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Universidade do Sul de Santa Catarina

Deus e a Religião -
do Renascimento
ao Contemporâneo

UnisulVirtual
Palhoça, 2014
Jaci Rocha Gonçalves
Roberto Iunskovski

Deus e a Religião -
do Renascimento
ao Contemporâneo

Livro didático

Designer instrucional
Eliete de Oliveira Costa

UnisulVirtual
Palhoça, 2014
Copyright © Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
UnisulVirtual 2014 qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Livro Didático

Professor(es) Conteudista(s) Projeto gráfico e capa


Jaci Rocha Gonçalves Equipe UnisulVirtual
Roberto Inskovski
Diagramador(a)
Designer instrucional Cristiano Neri Gonçalves
Eliete de Oliveira Costa Ribeiro

Revisor(a)
Contextuar

210.1
G62 Gonçalves, Jaci Rocha
Deus e religião : do renascimento ao contemporâneo : livro
didático / Jaci Rocha Gonçalves, Roberto Iunskovski ; design
instrucional Eliete de Oliveira Costa. – Palhoça : UnisulVirtual, 2014.

134 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografia.

1. Religião – Filosofia. I. Costa, Eliete de Oliveira. II. Iunskovski,


Roberto. III. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul


Sumário

Introdução | 7

Capítulo 1
Renascimento: A Novidade Moderna e a
Religião | 9

Capítulo 2
Aprofundando o Processo de Desconstrução da
Religião | 31

Capítulo 3
Era contemporânea: o sagrado, a alteridade e a
saúde do ser | 53

Capítulo 4
A Experiência do Sagrado e o Filosofar Pós-
Moderno: da Omissão às Possibilidades | 83

Considerações Finais | 125

Referências | 127

Sobre o Professor Conteudista | 133


Introdução

Cara (o) aluna (o),

Temos imensa satisfação em trabalhar com você o tema filosófico da unidade


de aprendizagem Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo.
Para nós, você é protagonista na geração que reage à proibição do ensino e
aprendizagem da filosofia nas escolas há 50 anos. Parabéns pela escolha dessa
atividade essencial em nossas vidas de pessoas cidadãs que é a arte de refletir,
como eternos aprendizes.

Nestes quatro capítulos de Deus e a Religião - do Renascimento ao


Contemporâneo, você poderá remar nas caravelas das escolas filosóficas desde o
Renascimento, há cerca de 522 anos, até tuitar nas ondas virtuais desafiadoras sobre
o sagrado nas religiões, nas artes e outras produtoras de sentidos da atualidade.

Não se assuste! Há posturas de omissão, mas também de compromissos, dos que


pagaram e pagam o preço da perseguição, tortura, exílio e da pena de morte por
acharem valer a pena dar a vida pela indignação ética em favor da construção de
sentidos. Você sabe que ainda é um campo polêmico e complexo. Importa manter
a coragem serena para um filosofar solidário, pluralista e biocrático, como veremos.

Você pode mergulhar na gênese moderna de nossa atualidade. Exercite o


crivo de um pensar filosófico holístico, totalizante, buscador de causas das
desconstruções e capaz das possibilidades de construir utopias factíveis pela
autorreflexão, abertura à alteridade e interface com várias ciências e saberes.

Temos expectativas de que você desenvolva ainda mais a habilidade de


descrever o clima filosófico renascentista crítico para o fenômeno do sagrado
identificado com a tirania dos poderes constituídos. Você vai conseguir também
se dar conta nos dois primeiros capítulos das relações do sagrado na novidade
moderna de mudanças de paradigma criadora do humanismo e de um processo
de desconstrução do discurso religioso ocidental.

Esperamos que você também saiba mostrar as novas relações entre razão e fé,
embasadas no deísmo das ciências naturais, na imanência do pensar e sentir
humanos, na reelaboração da autonomia humana para decidir e fazer história
sem cair em estereótipos. Esperamos que consiga discernir entre um conceito
de relação com o sagrado como fonte de possível engajamento histórico e não
apenas de religião opilácea.

7
Enfim, nos dois últimos capítulos torcemos para que se permita desenhar uma
visão de filósofa/o educador(a) para posturas de tolerância e questionamentos
entre as diferentes religiões e espiritualidades. A era contemporânea nos permite
discutir o sagrado na alteridade (o Outro) por uma saúde do ser, e do ser mais.

Espera-se também que saiba como construir em seu perfil de cientista


educador/a uma consciência pluralista da rica diversidade de escolas que
superaram a postura racionalista pela valorização do sagrado na alteridade
mutilada na qual o Outro humano desfigurado convoca todos/as à coerência de
nova relação de autenticidade.

Um perfil de filósofa/o pluralista com postura criativa na reconstrução de sentidos


diante dos fundamentalismos religiosos, do mercado como deus e de outras
instituições da atualidade.

Assim, fortalecer um viés de filosofia que vá além da erudição, da especialização


e desconstrução e que trabalhe um sentido de salvação como autorreflexão,
pensamento alargado e sabedoria de amor. Um filosofar de libertação inclusiva do
Outro desfigurado no pobre para que na ideologia, no partido político, na entidade
religiosa se construa a esperança num contexto de utopia realizável de forma
renovada e insistente no cotidiano.

Um filosofar jardineiro que cultiva as perspectivas da vivência contemplativa,


do silenciar ativo diante do mistério do sagrado inserindo-se numa herança
multimilenar de humanos pensadores como você que, em todos os tempos,
produzem sentidos para o viver e o conviver; o viver e o morrer; a festa e o
sacrifício.

Assumimos, nós e você, dessa forma, nossa responsabilidade de pensadoras/es


que acreditam na construção de um modo de viver mais justo, solidário e alegre.

Bons estudos!
Capítulo 1

Renascimento: A Novidade
Moderna e a Religião

Habilidades Após navegar neste capítulo pelas águas do


Renascimento e da novidade moderna, espera-se
que o estudante possa descrever o clima filosófico
renascentista crítico para o fenômeno do sagrado
identificado com a tirania dos poderes constituídos.
Seja capaz ainda de mostrar as novas relações
entre razão e fé, embasadas no deísmo das ciências
naturais, na imanência do pensar e sentir humanos,
na reelaboração da autonomia humana para decidir
e fazer história sem perder a relação com o sagrado.

Seções de estudo Seção 1:  Da teocracia e teísmo à afirmação do


humano e deísmo

Seção 2:  David Hume – o empirismo e a religião


natural

Seção 3:  Kant e Deus: liberdade, imortalidade e


existência de Deus

9
Capítulo 1

Seção 1
Da teocracia e teísmo à afirmação do humano e
deísmo
O final da Idade Média foi marcado por uma profunda crise no mundo europeu.
No século XIV, a Filosofia Escolástica entrava em sua fase de declínio. Ao mesmo
tempo, os ideais e o poder que se encarnavam nas duas figuras teocráticas, do
Pontífice romano e do Imperador germânico, haviam entrado em descrédito nas
consciências dos mais atentos aos novos fenômenos sociais.

Esse século sofre as consequências de várias condenações sofridas no século


anterior por parte do aristotelismo averroísta e tomista, tanto em Paris como,
sobretudo, em Oxford, na Inglaterra. Diante das adversidades, há uma tendência
do poder vigente em se fechar, promovendo decisões arbitrárias baseadas em
posições ortodoxas e fundamentalistas. (REALE-ANTISERI, 1990, p. 611). Novas
ideias vão lentamente se afirmando, baseadas numa racionalidade nova, prática e
terrestre, voltada para finalidades imanentes e utilitaristas.

Nesse contexto de busca do novo, o primeiro movimento cultural consistente


que demonstra a gradual superação da mentalidade medieval foi o humanismo,
marcado pela supremacia dos intelectuais leigos em contraposição à cultura
medieval clericalista. Segundo Saccone (1989, p. 71), “este será um dos marcos
fundamentais da Filosofia Moderna: uma Filosofia de homens leigos para a
cidade laica.”

A experiência do sagrado e o movimento cultural do Humanismo

É o Renascimento, por volta de 1492, já com as novas tecnologias dando


suporte às Grandes Navegações, que marca a ruptura com o velho mundo feudal
teocêntrico. Na Escola de Sagres, em Portugal, o jovem Infante Dom Henrique diz
que chegou o tempo do Espírito Santo soprar onde quiser. O antigo testamento
foi a era do Pai, o cristianismo a era do Filho e agora é o tempo privilegiado da
terceira pessoa da Trindade: o Divino Espírito Santo, como bem o descreve o
antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (2006). A experiência do sagrado continua
forte e essencial, mas agora a teocracia cede espaço ao clima de encantamento
pela descoberta do humano cuja capacidade racional, artística e tecno-criativa
gera o Humanismo, primeiro movimento cultural consistente na modernidade.

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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Figura 1.1- Infante Dom Henrique

Fonte: PORTUGALTEMMUITO (2009)

É a Filosofia Moderna: uma Filosofia de homens leigos para a cidade laica tendo a
razão e experimentação científica como metodologia. Cria-se um novo caminho de
investigação e conhecimento que, superando a velha metodologia do recurso às
autoridades, passa a apoiar-se unicamente na razão e na experimentação científica.

Em decorrência do desenvolvimento econômico e, portanto, da ascensão da


burguesia, os grandes Estados nacionais independentes, que consolidavam suas
estruturas financeiras e seus instrumentos militares, estavam se tornando os
verdadeiros protagonistas da história europeia.

No entanto, a relação entre o poder político e o poder religioso ainda continua


presente. A Reforma Protestante do monge agostiniano Martinho Lutero, em 1517,
suas consequências e reações reforçam o ambiente de crise de interesses e ideias.

Figura 1.2- Martinho Lutero

Fonte: ERONILDO SERAFIM (2011).

11
Capítulo 1

A Paz de Augsburgo
foi um tratado assinado
Os conflitos político-religiosos entre cristãos católicos e
entre o rei Carlos V e protestantes se espalham pela Europa. Acordos tentam
as forças da Liga de resolver esses conflitos, mas a assinatura de um tratado
Esmalcalda em 25 de
denominado “Paz de Augsburgo”, buscando solucionar
setembro de 1555
na cidade alemã de contendas religiosas na Alemanha, possibilitou que cada
Augsburgo, marcando príncipe impusesse sua crença aos habitantes de seus
o fim da luta travada domínios.
entre católico romanos e
protestantes luteranos naIsso não deu certo devido à crescente diversidade de
Alemanha do século XVI.
opções entre os protestantes (luteranos, calvinistas),
enfraquecendo grupos tradicionais. Tais tensões político-
religiosas se agravam e culminam com a “Guerra dos Trinta Anos” (1618-1648),
que gerou uma dinâmica secularizadora na Europa e as primeiras tentativas de
limitar a influência da religião na cultura. “Pouco a pouco começou um processo
de autonomia do secular em relação ao religioso, relegando a referência a Deus
ao âmbito das convicções pessoais e procurando excluí-lo da esfera pública.”
(ESTRADA, 2007, p. 113).

Visões de deslumbramento científico-racional:

mais favoráveis ao Deus dos filósofos do que ao sagrado das religiões

De outro lado, os avanços rápidos do conhecimento científico, com suas


demonstrações irrefutáveis, provocam um novo tipo de encantamento, em que a
ciência toma lugar de destaque na solução das questões humanas em geral. Aos
poucos se firma a tendência a reconhecer a razão humana como única fonte de
conhecimento e saber.

Nesse contexto, o problema de Deus e da religião seguem um novo rumo. Os


dados de revelação, especialmente bíblicos, passam a não ser considerados
válidos como fonte de verdade, pela impossibilidade de comprová-los por meio
da experimentação.

Num primeiro momento, embora a fé baseada em dados revelados seja rejeitada,


aceita-se a existência de um Deus que se manifesta e se faz conhecer na
natureza. Um Ser, portanto, que a razão humana pode comprovar e afirmar,
graças à herança da metafísica de Tomás de Aquino.

Então, surge o deísmo, a busca de uma religião natural e uma fé racional em


Deus como formas alternativas às religiões estabelecidas, que eram vistas
como geradoras de violência e manipuladoras do religioso em função de uma
dominação social. (ESTRADA, 2007, p. 113).

A ideia de religião natural e sua conceituação surgiram inicialmente na Inglaterra,


onde Herbert de Cherbury (1582-1648) formulou as primeiras teses do deísmo, a
partir de uma visão de Deus compatível com a organização física do universo.

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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Mais tarde, especialmente no século XVIII, a posição dos deístas vai ser
enfraquecida pelos novos avanços da ciência, sobretudo no campo da Biologia
e da Física. Tais avanços deram mais segurança às afirmações científicas, o que
levou muitos pensadores a dispensarem a necessidade de recorrer a Deus como
elemento para poder explicar o universo.

Foi esse o resultado da consolidação de posturas naturalistas e materialistas


em que o universo se sustenta por si só, não passando de uma totalidade de
matéria em movimento. (STACCONE, 1991, p. 77-78). Esse processo de diálogo
entre religião natural e ciências vai ser retomado e enriquecido um século depois
por David Hume, em pleno apogeu da modernidade e que avaliaremos na última
seção deste capítulo.

Como podemos perceber, estamos mergulhando nas águas de um tempo


radicalmente novo, a modernidade, no qual a fé precisa se explicar ante a razão,
ao contrário do que ocorria na Filosofia Medieval. A Filosofia Moderna substitui,
assim, o tema de Deus pelo tema do Homem.

De qualquer forma há enorme presença e influência da religião, especialmente


do Cristianismo, na filosofia ocidental, independentemente de sua aceitação ou
rejeição. É a modernidade.

Descartes: a Deus pela razão - Cogito, ergo sum!

O francês René Descartes (1596-1650) é considerado o iniciador da Filosofia


Moderna. Estudou Filosofia com os jesuítas, tendo importante influência da
escolástica medieval e da visão de mundo de Aristóteles e São Tomás de Aquino.

Aos poucos, Descartes foi ficando incomodado, pois achava que sua orientação
muito tradicionalista estava em forte contraste com a visão de mundo que surgia
do desenvolvimento científico (especialmente em Física e Astronomia) que se
ampliava em vários lugares da Europa.

13
Capítulo 1

Figura 1.3 – Imagem de René Descartes

Fonte: WIKIMEDIA (2014).

Desde os primeiros escritos, Descartes manifestou preocupação em investigar


a validade do conhecimento humano e de seus resultados. Ele descobre, então,
o caminho da dúvida metódica, um método com o qual revoluciona o pensar
porque ao invés de buscar conhecer o mundo, inicia investigando o próprio
processo de conhecimento. Nos desdobramentos dessa descoberta, vamos
encontrar a supervalorização do racional – o racionalismo – que seria antagônico
à convivência com o fenômeno do sagrado. Fritjof Capra (1986) surpreende os
que pensam Descartes como um defensor da racionalidade, fria e autossuficiente,
quando traz a descrição, a princípio paradoxal, do contexto místico-religioso em
que tem o insight de sua invenção.

Redizer isso é importante para o nosso foco da experiência do sagrado e seus


desdobramentos posteriores à modernidade. Trata-se de lembrar um momento
decisivo na vida de Descartes e de sua obra que aconteceu quando tinha 23
anos de idade. René teve uma “revelação”, uma visão iluminadora, mística. Fritjof
Capra (1986, p. 53) faz assim o relato:

Após muitas horas de intensa concentração, durante as


quais reviu sistematicamente todo o conhecimento que tinha
acumulado, René percebeu, num súbito lampejo de intuição, os
‘alicerces de uma ciência maravilhosa’ que prometia a unificação
de todo o saber. Essa intuição tinha sido prenunciada numa carta
dirigida a um amigo, na qual Descartes anunciou seu ambicioso
objetivo: ‘E assim, para nada esconder de vós acerca da

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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

natureza de meu trabalho, gostaria de tornar público uma ciência


completamente nova que resolveria em geral todas as questões
de quantidade, contínua ou descontínua’.

Capra (1986) relata ainda que essa revelação deixou Descartes muito
impressionado. Ele sentiu ter feito a suprema descoberta de sua vida e não
duvidou de que sua visão resultara de uma inspiração divina.

No sonho, Deus lhe dá uma missão!

Essa convicção foi reforçada por um sonho extraordinário na noite seguinte,


no qual a nova ciência lhe foi apresentada de forma simbólica. Descartes teve
certeza de que Deus lhe apontava uma missão e dedicou-se à construção de
uma nova filosofia científica.

Podemos perceber que foi num momento de revisão, de crise, em que Descartes
tem a luz para desenvolver o seu método e, dessa forma, define as bases da
ciência moderna, fundamentado na certeza do conhecimento científico.

O paradoxo dessa história é que, esse mesmo Descartes, que atribuiu à revelação
divina sua certeza na razão, promoveu a volta ao jeito de filosofar dos gregos da
antiguidade, que ignoravam qualquer revelação divina e investigavam a realidade
do mundo só pela luz natural da razão.

Descartes não priorizou a busca da dimensão transcendente do Ser conforme os


tomistas e, sim, pretendia encontrar o fundamento metafísico para a sustentação
das certezas da razão humana. Afirmou que a Filosofia não olha além do seu
objeto específico: o homem e o mundo.

Com seu pensamento, Descartes acentuou o dualismo em que corpo e alma são
distintos e separáveis. Também o dualismo ontológico no conhecimento: sujeito
(res cogitans) e objeto (res extensa) são separados. Desenvolveu a ideia do animal
máquina, segundo a qual os animais são apenas máquinas em funcionamento
(STACCONE, 1989, p. 72):

As ‘máquinas’, porém, não existem nem funcionam por iniciativa


própria, devendo-se buscar uma força-mente criadora para
explicar a sua existência e [seu] funcionamento. Esta Força-
mente criadora é Deus, o qual montou as máquinas do mundo,
que, como relógios, continuam funcionando pela dinâmica de
seus próprios movimentos.

Nesta lógica pode-se entender que Descartes tentou harmonizar fé e razão,


embora sua primeira verdade fundamental esteja expressa em seu famoso Cogito,
ergo, sum! (Penso, logo existo!), ou seja, o primado caberá à razão, abrindo
caminho para o reducionismo intelectualista.

15
Capítulo 1

Tais princípios encorajaram os indivíduos ocidentais a equipararem sua identidade


com sua mente racional e não com seu organismo total, levando também ao
afastamento da relação com o transcendente.

Outro aspecto importante é que o pensamento cartesiano, ou seja, de


Descartes, provocou uma ruptura revolucionária com o poder religioso de seu
tempo. Ele demonstrou que o mundo funcionava mesmo sem a interferência
das autoridades religiosas.

Para o século XVII, tal pensamento foi providencial e trouxe grandes avanços à
humanidade, mas, também, teve seus efeitos colaterais. Perdeu-se a natureza
como base de referência, o que foi compensado pela curiosidade científica, que
serviu de autoafirmação do ser humano.

A antiga ascese medieval se converteu em trabalho e o mundo criado deixou


de ser visto como algo completo, perfeito. O homem passa a ser o centro e o
progresso, que precisa completar a obra inacabada do criador.

O mistério vai ser tratado como mais um problema a ser resolvido, o que escapa
à natureza do próprio mistério, como mais tarde veremos, no discernimento sobre
o mistério pelas escolas contemporâneas de Gabriel Marcel e outras.

Descartes usou, então, métodos racionais para provar a existência de Deus. Tendo
por princípio que o conhecimento humano é intuitivo, inato e independe das coisas,
e partindo da desconfiança universal, utiliza o caminho da dúvida metódica, ou seja,
não aceitar nada que não ofereça garantia absoluta de verdade.

Descartes passou a duvidar de tudo para poder ter a certeza e a clareza. Duvida,
também, de Deus, para depois ter a certeza de sua existência. Segundo ele,
Deus é a fonte criadora e o fundamento de toda verdade. No entanto, Descartes
transfere a certeza original de Deus para o homem, para a razão humana.

Do Cogito, ergo sum! às provas da existência de Deus

Partindo da intuição racional, única norma segura da verdade e da ideia de Deus,


é possível concluir, segundo Descartes, efetivamente que Deus existe.

Deus é, no fundo, o princípio que garante a interpretação do mundo. Vai do cogito


a Deus, de nossa existência à existência de Deus. Daí as provas da existência de
Deus, segundo Descartes, descritas na sua obra de 1637, o Discurso do Método
(DESCARTES, 1986, p. 46):

1. ideia de Deus exige como causa a realidade formal que pensa igual
a Deus;
2. o ser que tem a ideia de Deus e não é Deus, tem que ser causado
por Deus;

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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

3. o ser infinitamente perfeito contém em si a existência que é uma


perfeição.
Em sua argumentação sobre a existência de Deus, Descartes mostra ainda que
não posso ser a causa da minha própria imperfeição de ser, pois se eu mesmo
fosse a causa, eu me daria todas as perfeições contidas na ideia de Deus, que
está em mim.

Portanto, a causa da minha imperfeição é um ser perfeito, Deus. “Por


conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou
existe, quanto o seria qualquer demonstração da geometria”. (Idem, p. 49).

Embora com o discurso favorável à existência de Deus, podemos verificar que o


pensamento cartesiano abriu caminho para a afirmação do humano e sua razão,
em detrimento da ideia de Deus.

Mesmo em relação às provas da existência de Deus formuladas por Descartes,


podem ser feitas várias críticas. Na avaliação de Staccone (1989, p. 74), tais
provas procedem de um inegável equívoco ontológico porque põem o finito e
limitado como suporte e base da afirmação do infinito.

Na verdade, essa demonstração da existência de Deus constitui uma variante


do argumento ontológico já empregado no século XII por Santo Anselmo de
Canterbury. Nos tempos de Descartes essa demonstração também foi duramente
atacada pelos seus adversários. Esses o acusavam de cair num círculo vicioso,
ou seja, para demonstrar a existência de Deus, e assim garantir o conhecimento
do mundo exterior, utilizam-se os critérios de clareza e distinção, mas a
confiabilidade destes é, por sua vez, justificada pela existência de Deus.

Apesar das provas racionalmente produzidas e das afirmações repetidas da


existência de Deus, a Filosofia de Descartes marca, de fato, uma ruptura entre fé
e Filosofia. Segundo Staccone (1989, p. 75):

O Deus de Descartes não é um SER pessoal, não é um Deus


dos viventes; é apenas uma força infinita que garante o perfeito
funcionamento do universo. Um ‘Deus’ que serve de garantia
e segurança para a ciência e o conhecimento, sem nenhum
envolvimento com a vida do homem. Enfim, uma força impessoal.

Assim, Descartes será transformado pelos cartesianos e outros intérpretes


naquele racionalista, frio, calculista e sem fé. No entanto, como vimos com Capra
(1986), em sua visão de sonhos contrasta com o filósofo que cultiva encontro
com um Deus, de forma sensível e pessoal, e que reconhece ter recebido de
Deus a missão de desenvolver uma nova filosofia científica.

Blaise Pascal e a crítica a Descartes - Credo, ergo sum!

17
Capítulo 1

Blaise Pascal (1623-1662) viveu na mesma época e era conterrâneo de Descartes.


Também era matemático e físico. Ao contrário de Descartes, porém, que teve
formação em colégio jesuíta, Pascal nunca frequentou escola e orientou sua
ciência a partir da vida concreta. Não foi racionalista nem teórico sistemático.

Figura 1.4 – Retrato de Blaise Pascal

Fonte: DOUGFLOYD. FILES (2007)

Para Pascal, ao lado da razão há, também, a inteligência do sentimento, cada qual
com seus limites. Assim, conhecemos a verdade, não só pela razão, mas, também,
pelo coração. Em seus Pensées (Pensamentos – conjunto de reflexões acerca do
sofrimento humano e da fé em Deus), Pascal diz ( apud ZILLES, 1991, p. 34):

Os que estão acostumados a julgar pelo sentimento nada


compreendem das coisas do raciocínio, pois querem logo chegar a
perceber com um golpe de vista e não têm o hábito de procurar os
princípios. E outros, pelo contrário, que estão habituados a raciocinar
por princípios, nada compreendem das coisas do sentimento,
procurando nelas princípios e não podendo vê-las de golpe.

O coração, para Pascal, não é apenas a dimensão irracional-emocional, oposto


ao lógico-racional, e sim designa o núcleo ou o centro do sujeito de onde emana
o seu dinamismo, seu espírito especulativo e, também, de amante. Daí se
compreende a sua famosa frase: “O coração tem suas razões que a própria razão
desconhece; percebe-se isso em mil coisas”. (ZILLES, 1991, p. 34). Para Oliveira
(1991, p. 14):

18
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

O conceito de coração em Pascal oscila entre dois sentidos: o


de inteligência intuitiva, oposta ao entendimento, ao raciocínio
discursivo e o de sentimento que se opõe à inteligência, ao
espírito. Há, ainda, momentos em que os dois sentidos se juntam
como se fossem equivalentes.

Pascal, como Descartes, estava interessado na razão, na liberdade e na certeza,


mas percebeu os limites cartesianos. Percebeu que a certeza racional, baseada
na consciência do próprio eu não era fundamento tão inabalável. Sua posição é
moderada: não exclui a razão, mas não lhe dá crédito absoluto.

Diferente de Descartes, que separa o ser humano do mundo, Pascal examina o


humano em suas dimensões cotidianas e descreve a grandeza e a miséria do
homem no universo cósmico.

Para Pascal, são as misérias humanas que demonstram sua grandeza, ou seja,
suas contradições mostram que o “homem transcende infinitamente o homem” e
que nenhuma posição humana pode chegar à plenitude e ao repouso. (ZILLES,
1991, p. 38).

Como já percebemos desde a primeira unidade de estudos sobre o humano em


sua relação com o sagrado, podemos notar novamente a constatação de que
o ser humano é permeado de crises, contradições, mas aí não reside seu fim, e
sim sua potencialidade. Diante dos limites humanos, por conseguinte, da própria
Filosofia, Pascal responde (apud ZILLES, 1991, p. 39):

Conhece, pois, soberbo, que paradoxo és tu mesmo. Humilha-te,


razão impotente; cala-te, natureza imbecil, aprende que o homem
ultrapassa infinitamente o homem, e ouve de teu Senhor a tua
condição verdadeira que ignoras. Escuta a Deus.

O próprio Pascal teria feito a experiência de crise, de contradições ao longo


da vida, como num episódio em que sofreu um acidente de carruagem. Tal
experiência fortalece sua ideia de que Deus atinge o homem na contradição de
sua existência.

Pascal não procura certeza matemática, por outro lado, também não se trata
de certeza irracional. Ele tem certeza de que o homem só reconhece Deus pelo
coração: “É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é fé: Deus
sensível ao coração, não à razão”. (Idem).

É importante destacar que, ao assumir a fé e a defesa do cristianismo, Pascal


confessa estar mergulhado em outro tipo de estudo, mas nem por isso o rigor do
pensamento científico se encontra ausente de sua obra.

19
Capítulo 1

É o que demonstra muito bem a professora Berenice Oliveira em seu artigo


intitulado “Referências científicas no pensamento religioso de Blaise Pascal”,
publicado na Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência (disponível
em http://www.mast.br/arquivos_sbhc/134.pdf.

Por fim, podemos dizer que Pascal é a antítese do Cogito, ergo sum! (Penso, logo
existo!) de Descartes, ao afirmar seu Credo, ergo sum! (Creio, logo sou!). Neste
caso, a fé é a base da razão.

Tanto para Pascal quanto para Descartes o pensamento racional é importante, no


entanto, Pascal funda sua Filosofia no crer e na necessidade humana de ter algo
para se apegar na sofreguidão. (ZILLES, 1991, p. 42).

Seção 2
David Hume – o empirismo e a religião natural
O escocês David Hume (1711-1776) é um dos grandes pensadores no campo
da Filosofia da religião e das reflexões modernas sobre o sagrado. Suas críticas
aprofundam o processo iniciado pelo deísmo e os encantamentos com a religião
natural, como vimos acima. Hume avalia também as posições do teísmo. Ele
criticou as clássicas provas a favor da existência de Deus, as tradicionais noções
da natureza de Deus e o poder divino, a relação entre moralidade e religião, e a
racionalidade da crença em milagre.

Figura 1.5 - Retrato de David Hume

Fonte: CHAOSANDOLDNIGHT (2007).

20
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Hume também desenvolveu teorias sobre a origem das crenças religiosas


populares, fundamentando tais noções na psicologia humana ao invés dos
argumentos racionais ou de revelação divina.

A principal intenção de sua crítica foi libertar a Filosofia da religião e assim


permitir à Filosofia perseguir os seus objetivos sem excessiva concessão racional
ou corrupção psicológica.

Hume é um grande representante do empirismo e levou os tais princípios às


extremas consequências como com a negação do princípio de causalidade,
que ele substituiu com o princípio da sucessão constante. Assim, em lugar de
estabelecer relações de causa-efeito, só podemos estabelecer relações de
continuidade. É claro: só entre fenômenos observáveis na experimentação.

Qualquer conhecimento metafísico fica, portanto, impossível. Também ficam sem


força os argumentos cosmológicos apresentados como provas da existência de
Deus, pois, visto que é impossível observar empiricamente a relação entre Deus
e o mundo, conclui-se que nada se pode afirmar acerca da proposição de que
Deus é causa última do mundo. (STACCONE, 1989, p. 78-79).

Em 1775, Hume publicou a obra “Quatro dissertações”, o primeiro e mais


longo ensaio dentre estas foi a História Natural da Religião. O ensaio é uma das
primeiras tentativas de explicar as causas da crença religiosa unicamente em
termos de fatores psicológicos e sociológicos.

Nessa obra, Hume afirma que os princípios psicológicos suscitaram a crença


popular. Defende, então, a ideia de que os instintos naturais, como o medo,
são as verdadeiras causas da crença popular, e não a intervenção divina ou os
argumentos racionais.

Em “Diálogos sobre a Religião Natural”, Hume aborda claramente a questão


religiosa por meio de três personagens que têm posições divergentes sobre a
existência de Deus e discutem o assunto. (FIESER, 2001, p. 1).

Enquanto muitos filósofos do século XVIII criticam a religião revelada e encontram


na ordem do mundo, na finalidade e utilidade argumentos para a religião natural,
Hume direciona suas críticas à religião natural. A noção de um Deus-Providência
parece-lhe pouco compatível com os sofrimentos e os males de que os homens
são vítimas neste mundo.

Por outro lado, observa Hume, se a verdade do sofrimento humano é, para


o filósofo, um argumento decisivo contra a Providência, é precisamente esse
sofrimento que conduz o povo a buscar as consolações da religião. O mesmo
fato que, para o filósofo, é uma objeção maior à religião, surge, no povo, como a
força essencial da crença.

21
Capítulo 1

Seção 3
Kant e Deus: liberdade, imortalidade e
existência de Deus
Compreender o pensamento do alemão Immanuel Kant (1724-1804) é essencial
para a compreender a mentalidade moderna. Dentre outras contribuições, Kant
tem sido a inspiração para o conteúdo da ciência da ética contemporânea.
Depois das mudanças de paradigma promovidas por Descartes e os filósofos
da modernidade, Kant, no século XVIII, promove também uma reviravolta na
teoria do conhecimento ao demonstrar que é a partir do sujeito que se orienta o
conhecimento e não do objeto.

Sua preocupação inicial foi realizar um exame crítico acerca do que a razão
pode ou não pode afirmar. Ele “reflete sobre a possibilidade de uma mudança
de método que lhe permita alcançar em filosofia a mesma certeza que outros
alcançaram com a matemática e a física”. (STACCONE, 1989, p. 79).

É preciso indagar sobre as condições de possibilidade do conhecimento de


objeto determinado, no próprio sujeito do conhecimento. Daí o conhecimento
transcendental, ou seja, o conhecimento que se ocupa menos do objeto do que
de nosso modo de conhecer.

Sujeito cognoscente Em sua Crítica à Razão Pura, Kant mostra como o material
é quem conhece / recebido de fora pelos sentidos é transformado pela ação
busca o conhecimento
do objeto – sujeito do
do sujeito cognoscente em objeto de conhecimento.
conhecimento. Daí, a tal reviravolta na teoria do conhecimento em que “a
coisa em si escapa à possibilidade do conhecimento. Só
podemos conhecer os fenômenos.” ( ZILLES, 1991, p. 45-49). Sobre o mesmo
objeto de análise, Marilena Chauí (2002, p. 313) explica:

A distinção entre fenômeno e nôumeno permite ao filósofo


limitar o campo do conhecimento teórico ao primeiro e impedir
a pretensão de teorizar sobre o segundo. A metafísica não
é conhecimento da essência em si de Deus, alma e mundo;
estes são nôumenos (realidade em si) inacessíveis ao nosso
entendimento. (Chauí, 2002, p. 313).

No caso do ser perfeitíssimo ou Deus, a existência está além da experiência.


Como a experiência é o limite do conhecimento humano, a razão pura não pode
demonstrar a existência de Deus. Somos incapazes de juízos científicos sobre
Deus porque ele não ocorre no espaço e no tempo. Dessa forma, em Kant o que
impera é essa forma de caminho do conhecimento.

22
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Já não se parte de uma ontologia do ser para estabelecer uma


hierarquia de essências que culmina na essência divina, mas de
uma reflexão sobre o sujeito humano que se converte em sujeito
e objeto do conhecimento ao mesmo tempo. Não interessa
mais aquilo que as coisas são, mas como funcionam e como se
relacionam entre si. (ESTRADA, 2007, p. 196).

No entanto, a impossibilidade da razão pura demonstrar a existência de Deus não


significa a negação de Deus e da religião. Na perspectiva kantiana, a religião não
é teoria sobre Deus (teologia), alma e mundo, mas resposta a uma pergunta da
razão que esta não pode responder teoricamente: O que podemos esperar?

Então, conclui o filósofo que o papel da religião é oferecer conceitos e princípios


para a ação moral e fortalecer a esperança num destino superior da alma humana.
Sem Deus e a alma livre, não haveria a humanidade, mas apenas a animalidade
natural; sem a imortalidade. O dever se tornaria banal.

Kant, na linha da moral, postula a existência de um Deus justo, que fundamente a


relação entre virtude e felicidade. É um Deus responsável pela felicidade humana
e, de modo indissolúvel, associado à consciência moral. Defende, também, que a
razão pura não é capaz de responder às questões essenciais da vida humana.

A solução aparece na sua visão ampliada de razão, pela qual a razão pura me
possibilita conhecer o que é; e pela razão prática, sei o que deve ser. E é no
conjunto de princípios que constituem a consciência moral (razão prática) que se
encontra a base para apreender os objetos metafísicos.

Três postulados metafísicos:

liberdade, imortalidade e existência de Deus

Como vimos, é por meio de intuições de caráter moral que entramos no mundo
das coisas suprassensíveis, e Kant apresenta por esse viés três postulados
metafísicos: a liberdade, a imortalidade e a existência de Deus.

Quando se propõe uma moral autônoma – originada na vontade do próprio sujeito


– há a necessidade da liberdade e possibilidade da autonomia. Aqui, encontramos
o primeiro postulado metafísico (razão prática) kantiano que é a liberdade, própria
de cada sujeito individual.

O segundo postulado da razão prática é a imortalidade. Se o mundo inteligível


não está sujeito às formas do espaço e do tempo nem das categorias, a vontade
pura justifica a crença na imortalidade da alma.

23
Capítulo 1

O terceiro postulado é a existência de Deus:

Como no mundo da consciência moral não há diferença entre


o ideal e o real, entre o que efetivamente sou e o que queria ser,
ao contrário do mundo fenomênico, no qual os valores morais –
justiça, bondade etc. não estão realizados, é necessário que além
deste mundo haja um mundo metafísico no qual o que é seja
idêntico com o que deve ser. Este é o postulado que requer uma
unidade sintética superior entre esse ser e o dever ser. A essa
síntese unitária Kant chama Deus. Além do mundo fenomênico
deve haver, pois, um ente no qual nossa inspiração se realize. Tal
ente é Deus. (ZILLES, 1991, p. 53).

Enquanto a razão teorética nos permite conhecer este mundo real, fenomênico,
a razão prática nos conduz até Deus, ao reino das almas livres e imortais. A
lei moral conduz a religião através do conceito de Bem Supremo, isto é, ao
conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos.

Dessa forma, o conhecimento genuíno de Deus conduz à moral. Em Kant, está


clara a tendência a dissolver a religião na moralidade, tentativa que culmina em
ideias como: “Deus não é um ser fora de mim, Deus é a razão moral prática”.
(apud ZILLES, 1991, p. 57).

No pensamento de Kant, pois, encontramos uma concepção moralista da religião,


que é vista como símbolo da luta entre o bem e o mal, como dois princípios no
homem. Em sua perspectiva, a única verdadeira religião é a moral e seu único
culto é cumprir o dever moral como mandamento de Deus.

Vale ainda uma reflexão sobre a construção da moral e o respectivo imperativo


categórico proposto por Kant. Segundo nosso pensador, uma ação é moral
quando feita simplesmente por respeito ao dever, independentemente de
seu conteúdo empírico. A máxima moral de Kant, definida como imperativo
categórico, diz que eu devo agir de tal forma que essa atitude possa se tornar
uma lei válida para todos, uma regra universal. Estrada (2007, p. 204) esclarece:

A autoconsciência kantiana é a-histórica e descontextualizada,


embora proponha a relação entre o eu individual e a comunidade.
A perspectiva da condição humana (o eu transcendental comum)
afoga os eus empíricos e as alteridades individuais. Cada um, em
nome de todos, determina o que é moralmente válido.

Essa definição aparentemente perfeita carrega em si, porém, um pressuposto


decisivo e questionável porque o ponto de referência para o julgamento é o
indivíduo que age, ou seja, cabe ao indivíduo livre avaliar se tal ação pode se
tornar universal.

24
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Hegel e a ideia como espírito absoluto

Friedrich Hegel (1770-1831) nasce e vive no meio do espírito iluminista. Ao


contrário dos franceses, que menosprezaram a religião, Hegel segue a linha de
seus compatriotas alemães, para os quais a religião exercia papel importante.
Talvez a marca mais acentuada deste pensador seja que, com sua obra, Hegel
conduziu o idealismo alemão ao ápice da sistematização.

Hegel defende a convergência entre razão e religião. Diferente de Kant, diz que a
religião não é simplesmente uma questão pertencente à moral. “Deve-se estudar
a religião como fonte do conhecimento, como inspiração para a própria filosofia”.
(ESTRADA, 2003, p. 134).

O próprio objeto de sua investigação filosófica se confunde com a religião: o


Espírito, ou Deus. Hegel (apud STACCONE, 1989, p. 83) deixa isso claro já na
introdução da obra Enciclopédia das Ciências Filosóficas:

A Filosofia tem os seus objetos em comum com a religião, por ser


objeto de ambas, a verdade, no sentido mais alto da palavra: isto é,
enquanto Deus, e só Deus é a verdade. Ambas, além disso, tratam
do reino do finito, da natureza e do espírito humano, e da relação
que intercorre entre elas, e com Deus como sua verdade. Portanto,
a Filosofia pode e, mais, deve pressupor um certo conhecimento
de seus objetos, com também um certo interesse para eles; se
não houvesse outro motivo, pelo fato de que a consciência, na
ordem do tempo, forma antes as representações (= religião) e
depois os conceitos (filosofia); e o espírito pensante, só através
das representações e trabalhando sobre elas, avança até o
conhecimento pensado e o conceito. (STACCONE, 1989, p. 83).

A compreensão do pensamento de Hegel não é simples, e toda síntese é sempre


insuficiente, no entanto, é uma abordagem muito importante em nossa jornada
pela reflexão acerca da experiência do sagrado e da religião. O pensamento de
Hegel pode ser compreendido em duas fases: o período da juventude e o outro
da maturidade.

O jovem Hegel – religião do povo: reflexão e amor

Os escritos do jovem Hegel abordam problemas de conteúdo teológico ou


político-religioso. Suas reflexões concentraram-se no problema religioso. Deus é
tido como o princípio a partir do qual se constitui a religião. Ora, isso pressupõe
que, de alguma forma, Deus seja acessível ao homem. Daí a questão: como se dá
esse acesso a Deus? Hegel mantém uma posição crítica diante da religião.

25
Capítulo 1

Não queria terminar com a religião, mas renová-la na sociedade


moderna como autêntica religião do povo, fundando-a na razão,
sem eliminar fantasia e sentidos. A posição crítica do jovem
Hegel é a seguinte: não quer uma tradição acrítica, mas também
não quer uma razão sem tradição. Nisso parece sistematizar
Descartes e Pascal. (ZILLES, 1991, p. 62).

No escrito Religião popular e cristianismo (1793), Hegel vê a religião não como


assunto privado, e sim com valor educativo. Em suas obras (Vida de Jesus – 1795,
A positividade da religião cristã – 1796-1799), Cristo perde sua transcendência.

Jesus aparece como a personificação do ideal da virtude, como pregador da


religião da razão, hostil à religião judaica. Apresentado como sábio, à semelhança
de Sócrates, Jesus é mestre que ensinava uma religião puramente moral
(influência da religião ética kantiana).

Segundo Zilles (1991, p. 63), “Foram os discípulos que transformaram o


ensinamento de Jesus num sistema eclesiástico e dogmático, em religião positiva.
Dessa transformação, decorre a alienação do ser humano, que se torna incapaz
de construir a vida moral por si mesmo”.

Hegel pretende superar a religião positiva e encontra na experiência religiosa um


fundamento para se chegar ao vínculo imediato entre o divino e o humano. Dessa
maneira, supera a interpretação puramente moral da religião no sentido de Kant.
Hegel quer o homem por inteiro: sentidos e razão.

Hegel quer o homem livre da lei e do dever para praticar o bem,


espontaneamente. Situa o caráter fundamental da realidade na noção de vida.
Este é o infinito, a totalidade divina que abrange tudo, que mais tarde chamará
ideia.

Segundo Zilles (1991, p. 63), “O pensamento que em si é uma forma de vida,


pensa a unidade das coisas como um infinito, como vida criadora, livre da
mortalidade dos indivíduos. Essa vida criadora, Hegel chama Deus. Tal vida deve
ser concebida como espírito”.

A porta de entrada no pensamento hegeliano é o amor. Nele, por primeiro,


descobre-se o caráter dialético da realidade. O ponto de partida é o fato da
autoalienação na realização do amor: o amor, esquecendo-se a si mesmo, sai
da existência amorosa e vive no outro. Mas, no amor, há ainda o separado, não
como separado, mas como unidade.

Na dialética do amor realiza-se a vida. Também a vida, a partir de sua essência,


é dialética. Na origem é una. Divide-se na multiplicidade dos viventes para,
finalmente, reencontrar-se na unidade. Identificando, explicitamente, esta vida
global com Deus, Hegel encontrou o princípio de sua teologia filosófica.

26
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Hegel não tenta demonstrar a existência objetiva de Deus. Antes indaga como
o homem chega a pensar Deus. Interpreta isso a partir da confluência das
possibilidades humanas. A raiz é a consciência da própria divindade. Com isso só
se chega a Deus como presente, na imanência, não ao Deus transcendente.

Segundo ainda o jovem Hegel, a religião reconcilia a reflexão e o amor, unindo-


os no pensamento. A vida religiosa, que é a vida do amor, realiza a exigência da
Filosofia de reconciliar as oposições: o finito e o infinito.

O objetivo racional de Hegel é sempre a reconciliação dos contrários: religião


privada e religião popular, liberdade e necessidade, finito e infinito. “A forma mais
elevada da reconciliação é a identidade sujeito-objeto do espírito cognoscente”.
(ZILLES, 1991, p. 64-65).

O Hegel maduro: filósofo

Na fase da maturidade, Hegel quer subordinar a religião à filosofia. Busca nova


lógica do movimento da vida. Faz a transição do Hegel teólogo para o Hegel
filósofo. Encontra o processo lógico que resolve a oposição entre o finito e
o infinito, ou seja, o processo dialético. Finito e infinito não são dois mundos
separados.

O absoluto é o pensamento que se pensa a si mesmo, o que equivale a dizer que


o absoluto é o espírito, o sujeito autoconsciente. Segundo Hegel, Deus deve ser
visto como aquele que passa por uma história e nela se revela. Este é o tema de
sua obra filosófica fundamental, a Fenomenologia do Espírito (1807).

Nessa obra, aparecem os postulados fundamentais do idealismo hegeliano: o


absoluto como espírito que se desenvolve em três momentos: o absoluto em
si, por si e retorno a si. A dialética triádica deste devir, na qual cada momento é
superação do anterior, a identificação do real e do ideal na consciência. ( ZILLES,
1991, p. 66). Ainda para Zilles (1991, p. 73):

O pressuposto de todo o sistema hegeliano é que, desde o


começo, o espírito absoluto se manifesta em toda a realidade e
em todas as ciências. Entretanto, Hegel afirma que este absoluto
se revele melhor na arte, na religião e na filosofia, ou seja, na
filosofia da religião.

O acontecimento essencial em todo o processo da dialética finito-infinito é a


autossuperação do finito no infinito. Por isso, o infinito é o conceito fundamental
na filosofia hegeliana. No começo está o eu finito. Como este chega ao
absoluto, a Deus?

27
Capítulo 1

Hegel responde: só porque sempre já ultrapassa seus limites. E isto mostra-se


no fenômeno da consciência. Quem sabe alguma coisa, sabe ao mesmo tempo
a determinação do saber pelo objeto. Sabe isso a partir do objeto. Sabendo sua
finitude, ultrapassa-a. É o que acontece na elevação do finito para o infinito, como
elevação do homem a Deus.

Trata-se de elevação do espírito, que é a elevação como espírito pensante. O eu


aliena-se da finitude. A elevação, de fato, realiza-se a partir de uma tendência
interior do homem. O eu renuncia a si mesmo, libertando-se de si mesmo,
renunciando a sua particularidade.

A essência do homem, como espírito, é ser espelho de Deus, diz Hegel. O pensar
é elevar-se do particular ao geral. No pensamento desaparece todo particular. O
espírito eleva-se do causal e temporal para o infinito e eterno. O geral, no qual a
individualidade imerge, é, para Hegel, “a ideia divina”. (ZILLES, 1991, p. 74).

A elevação pensante tem como momentos preparatórios a devoção, o culto e a


fé. Hegel designa a devoção também de “união mística”, como sentimento da
unidade do divino e humano. É uma pré-forma da elevação filosófica.

O culto também pode ser descrito como elevação a Deus. Trata-se de elevação
para além do finito, para a união com Deus. Hegel até chega a afirmar que a
Filosofia se justifica pela devoção e pelo culto, pois a elevação religiosa pertence
ao fundamento da experiência do filosofar. É o que diz no Prefácio à Filosofia do
Direito: “a verdadeira Filosofia conduz a Deus”. (apud ZILLES, 1991, p. 74).

Hegel pensa a fé, o culto e a devoção não a partir do homem, mas a partir de
Deus. A fé não é, para ele, a maneira mais elevada de o homem ter certeza de Deus,
pois esta pertence à Filosofia. “No processo dialético do reconhecimento de si, a
religião é um momento de passagem, e sua verdade deve ser suprassumida num
conhecimento superior, que é a Filosofia”. (STACCONE, 1989, p. 92).

Síntese da visão hegeliana:

Deus transcendente é imanente ao mundo

Hegel tentou superar a divisão entre a ciência e a fé, entre o Deus da Bíblia e o
absoluto filosófico através da mediação. Entretanto, absorve a fé na ciência e
o Deus bíblico do absoluto filosófico. Não soube manter a diferença adequada
entre Deus e o homem.

Hegel tem razão quando insiste em unir Deus e homem. Deus nunca é produto
do homem. Também não se pode identificar a razão divina e a humana, embora
sejam inseparáveis. Em toda a unidade deve manter-se a diferença entre a ciência
divina e humana.

28
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Entretanto, devemos reconhecer a Hegel o mérito de ter superado o conceito grego


de Deus. A metafísica clássica dos gregos, como assumida por teólogos cristãos, é
insuficiente para superar uma ingênua compreensão antropomórfica de Deus.

Platão introduz, no Ocidente, a divisão dualista entre Deus e o mundo. Aristóteles


trouxe o mundo platônico das ideias para este mundo. Mas Deus dá um
empurrão inicial ao mundo e o deixa entregue a si mesmo. Descartes consolidara
este dualismo.

Hegel, entretanto, buscou a mediação para ver Deus e mundo numa unidade.
Isso significa que o Deus transcendente é imanente ao mundo. Deus está neste
mundo e o mundo está em Deus, o infinito no finito. Deus tornou-se próximo.
Platão situara Deus (os deuses) fora do tempo. Aristóteles também acentua sua
imutabilidade como Ato Puro. É o primeiro motor imóvel.

Segundo Hegel, Deus não é imóvel, imutável, estático. É histórico, ou seja, é vivo
e atuante na história. Como eterno, Deus funda a história do homem e do mundo,
sendo, ao mesmo tempo, origem, centro e futuro do homem e do mundo. A
religião tenta apresentar o espírito absoluto como revelação de Deus.

Na filosofia da religião, Hegel tenta recuperar as provas da existência de Deus,


tendo como centro um esclarecimento especulativo da Trindade. Enquanto a
religião apresenta o absoluto como objeto da fé, a filosofia hegeliana tenta pensá-la.

29
Capítulo 2

Aprofundando o Processo de
Desconstrução da Religião

Habilidades Após as braçadas nas águas da modernidade


tardia estudando as seções deste capítulo, você
saberá explicar, sem cair em estereótipos, a
característica comum de suspeita, questionamento
e desconstrução dos valores e símbolos religiosos
neste período. Espera-se que você consiga discernir
o conceito de relação com o sagrado como fonte
de possível engajamento histórico e não apenas
de religião opiácea. Que se permita desenhar
uma visão de filósofo educador para posturas de
tolerância e questionamentos entre as diferentes
religiões e espiritualidades.

Seções de estudo Seção 1:  Feuerbach e Marx: o sagrado na religião


alienação e/ou transformação

Seção 2:  Augusto Comte: breve espiada na ideia


religiosa do positivismo

Seção 3:  Nietzsche e Freud: o momento forte da


crítica de desconstrução sobre a relação com o
sagrado

31
Capítulo 2

Seção 1
Feuerbach e Marx: o sagrado na religião
alienação e/ou transformação
A crítica à religião vem desde os antigos gregos com a desmistificação, a
suplantação de muitos mitos pela reflexão e a lógica racional. É inclusive a
gênese da Filosofia, como vimos. Na modernidade, o desenvolvimento científico
mais uma vez abala as muitas crenças tradicionais.

No século XIX, chega-se a momentos cruciais desse processo de crítica, pois


a força do humano e sua centralidade levam alguns pensadores à negação do
sagrado, ou pelo menos, às maneiras dominantes como o sagrado e a religião se
concretizam nessa época, de modo especial na Europa.

O filósofo Ludwig Feuerbach (1804-1872) propõe-se a elaborar uma antropologia


humanista. A questão religiosa constitui tema recorrente de sua investigação e
reflexão, o que fica claro em vários de seus escritos, dentre os quais destacamos
“A essência do cristianismo”, de 1841, e “A essência da religião”, de 1845.

Figura 2.1 – Imagem de Ludwig Feuerbach

Fonte: MEDIA-2.WEB.BRITANNICA.(1992).

Feuerbach está convencido de que a teologia se identifica com a antropologia, a


essência de Deus com a essência humana. O ponto de partida e o princípio de
sua demonstração têm por base uma concepção singular de homem e de religião.

32
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Ludwig Feuerbach:

concepção singular de homem e de religião

A religião funda-se na diferença essencial entre o homem e o animal, pois os


animais não têm religião. Entretanto, o essencial do homem é a consciência. A
consciência, em sentido próprio, é sempre consciência do infinito. O homem não
é só fundamento, mas, também, o objeto da religião.

Na relação com os objetos sensíveis é a consciência do objeto


facilmente discernível da consciência de si mesmo; mas no
objeto religioso a consciência coincide imediatamente com a
consciência de si mesmo. O objeto sensorial está fora do homem,
o religioso está nele, é mesmo íntimo (A essência do cristianismo,
p. 55). Por isso, ‘a consciência de Deus é a consciência que o
homem tem de si mesmo’. (ZILLES, 1991, p. 102).

Para Feuerbach, a verdade da religião está em ser o comportamento do homem


perante seu próprio infinito. Por outro lado, a falsidade da religião está no
homem tornar independente de si mesmo o seu próprio ser infinito, separando-o
e opondo-o como diferente de si, produzindo a bipolaridade Deus e homem,
alienando, assim, o último, ou seja, empobrecendo-o.

Religião como uma alienação

Esta é a crítica essencial que Feuerbach faz à religião: é que ela é uma alienação.
Segundo Feuerbach, os seres humanos vivem, desde sempre, numa relação com
a Natureza e, desde muito cedo, sentem necessidade de explicá-la, e o fazem
analisando a origem das coisas, a regularidade dos acontecimentos naturais, a
origem da vida, a causa da dor e da morte, a conservação do tempo passado na
memória e a esperança de um tempo futuro.

Para isso, criam os deuses. Dão-lhes forças e poderes que exprimem desejos
humanos. Fazem-nos criadores da realidade. Pouco a pouco, passam a concebê-
los como governantes da realidade, dotados de forças e poderes maiores do que
os humanos.

Nesse movimento, gradualmente, de geração a geração, os seres humanos se


esquecem de que foram os criadores da divindade, invertem as posições e se
julgam criaturas dos deuses. Estes, cada vez mais, tornam-se seres onipotentes,
oniscientes e distantes dos humanos, exigindo destes culto, ritos e obediência.
Os deuses, então, tornam-se transcendentes e passam a dominar a imaginação e
a vida dos seres humanos.

33
Capítulo 2

A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não se


reconhecem no produto de sua própria criação, transformando-o num outro
(alienus), estranho, distante, poderoso e dominador. O domínio da criatura
(deuses) sobre seus criadores (homens) é a alienação. Para Zilles (1991, p. 103):

Feuerbach critica a religião por não dar a devida importância à


vida presente pondo toda a esperança de libertação no céu. Por
isso o homem religioso, segundo ele, não se compromete com
a mudança e transformação, com a injustiça, o sofrimento e a
miséria deste mundo. A religião leva-nos a aceitar todas essas
coisas resignadamente sem lutar contra elas, projetando nossa
felicidade no outro mundo.

Feuerbach estudou Filosofia a partir do contato com o pensamento de Hegel,


mas inverteu a tese hegeliana a qual afirmava que a consciência do homem sobre
Deus é a autoconsciência de Deus. Para Feuerbach, “a consciência que o homem
tem de Deus é o conhecimento que o homem tem de si”. (apud STACCONE,
1989, p. 95).

O princípio da filosofia não é Deus:

é o finito, é o homem

Feuerbach quer uma filosofia que possa satisfazer todas as exigências humanas
e considerar o homem em sua realidade concreta material. Deixa de lado o
idealismo hegeliano, dando aos sentidos a responsabilidade de dar essência às
coisas.

Na obra “Princípios da filosofia do futuro”, é o homem o ponto de partida de


seu filosofar. O começo da filosofia não é Deus, não é o absoluto, nem o ser
como predicado do absoluto ou da ideia – o começo da filosofia é o finito, o
determinado, o real, o humano. Feuerbach (1988, p. 98) não parte do homem
individual, pois o eu precisa da complementação do tu para ser realmente eu:

O homem singular por si não possui em si a essência do homem


nem enquanto ser moral, nem enquanto ser pensante. A essência
do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do
homem com o homem – uma unidade que, porém, funda-se
apenas na realidade da distinção do eu e do tu. (Feuerbach,
1988, p. 98).

Nesta perspectiva, conclui que “o princípio supremo e último da filosofia é, pois, a


unidade do homem com o homem”. (Idem, p. 99). É por meio do outro que tenho
a consciência da humanidade, pois é no olhar do tu que o meu olhar se abre para
a humanidade.

34
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

A espécie é, para Feuerbach, o homem pleno. Por isso, a medida da espécie é a


medida absoluta, lei e critério do homem. O homem, assim concebido, ocupa o
lugar do absoluto em Hegel. (ZILLES, 1991, p. 106).

A religião nasce quando o homem considera sua essência como separada de


si, como Deus. Nesse caso, Deus é a projeção daquilo que o homem deseja
ser. Deus, nessa perspectiva, é o próprio ser humano alienado de si mesmo: a
essência é a autoconsciência do homem. O ateísmo é o caminho necessário para
o homem redescobrir sua dignidade, reconquistando sua essência perdida. Para
Feuerbach (1989, p. 309-310):

A religião é a primeira consciência do homem de si mesmo. As


religiões são sagradas exatamente porque são as tradições da
primeira consciência. Mas o que é para a religião o primeiro,
Deus, é em si, como foi demonstrado, quanto à verdade o
segundo, pois ele é somente a essência objetiva do homem,
e o que é para ela o segundo, o homem, deve, portanto, ser
estabelecido e pronunciado como o primeiro. O amor ao ser
humano não pode ser derivado, ele deve ser primitivo. Só então
torna-se o amor um poder verdadeiro, sagrado, seguro. Se a
essência de Deus é a mais elevada essência do homem então
também praticamente deve ser a mais elevada e primeira lei o
amor do homem pelo homem.

Começo, centro e fim da religião, para Feuerbach, é o próprio homem. Aqui,


vemos formulado um caminho filosófico de desconstrução da ideia de Deus,
de religião e do próprio ser humano. A experiência do sagrado é vista como
experiência de si mesmo com os outros.

A lacuna que permanece é a reflexão sobre outros aspectos essenciais do ser humano,
de modo geral, o próprio sentido da existência. Para Feuerbach, o amor ao humano
como fundamento é que torna o amor um poder verdadeiro, sagrado, seguro.

Karl Marx:

religião alienante e/ou mobilizadora

A análise de Feuerbach foi retomada por Karl Marx (1818-1888). Segundo Marx
(apud ZILLES, 1991, p. 124), “Feuerbach demonstrou que a filosofia não é outra
coisa que a religião formulada em pensamento e realizada de maneira pensante”.

É válido, neste momento, lembrar que a reflexão desenvolvida por Marx, como
por qualquer outro pensador, em torno da religião, ou qualquer outro tema, deve
ser contextualizada em seu período histórico-cultural.

35
Capítulo 2

Marx aprendeu sua dialética com Hegel, mas ao contrário deste, Marx não tem
o objetivo apenas de entender o processo histórico, mas pretende transformá-
lo. Critica Hegel por se refugiar no pensamento abstrato. Rejeita seu idealismo,
substituindo-o pelo materialismo.

Figura 2.2 – Retrato de Karl Marx

Fonte: ABOLITIONIST (1989).

Marx aprendeu de Hegel a essência social do ser humano, a significação do fator


trabalho para sua autocompreensão e o reconhecimento da alienação. Aceitou de
Hegel não só o profundo sentido pela história, mas, também, o caráter totalizante
e totalitário de seu sistema.

Entendendo que o ser humano não é, em primeiro lugar, consciência, mas


matéria, corpo, Marx transpõe a dialética hegeliana do plano do espírito para o
plano das necessidades materiais, interpretando a história e a política em função
da luta de classes.

Para Marx, o ser humano pode ser compreendido só em sua relação imanente,
objetiva, com a natureza. O homem é “diretamente um ser natural” em sua
essência antropológica específica, de ser ativo, capaz de objetivar e “transcender”
a natureza. (STACCONE, 1989, p. 98).

No pensamento desenvolvido por Marx, a mudança se constitui essencial no


modo de interpretar a realidade. Deixa-se de lado o intelectualismo ou idealismo
puro e se parte da vida concreta, material, cotidiana.

Tal mudança não significa deixar de lado a razão e sua extraordinária capacidade
reflexiva e crítica, muito pelo contrário. Trata-se de superar a visão dualista que
quebra o ser humano e o cosmos separando o espiritual e o material, o corpo da
alma, o imanente do transcendente, como se pudessem subsistir isoladamente.

36
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Antônio Gramsci (1991, p. 139), inspirado no pensamento de Marx, ao abordar


o campo de conhecimento, afirma que “o elemento popular ‘sente’, mas nem
sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre
compreende e, muito menos, ‘sente’. Os dois extremos são, portanto, por um
lado, o pedantismo e, por outro, a paixão cega e o sectarismo”.

Com isso, Gramsci deixa claro que o erro do intelectual consiste em acreditar
que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar
apaixonado. Nesta perspectiva, a filosofia da práxis supera o idealismo e o
materialismo tradicional.

O ponto de observação, a partir do “homem real” que produz a sua vida, permite
reconsiderar criticamente todo conhecimento produzido pelos homens, ao longo da
sua história. “Totalmente ao contrário do que ocorre na Filosofia alemã que desce
do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu”. (MARX apud ZILLES, 1991, p. 37).

Na questão da religião e da crítica religiosa, Marx está em oposição a Hegel.


Situa-se do lado de Feuerbach. Dele herdou não só o materialismo, mas, também,
a crítica da religião. Marx, porém, critica Feuerbach pela carência da dimensão
social do ser humano que, na realidade, é “o conjunto das relações sociais”, e,
nesse sentido, por ter ignorado a origem social do fenômeno religioso.

Feuerbach espera a transformação da sociedade através do iluminismo, mudança de


consciência e apela ao indivíduo da sociedade burguesa, tentando superar o egoísmo
pelo amor. Marx, por sua vez, analisa a emancipação humana como questão social do
ponto de vista econômico, político e ideológico. (ZILLES, 1991, p. 126).

Religião: “o espírito de um mundo sem espírito”

O que Marx pensava sobre a religião é estereotipado na célebre expressão: “A


religião é o ópio do povo”. Essa expressão faz parte de sua análise da sociedade
de sua época. Com ela, Marx pretende mostrar sua constatação de que a religião
– referindo-se ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, isto é, às religiões da
salvação – amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque lhes
promete felicidade numa vida futura. Na esperança de felicidade e justiça no
outro mundo, os despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as
causas de suas misérias neste mundo.

Por outro lado, Marx fez outra afirmação que, em geral, não é lembrada. Disse
ele que “a religião é a lógica e a enciclopédia popular, espírito de um mundo sem
espírito”. (apud CHAUI, 2002, p. 313). Com esta frase Marx procurou mostrar
que a religião também pode ser uma forma de conhecimento e de explicação
da realidade, usada pelas classes populares – lógica e enciclopédia – para dar
sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações. É o
espírito no mundo sem espírito que lhes permite, periodicamente, lutar contra os
poderes tirânicos.

37
Capítulo 2

Marx tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma


Protestante de 1517, bem como a Revolução Inglesa de 1644, a Revolução Francesa
de 1789, e os movimentos milenaristas que exprimiram, na Idade Média e no início
dos movimentos socialistas, a luta popular contra a injustiça social e política.

Se por um lado, na religião, há a face enganadora e ilusória que leva ao


conformismo, há, por outro lado, a face combativa dos que usam o saber
religioso contra as instituições legitimadas pelo poder teológico-político. (CHAUI,
2002, p. 313).

A alienação religiosa deve ser esclarecida a partir da situação histórico-social


concreta. A religião é expressão da alienação e não seu fundamento. A essência
da alienação encontra-se no contexto econômico, no tipo de relações de
produção geradas no mundo capitalista. Assim, a ideia de Deus é resultado de
uma economia alienante.

A religião é aroma de uma sociedade alienada. É um momento necessário do


mundo alienado porque o justifica. “A crítica religiosa de Marx, em primeiro lugar,
deve ser vista como crítica ideológica do cristianismo burguês de sua época.”
(ZILLES, 1991, p. 126-130).

Para Marx, a religião é apenas um aspecto da ideologia burguesa, como reflexo


das relações de produção. São as relações de produção o objeto próprio de sua
crítica e não propriamente a religião. Segundo Zilles (1991, p. 130):

Pelo vínculo histórico da religião com as relações de produção


compreende-se que a Igreja estivesse vinculada a poderosas
forças contrárias ao progresso e à liberdade e que, por isso, Marx
considerasse o cristianismo como seu inimigo. Mas disso não
se pode concluir que o cristianismo sempre deva ser reacionário
nem que o marxismo sempre deverá combater a religião, nem
que o marxismo sempre será força progressista.

Para Marx, na alienação religiosa, o ser humano projeta para fora de si, de
maneira vã e inútil, seu ser essencial, e se perde na ilusão de um mundo
transcendente. A religião, neste contexto, faz do sujeito o predicado, alçando
Deus sobre as nuvens, em vez de dar-se conta de que o céu está sobre a terra.

O crente suspira por uma felicidade ilusória para esquecer sua desgraça presente.
Neste sentido, a religião é “ópio do povo”. Para eliminar a alienação religiosa é
preciso eliminar todas as condições de miséria que a originam. A contradição
fundamental não está, pois, na religião, e sim no nível do modo de produção de
bens materiais (aspecto econômico da sociedade).

O ateísmo como princípio teórico de Marx, baseado em Feuerbach, não se


confirma na realidade das diferentes sociedades e não tem fundamentos

38
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

racionais consistentes. No entanto, sua crítica da religião contém muita verdade –


considerando o contexto histórico de Marx na Europa do século XIX. Não se pode
negar o abuso e os interesses políticos presentes no cotidiano e nas estruturas
das religiões ao longo da história.

Muitas vezes, a pregação cristã, por exemplo, deu centralidade ao pecado


individual, ignorando o social, que gera a exclusão e a miséria das massas. E,
ainda, não são raros os casos de identificação de representantes da hierarquia da
Igreja Católica e de outras igrejas cristãs com a burguesia dominante.

Não basta o discurso, os princípios religiosos. A falta de coerência com esses


princípios leva ao descrédito das instituições religiosas.

A partir desta reflexão podemos nos perguntar:

será o marxismo necessariamente ateu?

No marxismo ortodoxo, a posição ateia é clara. Aí, a religião e a ciência excluem-se


mutuamente como métodos de apreender a realidade e transformá-la. É o exemplo
do que foi aplicado em algumas sociedades como o marxismo russo e chinês.

Por outro lado, existem seguidores de Marx, revisionistas ou heterodoxos, que


criticam não só o catolicismo de Estado, mas, também, o ateísmo do Estado
Soviético, por exemplo. (ZILLES, 1991, p. 131).

No ocidente, em países de tradição católica, a miséria social é muito presente,


contrariamente aos princípios básicos do Cristianismo. É nesse contexto que
cristãos leigos e até clérigos simpatizam com o marxismo, como uma ferramenta
científica de compreensão da realidade social e de construção de alternativas de
ruptura com tal situação, embasados na própria convicção teológica cristã como
teologia de libertação.

Se Santo Agostinho pode “batizar” o grego Platão e São Tomás de Aquino pode
“batizar” Aristóteles, por que na contemporaneidade não se pode “batizar” Marx?

Do ponto de vista da crítica filosófica em relação à religião, podemos tomar como


exemplo o italiano Antônio Gramsci (1991), seguidor da filosofia da práxis de
Marx, quando afirma:

Deve-se ser justo com os adversários, no sentido em que é


necessário esforçar-se para compreender o que eles realmente
quiseram dizer, e não fixar-se maliciosamente nos significados
superficiais e imediatos de suas expressões. Isto é válido sempre
que o fim proposto seja o de elevar o tom e o nível intelectual dos
próprios seguidores, e não o fim imediato de criar um deserto em
torno de si. (Gramsci, 1991, p. 164).

39
Capítulo 2

Gramsci, numa longa reflexão sobre o problema da natureza humana, mesmo


discordando do conceito teológico católico de homem, não deixa de destacar
os elementos positivos presentes na “utopia maior” que busca as origens da
natureza humana em Deus e faz dos homens seus filhos. Segundo ele, tal
concepção deu, de fato, um impulso revolucionário ao movimento histórico.

É verdade que tanto as religiões que afirmam a igualdade


dos homens como filhos de Deus, quanto as filosofias que
afirmam sua igualdade pelo fato de participarem da faculdade
de raciocinar, formam expressões de complexos movimentos
revolucionários, respectivamente: a transformação do mundo
clássico e a transformação do mundo medieval que colocaram os
mais poderosos elos do desenvolvimento histórico. (Gramsci,
1991, p. 43).

Longe de serem, sempre, ópio do povo, Gramsci reconhece a força histórica,


real, de determinadas religiões, orientadas para a transformação do homem e da
sociedade em sentido revolucionário. (STACCONE, 1989, 198). Veremos, a seguir,
uma citação em que Gramsci (1991, p. 115-116) revela seu posicionamento frente
ao Cristianismo a partir de uma reflexão sobre a força política das utopias:

A religião é a mais gigantesca utopia, isto é, a mais gigantesca


‘metafísica’ que já apareceu na história, já que ela é a mais
grandiosa tentativa de conciliar, em uma forma mitológica, as
contradições reais da vida histórica: ela afirma, na verdade, que
o homem tem a mesma ‘natureza’, que existe o homem em
geral, enquanto criado por Deus, filho de Deus, sendo por isso
irmão dos outros homens, igual aos outros homens, livre entre
os outros e da mesma maneira que os outros; e ele pode se
conceber desta forma espelhando-se em Deus, ‘autoconsciência’
da humanidade; mas afirma também que nada disto pertence a
este mundo e ocorrerá neste mundo, mas em outro (utópico).

A partir desta perspectiva utópica e, também, de afirmação da natureza humana,


Gramsci conclui que “as ideias de igualdade, liberdade e fraternidade fermentam
entre os homens; entre os homens que não se veem nem iguais, nem irmãos de
outros homens, nem livres em face deles”. (GRAMSCI, 1991, p. 115-116). Tal
consciência, como notou o filósofo, esteve presente em toda sublevação radical
das multidões, de um modo ou de outro, sob formas e ideologias determinadas, e
foram colocadas essas reivindicações.

Nessa linha de pensamento, podemos constatar que determinadas práticas


religiosas e mesmo religiões institucionalizadas têm uma função histórica real de
transformação, na medida em que fermentam as massas com suas utopias de
justiça, igualdade e fraternidade, e suscitam movimentos históricos de libertação.

40
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Neste contexto, para ilustrar e instigar nossa reflexão, vamos nos reportar a
um pensamento inspirado no alemão Schopenhauer (1788-1860): “religião é a
filosofia da massa, ao passo que filosofia é a religião dos homens seletos, isto é,
dos grandes intelectuais”. (apud GRAMSCI, 1991, p. 117).

Seção 2
Augusto Comte: breve espiada na ideia religiosa
do positivismo
Outra janela filosófica pela qual podemos observar a relação entre razão/ciência
e experiência do sagrado/religião é o pensamento do francês Augusto Comte
(1798-1857), o fundador do positivismo.

De modo geral, caracterizamos as ideias de Comte como o ápice do cientificismo,


para o qual nada pode ser aceito como verdadeiro se não passa pelo crivo da
experimentação sensível apoiada no método científico.

Comte defende que há um processo de evolução na forma humana de


interpretar a realidade. O ser humano passaria por três estágios para chegar ao
amadurecimento, ao conhecimento verdadeiro.

•• O primeiro estágio é o teológico ou mítico: para explicar a realidade


apelamos para elementos sobrenaturais, misteriosos, que não
dependem da vida cotidiana. Segundo Comte, esta é a fase infantil
do entendimento humano. Conforme o próprio Comte (2000, p. 127):

Os entes quiméricos que a religião empregou provisoriamente


inspiraram diretamente vivos afetos humanos, que foram mesmo
mais poderosos sob as ficções menos elaboradas. Essa preciosa
aptidão devia por muito tempo parecer estranha ao positivismo, por
efeito de seu imenso preâmbulo científico. (Comte, 2000, p. 127).

•• O segundo estágio é o metafísico ou filosófico: aí estaríamos a meio


caminho andado entre a superstição/fantasia e o conhecimento
válido. Os seres sobrenaturais são substituídos pela reflexão
intelectual, pelas grandes teses e correntes de pensamento, mas
ainda no plano das ideias. Nas palavras de Comte:

Enquanto a iniciação filosófica abraçou apenas a ordem material,


e mesmo a ordem vital, ela não pôde desvendar senão leis
indispensáveis à nossa atividade, sem nos ministrar nenhum objeto
direto de afeição permanente e comum. (Comte, 2000, p. 127).

41
Capítulo 2

•• O terceiro estágio é o positivo ou científico: este seria o ápice


do conhecimento humano. Só aqui se atingiria o conhecimento
verdadeiro, certo. Aqui, a imaginação é subordinada à observação, e
interessa saber como as coisas são e se relacionam balizadas em leis
naturais. Segundo Comte (2000, p. 127), “Mas já não é mais assim
desde que essa preparação gradual se acha finalmente completada
pelo estudo próprio da ordem humana, individual e coletiva”.
Comte parte do princípio materialista-naturalista em que impera uma ordem
natural em tudo que acontece e funciona. Em seu catecismo positivista, afirma
que “as populações da elite procuram em vão a religião universal. A experiência
demonstrou cabalmente que este voto final não pode ser satisfeito por
nenhuma crença sobrenatural”. (COMTE, 2000, p. 100). O positivismo elimina
irrevogavelmente o catolicismo, como qualquer outro teologismo.

Para essa nossa unidade de aprendizagem, é interessante observar que,


mesmo fundamentado em ideias contrárias a tudo que escapa à observação e
à experiência sensível, Comte também teve uma fase mística, a partir de 1844,
quando se dedica a propor o que chamou de “Religião da Humanidade”.

Trata-se da concepção de uma religião que tem como ser supremo a própria
humanidade, e baseada nos princípios do positivismo. Explica Comte (2000, p. 124):

O dogma fundamental da religião universal consiste, portanto,


na existência constatada de uma ordem imutável a que estão
sujeitos os acontecimentos de todo gênero. Esta ordem é,
ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva: por outras palavras,
diz igualmente respeito ao objeto contemplado e ao sujeito
contemplador. Leis físicas supõem, como efeito, leis lógicas
e reciprocamente. Se o nosso entendimento não seguisse
espontaneamente regra alguma, não poderia ele nunca apreciar a
harmonia exterior. Sendo o mundo mais simples e mais poderoso
que o homem, a regularidade deste seria ainda menos conciliável
com a desordem daquele. Toda fé positiva assenta, pois, nesta
dupla harmonia entre o objeto e o sujeito.

O absoluto não importa mais. Somente o que é relativo ao mundo natural faz
parte dos interesses do homem revestido do espírito positivo: “em uma palavra,
a Humanidade substitui definitivamente a Deus, sem esquecer jamais os seus
serviços”. (COMTE, 2000, p. 302).

Diante de questões como a moral, Comte ampliou seu horizonte, apoiando-se em


algo que não se perdesse no imediato da pura experiência. “É necessário invocar
uma autoridade superior (a humanidade) a toda individualidade para impor,
mesmo nos casos mínimos, regras verdadeiramente eficazes, fundadas, então,
sobre uma apreciação social que jamais comporta indecisões”. (COMTE, 2000, p. 121).

42
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

O positivista vai ao humano, individual e coletivamente para encontrar respostas


que lhe deem sentido. E aí não dá para negar a subjetividade, a diversidade, a
paixão, a angústia, o desejo, o medo e tudo mais que compõe o humano.

Religião da humanidade:

algo de Deus e seu mistério indevassado é o Amor

Ao propor a Religião da Humanidade, Comte se insere, necessariamente, no


campo da experiência religiosa, mesmo negando a transcendência de tal religião.
O próprio filósofo afirma: “Toda doutrina religiosa repousa necessariamente sobre
uma explicação qualquer do mundo e do homem, duplo objeto contínuo de
nossos pensamentos teóricos e práticos”. (COMTE, 2000, p. 124).

Como estamos vendo desde o início de nossos estudos sobre as relações do


humano com o sagrado, a religião é um caminho de construção de respostas ao
sentido da vida, o sentido de ser humano, e é isso que Comte (2000) defendeu com
sua Religião da Humanidade, que pode ser sintetizada nas seguintes concepções:

Esta apreciação condensa o conjunto das concepções positivas


na noção única de um ente imenso e eterno, a humanidade, cujos
destinos sociológicos se desenvolvem sempre sob o predomínio
necessário das fatalidades biológicas e cosmológicas. Em torno
deste grande Ser, motor imediato de cada existência individual
ou coletiva, nossos afetos se concentram tão espontaneamente
quanto nossos pensamentos e ações. A ideia só desse Ser
supremo inspira diretamente a fórmula sagrada do positivismo:
o amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.
(Comte, 2000, p. 127).

Nossa pretensão nesta reflexão não é negar as premissas cientificistas comtianas,


mas, de certa forma, demonstrar que mesmo o cientificismo tendeu, em certo
momento, a buscar algo mais, que extrapola o cotidiano, o mecânico e imediato.

Apenas como indicativo, poderíamos ampliar este diálogo com Comte abordando,
por exemplo, a fórmula sagrada do positivismo que tem por princípio o amor.
Segundo Staccone (1989, p. 256):

O Deus que o homem moderno aceita diante de si é diferente


daquele que a metafísica, a teologia cósmica e a fantasia
popular do passado nos presentearam. [...] Temos que buscar
outra linguagem que nos permita expressar algo essencial da
insondável e inefável natureza de Deus, conscientes de que o
mistério permanece indevassado diante de nós. E para expressar
tudo isto só há uma palavra: Amor.

43
Capítulo 2

O amor à humanidade, em Comte, é exigência fundamental da moral positivista.


Mais que um sentimento genérico, o amor se manifesta pelo afeto no seio da
Família, pelo respeito à Pátria e pela observação dos ritos da Religião Positiva.

Seção 3
Nietzsche e Freud: o momento forte da crítica
de desconstrução sobre a relação com o
sagrado
O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) marcou com suas ideias o momento
mais forte de desconstrução dos ídolos da metafísica. Segundo Luc Ferry
(2007, p. 232), foi o “primeiro filósofo que destruiu integralmente e sem o menor
resquício da noção de ‘finalidade’ a ideia de que haveria, na existência humana,
um sentido a buscar, objetivos a perseguir, fins a realizar”.

Com essa perspectiva, Nietzsche abriu caminho para os grandes materialismos


do século XX, para os pensadores da imanência radical do ser no mundo.

Figura 2.3 – Imagem de Friedrich Nietzsche

Fonte: DAVIDCORREIAJUNIOR (2008).

Quando se fala em Nietzsche, uma das primeiras ideias que surge é a famosa
expressão “Deus está morto”. Para Nietzsche, a fórmula “Deus está morto”
exprime uma decisão existencial do próprio homem. Conforme análise do filósofo
Oswaldo Giacóia (2005), ele não reivindicou para si a autoria da morte de Deus. O
que Nietzsche faz é mostrar para o homem moderno que Deus está morto e que
nós todos somos seus assassinos.

44
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Friedrich Nietzsche:

É preciso que Deus morra para que o humano viva?

Nietzsche traz à luz uma realidade, uma experiência que é intrínseca e inegável
do pensamento iluminista. O homem moderno colocou o mundo e a história sob
o signo da razão esclarecida, que é razão da absoluta autodeterminação, ou seja,
que não admite nenhum tipo de submissão ou determinação externa. Portanto,
necessariamente sem Deus, pois, este seria uma forma de manter uma atitude de
subordinação.

Assim, para Nietzsche, a ciência moderna é, em sua natureza, ciência ateísta. O


grande problema é que o homem moderno é hipócrita, pois ele quer uma coisa
e o contrário dessa coisa ao mesmo tempo, ou seja, ele quer emancipar-se
inteiramente e se colocar ainda sob o abrigo e a proteção de um absoluto qualquer.

É, ainda, a expressão da necessidade de buscar refúgio e consolo que se


manifesta não apenas nas religiões, mas, também, na sacralização do mercado,
do consumo, da política, do prazer, entre tantos outros exemplos comuns em
nossa sociedade hedonista.

Na leitura da Alegoria do Louco pode-se avaliar como Nietzsche ilustra sua


descoberta de que Deus perdeu-se da vista do homem moderno.

Já ouviste falar de um louco que, numa manhã de sol, acendeu


uma lanterna e correu para o mercado, gritando sem cessar:
‘Procuro Deus, procuro Deus!?’ Como muitos dos que lá andavam
e o ouviram não acreditavam em Deus, provocou o riso geral.
‘Por quê? Ele perdeu-se?’, disse um. ‘Perdeu-se no caminho
como uma criança?’, disse outro. ‘Ou ter-se-á escondido?’
[...] e assim troçavam dele, rindo-se. O louco saltou para o
meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘Onde está Deus?’,
perguntou. ‘Dir-vos-ei. Matamo-lo – vós e eu. Todos nós somos
seus assassinos. Mas como é que o fizemos? Como é que fomos
capazes de beber o mar? Quem nos deu a esponja para apagar
o horizonte? Que fizemos nós quando desligamos a terra do seu
sol? Onde está ele agora? E para onde vamos nós? Será que nos
afastamos de todos os sóis? Não estaremos nós continuamente
a mergulhar? Para baixo, para o lado, para a frente, em todas as
direções? Saberemos ainda o que está certo e o que está errado?
Não andaremos à deriva como se atravessássemos um nada
infinito? Não sentimos o sopro do espaço vazio? Não é verdade
que ele é cada vez mais frio? Não será que nos espera uma noite
cada vez mais escura? [...] O que havia de mais sagrado e mais
poderoso em todo o mundo foi mortalmente ferido pelos nossos
punhais. Quem limpará o sangue que nos cobre? Não será esse
um ato demasiado grande para nós? Não teremos que nos tornar
deuses apenas para parecermos dignos desse ato?

45
Capítulo 2

[...] Depois de proferir estas palavras o louco calou-se e voltou


a olhar para os que o escutavam, que se calaram também e
olharam atônitos. Por fim, atirou para o chão a lanterna, que
se partiu, e afastou-se. ‘É demasiado cedo’, disse ele, ‘ainda
não chegou a minha hora’. ‘Este acontecimento terrível ainda
se está a preparar...ainda não chegou aos ouvidos do homem.
O relâmpago e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas
precisa de tempo, os atos precisam de tempo, mesmo quando
são realizados antes de poderem ser vistos ou ouvidos. Este ato
está mais distante deles do que as estrelas mais longínquas – e,
contudo, foram eles próprios que o realizaram’. Diz-se ainda que
o louco entrou em várias igrejas onde cantou o seu Requiem
aeternam deo. Quando o expulsavam e o intimavam a explicar o
seu comportamento, respondia sempre da mesma maneira: ‘O
que são estas igrejas senão os túmulos e monumentos de Deus?’
(apud STACCONE, 1989, p. 251-252).

O homem sofre com a morte de Deus

porque sempre procura o deus morto

Nietzsche via sua época como o fim da metafísica, da morte de Deus e do


ateísmo. Tudo isso ele designa com o termo niilismo. Primeiro a morte de Deus
significa, pois, a irrupção de grande caos. Para Zilles (1991, p. 177):

O homem sofre com a morte de Deus porque sempre procura o


deus morto. Este é o homem louco que em pleno dia sai à praça
com lanterna à procura de Deus. [...] Doravante não mais se pode
falar de Deus no sentido do cristianismo, nem da filosofia, pois
Deus é apenas um conceito ao qual nada corresponde.

Para nascer o novo é preciso que o velho morra. Primeiro, é preciso destruir os
valores tradicionais. O niilismo é uma passagem obrigatória. Com a transmutação
de todos os valores, só pode ser superado por meio da criação de novos valores,
que têm seu fundamento na vida, na natureza. É a aceitação radical da vida e do
mundo. Nietzsche encontra a superação do niilismo na ideia do eterno retorno.
Essa é a ideia das ideias.

Estrada (2007, p. 228) explica assim o conceito nietzcheano de niilismo:

Não é possível um niilismo absoluto, porque ao propô-lo adota-


se uma perspectiva a partir da qual se avalia tudo, e Nietzsche
confessa sem rodeios que há necessidade de novos valores
e de uma nova ordem, embora tal necessidade tenha origem
numa imanente vontade de poder e possua um valor perecível,
naturalista e fisiológico. [...] Por isso distingue entre um niilismo
da decadência, que para na negação em vez do que afirma a

46
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

vida. Esse é o melhor, porque é o mais fecundo, porque gera


vida, porque reflete uma conscientização do niilismo inerente à
vontade de verdade. (Estrada, 2007, p. 228).

O niilismo é uma possibilidade sempre latente. É o passo indispensável para que


ocorra uma metamorfose da consciência, que precisa morrer para si mesma e
para o mundo. Trata-se, porém, não de um niilismo reativo, mas sim de um ativo,
buscado e assumido conscientemente. Para Estrada (2007, p. 237):

Nietzsche aponta para a compaixão perigosa, para o veneno do


fraco que explora sua indigência e cria mal-estar nos demais. O
que Nietzsche rejeita aqui é a chantagem a partir da pobreza,
da culpa e da indigência, que geram a má consciência. São
reativas porquanto tiram a capacidade de viver e de gozar a vida
plenamente.

Nietzsche faz uma observação que nos dá uma ideia de sua leitura das religiões
“ao descrever a Bíblia hebraica como o melhor livro do mundo, porque é o livro
da única religião que, acima de todas as outras, não é apenas um sistema de
adoração, mas algo ainda maior – uma discussão com ela mesma”. (CUPITT,
1999, p. 52).

Neste posicionamento se percebe que a grande crítica não é feita à religião


em si, mas às práticas religiosas que conduzem a humanidade ao imobilismo,
conformismo, desconectando-se ou menosprezando a vida concreta em favor da
vida depois da morte, por exemplo.

Um Super Homem:

o humano sem as próteses e sem os consolos

Mais uma vez aproveitando das reflexões de Giacóia (2005), podemos aprofundar
a questão do que deve surgir depois de assumir verdadeiramente a postura
necessariamente ateísta da modernidade. É o “Além do homem” de que fala
Nietzsche – traduzido por muitos como Super Homem –, que indica a superação
do homem, desse homem do jeito que foi produzido na história do ocidente. É a
possibilidade do ser humano encarar a sua existência e a vida sem as próteses e
sem os consolos de que fez uso até agora para suportar a existência.

Segundo Nietzsche, a história da nossa cultura é a história da invenção desses


consolos, das perspectivas de sentido que nos permitem viver. Em especial, por
meio da religião e da moral se inventam tais consolos. Isso é uma tentativa de
negar duas experiências humanas fundamentais: a experiência do tempo e da
finitude e a experiência da morte.

47
Capítulo 2

Na fuga de tais realidades, nós inventamos o além, ultramundos, perspectivas de


vida eterna, sentidos absolutos para a existência, finais escatológicos dos tempos
etc. Nesta visão, Deus é apenas um subterfúgio que leva a uma fuga do mundo e
das grandes tarefas humanas.

Ultrapassar o homem (chegar ao Além do Homem) significa aceitar a


possibilidade de viver de maneira radical a finitude e a morte sem necessidade
de consolo metafísico. Assumir a perspectiva de que a existência não tem uma
justificação nem religiosa, nem ética, nem metafísica, mas aceitar como única
possibilidade de finalidade para nosso existir a beleza, a constituição de uma
forma bela, como uma obra de arte.

A grande questão colocada por Nietzsche é se a afirmação de Deus não


comporta uma desvalorização global da existência humana. Critica globalmente
o ideal ascético, o fato de sacrificar a existência histórica em função de um além
hipotético. Para Estrada (2007, p. 224-225):

[Nietzsche] rejeita o dualismo antropológico da alma e [do] corpo,


que enaltece a primeira à custa do segundo; o cósmico, que
separa o mundo do divino do mundo do humano. [...] Há um
único mundo, sem dualismos, no qual se integram o cosmo e
o homem, a natureza e a história, o ser e o devir. A pluralidade
e a heterogeneidade de perspectivas impedem os dualismos,
assim como a procura por uma realidade última divina que os
fundamente.

Por fim, é importante ter claro que Nietzsche não se dispõe a reconhecer que
a religião tem sido uma poderosa ferramenta para o autodesenvolvimento e
amplia o alcance da consciência. Ele não está muito interessado em explorar as
diferentes espiritualidades e diferentes formas de ser um indivíduo e construir o
próprio mundo.

Nietzsche fala apenas de forjar, a partir das várias energias conflitantes dentro de
nós, um tipo de ser humano unificado, livre, ativo e plenamente afirmativo, o Além
do Homem. Segundo Cupitt (1999, p. 86):

Isso é uma limitação, porque dentro das antigas religiões,


que estão agora rapidamente desaparecendo, existem (ou
existiram) experiências valiosas e interessantes no que se refere
à individualidade e modos de consciência, algumas das quais
deveríamos manter.

Essa observação de Cupitt procede, pois, historicamente e até hoje, existem


muitas iniciativas em defesa da vida, da dignidade humana e da natureza,
inspiradas em experiências e tradições religiosas. A Páscoa dos hebreus, por

48
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

exemplo, é a celebração de sua libertação da escravidão no Egito. A religião é,


também, um importante fator de identidade dos indivíduos e sua coletividade.

Sigmund Freud e o neurótico religioso

São inúmeros os caminhos e personagens que podem nos ajudar a pensar sobre
a experiência do sagrado e da religião. Visitamos, agora, rapidamente, mais um
desses caminhos trilhados pelo pai da psicanálise. Em Sigmund Freud (1856-
1939), manifesta-se uma crítica religiosa ateia.

Figura 2.4 – Foto de Sigmund Freud

Fonte: BBC.CO.UK (1989).

Para Freud, o homem é um ser insatisfeito, que deseja sempre maior felicidade.
Mas entre seu desejo e a realidade há enorme distância. O infinito, contudo, não
passa de um produto do desejo e da fantasia do espírito humano, pois é apenas
uma ideia, ou seja, uma ilusão.

Para Freud, a questão não é se Deus existe, pois de antemão não existe e sequer
foi problema existencial explícito para ele. Freud quer defender o homem por
meio da tentativa de descobrir a gênese psicológica da religião e da ideia de
Deus. Segundo Zilles (1991, p. 139):

49
Capítulo 2

Para defender-se contra a força ameaçadora da natureza, o


homem a humaniza, transformando-a em elementos pessoais.
Essa tarefa, segundo Freud, é continuação, sob outra forma, da
condição infantil, ou seja, da atitude da criança diante do pai. De
um lado, a criança teme o pai; de outro, sabe que pode contar
com ele para sua defesa contra os inimigos. Transportando
esta projeção para a natureza, o homem olha-a como a um pai
todo-poderoso, que chama Deus ou deuses. Por isso a religião
é a perpetuação do infantilismo na vida humana. O homem
desamparado busca um pai benévolo.

Freud diz que na primeira infância ocorrem repressões que debilitam o ser
humano e é quando a criança deve exercer as primeiras renúncias dos instintos
e impulsos. A neurose é a fuga do adulto ao mundo infantil. Aí, retornam os
conflitos que não foram resolvidos na infância. Freud vê a religião como regressão
do adulto ao mundo ideal da criança. Assim, a origem da religião é questão
meramente psicológica.

Seguidor do pensamento evolucionista de Charles Darwin, Freud desenvolve a


ideia de que o ser humano passa por etapas ou estágios (como também vimos
em Augusto Comte), iniciando na magia, passando pela religião e culminado com
a ciência. Quanto mais o homem progredir no conhecimento científico, aceitará,
de um lado, seus limites e, de outro, aos poucos abandonará a religião.

Segundo Freud, a neurose é o lugar para onde costumam se retirar aqueles que
estão iludidos da vida ou que se sentem fracos para enfrentá-la. Na religião, o
homem foge da dura realidade, escondendo-se num mundo ideal da infância. Por
isso, a religião é ilusão.

Observando o posicionamento de Freud, muitas contestações já foram


apresentadas. O problema fundamental da crítica do pai da psicanálise à
religião não é a sua explicação psicológica da fé. Existem, certamente, fatores
psicológicos que influenciam em posturas e crenças de toda ordem.

A questão é que Freud não distinguiu a essência religiosa de sua prática histórica
e patológica. Simplesmente identificou a prática religiosa e conteúdos da fé com
neurose e, sem mais, faz isso a partir de algumas conclusões analógicas. (ZILLES,
1991, p. 157).

No entanto, vale aqui apresentar algumas considerações recentes de Julia


Kristeva, filósofa, semióloga e psicanalista, ateia e humanista laica, apresentadas
na entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, em 26 de março de 2011, sobre
sua fala no programa acadêmico Átrio dos Gentios na Sorbonne, em Paris. O
tema “Fé e humanismo laico dialogam graças a Freud”, foi extraído de sua obra
A Necessidade de Crer: Pré-política, pré-religiosa em que aprofunda a fé no
sagrado como instinto do humano.

50
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

No Átrio dos Gentios, um espaço de diálogo e de confronto entre mundo religioso


e intelectuais não crentes, à busca de valores comuns e da complementaridade,
Júlia, búlgara de origem, francesa de nacionalidade, europeia de cidadania e
norte-americana de adoção, percorreu grandes momentos do humanismo e fez
alguns esclarecimentos com contrapontos importantes para nosso estudo do
sagrado e o que já descrevemos sobre o pai da psicanálise nesta seção.

“A obra de Freud – explica Kristeva – é a conexão entre as duas fronteiras da


experiência humana: o desencadeamento das paixões, de um lado, e a moral,
do outro. Só a teoria freudiana permite coordenar esses dois aspectos”. Ela
pergunta em seguida qual o tamanho da importância do Renascimento, depois
do Iluminismo até chegar “àquele judeu ateu que foi Sigmund Freud quando
proclamam a liberdade dos homens e das mulheres de se rebelarem contra os
dogmas e as opressões, a liberdade de emancipar os espíritos e os corpos, de
colocar em discussão toda certeza, mandamento ou valor – eles abrem, talvez, a
porta para um niilismo apocalíptico?”.

2.5: Foto de Júlia Kristeva

Fonte: ATRIODOSGENTIOS (2011).


 

Mostra que agarrando-se na facilidade do obscurantismo, “a secularização


esqueceu de se interrogar sobre a necessidade de crer que está subentendido
ao desejo de saber, assim como sobre os limites a serem postos ao desejo
de morte – para viver juntos. No entanto, não é o humanismo, são os desvios
sectários, tecnicistas e negacionistas da secularização que se precipitam na
“banalidade do mal” e que hoje favorecem a automatização em curso da espécie
humana.”

51
Capítulo 2

Chama a atenção para não temer a cultura europeia, mas, ao contrário, a ousar
o humanismo: “construindo cumplicidade entre humanismo cristão e aquele que,
tendo surgido do Renascimento e do Iluminismo, ambiciona a arriscar as vias
perigosas da liberdade.”

E conclui com palavras de discernimento e de contraponto quase pedindo-nos


que também aqui como anteriormente com os outros filósofos da suspeita, Marx
e Nietzsche não nos acomodemos com a redução ao estereótipo também de
Freud em relação ao conceito de sagrado.

São palavras de Julia Kristeva:

Não vejo como se pode enfrentar a questão da religião sem


levar em conta aquilo que Sigmund Freud nos ensina sobre o
ser humano, isto é, que o homo sapiens é homo religiosus: a
necessidade de saber se traduz em uma necessidade de crer, o
saber pode desconstruir o crer, mas não pode existir sem o crer.
Acostumamo-nos a atacar a obra de Freud porque ele disse que
as religiões são uma ilusão, e isso aborrece muito os homens de fé.

É verdade, os fenômenos religiosos, às vezes, levam à neurose, se não ao


obscurantismo e ao integralismo, mas Freud não se limita a isso. Mostra também
como a psicanálise é a única das ciências humanas capazes de aproximar
o fenômeno religioso de maneira delicada, reconhecendo seu enraizamento
profundo no homem. Penso que o diálogo que começamos nestes dias
em Paris pode ocorrer a partir desse tipo de abordagem. Com delicadeza.
(KRISTEVA, 2014).

Assim ela reafirma que só Freud consegue colocar em relação a loucura humana
e a necessidade de valores.

E Kristeva lembra o maior continuador de Freud na pesquisa sobre o sagrado e


a psicologia do profundo no humano que foi Karl Jung quando afirmava que “o
crer não pode ser anulado, só pode ser sublimado. O percurso psicanalítico é, no
fundo, um modo de sublimar essa necessidade de crer”.

52
Capítulo 3

Era contemporânea: o sagrado,


a alteridade e a saúde do ser

Habilidades Aqui você talvez precise de fôlego redobrado para


explicar onde e de que forma na era contemporânea
o sagrado persiste inspirando na produção de
sentidos frente a determinismos, dramas, caos
e luto bem como na forma de dar vazão ao
encantamento, à solidariedade e ao amor que nos
faz dançar a vida. Espera-se também que saiba
como construir em seu perfil de cientista educador/a
uma consciência da rica diversidade de escolas que
superaram a postura racionalista pela valorização
do sagrado na alteridade mutilada na qual o Outro
humano desfigurado convoca todos/as à coerência
de nova relação de autenticidade.

Seções de estudo Seção 1:  Religar-se ao Ser: o sagrado como saúde


fontal na construção de sentidos

Seção 2:  O sagrado nos debates do século XXI:


ontoteólogos, ateístas e a saúde do ser

Seção 3:  O sagrado nas sabedorias extraeuropeias:


as tradições e a saúde do ser da alteridade-vítima

53
Capítulo 3

Seção 1
Religar-se ao Ser: o sagrado como saúde fontal
na construção de sentidos
As águas parecem turvas e exigem de você fôlego redobrado neste mergulho
filosófico sobre o olhar do fenômeno humano do sagrado na era contemporânea.

A primeira constatação é do contexto de complexidade, permanente companheira


dos fenômenos humanos, junto do ingrediente da ambivalência de caos e de
esperanças. Isso tem-se constatado nos fatos ao longo dos milênios, visto que
há uma espécie de caos fértil e apodítico para um saldo animador entre nós,
humanos, como seres teimosos em superar determinismos em vista de um dever
humano que busca mundialidades possíveis mesmo nas piores catástrofes.

Peregrinos por sentidos, teimamos por vivências e convivências mais autênticas,


inclusive nos espaços religiosos ou mitológicos, como observamos quando pelo
exercício do questionar na Era do Eixo quando os humanos geraram mudanças
nas grandes religiões conhecidas hoje. Isso também vale para a própria gênese
da filosofia formal grega. Em todas essas experiências, emerge o humano que
opta pela superação de situações caóticas, de períodos de estagnação e de
ausência de sentidos tecendo saídas nesses emaranhados complexos, movido
por seu constitutivo ontológico utópico.

À primeira vista, porém, não é o que se percebe em nossa contemporaneidade


após o questionamento sobre o sagrado por escolas filosóficas nos últimos
300 anos. Os resultados dessa fase são o movimento da morte de Deus, dos
racionalismos, perda das seguranças dadas pela metafísica e pelas instituições
religiosas de vertente judaico-cristãs, especialmente do ocidente.

Esse contexto de desconstrução se acentua no Iluminismo posterior ou


Modernidade tardia, sobretudo com os filósofos da suspeita Marx, Freud e
Nietzsche. Os reflexos na atualidade são descritos dessa maneira por Luc Ferry
(2007, p. 234), filósofo francês humanista secular não crente:

Hoje nos encontramos bem no meio de uma encruzilhada, que


poderíamos resumir assim: continuar por um caminho aberto
pelos pais fundadores da desconstrução ou retomar ao caminho
da procura [...] Nietzsche não é o único desconstrutor, o único
demolidor de ídolos. Houve também Marx e Freud. Desde o início
do século XX, os três tiveram, se ouso dizer, alguns milhares
de filhos. Sem contar que a esses filósofos da suspeita, veio
se juntar, para se ter uma ideia, a vasta corrente das ciências
humanas, as quais, no que diz respeito ao essencial, deram
continuidade à obra de desconstrução dos grandes materialistas.

54
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Podemos perguntar: sobrou algum sinal de valor em relação ao fenômeno


do sagrado da parte dos cientistas, dos filósofos e outros produtores de
sentido?

Um fato é que o ser humano, ele mesmo passa a se ver como um ser sagrado.
Esse fato gera nova sensibilidade e dor diante das grandes carências de fome
física, fome de estética, quer dizer, fé, arte e beleza para fruir a vida.

As análises filosóficas constatam ainda a incidência da fome de ética nas


estatísticas de morte por vazio interior, isto é, pela falta de sentido perspectivo
para viver. Há uma fome ontoteológica de verdade e de razões de amor que nos
possibilitem chegar a certezas substantivas para um viver qualitativo. (DUSSEL et
al., 2000).

Mostra disso vem da escola afro-francófona de Camarões sobre a necessidade


africana de retomada de sentidos para um viver feliz, em crise desde os longos
períodos de colonialismo europeu. É uma retomada do dinamismo vital próprio da
estética celebrada no dançar africano tradicional. Coube ao etnofilósofo Fabien
Eboussi Boulaga (apud Dussel, 2000, p. 73) parafrasear a lógica iluminista da
emancipação racional humana apontada por Descartes em seu Cogito, ergo sum!
(Penso, então existo!) e da emancipação das razões do coração de Pascal, Sentio,
ergo, sum! (Sinto, então existo!).

O filósofo Boulaga reconhece o direito ao pensar e ao sentir como forças


emancipadoras da modernidade, mas dá primazia à sabedoria africana da milenar
arte dançarina de construir sentidos. É uma arte relativa à estética não só do
pensar e sentir, mas da estética espiritual do dançar para viver. E descreve em
francês: Je dance, donc, je vis! (Danço, então, vivo!).

Assim, Boulaga (1977; 1997) esclarece em sua obra La crise du Muntu,


Authenticité africaine et philosophie (A crise de Muntu, autenticidade africana
e filosofia) sobre a identificação do ethos do humano africano, que há nesse
ser uma carência ontológica de religar o humano com o seu modo-de-estar-no-
mundo enquanto o ser precisa também de razões estéticas, espirituais, que o
animem a viver dançando e dançar vivendo.

Animados pela escola filosófica africana dialoguemos com a diversidade de


opiniões filosóficas, possibilitando a você elaborar também a sua, pois, em
situação de crise generalizada, todo esforço filosófico só traz benefícios.

Experiência do Sagrado e os cientistas do sentido:

humildade e diálogo

55
Capítulo 3

Outro olhar diverso é do antropólogo e filósofo romeno Mircea Eliade. Em nosso


primeiro livro, o pensador do sagrado dava por descontada aos estudiosos de
filosofia a inclusão do tema da Experiência do Sagrado como uma obrigação
central de seu fazer científico. De fato, o estudante de filosofia é alguém que a priori
opta pela arte de pensar a condição humana e de lhe ser construtor de sentidos.

Aliás, segundo vimos em Martin Heidegger, em seu clássico Ser e Tempo, essa
construção de sentidos nos é exigida pelo nosso modo-de-estar-no-mundo como
Dasein. Estar como Dasein significa que somos seres-que-estão-aí-e-sabem-que-
estão-aí. E é pelo desenvolvimento desse modo-de-estar-consciente no mundo
que nós podemos transformar nossa vivência em experiência como têm feito os
africanos.

Vale a propósito recordar o significado filológico de experiência: ex é fora de;


periri é supino do verbo que significa estando em perigo e ens que é o ente, o
ser. Experiente, portanto, é o humano enquanto age como sujeito que, estando
no perigo, ou seja, no próprio ato do existir, se dá uma distância crítico-reflexiva,
tornando-se aprendiz de seu próprio viver. É experiente por ser conscientizado de
que pode fazer história a partir da reflexão, do filosofar sobre seu próprio vivido.

Luc Ferry (apud CARELLI, 2008), na entrevista sobre a expectativa que se tem quanto
à filosofia e ao exercício do filosofar sobre a produção de sentido, foi incisivo:

As principais correntes filosóficas são, na verdade, grandes


doutrinas de salvação, assim como as religiões. A diferença entre
religião e filosofia é que a primeira tenta encontrar a paz interior
e a felicidade através da fé, enquanto a outra busca o mesmo
pela razão, sem a intervenção de um deus. Mais do que nunca,
vivemos

num mundo no qual a religião não é suficiente para dar ao homem as respostas
que ele procura.

Em sua obra mais recente, Do amor - uma filosofia para o século XXI, Ferry (2013),
refaz essa ponderação quando assume a descrição do crente Denis Moreau sobre
o patente fracasso das filosofias da morte, com suas “falsas respostas”:

Nada prova mais o quanto a morte é temível do que a dificuldade


que os filósofos tem para convencer que se deve desprezá-la [...]
Ouço falar do desprezo da morte que os pagãos se vangloriam
de conseguir com suas próprias forças [...] Contudo, duvido que
alguém de bom senso tenha alguma vez acreditado. A dificuldade
que temos para persuadir os outros e a nós mesmos deixa
transparecer que não é uma tarefa fácil. (FERRY, 2013, p. 237)

56
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

E completa com o contraponto de Jacques Derrida, já com o câncer terminal,


diante do dito pelos filósofos desde a antiguidade a respeito do morrer:

Aprender a viver deveria significar aprender a morrer, a levar em


conta, para aceitar, a mortalidade absoluta (sem salvação, sem
ressurreição nem redenção, nem para si nem para os outros).
Desde Platão, é a velha injunção filosófica: filosofar é aprender a
morrer. Acredito nessa verdade, mas submeto-me a ela cada vez
menos. Não aprendi a aceitar a morte [...] Continuo ineducável
quanto à sabedoria do saber morrer. Não aprendi nem incorporei
nada a respeito. (DERRIDA apud FERRY, 2013, p. 236).

Assim as reflexões de Eliade, Heidegger, Ferry, Moreau e Derrida, de escolas


diferentes, convergem quanto ao direito, dever e responsabilidades do filosofar
a serviço da busca dos sentidos. Daí vale perguntar: os cientistas que trabalham
as razões da fé, as razões da razão e as razões ético/estéticas podem voltar
a dialogar, interagir e ser complementares? Estão os cientistas da atualidade
dispostos ao debate como o fizeram os sábios – filósofos, estudiosos da religião,
teólogos estudiosos das revelações e cientistas ao longo dos milênios?

E, sobretudo, no atual contexto tecnológico onde a virtualidade facilita a


universalização de informações e de interação comunicativa respondendo sobre
a relação do cientista e o sagrado, entre ciência e fé, o filósofo da religião Urbano
Zilles (2004, p. 170) observa que muitos admitem a diversidade de caminhos
para conhecer a verdade e saciar aquela fome própria de sentido do Dasein para
si, para o outro, o mundo e Deus, o imponderável, o desconhecido, o absoluto
terrestre, ou quaisquer outros nomes com que se designe essa força vital.

A ciência, como se entende hoje, na verdade, refere-se a uma parte da realidade,


pois são várias as ciências. No caso das ciências da fé, como as várias teologias,
suas razões se fundamentam nos testemunhos dos que viram na experiência
do sagrado o que interessa saber para viver melhor e, por essa experiência,
procuraram satisfazer as aspirações mais profundas do espírito humano, em suas
várias culturas, como assinala Santos (2013).

A busca das razões da fé para viver, no caso de outro exemplo como o da fé


cristã, foi o caminho que fundamentou a vida de muitos produtores de sentido
e de outros cientistas. Assim, tentaram viver figuras como Galileu, Descartes,
Kepler e Newton que, sendo grandes cientistas, foram também homens de fé
profunda.

Einstein e Pierre Theillard de Chardin:

O sagrado e os dois cientistas contemporâneos

57
Capítulo 3

Zilles (2004) mostra que o desenvolvimento integral do cientista como pessoa


exige a abertura ao sentido total da existência. Para alguns cientistas, as
verdades do cristianismo foram o terreno fértil para o nascimento da ciência no
Ocidente e as orientaram para a transcendência.

A rigor, dispomos de dois caminhos para conhecer as coisas: a análise e a síntese.


Isso significa que posso iniciar o processo cognitivo a partir do conjunto e, então,
estudá-lo em suas partes, ou posso observar as partes para chegar ao todo,
ou seja, à síntese. Os tempos modernos se caracterizaram pela análise, pela
fragmentação do saber e da vida humana.

Nesse contexto, Zilles (2004, p. 170) sugeria na virada do milênio a insistência


de retomada do caminho teleológico comum, ou seja, de perspectiva ética, um
caminho crítico-utópico, inclusivo do rigor do crivo racional e aberto à utopia,
à esperança factível já que nosso momento histórico é tanto de desconfiança
da racionalidade pura, da objetividade científica quanto de quaisquer
fundamentalismos científico-religiosos.

Cientistas de todos os campos do saber estão sendo levados por este contexto
à busca de respostas para as grandes indagações existenciais no campo da
religião. E reconhecem que só numa visão de síntese as partes adquirem seu
devido valor e todo o seu sentido.

Porque, em síntese, conclui Zilles, ciência e fé são duas formas de conhecimento,


que não necessariamente se excluem e não se substituem uma à outra. É
possível diálogo e cooperação entre ambas. Crer ou não crer, em princípio, não é
condição para ser um bom cientista, assim como o conhecimento científico não
atrapalha o crente.

É indispensável, no entanto, a todos a opção por uma atitude humilde da justa


medida ao oferecerem as respostas conclusivas das pesquisas em seu campo de
saberes: “Entretanto, teólogos e cientistas precisam aprender a ser mais humildes
em suas afirmações, cada qual sem extrapolar o âmbito de sua competência. E
isso contribuirá tanto para a fé como para a ciência” (ZILLES, 2004, p. 171).

Essa atitude humilde demanda uma constante ascese, um exercício de


engajamento como quando queremos desenvolver uma arte. Essa ascese foi
a opção de vários cientistas na efervescência científica da década de 1920.
Lembremos o pensador religioso Pierre Teilhard de Chardin.

58
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Figura 3.1 – Foto de Pierre Teilhard de Chardin.

Fonte: ERGONIA (2014)

Chardin viveu num tempo em que muitos técnicos e cientistas se afastaram


da Igreja Católica (especialmente na França, sua terra natal), porque nela não
encontravam sentido para a sua vida. A divisão entre os cientistas e os homens
de fé foi provocada pela desconfiança da própria catolicidade, fechada em seu
diálogo com a modernidade.

A postura dialogal de Chardin entre as razões da fé e as razões da razão científica o


fez pagar o preço do exílio na China imposto pela Igreja Católica. O jesuíta escreve
do exílio confirmando sua postura de valorização da ciência e dos cientistas em
relação ao sagrado. É de lá que Chardin reza para o seu Deus (1957, p. 202):

Olha a multidão imensa daqueles que constroem e daqueles


que procuram. Nos laboratórios, nos estúdios, nos desertos, nas
usinas, no enorme cadinho social, tu vês todos estes homens
que trabalham? Pois bem: Tudo o que neles fermenta de ciência
e de arte, de pensamento, tudo isto é para Ti.

Na sua obra O Fenômeno Humano, num período caótico para a Europa, Teillard
de Chardin (1955, p. 238) assume a linguagem poética, ainda no exílio, para
descrever um novo tempo que está por nascer: “Terra fumegante de usinas, terra
trepidante de negócios. Terra vibrante de cem novas irradiações. Este grande
organismo vive em definitivo para e por uma alma nova.” O cientista e filósofo,
pensador religioso grita no caos pelo novo (CHARDIN, 1962, p. 54):

Em que momento, na noosfera, existiu uma necessidade mais


urgente de encontrar uma fé, uma esperança, a fim de dar um
sentido, uma alma ao imenso organismo que nós construímos?
Em que época a crise foi mais violenta entre o gosto e o
desgosto da vida? Nós oscilamos hoje entre duas paixões: a de
servir ao mundo, ou de lhe fazer greve.

59
Capítulo 3

Ao jesuíta cientista construtor de sentidos e aos vários grupos de cientistas


também exilados desde os anos de 1920 parece indispensável uma ética
teleológica em seu serviço tanto no campo da fé como também da ciência.
Na comunidade científica Albert Einstein (1879-1955), fundador da Física
Contemporânea, da Teoria da Relatividade e Prêmio Nobel de Física em
1921, abandonou-se a fé judaica e a crença em Deus quando se estudou
profundamente a força presente na matéria.

No entanto, quando suas descobertas sobre o átomo foram usadas pelos norte-
americanos para construir a bomba atômica, a decepção de Einstein com a
fragilidade e a incapacidade do ser humano de usar os conhecimentos científicos
para o progresso do mundo foi tão grande que ele voltou a acreditar em Deus.

Einstein morreu convicto de que existe, para as questões da existência humana,


uma resposta maior e que vai muito além da ciência. Estas duas afirmações
provam sua convicção: “Quanto mais acredito na ciência, mais acredito em
Deus” e “O universo é inexplicável sem Deus!” (HEERDT-BESEN-COPPI, 2008,
p. 10). E conclui: “Todo aquele que está seriamente comprometido com o cultivo
da ciência chega a convencer-se de que, em todas as leis do universo, está
manifesto um espírito infinitamente superior ao homem e diante do qual nós, com
nossos poderes, devemos nos sentir humildes.”

Outros grandes cientistas também testemunham percursos difíceis até chegarem


ao espanto/admiração diante do fenômeno do sagrado e exercitaram a postura
de humildade como o caso dos fundadores da Física Quântica Heisenberg e
Planck. Max Planck (1858- 1947), que ganhou o Prêmio Nobel de 1918, une
ciência e fé dizendo que “nada nos impede essa relação: antes, o impulso do
nosso conhecimento o exige... relacionar mutuamente a ordem do universo e
o Deus da religião. Deus está para o crente no início dos seus discursos; para o
físico, no término deles.” (apud ALETHEIA, 2014)

Erwin Schrödinger (1887-1961), criador da mecânica ondulatória foi premiado


pelo Nobel de 1933. Cientista jovem, no outono de 1925, portanto, coetâneo
de Chardin, Heisenberg e Einstein, escreve sobre suas posições filosóficas em
Minha Visão de Mundo, cuja publicação ocorre só em 1960, um ano antes de sua
morte. Schrödinger pesquisa sobre os estudos religiosos orientais do filósofo do
humanismo Arthur Schopenhauer (1788-1870) que aos tempos de Marx e Freud
permitiu à metafísica alemã dialogar com o budismo e o pensamento indiano.

O jovem do Prêmio Nobel se inspira na antiga solução religiosa hinduísta para


o problema da unidade da consciência frente à multiplicidade de indivíduos e
de experiências. No capítulo O ponto de vista básico do Vedanta, Schrödinger
explica que as coisas e as experiências não têm existência independente, mas
são unidas como efeitos de Brahman, são o próprio Brahman. “Isto é o que

60
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Brahman exprime através da fórmula sagrada e mística, mas na realidade tão


simples Tat Twan Asi, ou seja, ‘Vós sois’, ou ainda com palavras como ‘Eu
estou no Leste e no Oeste, eu estou embaixo e eu estou em cima, eu sou todo
este mundo’”. (apud TOLEDO PIZA-GLEISER, p. 70, 2003). Em sua provável
experiência de espanto/admiração testemunha também que “a obra-prima mais
fina é a feita por Deus, segundo os princípios da mecânica quântica.” (apud
ALETHEIA, 2014).

Essas posturas de diálogo humilde entre os ditos do espaço das razões da razão
com os do espaço das razões da fé são posturas difíceis, mas prosseguem na
atualidade como aprofundaremos mais à frente.

Por ora, escolhemos o exemplo recente de Francis Sellers Collins, geneticista


estadunidense, um dos cientistas mais respeitados da atualidade, diretor do Projeto
Genoma. Collins vem na mesma linha de pensamento de Einstein, de que religião
e ciência podem andar juntas. No livro A Linguagem de Deus, Collins mostra
evidências de que a religião e a ciência devem se unir para benefício da humanidade.

Meu argumento é que tais perspectivas podem coexistir em


qualquer indivíduo, e de modo que enriqueça e ilumine a
experiência humana. A ciência é a única forma confiável para
entender o mundo da natureza e as ferramentas científicas,
quando utilizadas de maneira adequada, podem gerar profundos
discernimentos na existência material. A ciência, entretanto, é
incapaz de responder a questões como: “Por que o universo
existe?”; “Qual o sentido da existência humana?”; “O que
acontece após a morte?”. Uma das necessidades mais fortes
da humanidade é encontrar respostas para as questões
mais profundas, e temos de apanhar todo o poder de ambas
as perspectivas, a científica e a religiosa, para buscar a
compreensão tanto daquilo que vemos como do que não vemos.
(COLLINS, 2007, pp. 14-15)

Collins não encontra respostas na ciência para tais questões mais profundas
e reflexivas sobre a vida, concordando com as limitações da “filosofia sobre o
morrer” ponderadas acima pelos filósofos. No discorrer da obra, Collins (2007)
cita vários fatos e acontecimentos de sua trajetória até se tornar cristão, e ele que
se posicionava como cientista ateu se sentiu em desconforto, quando uma idosa
enferma durante uma conversa perguntou em que Collins acreditava. Ali começou
um processo conflitante de indagações, de questionamentos sobre o sentido de viver.

Collins procurava respostas. Lia narrativas bíblicas e não bíblicas como os fatos
da história da Palestina durante o século I e se fascinava com as evidências
históricas da existência de Jesus Cristo (COLLINS, 2007, p. 227). Mas foi a cruz
que, segundo o autor, faz Jesus se tornar a presença que preenche o seu vazio

61
Capítulo 3

de sentidos existenciais. Collins reconhece as incoerências no viver e conviver dos


cristãos, mas diz que “Cristo jamais foi assim, não agia com tais modos. Jesus era
diferente.” (COLLINS, 2007, p. 229). O autor acredita que suas indagações sejam
de todos os indivíduos, aqui na terra, que buscam o sentido do viver.

Seção 2
O sagrado nos debates do século XXI:
ontoteólogos, ateístas e a saúde do ser
Além desse diálogo entre cientistas e espiritualidades, precisamos aprofundar o tema
da Experiência do Sagrado entre os filósofos contemporâneos sob o foco do viés
ontológico da saúde do ser tanto no século XX e, sobretudo, na virada do milênio.

Sobre o sagrado e a saúde do ser

Já reiteramos com Campbell, Eliade e Otto que este espaço de relação com o
sagrado tem sido privilegiado na história humana como gerador de sentidos.
Joseph Campell (2004, p. 491) diz ser privilégio porque no espaço do sagrado
os símbolos não podem ser inventados, apenas encontrados. Eles atuam por si
mesmos nas pessoas que os acolhem como sabedoria e se tornam vigorosos
para a saúde integral do ser:

As mentes que os encontram são as mentes vivas, sensíveis,


criativas, que um dia foram conhecidas como visionárias, e hoje
como poetas e artistas criativos. São mais importantes, mais
eficazes para o futuro de uma cultura do que seus estadistas e seus
exércitos; são esses mestres da expressão espiritual, pela qual o
barro do homem desperta para a vida. (CAMPELL, 2004, p. 491)

Eliade (1995, p. 19), por sua vez, dá uma carga ontológica qualitativa a esta
experiência de totalidade, de relação com o Uno, porque o sagrado é poder
extensivo a toda a realidade: “O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada,
quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. [...] É, portanto, fácil
de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da
realidade, saturar-se de poder.”

Para esses nossos conhecidos cientistas do fenômeno do sagrado, esse campo


exige um cuidado de responsabilidade do mundo científico e, especialmente,
da ciência filosófica, já que se mostra uma experiência impregnada de ser. O
descuido ou omissão de pensar este fenômeno pode significar comprometer a
saúde do ser.

62
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Filosofia e Deus como Ser:

Ontoteologia?

Vale, por isso, retomar o momento qualitativo de lucidez filosófica sobre o ser
do humano no apogeu da Idade Média. No diálogo com a visão de Aristóteles,
Tomás de Aquino qualifica de modo paradigmático a visão do Estagirita quando
mostra que o Ser é mais que a essência. Por isso Reale-Antiseri (1990, p. 557)
lembra da metafísica de Tomás como metafísica do ser ou do actus essendi. Com
efeito, o ser é o ato que realiza a essência, que em si mesma não passa de um
“poder ser”. A metafísica, portanto, ocupa-se de uma filosofia do ser que permite
às essências realizarem-se e transformarem-se em entes.

Essa perspectiva inteiramente nova em relação à ontologia grega traz


consequências para a filosofia da religião. Agora, na visão ontológica, as
perguntas da metafísica mudam das essências para o ser: o que é o ser e por que
ele existe em vez do nada?

A metafísica do ser em Tomás, portanto, nos oferece um fundamento


mais profundo que o das essências, um alicerce que funda a realidade e a
possibilidade mesma das essências. Por isso, quando o discurso das essências
entrou em crise, com Galileu, o discurso de Tomás, na opinião de muitos
intérpretes, conservou seu vigor teorético, porque, mais do que nas essências,
ele está interessado no ser.

Na filosofia contemporânea, Martin Heidegger vai mais longe e chega a


reconhecer na metafísica uma ontoteologia. Isso é fruto de longo diálogo e
discussões com escolas de teologia na Europa no início dos anos 1920 até a
produção de seu clássico Ser e tempo conforme Boff (2012), recente trabalho
sobre a ética do Cuidado Necessário.

Esse esforço dialogal interdisciplinar de filósofos, teólogos, filólogos et alii


sobre o fundamento do Ser permitiu deduzir que, em pensando Deus como
Ser na ontoteologia, o sagrado passa a ter íntima relação com a saúde do Ser
do humano e de outras manifestações do ser. Como resultado, se desenvolve
ainda hoje, um campo fértil para os serviços de filosofia do Ser diagnosticando
e clinicando em favor dessa saúde integral do Ser tanto no indivíduo como no
coletivo humano e extensivo à natureza ecossistêmica.

No entanto, é preciso estar atentos para as aplicações dessa ontoteologia. Elas


demandam algumas exigências. Primeiro, para Urbano Zilles (2004), é preciso
ter claro que, embora a fé não exija uma demonstração filosófica da existência
de Deus, ela exige reflexão e busca permanentes já que se situa como atitude
humana, assumida, livre e responsável.

63
Capítulo 3

Segunda exigência é superar a oposição formulada por Pascal ou a ele atribuída


entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó. Na verdade, se o
homem fala de Deus é porque Deus o habilitou a tanto. Deus, no sagrado, lhe fala
de si mesmo através do espírito e da criação. Zilles retoma Heidegger quando diz
que não se pode alcançar Deus como ente depois de ter esquecido o Ser.

Heidegger, com o foco no ser, faz emergir outro aspecto importante que é o
relacional. Essa percepção da diferença ontológica entre ser e ente leva os
filósofos seguidores de Tomás de Aquino a retomar o tema da analogia do ser.
O ser indeterminado não se deixa estabelecer como grandeza unívoca. O ser
indeterminado ou passará ao ser participado ou ao ser subsistente. Assim, o ser,
na sua própria unidade, traz uma diferença e na diferença traz novamente uma
unidade de relação.

Portanto, na visão ontoteológica de Heidegger pode-se dizer que no Ser do humano


como Dasein (ser-humano-consciente-como-nó-de-relações) Deus se manifesta, faz
sua epifania (manifestação). Manifesta-se na sua Unidade de Ser (imanência) e na sua
Diversidade de Ser (transcendência). Lembra a formulação de Nicolau de Cusa que
mostrava que chegaremos a Deus como a coincidência dos opostos, colocando na
Unidade do Ser, a Pluralidade dos Opostos, própria dos entes.

Ontoteologia e a hermenêutica

por uma ética da vida plena para todo o ser existente

O filósofo latino-americano Juan Carlos Scannone (2004, p. 267) pode ajudar


nesse aprofundamento. Ele entra na discussão da ontoteologia embasando-a
na circularidade de comunicação com fundamento no logos (palavra, verbo,
discurso). De fato, o termo logos se encontra nas palavras “teo-logia” e “onto-
logia”, daí, “onto-teologia”. O fundamento no logos leva também ao mesmo
conceito de analogia do ser em Tomás de Aquino.

Scannone (2004, p. 295) mostra que essa circularidade comunicativa inerente ao ser
implica uma nova relação ética inspirada na analogia do Deus vivo como comunicador;
Heidegger permite assim superar a visão do absoluto como fonte de dominação:

Esta interpretação implicou na des-subjetivação e na des-


absolutização do mesmo pensar e denominar Deus, ou seja,
pensar e denominar absolutos conforme Hegel – pela vontade
de dominação. [...] corresponde também ‘um passo à frente’,
que é o de práxis ética, como se dá, por exemplo, em Blondel
ou em Lévinas, em Dussel e nas contribuições que procurei dar
à problemática da analogia. Contudo, esse “passo-prático-para
frente” comporta paixão e com-paixão antes de implicar ação
ético-histórica de justiça na misericórdia. Esta, graças à paixão,
supõe e supera a justiça, e condiciona a linguagem analógica
acerca do Deus vivo.

64
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Scannone (2004) explica ainda que o momento ético-histórico permite


reinterpretar a analogia do ser pela denúncia da dupla morte tanto a dos ídolos
representativos, como também a autoidolatrização da razão – teórica e prática.
Essas mortes acontecem graças à abertura ética ao irredutivelmente Outro. Por
analogia, essa abertura é primeiro ao outro humano quando considerado na
nudez e pobreza de sua humanidade pura. Neste ser – o outro humano – está
ferida a transcendência ética e metafísica de Deus.

Nessa hermenêutica, a analogia tomista, fundamento da ontoteologia, enriquece-


se através de releituras feitas pelas teologias sobre o sagrado em contextos de
ultraje crônico à saúde do ser, como é o caso da conhecida teologia da libertação.
A alteridade é condenada à fragilização histórica de situações-limite devido à
presença de um mal social cujas estruturas, muitas vezes, são justificadas pelos
sistemas religiosos.

Ou sua correspondente filosofia da libertação que, opondo-se ao ceticismo e ao


agnosticismo, assume a tradição dialogal das ciências em vista do compromisso
ético da saúde vital do ser do humano. É um esforço de unir as inteligências da
fé, a racional ou a afetiva de Pascal na fonte do mistério do ser como revelação
da transcendência/imanência, da unidade/diversidade de Deus como o Ser da
ontoteologia.

Racionalismo e o sagrado como Ser:

No horizonte do mistério

Há na contemporaneidade filósofos opositores do racionalismo. Sabe-se que o


conhecimento filosófico do Deus da razão humana continua limitado porque é um
Deus oculto e desconhecido ou, nas palavras de Agostinho, um Deus que melhor
se conhece quanto mais se desconhece.

O racionalismo, pretensão ao domínio da verdade absoluta e dos sentidos, e


suas consequências está na pauta dos críticos atuais. Na recente obra Se Deus
fosse um ativista dos Direitos Humanos, o pensador social Boaventura de Souza
Santos (2013) e sua escola laicista de Coimbra em Portugal creditam a ele a
criação de Deus como supérfluo e da chamada “morte de Deus” como fonte de
anti-humanismo.

Logo que a capacidade dos seres humanos para transformar


a realidade se afigurou como potencialmente infinita, a
modernidade ocidental tornou Deus supérfluo. De uma forma
muito superficial e dramática, Pascal apercebeu-se que sem
Deus esta capacidade era também potencialmente destrutiva.
[...] Privar os seres humanos do pensamento de Deus é o
equivalente a privá-los do cuidado pelos outros seres humanos.
Esta formulação sumamente piedosa da presença de Deus foi

65
Capítulo 3

plenamente (e perversamente) confirmada séculos mais tarde


pela mais ímpia formulação de Nietzsche: a declaração da “morte
de Deus” Got is tot (1882). (SANTOS, 2013, p. 106)

A Escola laicista de Coimbra aprofunda a consequência deste deicídio:

Nietzsche representa a plena realização do projeto moderno


respeitante a Deus: do supérfluo à completa inexistência. Ao
contrário do projeto moderno, contudo, a morte de Deus em
Nietzsche, em vez de significar o triunfo final dos seres humanos,
representa a sua decadência final, o final dos seres humanos
com capacidade para seguir seus imperativos morais ou procurar
a verdade. (SANTOS, 2013, p. 106)

Assim se confirma mais uma vez o racionalismo como postura prejudicial do


humano na relação filosofia e sagrado, ferindo uma tradição filosófica dialogal,
mesmo difícil como do encontro do cristianismo com a filosofia teológica grega,
de Platão por Agostinho e de Aristóteles, por Tomás de Aquino. Fica claro
também que “o discurso filosófico é um discurso sobre Deus, não um diálogo
com Deus, pois ao Deus dos filósofos falta o caráter pessoal, capaz de amar e de
ser amado.”

Aos racionalistas, os filósofos do ser tem feito também o contraponto do mistério,


que acenamos acima, sobretudo em relação ao sagrado manifesto no ser do
humano. Aqui precisamos compreender as dimensões complementares também
entre problema e mistério. O filósofo Gabriel Marcel fez essa distinção antes de sua
conversão ao cristianismo. Ele mostra que o problema é algo definido; o problema
opõe-se ao nosso conhecimento como um obstáculo que pode ser removido.
Dessa forma, todo problema, como objeto da ciência, pode ser resolvido.

O mistério, ao contrário, está dentro e fora de nós. O mistério nos envolve. Pode
ser reconhecido, aceito ou rejeitado. No caso do humano em relação ao sagrado,
Deus aparece como mistério, que a rigor não conhecemos, mas podemos
reconhecer e até aceitar como sentido de nossa vida. Pois bem, diante desse
tema do ser, também aqui, há o risco do racionalismo, porque o Ser pertence ao
âmbito do mistério, do indizível, já que é o fundamento da própria possibilidade
de todo discurso.

Nesse peregrinar humano buscando os sentidos para um viver imerso no mistério,


até mesmo a fé não dispensa o filosofar: “Apesar da presença misteriosa do
mal no mundo, o pouco apoio racional é suficiente para justificar nossa entrega
confiante a Deus, pois só Ele nos poderá salvar. Como somos seres racionais, a
reflexão filosófica, que não substitui a fé, pode ajudar-nos a buscar as razões de
nossa fé.” (ZILLES, 2004, p. 20)

66
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

De sua parte, as razões da fé também podem enriquecer as razões da razão


quando apresenta um Deus que se torna acessível à experiência humana, um
Deus que se comunica com o humano e o torna sagrado. Um Deus que quer vida
em abundância para todos (Jo. 10,10). Sua proximidade condescendente não só
permite falar sobre Ele, mas com Ele na oração. Podemos adorá-lo, prestar-lhe
culto. Em ambas as visões, o sagrado no humano pode ser fonte de saúde: a
saúde do Ser.

A responsabilidade filosófica

diante da experiência humana multimilenar do sagrado

Nesses esforços de diálogo sobre a responsabilidade da reflexão filosófica diante


do humano em sua relação com o sagrado e o compromisso com a produção de
sentidos multiplicam-se debates como em São Paulo ou Paris há vinte anos. Na
atualidade, cresce essa consciência de compromisso de crentes e não crentes
focando a luta pelo direito à qualidade de vida de todos os humanos e de outras
manifestações no universo. É como um sinal comum de autenticidade exigida nas
diversas filosofias, religiões e teologias, áreas científicas e ideologias.

Comecemos pelo compromisso da religião. Já aparece na filologia de religião,


religioso e sagrado segundo vimos no texto pedagógico-ecumênico sobre o
sagrado em nosso ensino escolar laico (HEERDT-BESEN-COPPI, 2008, p. 17):

Re-ligare = religar, re-unir, re-encontrar alguém ou algo essencial


transcendente ou imanente. O ser humano se “amarra” em
Deus e Deus se “amarra” no ser humano. Relegere = reler com
renovada atenção, percorrer de novo um caminho, reunir e reunir-
se. E em Agostinho de Hipona, re-eligere = re-eleger, refazer a
relação de aliança com Deus cortada pelo pecado, pelo egoísmo.

Tenzin Gyatso, o Dalai Lama, monge budista, uma espécie de papa tibetano em
exílio pelo mundo desde os 16 anos, no livro Ética para um novo Milênio, insiste
nesse compromisso com relações vitais: “objetivo da religião como um todo é
tornar mais fácil o exercício do amor, da compaixão, da paciência, da tolerância,
da humildade, da capacidade de perdão e de todas as qualidades espirituais.”
(LAMA, 2000, p. 248). E, ao distinguir a espiritualidade como uma atitude para
além das fronteiras da religião sugere que “espiritualidade é aquilo que produz
dentro de nós uma mudança.” (apud BOFF, 2006, p. 14). E conclui no capítulo
final com um Apelo:

Amor pelos outros e respeito por seus direitos e sua dignidade,


sejam eles quem forem ou o que forem: é só o que afinal
precisamos ter. Se praticarmos isso em nossas vidas diárias, não
importa se somos instruídos ou ignorantes, se acreditamos em

67
Capítulo 3

Buda ou em Deus, se seguimos outra religião ou não seguimos


nenhuma. Desde que tenhamos compaixão pelos outros e
sejamos capazes de nos conter, motivados pela noção de
responsabilidade, não há dúvida de que seremos felizes. (LAMA,
2000, p. 251-252).

Assim, toda opção religiosa do humano diante do sagrado é subjetiva, mas,


também, coletiva, porque há uma experiência social do sagrado como energia
criadora, ambivalente para o meu ser e do Outro. Ao mesmo tempo, enquanto
mistério, ficamos admirados ou surpreendidos por ele.

Portanto, mesmo na religião subjetiva o humano deve se posicionar neste círculo


virtuoso: que a compreensão da experiência religiosa interior somente é possível
interpretando a sua expressão como fenômeno coletivo que demanda uma
resposta à experiência interior. É a coerência com o círculo hermenêutico da
experiência religiosa diante da manifestação misteriosa e surpreendente da vida e
do ser como sagrados.

Boaventura Santos (2013) liga esse círculo hermenêutico com a necessidade


de diálogo entre a filosofia dos direitos humanos e as teologias progressistas.
Credita esse diálogo inadiável para desenvolver práticas verdadeiramente
interculturais, de autoenriquecimento mútuo e de compromisso político com a
dignidade humana.

O resultado será uma ecologia de concepções de dignidade


humana, algumas seculares, outras religiosas, produto daquilo a
que noutro lugar chamei hermenêutica diatópica (SANTOS, 1995,
Pp. 273-78; 2006b, pp. 113-43), um exercício de interpretação
transformadora, orientada para a prática social e política, entre os
topoi dos direitos humanos e os topoi da revelação e libertação
das teologias políticas progressistas. (SANTOS, 2013, p. 107).

Além do caminho da ontoteologia, do diálogo da filosofia com as teologias, da


hermenêutica diatópica podemos observar algumas visões contemporâneas
de escolas filosóficas de inspiração marxista ateia e de humanismo secularista
não crente. Todos demandam uma espécie de compromisso comum diante do
fenômeno do sagrado como serviço da transformação biocrática, ou seja, de
uma postura ética que assume a luta pela qualidade de vida para todos e tudo.

Duas visões sobre o futuro do sagrado no ocidente:

Do filósofo não crente e do ateu

Escolhemos a análise de contrapontos dos filósofos Luc Ferry, humanista secular,


e Marcel Gauchet, historiador cultural e socialmarxista, no debate O que será

68
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

do homem depois que a religião deixar de ditar a lei? em Paris, no Collège de


Philosophie, em 9 de janeiro de1999, só publicado no Brasil em 2008.

Discordantes quanto ao que vai acontecer nesse tempo a que denominam de


Depois da Religião, no entanto, concordam na permanência do religioso, do
sagrado. Gauchet (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 80) dá ao sagrado um caráter
milenar de sustentação do humano:

O religioso é o cerne antropológico que sustentou milenarmente


as civilizações e que está destinado a se perpetuar. Você disse
que em minha perspectiva, de maneira lógica, obrigatória, o
religioso está destinado a desaparecer, mesmo que possa
fatualmente sobreviver por muito tempo. Não. O sagrado é
convocado, entre outros, a continuar a alimentar as experiências
e os discursos religiosos. Encontraremos a religião em pequenas
comunidades humanas, em todas as épocas, em continuidade
com as religiões do passado. Sua presença poderá ser menos
minoritária, mas nem por isso menos significativa. Todavia, esse
cerne antropológico parece-me destinado, sobretudo, a encontrar
outras expressões. O sagrado vai se recompor também fora da
religião. (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 80).

Gauchet descreve ainda caminhos de recomposição desse cerne antropológico


como na experiência estética e imaginária, na experiência do conhecimento e
psicológica de si; mas, sobretudo na experiência ética de relação com o outro,
com o Invisível e do Um. No humano, de sagradas e místicas que eram, se
tornaram profanas.

Gauchet, embora ateu, diz que o mistério se mostra no desconhecido de nós


mesmos e com ele somos confrontados; para essa continuidade insistente de
manifestação do sagrado Gauchet usa em sua obra a expressão “Absoluto
Terrestre” porque “resiste irredutivelmente às diversas reduções que pretendem
relativizá-lo” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 82). E a esse desconhecido pede
dedicação e respeito como “foco estruturante disso que há de único e de
enigmático em nossa maneira de ser, tanto física e interpessoal quanto social e
política” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 82).

Sagrado no humano:

O amor e o ódio; sacrifício e aniquilamento

69
Capítulo 3

Ambos os filósofos apontam o amor ou o ódio como uma das manifestações do


sagrado no modo-de-ser-do-humano:

O amor e o ódio dão testemunho do investimento sobre os outros


que nos constitui, desta existência dos outros que nos permite
sair de nós mesmos. O outro é um ser sem o qual não podemos
viver ou, no outro sentido, ele é o ser cuja existência por si só
nos impede de viver. Os animais não amam nem odeiam, nesse
sentido. Eles são capazes de ligações profundas e de hostilidade
sem perdão – quem pode duvidar disso? Mas não são capazes
dessa onipresença psíquica do outro em si, que convoca o
sacrifício de si ou aniquilamento do outro como condições de sua
própria vida. (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 84).

Esta é a tarefa dos filósofos: “Estamos em condições de decifrar o enigma fora


das categorias da religião; inclusive dando-lhe novos nomes como este do
Absoluto Terrestre.” Mas Luc Ferry (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 65) discorda
do Absoluto Terrestre, ou de outros nomes como o Quase-transcendental de
Habermas. O que lhe interessa no fato de manter o vocabulário religioso é que
acredita estar aí, justamente, a verdade do religioso. Não crente, defensor de
um humanismo secular, Ferry acredita na tarefa do filósofo como construtor de
sentido, mas numa linha de continuidade da busca multimilenar humana de
sabedorias. Diz ele (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 84) em diálogo com Marcel:
“A razão pela qual não desejo abandonar o vocabulário religioso, histórico e
quase mitológico é que, frequentemente, os textos religiosos são, por seu
conteúdo, mais ricos e mais interessantes que os textos filosóficos.” Marcel
pondera: “Isso depende de quais.” Luc complementa: “Os grandes textos, a
Bíblia, os Evangelhos. Francamente, o Evangelho de São João é mais belo que a
Declaração dos Direitos Humanos.”

Luc Ferry, embora descrente, mantém uma lucidez metodológica enquanto


valoriza as produções religiosas do passado e admite que textos éticos da
modernidade não passam de tradução das sabedorias que os povos antigos,
como os cristãos, nos legaram. A questão dos filósofos não reside em quem
é Deus, mas o que é Deus. Como afirma não saber rigorosamente nada, Ferry
prefere falar do divino, isto é, desse sentimento de absoluto com faces múltiplas
que se descobre no contato com valores que não inventamos nem fabricamos.

Eles estão aí, seja na ordem da verdade, da moral, da cultura ou do amor. Ferry
propõe-se, então, a mostrar que o reinvestimento do vocabulário religioso lhe
parece inevitável. E há três razões pontuais para isto:

A primeira é descartar a superficialidade e falsidade do debate sobre a “morte


de Deus”, o retorno do religioso ou a revanche de Deus, já referida também por
Boaventura Santos acima. A segunda razão está ligada à relação entre divino

70
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

e moral laica; ela vai se reinstaurar a partir do futuro, e não mais em função do
passado: “Portanto, como um horizonte, para usar as palavras de Husserl, e não
mais como fundamento, para usar aquelas dos defensores do teológico-ético.
Não creio que haja um fim do religioso, mas uma reinterpretação do religioso
nessa relação com a lei.” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 70).

Na terceira razão insiste em manter os termos como sagrado porque eles


denotam as mediações da experiência moral, da experiência estética, da
experiência de verdade (isso porque a noção de transcendência na imanência é
múltipla).

Sagrado e sacrifício:

os motivos do sacrifício se humanizaram

Nesse espaço do divino no laico, secular, há a possibilidade de (1) ficarmos


ligados entre nós, num mundo de pertença comum; (2) de permanecermos
numa origem comum, de algum modo, misteriosa, não fundada – portanto, numa
transcendência encadeante e infundável; (3) de que este não ente invisível, nos
ordena ultrapassar nossa individualidade ou, se for o caso, por em jogo nossa
própria existência, ou seja, transitar do sagrado ao sacrifício.

Esses diálogos tem mostrado uma busca filosófica que pede coerências novas
mesmo nessa postura onde a divinização do humano não significa que vamos
tomar o lugar dos deuses. Ao contrário, exige que a vida humana seja enquanto
tal sagrada que demanda uma ética de amor que se doa: “não é isso que julgo
sagrado, dado que o sagrado de que falo pode exigir, às vezes, o sacrifício
da vida” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 73). Por isso, Ferry discorda do filósofo
Lipovestky, quando, em seu livro Crepúsculo do Dever, sugere que a noção de
sacrifício desapareceu da problemática moral de nossos contemporâneos. Ferry
explica (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 32-33): “Penso que, ao contrário, ela está
presente, mas que simplesmente os motivos do sacrifício se humanizaram”.

Em outras palavras, que poderão surpreender algumas pessoas, os valores são


hoje em dia tão exteriores e superiores à humanidade quanto numa perspectiva
tradicional:

Eu não invento a verdade, eu a descubro: não fui eu quem


decidiu que 2+2 são 4 e, em relação a essa asserção, minha
margem de liberdade individual é igual a zero! Não invento os
valores morais, como os direitos humanos, por exemplo. Eu os
descubro como algo que se impõe a mim, com sua coerência,
seu rigor e, se posso dizer assim, sua “dureza” próprios. (FERRY-
GAUCHET, 2008,, p. 75)

71
Capítulo 3

Daí essa estrutura do sagrado que parece ser inerente, essa encarnação de um
invisível no visível, que recebemos como algo que tem caráter de divino. Não
produzimos esses valores, eles são transcendentes. Ferry finaliza confessando
que “na verdade tenho, em alguns casos, uma dificuldade enorme em contestá-
los. [...] A autonomia se situa, no máximo, na escolha ou no reconhecimento de
certos valores e não de outros.” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 75).

Abraçando, então, caminhos de diálogo na busca da saúde do Ser, essas escolas


laicas e ateístas reconhecem o sagrado nos valores que se nos impõem segundo
um modelo que, se não for percebido como ilusório, “deve levar-nos a refletir
sobre a dimensão espiritual e não simplesmente moral desse Absoluto Terrestre
de que Marcel Gauchet tanto nos tem falado.” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 75).
Mas há ainda outros aspectos antigos como o da teodiceia na pauta atual de
diálogos acadêmicos sobre o sagrado que vão além das fronteiras europeias e
ocidentais que exigem nosso estudo.

Seção 3
O sagrado nas sabedorias extraeuropeias: as
tradições e a saúde do ser da alteridade-vítima
Como já percebemos, a extensão do interesse pelo debate sobre o fenômeno do
sagrado e sua ligação com a produção de sentidos tem alcançado proporção de
demanda planetária.

Discussão sobre o sagrado:

Amplitude planetária e posturas de atravessamento

Basta-nos embarcar no Trem de Assis em 27 de outubro de 2011 na  Jornada


de Reflexão, Diálogo e Oração pela Paz e a Justiça no Mundo para encontrar
representantes das religiões mundiais: monoteístas ocidentais - judaísmo, islamismo
e cristianismo -, como também do hinduísmo e budismo, o taoismo e confucionismo
do oriente, dos povos originários da Oceania, da África e das Américas.

E outro grupo diferente dos religiosos, de acadêmicos ligados de forma


específica à filosofia, os não crentes, os ateus organizados, honestos buscadores
da verdade. No trem de Assis, esse grupo tem como porta-voz uma mulher, Julia
Kristeva, filósofa búlgaro-francesa, linguista e psicanalista, coordenadora dos
filósofos ateus organizados da Europa.

Mas os esforços de criação de espaço permanente de diálogo sobre o sagrado,


não param aí. Juntam-se aos encontros da década de 1990, lembrados acima,

72
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

o Átrio dos Gentios, coordenado pelo filósofo e teólogo Gianfranco Ravasi já


realizados em Roma, Paris, outras cidades europeias, as cidades do México
e agora Buenos Aires em diálogo com acadêmicos teorizadores da filosofia e
teologia da libertação.

Para uma visão sintética, podemos observar a entrevista a Fabio Gambaro,


do jornal italiano laico La Repubblica, em 21 de junho de 2010 , em que Julia
Kristeva descreve as novas especificidades no diálogo sobre o sagrado:

Hoje, o choque de religiões é uma realidade que não podemos


ignorar. O diálogo, portanto, é necessário. A Europa – talvez
por ter conhecido a violência e o horror ligados às religiões,
das Cruzadas ao Holocausto – empreendeu, antes com o
Iluminismo e depois com as ciências humanas, um percurso de
atravessamento da religião. Não para guilhotiná-la, como fez
a Revolução Francesa, ou para encerrá-la nos Gulags, como
ocorreu na União Soviética, mas sim para tentar “transavaliá-la”,
como diria Nietzsche.

E diz que o seu estudo sobre Tereza D’Ávila, mística católica espanhola do século
XVI, é um exemplo de sua contribuição a esse percurso de atravessamento. Esse
exercício, segundo a filósofa, é mais que o diálogo inter-religioso porque visa a
promover o diálogo entre quem crê e quem não crê, principalmente na Europa.

Julia reconhece sua pertença àqueles que, segundo as palavras


de Tocqueville e Hannah Arendt, “cortaram o fio da tradição”. Afirma que se
considera uma descendente do Iluminismo e da secularização que a colocaram
em sentinela contra os riscos da religião: a neurose, as ilusões, os abusos, as
guerras. O fio cortado da tradição permitiu que se movessem rumo à liberdade,
sem a qual não haveria o mundo da ciência nem o da arte, a aventura do
empreendimento nem a dos novos amores. No entanto, aponta a necessidade de
um discernimento:

O fio cortado da tradição é uma conquista importante, mas é


preciso evitar o desvio rumo a um niilismo sem valores e sem
autoridade. Eis porque temos a necessidade de “transavaliar” a
tradição. Isto é, repensá-la e atravessá-la, procurando tirar dela
tudo o que pode ser positivo para nós, contemporâneos.

Júlia deixa claro que essa postura de transavaliação vale para toda a tradição,
tanto para as três religiões monoteístas como para o taoísmo ou o confucionismo
e se estende também para a cultura clássica. A responsabilidade pelo exercício
da transavaliação vai bem além das fronteiras da filosofia:

73
Capítulo 3

Aos intelectuais, mas também aos artistas, visto que eu


considero a literatura e as artes verdadeiras formas de
pensamento. Sem o confronto com a tradição, corremos o risco
de nos perder em um niilismo depressivo. No plano da religião,
esse confronto nos permite entender que a fé não é apenas um
beco sem saída, como dizia Diderot. Condenando a fé, a filosofia
do Iluminismo privou a necessidade de conhecimento de um
fundamento importante. Para mim, a necessidade de crer é o
fundamento do saber.

E aqui Kristeva abraça a abordagem antropológica que tem apontado para essa
direção do crer como necessidade no humano:

É uma necessidade antropológica que a história das religiões


capitalizou por meio das variantes cristã, islâmica, judaica,
taoísta. Nós, ateus, devemos redescobrir as raízes dessa
necessidade, favorecendo desse modo o diálogo entre crentes
e não crentes, um diálogo entre iguais, em que ninguém pode
explicar e defender suas próprias posições.

Vemos, pois, que nosso contexto de discussão não se resume à questão


da existência de Deus, ou de deuses, e nem mesmo apenas às religiões
institucionalizadas.

A experiência do sagrado:

sentido convergente nas religiões e nos mitos.

A experiência do sagrado como ponto de convergência entre as religiões e os


mitos traz quatro perspectivas de entendimento do sagrado: (1) É quanto à sua
exterioridade e materialidade, ou seja, à paisagem religiosa como templo, ritos, e
os ambientes da natureza destinados ao culto. (2) É como sistema simbólico e
cultural de um povo. (3) É vislumbrar o sagrado a partir das Escrituras Sagradas,
das Tradições Orais Sagradas e dos Mitos, diferenciando-se dos outros
elementos culturais. (4) É reconhecer o sagrado como sentimento religioso, seu
caráter transcendente transracional; de inspiração própria do sagrado em si,
que escapa à razão em sua essência e é reconhecida através de seus efeitos –
verifica-se a sintonia entre o sentimento religioso e o fenômeno religioso, inclusive
no mito.

Diante dessas perspectivas, podemos observar que o pensar criticamente a


religião sem levar em conta as diferentes possibilidades de entendimento da
experiência do sagrado, nos deixaria míopes e incapazes de entender o próprio
fenômeno religioso em si. Tem razão Georges Gusdorf (1980, p. 252), nosso
conhecido, quando pede clareza nas distinções de campos dos que se dedicam

74
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

ao sagrado: “Uma religião viva, portanto, é uma coisa inteiramente diferente de


uma filosofia da religião. A tentativa da reflexão é sempre, necessariamente, tentar
submeter a religião à filosofia, reduzindo a vida à doutrina. Ora, a própria noção
de revelação afirma o primado da existência.”

O dado existencial tem um dinamismo interno que pode facilmente ser suprimido
por uma lógica exterior do discurso desligado da realidade. Tentar raciocinar
sobre Deus, ainda que para justificá-lo, é inverter os papéis. De tal sorte que
Gabriel Marcel pode afirmar, em resumo, que “a teodiceia é ateísmo”.

Porque toda pretensão de se estabelecer alguma demonstração sobre Deus,


seja lá qual for, é o mesmo que lhe impor a disciplina de uma necessidade
intelectual e, portanto, de uma necessidade humana. Gusdorf dá razão ao filósofo
dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) quando diz que a ideia de uma
prova da existência de Deus é absurda, visto que a “existência, mesmo saída da
prova, obtém-se por um salto”. E tal salto é um salto mortal para a razão lógica,
desconexa do existencial. (GUSDORF, 1980, p. 254-255). Porque a consciência
intelectual não esgota nem a realidade do eu nem a do mundo.

Essas reflexões fortalecem aquela espécie de apelo à humildade científica


percebidas por vários autores acima quanto à não invenção dos valores, mas só
à sua descoberta que podem levar ou à adesão ou à rejeição. Gusdorf (1980, p.
257) parte do mesmo princípio quando afirma:

O ser humano não se cria a si mesmo. Ele se descobre em


comunicação com o mundo, com os outros, e consigo mesmo,
com Deus. O ser em situação afirma-se como um conjunto de
diretivas originariamente dadas à consciência sob a forma de
vetores, de relações concretas que orientam o estabelecimento
do homem no universo.

Essa função de orientação ontológica era, de certa forma, semelhante à função


da consciência mítica. Tal consciência não depende da lógica racional-científica,
mas está fundamentada na experiência do vivido. A sobrevivência do mito até
a atualidade manifesta a necessidade de um enquadramento metafísico da
realidade humana pelo homem, de uma adesão originária, não redutora mas
compreensiva, que alinha a pessoa de acordo com as necessidades concretas,
constitutivas de sua condição.

Assim, muitas situações não são explicadas pela razão, mas precisam ser
assumidas e vivenciadas – é o caso do posicionamento frente às situações-limite
inerentes à condição humana, referenciadas com frequência ao longo de nossos
estudos. Segundo Gusdorf (1980, p. 258):

75
Capítulo 3

O limite da iniciativa do intelecto encontra-se sempre na


necessidade de admitir um certo número de pressupostos
que definam e orientem a afirmação do ser-no-mundo. O mito
designa este modo de verdade que não está estabelecido pela
razão, que se reconhece, mas antes, por uma adesão na qual se
revela uma espontaneidade originária do ser-no-mundo.

A sabedoria do mito desenvolve-se ao nível da presença no mundo originário,


cuja significação material ele se esforça por assegurar, enquanto a razão
prossegue em seu esforço no sentido da elucidação formal.

O mito é ao mesmo tempo obscuro e claro. Ele tranquiliza o espírito pela


liquidação da angústia, enquanto a razão não reconhece a angústia; pretende
negá-la mostrando que ela não tem fundamento. Mas, na perspectiva do mito, ao
contrário, a angústia mesma parece ser uma espécie de fundamento. Reveste-se
ela de uma validez existencial, e, portanto, deve de certo modo ser retomada e
assumida pelo ser-no-mundo.

Não é fugindo dos seus limites, mas assumindo-os que o ser humano poderá
compreender o seu ser. Daí a contribuição decisiva dos mitos que ampliam as
possibilidades de tal compreensão mediante a abertura para o encontro com
o mundo. Conforme aprofunda Kierkegaard, o filósofo da angústia, e retoma
Gusdorf (1980, p. 263), “o homem do mito tem prolongamentos no seu horizonte.
Ele existe fora de si, em participação com o mundo, com os outros. A estrita
razão não parece permitir que se supere um individualismo intelectual”.

Originalmente, o mito é fruto de um sentido do real que supõe o amor, a


comunicação, o compromisso do homem com os seres e as coisas. Não existe
mito pessoal, individual e desconexo de alguma experiência cotidiana.

Este bom contato inicial com a realidade, base da intuição para a existência
pessoal, não tem valor em nível da razão. O afastamento racionalista da realidade
obscurece o sentido do ser, pois, quebra sua unidade. Para a revitalização do ser,
é imperativo superar essa desintegração racional, ao qual se opõe, portanto, o
sentido de integração, ou antes, de reintegração, constitutivo da realidade mítica.
O pensamento, no contexto da realidade mítica, mostra-se solidário com o corpo,
que por sua vez é uma inteira projeção rumo ao mundo.

Por outro lado, o mito intervém para garantir a atividade da imaginação como
horizonte humano, sem se perder, também, nas puras necessidades cotidianas
de sobrevivência. A imaginação é dos órgãos da consciência mítica e, desenha, a
cada momento, o horizonte da atividade, da ação. Como afirma Gusdorf (1980, p.
272) “ela nos insere no mundo, muito mais do que dele nos afasta.”

76
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Não justificamos o mito, mas, ao invés disso, ele é que nos justifica. Ele esclarece
uma situação na qual bruscamente temos consciência de nos encontrarmos num
beco sem saída. Os principais temas abordados pelos mitos focam diretamente
os nós da realidade humana e esta sabedoria reintegra-nos na totalidade, em
virtude de uma função de reconhecimento ontológico.

Nessa visão, a vida aparece em sua plenitude biológica, limitada pelas


ocorrências do nascimento e da morte, cuja significação numerosos mitos
se empenham por desvendar. Ora, vimos que o intelectualismo tende a negar
qualquer realidade a estas situações limites, já que escapam a toda e qualquer
determinação da experiência possível. Daí a incapacidade da filosofia racional em
dar, isoladamente, um sentido pleno à existência.

Pretendemos, portanto, nas reflexões acima, mais uma vez demonstrar a


importância da abertura para outras possibilidades de compreensão do
ser humano e do cosmo, além da pura razão. Incluindo o mito, cujo valor e
importância temos trazido algumas vezes à nossa pesquisa filosófica sobre o
sagrado. Na verdade, apenas constatamos que está vivo o interesse de rever e
redizer as formas diferenciadas do humano sobre o sagrado e os sentidos de
viver no planeta terrenal dando-nos o direito de transavaliar as sabedorias das
tradições, inclusive como o mostram os diálogos de atravessamentos nesse início
de milênio.

Sagrado e o mal social:

a partir do mundo das vítimas e do valor da alteridade

Há um clamor urgentíssimo na contemporaneidade por uma assimetria da


desigualdade diminuída ao mínimo possível (KRISTEVA, 2014), pela superação
da irracionalidade da racionalidade sistêmica do mercado (HINKELAMERT, 1995),
pela superação da farsa dos Direitos Humanos (SANTOS, 2013) e que vamos
retomar no último capítulo.

Faltou-nos, porém, outra perspectiva que intriga a ponderação racional na


discussão contemporânea sobre o sagrado que é sobre o enfretamento da
realidade do mal no mundo, antiga questão da teodiceia. Não há como escapar.
Vamos, pois, avaliar as posições dos pensadores, crentes e não crentes, frente
ao mal social e, consequentemente, aos abismos profundos das desigualdades,
das injustiças crônicas que tem ampliado ao extremo as situações-limites da
condição humana para uma imensa maioria da população; bem como para as
outras manifestações da vida no planeta e no universo.

Comecemos pela lembrança histórica de que a teodiceia é herdeira da teologia


natural e procura respostas à questão de Deus com base no mal que há no
mundo. É o enfrentamento do problema do sentido da vida humana à luz do mal,

77
Capítulo 3

do sofrimento, da morte. Nesse contexto, o estudo do tema do sagrado ajuda a


filosofia a não ser só filosofia de tempo bom, mas dos tempos caóticos e difíceis.

Aliás, como vimos em momentos cruciais da história, foi o sagrado que inspirou
a ultrapassagem das crises civilizatórias como na Era do Eixo, já estudadas por
nós a partir de Karl Jaspers. Nessas ocasiões críticas, nesses momentos cruciais,
a exigência feita às religiões por mais autenticidade e pela superação de suas
contradições intrínsecas como produtoras de sentido em situações caóticas,
através do testemunho ético de seus sábios promoveu a gênese de grandes
religiões e filosofias.

Toda vez que a filosofia assume seu caráter ético-crítico aos comportamentos e
lógicas injustas dos sistemas estabelecidos, ela aparece como incômoda e corre
o risco da perseguição, do exílio e do pagamento do preço pela indignação ética.
É o que se viu ao longo da história, desde Sócrates, Bartolomeu de Las Casas,
Gramsci e os milhares de pensadores orgânicos torturados e exilados ao longo
da história, inclusive, nos países do Terceiro Mundo.

É nesse espaço de colonialismos ocidentais que movimentos de teologias e


filosofias políticas tem se colocado a serviço da verdade e dignidade do humano
frente ao mal social crônico que ultraja e elimina o Outro.

Exemplo já lembrado acima é o dos filósofos latino-americanos, ligados à


Filosofia da Libertação, em diálogo com pensadores de outros centros. Eles se
perguntam pela abrangência e autenticidade filosófica diante do sagrado que está
imanente e transcendente no humano. Mas, sobretudo, no sagrado humano feito
alteridade ferida e tornada vítima pelos sistemas político, econômico, jurídico e
religioso porque negadores da dignidade desses sujeitos e mantenedores do mal
social crônico.

A presença do mal na atualidade é mais que evidente. É uma presença que


penetra e satura todos os rincões: a violência, a pobreza, as doenças, as secas
e inundações, a fome e as epidemias, as guerras, as migrações forçadas, as
crianças de rua, a discriminação, a crescente violação dos direitos humanos,
coletivos e culturais, o narcotráfico etc.

Isso sem considerar a falta de credibilidade dos partidos políticos, as insultantes


desigualdades sociais, a corrupção e a banalização da vida alimentada pelas
empresas de televisão, entre outros sistemas de poder.

Estamos acostumados a considerar os problemas como lamentáveis e,


infelizmente, também, como inevitáveis. Como se não restasse outra postura a
não ser se resignar e dividir culpas em todos os níveis.

As posturas que assumimos são elaboradas a partir de diversos pressupostos


teóricos, grande parte deles filosoficamente inaceitáveis. Ao longo da história foi

78
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

dito, por exemplo, que o mal é o não ser, a privação de algo que deveríamos ter.
O mal era entendido como uma imperfeição ou uma deformidade. Tal postura
se verifica no pensamento grego (Parmênides, Platão, Aristóteles), em que a
natureza é mudança e permanência: a mudança se atribui ao não ser; o ser pleno
é imutável. Havia uma concepção intelectualista da moral, na qual o mal era um
erro, fruto da ignorância.

Plotino identifica o não ser com a matéria e o mal. As coisas são deformadas e
imperfeitas. O mal é, então, uma realidade inerente às coisas, o seu momento do
não ser e seu princípio material. As coisas, mistura de ser e de não ser, carregam
o mal em si mesmas. Em contrapartida, o bem se identifica com a ordem ideal
do ser, constituída pelas formas ideais das coisas. Teríamos, assim, um mundo
inteligível, dirigido pelo bem, diante deste mundo encharcado de males e
imperfeições.

No Iluminismo, por outro lado, o mal era considerado um ingrediente da história


humana, que progressivamente se iria superando tanto no domínio técnico do
mundo natural como no entendimento moral e político dos homens entre si.
Para Hegel, finalmente, o mal era no fundo uma aparência: a história inteira do
universo consistia, em última instância, na atualização do que, de modo virtual,
já estava contido no princípio dos tempos. No final desse processo, o mal terá
desaparecido. A consequência de todas essas proposições é que:

Legitima-se o mal como algo necessário e inevitável, e, então, a


luta contra ele seria inútil. Como uma grande concessão nos foi
dito que o homem seria responsável somente pelo mal moral,
porém, não pelo mal físico. Assim se abrem possibilidades para
atitudes de dominação e prepotência, e, por outro lado, posturas
fatalistas e passivas (DÁVALOS, in AAVV, 2004, p. 110).

Do ponto de vista religioso, especialmente na tradição cristã, o mal é tratado


como pecado. O problema é quando se coloca na mesma posição situações
totalmente diferentes. O mal cometido é o pecado, mas o mal recebido é
sofrimento. Nesse sentido, tem razão o alerta de Paul Ricoeur, “o homem pecador
dá muito que falar; o homem vítima dá muito que calar” (AAVV, 2004, p. 120).

Aqui, temos exposta a categoria essencial para refletir sobre a ética na filosofia da
libertação latino-americana – a vítima –, conforme explica Dussel (2002, p. 373):

O re-conhecimento do outro, como outro, como vítima do


sistema que a causa – que vai além do reconhecimento hegeliano
[...] – e a simultânea res-ponsabilidade por esta vítima, como
experiência ética que Lévinas denomina “face-a-face” – que
coloca em questão crítica o sistema ou Totalidade.

79
Capítulo 3

A vítima é um vivente humano e tem exigências próprias não cumpridas na


reprodução da vida. Luc Ferry fala da autonomia em que não se inventam os
valores, mas se acolhe os valores no outro, na alteridade. De fato, é no fenômeno
humano que reside a epifania do sagrado, a manifestação dos valores que
contam, que fundam a vida. É no Outro desfigurado – pobre, excluído, invisível,
refugiado, ignorado, peso morto para o mercado – que o sagrado também se
mostra, se revela ou é desvelado por mim como ultrajado em sua dignidade de
Ser .

Lévinas (2008, p. 15) nos ajuda a pensar a esse respeito:

Pensamos que a ideia-do-Infinito-em-mim – ou minha com


relação a Deus – vem a mim na concretude da minha relação com
o outro homem, na socialidade que é minha responsabilidade
para o próximo: responsabilidade esta que não contraí em
nenhuma “experiência”, mas da qual o rosto de outrem, por sua
alteridade, por sua própria estranheza, fala o mandamento vindo
não se sabe de onde.

O mundo contemporâneo, científico, técnico e gozador se vê sem saída – isto


é, sem Deus, sem o transcendente – não porque tudo lhe é permitido e, pela
técnica, tudo lhe é possível, mas porque nele tudo é igual. O desconhecido logo
se faz familiar e o novo, costumeiro. Nada é novo sob o sol. “A crise inscrita
no Eclesiastes não está no pecado, mas no tédio. Tudo se absorve, se deturpa
pouco a pouco e se enclausura no Mesmo” (LÉVINAS, 2008, p. 15).

É nesse contexto que se encaixa a perspectiva da razão suspeita que não surgiu
de um discurso filosófico, mas que simplesmente se deixou levar por suspeitas
ao invés de produzir provas. Segundo Lévinas (2008, p. 20):

Seu sentido impõe-se no “deserto que cresce”, na miséria moral


crescente da era industrial. Sentido que significa no gemido ou
no grito denunciador de um escândalo, ao qual a Razão – capaz
de pensar como ordem um mundo onde se vende o “pobre por
um par de sandálias” – ficaria insensível sem esse grito.

Tal insensibilidade, tão comum em nossos dias, demonstra a incapacidade da


razão por si só dar conta de toda amplitude da vida. A força de ruptura da ética,
do responsabilizar-se pelo outro de modo gratuito e desinteressado, não atesta
um simples relaxamento da razão, mas o fato de pôr em questão o próprio
filosofar, questionamento que não pode recair em filosofia. Ainda, segundo
Lévinas (2008, p. 24):

80
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

A nova teoria do conhecimento não confere mais nenhuma


função transcendental à subjetividade humana. [...] Tudo
é logicamente estruturado e a realidade aí se reduz. [...] O
pensamento contemporâneo move-se, assim, num ser sem
traços humanos, cuja subjetividade perdeu lugar no meio de
uma paisagem espiritual que se pode comparar àquela que se
ofereceu aos astronautas que, como primeiros, pisaram sobre a
lua e onde a terra se mostrou astro desumanizado.

A desumanização própria de nossos tempos – a força dos discursos ideológicos


de dominação – se torna questionamento de si, levando à falta de sentido para o
viver para si e para o outro. Isso, conforme Lévinas (2008, p. 28),

Não significa uma queda no nada, mas uma responsabilidade-


pelo-outro, responsabilidade esta que não é assumida como
poder, responsabilidade que significa, no fim de contas, até
no âmago de minha ‘posição’ em mim, minha substituição
a outrem. Trata-se de transcender o ser sob as espécies do
desinteressamento!

À crise de sentido, atestada pela incapacidade do discurso intelectual em se fazer


entender e mesmo de dar respostas às questões cruciais, opõe-se o sentido, prévio
aos ‘ditos’, repelindo as palavras e irrecusável na nudez do rosto, na indigência
proletária de outrem e na ofensa sofrida por ele. Para Lévinas (2008, p. 32):

Provavelmente é isso que ensinam os doutores do Talmud que


já conhecem um tempo em que a linguagem corrompeu as
significações de que se supõe ser portadora, ao falarem de um
mundo cujas orações não podem penetrar o céu, pois todas as
portas celestes estão fechadas, salvo aquela por onde passam
as lágrimas dos ofendidos.

Desse lado do Atlântico, Enrique Dussel (2002, p. 367) nos ensina que antes de
compreender o mundo existe uma pré-abertura ao mundo, já como corporeidade
traumatizável, vulnerável. É uma sensibilidade vivente, gozosa, que come e habita,
que se constitui como ética pela experiência do “face a face” com o outro, a partir
da responsabilidade diante do seu rosto.

O outro rompe a mesmice, a solidão. Só diante do outro, no face a face, supera-


se a posição racionalista e formalista. “O ser que se expressa, se impõe,
precisamente chamando-me a partir de sua miséria e nudez sem que possa
fechar meus ouvidos a seu chamado” (DUSSEL, 2002, p. 367). Assim, uma das
posturas básicas em relação à alteridade é colocar o outro no lugar do ser. Nessa
visão, o outro não é um objeto para um sujeito. “Tudo começa pelo direito do

81
Capítulo 3

outro e por sua obrigação infinita a este respeito. O humano está acima das
forças humanas” (DUSSEL, 2002, p. 366).

No face a face diante do outro o ser humano não se experimenta, em primeiro


lugar, como sendo dono do seu ser, mas com abertura (relacionamentos, diálogo).
Tendo direito, exige justiça. O outro como diferente não pode ser visto como
oposto, mas como distinto, é separado, mas não oposto – possui identidade
própria. Reconhecer o outro como distinto, estabelecendo relações de diálogo,
construtivas, de conversão, é nisso que consiste toda eticidade da existência.
Ética é justiça, é uma relação, pois ninguém pode ser justo sozinho. O outro é
essencial na minha existência.

Alteridade, portanto, quer dizer o relacionamento com o outro. Relativo é o


contrário de absoluto – sem o outro somos incompletos. O fato de que o rosto do
miserável possa interpelar-me é possível porque sou sensibilidade, corporalidade
vulnerável a priori. A aparição do outro diante de mim não é uma mera
manifestação, mas uma revelação do sagrado como presença comunicativa. Sua
captação não é compreensão, mas hospitalidade. Diante do outro a razão não é
representativa, mas presta ouvido sincero à sua palavra.

Nisto está claramente a experiência de vida que ultrapassa a pura razão. “O


ser religioso interpreta sua vivência como experiência. Contra sua vontade, já
interpreta Deus, cuja experiência pretende fazer, em termos de ser, de presença e
imanência” (LÉVINAS, 2008, p. 94).

Uma vez quando perguntado sobre qual é a relação entre a religião e a filosofia
e entre sua religião e sua filosofia, Lévinas respondeu: “A religião sabe muito
mais. A religião crê saber muito mais. Não creio que a filosofia possa consolar. A
consolação é uma função totalmente diferente; é religiosa” (LÉVINAS, 2008, p. 123).

Pudemos perceber nas reflexões acima realizadas sobre Deus e o mal, bem como
sobre a alteridade da vítima, elementos essenciais na construção de sentidos
para o existir. Os pobres (vítimas) com sua sabedoria de vida, adquirida muitas
vezes como fruto de seu sofrimento, nos ensinam um sentido e uma verdade
novos. O padecer uma situação-limite, lhes proporciona um saber sapiencial –
sapere! – do sentido e da verdade da vida – e da morte – enquanto tal(is).

Com Lévinas, mesmo que reinterpretando-o, poderíamos falar, então, da filosofia


não só como amor à sabedoria, mas também como sabedoria do amor (VVAA,
2004, p. 195).

82
Capítulo 4

A Experiência do Sagrado e
o Filosofar Pós-Moderno: da
Omissão às Possibilidades

Habilidades Ao final do estudo o aluno deverá ser capaz de


compreender e construir um perfil de filósofo(a)
pluralista como possível postura de reconstrução de
sentidos diante dos fundamentalismos religiosos,
do mercado como deus e de outras instituições
absolutistas da atualidade e ainda elaborar os
pontos nodais da relação filosófica adequada frente
às expressões do sagrado. Deverá também apontar
elementos que contribuam para desconstruir
estereótipos e preconceitos nos discursos
filosóficos modernos, contemporâneos e atuais
sobre as religiões e as espiritualidades, discutindo
as responsabilidades do filosofar diante do sagrado
na contemporaneidade.

Seções de estudo Seção 1:  Fundamentalismos religiosos e a difícil


arte de tornar-se pluralista

Seção 2:  Fundamentalismo filosófico neoliberal: a


religião do Mercado e os biossacrifícios

Seção 3:  A experiência do sagrado e a filosofia


hoje: da omissão às possibilidades

83
Capítulo 4

Seção 1
Fundamentalismos religiosos e a difícil arte de
tornar-se pluralista
Neste mergulho conclusivo enfrentamos o estudo dos desafios atuais para o
filosofar sobre a Experiência do Sagrado no humano como os fundamentalismos
no contexto vital contemporâneo e pós-moderno. Tema complexo e sensível,
esse dos fundamentalismos. Haja fôlego, hein! Mas vale porque podemos
respirar também os bons ares de utopias factíveis.

Fundamentalismo religioso:

a difícil arte de tornar-se pluralista

Esse tema dos fundamentalismos religiosos, embora com certa dificuldade, tem
merecido reflexões específicas nas escolas filosóficas. É um desafio necessário
e indispensável ponderar sobre os desvios inautênticos de comportamentos sob
o apoio do sagrado e que ferem a saúde ontológica do humano, porque desviam
o conceito do sagrado do fundamental e de seus fundamentos necessários para
qualificar os sentidos do viver e conviver humano.

Com frequência, essa inautenticidade das religiões se mostra como


fundamentalismo e tem determinado o comportamento de outras instituições
coletivas como a política e o mercado que se tornou um deus dominador e
assassino que a todos nos desapossa pelo mundo da técnica tornando-se fetiche
vampiresco para mais da metade dos humanos da população atual. (ZILLES, 2004;
HINKELAMMERT, 1988; 1994; 2000; 2012; COX, 1999; FREI BETTO, 1999; 2008;
MO SUNG, 1998; BOFF, 2006; KRISTEVA, 2010; 2011; 2012; SANTOS, 2013).

O conceito de fundamentalismo deriva de fundamento. Uma argumentação


sem fundamento é inconsistente. Buscamos o fundamento de nossa existência
e, nesse sentido, todos somos fundamentalistas. O termo fundamentalismo no
campo religioso e em outros campos essenciais nas relações intersubjetivas
humanas e com o ambiente é recente. Mas a postura fundamentalista é antiga
e se identifica com um conservadorismo diante das tradições, sem permitir a
transavaliação lembrada acima pela filósofa Julia Kristeva.

Zilles (2004, p. 183) vincula o conceito de fundamentalismo, seja religioso, político


ou intelectual à volta saudosista a princípios e valores tradicionais perdidos
nos séculos. Leonardo Boff (2006, p. 96) explica que “não é uma doutrina, mas
uma atitude e uma forma concreta de se entender e de se viver a doutrina
como absoluta e a única legítima; atitude fechada que leva ao desprezo dos
outros, à sua discriminação, à violência e às guerras.” Manifesta-se como um

84
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

neotradicionalismo religioso radical em todas as vertentes: islâmica, cristã,


judaica, budista e outras. (SANTOS, 2013; LAMA, 2001; BOFF, 2006; 2009).

O fundamentalismo dos filhos e das filhas de Abraão:

povos escolhidos para segregar?

O fundamentalismo ancestral dos filhos e das filhas de Abraão: judeus, cristãos


e muçulmanos (KNOB, 2004, apud BOFF, 2006, p. 97), ligado ao mito tribal dos
“povos escolhidos”, embasa muitos conflitos atuais, religiosos e políticos quando
se dão o privilégio de estarem acima e à parte dos demais povos. E sustentam
seu mito cada qual no seu livro inspirado: o Primeiro Testamento para os judeus,
as Sagradas Escrituras com o Segundo Testamento para os cristãos e o Corão
para os muçulmanos. Eles devem levar a mensagem a todos e convertê-los.

Confundem a imagem que a tribo faz de Deus com o próprio Deus. Na verdade,
todos são povos “eleitos”, coisa que o Primeiro Testamento já intuiu quando
nos seus primeiros onze capítulos narra a história dos povos da Terra como
povos de Deus. Somente a partir do décimo segundo capítulo, fala-se do “povo
escolhido” em Abraão. Sua missão é de suscitar em todos os povos a lembrança
imorredoura do único Deus. Portanto, não é uma eleição para segregar, mas para
unir na mesma memória sagrada do único Deus, Criador e Provedor de todos e
Senhor da história.

O fundamentalismo, segundo Boff (2006, p. 99), deve se reposicionar também


sobre o conceito de livro inspirado:

há que superar a visão fetichista de inspiração. O Livro sagrado


inspirado porque inspira a viver segundo Deus. Ele não é pura e
simplesmente, de forma literalista, a Palavra de Deus. Se assim
fosse haveria um dicionário divino e uma gramática divina. O livro
contém a Palavra de Deus testemunhada pelas muitas palavras
e muitos modos de dizer diferentes em cada cultura. Todos os
povos estão sob a vigência da inspiração divina. Seus livros,
sábios, mestres e profetas ajudaram e ajudam ainda hoje os
povos a caminharem segundo a inspiração divina. São caminhos
de santidade e de encontro com o Espírito. (BOFF, 2006, p. 99).

Assim, Boff (2006, p. 100) lembra que esse fundamentalismo é antigo e configura
a doença crônica das religiões abraâmicas e das outras quando tratam de forma
absoluta suas doutrinas e os caminhos espirituais, negando o pluralismo de fato e
de direito, como caminhos que conduzem a Deus.

Essa é a razão principal, embora não única, porque os


fundamentalismos das religiões abraâmicas mostram-nas
como as mais belicosas e guerreiras que se conhece na história

85
Capítulo 4

ocidental [...]. Por séculos se difundia a ideia, desapiedada e


cruel, de que fazer mal e até matar inimigos da fé num dia de
festa religiosa constituía uma forma digna de honrar a Deus ou o
santo festejado. (BOFF, 2006, p. 100).

Dentre os fundamentalismos das religiões abraâmicas, optou-se aqui por dar


atenção ao mais falado e, talvez, menos estudado dos fundamentalismos da
atualidade que é o de fundo islâmico.

Fundamentalismo islâmico, terrorismo e a busca da autenticidade religiosa

Trata-se daquelas correntes que defendem os valores tradicionais do Islã e


pregam a adoção do Corão, seu livro sagrado, como constituição dos Estados e
agem, sobretudo na esfera política, algumas vezes por violência, denotando uma
intolerância radical. (ZILLES, 2004).

No entanto, Boaventura Santos (2013, p. 51) sugere maior rigor na análise das
características dos grupos de fundamentalistas islâmicos e no diálogo filosófico
com as “teologias políticas não ocidentais (e não cristãs)”, e oferece ampla
bibliografia, já que se trabalha com categorias e distinções muito escorregadias.
Uma característica comum é serem antiocidentais.

A título de exemplo, a Irmandade Islâmica do Egito – que está


longe de ser movimento monolítico (Saadawi e Hetata, 1999)
– é vista e vê-se a si mesma como antiocidental. No entanto,
as relações de alguns de seus membros com o capitalismo
ocidental, incluindo algumas de suas versões financeiras mais
predatórias, são bem conhecidas. (SANTOS, 2013, p. 52).

Nesse sentido, Hassan AL-Banna, fundador da Irmandade Islâmica, em 1924, já


determinava que “as ideias e as instituições das sociedades islâmicas procedam
do Islã e não do ocidente.” (SANTOS, 2013, p. 52). E listou como áreas de
importação ocidentais pelo islã apenas os sistemas administrativos, as ciências
aplicadas, as comunicações, os serviços, os hospitais e as farmácias, as
indústrias, a criação de animais e a agricultura, a energia nuclear para atividades
pacíficas, o planejamento urbano, a construção, o alojamento, o fluxo de tráfico
e a energia. E acrescentava: “Para além destas coisas não precisamos de
mais nada. O islã inclui todas as coisas.” (SAADAWI; HETATA, 1999, p. 5 apud
SANTOS, 2013, p. 52). Como se vê, para ele, ser antiocidental não exclui a
possibilidade de alianças tácitas com os poderes políticos ocidentais, como a
dos Talibãs no Afeganistão, armados pelos EUA para combater a União Soviética.
(ACHCAR, 2006 apud SANTOS, 2013, p. 52).

É um contexto sem soluções de consensos e muito menos unívocas em termos


de conceitos:

86
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Trata-se de um campo minado em que a reivindicação de


dificuldades conceituais se mistura com suposições implícitas
ou explícitas sobre ameaças políticas reais ou imaginárias.
De fato, considero imprudente tecer avaliações gerais sobre
graus de ameaça política ou de periculosidade em relação às
diferentes versões de fundamentalismo, seja ele judaico, cristão,
combinação de ambos, como é o caso do sionismo cristão, ou
fundamentalismo islâmico. (SANTOS, 2013, p. 53).

No ocidente, o fundamentalismo islâmico está diretamente ligado ao pesadelo do


início do século XXI, o terrorismo, cuja singularidade é a “ocupação das mentes
das pessoas, mantê-las desestabilizadas emocionalmente, obrigá-las a desconfiar
de qualquer gesto, ou de pessoas estranhas, eis o que o terrorismo almeja e nisso
reside sua essência”. (BOFF, 2006, p. 102-103). Mas Santos (2013, p. 54) esclarece:

O poder do islã fundamentalista tem as suas causas próprias,


algumas das quais analiso nesse livro, mas é fortemente
amplificado pela sua visibilidade nas mídias europeia e norte-
americana e pela obsessão destas com a “guerra ao terror”. Uma
análise do islã na África ou na Indonésia, com a maior população
islâmica do mundo, oferece-nos uma imagem muito mais rica das
experiências islâmicas. (Santos,2013, p. 54).

Há que se discernir também que a interpretação rígida da Lei corânica, a sharia,


feita pelo islã fundamentalista, não significa que a sharia seja refém de uma
interpretação estática e de que não permite uma pluralidade de interpretações.

Conhecendo o Islã essencial

Por isso, vale aqui, para um filosofar honesto, resumir alguns aspectos do
Islamismo. Observe:

A filologia da palavra islã, em árabe, é diin, que significa modo de vida e/ou religião,
e se liga com a etimologia de paz, salaam ou shalam, em árabe.

Muçulmano, em árabe muslim (plural, muslimún), é particípio de aslama, ou seja,


aquele que se submete.

O termo maometano caiu em desuso devido à incorreta ideia ocidental de que os


muçulmanos adoravam Maomé; um termo, portanto, ofensivo para muitos muçulmanos.

Outra incorreção é designar o islamita como mouro ou sarraceno, fruto de escritos


regionais cristãos da Península Ibérica nos 700 anos de ocupação muçulmana. Islã
usado como Dar-al-Islam quer dizer Casa do Islã e se refere ao conjunto de países
que seguem esta religião.

87
Capítulo 4

O islamólogo Maurizio Borrmans (1993, p. 296) sintetiza aspectos essenciais do


Islã mostrando o link entre seu projeto sociopolítico e projeto religioso-espiritual.
O Islã tem se organizado

como uma estreita aliança entre religião e estado (dîn wa-dawla),


cultura e civilização, já que para ele é impossível distinguir entre
o secular e o religioso: isso mostra logo o seu desejo de formar
uma Casa do Islã específica, distinta da dos outros, onde –
natural e facilmente – se nasce e se cresce, se vive e morre
como verdadeiro muçulmano. E é verdade que os nacionalismos
modernos não conseguiram destruir esse sentimento de pertença
comum à mesma Casa do Islã (Dar-al-Islam) onde vive a ‘melhor
comunidade jamais construída entre os homens’ (Corão, 3,110).
(BORRMANS, 1993, p. 296).

Essa solidariedade se mantém viva anualmente nas celebrações do mês de


Ramadã, com jejum diário, participação da Grande Festa (Îd Kabîr) e imitação
dos ancestrais piedosos (AL-Salaf AL-Salîh). Há uma convocação para que todos
os nacionalismos recuperem esta autenticidade árabe-islâmica optando pela
Lei sharî’a e, então, islamizar o conjunto das estruturas da sociedade como o
direito constitucional, comercial, pessoal, penal etc. Nesse caso, é proposto aos
não-muçulmanos – que não seriam concidadãos a pleno direito – um estatuto de
proteção particular (a dimma).

Muitos muçulmanos sinceros reconhecem que todo projeto sociopolítico só tem


valor na atualidade se for movido por uma vida religiosa que dê a Deus tudo o
que lhes pedem: fé, culto, moral, e, portanto, um Islã que seja interior.

De fato, quem vive em ambiente muçulmano logo se deixa tocar por essa
atmosfera de religiosidade que envolve toda a vida pessoal e social. (BORRMANS,
1993, p. 296). Cada pessoa participa com orgulho de pertencer a uma sociedade
que “promove a justiça e impede a injustiça, e crê em Deus” (Corão, 3, 110).

O Corão é redigido O crente é chamado à imitação de Maomé como um


em árabe e tem 6.236 modelo perfeito de fé, sem preocupação com o Maomé da
versículos agrupados
em 114 capítulos
história (Corão, 33, 21) e de Abraão, modelo da submissão
(surras), memorizados confiante (islâm). Adere a um Creio simples, um culto
por todo muçulmano. despojado e às prescrições da Lei Divina Shari’a. Alguns
O crente pode
poucos assumem os caminhos ascético-místicos no
descobrir toda a sua
riqueza através dos Sufismo.
comentários canônicos
ou jurídicos, filológicos Borrmans (1993), teólogo culturalista católico, insiste que
ou históricos, filosóficos o Islã não é, pois, uma religião sem riquezas espirituais
ou teológicos, ascéticos e que é importante fazer uma valoração equânime e
ou místicos.
dialógica. Em troca da submissão a Deus, ideal vivido por

88
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Abraão (Corão, 3,67), o crente recebe de Deus três apoios para o caminho: a sua
palavra, o Corão, o seu profeta, Maomé e a sua comunidade (umma).

Cabe a ele meditar a primeira, imitar o segundo e consultar a terceira.

Borrmans (1993) mostra que esse substrato religioso é essencial a qualquer


projeto sociopolítico islâmico. Esse substrato tem dividido o Islã na avaliação da
sua história a nível institucional:

•• o estado deve ser islâmico ou não?


•• deve a Lei de Deus Sarî’a ser a sua constituição?
Os tradicionalistas ou os fundamentalistas gostariam de voltar ao modelo
clássico normativo como os Irmãos Muçulmanos de Hassan AL-Banna, o egípcio
(1906-1949), os discípulos do sayh paquistanês Al-Mawdûdî (1903-1979) e os
seguidores do ayâttullâh AL-Humanynî (1900-1989) no Irã. Todos insistem na
reconstrução da sociedade moderna segundo o ideal histórico concreto da
Cidade Muçulmana, tal e qual o que foi desenhado pelos grandes representantes
do Islã Clássico, sobretudo, o sábio e governante Ibn Taymiyya (1263-1328).

Mesmo com dificuldade, os reformadores ou laicizados lutam há quase um


século para viabilizar o projeto de sociedade do Islã implantando os valores
ocidentais de democracia, de liberdade, de socialismo e de humanismo com
métodos pragmáticos e pesquisas ecléticas, sem separar, apenas distinguindo as
competências do estado e da religião. Borrmans (1993) cita, dentre eles, todos os
grandes líderes das independências recentes, do Marrocos à Indonésia.

Mudança e flexibilidade no Islã?

Fizemos toda essa digressão para que nossa postura crítico-filosófica sobre
o sagrado na visão do fundamentalismo islâmico seja honesta e produtiva.
Boaventura (2013, p. 54) deixa-se ajudar por Talal Asad quando critica a visão
legalista e estática que se tem do Islã. “Discutir a mudança foi sempre importante
para a Lei da shari´a. Sua flexibilidade é mantida pelos dispositivos técnicos da urf
(tradição), maslaha (interesse público) e darura (necessidade)”.

Margot Badran (2009), feminista islâmica, distingue as duas Shari’a:

A shari´a como o caminho decorrente do Corão a que os


muçulmanos são exortados a seguir na vida (shari´a lei e caminho
de inspiração divina) e a(s) lei(s) entre aspas da “shari´a” (leis
derivadas de entendimentos da fiqh que são obra humana, e
portanto, abertas ao questionamento e à mudança). (BADRAN,
2009, p. 285 apud SANTOS, 2013, p. 54).

89
Capítulo 4

Assim, explica Margot Badran (2009), o caminho indicado na escritura como


sendo a palavra de Deus, palavra que é sagrada, mas necessita de ser apurada
e contextualizada pelo esforço humano. Essa diversidade de interpretações da
escritura corânica é estimulada também pelos monges contemplativos do sufismo
segundo o qual “os desafios presentes de cada época devem ser atendidos
de novo com recursos espirituais e respostas adequadas às necessidades
correntes”. (ERNST, 2006, p. 5 apud SANTOS, 2013, p. 55, nota 37).

Portanto, no Islã atual convivem as tendências extremistas mais críticas e, às


vezes, com ações violentas antiocidentais; e os moderados seguindo aquela lista
do projeto islâmico de modernização desde 1924. Sobre o fundamentalismo, vale
o que diz o escritor egípcio, Sherif Hetata, sobre a Irmandade Islâmica no Egito:

Se considerarmos fundamentalistas aquelas pessoas que têm


uma interpretação estreita, ortodoxa, fanática do Islã, então
eles constituem uma minoria muito ativa. Constituem, por vezes,
uma minoria poderosa. Mas no Egito [...], não penso que os
verdadeiros movimentos fundamentalistas incluam a Irmandade
Islâmica e, em particular, com a sua liderança [...]. Mas não
poderemos ter progresso num país como o Egito se não lidarmos
com o islã e se não adotarmos uma interpretação iluminada do
islã. O islã é a vida das pessoas, é a nossa tradição e a nossa
herança cultural. Devemos trabalhar com a Irmandade Islâmica,
mas não com a sua liderança. (HETATA, 1989, p. 23-25 apud
SANTOS, 2013, p. 56).

Santos (2013, p. 56) conclui pela aproximação crítico-dialogal com os pensadores


das teologias políticas nesses espaços de fundamentalismos atentos a dois pontos:

A consciência de que a noção de teologia política aplicada ao islã,


como na designação “islã político”, é um campo minado que tem
sido usado em anos recentes (e não tão recentes) para demonizar
o islã e reintroduzir a centenária visão orientalista de que as
sociedades muçulmanas, além de retrógradas, não democráticas
e violentas, são também monolíticas em termos de seu sistema
de crenças. (SANTOS, 2013, p. 56).

Segundo, assumindo as análises críticas com a precaução feita por Sadowsky


(apud SANTOS, 2013, pp. 56-57) sobre esses fatos:

(1) as sociedades muçulmanas tendem a ser pelo menos tão diversas quanto similares;

(2) existe uma distância enorme entre a doutrina islâmica e a prática muçulmana;

(3) as aspirações dos muçulmanos não diferem radicalmente de outras culturas,


embora os meios usados para atingi-las possam diferir;

90
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

(4) apesar das críticas feitas durante o Iluminismo, a religião não impede as
pessoas de se comportarem racionalmente ou de inovarem;

(5) as grandes lutas em que os muçulmanos estão envolvidos são estruturadas


pela história, mas não são determinadas por ela. Os resultados são ainda incertos.

Não se deve esquecer, por fim, que nas sociedades muçulmanas a experiência
moderna de secularismo é também uma experiência de ditadura. Isso significa
que o valor democrático atribuído ao secularismo no Norte global está ausente ou
não pode ser mecanicamente transposto para o Sul global.

O islã político fundamentalista de nossos dias alimenta-se do fracasso destes


projetos: em vez de nacional e estadocêntrico, é transnacional e sociocêntrico.
Transfere-se o projeto de renovação para uma sociedade transnacional de
crentes, sujeitando o Estado a uma crítica radical, acusando-o de cumplicidade
ou submissão ao imperialismo ocidental. Esse é o seu maior inimigo, pois dele
provieram todas as humilhações dos povos islâmicos.

Outros fundamentalismos religiosos:

aspectos dos fundamentalismos cristãos

Sobre outros fundamentalismos como dos hinduístas, judeus, cristãos, etc.,


pode-se fazer incursões reflexivas semelhantes. No judaísmo mais recente,
apoiado pelos ocidentais dependentes do petróleo, constatam-se posturas
crônicas de fundamentalistas religiosos justificando guerras intermináveis e
impiedosas como com os palestinos.

Quanto ao fundamentalismo cristão mais ligado à América Latina, podemos


lembrar que nasce entre os protestantes presbiterianos (BOFF, 2006) da
Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, quando consagram o termo
no título da coleção Fundamentals, a testimony of truth (1909-1915) – Os
fundamentos, o testemunho da verdade.

É uma reação de antídoto à modernidade, contra o liberalismo e o uso das


ciências modernas na interpretação da Bíblia como forma de atualização de sua
mensagem para os contextos atuais, mesma dificuldade do Islã fundamentalista,
ambos em favor de uma leitura literalista.

Semelhante ao fenômeno fundamentalista muçulmano, o cristão protestante


tornou-se politicamente virulento, devido a sua pauta de rigorismo purista
protestante. Hoje, lembra Zilles (2004, p. 186), a rápida urbanização, com seus
bares e motéis, uma moral sexual permissiva, a mudança do status social da
mulher, a elevação do índice de divórcios etc., é, para os fundamentalistas, uma
decadência moral da sociedade.

91
Capítulo 4

Uma das contradições dos fundamentalistas em reação à modernidade, porém, é


o fenômeno religioso das chamadas Eletronic Church – Igrejas Eletrônicas - pelo
uso desinibido das mídias a partir dos anos 1960, de costa a costa dos Estados
Unidos. (BOFF, 2006, p. 95).

É um movimento de massas que não se preocupa em criar comunidades. Essa


visão religiosa consolida a presença fundamentalista na política do partido
republicano, nomeadamente no Presidente George W. Bush, outrora dependente
de álcool e depois convertido ao evangelismo. Essa união político-religiosa
retoma a ideologia do “destino manifesto” criada por John Adams, o segundo
presidente americano, justificando a anexação dos territórios do México pelos
EUA.

Para ela, os norte-americanos têm o destino divino, como o novo povo escolhido,
de levar a todos os povos o esclarecimento, os valores da propriedade privada,
da democracia, do livre mercado e dos direitos humanos. (BOFF, 2006, p. 95).
Passam, então, a vender sua visão fundamentalista em forma de shows, com o
objetivo de obter muitas doações aplicando o chamado “marketing da fé”.

Por um agressivo investimento na mídia eletrônica fazem um negócio altamente


rendoso pregando o “evangelho light” e agradável, mantendo adeptos em suas
organizações como “igrejas-empresas” e tornando-se prósperos “empresários da fé”.

O descritivo de alguns autores assinala ainda a existência de proselitismo com


multiplicidade de denominações e a oferta de mercado religioso semelhante a
“Shopping Center da fé”. (COMÉRCIO DO SAGRADO, 2014).

Pode-se ter ideia do sucesso dos investidores nesse nicho da Indústria da Fé e


do Comércio do Sagrado pelos números da Eletronic Church de vertente cristã
evangélica criada nos últimos 50 anos no Brasil.

De acordo com a revista Forbes (2014), alguns de seus líderes se transformaram


em multimilionários. Observe:

1. O articulista diz que o maior expoente desta indústria da fé é o


bispo Edir Macedo, dono da Rede Record e fundador da Igreja
Universal do Reino de Deus. Possui templos nos Estados Unidos e
patrimônio líquido de R$ 1,9 bilhão.
2. Valdemiro Santiago, um ex-pastor da Igreja Universal do Reino de
Deus, fundou a Igreja Mundial do Poder de Deus, que tem cerca
de 900 mil seguidores e 4 mil templos. O patrimônio é de R$ 440
milhões.
3. O terceiro é Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, com patrimônio
de R$ 300 milhões. Ele é contra a comunidade gay no Brasil e
defende a lei do homossexualismo como uma doença no Brasil.

92
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

4. Romildo Ribeiro Soares, o RR Soares, é fundador da Igreja


Internacional da Graça de Deus com patrimônio de R$ 250 milhões
e fundador da Igreja Renascer em Cristo,
5. Estevam Hernandes Filho e a bispa Sonia, com mil igrejas no Brasil
e no exterior e R$ 130 milhões de patrimônio líquido.
A revista se baseou em dados do Ministério Público e da Polícia Federal.

Desde a década de 1980 eles constituíram no congresso nacional o Bloco


Parlamentar Evangélico que pretendia introduzir na Constituição Brasileira parágrafos
que proibiam, por exemplo, o homossexualismo e outras pautas do rigorismo
político-religioso da matriz norte-americana de povo escolhido descrita acima.

Zilles (2004, p. 185) diz que também no catolicismo não faltam pequenos
grupos como o do bispo Lefevre, na França, que se rebelou contra as reformas
do Concílio Vaticano II. Alguns acham que o movimento católico da Opus Dei
tem tendência fundamentalista devido ao seu conservadorismo. Seu centro
é a Espanha. As recentes guerras no Iraque foram apoiadas pelas forças da
Espanha, USA e Inglaterra, onde a rainha é como uma papisa. São espaços com
fundamentalismos religiosos ocidentais de vertente cristã sob a mesma lógica do
mito de povo escolhido.

Esse amálgama religioso-político deu origem à arrogância e ao unilateralismo que


os governos norte-americanos têm mostrado nas relações internacionais. Por se
sentirem escolhidos por Deus, não há porque darem atenção a um organismo
mundial como a ONU e a tratados internacionais. “A legitimação de suas políticas,
pensam eles, vem dos céus e não das leis humanas.” (BOFF, 2006, p. 96).

Quanto à Opus Dei, Zilles explica que é um equívoco porque contam com os
favores do Papa e desenvolvem um diálogo crítico com as ciências modernas.

No entanto, Franz Hinkelammert (apud FINN, 2012) aponta como fruto da ação
do fundamentalismo religioso-político adotado por alguns governos norte-
americanos e da Opus Dei a intervenção no Chile de Salvador Allende.

A polarização entre direita/esquerda foi sustentada por uma teologia política


muito parecida à usada pela Opus Dei. Ela desenvolve uma agressividade que
se fomenta ao declarar com insistência que o outro é um crucificador de Cristo,
nesse caso, mesmo que seja cristão. O velho filósofo, teólogo e economista, nos
seus 80 anos, explica no documentário que no contexto latino-americano,

a propaganda de crucificador de Cristo é dada pelos movimentos


conservadores à Unidade Popular de Allende e seus seguidores
– CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e movimentos
comunitários – e se espalha na opinião pública do Chile. Quando
aparecem as forças da redenção popular no âmbito dos

93
Capítulo 4

cristãos conservadores, dizem: olha aí, são os crucificadores


de Cristo. Eles são como as massas populares de Jerusalém
que no tempo de Cristo há 2000 anos gritavam ‘crucifiquem-no!’
(HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2012.)

Lembra que essa agressividade já foi utilizada no passado do cristianismo. O


movimento dos crucificadores de Cristo surge nos séculos três e quatro quando
se diz que o império foi cristianizado. Na verdade, porém, “foi um processo
invertido porque foi o cristianismo que se imperializou.”

Até hoje convive-se com esse dualismo na vida interna dos cristãos. No caso
do Chile, ele se manifesta em um cristianismo conservador que elege os
crucificadores de acordo com sua ideologia de dominação; obviamente contra
qualquer postura cristã de libertação do Cristo crucificado nos pobres e a favor
dos ditadores que por mais de 30 anos operaram como “escolhidos de Deus” no
Chile e em outros países do Cone Sul.

Kristeva (2011) sugere um humanismo filosófico cujas produções humanas


sirvam à construção do presente. “A história não pertence ao passado: a Bíblia,
os Evangelhos, o Alcorão, o Rigveda, o Tao habitam o nosso presente. É utópico
criar novos mitos coletivos, e não é suficiente nem mesmo interpretar os antigos.
Cabe-nos reescrevê-los, repensá-los, revivê-los: dentro das linguagens da
modernidade.”

É oportuno, pois, que se dialogue com essas vozes silenciadas outrora e que
enfrentaram a crueldade desses fundamentalismos de direita e de esquerda
com suas utopias. Sobre esse aspecto utópico muito ligado ao sagrado e
indispensável ao viver humano com sentidos, vamos nos dedicar mais à frente.

Seção 2
Fundamentalismo filosófico neoliberal: a
religião do Mercado e os biossacrifícios
Mo Sung (1998) explica que o uso da religião como instrumento econômico só é
possível pela absolutização de algo que é exterior à experiência religiosa e que é
inteiramente humano: o mercado.

O mercado é transcendentalizado, isto é, elevado à condição de sobre-humano


absoluto. É o ídolo. Mo Sung (1998) acredita que esta é uma das razões porque a
religião está na moda e vai permanecer, tanto na esfera pessoal e subjetiva como
empresarial e macroeconômica.

94
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Podemos aprofundar essa análise sistemática lendo os trabalhos de filosofia


sobre esse tema desafiador do comércio do sagrado feitos por Mo Sung há cerca
de vinte anos e por outros filósofos e cientistas da religião.

Esse retorno ao sagrado na sociedade pós-moderna, que se crê secularizada,


parece inesperada convocação às religiões para a volta a sua tarefa essencial:
anunciar a transcendência de Deus para que os seres humanos não se esqueçam
de sua condição humana e para que não se absolutize nenhuma instituição social.

Fundamentalismo na religião do Deus Mercado: sua onipotência

Entre os Absolutos que divinizamos está o fundamentalismo do Deus Mercado.


Cabe-nos, neste capítulo conclusivo, enfrentar também esse desafio de passar
sob o crivo do pensar filosófico o Deus Mercado, já que inegável produtor de
sentidos. Ele se tornou um Absoluto, um Fetiche, assumindo ares de divindade
onisciente, onipotente e onipresente, com seus ritos próprios, sacerdotes,
dogmas e mensagens de salvação.

Nessa digressão nos ajudam Mo Sung (1998), Frei Betto (2008) e Harvey Cox
(1999). Da escola americana de filósofos culturalistas e cientistas da religião,
Harvey Cox (1999), no artigo O Mercado como Deus - Vivendo em novo Sistema
Religioso, explica que percebe na retórica econóloga algo semelhante ao que
é denominado de “teologia processual”, embasada na filosofia de Alfred North
Whitehead (1861-1947).

Segundo este filósofo e matemático inglês, conquanto Deus deseja possuir


os atributos clássicos, Ele ainda não os possui em sua totalidade, mas está
indiscutivelmente caminhando nessa direção. Essa é uma forma de resolver
aquela nossa antiga pergunta da teodiceia:

Por que acontecem tantas coisas más que um Deus onipotente, onipresente
e onisciente — especialmente um Deus benevolente — não aprovaria?

Harvey Cox (1999) afirma que essa visão da teologia processual também parece
oferecer considerável conforto aos teólogos do Mercado porque “ajuda a explicar
a perturbação, o sofrimento e a desorientação que são o resultado das transições
da heterodoxia econômica aos mercados livres.”

Essa difícil solução do enigma da nossa concepção de Deus diante das


defasagens do mal torna-se mais complicada ainda quando nós nos colocamos
como Absolutos substitutos da divindade.

Mo Sung (1998), o filósofo da religião, teólogo e economista coreano-brasileiro,


clareia ainda mais a seriedade dessa posição. Ele traz a análise de Max

95
Capítulo 4

Horkheimer (1990 apud MO SUNG, 1998, p. 130) sobre nossa divinização:

Qualquer ser limitado – e a humanidade é limitada – que se


considera como o último, o mais elevado e o único, se converte
em um ídolo faminto de sacrifícios sanguinários, e que tem,
ademais, a capacidade demoníaca de mudar a identidade e
de adquirir nas coisas um sentido distinto. O conhecimento
consciente do nosso desamparo, da nossa finitude, não se pode
considerar como prova da existência de Deus, senão que tão
somente pode produzir a esperança de que exista um absoluto
positivo e podemos afirmar que o mundo em que vivemos é algo
relativo. (HORKHEIMER, 1990 apud MO SUNG, 1998, p. 130).

Assim quando os humanos se dão a suas organizações ou a si próprios as


características de representantes da divindade (povo escolhido?), podem se
tornar perigos iminentes para a vida no mundo.

Sobre o Mercado como um Deus onisciente

Além dessa questão da onipotência, Harvey Cox (1999, p. 7) interpreta o saber


onisciente de Deus e do deus Mercado. Explica que, por vezes, a onisciência
pode parecer um tanto intrometida. Lembra que o Deus tradicional do Livro de
Orações da Igreja anglicana, por exemplo, é invocado como Aquele “a quem
todos os corações estão abertos, todos os desejos se revelam, e de quem
nenhum segredo se esconde”. E diz que “assim como Ele, o Mercado já conhece
os segredos mais profundos e os desejos mais obscuros de nossos corações —
ou, ao menos, gostaria de sabê-los.” Sugere que se suspeite, contudo, “que a
motivação divina se diferencie nesses dois casos”.

Acredita o autor ainda que, certamente, o Mercado ambiciona essa onisciência


tomográfica divina porque, “ao sondar nossos mais íntimos medos e anseios
e, com isto, oferecer respostas abrangentes e indiscriminadas, ele pode ampliar
ainda mais seu alcance.” E lembra que:

tal como os deuses do passado com sacerdotes para


recolher e lhes ofertar as fervorosas preces e os pedidos do
povo, o Mercado conta com seus próprios intermediários: os
pesquisadores motivacionais. Treinados na avançada arte da
psicologia, que há muito suplantou a teologia como a legítima
‘ciência da alma’, as versões modernas dos confessores
medievais penetram fundo nas fantasias secretas, apreensões e
esperanças populares. (COX, 1999, p. 7).

Divindade por onipresença e a nova religião civil do mercado

96
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Outro atributo é o anseio da divindade por onipresença e a nova religião civil


do mercado que não constitui exceção. Harvey Cox (1999, p. 8) crê ser essa
a última tendência da teoria econômica. Esta tenta agora estender cálculos
mercadológicos a áreas que antes se supunham isentas, tais como “o flerte, a
vida familiar, as relações matrimoniais e a criação dos filhos”.

E cita a visão de Henri Lepage, defensor da globalização, sobre o “mercado


total”; o Mercado está não só ao nosso redor mas dentro de nós, doutrinando
nossos sentidos e nossos sentimentos numa perseguição infatigável. Como um
cão de caça de Deus, o Mercado “corre ao nosso encalço desde o comércio
local até nossas casas e adentra no quarto das crianças e em nossos quartos de
dormir.” (COX, 1999, p. 8).

Frei Betto (2008) descreve sobre a invisibilidade: “Ora, o Mercado é como


Deus: existe, todo mundo fala dele, mas permanece invisível e age sem que o
possamos perceber. A diferença é que, ao contrário de Deus, promove o bem
apenas de uma minoria.”

O autor fazendo jus ao título de seu artigo Humores do Mercado, “mostra que
o Mercado não gosta do que está ocorrendo à sua volta – ou, como dizem os
comentaristas especializados em economia, ‘reage mal’ –, o dólar sobe, o Risco
Brasil aumenta, a Bolsa de Valores entra em queda. Mas, se o Mercado sente seu
ego massageado, então acontece tudo ao contrário.”

Essa característica é analisada também em Cox (1999, p. 6) quando lembra


dos videntes que entravam num estado de transe e informavam aos suplicantes
qual o humor dos deuses para ver se o momento era propício para casar-se ou
deflagrar uma guerra. Ou o costume de ir para o deserto pelos profetas bíblicos
para noticiar se o sentimento de Jeová era benevolente ou colérico.

Hoje “a instável vontade do Mercado é esclarecida por relatórios diários


provindos de Wall Street e de outros órgãos financeiros sensitivos. Dessa maneira,
por meio de um acompanhamento diário, podemos saber se o Mercado encontra-
se ‘apreensivo’, ‘acalmado’, ‘nervoso’, ou mesmo ‘exultante’”. E conclui:

Com base nessa revelação, adeptos infundidos de respeito


fazem decisões cruciais sobre comprar ou vender. Tal como os
vorazes deuses do passado, o Mercado — apropriadamente
corporificado num touro ou num urso — deve ser alimentado
e mantido contente sob todas as circunstâncias. Com efeito,
algumas vezes seu apetite pode parecer excessivo — um socorro
financeiro de US$ 35 bilhões aqui, outro de US$ 50 bilhões acolá
— mas a alternativa de aplacar sua fome é muito terrível para ser
contemplada. (COX, 1999, p. 6).

97
Capítulo 4

Betto (2008) compara esse poder onipotente do mercado a um meteorologista:


“Todos sabemos que o Mercado é o termômetro que, hoje, nos indica se fará bom
ou mau tempo, mas ninguém sabe onde mora nem cruza com ele na esquina. Só
os comentaristas e os ministros da área econômica têm contato com ele.”

Essa onipotência e onipresença (BETTO, 2008), enfim, ritualizam-se de forma


sagrada em templos suntuosos nos centros das Megalópolis e nos mais distantes
lugarejos do planeta, envergonhando as construções previdenciárias:

Os acólitos do Mercado veneram Wall Street e odeiam a rede de


proteção previdenciária que assegura a milhões de pensionistas,
idosos e enfermos um futuro de menos penúria. E sonham, todas
as noites, com o único porvir que lhes interessa: ocupar um cargo
de direção no Banco Mundial ou no FMI, figurar no conselho dos
maiores bancos do país. Por isso, tratam os donos do dinheiro
como seminaristas diante do papa. (FREI BETTO, 2008,p.1).

O mais grave nessa usurpação de ideal divino de si mesmo é sua presença


“vampiresca” insaciável do sacrifício de seres humanos e de outras manifestações
da vida. (FREI BETTO, 2008; HORKHEIMER, 1990 apud MO SUNG, 1998).

Pensadores da libertação, a “irracionalidade da razão sistêmica”

e o Apartheid Social do Mercado

Às considerações de Cox (1999), Mo Sung (1998) e Frei Betto (2008) podemos


ajuntar as reflexões sobre esse aspecto sacrificialista por Franz Hinkelammert
(2012), filósofo da libertação, doutor em economia e teólogo alemão, sediado há
mais de 40 anos na periferia de San José da Costa Rica.

Desde a queda do comunismo russo em 1989, Hinkelammert (2012) chamava


a atenção para um dos fatores preocupantes porque intrínseco ao sistema
capitalista gerador do chamado apartheid social: a “irracionalidade da razão
sistêmica”.

Irracionalidade porque o Mercado promove o crescimento econômico, a


produção da riqueza e, na mesma proporção, a exclusão social.

Isso o torna gerador de um quadro crônico de injustiças e assimetrias mostrando


um onipotente poder de aumentar o abismo entre muitíssimos sujeitos sem
condições mínimas de reproduzir suas vidas pela satisfação de necessidades
básicas. Do outro lado, os pouquíssimos riquíssimos que transformam o dinheiro
em fetiche nos altares da especulação financeira da Bolsa de Valores, dos
paraísos fiscais etc.

98
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Segundo Honório-Krol (2013, p. 48), Hinkelammert mostra que nas relações


econômicas:

há necessidade de algo mais do que uma racionalidade


instrumental. Quanto mais se guia pela racionalidade de
cálculos meio-fim, menos se tem controle sobre os efeitos das
ações. Esses efeitos acabam por gerar crises, como a exclusão
de setores da população, devastação do meio ambiente etc.
Aparece, então, o fenômeno da irracionalidade do racionalizado.
A ação é racional em termos de cálculo meio-fim, mas esse
sistema de cálculo se revela como irracional quando referente
aos sujeitos. (HONÓRIO-KROL, 2013, p. 49).

A escolha dos fins deve necessariamente estar subordinada à vida do sujeito.


“Em consequência, nem todos os fins tecnicamente concebíveis e naturalmente
realizáveis, segundo o cálculo meio-fim, também são factíveis. Só é factível
aquele subconjunto de fins que se integra em algum projeto de vida. Ou seja,
fins não compatíveis com a manutenção da vida do próprio sujeito estão fora da
factibilidade.” (HINKELAMMERT, 1994, p. 76).

Essa incoerência fatual funda uma ética da irresponsabilidade justificada apenas


na eficiência. Isso ocorre com a atual inversão dos direitos humanos: em nome da
proteção dos direitos humanos, acaba-se por se praticar condutas que ferem os
direitos humanos (exemplos são as políticas contra o terrorismo) – é o irracional
justificado e tomado como racional.

O descuido pela sorte dos pobres se manifesta a nível interno na maioria dos
países. A adoção de políticas neoliberais e de planos especiais de organização
econômica deixa os pobres numa situação dramática. Desprovidos de cuidado,
sentem-se atraídos por várias formas de violência e de outras de natureza ilegal.

A irracionalidade desta racionalidade sistêmica neoliberal do Mercado se traduz


na ideologia que diminui a importância do social e de seus valores, ideologia que
apela sistematicamente ao individualismo.

Hinkelammert (1994; 2012) mostra como neste contexto ideológico a única


coisa social que parece ter valor é o Mercado. Essa ideologia induz e explora um
sentido de pertença comum tão dominador que induz as maiorias, seja no Norte
como no Sul, a aceitar custos e sacrifícios muito altos quando se trata de salvar o
sistema do Mercado.

É uma ideologia útil para aqueles que administram instituições e processos


sistêmicos, de roldão aderem também os pobres, aliciados a sacrificar-se no altar
do sistema divino do deus Mercado.

99
Capítulo 4

A esse respeito já é possível falar de uma religião civil conforme a visão de


Rousseau em seu Contrato Social (apud GONÇALVES, 2013, p. 25), cujo núcleo
sacro tem como uma das manifestações mais evidentes o Mercado como totem
porque se trata de um manufaturado, de uma obra humana.

A irracionalidade dos biossacrifícios:

humanos e da natureza

Nessa necessidade vampiresca do Mercado por sacrifícios humanos reside


o âmago da irracionalidade porque fere a opção preferencial pelos pobres.
(HINKELAMMERT, 1994 apud GONÇALVES, 1996, p. 26).

É uma irracionalidade que atinge o conceito de coerência divina como o Deus


dos cristãos, por exemplo, que em Paulo diz que “os plebeus e os despossuídos
são os escolhidos de Deus”.

Também chama para o sentido da igualdade real entre os humanos que é viverem
gerando igualdade para os pobres. “Se Deus é o Deus de todos terá que ter a
opção pelos pobres, caso não a tenha está fazendo a opção pelos ricos e, então,
não é o Deus de todos.” (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

E aí o sistema capitalista de mercado como Deus é um sistema destruidor


de relações humanas porque é sempre um produtor de pobreza, ou seja,
quanto mais produz riqueza, produz pobres na mesma proporção. E a morte
indiscriminada do Outro humano em inúmeros sacrifícios clama pela dimensão da
responsabilidade.

Deixar morrer é matar. Tomemos isso em relação aos países


completamente marginalizados. Deixá-los morrer é matar. Nós
temos, pois, um sistema que mata ao deixar morrer. [...] Para ser
humano é preciso que se construa estruturas compatíveis com a
vida humana. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Movimento Tortura No entanto, filosofar assim passou a ser um choque


Nunca Mais é um para a interpretação cristã fundamentalista dos
grupo brasileiro de
americanos. Na viagem pela América Latina, em 1969,
apoio aos direitos
humanos que surgiu Nelson Rockefeller, governador de Nova York, condena
como instrumento de a Teologia da Libertação como uma doutrina que põe
luta dos familiares dos em risco a segurança nacional dos Estados Unidos. Isso
mortos, desaparecidos
é agressivo aos extremos. É óbvio que isso provocou
e torturados políticos
durante o período a criação daquele inimigo crucificador de Cristo que é
do regime militar o cristão das comunidades de fé organizadas. Deu-se
implantado no Brasil em lugar à sistemática perseguição de cristãos pelo próprio
1964. 
cristianismo e de formas brutais como, no Brasil, observa-

100
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

se no livro de Paulo Evaristo Arns, Brasil: Nunca Mais, da editora Vozes e no


Grupo “Tortura Nunca Mais.”

Esse tipo de uso político da religião cristã impediu a existência de centros de


formação de sujeitos transformadores da irracionalidade sistêmica por sistemas
de reprodução possível da vida dos pobres como explica Hinkelammert (2013)
sobre o Centro Ecumênico de Reflexão para CEBs e Movimentos Populares:

É muito difícil de manter porque esse tipo de reflexão é


considerado sem valor e sem importância. Ela inclui uma
teorização sobre a práxis política e religiosa; é uma forma mais
do que capacitação, era um modo de formar para a reflexão
[...]. Era um centro de análise da vida real, concreta, sabendo
que o teológico e o religioso é uma parte básica do modo de
compreensão do mundo. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN,
2014).

Essa irracionalidade da racionalidade sistêmica permitiu uma absorção de todos


pela mesmice da globalização. Isso produz uma situação de vazio de sentidos.
Na verdade, é o próprio capitalismo que se esvazia gerando um círculo vicioso no
qual os grandes investimentos do capitalismo são investimentos de especulação
que se traduz como a grande corrupção.

Corrupção entre grandes executivos das empresas etc. Mas é,


porém, uma corrupção muito específica, por exemplo, na forma
de um prêmio de 200 milhões de dólares por um ano para um
grupo de executivos. A novidade é que é uma corrupção que é
legal. A lei se esvazia diante do povo porque os crimes maiores
que se cometem hoje não ferem nenhuma lei; a destruição
da natureza não viola nenhuma lei; a exclusão da metade da
população à miséria não viola nenhuma lei; estamos, assim,
esvaziando o que para o ocidente tem sido tão central: a lei.
(HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

O velho pensador avalia ainda que

a lei se transforma em algo semelhante ao que se dizia sobre a


especulação financeira – um meio de destruição de massa. Um
meio de destruição de massas pode ser armas, porém, a própria
Bolsa de Valores, os bancos se transformaram eles mesmos em
meios de destruição de massas. É o próprio Joseph Stiglitz, ele
mesmo, que usa essas palavras. As instituições se esvaziam de
tal modo que elas mesmas se transformam em instrumentos
de destruição de massas. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN,
2014.).

101
Capítulo 4

Niilismo é a É uma situação de vazio ético, de niilismo sistemático


desvalorização e a que exige reflexão filosófica e teológica criativas: “Porque
morte do sentido, a
ausência de finalidade e
não é um niilismo dos Estados Unidos, ou da Europa
de resposta ao porquê. ou da China etc. É um niilismo de todos nós. Há um
esvaziamento de sentidos. Sabemos pelas taxas de
crescimento que aquela promoção da ideia de progresso
infinito se esvaziou; tudo se esvaziou.”

O Iluminismo, sobretudo a partir do século XVIII, deixou-nos a herança de


reduzir a racionalidade a um cálculo de meio/fim como explicado acima e que
significa reduzir a um cálculo de interesse particular ou a um cálculo de objetivos
específicos, parciais etc. Elimina-se, então, o que para as religiões é algo básico
e que para os fundamentalismos desaparece completamente que “é a referência
à convivência, quer dizer, à vida e a vida é sempre uma vida em comum,
convivialidade.” (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Destruiu-se isso, então não podemos tampouco culpar a religião porque ela
jamais deixou de lado esse aspecto. É dessa dimensão da convivialidade que
tem aparecido a reflexão filosófica como na América Latina nascida nos mesmos
espaços das teologias políticas da libertação da vida para todos. E se opõem às
armas ideológicas da morte. HINKELAMMERT (2013) vai ao cerne da distinção:

As religiões e ideologias seculares, ou seja, de outra matriz como


o deus Mercado – e que se apoiam na afirmação da morte do
outro. É algo muito ligado à nossa ideologia da competição. Eu
vivo se te mato. Ou se te derroto. Ou te marginalizo. Eu quero
ser o que vive. E a maneira de conseguir isto é impedir você de
viver. É uma racionalidade ocidental que é fatal e que nos está
levando a um suicídio coletivo com apresentação de grandes
êxitos de destruição incluindo também a morte de nosso planeta.
(HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Esses pensadores inseridos em contextos têm conseguido detectar essa


irracionalidade denunciando-a no pseudorracional sistêmico. Isso significa
distinguir, de fato, o pior fundamentalismo vigente que é o fundamentalista uso do
sagrado na religião de mercado.

Nesse contexto, tomar a religião por si só como um inimigo revela não entender o
que é o âmbito religioso, pensa Franz. A rigor, o religioso é um espaço de conflito.
As religiões não são homogêneas. E isso no cristianismo é mais que evidente. Há
sempre o choque entre ortodoxia e heresia. A heresia sempre está presente na
igreja mas tratada como algo secundário. E o pensador abre o jogo em favor de
um pensar com dose de rebeldia a favor do viver qualitativo para todos:

102
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

O maior santo de nossa história que para mim foi são Francisco
sempre foi suspeito de heresia. E é assim, a rebeldia, a heresia
etc. é a fonte da vida. Eu creio que a teologia da libertação
nesse sentido é sumamente grandiosa. Em toda parte aparece
como a grande heresia. Que apareça como a grande heresia é
a melhor prova de que vai bem. Todos os grandes movimentos
foram heréticos. Mencionei os franciscanos, mas também os
dominicanos, até são Tomás de Aquino, estavam sempre em
perigo de ser taxados de heréticos. Os grandes movimentos
sempre foram taxados de heréticos. O próprio cristianismo é
heresia do judaísmo. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

E conclui mostrando que é preciso ver a autocrítica na religião como um


fenômeno oxigenador porque significa gerar possibilidades para responder aos
desafios permanentes das inautenticidades. Como aquela reflexão do filósofo
existencialista dinamarquês, filho de pastor protestante, Soren Kierkegaard (apud
GONÇALVES, 1996; 2013) quando comenta com lucidez e perspicácia que a
fé de Abraão representou um salto qualitativo na visão da dignidade de nossa
vida humana. Isso ocorre quando o Deus de Abraão rejeitou definitivamente os
sacrifícios humanos.

Embora por razões de amor soteriológico, o mesmo Deus tenha permitido


sacrificar seu Filho Único a posteriori na kenosis da cruz para selar com sangue
um sacrifício de amor eterno pela nossa humanidade. Este fato divino nós o
analisamos quando do estudo da conversão de Agostinho de Hipona.

Esse perfil de um filosofar biocrático porque nascido e fortalecido numa práxis, ou


seja, pensar crítico-utópico sobre o vivido e a convivialidade, embora tardiamente,
torna-se hoje fonte reflexiva para antigos centros também europeus do pensar.

Nessas filosofias e teologias políticas de libertação de um viver em outro mundo


possível, residem sementes por um filosofar mais autêntico porque provedor de
salvação e esperanças na reprodução das vidas a partir do lugar que é o Ser do
Outro espoliado e vitimado.

Como o confirma Santos (2013) sobre a importância das religiões dotadas


“em princípio com o mesmo potencial para desenvolver versões de teologias
progressistas e libertadoras, capazes de se integrar nas lutas contra-
hegemônicas contra a globalização neoliberal”. (SANTOS, 2013, p. 141).

No entanto, é preciso estudar ainda mais “as razões pelas quais as condições
econômicas, sociais, políticas e culturais prevalecentes no mundo de hoje tendem
a impedir a emergência de teologias da libertação e a promover a emergência de
teologias conservadoras ou reacionárias”. (SANTOS, 2013, p. 141).

103
Capítulo 4

Daí a necessidade dos pensadores orgânicos das academias, também


majoritariamente conservadoras, frequentarem os lugares, os sujeitos da
comunidade para onde as religiões voltaram com a secularização pós-iluminista
de desconstrução e privatização das religiões. Como consequência inesperada,
“afastada do Estado e do mercado, a religião refugiou-se na comunidade, um
domínio de regulação social menos estandartizado e mais aberto à diversidade.”
(SANTOS, 2013, p. 142).

Os pensadores que tiveram aí “seus topoi entre desesperançados e vitimados”


como rotina vital por tempo longo, deixaram-nos como heranças uma
diversidade complexa e rica de teologias e filosofias progressistas de libertação,
denominadas na obra de Santos (2013) como as:

1. teologias feministas islâmicas;


2. teologias de libertação feministas na América Latina;
3. teologias de libertação chicana;
4. teologias indígenas de libertação;
5. teologia negra nos EUA;
6. teologia da libertação palestina;
7. teologia minjung dos cristãos perseguidos na Coreia;
8. teologia da libertação dalit, na Índia;
9. teologias de libertação islâmicas.
Tudo isso representa riquezas preciosas, passíveis de troca ampla e cada vez
mais frequentes

nos espaços de pesquisa e de diálogos ecumênicos e inter-


religiosos que têm sido testemunho de um potencial para a
interculturalidade no domínio da religião. Se estes diálogos
fossem mais coerentes e ativamente praticados, poderiam
funcionar simultaneamente como uma poderosa memória e
um campo de experimentação para diálogos mais amplos,
envolvendo concepções religiosas e não religiosas da dignidade
humana. (SANTOS, 2013, p. 124-125).

Esses diálogos e espaços podem ser vistos como apelos éticos por um filosofar
com possibilidades não só de ultrapassar omissões e traições mas, sobretudo, de
ver como construtores de sentidos os que operam a área do sagrado no humano.
É o que vamos alinhavar em nossa seção conclusiva.

104
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Seção 3
A experiência do sagrado e filosofia hoje: da
omissão às possibilidades
Nesta seção conclusiva, comecemos lembrando o prejuízo que o significado de
cultura pronta, já apresentado pelo antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, pode
trazer ao nosso rico tema da busca de sentidos a partir do fenômeno humano
do sagrado. Brandão dava o significado de que se trata de um universo em que
só nós, humanos, nos movemos. É o universo das ordenações, do sentido e dos
significados em dimensões variadas. Brandão propõe como exemplo de cultura
pronta a consagrada distinção acadêmica entre as ciências particulares das
totalizantes. Para Brandão (apud MOREIRA-ZICMAN, 1994, p. 46),

Há ciências particulares que se propõem a decodificar e


explicar parcelas da realidade – como o conhecimento biológico,
matemático, antropológico ou econômico –, e há esferas
de construção ou explicação via intuição, às vezes até via
iluminação ou via pesquisa empírica desses dois extremos, cuja
ambição e proposta é a produção de sistemas mais abrangentes,
mais complexos; se preferirem, mais holísticos e totalizantes
de articulações de significados à sociedade. (BRANDÃO apud
MOREIRA-ZICMAN, 1994, p. 46).

Aos estudiosos de filosofia se requer de modo bem específico, em nossa cultura


pronta, esta habilidade de encaminhar a busca dos sentidos de forma totalizante.
É o que se espera de pensadores na complexidade vista sobre o sagrado em
nossas duas unidades de aprendizagem.

Nessa ótica, como operacionalizar uma resposta a este contexto de expectativa


pós-moderna em relação ao sagrado ontologicamente e empiricamente
experimentado pelo humano? Quais posturas estão sendo sugeridas e vividas
hoje pelos filósofos na sua responsabilidade com as novas gerações?

O filosofar hoje e a construção de sentidos:

o princípio-esperança de Ernst Bloch

A situação de vazio de sentidos para o viver, do medo de participar, da


onipresença da mão invisível do deus Mercado, cria um contexto de caos e de
impotência que fere princípios vitais do ser, como o do princípio-esperança,
termo criado pelo filósofo marxista ateu Ernst Bloch ao avaliar o clamor pós-
moderno por esperanças possíveis em vista de outro mundo possível.

105
Capítulo 4

Ernst Bloch nos ajuda, por meio de Lévinas e Luc Ferry, a buscar saídas em
Heidegger. Segundo Luc Ferry (2007, 2013), é exigido à filosofia a necessidade de
optar por uma alternativa entre:

a. continuar por um caminho de desconstrução aberto pelos pais


fundadores da filosofia da suspeita – lembrando Marx, Nietzsche e
Freud, como o fizeram e fazem inúmeros de seus discípulos;
b. retomar ao caminho da procura a partir da desconstrução e à luz da
desconstrução.
Em suas obras recentes, como em Aprender a Viver: filosofia pra os novos
tempos (2010) e Do amor – uma filosofia para o século XXI (2012), Ferry opta pela
alternativa (b), porque, se continuarmos apenas na desconstrução, o real pode
levar ao desencanto, mais que à lucidez crítica.

Uma continuidade da desconstrução não nos permitiria dar ouvido ao princípio-


esperança que emerge do ser do Dasein nas horas críticas da história pessoal
e coletiva, como o mostram os estudos dos filósofos da esperança. Seria um
provável caminho de adoecimento ontológico.

Esses filósofos têm se preocupado com a interpretação do utópico no fenômeno


humano. O princípio-esperança aparece como um processo dialético de tensão
já-e-ainda não, ou seja, tensão entre o viver do sujeito aqui e agora e o ideal de
sujeito-no-mundo já iniciado, mas ainda não concluído.

Ultrapassam, assim, a ideia do senso comum de utopia como o impossível e


irrealizável. Um pensador importante dentre estes foi o filósofo Ernst Bloch (1880-
1959), o marxista que refletiu sobre o fenômeno do Princípio-esperança no ser do
Dasein, e que por isso foi considerado herege e expulso do Partido Comunista
Alemão, porque parecia trair sua maneira de pensar o paraíso, mais uma vez
jogando as expectativas para o além.

Figura 4.1 – Foto de Ernst Bloch

Fonte: ELPAIS (2007).

106
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Lévinas (2008, p. 59) nos ajuda a conhecer seu pensamento: “Bloch trata o
humano a partir do ser e, ao mesmo tempo, na sua irredutibilidade às coisas
do mundo.” Lévinas (2008, p. 59) avalia a ideia de Bloch a partir do livro Prinzip
Hoffnung (Princípio-esperança), focando sua ética da esperança e fazendo
interface entre a ética e a ontologia:

O espetáculo da miséria e da frustração do próximo, do seu


aviltamento sob um regime de exploração econômica e o discurso
rigorosamente ético que ele gera, conjugam-se, segundo Bloch
e em Bloch, com o discurso lógico sobre o ser, o discurso
ontológico. Ele determina o seu despertar. A realização do homem
é a realização do ser em sua verdade. (LÉVINAS, 2008, p. 59).

Para que esta relação entre o discurso ético e filosófico-ontológico seja


convincente, é preciso dar a resposta ao desencanto maior que é o problema
da morte. Lévinas (2008, p. 60) comenta ainda que Bloch, descrente e marxista,
caso não enfrente a questão crucial do morrer, transformaria sua fala sobre a
esperança em “apenas uma homilia (sermão) marxista”.

Mas Bloch enfrentou a questão do morrer, evocando o tema da utopia. Lévinas


(2008, p. 64) faz mais uma hermenêutica (interpretação, lembra-se?) do
pensamento crítico-utópico de Ernst Bloch:

O nada da utopia não é o nada da morte, e a esperança não é a


angústia. Não é a morte que, em Bloch, abre o futuro autêntico;
é em relação ao futuro da utopia que a própria morte deve ser
compreendida. O futuro da utopia é a esperança de realizar
o que não é ainda. Esperança de um sujeito humano ainda
estranho a si mesmo, pura facticidade – Dass-sein; de um sujeito
separado, invisível a si mesmo, ainda afastado do lugar onde no
ser inacabado ele poderia verdadeiramente estar-aí (Dasein); mas
esperança de um sujeito agindo para o futuro, cuja subjetividade
não se identifica, em última instância, com a tensão sobre si – ao
cuidado de si da ipseidade (capacidade de ser si mesmo) – mas
com a dedicação ao mundo por vir, mundo a realizar, com a
utopia. (LÉVINAS, 2008, p. 64).

Vale mais uma vez também aqui a visão pertinente sobre as utopias de outro
alemão, Franz Hinkelammert, que se exilou voluntariamente na América Latina
para investir numa filosofia de libertação. Sua obra clássica é a Crítica da Razão
Utópica (2013), desde os topoi complexos das vidas esquecidas no não-ser
por uma ética de libertação formulada por Enrique Dussel. Essa escola latino-
americana de filosofia de libertação traz novo significado ao conceito de utopia,
na linha do princípio-esperança de Ernst Bloch, mas aprofundando-o.

107
Capítulo 4

Hinkelammert trata da factibilidade ou realizabilidade dos atos ditos utópicos.


O verdadeiro e válido, para ele, deve ser possível, na prática. Ele admite a
impossibilidade de apreensão da realidade; ressalta, porém, a limitação das
ações humanas.

Acredita que não se pode pensar em utopias ingênuas, e sim no que é possível
fazer. Na definição desse possível, a razão estratégico-instrumental é útil e
necessária, mas insuficiente.

Segundo Honório-Krol (2013), a importância da obra de Hinkelammert é inserir


um conteúdo ético na racionalidade instrumental, valorizando a vida do sujeito e
impedindo que os fins sejam alcançados por qualquer meio. Só é possível o que
torna a vida possível.

Para ele, a utopia humana deve ser tratada no plano da factibilidade e não sob a
ótica do impossível. Diz Hinkelammert (1994, p. 12-13) que essa “impossibilidade
se dá na medida em que as relações mercantis não dão conta da tarefa de
levar ao progresso humano, mas apenas asseguram uma evolução técnica cujo
progresso sacrifica a vida humana em nome da glória mercantil.”

Nessa lógica, Hinkelammert (1994, p. 17) esclarece que:

o possível é o resultado da submissão do impossível ao critério da


factibilidade. Então, tem-se o seguinte: concebe-se o impossível
para, por meio da experiência e da análise da factibilidade,
conhecer o possível [...]. Como arte do possível, a política
contém, portanto, o que se denomina a crítica à razão utópica,
que não constitui em si uma rejeição do utópico, mas sim a sua
conceituação transcendental. (HINKELAMMERT, 1994, p. 17).

O sujeito, assim, transcende a realidade e encontra nela o limite do possível. Sem


essa transcendência, fica-se limitado ao existente. Hinkelammert (1994, p. 256)
afirma que “Desse modo, transcender o possível é condição para conhecer o
possível e, ao mesmo tempo, conhecer o possível é condição para transcender a
realidade no marco do possível.” Assim, “nenhum projeto pode se realizar se não
for materialmente possível.”

A possibilidade não diz respeito apenas à tecnologia, mas sim à participação no


produto social, o que permite vislumbrar que a factibilidade deve ser analisada
em diversos níveis. E lembre-se que o que é possível em determinado momento
econômico pode não ser em outro. E mais, Hinkelammert (1994, p. 76) mostra a
necessidade dessa escolha dos fins ficar subordinada à vida do sujeito.

108
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Em consequência, nem todos os fins tecnicamente concebíveis


e naturalmente realizáveis, segundo o cálculo meio-fim, também
são factíveis. Só é factível aquele subconjunto de fins que se
integra em algum projeto de vida. Ou seja, fins não compatíveis
com a manutenção da vida do próprio sujeito estão fora da
factibilidade. (HINKELAMMERT, 1994, p. 76).

As jovens autoras brasileiras Honório-Krol (2013, p. 20), por isso, ligam a


necessidade de nova ética do “bem comum” como contribuição importantíssima
da obra de Hinkelammert (1994) enquanto razão utópica que exige como critério
para estabelecer o que é possível e impossível à reprodução da vida humana
corporal e concreta. É possível julgar as instituições e ações conforme estejam
ou não em função da vida dos sujeitos. Trata-se de uma ética concreta e real,
calcada na satisfação das necessidades humanas vitais.

Nessa utopia factível das necessidades vitais, há que se cuidar porque


“as preferências ou gostos não podem orientar os fins. A satisfação das
necessidades torna possível a vida; a satisfação das preferências a torna
agradável. Mas para que ela possa ser agradável, antes tem que ser possível.”
(HINKELAMMERT, 1994, p. 267).

Portanto,

trata-se de critério que poderia ser resumido nos seguintes


termos: a liberdade de cada um tem que ser restringida de tal
modo a não pôr em perigo a base real do exercício da liberdade
de qualquer outro. Assim, o limite da liberdade de cada um é a
garantia da base real de reprodução da vida de cada um. O norte
para os projetos e as autonomias é a vida real. (HINKELAMMERT,
1994, p. 282).

No entanto, Hinkelammert (1994, p. 299) conclui que

os princípios de impossibilidade das ciências empíricas


descrevem impossibilidades para a ação humana, mas aquilo
que afirmam como impossível não é logicamente contraditório.
Assim, há um espaço entre o que está (além do) humanamente
possível e entre o que é logicamente contraditório, um conjunto
de mundos pensáveis, um espaço teológico. É preciso pensar o
impossível, pois sem fazê-lo não se pode conhecer o possível;
então esse impossível tem que ser de alguma forma possível,
embora não o seja pela ação humana. As explicações podem ser
teológicas (nada para Deus é impossível) ou ilusões humanas.
(HINKELAMMERT, 1994, p. 299).

109
Capítulo 4

Segundo o juízo constituinte do espaço teológico, “aquilo que é humanamente


impossível, apesar de tudo, é possível. Trata-se de um juízo ontológico, não justificável
a partir das ciências empíricas, mas que, sem dúvida, encontra-se em relação de
coerência e complementaridade com elas.” (HINKELAMMERT, 1994, p. 299).

Em suas entrevistas (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014) ele faz uma leitura
das utopias de esquerda e de direita como ingênuas, a partir do que refletiu em
sua obra a Crítica da Razão Utópica, na trilha de Bloch e Lévinas.

Quanto à utopia da esquerda, que a tinham de Marx, em certa medida está


presente no caso do Chile:

era a utopia de um socialismo como solução definitiva dos


problemas humanos; portanto, o socialismo tem um humanismo
definitivo. Esperava-se que iria desaparecer o Estado, iria
desaparecer o dinheiro, haveria o fim do Mercado. E daí, como
solucionar os problemas do Mercado? Fazendo desaparecer
o Mercado. Como fazer com o problema do Estado? Fazendo
desaparecer o Estado. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Ele afirma que era um argumento que a direita compartilhou. Reagan, na sua
campanha eleitoral, apontava que havia solução para todos os problemas e que
o Estado era um problema. “Este é um típico pensamento utópico sem crítica. E
aparece nos discursos da Direita e da Esquerda. Era, porém, um tempo em que
se via a possibilidade de mudança necessária na sociedade. Mas não pode ser
uma mudança total.”

E pondera também que

não é uma realização total – se se quer usar termos teológicos


– do Reino de Deus aqui e agora. Tampouco a realização de
um humanismo perfeito. E olhando a fala da Direita, a solução
de um Mercado perfeito com sua mão invisível. A relação
com a instituição tem que ser uma relação crítica, porém, não
de destruição do outro polo. Isso na Esquerda não era claro.
Portanto, ela não soube definir o papel do Estado nem do
Mercado. Como também a Direita com suas utopias não soube
definir papéis. A Direita é a utopia do Mercado Total e a Esquerda
do Estado Total. Escolher o Estado total foi a escolha da era do
Stalinismo ou do Mercado total da Direita dá no mesmo. É uma
unidade das oposições. Há uma coincidência opositora. Isto
levou à discussão para buscar a crítica de uma razão utópica.
(HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

110
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Ele chega à conclusão de que as utopias não são algo por realizar, mas se
parecem a algo como Kant chama de regulador de ideias. Franz explica que
são referências para fazer mudanças necessárias dentro de um marco do que é
possível. “E aí mudou-se hoje para uma visão de transformações; abandonou-se
completamente essa perspectiva de mudança total para uma visão de mediação.”
(HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

E com jovialidade de sábio octogenário, em meio aos cabelos brancos


esvoaçantes ao vento arrisca: “Quase se pode dizer em síntese, mas isso ainda é
conflitivo: que o sentido para uma nova sociedade é ser concebida como aquela
que intervém sistematicamente no mercado.” (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN,
2014).

E sugere como autor de inspiração o famoso escritor Karl Polanyi, de A Grande


Transformação (Utopia). “A utopia do impossível significa o mercado enquanto
é tratado como um regulador de si mesmo; isso leva à destruição de si mesmo
incluindo a destruição do planeta.” (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014)).

No entanto, Franz insiste na ideia de que necessitamos de uma intervenção


sistemática nos mercados para poder fazer compatibilidade do mercado com a
vida humana.

O mercado não pode destruir a vida humana do outro. Hoje


temos o fenômeno da exclusão de metade das populações da
terra pelo mercado; do mercado vem a destruição do ambiente.
Uma sociedade onde todos e todas lutem pela vida de todos e
também da natureza. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Está consciente de que precisamos abandonar a ideia da revolução total. E aqui


reconsidera a frontalidade inspiradora do sagrado como alternativa em favor da
ideia da factibilidade utópica de que

podemos ter um outro mundo possível como o do Reino de Deus.


O que podemos é ter uma relação diferente com ele. Não tenho
que realizar o Reino de Deus na terra porque não é possível.
O Reino de Deus, temos que deixar por conta Dele; porém,
podemos tornar presente os valores do Reino de Deus. Torná-lo
presente o mais possível através das estruturas que temos para
viver. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).

Vale concluir com as razões da carta do doutorando Tiago Knob (2010), egresso
de Publicidade e Propaganda da Unisul, que levou para Coimbra as experiências
vividas com as comunidades do Sul do Mundo, agora com mais qualidade de
vida, para que nas academias do Norte se aprofunde o salto qualitativo que

111
Capítulo 4

significa trazer de povos multiétnicos e pluriculturais, tais como da Aldeia Guarani


Itaty da Terra Indígena do Morro dos Cavalos em Santa Catarina, Brasil e da
experiência do processo de libertação da luta contra o Apartheid na África do Sul.

São saberes e experiências que se encontram latentes nas vítimas destas regiões
exploradas por toda sua história e seu presente que “já afirmam e lutam pelo
seu direito à autonomia, soberania e justiça social, e passar no crivo de um olhar
científico uma consistência e factibilidade ética capaz de ensaiar um projeto de
cidadania futuro do qual as vítimas caladas da modernidade façam parte.” (KNOB,
2010, p.1).

Por outro viés, Ferry (2007) volta em nosso estudo a encaminhar a proposta (b)
através da sua análise crítica ao conceito de Mundo da Técnica, feita por Martin
Heidegger, como “uma ideia intrinsecamente genial, uma das que iluminam de
modo poderoso, e até incomparável, o momento presente”. (FERRY, 2007, p. 239).

Breve hermenêutica de O mundo da Técnica

de Martin Heidegger

Luc Ferry (2007) descreve, aqui, o Filósofo do Ser, como desconstrutor não
materialista e não hostil à ideia de transcendência. E nos ajuda a dimensionar
nossa postura de profissionais do filosofar diante da complexidade da era
contemporânea tecnicista. A análise é extensa e você pode aprofundar pela
leitura completa do livro. Resumimos, aqui, apenas alguns pontos nodais:

1. A globalização técnico-capitalista-liberal nega-nos a promessa


democrática de participação: “o Mundo da Técnica está traindo
uma das promessas fundamentais da democracia: aquela, segundo
a qual, poderíamos, coletivamente, fazer nossa história ou participar
dela, interferir em seu destino para tentar dirigi-lo para o melhor”.
(FERRY, 2007, p. 240).
2. O imperativo absoluto do movimento pelo movimento também é
componente essencial do Mundo da Técnica (FERRY, 2007, p. 241):

[...] precisamos sempre progredir, mas esse progresso


mecanicamente induzido pela luta em vista da sobrevivência
– da marca, da empresa - não pode mais se situar no centro
de um projeto mais vasto, integrado num grande desígnio.
Portanto, a transcendência dos grandes ideais humanistas de
que Nietzsche zombava, desapareceu mesmo – de modo como
pensa Heidegger, que é seu programa que o capitalismo realiza
perfeitamente. (FERRY, 2007, p. 241).

112
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

3. O Mundo da Técnica desapossa absurdamente o humano de


qualquer influência histórica e de qualquer finalidade visível,
erradica ideais e a lógica do sentido, ainda, aqui, como o queria
Nietzsche, segundo Heidegger. De fato, quando a técnica surge, a
questão do sentido cai.
4. Este Mundo da Técnica trai o sentido de emancipação que os
modernos sonhavam. Ferry lembra que René Descartes, os
enciclopedistas franceses e Kant procuravam a emancipação – do
poder religioso sobre as consciências e das auctoritates teocráticas;
bem como das “servidões naturais, da tirania do cosmos como
no terremoto de Lisboa em 1755” (FERRY, 2007, p. 244), em vista
da liberdade e da felicidade. Mas mantêm objetivos exteriores e
superiores à técnica e às ciências da natureza.
5. Noção de progresso: progredir ou morrer. Aqui, Luc parafraseia
Heidegger (FERRY, 2007, p. 244):

No Mundo da Técnica, ou seja, a partir de agora, no mundo todo,


já que a técnica é um fenômeno sem limites, planetário, não se
trata mais de dominar a natureza ou a sociedade para ser livre
e mais feliz. Por quê? Por nada, justamente, ou antes, porque é
simplesmente impossível agir de modo diferente devido à natureza
de sociedades animadas integralmente pela competição, pela
obrigação absoluta de progredir ou perecer. (FERRY, 2007, p. 244).

Essa preocupação de Heidegger já nos anos 1930 do século XX, “que surfa
na onda eletrônica triunfantemente como Déscartes flutuou na onda mecânica”
(MCLUHAN, 1962, p. 248), observa-se ainda na descrição do poder da técnica
como situação de uma imparável “vontade da vontade” em que todas as coisas
sofrem a “retirada do ser” em vista de uma “permanente disponibilidade”.

Essa verdade é partilhada também pelo crivo-crítico do filosofar feminino de


Kristeva (2012) quando concorda que:

ficamos à mercê de um processo automático e sem finalidade,


com um poder gigante de matar. Um processo mecânico e
autossuficiente, atrelado à lógica dos meios e sem finalidades,
que desapossa os humanos e nos desliga de projetos comuns
vitais como queriam os modernos. (KRISTEVA, 2012).

Kristeva (2011) reconhece e insiste sobre o poder fetichista perigoso que se alia
à tecnologia porque favorece o automatismo do humano. No entanto, aposta na
rebeldia do Dasein enquanto não se deixa afundar no niilismo favorecido pela
secularização irresponsável. Uma irresponsabilidade diante do ser do humano e
que aflora na forma da necessidade de crer e desejo de saber:

113
Capítulo 4

Agarrando-se ao obscurantismo, a secularização esqueceu de


se interrogar sobre a necessidade de crer que está subentendido
ao desejo de saber, assim como sobre os limites a serem postos
ao desejo de morte – para viver juntos. No entanto, não é o
humanismo, são os desvios sectários, tecnicistas e negacionistas
da secularização que se precipitam na ‘banalidade do mal’ e que
hoje favorecem a automatização em curso da espécie humana.
(KRISTEVA, 2011).

Aposta, porém, em nossa opção por uma arte de questionar continuada como
exercício de nossa responsabilidade ética na sociedade e na história, cuja
memória é testemunha do tamanho da barbárie de que somos capazes:

Depois do Holocausto e do Gulag, o humanismo tem o dever


de lembrar os homens e as mulheres que, se nos consideramos
como os únicos legisladores, é somente graças ao contínuo
questionamento da nossa situação pessoal, histórica e social que
podemos decidir a sociedade e a história. (KRISTEVA, 2011).

Aposta ainda na força de um humanismo que promove “o encontro de diferenças


culturais favorecidas pela globalização e pela informatização. O humanismo
respeita, traduz e reavalia as variantes das necessidades de crer e dos desejos de
saber que são patrimônio universal de todas as civilizações.” (KRISTEVA, 2011).

Em 27 de abril de 2012, no artigo A importância de viver em um mundo


apaixonado, Julia Kristeva (2012), inspirada em seu livro Histórias de Amor (1988),
mostra a força vital do amor que não pode ser vencida pelo tecnológico, antes é
este que está a seu serviço no divã da história:

Mas é a incapacidade de amar, aquém e além da ausência de


amor, que arrasta o analisante e o analista para o fundo. E é essa
mesma incapacidade que ameaça a globalização hiperconectada,
quando esta última se ilude de poder formatar indivíduos
aparentemente cooperantes entre si e pela força de chats, de
SMS e de outros tuítes semelhantes, suprimindo a experiência
interior em que nasce e morre aquele extremo fanatismo em que
o eu e o tu se recriam em amor. (KRISTEVA, 2012).

Além do questionar com sabedoria e do conviver com a riqueza das diferenças, o


enfrentamento do Mundo da Técnica pode contar, pois, com o antídoto do amor,
esse jamais pode ser suprimido, segundo esses filósofos que se autointitulam
como do segundo humanismo.

114
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Filosofar como sentido de salvação;

as espiritualidades e a mística do bem viver para todos e tudo.

Ferry (2007, p. 250) volta à paráfrase do texto de Heidegger avaliando qual tem
sido a postura dos filósofos (amigos desapegados da sabedoria) num contexto
no qual os cidadãos até menos apaixonados pela história das ideias são tomados
pelo sentimento de dúvida e de como dominar esta dominação:

Pela primeira vez na história da vida, uma espécie viva detém os


meios de destruir todo o planeta; e essa espécie não sabe para
onde vai! Seus poderes de transformação e, eventualmente, de
destruição do mundo são, a partir de agora, gigantescos, mas
como um gigante que tivesse o cérebro de um recém-nascido,
eles estão totalmente dissociados de uma reflexão sobre a
sabedoria – enquanto a própria filosofia se afasta apressada,
tomada que está, também ela, pela paixão técnica. (FERRY,
2007, p. 250).

Ninguém, hoje, pode garantir a sobrevivência da espécie, reflete Ferry. O autor


ainda diz que muitos se inquietam e, nem por isso, alguém sabe como recuperar
o controle. Nada impede de se manter o otimismo, mas é preciso dizer que isso
provém mais da fé do que de uma convicção fundada na razão. O que se observa
é que o ideal do Iluminismo cede lugar a um medo que tende a se tornar a paixão
democrática por excelência. (FERRY, 2007, p. 252).

Quais, então, as saídas para o filosofar enquanto produtor de sentidos?, pergunta


Luc Ferry. E assinala algumas fissuras que nos parecem próprias do conceito
do princípio-esperança de Ernst Bloch. Inerentes ao humano, as fissuras, como
as heresias analisadas acima por Hinkelammert, sempre se mostram teimosas e
criativas nos contextos mais totalitários para ajudar a dominar a dominação.

Ferry (2007) sugere dois caminhos possíveis para a filosofia contemporânea:


(1) tornar-se uma disciplina técnica na universidade; (2) dedicar-se a pensar um
humanismo depois da desconstrução. (FERRY, 2007, p. 253). Como disciplina
técnica, ela se mantém nas especialidades de acordo com cada setor particular
como filosofia das ciências, da lógica, do direito, da moral, da política, da
linguagem, da ecologia, da religião, da bioética, da história das ideias orientais ou
ocidentais, de determinado período ou de tal país etc.

Ele questiona ainda que em nossos organismos de pesquisa, como o nosso


CNPq (Centro Nacional de Pesquisa), “os jovens que não se dedicam a um tema
ultra-avançado – sobre o cérebro da sanguessuga, zombava Nietzsche – não
têm a menor chance de serem considerados autênticos pesquisadores”. (FERRY,
2007, p. 254).

115
Capítulo 4

Assim a filosofia e as ciências em geral se tornaram tecnociências. Quer dizer,


em geral estão mais preocupadas com os resultados concretos, econômicos e
comerciais do que com questões fundamentais.

Espiritualidade materialista?

Quanto ao trabalho filosófico de dedicar-se a pensar um humanismo depois da


desconstrução, as barreiras são muitas. Nada de falar da vida justa, do amor à
sabedoria, muito menos de salvação. Tudo o que durante milênios constituiu o
essencial da filosofia parece jogado fora para dar lugar à erudição, à reflexão e ao
espírito crítico.

Ferry (2007, p. 256-257) não desfaz da importância dessas ações, mas acha que
não bastam para serem filosóficas na essência. Explica que, além da erudição,
da reflexão crítica e da moral, devido ao fundo tecnicista no qual mergulhamos, a
filosofia pode e deve

sustentar a interrogação, não apenas sobre a theoria e a moral,


mas insistir sobre a questão da salvação, arriscando-se a renová-
la de alto a baixo [...] para quem não crê, para quem não quer se
contentar com voltas e nem se fechar no pensamento demolidor,
de marteladas dos filósofos da suspeita, é necessário aceitar o
desafio de uma espiritualidade pós-nietzscheana. (FERRY, 2007,
p. 256-257).

O pensador humanista secular acredita nessa tarefa filosófica e dedica atenção


às saídas para uma espiritualidade e para o sagrado fundadas numa busca pela
possibilidade de uma sabedoria de imanência radical.

Já vimos, em parte, algumas saídas em seu debate recente com Marcel Gauchet,
cujos aspectos centrais resumimos acima. Mas, aqui, cremos ser importante
acrescentar mais alguns exemplos de Luc Ferry.

Espiritualidade materialista. Espiritualidade entre aspas, diz Ferry, como uma


doutrina da salvação materialista que retoma naturalmente das sabedorias gregas
a ideia do célebre carpe diem (aproveita o dia de hoje), ou como no estoicismo
e no budismo: importa esperar um pouco menos e amar um pouco mais.
Aprofundar o momento de graça, que Nietzsche chama de amor fati. É uma crítica
à esperança quando esta significa deixar sempre para o além do hoje.

Ferry (2007) credita certa dose de verdade a esta espiritualidade lembrando os


exemplos de momentos de graça descritos por Rousseau como um passeio à beira
de um rio, uma paisagem cuja beleza natural nos encanta e, no mundo humano,
quando uma conversa, uma festa, em encontro nos preenchem, os quais, mais que
a transformação da história, estão aí para serem saboreados no instante.

116
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Comenta, porém, que mais parece uma filosofia para tempo bom, em que tudo
vai bem e pergunta: mas quando se levanta a tempestade, podemos segui-la?
Que sentido pode ter o amor fati, de apenas fruição, em Auschwitz?

Lembra, então, que de Epicteto a Baruch Spinoza a tradição filosófica pensava


que o sábio autêntico não é deste mundo, a beatitude plena nos é inacessível; e
conclui dizendo que se engaja na via de um humanismo que tenha a coragem de
assumir plenamente o problema da transcendência, ou seja, há algo em nós que
é excesso em relação à natureza e à história. Um excesso que nos possibilita a
constante emancipação.

Transcendência na imanência – Theoria como autorreflexão

Em sua proposição de saídas, Ferry retoma as raízes dos antigos em Kant e em


seu fiel discípulo Husserl, quando este falava da transcendência na imanência, que
sugeria aquela noção de horizonte apresentada na discussão com Gauchet acima.

Um segundo aspecto de uma nova visão humanista é quanto ao espírito crítico


que caracterizava a filosofia moderna a partir de Descartes e que deve dar um
passo além: em vez de se aplicar apenas aos outros, ele vai finalmente aplicar-se
a si mesmo.

É a versão atual da Theoria. No tempo dos gregos era a contemplação da


ordem divina do mundo, o mundo como cosmos, bem ordenado. Uma segunda
percepção foi feita pela revolução científica moderna quando se descreve o
que é e o que deve ser com objetividade. Entra em causa uma nova Theoria do
conhecimento.

Há um zelo pela crítica objetiva e, ao mesmo tempo, uma aversão pela autocrítica,
pela autorreflexão, ou seja, constitutiva de seu olhar de si e sobre o mundo. “Sua
lucidez é admirável quando se trata dos outros, mas ela só iguala a sua cegueira
quando o caso é seu próprio discurso”. (FERRY, 2007, p. 274).

Nosso momento é da autorreflexão que, a rigor, aparece após a Segunda Guerra


Mundial, quando nos interrogamos sobre os malefícios potenciais de uma ciência
de algum modo responsável pelos terríveis crimes de guerra, representados pelo
lançamento das duas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.

Mas há um erro em nos fixarmos apenas nesta consciência que reduz a Theoria (a
autorreflexão) como única e exclusiva dimensão da filosofia, deixando de lado a
problemática da salvação.

É aí que Luc Ferry (2007) representa, em sua obra, um momento de sacralização do


humano. Nessa sacralização, a ideia de valor do sagrado remete à ideia de sacrifício
como uma dimensão quase religiosa, quando se trata da relação com o outro.

117
Capítulo 4

Agora é para o outro homem que podemos até aceitar assumir riscos, como se
fazia pela pátria ou pela revolução até há pouco. Ferry (2007) exemplifica com o
testemunho de Henri Dunant, criador da Cruz Vermelha, quando este descreve
em seu livro Un souvenir de Solferino o nascimento de sua fundação.

Foi no horror absoluto na batalha de Solferino, quando, em viagem de


negócios, desce da sua rica carruagem e passa 48 horas terríveis, com as
mãos mergulhadas em sangue, em meio a inúmeros feridos agonizantes e entre
milhares de mortos, sem a menor ajuda nem assistência.

Dunant tira daí uma lição magnífica que estará na origem da verdadeira revolução
ética da sacralização do humano: o soldado, uma vez derrubado, desarmado e
ferido deixa de pertencer a um campo, para voltar a ser um simples humano que
merece ser protegido, assistido, tratado, como dizia a Declaração dos Direitos do
Homem, de 1789: todo o ser humano merece ser respeitado, independentemente
de todos os pertencimentos comunitários, étnicos, linguísticos, culturais e
religiosos. E vai mais longe, o exemplo de Dunant nos convida a esquecer as
pertenças nacionais.

Assim, Ferry (2007) interpreta que o humanitário Dunant, nisso herdeiro do


Cristianismo, nos pede, agora, para tratar nosso próprio inimigo quando reduzido
a estado de ser humano inofensivo, como se fosse nosso amigo.

Aí a transcendência está alojada na imanência do coração humano. O sagrado


não deixa de subsistir no rosto humano. Essa tragédia pode ser presenciada num
contexto de paradoxo que vivemos hoje entre o sentimento de perda de alguém
próximo e querido e, de outro lado, a banalização da morte tornada estatística fria
e distante.

A banalização da violência aparece até mesmo como espetáculo na mídia, que


não indigna ou desperta qualquer outro sentimento de compaixão, como vimos
acima nos comentários de Lévinas e dos filósofos da América Latina.

A partir dessa visão, Luc Ferry (2007) propõe três elementos de reflexão que
ajudam o humanismo não metafísico a repensar a questão da salvação:

a. A exigência do pensamento alargado: isto significa alguém arrancar-


se de si para si e colocar-se no lugar de outrem, o que significa
fazer a autorreflexão situando-se à distância de si mesmo. Essa
distância permite um pensamento que cresce a partir do encontro
com o diferente, o que permite alargar o horizonte, pois quando nos
afastamos de nós mesmos, descobrimos nossas zonas de sombra
e ampliamos nosso olhar.
b. O autor nos sugere outro elemento que chama “A sabedoria do
amor”, o qual se configura na singularidade e não na individualidade

118
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

entre relações de indivíduos; a singularidade está ligada ao ideal de


pensamento alargado.

Afastando-me de mim mesmo para compreender o outro,


alargando o campo de minhas experiências, eu me singularizo, já
que ultrapasso ao mesmo tempo o particular de minha condição
de origem para aceder, se não à universalidade, pelo menos ao
reconhecimento cada vez maior e mais rico das possibilidades
que são da humanidade inteira. (FERRY, 2007, p. 289).

Essa singularidade que é aquilo que sustenta nossos vínculos de amor, traz um
outro elemento que é o luto do ser amado. Ele apresenta três modos de pensar o
luto da pessoa que amamos:

1. aquele jeito budista e, ao mesmo tempo, estoico de não se apegar.


Desapego que não significa indiferença, porque ambos pregam a
compaixão e os deveres de amizade, mas, precaução;
2. a visão cristã de quem crê na ressurreição dos corpos, promete que
se praticarmos com os seres queridos o amor em Deus, o amor que
neles carrega o que há de divino e não mortal, teremos a felicidade
de reencontrá-los;
3. Ferry (2007, p. 297) conclui com um apelo à contemplação, à
sabedoria do silenciar:

Cultivar, em silêncio, a sabedoria do amor; acredito que devemos,


na margem do budismo e do cristianismo, aprender, enfim, a
viver, a amar como adultos, pensando, se necessário, todos os
dias na morte não por fascinação mórbida. Ao contrário, para
procurar o que convém fazer aqui, agora, na alegria com aqueles
que amamos e que vamos perder, a menos que eles nos percam
antes. Estou certo de que, embora eu esteja infinitamente longe
de possuí-la, essa sabedoria existe e constitui o coroamento de
um humanismo, enfim, desembaraçado das ilusões da metafísica
e da religião.

Um pensamento alargado no amor supera o pluralismo de fachada que se baseia


na renúncia de suas próprias convicções, que nos convida a resgatar o que uma
visão de mundo diferente da nossa pode ter de verdadeiro, aquilo que pode nos
levar a compreendê-la ou mesmo a assumi-la em parte. (FERRY, 2007, p. 299).

Espiritualidade, mística e contemplação

Na mesma sintonia dos filósofos da atualidade propondo a reflexão, a


autorreflexão, a fruição estética, a contemplação do ser no Outro, podemos
acolher esses aspectos como reveladores do que há de mais complexo e, ao

119
Capítulo 4

mesmo tempo, tidos como mais fecundos e essenciais do fenômeno do sagrado:


a experiência de espiritualidade, de mística, de êxtase, de contemplação.

Se fizermos uma retrospectiva sobre o tema da espiritualidade como


contemplação, lembraremos que vimos, acima, o exemplo do sufismo no Islã: é
aquele fio condutor que justificou as críticas às vivências do sagrado e críticas
pedindo pela autenticidade das instituições religiosas, tanto no Oriente quanto
no Ocidente. Essas críticas foram a placenta para a gênese da filosofia e das
sabedorias em todas as suas manifestações.

Podemos lembrar José Jorge de Carvalho (apud MOREIRA-ZICMAN, 1994, p. 73)


quando, na reflexão de abertura do livro didático, explicava a nós, no texto do
debate de São Paulo, o sentido de espiritualidade, que incluía internalização da
experiência do sagrado.

Essa ideia de sagrado implica uma dimensão de subjetividade trabalhada, que


vai além da frequência dos rituais e à obediência a normas e dogmas, até mesmo
para além da expectativa formada pela comunidade. Vale relembrar aqui a
espiritualidade como uma atitude para além das fronteiras da religião; Dalai Lama
sugere “espiritualidade como aquilo que produz dentro de nós uma mudança.”
(apud BOFF, 2006, p. 14).

Vamos recordar, com José Jorge, também, outro conceito importante para a
filosofia da religião que é o de experiência mística “como a realização plena, ou
mesmo absoluta – ainda que momentânea – do caminho espiritual proposto pelas
religiões”. (apud MOREIRA-ZICMAN, 1994. p. 73).

Mas você se lembra que, sabiamente, ele ampliou o conceito para alguns casos
mais raros de mística profana na poesia, na literatura e na própria filosofia: “É
neste sentido que Dante e outros são tidos como místicos para certos estudiosos
do tema”. (FERRY, 2007, p. 299).

Outros termos semelhantes são contemplação, êxtase, até mesmo algumas


formas de relaxamento, como sugere Don Cuppit (1999), no sugestivo livro
Depois de Deus – o futuro da religião. A propósito da contemplação como
relaxamento, ele sugere a Disciplina do Vazio do Contentamento.

Cuppit (1999, p. 92) afirma que não só no Budismo, mas, também, em outras
tradições religiosas, o objetivo final da meditação e da oração contemplativa é um
estado em que todas as imagens e diferenças de formas desaparecem, e que o
sujeito também está esvaziado em um contentamento do vazio.

O calor do relaxamento e o calor relatado pelos místicos são idênticos porque


no relaxamento profundo os vasos sanguíneos capilares se dilatam e a pele se
aquece. Esse vazio do contentamento pode ser chamado de sublime serenidade.

120
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

Cuppit (1999, p. 93) aponta:

Sugiro que devemos usar a Disciplina do Vazio, a meditação


sobre o vazio e o nada universais subjacentes, como um pano
de fundo no qual montar e ver o fluxo da vida. O Vazio de
contentamento, suyata, pode assim substituir o antigo Deus
metafísico e dar – a nós, ocidentais, em particular – um novo e
muito necessário modo de colocar nossa vida em perspectiva.

Avaliemos, agora, pela filologia. A raiz mesma da palavra mística provém do


adjetivo grego mystikós, relacionado com o verbo mýo (fechar os olhos e a boca
para penetrar num mistério sem divulgá-lo) e myéo (iniciar-se nos mistérios),
significando oculto ou relativo a um mistério.

Zilles (2004, p. 230) explica, então, que o momento místico, de espiritualidade:

É o de fechar os olhos corporais, para que os olhos espirituais


vejam o que deve ser visto; e a boca, para que não diga o que
não sabe ou não pode dizer. Fechar os olhos corporais para
que, recolhido à sua própria intimidade, abra os olhos espirituais
para o abismo insondável e indizível de si mesmo e das coisas.
Assim a palavra mística indica “algo indeterminado” para além do
que se vê, se descreve ou designa, algo muito importante, que
permanece na esfera do inefável. Por outro lado, o místico parece
ver o que os demais não percebem. (ZILLES, 2004, p. 230).

Zilles (2004) nos ajuda a entender que, no estudo comparativo das religiões,
quando na mística temos uma realidade possuída “em si mesma”, distingue-se
uma mística de imanência e uma mística de transcendência.

A imanência pode ser percebida entre numerosos místicos hinduístas, para os


quais a realidade não é outra coisa que o próprio sujeito em sua profundidade
abissal, o atmã descoberto e percebido na experiência última, num recolhimento
em si mesmo, num êxtase sem diferença entre o sujeito e o objeto.

Já na mística da transcendência, como entre judeus, cristãos e mulçumanos, a


experiência desenvolve-se no interior e não fora da fé teologal. A realidade última,
concebida como transcendente, eleva o sujeito até ela. O místico parece ver e
perceber o que os demais não veem nem percebem.

Lembremos, agora, sucintamente, de alguns místicos no percurso sobre o


sagrado que fizemos ao longo de nossos estudos sobre a experiência humana
do sagrado e a filosofia. Parece que não há século forte sem um grande místico e
contemplativo; cada qual com sua peculiaridade.

121
Capítulo 4

•• Na África, como descrito em Boulaga, a mística emerge como O


ritmo é vital... O ritmo produz o êxtase, a saída de si que se
identifica com a força vital... Je danse, donc je vis! (Eu danço,
então, vivo!).
•• No mundo grego, os pitagóricos nos legaram a bíos
theoretikós, estilo de vida contemplativa.
•• Sócrates vê a filosofia como serviço a Deus.
•• Em Platão, conhecer é anamnesis, recordar pela nous (mente
humana, intelecto) a contemplação de Deus, Sumo Bem.
•• Entre os neoplatônicos, Plotino chega à ideia do sagrado
como êxtase no qual a alma se vê exaltada e preenchida
pelo Uno: “Procurai conjugar o divino que há em vós com o
divino que há no universo”.
•• Karl Jaspers (apud REALE-ANTISERI, 1990, p. 435) quando
descreve a conversão em Agostinho: “Juntamente com o modo de
pensar, muda, também, o modo de viver. Uma tal conversão não é
uma mudança de rota filosófica, que precisa ser renovada a cada
dia, mas um momento biograficamente datável, que irrompe na vida
e lhe dá uma nova base”.
Na Idade Média, a espiritualidade garantiu a fortaleza nas perseguições
devido à luta pela complementaridade fé e razão a Pedro Abelardo, aos frades
agostinianos, depois aos frades mendicantes, andarilhos de Francisco de Assis e
São Domingos contra os abusos das autoridades.

A escola mística dos agostinianos faz o contraponto aos naturalistas, propondo o


caminho místico como via autônoma com Deus, sem menosprezo da via filosófica
na relação do homem com o sagrado.

Na Idade Moderna, não podemos esquecer daquela visão mística de Descartes,


lembrada por Fritjof Capra.

Por fim, na trajetória das religiões, não podemos esquecer outros iluminados pela
experiência mística da Era do Eixo: Sidharta Gautama – Buda, Confúcio e Lao-
Tsé, Isaías e Zaratustra, Jesus e Paulo.

As constatações do pensador francês Henri Bérgson quando dizia que uma


religião sem mística não passa de ideologia, assinalam que os caminhos da
espiritualidade e mística proporcionam sentido transcendente à vida passageira.

Deus é, antes de mais nada, esse sentido. Com isso, espiritualidade e mística
fazem bem não só à vida da mente, mas também à do corpo, garantindo
equilíbrio existencial ao humano.

122
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo

O sagrado, na forma de desafio, continua esperneando em nosso mundo


desencantado, como diz Marcel Gauchet, nas experiências profanas do religioso
ou ainda da “religiosidade que se ignora”.

Muitos jovens sonhadores, que se querem modernos até o último


fio de cabelo e que se julgam libertos até o último fio de cabelo
dessas velharias que mal se podem imaginar, são místicos sem
sabê-lo, em busca de uma experiência espiritual. Festa, transe,
vertigem, estados alterados de consciência obtidos pela música
ou por substâncias adequadas: o que sempre está em causa é
o acesso a uma outra ordem de realidade. O lugar tomado pelas
drogas em nossas sociedades se explica, em grande parte, por
isso. Diz respeito à aspiração a fugir da prisão do cotidiano. Seria
preciso falar no mesmo sentido da ascese esportiva, do que está
em jogo no trabalho sobre o corpo, na ética do esforço, na busca
da superação de si. (FERRY-MARCEL, 2008, p. 12).

Ou como na espiritualidade em forma de arte de jovens ditos de periferia, descrita


em Tiago Knob (2014, p. 8), quando insere a reflexão de Criolo, pensador, poeta,
rapper da periferia de São Paulo em seu doutoramento em Coimbra, Portugal.
Fala sobre sua arte, em que nos ajuda a compreender a beleza da desgraça, e,
conscientes da beleza da desgraça, nos impõe a refletir, desconstruir e a imaginar
e recriar, a partir dos próprios sujeitos do cotidiano, uma outra realidade possível
e desejada:

Porque você nasce em um planeta que absolutamente não


é seu. E aí a arte vem pra lhe dar a beleza da desgraça. A
beleza da desgraça talvez possa ser hoje se perceber e ver
verdadeiramente que a sua alma não faz parte dos números,
e como o que importa são os números, nós acabamos não
existindo. (CRIOLO, 2014 apud KNOB, 2014, p. 9).

Knob (2014) mostra que essa arte exige, assim, do ser humano, inserção crítica
na história. Exige estar vivo! Para Criolo, exige estar vivo: “Eu diria o que a um
jovem poeta? Procure viver! Pois o Estado já o assassina vagorosamente todos
os dias. E é importante permanecer vivo. Vivo!”. (CRIOLO, 2014 apud KNOB,
2014, p. 12).

Knob (2014, p. 14) mostra que o pensar da arte de Criolo exige transitar por
espaços como quem caminha na fronteira entre “o ser e o mais ser, entre as
consequências do que é imposto e entre a demanda do cotidiano, embrenhado
nas dificuldades, nas ausências materiais e nas ausências produzidas como
inexistentes, potencializando as presenças capazes de construir um novo futuro
em um processo constante e interminável.”

123
Capítulo 4

Assim a espiritualidade como arte, nesse sentido, comenta Knob (2014, p. 14),
carrega em si, também em suas metáforas, em suas cores, em seus poemas, em
seus passos, “um momento concreto para a renovação ou reinvenção do mundo,
de comunidades locais de vida e das próprias vidas viventes das comunidades,
cidades, campos e periferias.”

Segundo o jovem pensador, Criolo, diante de sua inexistência para o mundo,


imerso e consciente do presente, partindo de onde parte, das margens e
periferias castigadas pelo sistema - refletindo o mundo, com o mundo e consigo;
inteligindo e pronunciando o mundo; se comunicando (outra exigência existencial)
através da arte -, “encontrou na poesia do rap o instrumento e a motivação não
apenas para se expressar mas para resistir e superar um modelo de vida do qual
não pertence e que tentou, de diversas maneiras, o impedir de ser em muitos
de seus momentos como humano e como vivente. A beleza da desgraça, para
Criolo, como vimos, é a beleza de compreender que você nasce em um planeta
que absolutamente não é seu, e que, consciente disso, como quem vive para
traçar um outro mundo, cria o próprio caminho, um caminho em que seja possível
caminhar e caminhar bem:

O que nos salvou do que a gente viveu nas ruas [...] foi a nossa
completa ignorância e falta de habilidade em se adequar ao que
tá posto. O que nos salvou foi a gente ser um ninguém durante
um bom tempo da nossa vida. Ou nós éramos ignorados, ou nos
éramos chicoteados, ou nós éramos um encosto de porta em
alguma pousada. E nisso a gente fez a nossa história. A gente
sofreu, a gente vomitou, a gente voltou e aceitou que a gente não
consegue fazer nada do que o pessoal fala que é pra gente fazer
pra gente ficar boneco na foto. Aí nos sobrou o que? A beleza
das artes, que pra muitos, a fraqueza da alma. Porque a gente
não consegue se esconder, a gente vai pro palco e mostra a cara.
(CRIOLO, 2014 apud KNOB, 2014, p. 14).

De crise em crise, de caos em caos, como já mostramos em outro momento, a


humanidade responde assim com nova criatividade e renovadas forças vitais aos
desafios. Essa atitude de tornar o caos fértil, de não dar a última palavra ao (des)
espero, ou à omissão, de esperar contra toda a esperança e, como dizia Hélder
Câmara, “aprender a arte de viver tornando fértil o deserto” (CÂMARA, 1980), é
que são chamados, também, os profissionais da arte do filosofar.

124
Considerações Finais

Então, valeu a pena os mergulhos sobre o fenômeno do sagrado e as relações de


possibilidades para a filosofia na construção de sentidos?

Esperamos que sim!

O que dizíamos no início é verdade: o tema é complexo, por isso, é que toca
no essencial. Você sabe que fizemos algumas opções de foco e de bibliografia.
Há muitas outras possibilidades de autores e amplitude de abordagens que
enriquecem este fascinante tema de Deus e as religiões na modernidade, era
contemporânea e na pós-modernidade.

Você pôde perceber a importância da reflexão filosófica sobre esta experiência do


sagrado no humano como uma realidade fontal de possibilidades de construção
de sentidos. E, sobretudo, de reconstrução de estruturas nas quais os sujeitos,
sobretudo os que vivem sob ameaça do morrer prematuro, possam construir a
factibilidade utópica com menos desigualdade e uma qualidade de vida com mais
saúde do ser como Dasein sempre menos reduzido a ente.

Entre os destaques temáticos sobre o sagrado, vimos que importa à filosofia:

•• jamais renunciar à busca de sentidos para o ser e o ser mais;


•• estar consciente que toda aproximação do sagrado significa
deparar-se com o mistério;
•• o mistério que a um tempo se mostra e se esconde;
•• é um transcendente/imanente que se impõe;
•• que não podemos inventar, apenas descobrir, acolher ou rejeitar.
Daí a postura de escuta, de permanente autorreflexão, de gratuidade, de
percepção dos limites. Isso se dá no encontro com o outro, que é diferente.

Diante dele, estamos diante do mistério, da surpresa, do indeterminado.

Vimos que o próprio ato do filosofar é passar no crivo. Então, vai mais esta
pergunta: Por que sacralizar o superficial, a moda, a política, o mercado como
ídolo, os centros de saber e o dinheiro como fetiche?

125
Universidade do Sul de Santa Catarina

Que a ideia de Deus não deixe que as coisas humanas se tornem absolutas.
Desejamos que você continue se inscrevendo na imensa lista de pensadoras/es
do sagrado que souberam tornar-se servidoras/es do ser e cuja memória continua
perigosa.

Seja feliz!

126
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132
Sobre o Professor Conteudista

Jaci Rocha Gonçalves possui graduação em Teologia pela Pontifícia


Universidade Católica de Minas Gerais (1975), graduação em Filosofia -
Faculdades Associadas do Ipiranga (1973), mestrado em Jornalismo e
Comunicação Social pelo Centro Internazionale Studi Opinione Pubblica (1986),
mestrado em Missiologia (Teologia e culturas) pela Pontifícia Universidade
Urbaniana (1986) e doutorado pela Pontifícia Universidade Urbaniana (1997).
É professor de Ética, Antropologia Cultural, Ciências da Religião e Experiência
do Sagrado na Unisul desde 1998. Coordena o Grupo de Pesquisa e Programa
de Extensão Revitalizando culturas. Palestrante nacional e internacional sobre
direitos humanos.

Roberto Iunskovski é mestre (2002) em História Cultural pela Universidade


Federal de Santa Catarina (UFSC ). Graduado (1987) em Estudos Sociais/Filosofia
pela Fundação Educacional de Brusque (FEBE). Assessor / Coordenador da
Ação Social Arquidiocesana de Florianópolis (ASA) de 1991 a 2006. Professor
do Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC). Professor da Unisul desde
1998. Leciona Filosofia, Antropologia Cultural, Ética, Sociologia. Coordenador
Adjunto do Curso de Graduação em Gestão de Cooperativas da UnisulVirtual e da
Gerência de Ensino, Pesquisa e Extensão da Unisul/Virtual .

133
w w w. u n i s u l . b r

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