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Universidade do Sul de Santa Catarina
Deus e a Religião -
do Renascimento
ao Contemporâneo
UnisulVirtual
Palhoça, 2014
Jaci Rocha Gonçalves
Roberto Iunskovski
Deus e a Religião -
do Renascimento
ao Contemporâneo
Livro didático
Designer instrucional
Eliete de Oliveira Costa
UnisulVirtual
Palhoça, 2014
Copyright © Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
UnisulVirtual 2014 qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.
Livro Didático
Revisor(a)
Contextuar
210.1
G62 Gonçalves, Jaci Rocha
Deus e religião : do renascimento ao contemporâneo : livro
didático / Jaci Rocha Gonçalves, Roberto Iunskovski ; design
instrucional Eliete de Oliveira Costa. – Palhoça : UnisulVirtual, 2014.
Inclui bibliografia.
Introdução | 7
Capítulo 1
Renascimento: A Novidade Moderna e a
Religião | 9
Capítulo 2
Aprofundando o Processo de Desconstrução da
Religião | 31
Capítulo 3
Era contemporânea: o sagrado, a alteridade e a
saúde do ser | 53
Capítulo 4
A Experiência do Sagrado e o Filosofar Pós-
Moderno: da Omissão às Possibilidades | 83
Considerações Finais | 125
Referências | 127
Esperamos que você também saiba mostrar as novas relações entre razão e fé,
embasadas no deísmo das ciências naturais, na imanência do pensar e sentir
humanos, na reelaboração da autonomia humana para decidir e fazer história
sem cair em estereótipos. Esperamos que consiga discernir entre um conceito
de relação com o sagrado como fonte de possível engajamento histórico e não
apenas de religião opilácea.
7
Enfim, nos dois últimos capítulos torcemos para que se permita desenhar uma
visão de filósofa/o educador(a) para posturas de tolerância e questionamentos
entre as diferentes religiões e espiritualidades. A era contemporânea nos permite
discutir o sagrado na alteridade (o Outro) por uma saúde do ser, e do ser mais.
Bons estudos!
Capítulo 1
Renascimento: A Novidade
Moderna e a Religião
9
Capítulo 1
Seção 1
Da teocracia e teísmo à afirmação do humano e
deísmo
O final da Idade Média foi marcado por uma profunda crise no mundo europeu.
No século XIV, a Filosofia Escolástica entrava em sua fase de declínio. Ao mesmo
tempo, os ideais e o poder que se encarnavam nas duas figuras teocráticas, do
Pontífice romano e do Imperador germânico, haviam entrado em descrédito nas
consciências dos mais atentos aos novos fenômenos sociais.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
É a Filosofia Moderna: uma Filosofia de homens leigos para a cidade laica tendo a
razão e experimentação científica como metodologia. Cria-se um novo caminho de
investigação e conhecimento que, superando a velha metodologia do recurso às
autoridades, passa a apoiar-se unicamente na razão e na experimentação científica.
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Capítulo 1
A Paz de Augsburgo
foi um tratado assinado
Os conflitos político-religiosos entre cristãos católicos e
entre o rei Carlos V e protestantes se espalham pela Europa. Acordos tentam
as forças da Liga de resolver esses conflitos, mas a assinatura de um tratado
Esmalcalda em 25 de
denominado “Paz de Augsburgo”, buscando solucionar
setembro de 1555
na cidade alemã de contendas religiosas na Alemanha, possibilitou que cada
Augsburgo, marcando príncipe impusesse sua crença aos habitantes de seus
o fim da luta travada domínios.
entre católico romanos e
protestantes luteranos naIsso não deu certo devido à crescente diversidade de
Alemanha do século XVI.
opções entre os protestantes (luteranos, calvinistas),
enfraquecendo grupos tradicionais. Tais tensões político-
religiosas se agravam e culminam com a “Guerra dos Trinta Anos” (1618-1648),
que gerou uma dinâmica secularizadora na Europa e as primeiras tentativas de
limitar a influência da religião na cultura. “Pouco a pouco começou um processo
de autonomia do secular em relação ao religioso, relegando a referência a Deus
ao âmbito das convicções pessoais e procurando excluí-lo da esfera pública.”
(ESTRADA, 2007, p. 113).
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Mais tarde, especialmente no século XVIII, a posição dos deístas vai ser
enfraquecida pelos novos avanços da ciência, sobretudo no campo da Biologia
e da Física. Tais avanços deram mais segurança às afirmações científicas, o que
levou muitos pensadores a dispensarem a necessidade de recorrer a Deus como
elemento para poder explicar o universo.
Aos poucos, Descartes foi ficando incomodado, pois achava que sua orientação
muito tradicionalista estava em forte contraste com a visão de mundo que surgia
do desenvolvimento científico (especialmente em Física e Astronomia) que se
ampliava em vários lugares da Europa.
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Capítulo 1
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Capra (1986) relata ainda que essa revelação deixou Descartes muito
impressionado. Ele sentiu ter feito a suprema descoberta de sua vida e não
duvidou de que sua visão resultara de uma inspiração divina.
Podemos perceber que foi num momento de revisão, de crise, em que Descartes
tem a luz para desenvolver o seu método e, dessa forma, define as bases da
ciência moderna, fundamentado na certeza do conhecimento científico.
O paradoxo dessa história é que, esse mesmo Descartes, que atribuiu à revelação
divina sua certeza na razão, promoveu a volta ao jeito de filosofar dos gregos da
antiguidade, que ignoravam qualquer revelação divina e investigavam a realidade
do mundo só pela luz natural da razão.
Com seu pensamento, Descartes acentuou o dualismo em que corpo e alma são
distintos e separáveis. Também o dualismo ontológico no conhecimento: sujeito
(res cogitans) e objeto (res extensa) são separados. Desenvolveu a ideia do animal
máquina, segundo a qual os animais são apenas máquinas em funcionamento
(STACCONE, 1989, p. 72):
15
Capítulo 1
Para o século XVII, tal pensamento foi providencial e trouxe grandes avanços à
humanidade, mas, também, teve seus efeitos colaterais. Perdeu-se a natureza
como base de referência, o que foi compensado pela curiosidade científica, que
serviu de autoafirmação do ser humano.
O mistério vai ser tratado como mais um problema a ser resolvido, o que escapa
à natureza do próprio mistério, como mais tarde veremos, no discernimento sobre
o mistério pelas escolas contemporâneas de Gabriel Marcel e outras.
Descartes usou, então, métodos racionais para provar a existência de Deus. Tendo
por princípio que o conhecimento humano é intuitivo, inato e independe das coisas,
e partindo da desconfiança universal, utiliza o caminho da dúvida metódica, ou seja,
não aceitar nada que não ofereça garantia absoluta de verdade.
Descartes passou a duvidar de tudo para poder ter a certeza e a clareza. Duvida,
também, de Deus, para depois ter a certeza de sua existência. Segundo ele,
Deus é a fonte criadora e o fundamento de toda verdade. No entanto, Descartes
transfere a certeza original de Deus para o homem, para a razão humana.
1. ideia de Deus exige como causa a realidade formal que pensa igual
a Deus;
2. o ser que tem a ideia de Deus e não é Deus, tem que ser causado
por Deus;
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
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Capítulo 1
Para Pascal, ao lado da razão há, também, a inteligência do sentimento, cada qual
com seus limites. Assim, conhecemos a verdade, não só pela razão, mas, também,
pelo coração. Em seus Pensées (Pensamentos – conjunto de reflexões acerca do
sofrimento humano e da fé em Deus), Pascal diz ( apud ZILLES, 1991, p. 34):
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Para Pascal, são as misérias humanas que demonstram sua grandeza, ou seja,
suas contradições mostram que o “homem transcende infinitamente o homem” e
que nenhuma posição humana pode chegar à plenitude e ao repouso. (ZILLES,
1991, p. 38).
Pascal não procura certeza matemática, por outro lado, também não se trata
de certeza irracional. Ele tem certeza de que o homem só reconhece Deus pelo
coração: “É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é fé: Deus
sensível ao coração, não à razão”. (Idem).
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Capítulo 1
Por fim, podemos dizer que Pascal é a antítese do Cogito, ergo sum! (Penso, logo
existo!) de Descartes, ao afirmar seu Credo, ergo sum! (Creio, logo sou!). Neste
caso, a fé é a base da razão.
Seção 2
David Hume – o empirismo e a religião natural
O escocês David Hume (1711-1776) é um dos grandes pensadores no campo
da Filosofia da religião e das reflexões modernas sobre o sagrado. Suas críticas
aprofundam o processo iniciado pelo deísmo e os encantamentos com a religião
natural, como vimos acima. Hume avalia também as posições do teísmo. Ele
criticou as clássicas provas a favor da existência de Deus, as tradicionais noções
da natureza de Deus e o poder divino, a relação entre moralidade e religião, e a
racionalidade da crença em milagre.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
21
Capítulo 1
Seção 3
Kant e Deus: liberdade, imortalidade e
existência de Deus
Compreender o pensamento do alemão Immanuel Kant (1724-1804) é essencial
para a compreender a mentalidade moderna. Dentre outras contribuições, Kant
tem sido a inspiração para o conteúdo da ciência da ética contemporânea.
Depois das mudanças de paradigma promovidas por Descartes e os filósofos
da modernidade, Kant, no século XVIII, promove também uma reviravolta na
teoria do conhecimento ao demonstrar que é a partir do sujeito que se orienta o
conhecimento e não do objeto.
Sua preocupação inicial foi realizar um exame crítico acerca do que a razão
pode ou não pode afirmar. Ele “reflete sobre a possibilidade de uma mudança
de método que lhe permita alcançar em filosofia a mesma certeza que outros
alcançaram com a matemática e a física”. (STACCONE, 1989, p. 79).
Sujeito cognoscente Em sua Crítica à Razão Pura, Kant mostra como o material
é quem conhece / recebido de fora pelos sentidos é transformado pela ação
busca o conhecimento
do objeto – sujeito do
do sujeito cognoscente em objeto de conhecimento.
conhecimento. Daí, a tal reviravolta na teoria do conhecimento em que “a
coisa em si escapa à possibilidade do conhecimento. Só
podemos conhecer os fenômenos.” ( ZILLES, 1991, p. 45-49). Sobre o mesmo
objeto de análise, Marilena Chauí (2002, p. 313) explica:
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
A solução aparece na sua visão ampliada de razão, pela qual a razão pura me
possibilita conhecer o que é; e pela razão prática, sei o que deve ser. E é no
conjunto de princípios que constituem a consciência moral (razão prática) que se
encontra a base para apreender os objetos metafísicos.
Como vimos, é por meio de intuições de caráter moral que entramos no mundo
das coisas suprassensíveis, e Kant apresenta por esse viés três postulados
metafísicos: a liberdade, a imortalidade e a existência de Deus.
23
Capítulo 1
Enquanto a razão teorética nos permite conhecer este mundo real, fenomênico,
a razão prática nos conduz até Deus, ao reino das almas livres e imortais. A
lei moral conduz a religião através do conceito de Bem Supremo, isto é, ao
conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Hegel defende a convergência entre razão e religião. Diferente de Kant, diz que a
religião não é simplesmente uma questão pertencente à moral. “Deve-se estudar
a religião como fonte do conhecimento, como inspiração para a própria filosofia”.
(ESTRADA, 2003, p. 134).
25
Capítulo 1
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Hegel não tenta demonstrar a existência objetiva de Deus. Antes indaga como
o homem chega a pensar Deus. Interpreta isso a partir da confluência das
possibilidades humanas. A raiz é a consciência da própria divindade. Com isso só
se chega a Deus como presente, na imanência, não ao Deus transcendente.
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Capítulo 1
A essência do homem, como espírito, é ser espelho de Deus, diz Hegel. O pensar
é elevar-se do particular ao geral. No pensamento desaparece todo particular. O
espírito eleva-se do causal e temporal para o infinito e eterno. O geral, no qual a
individualidade imerge, é, para Hegel, “a ideia divina”. (ZILLES, 1991, p. 74).
O culto também pode ser descrito como elevação a Deus. Trata-se de elevação
para além do finito, para a união com Deus. Hegel até chega a afirmar que a
Filosofia se justifica pela devoção e pelo culto, pois a elevação religiosa pertence
ao fundamento da experiência do filosofar. É o que diz no Prefácio à Filosofia do
Direito: “a verdadeira Filosofia conduz a Deus”. (apud ZILLES, 1991, p. 74).
Hegel pensa a fé, o culto e a devoção não a partir do homem, mas a partir de
Deus. A fé não é, para ele, a maneira mais elevada de o homem ter certeza de Deus,
pois esta pertence à Filosofia. “No processo dialético do reconhecimento de si, a
religião é um momento de passagem, e sua verdade deve ser suprassumida num
conhecimento superior, que é a Filosofia”. (STACCONE, 1989, p. 92).
Hegel tentou superar a divisão entre a ciência e a fé, entre o Deus da Bíblia e o
absoluto filosófico através da mediação. Entretanto, absorve a fé na ciência e
o Deus bíblico do absoluto filosófico. Não soube manter a diferença adequada
entre Deus e o homem.
Hegel tem razão quando insiste em unir Deus e homem. Deus nunca é produto
do homem. Também não se pode identificar a razão divina e a humana, embora
sejam inseparáveis. Em toda a unidade deve manter-se a diferença entre a ciência
divina e humana.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Hegel, entretanto, buscou a mediação para ver Deus e mundo numa unidade.
Isso significa que o Deus transcendente é imanente ao mundo. Deus está neste
mundo e o mundo está em Deus, o infinito no finito. Deus tornou-se próximo.
Platão situara Deus (os deuses) fora do tempo. Aristóteles também acentua sua
imutabilidade como Ato Puro. É o primeiro motor imóvel.
Segundo Hegel, Deus não é imóvel, imutável, estático. É histórico, ou seja, é vivo
e atuante na história. Como eterno, Deus funda a história do homem e do mundo,
sendo, ao mesmo tempo, origem, centro e futuro do homem e do mundo. A
religião tenta apresentar o espírito absoluto como revelação de Deus.
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Capítulo 2
Aprofundando o Processo de
Desconstrução da Religião
31
Capítulo 2
Seção 1
Feuerbach e Marx: o sagrado na religião
alienação e/ou transformação
A crítica à religião vem desde os antigos gregos com a desmistificação, a
suplantação de muitos mitos pela reflexão e a lógica racional. É inclusive a
gênese da Filosofia, como vimos. Na modernidade, o desenvolvimento científico
mais uma vez abala as muitas crenças tradicionais.
Fonte: MEDIA-2.WEB.BRITANNICA.(1992).
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Ludwig Feuerbach:
Esta é a crítica essencial que Feuerbach faz à religião: é que ela é uma alienação.
Segundo Feuerbach, os seres humanos vivem, desde sempre, numa relação com
a Natureza e, desde muito cedo, sentem necessidade de explicá-la, e o fazem
analisando a origem das coisas, a regularidade dos acontecimentos naturais, a
origem da vida, a causa da dor e da morte, a conservação do tempo passado na
memória e a esperança de um tempo futuro.
Para isso, criam os deuses. Dão-lhes forças e poderes que exprimem desejos
humanos. Fazem-nos criadores da realidade. Pouco a pouco, passam a concebê-
los como governantes da realidade, dotados de forças e poderes maiores do que
os humanos.
33
Capítulo 2
é o finito, é o homem
Feuerbach quer uma filosofia que possa satisfazer todas as exigências humanas
e considerar o homem em sua realidade concreta material. Deixa de lado o
idealismo hegeliano, dando aos sentidos a responsabilidade de dar essência às
coisas.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
A lacuna que permanece é a reflexão sobre outros aspectos essenciais do ser humano,
de modo geral, o próprio sentido da existência. Para Feuerbach, o amor ao humano
como fundamento é que torna o amor um poder verdadeiro, sagrado, seguro.
Karl Marx:
A análise de Feuerbach foi retomada por Karl Marx (1818-1888). Segundo Marx
(apud ZILLES, 1991, p. 124), “Feuerbach demonstrou que a filosofia não é outra
coisa que a religião formulada em pensamento e realizada de maneira pensante”.
É válido, neste momento, lembrar que a reflexão desenvolvida por Marx, como
por qualquer outro pensador, em torno da religião, ou qualquer outro tema, deve
ser contextualizada em seu período histórico-cultural.
35
Capítulo 2
Marx aprendeu sua dialética com Hegel, mas ao contrário deste, Marx não tem
o objetivo apenas de entender o processo histórico, mas pretende transformá-
lo. Critica Hegel por se refugiar no pensamento abstrato. Rejeita seu idealismo,
substituindo-o pelo materialismo.
Para Marx, o ser humano pode ser compreendido só em sua relação imanente,
objetiva, com a natureza. O homem é “diretamente um ser natural” em sua
essência antropológica específica, de ser ativo, capaz de objetivar e “transcender”
a natureza. (STACCONE, 1989, p. 98).
Tal mudança não significa deixar de lado a razão e sua extraordinária capacidade
reflexiva e crítica, muito pelo contrário. Trata-se de superar a visão dualista que
quebra o ser humano e o cosmos separando o espiritual e o material, o corpo da
alma, o imanente do transcendente, como se pudessem subsistir isoladamente.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Com isso, Gramsci deixa claro que o erro do intelectual consiste em acreditar
que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar
apaixonado. Nesta perspectiva, a filosofia da práxis supera o idealismo e o
materialismo tradicional.
O ponto de observação, a partir do “homem real” que produz a sua vida, permite
reconsiderar criticamente todo conhecimento produzido pelos homens, ao longo da
sua história. “Totalmente ao contrário do que ocorre na Filosofia alemã que desce
do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu”. (MARX apud ZILLES, 1991, p. 37).
Por outro lado, Marx fez outra afirmação que, em geral, não é lembrada. Disse
ele que “a religião é a lógica e a enciclopédia popular, espírito de um mundo sem
espírito”. (apud CHAUI, 2002, p. 313). Com esta frase Marx procurou mostrar
que a religião também pode ser uma forma de conhecimento e de explicação
da realidade, usada pelas classes populares – lógica e enciclopédia – para dar
sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações. É o
espírito no mundo sem espírito que lhes permite, periodicamente, lutar contra os
poderes tirânicos.
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Capítulo 2
Para Marx, na alienação religiosa, o ser humano projeta para fora de si, de
maneira vã e inútil, seu ser essencial, e se perde na ilusão de um mundo
transcendente. A religião, neste contexto, faz do sujeito o predicado, alçando
Deus sobre as nuvens, em vez de dar-se conta de que o céu está sobre a terra.
O crente suspira por uma felicidade ilusória para esquecer sua desgraça presente.
Neste sentido, a religião é “ópio do povo”. Para eliminar a alienação religiosa é
preciso eliminar todas as condições de miséria que a originam. A contradição
fundamental não está, pois, na religião, e sim no nível do modo de produção de
bens materiais (aspecto econômico da sociedade).
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Se Santo Agostinho pode “batizar” o grego Platão e São Tomás de Aquino pode
“batizar” Aristóteles, por que na contemporaneidade não se pode “batizar” Marx?
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Capítulo 2
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Neste contexto, para ilustrar e instigar nossa reflexão, vamos nos reportar a
um pensamento inspirado no alemão Schopenhauer (1788-1860): “religião é a
filosofia da massa, ao passo que filosofia é a religião dos homens seletos, isto é,
dos grandes intelectuais”. (apud GRAMSCI, 1991, p. 117).
Seção 2
Augusto Comte: breve espiada na ideia religiosa
do positivismo
Outra janela filosófica pela qual podemos observar a relação entre razão/ciência
e experiência do sagrado/religião é o pensamento do francês Augusto Comte
(1798-1857), o fundador do positivismo.
41
Capítulo 2
Trata-se da concepção de uma religião que tem como ser supremo a própria
humanidade, e baseada nos princípios do positivismo. Explica Comte (2000, p. 124):
O absoluto não importa mais. Somente o que é relativo ao mundo natural faz
parte dos interesses do homem revestido do espírito positivo: “em uma palavra,
a Humanidade substitui definitivamente a Deus, sem esquecer jamais os seus
serviços”. (COMTE, 2000, p. 302).
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Religião da humanidade:
Apenas como indicativo, poderíamos ampliar este diálogo com Comte abordando,
por exemplo, a fórmula sagrada do positivismo que tem por princípio o amor.
Segundo Staccone (1989, p. 256):
43
Capítulo 2
Seção 3
Nietzsche e Freud: o momento forte da crítica
de desconstrução sobre a relação com o
sagrado
O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) marcou com suas ideias o momento
mais forte de desconstrução dos ídolos da metafísica. Segundo Luc Ferry
(2007, p. 232), foi o “primeiro filósofo que destruiu integralmente e sem o menor
resquício da noção de ‘finalidade’ a ideia de que haveria, na existência humana,
um sentido a buscar, objetivos a perseguir, fins a realizar”.
Quando se fala em Nietzsche, uma das primeiras ideias que surge é a famosa
expressão “Deus está morto”. Para Nietzsche, a fórmula “Deus está morto”
exprime uma decisão existencial do próprio homem. Conforme análise do filósofo
Oswaldo Giacóia (2005), ele não reivindicou para si a autoria da morte de Deus. O
que Nietzsche faz é mostrar para o homem moderno que Deus está morto e que
nós todos somos seus assassinos.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Friedrich Nietzsche:
Nietzsche traz à luz uma realidade, uma experiência que é intrínseca e inegável
do pensamento iluminista. O homem moderno colocou o mundo e a história sob
o signo da razão esclarecida, que é razão da absoluta autodeterminação, ou seja,
que não admite nenhum tipo de submissão ou determinação externa. Portanto,
necessariamente sem Deus, pois, este seria uma forma de manter uma atitude de
subordinação.
45
Capítulo 2
Para nascer o novo é preciso que o velho morra. Primeiro, é preciso destruir os
valores tradicionais. O niilismo é uma passagem obrigatória. Com a transmutação
de todos os valores, só pode ser superado por meio da criação de novos valores,
que têm seu fundamento na vida, na natureza. É a aceitação radical da vida e do
mundo. Nietzsche encontra a superação do niilismo na ideia do eterno retorno.
Essa é a ideia das ideias.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Nietzsche faz uma observação que nos dá uma ideia de sua leitura das religiões
“ao descrever a Bíblia hebraica como o melhor livro do mundo, porque é o livro
da única religião que, acima de todas as outras, não é apenas um sistema de
adoração, mas algo ainda maior – uma discussão com ela mesma”. (CUPITT,
1999, p. 52).
Um Super Homem:
Mais uma vez aproveitando das reflexões de Giacóia (2005), podemos aprofundar
a questão do que deve surgir depois de assumir verdadeiramente a postura
necessariamente ateísta da modernidade. É o “Além do homem” de que fala
Nietzsche – traduzido por muitos como Super Homem –, que indica a superação
do homem, desse homem do jeito que foi produzido na história do ocidente. É a
possibilidade do ser humano encarar a sua existência e a vida sem as próteses e
sem os consolos de que fez uso até agora para suportar a existência.
47
Capítulo 2
Por fim, é importante ter claro que Nietzsche não se dispõe a reconhecer que
a religião tem sido uma poderosa ferramenta para o autodesenvolvimento e
amplia o alcance da consciência. Ele não está muito interessado em explorar as
diferentes espiritualidades e diferentes formas de ser um indivíduo e construir o
próprio mundo.
Nietzsche fala apenas de forjar, a partir das várias energias conflitantes dentro de
nós, um tipo de ser humano unificado, livre, ativo e plenamente afirmativo, o Além
do Homem. Segundo Cupitt (1999, p. 86):
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
São inúmeros os caminhos e personagens que podem nos ajudar a pensar sobre
a experiência do sagrado e da religião. Visitamos, agora, rapidamente, mais um
desses caminhos trilhados pelo pai da psicanálise. Em Sigmund Freud (1856-
1939), manifesta-se uma crítica religiosa ateia.
Para Freud, o homem é um ser insatisfeito, que deseja sempre maior felicidade.
Mas entre seu desejo e a realidade há enorme distância. O infinito, contudo, não
passa de um produto do desejo e da fantasia do espírito humano, pois é apenas
uma ideia, ou seja, uma ilusão.
Para Freud, a questão não é se Deus existe, pois de antemão não existe e sequer
foi problema existencial explícito para ele. Freud quer defender o homem por
meio da tentativa de descobrir a gênese psicológica da religião e da ideia de
Deus. Segundo Zilles (1991, p. 139):
49
Capítulo 2
Freud diz que na primeira infância ocorrem repressões que debilitam o ser
humano e é quando a criança deve exercer as primeiras renúncias dos instintos
e impulsos. A neurose é a fuga do adulto ao mundo infantil. Aí, retornam os
conflitos que não foram resolvidos na infância. Freud vê a religião como regressão
do adulto ao mundo ideal da criança. Assim, a origem da religião é questão
meramente psicológica.
Segundo Freud, a neurose é o lugar para onde costumam se retirar aqueles que
estão iludidos da vida ou que se sentem fracos para enfrentá-la. Na religião, o
homem foge da dura realidade, escondendo-se num mundo ideal da infância. Por
isso, a religião é ilusão.
A questão é que Freud não distinguiu a essência religiosa de sua prática histórica
e patológica. Simplesmente identificou a prática religiosa e conteúdos da fé com
neurose e, sem mais, faz isso a partir de algumas conclusões analógicas. (ZILLES,
1991, p. 157).
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
51
Capítulo 2
Chama a atenção para não temer a cultura europeia, mas, ao contrário, a ousar
o humanismo: “construindo cumplicidade entre humanismo cristão e aquele que,
tendo surgido do Renascimento e do Iluminismo, ambiciona a arriscar as vias
perigosas da liberdade.”
Assim ela reafirma que só Freud consegue colocar em relação a loucura humana
e a necessidade de valores.
52
Capítulo 3
53
Capítulo 3
Seção 1
Religar-se ao Ser: o sagrado como saúde fontal
na construção de sentidos
As águas parecem turvas e exigem de você fôlego redobrado neste mergulho
filosófico sobre o olhar do fenômeno humano do sagrado na era contemporânea.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Um fato é que o ser humano, ele mesmo passa a se ver como um ser sagrado.
Esse fato gera nova sensibilidade e dor diante das grandes carências de fome
física, fome de estética, quer dizer, fé, arte e beleza para fruir a vida.
humildade e diálogo
55
Capítulo 3
Aliás, segundo vimos em Martin Heidegger, em seu clássico Ser e Tempo, essa
construção de sentidos nos é exigida pelo nosso modo-de-estar-no-mundo como
Dasein. Estar como Dasein significa que somos seres-que-estão-aí-e-sabem-que-
estão-aí. E é pelo desenvolvimento desse modo-de-estar-consciente no mundo
que nós podemos transformar nossa vivência em experiência como têm feito os
africanos.
Luc Ferry (apud CARELLI, 2008), na entrevista sobre a expectativa que se tem quanto
à filosofia e ao exercício do filosofar sobre a produção de sentido, foi incisivo:
num mundo no qual a religião não é suficiente para dar ao homem as respostas
que ele procura.
Em sua obra mais recente, Do amor - uma filosofia para o século XXI, Ferry (2013),
refaz essa ponderação quando assume a descrição do crente Denis Moreau sobre
o patente fracasso das filosofias da morte, com suas “falsas respostas”:
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
57
Capítulo 3
Cientistas de todos os campos do saber estão sendo levados por este contexto
à busca de respostas para as grandes indagações existenciais no campo da
religião. E reconhecem que só numa visão de síntese as partes adquirem seu
devido valor e todo o seu sentido.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Na sua obra O Fenômeno Humano, num período caótico para a Europa, Teillard
de Chardin (1955, p. 238) assume a linguagem poética, ainda no exílio, para
descrever um novo tempo que está por nascer: “Terra fumegante de usinas, terra
trepidante de negócios. Terra vibrante de cem novas irradiações. Este grande
organismo vive em definitivo para e por uma alma nova.” O cientista e filósofo,
pensador religioso grita no caos pelo novo (CHARDIN, 1962, p. 54):
59
Capítulo 3
No entanto, quando suas descobertas sobre o átomo foram usadas pelos norte-
americanos para construir a bomba atômica, a decepção de Einstein com a
fragilidade e a incapacidade do ser humano de usar os conhecimentos científicos
para o progresso do mundo foi tão grande que ele voltou a acreditar em Deus.
60
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Essas posturas de diálogo humilde entre os ditos do espaço das razões da razão
com os do espaço das razões da fé são posturas difíceis, mas prosseguem na
atualidade como aprofundaremos mais à frente.
Collins não encontra respostas na ciência para tais questões mais profundas
e reflexivas sobre a vida, concordando com as limitações da “filosofia sobre o
morrer” ponderadas acima pelos filósofos. No discorrer da obra, Collins (2007)
cita vários fatos e acontecimentos de sua trajetória até se tornar cristão, e ele que
se posicionava como cientista ateu se sentiu em desconforto, quando uma idosa
enferma durante uma conversa perguntou em que Collins acreditava. Ali começou
um processo conflitante de indagações, de questionamentos sobre o sentido de viver.
Collins procurava respostas. Lia narrativas bíblicas e não bíblicas como os fatos
da história da Palestina durante o século I e se fascinava com as evidências
históricas da existência de Jesus Cristo (COLLINS, 2007, p. 227). Mas foi a cruz
que, segundo o autor, faz Jesus se tornar a presença que preenche o seu vazio
61
Capítulo 3
Seção 2
O sagrado nos debates do século XXI:
ontoteólogos, ateístas e a saúde do ser
Além desse diálogo entre cientistas e espiritualidades, precisamos aprofundar o tema
da Experiência do Sagrado entre os filósofos contemporâneos sob o foco do viés
ontológico da saúde do ser tanto no século XX e, sobretudo, na virada do milênio.
Já reiteramos com Campbell, Eliade e Otto que este espaço de relação com o
sagrado tem sido privilegiado na história humana como gerador de sentidos.
Joseph Campell (2004, p. 491) diz ser privilégio porque no espaço do sagrado
os símbolos não podem ser inventados, apenas encontrados. Eles atuam por si
mesmos nas pessoas que os acolhem como sabedoria e se tornam vigorosos
para a saúde integral do ser:
Eliade (1995, p. 19), por sua vez, dá uma carga ontológica qualitativa a esta
experiência de totalidade, de relação com o Uno, porque o sagrado é poder
extensivo a toda a realidade: “O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada,
quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. [...] É, portanto, fácil
de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da
realidade, saturar-se de poder.”
62
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Ontoteologia?
Vale, por isso, retomar o momento qualitativo de lucidez filosófica sobre o ser
do humano no apogeu da Idade Média. No diálogo com a visão de Aristóteles,
Tomás de Aquino qualifica de modo paradigmático a visão do Estagirita quando
mostra que o Ser é mais que a essência. Por isso Reale-Antiseri (1990, p. 557)
lembra da metafísica de Tomás como metafísica do ser ou do actus essendi. Com
efeito, o ser é o ato que realiza a essência, que em si mesma não passa de um
“poder ser”. A metafísica, portanto, ocupa-se de uma filosofia do ser que permite
às essências realizarem-se e transformarem-se em entes.
63
Capítulo 3
Heidegger, com o foco no ser, faz emergir outro aspecto importante que é o
relacional. Essa percepção da diferença ontológica entre ser e ente leva os
filósofos seguidores de Tomás de Aquino a retomar o tema da analogia do ser.
O ser indeterminado não se deixa estabelecer como grandeza unívoca. O ser
indeterminado ou passará ao ser participado ou ao ser subsistente. Assim, o ser,
na sua própria unidade, traz uma diferença e na diferença traz novamente uma
unidade de relação.
Ontoteologia e a hermenêutica
Scannone (2004, p. 295) mostra que essa circularidade comunicativa inerente ao ser
implica uma nova relação ética inspirada na analogia do Deus vivo como comunicador;
Heidegger permite assim superar a visão do absoluto como fonte de dominação:
64
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
No horizonte do mistério
65
Capítulo 3
O mistério, ao contrário, está dentro e fora de nós. O mistério nos envolve. Pode
ser reconhecido, aceito ou rejeitado. No caso do humano em relação ao sagrado,
Deus aparece como mistério, que a rigor não conhecemos, mas podemos
reconhecer e até aceitar como sentido de nossa vida. Pois bem, diante desse
tema do ser, também aqui, há o risco do racionalismo, porque o Ser pertence ao
âmbito do mistério, do indizível, já que é o fundamento da própria possibilidade
de todo discurso.
66
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
A responsabilidade filosófica
Tenzin Gyatso, o Dalai Lama, monge budista, uma espécie de papa tibetano em
exílio pelo mundo desde os 16 anos, no livro Ética para um novo Milênio, insiste
nesse compromisso com relações vitais: “objetivo da religião como um todo é
tornar mais fácil o exercício do amor, da compaixão, da paciência, da tolerância,
da humildade, da capacidade de perdão e de todas as qualidades espirituais.”
(LAMA, 2000, p. 248). E, ao distinguir a espiritualidade como uma atitude para
além das fronteiras da religião sugere que “espiritualidade é aquilo que produz
dentro de nós uma mudança.” (apud BOFF, 2006, p. 14). E conclui no capítulo
final com um Apelo:
67
Capítulo 3
68
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Sagrado no humano:
69
Capítulo 3
Eles estão aí, seja na ordem da verdade, da moral, da cultura ou do amor. Ferry
propõe-se, então, a mostrar que o reinvestimento do vocabulário religioso lhe
parece inevitável. E há três razões pontuais para isto:
70
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
e moral laica; ela vai se reinstaurar a partir do futuro, e não mais em função do
passado: “Portanto, como um horizonte, para usar as palavras de Husserl, e não
mais como fundamento, para usar aquelas dos defensores do teológico-ético.
Não creio que haja um fim do religioso, mas uma reinterpretação do religioso
nessa relação com a lei.” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 70).
Sagrado e sacrifício:
Esses diálogos tem mostrado uma busca filosófica que pede coerências novas
mesmo nessa postura onde a divinização do humano não significa que vamos
tomar o lugar dos deuses. Ao contrário, exige que a vida humana seja enquanto
tal sagrada que demanda uma ética de amor que se doa: “não é isso que julgo
sagrado, dado que o sagrado de que falo pode exigir, às vezes, o sacrifício
da vida” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 73). Por isso, Ferry discorda do filósofo
Lipovestky, quando, em seu livro Crepúsculo do Dever, sugere que a noção de
sacrifício desapareceu da problemática moral de nossos contemporâneos. Ferry
explica (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 32-33): “Penso que, ao contrário, ela está
presente, mas que simplesmente os motivos do sacrifício se humanizaram”.
71
Capítulo 3
Daí essa estrutura do sagrado que parece ser inerente, essa encarnação de um
invisível no visível, que recebemos como algo que tem caráter de divino. Não
produzimos esses valores, eles são transcendentes. Ferry finaliza confessando
que “na verdade tenho, em alguns casos, uma dificuldade enorme em contestá-
los. [...] A autonomia se situa, no máximo, na escolha ou no reconhecimento de
certos valores e não de outros.” (FERRY-GAUCHET, 2008, p. 75).
Seção 3
O sagrado nas sabedorias extraeuropeias: as
tradições e a saúde do ser da alteridade-vítima
Como já percebemos, a extensão do interesse pelo debate sobre o fenômeno do
sagrado e sua ligação com a produção de sentidos tem alcançado proporção de
demanda planetária.
72
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
E diz que o seu estudo sobre Tereza D’Ávila, mística católica espanhola do século
XVI, é um exemplo de sua contribuição a esse percurso de atravessamento. Esse
exercício, segundo a filósofa, é mais que o diálogo inter-religioso porque visa a
promover o diálogo entre quem crê e quem não crê, principalmente na Europa.
Júlia deixa claro que essa postura de transavaliação vale para toda a tradição,
tanto para as três religiões monoteístas como para o taoísmo ou o confucionismo
e se estende também para a cultura clássica. A responsabilidade pelo exercício
da transavaliação vai bem além das fronteiras da filosofia:
73
Capítulo 3
E aqui Kristeva abraça a abordagem antropológica que tem apontado para essa
direção do crer como necessidade no humano:
A experiência do sagrado:
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
O dado existencial tem um dinamismo interno que pode facilmente ser suprimido
por uma lógica exterior do discurso desligado da realidade. Tentar raciocinar
sobre Deus, ainda que para justificá-lo, é inverter os papéis. De tal sorte que
Gabriel Marcel pode afirmar, em resumo, que “a teodiceia é ateísmo”.
Assim, muitas situações não são explicadas pela razão, mas precisam ser
assumidas e vivenciadas – é o caso do posicionamento frente às situações-limite
inerentes à condição humana, referenciadas com frequência ao longo de nossos
estudos. Segundo Gusdorf (1980, p. 258):
75
Capítulo 3
Não é fugindo dos seus limites, mas assumindo-os que o ser humano poderá
compreender o seu ser. Daí a contribuição decisiva dos mitos que ampliam as
possibilidades de tal compreensão mediante a abertura para o encontro com
o mundo. Conforme aprofunda Kierkegaard, o filósofo da angústia, e retoma
Gusdorf (1980, p. 263), “o homem do mito tem prolongamentos no seu horizonte.
Ele existe fora de si, em participação com o mundo, com os outros. A estrita
razão não parece permitir que se supere um individualismo intelectual”.
Este bom contato inicial com a realidade, base da intuição para a existência
pessoal, não tem valor em nível da razão. O afastamento racionalista da realidade
obscurece o sentido do ser, pois, quebra sua unidade. Para a revitalização do ser,
é imperativo superar essa desintegração racional, ao qual se opõe, portanto, o
sentido de integração, ou antes, de reintegração, constitutivo da realidade mítica.
O pensamento, no contexto da realidade mítica, mostra-se solidário com o corpo,
que por sua vez é uma inteira projeção rumo ao mundo.
Por outro lado, o mito intervém para garantir a atividade da imaginação como
horizonte humano, sem se perder, também, nas puras necessidades cotidianas
de sobrevivência. A imaginação é dos órgãos da consciência mítica e, desenha, a
cada momento, o horizonte da atividade, da ação. Como afirma Gusdorf (1980, p.
272) “ela nos insere no mundo, muito mais do que dele nos afasta.”
76
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Não justificamos o mito, mas, ao invés disso, ele é que nos justifica. Ele esclarece
uma situação na qual bruscamente temos consciência de nos encontrarmos num
beco sem saída. Os principais temas abordados pelos mitos focam diretamente
os nós da realidade humana e esta sabedoria reintegra-nos na totalidade, em
virtude de uma função de reconhecimento ontológico.
77
Capítulo 3
Aliás, como vimos em momentos cruciais da história, foi o sagrado que inspirou
a ultrapassagem das crises civilizatórias como na Era do Eixo, já estudadas por
nós a partir de Karl Jaspers. Nessas ocasiões críticas, nesses momentos cruciais,
a exigência feita às religiões por mais autenticidade e pela superação de suas
contradições intrínsecas como produtoras de sentido em situações caóticas,
através do testemunho ético de seus sábios promoveu a gênese de grandes
religiões e filosofias.
Toda vez que a filosofia assume seu caráter ético-crítico aos comportamentos e
lógicas injustas dos sistemas estabelecidos, ela aparece como incômoda e corre
o risco da perseguição, do exílio e do pagamento do preço pela indignação ética.
É o que se viu ao longo da história, desde Sócrates, Bartolomeu de Las Casas,
Gramsci e os milhares de pensadores orgânicos torturados e exilados ao longo
da história, inclusive, nos países do Terceiro Mundo.
78
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
dito, por exemplo, que o mal é o não ser, a privação de algo que deveríamos ter.
O mal era entendido como uma imperfeição ou uma deformidade. Tal postura
se verifica no pensamento grego (Parmênides, Platão, Aristóteles), em que a
natureza é mudança e permanência: a mudança se atribui ao não ser; o ser pleno
é imutável. Havia uma concepção intelectualista da moral, na qual o mal era um
erro, fruto da ignorância.
Plotino identifica o não ser com a matéria e o mal. As coisas são deformadas e
imperfeitas. O mal é, então, uma realidade inerente às coisas, o seu momento do
não ser e seu princípio material. As coisas, mistura de ser e de não ser, carregam
o mal em si mesmas. Em contrapartida, o bem se identifica com a ordem ideal
do ser, constituída pelas formas ideais das coisas. Teríamos, assim, um mundo
inteligível, dirigido pelo bem, diante deste mundo encharcado de males e
imperfeições.
Aqui, temos exposta a categoria essencial para refletir sobre a ética na filosofia da
libertação latino-americana – a vítima –, conforme explica Dussel (2002, p. 373):
79
Capítulo 3
É nesse contexto que se encaixa a perspectiva da razão suspeita que não surgiu
de um discurso filosófico, mas que simplesmente se deixou levar por suspeitas
ao invés de produzir provas. Segundo Lévinas (2008, p. 20):
80
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Desse lado do Atlântico, Enrique Dussel (2002, p. 367) nos ensina que antes de
compreender o mundo existe uma pré-abertura ao mundo, já como corporeidade
traumatizável, vulnerável. É uma sensibilidade vivente, gozosa, que come e habita,
que se constitui como ética pela experiência do “face a face” com o outro, a partir
da responsabilidade diante do seu rosto.
81
Capítulo 3
outro e por sua obrigação infinita a este respeito. O humano está acima das
forças humanas” (DUSSEL, 2002, p. 366).
Uma vez quando perguntado sobre qual é a relação entre a religião e a filosofia
e entre sua religião e sua filosofia, Lévinas respondeu: “A religião sabe muito
mais. A religião crê saber muito mais. Não creio que a filosofia possa consolar. A
consolação é uma função totalmente diferente; é religiosa” (LÉVINAS, 2008, p. 123).
Pudemos perceber nas reflexões acima realizadas sobre Deus e o mal, bem como
sobre a alteridade da vítima, elementos essenciais na construção de sentidos
para o existir. Os pobres (vítimas) com sua sabedoria de vida, adquirida muitas
vezes como fruto de seu sofrimento, nos ensinam um sentido e uma verdade
novos. O padecer uma situação-limite, lhes proporciona um saber sapiencial –
sapere! – do sentido e da verdade da vida – e da morte – enquanto tal(is).
82
Capítulo 4
A Experiência do Sagrado e
o Filosofar Pós-Moderno: da
Omissão às Possibilidades
83
Capítulo 4
Seção 1
Fundamentalismos religiosos e a difícil arte de
tornar-se pluralista
Neste mergulho conclusivo enfrentamos o estudo dos desafios atuais para o
filosofar sobre a Experiência do Sagrado no humano como os fundamentalismos
no contexto vital contemporâneo e pós-moderno. Tema complexo e sensível,
esse dos fundamentalismos. Haja fôlego, hein! Mas vale porque podemos
respirar também os bons ares de utopias factíveis.
Fundamentalismo religioso:
Esse tema dos fundamentalismos religiosos, embora com certa dificuldade, tem
merecido reflexões específicas nas escolas filosóficas. É um desafio necessário
e indispensável ponderar sobre os desvios inautênticos de comportamentos sob
o apoio do sagrado e que ferem a saúde ontológica do humano, porque desviam
o conceito do sagrado do fundamental e de seus fundamentos necessários para
qualificar os sentidos do viver e conviver humano.
84
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Confundem a imagem que a tribo faz de Deus com o próprio Deus. Na verdade,
todos são povos “eleitos”, coisa que o Primeiro Testamento já intuiu quando
nos seus primeiros onze capítulos narra a história dos povos da Terra como
povos de Deus. Somente a partir do décimo segundo capítulo, fala-se do “povo
escolhido” em Abraão. Sua missão é de suscitar em todos os povos a lembrança
imorredoura do único Deus. Portanto, não é uma eleição para segregar, mas para
unir na mesma memória sagrada do único Deus, Criador e Provedor de todos e
Senhor da história.
Assim, Boff (2006, p. 100) lembra que esse fundamentalismo é antigo e configura
a doença crônica das religiões abraâmicas e das outras quando tratam de forma
absoluta suas doutrinas e os caminhos espirituais, negando o pluralismo de fato e
de direito, como caminhos que conduzem a Deus.
85
Capítulo 4
No entanto, Boaventura Santos (2013, p. 51) sugere maior rigor na análise das
características dos grupos de fundamentalistas islâmicos e no diálogo filosófico
com as “teologias políticas não ocidentais (e não cristãs)”, e oferece ampla
bibliografia, já que se trabalha com categorias e distinções muito escorregadias.
Uma característica comum é serem antiocidentais.
86
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Por isso, vale aqui, para um filosofar honesto, resumir alguns aspectos do
Islamismo. Observe:
A filologia da palavra islã, em árabe, é diin, que significa modo de vida e/ou religião,
e se liga com a etimologia de paz, salaam ou shalam, em árabe.
87
Capítulo 4
De fato, quem vive em ambiente muçulmano logo se deixa tocar por essa
atmosfera de religiosidade que envolve toda a vida pessoal e social. (BORRMANS,
1993, p. 296). Cada pessoa participa com orgulho de pertencer a uma sociedade
que “promove a justiça e impede a injustiça, e crê em Deus” (Corão, 3, 110).
88
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Abraão (Corão, 3,67), o crente recebe de Deus três apoios para o caminho: a sua
palavra, o Corão, o seu profeta, Maomé e a sua comunidade (umma).
Fizemos toda essa digressão para que nossa postura crítico-filosófica sobre
o sagrado na visão do fundamentalismo islâmico seja honesta e produtiva.
Boaventura (2013, p. 54) deixa-se ajudar por Talal Asad quando critica a visão
legalista e estática que se tem do Islã. “Discutir a mudança foi sempre importante
para a Lei da shari´a. Sua flexibilidade é mantida pelos dispositivos técnicos da urf
(tradição), maslaha (interesse público) e darura (necessidade)”.
89
Capítulo 4
(1) as sociedades muçulmanas tendem a ser pelo menos tão diversas quanto similares;
(2) existe uma distância enorme entre a doutrina islâmica e a prática muçulmana;
90
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
(4) apesar das críticas feitas durante o Iluminismo, a religião não impede as
pessoas de se comportarem racionalmente ou de inovarem;
Não se deve esquecer, por fim, que nas sociedades muçulmanas a experiência
moderna de secularismo é também uma experiência de ditadura. Isso significa
que o valor democrático atribuído ao secularismo no Norte global está ausente ou
não pode ser mecanicamente transposto para o Sul global.
91
Capítulo 4
Para ela, os norte-americanos têm o destino divino, como o novo povo escolhido,
de levar a todos os povos o esclarecimento, os valores da propriedade privada,
da democracia, do livre mercado e dos direitos humanos. (BOFF, 2006, p. 95).
Passam, então, a vender sua visão fundamentalista em forma de shows, com o
objetivo de obter muitas doações aplicando o chamado “marketing da fé”.
92
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Zilles (2004, p. 185) diz que também no catolicismo não faltam pequenos
grupos como o do bispo Lefevre, na França, que se rebelou contra as reformas
do Concílio Vaticano II. Alguns acham que o movimento católico da Opus Dei
tem tendência fundamentalista devido ao seu conservadorismo. Seu centro
é a Espanha. As recentes guerras no Iraque foram apoiadas pelas forças da
Espanha, USA e Inglaterra, onde a rainha é como uma papisa. São espaços com
fundamentalismos religiosos ocidentais de vertente cristã sob a mesma lógica do
mito de povo escolhido.
Quanto à Opus Dei, Zilles explica que é um equívoco porque contam com os
favores do Papa e desenvolvem um diálogo crítico com as ciências modernas.
No entanto, Franz Hinkelammert (apud FINN, 2012) aponta como fruto da ação
do fundamentalismo religioso-político adotado por alguns governos norte-
americanos e da Opus Dei a intervenção no Chile de Salvador Allende.
93
Capítulo 4
Até hoje convive-se com esse dualismo na vida interna dos cristãos. No caso
do Chile, ele se manifesta em um cristianismo conservador que elege os
crucificadores de acordo com sua ideologia de dominação; obviamente contra
qualquer postura cristã de libertação do Cristo crucificado nos pobres e a favor
dos ditadores que por mais de 30 anos operaram como “escolhidos de Deus” no
Chile e em outros países do Cone Sul.
É oportuno, pois, que se dialogue com essas vozes silenciadas outrora e que
enfrentaram a crueldade desses fundamentalismos de direita e de esquerda
com suas utopias. Sobre esse aspecto utópico muito ligado ao sagrado e
indispensável ao viver humano com sentidos, vamos nos dedicar mais à frente.
Seção 2
Fundamentalismo filosófico neoliberal: a
religião do Mercado e os biossacrifícios
Mo Sung (1998) explica que o uso da religião como instrumento econômico só é
possível pela absolutização de algo que é exterior à experiência religiosa e que é
inteiramente humano: o mercado.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Nessa digressão nos ajudam Mo Sung (1998), Frei Betto (2008) e Harvey Cox
(1999). Da escola americana de filósofos culturalistas e cientistas da religião,
Harvey Cox (1999), no artigo O Mercado como Deus - Vivendo em novo Sistema
Religioso, explica que percebe na retórica econóloga algo semelhante ao que
é denominado de “teologia processual”, embasada na filosofia de Alfred North
Whitehead (1861-1947).
Por que acontecem tantas coisas más que um Deus onipotente, onipresente
e onisciente — especialmente um Deus benevolente — não aprovaria?
Harvey Cox (1999) afirma que essa visão da teologia processual também parece
oferecer considerável conforto aos teólogos do Mercado porque “ajuda a explicar
a perturbação, o sofrimento e a desorientação que são o resultado das transições
da heterodoxia econômica aos mercados livres.”
95
Capítulo 4
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
O autor fazendo jus ao título de seu artigo Humores do Mercado, “mostra que
o Mercado não gosta do que está ocorrendo à sua volta – ou, como dizem os
comentaristas especializados em economia, ‘reage mal’ –, o dólar sobe, o Risco
Brasil aumenta, a Bolsa de Valores entra em queda. Mas, se o Mercado sente seu
ego massageado, então acontece tudo ao contrário.”
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Capítulo 4
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
O descuido pela sorte dos pobres se manifesta a nível interno na maioria dos
países. A adoção de políticas neoliberais e de planos especiais de organização
econômica deixa os pobres numa situação dramática. Desprovidos de cuidado,
sentem-se atraídos por várias formas de violência e de outras de natureza ilegal.
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Capítulo 4
humanos e da natureza
Também chama para o sentido da igualdade real entre os humanos que é viverem
gerando igualdade para os pobres. “Se Deus é o Deus de todos terá que ter a
opção pelos pobres, caso não a tenha está fazendo a opção pelos ricos e, então,
não é o Deus de todos.” (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).
100
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
101
Capítulo 4
Destruiu-se isso, então não podemos tampouco culpar a religião porque ela
jamais deixou de lado esse aspecto. É dessa dimensão da convivialidade que
tem aparecido a reflexão filosófica como na América Latina nascida nos mesmos
espaços das teologias políticas da libertação da vida para todos. E se opõem às
armas ideológicas da morte. HINKELAMMERT (2013) vai ao cerne da distinção:
Nesse contexto, tomar a religião por si só como um inimigo revela não entender o
que é o âmbito religioso, pensa Franz. A rigor, o religioso é um espaço de conflito.
As religiões não são homogêneas. E isso no cristianismo é mais que evidente. Há
sempre o choque entre ortodoxia e heresia. A heresia sempre está presente na
igreja mas tratada como algo secundário. E o pensador abre o jogo em favor de
um pensar com dose de rebeldia a favor do viver qualitativo para todos:
102
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
O maior santo de nossa história que para mim foi são Francisco
sempre foi suspeito de heresia. E é assim, a rebeldia, a heresia
etc. é a fonte da vida. Eu creio que a teologia da libertação
nesse sentido é sumamente grandiosa. Em toda parte aparece
como a grande heresia. Que apareça como a grande heresia é
a melhor prova de que vai bem. Todos os grandes movimentos
foram heréticos. Mencionei os franciscanos, mas também os
dominicanos, até são Tomás de Aquino, estavam sempre em
perigo de ser taxados de heréticos. Os grandes movimentos
sempre foram taxados de heréticos. O próprio cristianismo é
heresia do judaísmo. (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).
No entanto, é preciso estudar ainda mais “as razões pelas quais as condições
econômicas, sociais, políticas e culturais prevalecentes no mundo de hoje tendem
a impedir a emergência de teologias da libertação e a promover a emergência de
teologias conservadoras ou reacionárias”. (SANTOS, 2013, p. 141).
103
Capítulo 4
Esses diálogos e espaços podem ser vistos como apelos éticos por um filosofar
com possibilidades não só de ultrapassar omissões e traições mas, sobretudo, de
ver como construtores de sentidos os que operam a área do sagrado no humano.
É o que vamos alinhavar em nossa seção conclusiva.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Seção 3
A experiência do sagrado e filosofia hoje: da
omissão às possibilidades
Nesta seção conclusiva, comecemos lembrando o prejuízo que o significado de
cultura pronta, já apresentado pelo antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, pode
trazer ao nosso rico tema da busca de sentidos a partir do fenômeno humano
do sagrado. Brandão dava o significado de que se trata de um universo em que
só nós, humanos, nos movemos. É o universo das ordenações, do sentido e dos
significados em dimensões variadas. Brandão propõe como exemplo de cultura
pronta a consagrada distinção acadêmica entre as ciências particulares das
totalizantes. Para Brandão (apud MOREIRA-ZICMAN, 1994, p. 46),
105
Capítulo 4
Ernst Bloch nos ajuda, por meio de Lévinas e Luc Ferry, a buscar saídas em
Heidegger. Segundo Luc Ferry (2007, 2013), é exigido à filosofia a necessidade de
optar por uma alternativa entre:
106
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Lévinas (2008, p. 59) nos ajuda a conhecer seu pensamento: “Bloch trata o
humano a partir do ser e, ao mesmo tempo, na sua irredutibilidade às coisas
do mundo.” Lévinas (2008, p. 59) avalia a ideia de Bloch a partir do livro Prinzip
Hoffnung (Princípio-esperança), focando sua ética da esperança e fazendo
interface entre a ética e a ontologia:
Vale mais uma vez também aqui a visão pertinente sobre as utopias de outro
alemão, Franz Hinkelammert, que se exilou voluntariamente na América Latina
para investir numa filosofia de libertação. Sua obra clássica é a Crítica da Razão
Utópica (2013), desde os topoi complexos das vidas esquecidas no não-ser
por uma ética de libertação formulada por Enrique Dussel. Essa escola latino-
americana de filosofia de libertação traz novo significado ao conceito de utopia,
na linha do princípio-esperança de Ernst Bloch, mas aprofundando-o.
107
Capítulo 4
Acredita que não se pode pensar em utopias ingênuas, e sim no que é possível
fazer. Na definição desse possível, a razão estratégico-instrumental é útil e
necessária, mas insuficiente.
Para ele, a utopia humana deve ser tratada no plano da factibilidade e não sob a
ótica do impossível. Diz Hinkelammert (1994, p. 12-13) que essa “impossibilidade
se dá na medida em que as relações mercantis não dão conta da tarefa de
levar ao progresso humano, mas apenas asseguram uma evolução técnica cujo
progresso sacrifica a vida humana em nome da glória mercantil.”
108
Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Portanto,
109
Capítulo 4
Em suas entrevistas (HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014) ele faz uma leitura
das utopias de esquerda e de direita como ingênuas, a partir do que refletiu em
sua obra a Crítica da Razão Utópica, na trilha de Bloch e Lévinas.
Ele afirma que era um argumento que a direita compartilhou. Reagan, na sua
campanha eleitoral, apontava que havia solução para todos os problemas e que
o Estado era um problema. “Este é um típico pensamento utópico sem crítica. E
aparece nos discursos da Direita e da Esquerda. Era, porém, um tempo em que
se via a possibilidade de mudança necessária na sociedade. Mas não pode ser
uma mudança total.”
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Ele chega à conclusão de que as utopias não são algo por realizar, mas se
parecem a algo como Kant chama de regulador de ideias. Franz explica que
são referências para fazer mudanças necessárias dentro de um marco do que é
possível. “E aí mudou-se hoje para uma visão de transformações; abandonou-se
completamente essa perspectiva de mudança total para uma visão de mediação.”
(HINKELAMMERT, 2012 apud FINN, 2014).
Vale concluir com as razões da carta do doutorando Tiago Knob (2010), egresso
de Publicidade e Propaganda da Unisul, que levou para Coimbra as experiências
vividas com as comunidades do Sul do Mundo, agora com mais qualidade de
vida, para que nas academias do Norte se aprofunde o salto qualitativo que
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Capítulo 4
São saberes e experiências que se encontram latentes nas vítimas destas regiões
exploradas por toda sua história e seu presente que “já afirmam e lutam pelo
seu direito à autonomia, soberania e justiça social, e passar no crivo de um olhar
científico uma consistência e factibilidade ética capaz de ensaiar um projeto de
cidadania futuro do qual as vítimas caladas da modernidade façam parte.” (KNOB,
2010, p.1).
Por outro viés, Ferry (2007) volta em nosso estudo a encaminhar a proposta (b)
através da sua análise crítica ao conceito de Mundo da Técnica, feita por Martin
Heidegger, como “uma ideia intrinsecamente genial, uma das que iluminam de
modo poderoso, e até incomparável, o momento presente”. (FERRY, 2007, p. 239).
de Martin Heidegger
Luc Ferry (2007) descreve, aqui, o Filósofo do Ser, como desconstrutor não
materialista e não hostil à ideia de transcendência. E nos ajuda a dimensionar
nossa postura de profissionais do filosofar diante da complexidade da era
contemporânea tecnicista. A análise é extensa e você pode aprofundar pela
leitura completa do livro. Resumimos, aqui, apenas alguns pontos nodais:
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Essa preocupação de Heidegger já nos anos 1930 do século XX, “que surfa
na onda eletrônica triunfantemente como Déscartes flutuou na onda mecânica”
(MCLUHAN, 1962, p. 248), observa-se ainda na descrição do poder da técnica
como situação de uma imparável “vontade da vontade” em que todas as coisas
sofrem a “retirada do ser” em vista de uma “permanente disponibilidade”.
Kristeva (2011) reconhece e insiste sobre o poder fetichista perigoso que se alia
à tecnologia porque favorece o automatismo do humano. No entanto, aposta na
rebeldia do Dasein enquanto não se deixa afundar no niilismo favorecido pela
secularização irresponsável. Uma irresponsabilidade diante do ser do humano e
que aflora na forma da necessidade de crer e desejo de saber:
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Capítulo 4
Aposta, porém, em nossa opção por uma arte de questionar continuada como
exercício de nossa responsabilidade ética na sociedade e na história, cuja
memória é testemunha do tamanho da barbárie de que somos capazes:
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Ferry (2007, p. 250) volta à paráfrase do texto de Heidegger avaliando qual tem
sido a postura dos filósofos (amigos desapegados da sabedoria) num contexto
no qual os cidadãos até menos apaixonados pela história das ideias são tomados
pelo sentimento de dúvida e de como dominar esta dominação:
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Capítulo 4
Espiritualidade materialista?
Ferry (2007, p. 256-257) não desfaz da importância dessas ações, mas acha que
não bastam para serem filosóficas na essência. Explica que, além da erudição,
da reflexão crítica e da moral, devido ao fundo tecnicista no qual mergulhamos, a
filosofia pode e deve
Já vimos, em parte, algumas saídas em seu debate recente com Marcel Gauchet,
cujos aspectos centrais resumimos acima. Mas, aqui, cremos ser importante
acrescentar mais alguns exemplos de Luc Ferry.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Comenta, porém, que mais parece uma filosofia para tempo bom, em que tudo
vai bem e pergunta: mas quando se levanta a tempestade, podemos segui-la?
Que sentido pode ter o amor fati, de apenas fruição, em Auschwitz?
Há um zelo pela crítica objetiva e, ao mesmo tempo, uma aversão pela autocrítica,
pela autorreflexão, ou seja, constitutiva de seu olhar de si e sobre o mundo. “Sua
lucidez é admirável quando se trata dos outros, mas ela só iguala a sua cegueira
quando o caso é seu próprio discurso”. (FERRY, 2007, p. 274).
Mas há um erro em nos fixarmos apenas nesta consciência que reduz a Theoria (a
autorreflexão) como única e exclusiva dimensão da filosofia, deixando de lado a
problemática da salvação.
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Capítulo 4
Agora é para o outro homem que podemos até aceitar assumir riscos, como se
fazia pela pátria ou pela revolução até há pouco. Ferry (2007) exemplifica com o
testemunho de Henri Dunant, criador da Cruz Vermelha, quando este descreve
em seu livro Un souvenir de Solferino o nascimento de sua fundação.
Dunant tira daí uma lição magnífica que estará na origem da verdadeira revolução
ética da sacralização do humano: o soldado, uma vez derrubado, desarmado e
ferido deixa de pertencer a um campo, para voltar a ser um simples humano que
merece ser protegido, assistido, tratado, como dizia a Declaração dos Direitos do
Homem, de 1789: todo o ser humano merece ser respeitado, independentemente
de todos os pertencimentos comunitários, étnicos, linguísticos, culturais e
religiosos. E vai mais longe, o exemplo de Dunant nos convida a esquecer as
pertenças nacionais.
A partir dessa visão, Luc Ferry (2007) propõe três elementos de reflexão que
ajudam o humanismo não metafísico a repensar a questão da salvação:
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Essa singularidade que é aquilo que sustenta nossos vínculos de amor, traz um
outro elemento que é o luto do ser amado. Ele apresenta três modos de pensar o
luto da pessoa que amamos:
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Capítulo 4
Vamos recordar, com José Jorge, também, outro conceito importante para a
filosofia da religião que é o de experiência mística “como a realização plena, ou
mesmo absoluta – ainda que momentânea – do caminho espiritual proposto pelas
religiões”. (apud MOREIRA-ZICMAN, 1994. p. 73).
Mas você se lembra que, sabiamente, ele ampliou o conceito para alguns casos
mais raros de mística profana na poesia, na literatura e na própria filosofia: “É
neste sentido que Dante e outros são tidos como místicos para certos estudiosos
do tema”. (FERRY, 2007, p. 299).
Cuppit (1999, p. 92) afirma que não só no Budismo, mas, também, em outras
tradições religiosas, o objetivo final da meditação e da oração contemplativa é um
estado em que todas as imagens e diferenças de formas desaparecem, e que o
sujeito também está esvaziado em um contentamento do vazio.
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Zilles (2004) nos ajuda a entender que, no estudo comparativo das religiões,
quando na mística temos uma realidade possuída “em si mesma”, distingue-se
uma mística de imanência e uma mística de transcendência.
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Capítulo 4
Por fim, na trajetória das religiões, não podemos esquecer outros iluminados pela
experiência mística da Era do Eixo: Sidharta Gautama – Buda, Confúcio e Lao-
Tsé, Isaías e Zaratustra, Jesus e Paulo.
Deus é, antes de mais nada, esse sentido. Com isso, espiritualidade e mística
fazem bem não só à vida da mente, mas também à do corpo, garantindo
equilíbrio existencial ao humano.
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Deus e a Religião - do Renascimento ao Contemporâneo
Knob (2014) mostra que essa arte exige, assim, do ser humano, inserção crítica
na história. Exige estar vivo! Para Criolo, exige estar vivo: “Eu diria o que a um
jovem poeta? Procure viver! Pois o Estado já o assassina vagorosamente todos
os dias. E é importante permanecer vivo. Vivo!”. (CRIOLO, 2014 apud KNOB,
2014, p. 12).
Knob (2014, p. 14) mostra que o pensar da arte de Criolo exige transitar por
espaços como quem caminha na fronteira entre “o ser e o mais ser, entre as
consequências do que é imposto e entre a demanda do cotidiano, embrenhado
nas dificuldades, nas ausências materiais e nas ausências produzidas como
inexistentes, potencializando as presenças capazes de construir um novo futuro
em um processo constante e interminável.”
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Capítulo 4
Assim a espiritualidade como arte, nesse sentido, comenta Knob (2014, p. 14),
carrega em si, também em suas metáforas, em suas cores, em seus poemas, em
seus passos, “um momento concreto para a renovação ou reinvenção do mundo,
de comunidades locais de vida e das próprias vidas viventes das comunidades,
cidades, campos e periferias.”
O que nos salvou do que a gente viveu nas ruas [...] foi a nossa
completa ignorância e falta de habilidade em se adequar ao que
tá posto. O que nos salvou foi a gente ser um ninguém durante
um bom tempo da nossa vida. Ou nós éramos ignorados, ou nos
éramos chicoteados, ou nós éramos um encosto de porta em
alguma pousada. E nisso a gente fez a nossa história. A gente
sofreu, a gente vomitou, a gente voltou e aceitou que a gente não
consegue fazer nada do que o pessoal fala que é pra gente fazer
pra gente ficar boneco na foto. Aí nos sobrou o que? A beleza
das artes, que pra muitos, a fraqueza da alma. Porque a gente
não consegue se esconder, a gente vai pro palco e mostra a cara.
(CRIOLO, 2014 apud KNOB, 2014, p. 14).
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Considerações Finais
O que dizíamos no início é verdade: o tema é complexo, por isso, é que toca
no essencial. Você sabe que fizemos algumas opções de foco e de bibliografia.
Há muitas outras possibilidades de autores e amplitude de abordagens que
enriquecem este fascinante tema de Deus e as religiões na modernidade, era
contemporânea e na pós-modernidade.
Vimos que o próprio ato do filosofar é passar no crivo. Então, vai mais esta
pergunta: Por que sacralizar o superficial, a moda, a política, o mercado como
ídolo, os centros de saber e o dinheiro como fetiche?
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Universidade do Sul de Santa Catarina
Que a ideia de Deus não deixe que as coisas humanas se tornem absolutas.
Desejamos que você continue se inscrevendo na imensa lista de pensadoras/es
do sagrado que souberam tornar-se servidoras/es do ser e cuja memória continua
perigosa.
Seja feliz!
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Referências
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Sobre o Professor Conteudista
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