preserva em grande medida a elegância da poesia clássica,
a escola Danrin se dedica radicalmente ao jogo de palavras e,
com isso, pela primeira vez o haikai se torna livre da concepção
estética do waka mais ortodoxo.
O hokku, a primeira estrofe do haikai no renga, tinha três versos
de 5-7-5 sílabas e se tornou, com o tempo, uma parte à qual se dava
especial importância, quase independente do resto do poema.
Foi com o poeta Matsuo Bashô que o haikai adquiriu o status de
verdadeira forma artística. Bashô (1644–1694) desenvolveu um
novo estilo, no fim do século XVII, que transcendia a dicotomia
entre o sério e o cômico, adotando uma postura humanista
e buscando uma dimensão espiritual para compreender a
realidade — tudo isso, dentro do limitado espaço do hokku. Seu
estilo, que no início se aproximava ao da poesia chinesa, estava
em constante desenvolvimento. O legado do poeta no contexto
da literatura japonesa é imenso, e suas múltiplas facetas tiveram
diferente apelo para cada uma das gerações posteriores. Sendo
um homem que associava seriedade artística com disciplina
espiritual, Matsuo Bashô estabeleceu um padrão de excelência
para a composição curta que foi seguido pelos grandes mestres
que vieram depois dele.
No final da Era Edo, poemas de três versos de 5-7-5 sílabas
já eram compostos independentemente do haikai no renga.
Grandes poetas, como Yosa Buson (1716–1784) e Kobayashi Issa
21
(1763–1828) compunham poemas de três versos a que não se
seguia uma série de versos encadeados. O estilo do haikai dito
clássico já estava consolidado nesse estágio. Para ser considerado
um haikai, o hokku deve ter três versos de 5-7-5 sílabas (ainda
que a irregularidade métrica ocorra de forma esporádica — e,
muitas vezes, intencional). Ele deve fazer alusão a uma estação
do ano, geralmente por meio de um kigo (“palavra da estação”).
Os kigo dependem de convenções estabelecidas anteriormente
e são uma porta de comunicação com a natureza e com textos
anteriores, em que a palavra já foi utilizada (ou seja, são uma
forma regulada de intertextualidade). Muitas vezes, o hokku tem
um kireji (“letra de corte”) ou elemento gramatical que expressa
corte — no tempo, no espaço, na enunciação, na percepção, ou
em combinações dessas categorias.
É a partir do fim do século XIX que o hokku, isolado do
haikai no renga, torna-se objeto de estudo e ganha importância
enquanto forma literária. O poeta Masaoka Shiki3 decide mesmo
criar um novo nome para a forma poética: haiku, uma fusão da
primeira sílaba de haikai e da segunda sílaba de hokku. Seria um
erro considerarmos que o haiku, na concepção de Shiki, seja um
sinônimo de haikai, ainda que ele tenha suas raízes nesse estilo
poético. O haikai tem uma orientação e dinâmica voltadas para
o coletivo — é uma arte poética comunitária que busca resgatar
e enaltecer as tradições japonesas com o objetivo de aprimorar o
espírito de colaboração, modéstia e delicadeza. O haiku, por sua
vez, é uma arte individual, solitária. Sendo assim, as regras de
elaboração do haiku são diferentes das do haikai no renga.
No Brasil, a percebida concisão sem retórica do haicai
japonês foi o traço que os modernistas adotaram como ideal.
No entanto, muitos estudiosos da história clássica do haicai —
como, por exemplo, Shirane Haruo — afirmam que essa não é a
3
Para uma seleção dos haicais de Masaoka Shiki em tradução, cf. CUNHA,
Andrei; SCHMITT-PRYM, Roberto. SHIKI, inventor do haicai moderno.
Porto Alegre: Bestiário / Class, 2021.
22
principal característica da obra de Bashô e de outros haicaístas
japoneses pré-modernos, que davam mais importância à
justaposição de imagens e a uma elaborada “retórica do
silêncio”. Graças aos estudos de Paulo Franchetti, sabemos que a
obra poética mais importante no contexto da recepção inicial do
haicai no Brasil foi Les Haïkaï (1916), do orientalista francês Paul-
Louis Couchoud. Mesmo o vocábulo adotado aqui para designar
a forma poética vem do título dessa obra hoje esquecida: na
França contemporânea, o haicai se chama haiku.
Dentre os modernistas brasileiros, dois autores já
demonstravam uma intimidade maior com o haicai: Guilherme
de Almeida publica em 1937 uma antologia de composições
próprias, e Manuel Bandeira realiza algumas traduções de Bashô
que têm seu lugar garantido na história da poesia traduzida do
japonês para o português.
O segundo momento da recepção do haicai no Brasil, com os
concretistas, ainda que caracterizado por um aprofundamento
da reflexão sobre o que é um haicai — como gênero textual,
como objeto visual, como poética, como filosofia — também
dependeu de desleituras da metrópole. Dessa vez, em vez de
franceses hoje obscuros, foram os americanos, nas figuras de
Ernest Fenollosa e de Ezra Pound, que serviram de mediadores.
Autores como Haroldo de Campos concebem o haicai de forma
consideravelmente mais sofisticada do que os primeiros
modernistas. No entanto, o ideal de concisão é mais uma
vez enfatizado, agora a partir de uma visão “ideogramática”
da poesia. Essa interpretação da poética japonesa faz todo o
sentido, quando vista como um instrumento de legitimação do
movimento concretista, que buscava uma estética totalizante e
sintética, unindo o visual, o sonoro e o textual.
No entanto, essa não é a única maneira de se contar essa
história. Quatorze anos antes da Semana de Arte Moderna, o
haicai já havia sido trazido ao Brasil pelos imigrantes japoneses.
Do Kasato Maru, o primeiro navio japonês a trazer imigrantes
23
ao porto de Santos, em 1908, desembarcou Uetsuka Shuhei
(1876–1935), que teria escrito (a história pode ser apócrifa) o
primeiro haicai feito em terras brasileiras. Subsequentemente,
o Brasil recebeu Nempuku Sato (1898–1979), que trouxe consigo
os princípios da escola de Masaoka Shiki. Masuda Goga, o maior
haicaísta brasileiro, foi discípulo de Sato. Teruko Oda, a maior
haicaísta brasileira viva, foi discípula de Goga. É a partir das
tradições trazidas do Japão por essa linhagem de poetas que
uma nova vertente de autores de haicai floresce atualmente no
Brasil. No início, esses grupos eram compostos por imigrantes
e descendentes de japoneses. Hoje em dia, no entanto, os
clubes e agremiações de haicai acolhem todo tipo de sócio, e a
produção poética se dá tanto em japonês como em português.
Ao contrário da idealização operada pelos mediadores de língua
francesa e inglesa, que encontramos nas teorias adotadas pelos
poetas brasileiros modernistas e concretistas, esses grupos
desenvolveram um fazer poético em língua portuguesa do
Brasil, que se apropria de maneira mais direta das práticas
dos haicaístas do Japão. Não é à toa que foi essa vertente, mais
“humilde” e menos “intelectualizada” do haicai, que se esforçou
em criar mesmo um repertório de palavras sazonais relacionadas
à geografia brasileira. E não podemos esquecer que a estética
contemporânea do haicai valoriza o “humilde”, o terreno, o
quotidiano, e despreza as idealizações intelectualizantes,
os conceitos esforçadamente sofisticados, as generalizações
metafísicas. Essas ênfases redirecionadas refletem escolhas que
Masaoka Shiki fez para a sua concepção de poesia, em oposição
às tradições mantidas pelos discípulos de Bashô.
24
termos do imaginário regional europeu — dialético e polifônico.
As estrofes estão em constante diálogo com o que vem antes e
depois delas; no entanto, esse diálogo, pelas regras mesmas
do jogo poético, só se mantém com as partes adjacentes,
desfazendo-se e recomeçando a cada novo encadeamento,
combinando o som de inúmeras vozes, personagens, situações,
atitudes, elementos da natureza, etc., que se materializam pela
duração de cinco versos e logo em seguida dão lugar à próxima
combinação semântica. A unidade não é obtida por coesão
temática, narrativa ou lógica, e sim pela textura da sequência,
com repetições curtas e longas, imagens que aparecem e somem,
saltos de sentido, descontinuidades temporais.
Mesmo formando um poema de cinco versos com a estrofe
que vem antes e outro com a que vem depois, cada “elo” da cadeia
deve, também, poder ser lido como uma peça com diferentes
sentidos em potencial, a depender de como for recombinada
— um sentido que é sempre relacional, provisório, parcial,
efêmero. Na Idade Média, as “unidades estróficas” do poema
encadeado eram apreciadas em mais de um nível: como unidades
autônomas; como unidades em diálogo com as suas adjacentes;
como elemento surpresa com relação à estrofe antecedente; e
como uma figura dentro de uma padronagem de maior escala.
Duzentos anos depois, no tempo de Bashô, essas estrofes ainda
eram compostas em termos dialéticos, como um amálgama de
leituras (com ou sem contexto) dos mesmos versos, que podiam
ser “carregados” de um encontro de poetas a outro, mas que
adquiriam novos sentidos e produziam novas consequências
cada vez que eram retomados — à semelhança de um lance de
um jogador a outro, em um esporte de equipe; ou de um passo
de dança — igual, mas diferente — em duas coreografias.
A modernidade rejeitou o caráter comunitário e relacional
do verso encadeado, e passou a ler os grandes haicaístas como
autores individuais de estrofes autônomas; ora, essa é apenas
uma dentre as muitas leituras possíveis de uma estrofe de
25
poesia encadeada. Foi a modalidade de leitura mais readymade,
que valoriza o ladrilho e não vê o mosaico, que se espalhou
pelo mundo. Há exceções: um exemplo famoso é o “Renga” que
Octavio Paz compôs no início dos anos 1970, em parceria com
Jacques Roubaud, Edoardo Sanguineti e Charles Tomlinson. No
entanto, para se tornar atraente para uma grande quantidade
de leitores em diferentes espaços, épocas e culturas, o poema
encadeado teve de se desfazer de quase todo o seu passado e
contexto. Esperamos trazer, com nossa tradução encadeada
de uma sequência célebre, um novo elemento ao imaginário
brasileiro relacionado ao haicai e às suas origens.
26
Três poetas
em Minase
水無瀬三吟百韻
Sôgi, Shôhaku, Sôchô
賦
何
人
連
歌
長
享
二
年
正
月
廿
二
日
Composto no dia 22
do primeiro mês do ano dois
do Período Chôkyô,
no reino de Sua Majestade
o Imperador Gotsuchimikado.
— 1488 —
初表 序
F R E N T E DA P R I M E I R A FO L H A
1
春
PRIMAVERA
SÔGI
宗祇
雪ながら山もとかすむ夕べかな
yuki nagara / yamamoto kasumu / yûbe kana
29
1-2
30
2
春
PRIMAVERA
SHÔHAKU
肖柏
行く水遠く梅にほふ里
yuku mizu tôku / ume niou sato
31
2-3
32
3
春
PRIMAVERA
SÔCHÔ
宗長
河風に一むら柳春見えて
kawakaze ni / hitomura yanagi / haru miete
33
3-4
34
4
雑
MISCELÂNEA
SÔGI
宗祇
舟さす音もしるき明けがた
fune sasu oto mo / shiruki akegata
35
4-5
36
5
秋
OUTONO
月
LUA
a lua ainda
segue noite adentro
através da bruma?
SHÔHAKU
肖柏
月や猶霧わたる夜に残るらん
tsuki ya nao / kiri wataru yo ni / nokoruran
37
5-6
a lua ainda
segue noite adentro
através da bruma?
nos campos cobertos de geada
o outono chega ao seu fim
38
6
秋
OUTONO
SÔCHÔ
宗長
霜おく野原秋は暮れけり
shimo oku nohara / aki wa kurekeri
39
6-7
40
7
秋
OUTONO
SÔGI
宗祇
鳴く虫の心ともなく草かれて
naku mushi no / kokoro to mo naku / kusa karete
41
7-8
42
8
雑
MISCELÂNEA
SHÔHAKU
肖柏
垣根をとへばあらはなる路
kakine wo toeba / arawanaru michi
F I M DA F R E N T E DA P R I M E I R A FO L H A
43
8-9
44
初裏 破
V E R S O DA P R I M E I R A FO L H A
9
雑
MISCELÂNEA
SÔCHÔ
宗長
山ふかき里や嵐におくるらん
yama fukaki / sato ya arashi ni / okururan
45
9-10
46
10
雑
MISCELÂNEA
SÔGI
宗祇
なれぬすまゐぞさびしさもうき
narenu sumai zo / sabishisa mo uki
47
10-11
48
11
述
懐
LAMENTO
não é hora
de se lamentar
por estar só
SHÔHAKU
肖柏
今更にひとりある身を思ふなよ
ima sara ni / hitori aru mi wo / omou na yo
49
11-12
não é hora
de se lamentar
por estar só
pois você não sabia
que tudo sempre se altera?
50
12
述
懐
LAMENTO
SÔCHÔ
宗長
うつろはんとはかねて知らずや
utsurowan to wa / kanete shirazu ya
51
12-13
a flor da cerejeira
perdeu sua cor em
vão minha juventude
passou enquanto eu
distraída olhava a chuva
52
13
春
PRIMAVERA
SÔGI
宗祇
置きわぶる露こそ花にあはれなれ
okiwaburu / tsuyu koso hana ni / aware nare
53
13-14
54
14
春
PRIMAVERA
SHÔHAKU
肖柏
まだ残る日のうちかすむ影
mada nokoru hi no / uchikasumu kage
55
14-15
56
15
春
PRIMAVERA
está anoitecendo —
a gritaria dos pássaros
na volta à casa
SÔCHÔ
宗長
暮れぬとや鳴きつつ鳥の帰るらん
kurenu to ya / nakitsutsu tori no / kaeruran
57
15-16
está anoitecendo —
a gritaria dos pássaros
na volta à casa
no alto da serra
não há céu que nos guie
58
16
旅
VIAGEM
no alto da serra
não há céu que nos guie
SÔGI
宗祇
み山をゆけば分く空もなし
miyama wo yukeba / waku sora mo nashi
59
16-17
no alto da serra
não há céu que nos guie
quando a chuva para
gotas ainda caem frias
nas mangas do viajante
60
17
秋
OUTONO
旅
VIAGEM
SHÔHAKU
肖柏
晴るるまも袖はしぐれの旅衣
haruru ma mo / sode wa shigure no / tabigoromo
61
17-18
62
18
秋
OUTONO
旅
VIAGEM
月
LUA
SÔCHÔ
宗長
わが草枕月ややつさむ
waga kusamakura / tsuki ya yatsusan
63
18-19
64
19
秋
OUTONO
恋
AMOR
outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro
SÔGI
宗祇
いたづらにあかす夜おほく秋更て
itazura ni / akasu yo ôku / aki fukete
65
19-20
outono adentro
são muitas e em vão
as noites em claro
soprando sobre as eulálias
interrompe sonhos o maldito vento
66
20
秋
OUTONO
恋
AMOR
SHÔHAKU
肖柏
夢にうらむる荻の上風
yume ni uramuru / ogi no uwakaze
67
20-21
68
21
述
懐
LAMENTO
tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos
SÔCHÔ
宗長
見しはみな故郷人の跡もなし
mishi wa mina / furusatobito no / ato mo nashi
69
21-22
tudo o que se vê
são tristes recordações
de antigos amigos
na jornada da velhice perdi
meus laços com o mundo
70
22
述
懐
LAMENTO
SÔGI
宗祇
老のゆくへよ何にかからむ
oi no yukue yo / nani ni kakaran
F I M DA P R I M E I R A FO L H A
71
22-23
“Palavras sem cor” (iro mo naki koto no ha) faz alusão tanto à
literatura quanto às folhas das plantas — que perdem a cor no
inverno. Também encontramos um eco da abertura do “Prefácio em
hiragana” de Ki no Tsurayuki (séc. X): “A poesia japonesa brota do
coração humano, que é a sua semente, e suas folhas crescem como dez
mil palavras”.
72
二表
F R E N T E DA S E G U N DA FO L H A
23
述
懐
LAMENTO
como consolo
restam estes versos
palavras sem cor
SHÔHAKU
肖柏
色もなきことの葉をだに哀しれ
iro mo naki / koto no ha wo dani / aware shire
73
23-24
como consolo
restam estes versos
palavras sem cor
e o velho amigo de sempre
o céu do entardecer
74
24
雑
MISCELÂNEA
SÔGI
宗祇
それも友なる夕暮の空
sore mo tomo naru / yûgure no sora
75
24-25
flores da cerejeira
que o vento despetala
memórias flutuam
no céu sem água
cheio de vagas
76
25
春
PRIMAVERA
花
FLOR
cruzando a montanha
nuvens tomam o lugar
das flores caídas
SÔCHÔ
宗長
雲にけふ花ちりはつる嶺こえて
kumo ni kyô / hana chirihatsuru / mine koete
77
25-26
cruzando a montanha
nuvens tomam o lugar
das flores caídas
é hora! os gansos selvagens
despedem-se da primavera
78
26
春
PRIMAVERA
SHÔHAKU
肖柏
きけばいまはの春のかりがね
kikeba imawa no / haru no karigane
79
26-27
80
27
春
PRIMAVERA
月
LUA
SÔGI
宗祇
おぼろげの月かは人もまてしばし
oboroge no / tsuki ka wa hito mo / mate shibashi
81
27-28
82
28
秋
OUTONO
旅
VIAGEM
SÔCHÔ
宗長
かりねの露の秋の明ぼの
karine no tsuyu no / aki no akebono
83
28-29
84
29
秋
OUTONO
à borda do prado
um vilarejo distante
cobre-se de neblina
SHÔHAKU
肖柏
末野なる里ははるかに霧立ちて
sueno naru / sato wa haruka ni / kiri tachite
85
29-30
à borda do prado
um vilarejo distante
cobre-se de neblina
o vento que vem traz o som
do bater das pisoeiras
86
30
秋
OUTONO
SÔGI
宗祇
吹きくる風は衣うつ声
fukikuru kaze wa / koromo utsu koe
87
30-31
88
31
冬
INVERNO
SÔCHÔ
宗長
冴ゆる日も身は袖うすき暮ごとに
sayuru hi mo / mi wa sode usuki / kuregoto ni
89
31-32
90
32
述
懐
LAMENTO
SHÔHAKU
肖柏
たのむもはかな爪木とる山
tanomu mo hakana / tsumagi toru yama
91
32-33
92
33
述
懐
LAMENTO
SÔGI
宗祇
さりとものこの世の道はつきはてて
saritomo no / kono yo no michi wa / tsukihatete
93
33-34
94
34
述
懐
LAMENTO
SÔCHÔ
宗長
心細しやいづちゆかまし
kokorobososhi ya / izuchi yukamashi
95
34-35
96
35
恋
AMOR
desde a manhã de
nosso adeus espero só
que esta vida acabe
SHÔHAKU
肖柏
命のみ待つことにするきぬぎぬに
inochi nomi / matsu koto ni suru / kinuginu ni
97
35-36
desde a manhã de
nosso adeus espero só
que esta vida acabe
o que será que me faz
sentir renascer a paixão?
98
36
恋
AMOR
SÔGI
宗祇
猶なになれや人の恋しき
nao nani nare ya / hito no koishiki
F I M DA F R E N T E DA S E G U N DA FO L H A
99
36-37
100
二裏
V E R S O DA S E G U N DA FO L H A
37
恋
AMOR
SÔCHÔ
宗長
君を置きてあかずも誰を思ふらん
kimi wo okite / akazu mo tare wo / omouran
101
37-38
102
38
恋
AMOR
SHÔHAKU
肖柏
その俤に似たるだになし
sono omokage ni / nitaru dani nashi
103
38-39
104
39
述
懐
LAMENTO
SÔGI
宗祇
草木さへふるき都の恨にて
kusaki sae / furuki miyako no / urami nite
105
39-40
106
40
述
懐
LAMENTO
SÔCHÔ
宗長
身のうき宿も名残りこそあれ
mi no uki yado mo / nagori koso are
107
40-41
108
41
述
懐
LAMENTO
a lembrança ainda
vívida da mãe querida
me reconforta
SHÔHAKU
肖柏
たらちねの遠からぬ跡になぐさめよ
tarachine no / tôkaranu ato ni / nagusame yo
109
41-42
a lembrança ainda
vívida da mãe querida
me reconforta
passam-se os sóis e as luas
na velocidade do sonho
110
42
雑
MISCELÂNEA
SÔGI
宗祇
月日のすゑや夢にめぐらん
tsukihi no sue ya / yume ni meguran
111
42-43
“Sóis e luas” são os dias e os meses ou, por extensão, o tempo. O “barco
que vai à China” é uma imagem comum na poesia clássica, pois muitos
monges e homens sábios japoneses eram enviados ao continente como
estudantes. A cultura chinesa era a cultura central e de elite, tanto para
a poesia como para outras áreas, como a jurídica, filosófica, religiosa,
administrativa, etc. Para um japonês da era clássica, compreender
textos chineses equivaleria, mais ou menos, a saber latim na Europa
pré-moderna.
112
43
旅
VIAGEM
parado no porto —
última escala do barco
rumo à distante China
SÔCHÔ
宗長
この岸をもろこし舟のかぎりにて
kono kishi wo / morokoshibune no / kagiri nite
113
43-44
parado no porto —
última escala do barco
rumo à distante China
ah! quero um rito que me liberte
deste ciclo de reencarnações
Há um famoso poema de Abe no Nakamaro sobre esse mesmo tópico
(Kokin’wakashû 9 Viagens 406, “Ao contemplar a lua da China”):
vasto firmamento
olhando ao longe
revejo o Japão
por detrás daquela serra
a mesma lua
114
44
釈
教
BUDISMO
SHÔHAKU
肖柏
又生れこぬ法を聴かばや
mata umarekonu / hô wo kikaba ya
115
44-45
A vida humana é breve como o orvalho que desaparece sem deixar traço
sob os raios do sol da manhã. Pelos ensinamentos budistas, as pessoas
estão “presas em um ciclo de reencarnações” enquanto não atingem
a iluminação espiritual. Esse ciclo de mortes e renascimentos é visto
como uma punição. A única maneira de se escapar dessa repetição de
erros é se desprendendo das coisas do mundo.
116
45
秋
OUTONO
恋
AMOR
SÔGI
宗祇
逢までと思の露のきえかへり
au made to / omoi no tsuyu no / kiekaeri
117
45-46
118
46
秋
OUTONO
恋
AMOR
SÔCHÔ
宗長
身をあき風も人だのめなり
mi wo akikaze mo / hitodanome nari
119
46-47
120
47
恋
AMOR
esperanças cantam
em meio às artemísias
um canto vão
SHÔHAKU
肖柏
松虫のなく音かひなき蓬生に
matsumushi no / naku ne kai naki / yomogiu ni
121
47-48
esperanças cantam
em meio às artemísias
um canto vão
as cordas votivas demarcam
a montanha onde só mora a lua
122
48
秋
OUTONO
月
LUA
SÔGI
宗祇
しめゆふ山は月のみぞすむ
shimeyû yama wa / tsuki nomi zo sumu
123
48-49
124
49
述
懐
LAMENTO
um sino tocando
e adianto o que está por vir —
a madrugada em claro
SÔCHÔ
宗長
鐘にわれただあらましの寝覚して
kane ni ware / tada aramashi no / nezame shite
125
49-50
um sino tocando
e adianto o que está por vir —
a madrugada em claro
sobre a cabeça a geada
aumenta noite após noite
126
50
冬
INVERNO
述
懐
LAMENTO
SHÔHAKU
肖柏
いただきけりな夜な夜なの霜
itadakikeri na / yonayona no shimo
F I M DA S E G U N DA FO L H A
127
50-51
128
三表
F R E N T E DA T E RC E I R A FO L H A
51
冬
INVERNO
SÔGI
宗祇
冬枯れの芦たづわびて立てる江に
fuyugare no / ashitazu wabite / tateru e ni
129
51-52
130
52
雑
MISCELÂNEA
SHÔHAKU
肖柏
夕汐風の遠つ舟人
yûshiokaze no / okitsu funabito
131
52-53
atravessando o estreito
de Yura o barqueiro
perde seu remo
perde seu rumo
como eu no amor
132
53
春
PRIMAVERA
SÔCHÔ
宗長
ゆくへなき霞やいづくはてならん
yukue naki / kasumi ya izuku / hate naran
133
53-54
134
54
春
PRIMAVERA
na aldeia na montanha
de repente a primavera
SÔGI
宗祇
くるかた見えぬ山里の春
kuru kata mienu / yamazato no haru
135
54-55
na aldeia na montanha
de repente a primavera
de verdes ramos
as últimas flores de cerejeira
caem pouco a pouco
136
55
春
PRIMAVERA
de verdes ramos
as últimas flores de cerejeira
caem pouco a pouco
SHÔHAKU
肖柏
茂みよりたえだえのこる花落ちて
shigemi yori / taedae nokoru / hana ochite
137
55-56
de verdes ramos
as últimas flores de cerejeira
caem pouco a pouco
sob as árvores abro a trilha
ainda cheia de orvalho
138
56
秋
OUTONO
SÔCHÔ
宗長
木のした分る道の露けさ
ko no moto wakuru / michi no tsuyukesa
139
56-57
140
57
秋
OUTONO
SÔGI
宗祇
秋はなどもらぬ岩屋も時雨るらん
aki wa nado / moranu iwaya mo / shigururan
141
57-58
142
58
秋
OUTONO
月
LUA
釈
教
BUDISMO
SHÔHAKU
肖柏
苔のたもとに月はなれけり
koke no tamoto ni / tsuki wa narekeri
143
58-59
144
59
秋
OUTONO
釈
教
BUDISMO
agora sabemos
do devoto coração
deste eremita
SÔCHÔ
宗長
心あるかぎりぞしるき世捨人
kokoro aru / kagiri zo shiruki / yosutebito
145
59-60
agora sabemos
do devoto coração
deste eremita
na calmaria das vagas
vê-se o barco a deslizar
146
60
旅
VIAGEM
SÔGI
宗祇
をさまる浪に舟いづる見ゆ
osamaru nami ni / fune izuru miyu
147
60-61
148
61
雑
MISCELÂNEA
manhã tranquila
no céu não há vestígios
das nuvens noturnas
SHÔHAKU
肖柏
朝なぎの空に跡なき夜の雲
asanagi no / sora ni ato naki / yoru no kumo
149
61-62
manhã tranquila
no céu não há vestígios
das nuvens noturnas
são tão brilhantes na neve
as montanhas ao redor
150
62
冬
INVERNO
SÔCHÔ
宗長
雪にさやけき四方の遠山
yuki ni sayakeki / yomo no tôyama
151
62-63
152
63
冬
INVERNO
SÔGI
宗祇
峯の庵木の葉の後もすみあかで
mine no io / ko no ha no nochi mo / sumiakade
153
63-64
154
64
雑
MISCELÂNEA
SHÔHAKU
肖柏
さびしさならふ松風の声
sabishisa narau / matsukaze no koe
F I M DA F R E N T E DA T E RC E I R A FO L H A
155
64-65
156
三裏
V E R S O DA T E RC E I R A FO L H A
65
釈
教
BUDISMO
SÔCHÔ
宗長
誰かこの暁おきをかさねまし
tare ka kono / akatsuki oki wo / kasanemashi
157
65-66
158
66
秋
OUTONO
旅
VIAGEM
月
LUA
só a lua sabe
da solidão da viagem
SÔGI
宗祇
月はしるやの旅ぞかなしき
tsuki wa shiru ya no / tabi zo kanashiki
159
66-67
só a lua sabe
da solidão da viagem
molhadas pelo orvalho
e agora pesadas de geada
minhas mangas de outono
160
67
秋
OUTONO
SHÔHAKU
肖柏
露ふかみ霜さへしぼる秋の袖
tsuyu fukami / shimo sae shioru / aki no sode
161
67-68
162
68
秋
OUTONO
SÔCHÔ
宗長
うす花すすき散らまくも惜し
usu hanasusuki / chiramaku mo oshi
163
68-69
164
69
秋
OUTONO
canta a codorna
triste no frio da sombra
do lado de lá da serra
SÔGI
宗祇
鶉なくかた山くれて寒き日に
uzura naku / katayama kurete / samuki hi ni
165
69-70
canta a codorna
triste no frio da sombra
do lado de lá da serra
vivo solitária neste campo
onde já houve um vilarejo
166
70
述
懐
LAMENTO
SHÔHAKU
肖柏
野となる里も佗びつつぞすむ
no to naru sato mo / wabitsutsu zo sumu
167
70-71
168
71
恋
AMOR
se ele voltar
vai ver com que paixão
esperei por ele
SÔCHÔ
宗長
帰りこば待ちし思を人やみむ
kaerikoba / machishi omoi wo / hito ya min
169
71-72
se ele voltar
vai ver com que paixão
esperei por ele
de quem será
esse coração tão frio?
170
72
恋
AMOR
de quem será
esse coração tão frio?
SÔGI
宗祇
うときも誰がこころなるべき
utoki mo tare ga / kokoro naru beki
171
72-73
de quem será
esse coração tão frio?
desde o começo
foram sempre tortuosos
os caminhos do amor
172
73
恋
AMOR
desde o começo
foram sempre tortuosos
os caminhos do amor
SHÔHAKU
肖柏
昔よりただあやにくの恋の道
mukashi yori / tada ayaniku no / koi no michi
173
73-74
desde o começo
foram sempre tortuosos
os caminhos do amor
quando esquecer é impossível
o mundo se faz amargo
174
74
恋
AMOR
SÔCHÔ
宗長
わすられがたき世さへうらめし
wasuraregataki / yo sae urameshi
175
74-75
176
75
雑
MISCELÂNEA
isolado na montanha
eu já não devia pensar
em primaveras e invernos
SÔGI
宗祇
山がつになど春秋のしらるらん
yamagatsu ni / nado haruaki no / shiraruran
177
75-76
isolado na montanha
eu já não devia pensar
em primaveras e invernos
o mato cresce alto ao redor
da porta de galhos secos
178
76
夏
VERÃO
SHÔHAKU
肖柏
植ゑぬ草葉のしげき柴の戸
uenu kusaba no / shigeki shiba no to
179
76-77
180
77
春
PRIMAVERA
adiante da cerca
os campos abandonados —
apenas meio arados
SÔCHÔ
宗長
かたはらに垣穂のあら田かへし捨て
katawara ni / kakiho no arata / kaeshi sute
181
77-78
adiante da cerca
os campos abandonados —
apenas meio arados
a figura do homem se perde
embaçada na chuva da tarde
182
78
春
PRIMAVERA
SÔGI
宗祇
ゆく人かすむ雨の暮れがた
yuku hito kasumu / ame no kuregata
F I M DA T E RC E I R A FO L H A
183
78-79
184
名残表
F R E N T E DA Ú LT I M A FO L H A
79
春
PRIMAVERA
SÔCHÔ
宗長
宿りせん野を鶯や厭ふらん
yadori sen / no wo uguisu ya / itouran
185
79-80
186
80
春
PRIMAVERA
a noite é serena
sob as cerejeiras
SHÔHAKU
肖柏
小夜もしづかに桜咲くかげ
sayo mo shizuka ni / sakura saku kage
187
80-81
a noite é serena
sob as cerejeiras
deixo de lado a lanterna
e fico olhando as flores
na luz gradual da manhã
188
81
春
PRIMAVERA
花
FLOR
SÔGI
宗祇
灯をそむくる花にあけそめて
toboshibi wo / somukuru hana ni / akesomete
189
81-82
190
82
恋
AMOR
SÔCHÔ
宗長
誰が手枕に夢は見えけん
taga tamakura ni / yume wa mieken
191
82-83
192
83
恋
AMOR
promessas feitas
com o passar dos anos
são esquecidas
SHÔHAKU
肖柏
契らばや思ひたえつつ年も経ぬ
chigiraba ya / omoitaetsutsu / toshi mo hen
193
83-84
promessas feitas
com o passar dos anos
são esquecidas
já sou velho demais
para ir viver nas montanhas
194
84
述
懐
LAMENTO
SÔGI
宗祇
今はのよはひ山もたづねじ
ima wa no yowai / yama mo tazuneji
195
84-85
196
85
述
懐
LAMENTO
SÔCHÔ
宗長
かくす身を人はなきにもなしつらむ
kakusu mi wo / hito wa naki ni mo / nashitsuran
197
85-86
198
86
述
懐
LAMENTO
SHÔHAKU
肖柏
さてもうき世にかかる玉の緒
sate mo ukiyo ni / kakaru tama no wo
199
86-87
200
87
雑
MISCELÂNEA
SÔGI
宗祇
松の葉をただ朝夕の煙にて
matsu no ha wo / tada asayû no / keburi nite
201
87-88
202
88
雑
MISCELÂNEA
pessoas à beira-mar —
como é que vivem a vida
SÔCHÔ
宗長
浦わの里はいかにすむらん
urawa no sato wa / ika ni sumuran
203
88-89
pessoas à beira-mar —
como é que vivem a vida
o vento de outono
e o duro travesseiro da praia
dificultam o sono
204
89
秋
OUTONO
旅
VIAGEM
o vento de outono
e o duro travesseiro da praia
dificultam o sono
SHÔHAKU
肖柏
秋風のあら磯枕ふしわびぬ
akikaze no / araiso makura / fushiwabinu
205
89-90
o vento de outono
e o duro travesseiro da praia
dificultam o sono
a voz dos gansos selvagens
e a lua que avança no céu sobre a serra
206
90
秋
OUTONO
月
LUA
SÔGI
宗祇
雁なく山の月更くる空
kari naku yama no / tsuki fukuru sora
207
90-91
os gansos selvagens
que tristonhos passam
deixam suas lágrimas
orvalho no jardim
da minha melancolia
208
91
秋
OUTONO
amanhã verei
as gotas de orvalho
nas flores da lespedeza
SÔCHÔ
宗長
小萩原うつろふをしも猶やみん
kohagihara / utsurou tsuyu mo / asu ya min
209
91-92
amanhã verei
as gotas de orvalho
nas flores da lespedeza
como o prado de Ada
é o coração dessa pessoa
210
92
恋
AMOR
SHÔHAKU
肖柏
あだの大野を心なる人
ada no ôno wo / kokoro naru hito
F I M DA F R E N T E DA Ú LT I M A PÁG I N A
211
92-93
212
名残裏 急
V E R S O DA Ú LT I M A PÁG I N A
93
恋
AMOR
SÔGI
宗祇
忘るなよかぎりやかはる夢うつつ
wasuru na yo / kagiri ya kawaru / yume utsutsu
213
93-94
214
94
述
懐
LAMENTO
SÔCHÔ
宗長
思へばいつをいにしへにせむ
omoeba itsu wo / inishie ni sen
215
94-95
216
95
釈
教
BUDISMO
um Buda se retira
para que outro apareça
neste nosso mundo
SHÔHAKU
肖柏
仏たち隠れては又いづる世に
hotoketachi / kakurete wa mata / izuru yo ni
217
95-96
um Buda se retira
para que outro apareça
neste nosso mundo
até no mato seco
sopra o vento de primavera
218
96
春
PRIMAVERA
SÔGI
宗祇
枯れし林も春風ぞ吹く
kareshi hayashi mo / harukaze zo fuku
219
96-97
220
97
春
PRIMAVERA
montanha na manhã —
depois de noites geladas
se cobre de névoa
SÔCHÔ
宗長
山はけさいく霜夜にか霞むらん
yama wa kesa / iku shimoyo ni ka / kasumuran
221
97-98
montanha na manhã —
depois de noites geladas
se cobre de névoa
a fumaça sobe mansa
a choupana irradia paz
222
98
春
PRIMAVERA
SHÔHAKU
肖柏
煙のどかに見ゆる仮庵
keburi nodoka ni / miyuru kari io
223
98-99
224
99
雑
MISCELÂNEA
SÔGI
宗祇
いやしきも身ををさむるは有つべし
iyashiki mo / mi wo osamuru wa / aritsubeshi
225
99-100
226
100
雑
MISCELÂNEA
SÔCHÔ
宗長
人におしなべ道ぞ正しき
hito ni oshinabe / michi zo tadashiki
FIM DO POEMA
227
REFERÊNCIAS
BROWER, Robert. Shôhaku. In: Kodansha Encyclopedia of Japan.
v. 7. Tóquio: Kôdansha, 1983. p. 161-162.
228
COM A PALAVRA, OS TRADUTORES
Andrei Cunha
229
inúmeras traduções e antologias, ele é sempre lido como uma
peça discreta, individual — quando, na verdade, antes do século
XIX, ninguém compunha haicai como uma unidade autônoma: a
estrofe de três versos era vista como um elemento constituinte de
um todo maior. Ela podia aparecer no contexto de um diário ou
de um relato de viagem, cuja prosa permitia a compreensão do
momento em que surgiu o poema; ou ainda (e é para isso que se
estudava composição poética na Idade Média japonesa), dentro
de um fazer comunitário que pressupunha a interação criativa
de um número plural de artistas ou entusiastas. À semelhaça
da cerimônia do chá (e, de uma maneira mais ampla, de todas
as artes da performance), a literatura japonesa está imersa em
uma poética do encontro, do momento, da presença, do grupo,
que nem todo o individualismo ocidental, nem todo o mito
romântico do “gênio”, nem toda a Revolução Industrial, nem todo
o capitalismo moderno, nem toda a reprodutibilidade técnica
conseguiram silenciar completamente. Foi por isso, também,
que eu quis que o Minase brasileiro fosse uma tradução encadeada:
quando se abre o processo tradutório para a interação entre três
pessoas, o resultado ganha em pluralidade, em contigência, em
imprevistos — alegres improvisos, que flutuam na superfície da
página em variações e contravozes. O grupo que eu, a Karen e
o Roberto formamos pode parecer heteróclito e idiossincrático,
mas isso foi intencional: a diferença de trajetórias existenciais
que há entre nós é que criou o movimento e a variedade. A voz
elegante, sóbria e rítmica do Roberto soa ainda com mais força
quando justaposta à linguagem luminosa da Karen, que possui
uma precisão interpretativa, uma clareza de visão, que mais de
uma vez me deu inveja (“Mas como é que eu não tinha entendido
isso desse jeito antes?”). Os dois me permitiram uma experiência
tradutória nova e estimulante: quem estava traduzindo o
texto era eu, mas ao mesmo tempo não era eu, era o grupo —
à semelhança daquilo que os manuais de poesia encadeada
determinam para a composição mesma do poema. O objetivo
230
do jogador não é brilhar individualmente — considera-se que
cada participante compôs a contento quando ele incluiu em seus
versos a contribuição do jogador prévio e em seguida preparou o
passe para o próximo poeta. O trabalho, para mim, foi prazeroso
e cheio de uma felicidade de acasos e de encontros. Espero que
essa alegria seja visível para a leitora.
Karen Kawana
231
poucas traduções de poesia nas quais bati os olhos nunca me
entusiasmaram porque soavam mais como frases soltas, peças
de um quebra-cabeça que eu ficava tentando juntar e que não me
diziam muito. Em suma, hesitei, dei uma resposta vaga, disse que
precisava de um tempo para ler uma gramática e um dicionário
de japonês clássico (pouco mais de setecentas páginas) antes de
uma empreitada desse tipo. Não sou formada em Japonês ou em
Letras... sequer tenho uma vivência no Japão. Estudei um pouco
em cursos e depois me concentrei em textos. Fui construindo
um vocabulário de leitura devagar e ainda me considero uma
estudante da língua. Que qualificações eu tenho para traduzir
esses poemas? — eu me perguntava. Mas, aos poucos, fui sendo
seduzida pela ideia — nem são tantos versos assim... — por fim,
decidi que gostaria de ao menos ver como me sairia. A pior coisa
que pode acontecer, é vocês dois terem que consertar minhas
besteiras, certo? — respondi, meio de brincadeira, meio a sério.
E foi assim que me envolvi neste projeto.
Acabei não lendo a gramática (ainda está nos meus planos),
mas tentei me preparar um pouco. Li as traduções que o Andrei já
havia feito, também publicadas pela Bestiário, e fiquei surpresa
com o que encontrei. Aquela sensação de peças de quebra-cabeça
que eu não sabia como juntar desaparecia à medida que lia...
os poemas contavam histórias, tinham sentimento... Gostei
da organização dos poemas na página, com notas explicativas,
original em japonês acompanhado da transliteração — em suma,
o fato de a edição ser bilíngue também me agradou muito. As
notas, empregadas na dose certa, são muito úteis, pois os poemas
japoneses trazem imagens, expressões e palavras que remetem
a outros poemas, a lugares, a estados psicológicos e a estações
do ano, coisas muito sutis. Quem lia e escrevia esses poemas no
passado tinha essas referências em mente, sabia que a “manga
molhada do quimono” é uma metáfora para o choro e que a menção
a vestimentas de musgo indica um eremita, ou monge... além
disso, o musgo, de crescimento lento, traz a ideia da passagem
232
do tempo, de uma longa espera, paciência... assim, uma simples
expressão como “mangas de musgo” já informa ao leitor que se
trata de um asceta, em cujas mangas umedecidas pelas lágrimas
o musgo cresceu lentamente. Cada poema tem várias camadas
de sentido. Sem as notas explicativas, essas informações seriam
perdidas e a leitura se tornaria mais pobre.
Traduzir os poucos versos que me couberam, os do poeta
Shôhaku, transformou-se em um grande aprendizado sobre a
poesia japonesa. Mas confesso que também não foi uma tarefa
tão simples e se, às vezes, chegava a uma tradução que me
agradava logo de cara, outras vezes escrevia várias versões sem
que nenhuma delas me satisfizesse. As opiniões do Andrei foram
muito importantes nessas ocasiões. Sua comparação do poema
encadeado com o futebol e com a dança — atividades nas quais os
movimentos de cada participante são essenciais para a harmonia
do conjunto — é muito apropriada pois, não raro, precisava
acertar meus passes ou passos para melhorar a evolução do
conjunto. Apesar desses pormenores, participar deste projeto foi
uma experiência enriquecedora e intelectualmente estimulante.
Quando li as traduções do Andrei pela primeira vez, elas me
transmitiram uma sensação de familiaridade, de um distante
próximo. Antes de iniciar minha tradução, também li os poemas
e as traduções de haicais feitas por Roberto Schmitt-Prym —
poeta de imagens escolhidas a dedo, muito plásticas e de versos
elegantes —, pois queria saber a que time estava me juntando.
Não sei onde fico entre meus dois colegas, devo ser o elemento
dissonante aqui, mas espero ter produzido algo à altura dos
esforços que ambos têm feito em traduzir e apresentar obras de
poetas e escritores japoneses pouco conhecidos pelos leitores
brasileiros. Da minha parte, só posso agradecer o convite e a
oportunidade de fazer parte deste belo trabalho.
233
contos de Motojirô Kajii, e é autora da coletânea de poemas Pequenas coisas
— ambas publicadas pela editora Bestiário.
Roberto Schmitt-Prym
234
Assim, cada poema foi traduzido de maneira autônoma, mas
também como uma coleção.
235
賦
何
人
連
歌
EX ORIENTE LUX
令
和
三
年
七
月
七
日
Acabou-se de traduzir
no inverno meridional
do ano de 2021.