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Ciara Smyth
Ciara Smyth
Se fossem reais, sua mãe ainda seria capaz de lembrar seu nome
e não estaria em uma casa de repouso com demência precoce.
Uma condição que Saoirse pode um dia vir a herdar. Então, ela
não está procurando um relacionamento. Ela não vê sentido
em acender quaisquer faíscas românticas se estiver prestes a se
esgotar.
Pai
Saoirse onde você está?
Pai
Jesus Saoirse, você poderia ter me dito que
iria sair.
Saoirse
221 Parque Holyden. Preciso de carona. Traz
comida.
Para ser justa com ele, papai não falou no caminho para casa.
Ele me entregou um sanduíche de bacon embrulhado em papel
alumínio e me deixou comer em paz.
Assim que estacionamos na garagem, ele puxou o freio de
mão e respirou fundo pelo nariz, fechando os olhos. Um sinal
claro de que ele tinha coisas sérias para discutir. Revirei os olhos
e olhei pela janela, esperando o que quer que ele precisasse me
dizer antes que minha ressaca tivesse a chance de aparecer.
— Você tem idade suficiente para tomar suas próprias
decisões. Não te tranco no quarto nem te impeço de sair. Você
não precisa se esgueirar. Se eu posso respeitá-la, então você pode
fazer o mesmo por mim.
— Você passou a noite toda inventando esse discurso?
— Jesus, Saoirse, você consegue ser tão difícil. Você não é
uma criança, você não pode mais agir assim. — Ele respirou
fundo várias vezes, para me deixar saber o quão paciente e
arrogante ele era por ter que lidar comigo. — Acho que você
precisa dormir, então vá fazer isso, mas esta noite vamos jantar
e vamos conversar sobre isso.
— Sobre o quê? — Eu disse brilhantemente.
Ele passou as mãos pelo cabelo e quando falou sua voz não
soou tão firme.
— Você sabe o que eu quero dizer. O casamento. Há...
outras implicações, ok? Coisas que eu preciso falar com você.
— Então me diga agora.
— Assim não. Você está de ressaca. Você cheira como uma
cervejaria e precisa dormir um pouco. Ah, e... — Ele fez uma
pausa ali e o silêncio era como o momento em um filme de
terror antes que o cara da máscara saltasse e te apunhalasse no
estômago. — Na sexta-feira, Beth estará vindo para o jantar.
Você estará lá.
— Obrigado pelo convite, mas não estou interessada.
— Fique interessada — disse ele. — Você vai estar lá. Você
está se comportando como uma pirralha de treze anos. Sua mãe
ficaria envergonhada.
As palavras quase me deixaram sem fôlego. Eu apertei
minha mandíbula com tanta força que pensei que meus dentes
iriam quebrar.
— Sabe, pai, eu não me preocuparia com isso. Em alguns
anos, terei esquecido seu nome, e você e Beth podem me enfiar
em uma casa a com mamãe e seguir com suas vidas.
Ele não disse que nunca faria isso. Eu não acreditaria nele se
ele tivesse dito. Ele não disse absolutamente nada.
Saí do carro e marchei para dentro, batendo a porta da frente
atrás de mim. No meu quarto, mergulhei debaixo das cobertas.
Embora eu estivesse exausta, demorei séculos me virando e me
revirando para adormecer. Eu não o ouvi entrar em casa.
Veja, esta é a coisa que eu realmente não disse ainda. Minha
mãe não deixou meu pai. Ela não me abandonou. Ela não se
envolveu com um membro de gangue de motoqueiros ou um
vendedor de canetas. Ela tem demência precoce. Em setembro
passado, papai decidiu que não podia mais cuidar dela e que ela
precisava ser cuidada em tempo integral. Ela tem cinquenta e
cinco anos e às vezes não consegue se lembrar de como se lavar.
Ela esqueceu meu nome há muito tempo. Você acha que sua
mãe pode te amar se ela não souber quem você é?
A outra coisa é que esses tipos de demência são muitas vezes
hereditários. Não há como saber com certeza, mas há uma boa
chance de que isso aconteça comigo também. Às vezes eu sinto
que estou vivendo com um cronômetro na minha cabeça.
Então agora você sabe por que não me importo em ir para uma
universidade chique como Oxford. Porque não faz sentido
entrar em relacionamentos com garotas que podem realmente
gostar de mim de volta.
Estou esperando o dia em que meu cérebro pegará fogo.
Uma faísca que deixará, lentamente, tudo o que é importante
em cinzas.
Quando acordei de novo, ainda estava claro, mas a luz tinha
aquela qualidade nebulosa de fim de tarde, e quando verifiquei
meu telefone já passava das cinco. Por um momento, tudo o
que senti foi sono e sede, até engolir um litro de água que papai
deve ter deixado ao lado da minha cama. Então me lembrei de
muitas coisas ao mesmo tempo. A dor no meu joelho veio
primeiro. Então, minha bunda. Em seguida, Ruby e a memória
de nós duas em sua cama. Parecia que alguém estava fazendo
cócegas no meu estômago por dentro, flashes de sensações
voltaram para mim como se estivessem acontecendo ali mesmo.
Seus olhos castanhos e sua sarda azul, minhas mãos em sua
cintura. O gosto de seus lábios. A sensação de seus dedos
percorrendo minha pele nua.
Eu tinha permissão para pensar nela dessa maneira quando
eu tinha uma sensação incômoda de que não fui educada com
ela?
Eu balancei minha cabeça. Isso foi um erro. Parecia que um
monte de rolimãs estavam chacoalhando por ali. Eu estava
pensando demais. A noite passada foi divertida, e eu estaria
sendo muito cheia de mim mesma se eu pensasse que por algum
motivo que Ruby queria ser minha namorada porque nos
beijamos e ela me convidou para um jantar. Nós nem nos
conhecíamos.
Quando eu saí de um longo banho, onde eu definitivamente
não pensei sobre como seria se Ruby estivesse lá comigo, muito
obrigada, como você ousa insinuar uma coisa dessas? Eu
consegui ouvir meu pai fazendo barulho pela cozinha fazendo
o jantar. Fiquei na soleira da porta e cheirei o ar como um
cachorro curioso. Eu não gostei do que eu inalei. Nada. Não
cheirava a nada. Meu pai não é um péssimo cozinheiro, mas
também não é bom. Tudo o que ele faz tem gosto de isopor sem
tempero.
Minha roupa da noite passada estava amontoada no chão e
eu a joguei na lavanderia, escolhendo um conjunto quase
idêntico para o jantar. Se tudo o que você possui é jeans preto e
tops pretos, então você nunca precisa se preocupar com o que
vestir. Eu não me incomodei em tentar lidar com meu cabelo.
É longo, grosso e leva anos sob um secador de cabelo para secar.
Além disso, embora eu finja que não me importo com essas
coisas, na verdade, meu cabelo fica mais fabuloso quando deixo
secar naturalmente. É marrom escuro e vai até a metade das
minhas costas. Minha mãe costumava aparar a franja quando
ficava fora de controle. Ela era muito boa em coisas assim. Um
domingo por mês ela me pegava. Certo, ei, hora de fazer sua
franja, está tão grande que eu não sei como você enxerga. Eu
protestava, mas sempre acabava no mesmo lugar, em uma
cadeira na cozinha com uma toalha no pescoço. Ela cortava as
pontas duplas e pequenos tufos do meu cabelo caíam no meu
colo.
Eu deixei minha franja crescer há muito tempo. É uma coisa
pequena a perder, mas eu tenho perdido algo pequeno todos os
dias por anos e anos e todos eles somaram em algo realmente
grande.
Papai estava com cara de feliz quando eu manquei escada
abaixo. Tentei esboçar um sorriso, um presente, cortesia da
vaga culpa que senti por jogar mamãe na cara dele, embora ele
tenha feito isso comigo primeiro. Eu sou boa demais para este
mundo.
— Obrigada pelo jantar — eu disse, enfiando meu garfo em
um pedaço de peixe branco grelhado sem tempero. Comemos
em silêncio. Eu poderia dizer que ele não estava bravo por mais
cedo. Ele provavelmente se sentiu culpado pelo que disse
também, mas nenhum de nós é do tipo que realmente se
desculpa. Nós varremos para debaixo do tapete.
O tapete ficou terrivelmente grumoso.
Houve um tempo em que éramos próximos, em que as
coisas eram fáceis. Papai é dez anos mais novo que mamãe e
sempre foi o “pai divertido”. Eles costumavam discutir sobre
isso. Ouvi mamãe reclamando mais de uma vez que ela sempre
tinha que ser a “mãe má”. Ela revirava os olhos para nós quando
ocupávamos o sofá e assistíamos a filmes de terror ou quando
nos uníamos, com seriedade de vida ou morte, para programas
de jogos ruins. Tínhamos piadas internas e playlists
compartilhadas. Agora acho que mamãe pode ter se sentido
excluída do nosso clube bobo. Ela sempre foi muito dura e nós
a fizemos ficar nesse papel em vez de convidá-la para jogar. Mas
mesmo que eu tenha certeza de que papai acredita que fui eu
quem se afastou dele, foi ele quem colocou essas pedras
enormes entre nós. Eu não poderia passar por cima delas nem
se tentasse. E não tive vontade de tentar.
Quando nossos pratos estavam quase vazios, ele se arrastou
em seu assento e tossiu.
— Então. — Ele limpou a garganta. — Então.
— Então?
— Então eu preciso falar com você sobre as coisas.
Empurrei meu assento para trás e levei meu prato para a
cozinha. Papai me seguiu, mas ficou para trás no batente da
porta.
— Olha, eu realmente não quero ouvir sobre isso. —
Encostei-me na máquina de lavar louça, mantendo um espaço
seguro entre nós para não o estrangular. Eu tinha me divertido
tanto na noite passada, eu não queria que papai estragasse a
deliciosa ressaca de ter beijado uma linda garota com uma
conversa sobre como ele encontrou uma ótima nova esposa
para substituir sua antiga esposa quebrada. — Vou para a
universidade em breve e vou morar lá. Eu não estarei aqui de
qualquer maneira. Faça o que você quiser.
Eu ainda não tinha certeza sobre ir para Oxford, mas na lista
de prós e contras na minha cabeça, papai se casar com Beth
estava inclinando a balança a favor de dar o fora desta ilha.
Talvez, quando eu tiver ido, ele tenha até uma nova filha
também. Uma sem os genes defeituosos. Às vezes eu pensava
em ligar para Izzy e perguntar a ela sobre Oxford. Ela tem esse
jeito incrível de fazer tudo parecer simples. Se eu falasse com
ela, eu sabia que ela diria a coisa perfeita e eu perceberia o que
deveria fazer. Ela deveria ser uma terapeuta como minha mãe
foi. Pensei nisso, mas nunca liguei.
— Você estará em casa nos feriados — ele fez beicinho. —
Você precisa conhecer Beth. Você não pode fingir que ela não
existe.
— Oh, vós de pouca fé.
Papai ignorou isso.
— Nós queremos fazer o casamento antes que você vá
embora. Marcamos uma data. Dia trinta e um de agosto. Ainda
bem que Oxford começa um pouco mais tarde do que a
maioria das universidades, então ainda há tempo de sobra para
resolvermos com você antes de ir embora
O silêncio era tão completo que eu podia ouvir o gato dos
vizinhos miando lá fora. Isso me fez pensar em Ruby. Prefiro
escalar outro muro de dois metros e meio do que ter essa
conversa.
— Eu sei que isso é muita mudança — papai disse quando
percebeu que eu não ia responder. — Você vai gostar de Beth
quando a conhecer.
Ele realmente disse isso com uma cara séria.
— Ela está se mudando para cá antes do casamento?
Antes de eu me mudar era o que eu realmente queria dizer.
Achei que não suportaria vê-la substituir todas as coisas de
mamãe pelas dela. Vê-la encher o lado da mãe do guarda-roupa.
Dormir do lado dela da cama.
Papai ficou muito interessado em tirar um pouco de tinta
do batente da porta.
— Essa é a outra coisa que eu queria falar com você. — A
tensão estava começando a aparecer em seu rosto, como um
policial suado no esquadrão antibombas que não tem certeza
de qual fio leva à morte certa. — Nós vamos ter que nos mudar.
Por um momento, pensei que ele se referia a ele e Beth, e tive
uma imagem gloriosa de mim andando por esta casa sozinha.
— Nós olhamos alguns lugares, mas não queremos decidir
sobre um sem você.
— Você está falando sério? — Eu me ouvi gritar. — Isto não
é justo. — As palavras saíram mesmo sabendo serem infantis.
Mesmo que nada sobre isso tivesse sido justo. Passei por ele
intempestivamente para a sala de estar. Ele se virou para mim,
mas ficou do outro lado da sala.
— Saoirse…
— Esta é minha casa e você vai vendê-la para poder morar
com sua nova esposa em algum lugar onde não haja lembranças
da mamãe. É isso que ela quer ou é por que você não consegue
olhar as coisas da mamãe e não se sentir mal?
Olha, eu percebo que isso é exatamente o oposto do que eu
estava pensando um segundo atrás, mas eu sou uma pessoa
complicada, ok? Tenho uma capacidade infinita de me irritar
com qualquer coisa que papai faça. Eu não queria que Beth se
mudasse para cá, e também não queria que papai se mudasse
com ela.
Papai ficou para trás no arco da cozinha. Quando ele falou,
sua voz estava cansada e eu quase senti pena dele. Mas não
exatamente.
— Eu não sei como você pode pensar coisas assim. Não é
desse jeito. Temos que nos mudar.
Esperei por mais informações com uma expressão que papai
se refere como meu rosto de “Carrie”. Aquele que parece que
estou prestes a incendiar o quarto e ver tudo queimar. (Palavra
de conselho, apenas assista Carrie com seus amigos. Você
pensa, claro, que é apenas mais um filme de terror, mas o
verdadeiro horror é assistir àquela cena com seu pai.)
— Nós hipotecamos a casa quando dividimos os ativos.
Assim, sua mãe levaria metade para pagar por seus cuidados e
você e eu estaríamos protegidos financeiramente. Mas tem sido
muito caro. Não consigo mais tanto trabalho freelance como
costumava e nossas economias estão esgotadas. Com você se
mudando no próximo ano, fazia sentido reduzir o tamanho.
Eu odeio ouvir isso. Ele soa como se estivesse tentando me
convencer de que esta é uma decisão totalmente prática,
desprovida de qualquer bagagem emocional, e eu já ouvi isso
antes.
Lembrei-me de ouvi-los falar sobre isso antes de me dizerem
que estavam se divorciando. Eu sei que você está pensando
bem, não é um problema se eles são divorciados, Saoirse, mas não
era para ser real. É apenas por razões de dinheiro, eles disseram.
Nós não estamos nos separando, eles disseram. Nós nos
amamos muito, eles disseram.
Eu me escondi atrás da porta da cozinha observando-os pela
fresta. Eu ouvia muito atrás das portas naquela época. Eles
estavam falando de dinheiro novamente. Alguma ladainha
sobre proteger a casa como um ativo. Na verdade, foi ideia da
mamãe; seus cuidados custavam dinheiro. Ela provavelmente
não estava imaginando que ele iria morar com alguém novo.
— Você não vai para um desses lugares do estado — papai
disse, batendo com o punho na ilha. — Nós cuidaremos de
você.
— Deus, Rob, por favor, apenas me mate se chegar a esse
ponto.
— Não diga isso, amor, não é engraçado.
Mamãe saiu da cadeira e se aproximou dele. Eu podia ver seu
rosto enquanto ela colocava as mãos em seus ombros e o olhava
nos olhos.
— Eu não estou brincando. Prefiro morrer a ter você ou
Saoirse me alimentando, me limpando. Não quero que ela
passe a vida cuidando de mim.
— Desculpe, mas sou bonito demais para a prisão e acho
que nossa filha de treze anos não tem força na parte superior do
corpo para estrangulá-la — disse papai. Eu podia ouvir um
sorriso fraco em sua voz enquanto ele tentava aliviar o clima.
Ela o beijou então, e eu desviei o olhar. Quando olhei para
trás, ela estava enterrando o rosto em seu pescoço, e eu poderia
dizer que ela estava chorando.
Eu nunca poderia falar com meus pais sobre o que estava
acontecendo na época. Sobre todas as coisas que eu tinha
ouvido ou adivinhado, ou descoberto. Mamãe tentava falar
comigo às vezes. Ela me disse que poderíamos conversar sobre
qualquer coisa. Nenhum sentimento ou pensamento estava
fora dos limites. Eu sempre disse a ela que estava tudo bem. Eu
não queria deixá-la triste quando eu sabia o quão triste ela já
estava. No dia em que soube do divórcio, corri para a casa de
Izzy e chorei no chão do quarto dela, enquanto Hannah fazia
círculos nas minhas costas. Assim que consegui respirar de
novo, Izzy fez pipoca e deu uma escova de cabelo para cada um
de nós e cantamos junto com Mamma Mia! Quando voltei
para casa, pude dizer à minha mãe que estava bem e quase quis
dizer isso.
A cozinha parecia a mesma agora: a mesma ilha, o mesmo
relógio grande na parede que esquecemos de adiantar quando
a hora mudou, o mesmo azulejo quebrado pela máquina de
lavar louça. Parecia diferente, no entanto. Não parecia
habitado, todo caos e cheiro de cozinha; parecia negligenciado,
vazio. E desta vez eu estava do outro lado da porta para as
conversas difíceis.
— Eu não vejo por que você tem que se casar com ela — eu
disse, mudando de assunto. Eu odiava ouvir todas as coisas
financeiras estúpidas. Como se a doença de mamãe se resumisse
a quanto nos custou. — Por que você tem que ficar mudando
tudo?
— Saoirse, eu amo Beth. Quero passar o resto da minha vida
com ela. — Ele disse isso como se pensasse que eu finalmente
entenderia. Como se isso deixasse tudo claro.
Palavras não significavam nada para ele. Palavras como
amor ou casamento, ou nós cuidaremos de você.
— O resto da sua vida? — Eu balancei minha cabeça. —
Não foi isso que você disse à mamãe também?
Sentei-me na frente do espelho, lutando com um lápis
delineador e resmungando para mim mesma. Eu não podia
acreditar que papai estava me fazendo conhecer a mulher com
quem ele estava traindo minha mãe no ano passado.
Ok, podemos discutir sobre os detalhes técnicos, se você
quiser. Sim, papai é tecnicamente divorciado, e ele não pode ter
um casamento normal com mamãe, mas outras pessoas fazem
isso. Outras pessoas ficam ao lado de seus parceiros quando
coisas assim acontecem. Eu vi isso na TV, li artigos sobre
esposas e maridos que passam o resto de suas vidas cuidando de
seus cônjuges, mesmo que estejam em coma ou algo assim. O
ponto é que o meu pai é muito egoísta para isso.
Eu não estava colocando maquiagem para impressioná-la ou
porque era um evento importante ou algo assim. Porque não
era. E não é como se eu tivesse outro lugar para estar naquela
noite. Eu não ia ao aniversário de Ruby. Eu tinha basicamente
esquecido que era na mesma noite. Eu coloquei o perfume e o
delineador para mim mesma, está bem?
A última semana tinha sido estranha, para dizer o mínimo.
Mas papai e eu estávamos acostumados com isso. Era um
padrão que havíamos aperfeiçoado. Tínhamos uma explosão e
não conversávamos por alguns dias. Então o silêncio se
transformava em “Passe o sal”, e no final da semana, estaríamos
gritando respostas em um game show juntos. Não é como nos
filmes em que você sai correndo e nunca mais fala ou tem uma
grande conversa significativa e resolve tudo. Você apenas
continua com isso até que não seja mais tão recente.
Ele realmente deu tudo de si para o jantar, tanto quanto foi
possível para ele de qualquer maneira. Ele estava na sala de
estar/jantar acendendo velas na mesa quando desci.
— Isso é propaganda enganosa, você sabe — eu disse a ele,
amassando meu polegar em uma cicatriz na palma da minha
mão. Um hábito nervoso. Não que eu estivesse nervosa com
alguma coisa. — Esta mulher está se casando com você porque
ela acha que você faz coisas como acender velas e usar
guardanapos? — Peguei um guardanapo com tema de
Halloween com gatos pretos sobre a mesa e virei na minha mão.
Papai riu e pareceu agradecido. Eu não sei por que eu estava
brincando com ele, mas pode ter algo a ver com a sensação de
roer no meu estômago que me manteve acordada a noite toda.
Acho que me senti mal com o que eu disse. Quero dizer, era
cem por cento verdade, mas o olhar em seu rosto quando eu
disse isso continuou surgindo na minha cabeça.
É difícil odiar alguém e amá-lo ao mesmo tempo.
A campainha tocou e papai congelou no meio da confusão
com um vaso de flores.
— Seja legal — disse ele, estreitando os olhos.
Eu dei a ele meu maior e mais falso sorriso.
— Sou sempre legal.
Meu rosto se contorceu em lábios franzidos quando ele não
estava olhando. Eu pensei muito sobre isso e me convenci de
que não importava. Eu não poderia impedi-lo de se casar e qual
seria o ponto mesmo se eu pudesse? Não o faria amar mamãe
novamente. Isso não ia funcionar como uma versão de
demência de Operação Cupido. Além disso, era apenas uma
questão de tempo até que esse casamento também desse errado.
Isso não significava que eu gostava, mas eu só tinha que passar
por isso durante o verão.
Então, ele estava tirando minha casa de mim, que diferença
fazia? Tudo de bom que tinha acontecido aqui se foi. Vamos
demolir a casa, eu não ligo. Ser forçada a escolher entre ficar na
Irlanda, presa com ele, ou deixar mamãe para trás, fez meu peito
apertar. Eu não queria pensar nisso. Talvez um dos currículos
entre as duas dúzias que eu tinha entregue nas lojas da cidade
antes das provas pudesse se transformar em um emprego e
então eu poderia conquistar Oxford e conseguir meu próprio
lugar. Mamãe poderia vir morar comigo. Ambos os problemas
resolvidos. Eu fiz uma nota mental para perseguir aqueles
currículos com um telefonema.
Papai se desviou de mim até a porta e abriu os braços.
— Entre, milady — ele disse, e eu podia ouvir o sorriso
bobo, mesmo que eu não pudesse vê-lo. Beth deu um passo
hesitante sobre a soleira. Quando eles se abraçaram, eu chamei
a atenção dela. Ela desviou o olhar e interrompeu o abraço
imediatamente.
— Isso parece incrível, Rob. — Ela tinha pele marrom,
cabelo encaracolado e sotaque inglês, mas não como o de Ruby.
O sotaque de Ruby era fofo e suas palavras soavam
borbulhantes e alegres caindo de sua língua. Beth parecia que
poderia ler as notícias na BBC. Ela tirou o casaco, revelando um
vestido verde-esmeralda sem mangas que mostrava suas
tatuagens. Eu sabia que ela tinha a mesma idade que meu pai –
algumas informações sobre ela haviam escapado apesar de meus
melhores esforços – mas (embora me doesse admitir) ela
parecia legal sem esforço de um jeito que papai nunca
conseguiria. Ele sempre parecia estar se esforçando demais. Ou
talvez fosse só porque eu sabia em primeira mão quanto tempo
ele passava arrumando o cabelo.
Papai pegou o casaco e a bolsa dela e os colocou
delicadamente nas costas de uma poltrona. Ela olhou para
mim. Este era geralmente o momento em que eu dava uma
desculpa e saía de casa.
— Estou tão feliz que estamos tendo a chance de nos
conhecermos — disse ela. — Seu pai fala de você o tempo todo.
— Ok — eu disse categoricamente.
Papai me lançou um olhar. Ele estava a meio caminho entre
nós, ainda torcendo um guardanapo nas mãos. Eu dei de
ombros para ele. O que eu deveria dizer sobre isso? Conheço sua
existência e desaprovo. Parecia rude até para mim.
— Saoirse, por que você não se senta? Beth, você pode vir
me ajudar na cozinha.
Eu me arrepiei. Por que ela deveria ajudar? Ela não morava
aqui.
Por outro lado, eu não queria estar entregando o jantar para
ela – a vontade de despejá-lo em seu colo seria muito grande.
Eu me joguei na mesa e percorri o Twitter, fingindo não
ouvir as risadinhas vindo da cozinha. Quando houve um
estrondo e mais risadas, instintivamente olhei naquela direção.
Fui punida com um vislumbre deles trocando saliva. Nojento.
Examinei o cômodo em busca de uma mala de viagem e
felizmente não vi nenhuma. A menos que ela carregasse uma
calcinha limpa e uma escova de dentes em sua bolsa.
Nojento. Por que minha mente foi até isso?
Tentei investir em um tópico sobre um cara que conheceu
o presidente quando estava chapado. Talvez eu também tenha
procurado se Ruby tinha uma conta, mas se ela tinha, não
consegui achar.
Quando papai e Beth finalmente saíram da cozinha, as
bochechas de papai rosadas e os olhos de Beth brilhando, eu
revirei os olhos. A probabilidade de eu manter o jantar no
estômago estava diminuindo. Aproveite enquanto dura. Pelo
menos um de vocês vai ficar seriamente machucado por esta
decisão precipitada. Eu apostava em Beth. Papai já tinha um
histórico de abandono de esposas. Quase me fez sentir pena
dela. Corra agora, Beth! É melhor você torcer para não pegar
um resfriado nem nada. Papai vai sair caçando a próxima garota
porque ele teve que esquentar canja de galinha por uma semana
e foi muito difícil para ele.
Decidi não emitir esse aviso em particular. Ela procurou isso
para si, afinal. Não era meu trabalho protegê-la de sua própria
estupidez. Além disso, talvez ela largasse o papai e ele provaria
seu próprio remédio. Uma foto de papai envelhecendo
sozinho, abriu caminho em minha cabeça. Eu a empurrei para
longe. Era muito confuso. Em vez disso, enfiei um pouco de
frango seco e sem tempero na minha boca e me concentrei
nisso.
Outro pensamento me ocorreu, no entanto. Se papai estava
tão interessado em substituir minha mãe por uma modelo mais
jovem e mais saudável, então eu não poderia estar sentada aqui
tão educada como se ela fosse uma estranha. Ela já tinha
perdido anos de discussões e comentários sarcásticos. Eu
deveria fazê-la se sentir mais parte da família.
— Então, devo chamá-la de nova mamãe ou...? — Eu
mastiguei o frango com a boca aberta. — Papai abriu a boca
para me repreender, ou talvez fosse seu queixo caindo. — Eu só
estou brincando com você. Quebrando o gelo, você sabe. — Eu
dei a ambos minha melhor cara de inocente. Acho que queria
começar uma briga, mas para minha surpresa, Beth riu.
Pelo menos ela não era uma merda seca total.
A hora seguinte foi uma mistura do som de garfos raspando
contra nossos pratos e conversa empolada tão interessante
quanto o arroz cozido simples que eu estava enfiando na boca.
Beth perguntou como eu me saí nas provas e o que eu queria
estudar na universidade e eu inventei algumas respostas
adequadas e não sarcásticas. A certa altura, papai conseguiu de
alguma forma transformar um comentário sobre abacate em
uma conversa sobre a pena de morte para me fazer falar. Eu não
sei como ele fez isso. Essa era sua habilidade especial.
— Certo, mas e se eu for assassinado. Você não iria…
— Pai, sério, realisticamente falando, se alguém for te matar,
vai ser eu. Então, não.
— Mas e se…
— Oh, Deus, faça isso parar — eu lamentei.
Assim que terminamos o jantar, papai limpou a mesa e Beth
se acomodou no sofá. Ela parecia deslocada. Ela não pertencia
ao nosso sofá.
Não pude deixar de me lembrar da primeira vez que a
conheci. Eu estava com mamãe, talvez uma semana depois que
ela se mudou, no máximo, e quando cheguei em casa Beth
estava lá, parecendo culpada, no mesmo lugar no sofá. Papai
tentou agir casualmente.
— Como estava sua mãe? — Ele disse, depois que Beth
pulou do assento como se estivesse pegando fogo e deu uma
desculpa esfarrapada para ir embora. — Você fez alguma coisa
legal?
— Quem era aquela? — Eu disse bruscamente, ignorando
sua tentativa de distração.
— Hmmm? Ah, Beth, uma cliente de publicidade. — Ele
saiu da sala para a cozinha e eu o segui. Papai era desenvolvedor
web e trabalhava com muitos publicitários. A coisa de cliente
poderia ter sido verdade. Ela parecia o tipo de pessoa que
trabalhava em publicidade. Esse é o melhor tipo de mentira,
não é? O que é tecnicamente verdade.
— Por que ela estava aqui? — Sentei-me à pequena mesa do
café da manhã e mantive minha voz propositalmente firme. Eu
queria que ele me convencesse. Uma sensação de mal-estar no
meu estômago começou a revirar no momento em que a vi e eu
queria que isso fosse embora. Eu realmente queria estar errada.
— Ela mora perto. Eu disse que a encontraria aqui para
discutir algumas coisas para que eu pudesse estar em casa mais
cedo para variar.
Ele começou a tirar panelas e frigideiras dos armários. Eu o
observei fingir examinar um pacote de macarrão seco como se
a informação nutricional fosse de repente importante para ele.
— Então, como estava sua mãe? — Ele perguntou
novamente.
Senti-me deslocada do momento. A sensação de mal-estar
no meu estômago desapareceu.
— Você dormiu com ela? — Eu senti como se estivesse
assistindo à cena se desenrolar em vez de participar dela. Como
se tudo estivesse acontecendo no espelho.
— O quê? Saoirse!
Não respondi, não expus meu caso. Eu esperei. Eu queria
ver o que ele ia dizer. Era estranho observá-lo, seu rosto, sua
linguagem corporal revelando cada pensamento tão claramente
como se eu pudesse ler sua mente. Observei a mudança da
indignação para a resignação.
Finalmente, ele se sentou à minha frente na mesa e colocou
a cabeça entre as mãos, alisando o cabelo no couro cabeludo, a
testa enrugando com tanta força que lhe daria dor de cabeça
mais tarde.
Quando ele falou, ele falou para a mesa.
— Eu não queria que você descobrisse dessa maneira. Nos
conhecemos há alguns meses e nos demos bem. Já fomos em
alguns encontros. Eu queria te contar, mas eu queria esperar até
que eu soubesse que ia ser alguma coisa.
Ajudou que ele soasse como um personagem de um
programa de TV. Que ele era tão clichê, fez a coisa toda parecer
menos real.
— Mas a mamãe — eu disse. — Você está traindo ela.
Lembrei-me deles me contando sobre o divórcio,
enfatizando como era apenas no papel. Isso sempre foi
mentira?
— Saoirse, a condição de sua mãe se deteriorou há muito
tempo. Ela nem sabe quem eu sou.
— Essa parte é nova — eu apontei.
— Faz pelo menos um ano, amor.
Um ano não é muito tempo.
— Eu não estava procurando por alguém — ele disse como
se isso fosse uma defesa.
Quando eu não disse, Oh, bem, está tudo bem se ela
simplesmente cair no seu colo, então, ele continuou.
— Às vezes, quando visito Liz, ela pensa que sou um dos
funcionários. Vinte anos que estivemos juntos e quando ela me
olha como se eu fosse um estranho, isso me mata. Eu sei que
não é verdade e ela não pode evitar, mas alguns dias parece que
tudo não significou nada para ela.
Isso me deixou sem fôlego. Ela me olhou assim também. Isso
significava que todos os anos em que ela foi minha mãe não
significaram nada? Parou de contar a primeira vez que ela me
chamou de Claire, o nome de sua irmã, ou a décima, ou a
duzentas?
Eu podia entender meu pai se sentindo daquele jeito, mas
não podia entender que ele desistisse e a abandonasse por
alguém novo.
— É por isso que você a colocou em uma casa de repouso?
Então, você poderia sair com outra pessoa?
Ele se encolheu.
— Deus. Não, claro que não. Você sabe que não podemos
cuidar dela aqui. Não era mais seguro. Ela precisa de cuidados
24 horas por dia. Você sabe disso — ele disse, e trancou os olhos
em mim. — Você concordou com isso.
A repugnância agitou meu estômago. Ele estava se
esforçando para se livrar dela por muito tempo antes que eu
finalmente desistisse. Eu me levantei, empurrando a cadeira
para trás contra os azulejos com um guincho.
— Eu nunca mais quero ver aquela mulher aqui novamente.
— Saoirse… — ele gritou atrás de mim frouxamente. Ele
queria que eu entendesse como era para ele para que eu pudesse
sentir pena dele porque ele passou os últimos anos cuidando de
minha mãe, a mulher com quem se casou. A coisa toda “na
saúde e na doença” deve ter passado pra ele. Ele queria que eu
entendesse por que ele precisava trai-la. Mas no final, seu desejo
de evitar brigas sobre isso era mais forte.
Busquei refúgio na casa de Hannah por três dias. Ele tentou
ligar, mas eu o ignorei. Eventualmente, seus pais me disseram
que eu tinha que ir para casa, o que era um tanto ridículo,
considerando o número de noites que Hannah passou na
minha casa. O número de vezes que ela veio à minha casa para
conversar com minha mãe sobre seus problemas porque seus
próprios pais sempre a faziam se sentir pior. Eu realmente não
tinha notado que eu estava indo até ela com muito mais
frequência do que ela estava vindo até mim.
As coisas reanimaram com papai depois de um tempo, é
claro. Eu não sabia como ficar com raiva e não sabia como parar
de ficar com raiva e não tinha certeza de qual eu queria mais. A
energia necessária para continuar odiando alguém é difícil de
sustentar. Mas eu nunca realmente o perdoei. Entramos em
uma paz frágil, mas nunca mais foi a mesma coisa. Antes de
Beth, eu achava que papai e eu estávamos nisso juntos. Mesmo
que eu nem sempre concordasse com o que ele achava que era
o melhor, eu achava que pelo menos isso o machucava tanto
quanto me machucava. Depois de Beth eu estava sozinha.
— Que tal um filme, então? — Papai ficou de pé, mãos nos
quadris, examinando nós duas e parecendo muito satisfeito
consigo mesmo. — Nós não assistimos Gonjiam: Haunted
Asylum desde que foi lançado.
— Acho que não — eu disse friamente. — Eu não gosto de
filmes de hospital psiquiátrico. Eles são ofensivos.
— Ofensivos como? — Papai revirou os olhos.
— Como eles não são ofensivos? Pessoas com doença
mental são inerentemente assustadoras? — Eu disse, ficando
irritada.
— Talvez seja um comentário sobre o sistema de saúde
mental causando danos iatrogênicos a uma população
traumatizada — disse papai, claramente satisfeito com suas
grandes palavras.
— E então eles morrem e se tornam fantasmas assustadores?
— Beth entrou na conversa, cética.
Nós dois olhamos para ela por um momento.
— Exatamente — eu disse. — Mesmo que o que você disse
fosse remotamente preciso, como tornar seus espíritos os vilões
sensíveis?
— Bem, que tal…
Então percebi que tinha sido sugada para outro debate.
Papai já sabia que eu odiava “horror de asilo”. Mamãe também
odiava. Ela era uma terapeuta, afinal. Ela odiava a ideia de
trancar as pessoas do resto do mundo só porque elas estavam
sofrendo. Ela sempre disse que não era compaixão ou cuidado,
era medo. Foi isso que fizemos com ela? Se ela estivesse aqui, se
ela estivesse bem, ela o teria desligado imediatamente. Eu queria
que ela aqui para dizer algo inteligente e atencioso que o fizesse
ficar quieto e depois acenar com a cabeça e dizer você está certa,
amor. Ela era tão boa nisso. Eu a queria aqui do meu lado. Mas
era só eu.
Eu decidi puxar o cordão nesta noite terrível.
— Não tenho tempo para isso. Eu tenho que ir ao
aniversário de alguém — eu disse.
— Aniversário de quem? — Papai me olhou desconfiado.
Ele consultou o relógio. — Está meio tarde.
— Tudo bem, vovô. É aniversário de Ruby.
— Quem é Ruby?
— Uma garota. Uma amiga. Ela é nova.
Eu pensei com certeza que ele iria negar. Então eu teria que
fugir e seria toda uma coisa. Já havíamos jogado esse jogo na
semana passada; eu não estava pronta para outra rodada. Em
vez disso, papai ficou com um brilho nos olhos.
— Ohhhh — ele disse lentamente —, uma nova “amiga”.
Ruby, hein? — Ele piscou para mim e eu senti todas as minhas
entranhas estremecerem.
— Pai, não…
— Saoirse é lésbica — papai explicou significativamente
para Beth, que para seu crédito não parecia saber como
responder a essa proclamação. Se eu estivesse de melhor humor,
poderia ter brincado que a genuflexão bastaria.
— Pai, Ruby não é…
— Vá, Saoirse, saia daqui. Vá dizer olá para Ruby por mim.
— Ele disse o nome dela de uma forma que fez soar como
“Ruby e Saoirse sentadas debaixo de uma árvore” se eu não
saísse rapidamente.
— Essa é totalmente a primeira coisa que vou fazer. Dizer a
ela que meu pai, que ela nunca conheceu, disse olá. Isso não é
nada estranho.
— Ah, certo — ele sorriu bobo —, eu suponho que seu
velho pai será a última coisa em sua mente quando você a vir.
Amor jovem e tudo mais.
— Por favor, pare. — Eu estremeci.
Beth me deu um aceno manso. Papai gritou comigo que
ainda tinha alguns pontos positivos a fazer sobre o filme
Gothika. Bati a porta atrás de mim.
Ainda bem que eu tinha feito meu delineador depois de
tudo.
Meu bairro é bom. Quando eu era pequena, achava que era
“normal” – o tipo de lugar que a maioria das pessoas morava.
Mas posso ver agora que o que temos é muito bom em
comparação com muitas pessoas. As coisas ficaram um pouco
mais apertadas depois que mamãe foi para os cuidados em
tempo integral, pagamos a mais para colocá-la na melhor
clínica, mas conseguimos pagar por isso e acho que isso nos dá
muita sorte.
O bairro de Oliver está muito acima disso. As casas iam
ficando cada vez maiores até que você não podia mais ver as
casas porque elas estavam no final de longas entradas e muros
de pedra. Não é uma mansão nem nada, mas é bem grande, tem
jardins (plural), um lago e esse tipo de coisa. Eu sabia
especificamente que as casas nesta área custavam uma boa
grana porque Hannah costumava querer viver numa casa
muito bonita de tijolos cinza com uma torre de verdade. Estava
à venda no ano passado, então procuramos no site do agente
imobiliário e concluímos que nunca teríamos condições de
comprar algo assim. Nós nos recompomos e nos concentramos
em viver em qualquer lugar, desde que estivéssemos juntas.
Três meses depois, ela terminou comigo, então não sei se ela
realmente quis dizer aquilo quando falamos sobre o futuro
juntas. Essa foi uma das coisas mais difíceis do término. Não é
um par de suportes para livros, o começo e o fim. É o desenrolar
do futuro. O apartamento no qual nunca iríamos morar juntas,
o gato que nunca pegaríamos no abrigo. Eram todas as vezes
que eu não a ouviria falar sem parar sobre algum filme chato
que eu não conseguia assistir, ou o jeito que eu não a veria fazer
aquele sapateado bobo que ela faz quando está
experimentando sapatos novos. São todas as coisas que
costumávamos fazer que nunca faríamos novamente e todas as
coisas que nunca faríamos pela primeira vez juntas.
Quando coloquei meu dedo na campainha dos Quinns,
percebi que não tinha dito a ninguém que estava vindo. Eu não
tinha trazido um presente ou mesmo um cartão. O que eu
estava fazendo aqui? Vir aqui para vê-la novamente daria
algumas ideias sérias de procura de um relacionamento e isso
era contra as regras.
Ou eu estava pensando demais? Poderíamos ser amigas,
certo? Ruby não tinha amigos aqui e nem eu. Quem não
gostaria de um amigo casual para o verão?
Fiquei parada por um minuto, pesando as opções. Se eu
quisesse só ser amiga, talvez eu devesse voltar amanhã. À luz do
dia. Como uma pessoa normal. Com um cartão de aniversário
atrasado e um pedido de desculpas.
A porta da frente se abriu.
Merda.
— Você tem que pressioná-lo para sair aquele som, você
sabe. — Oliver estava na porta vestindo uma camisa de botão e
calças cáqui de verdade.
— Você parece o membro perdido do One Direction — eu
disse.
— Haverá uma reunião e estou pronto para isso — disse
Oliver. — Como você passou pela segurança?
— Que segurança?
— O grande portão na rua para manter a ralé fora.
— Você é rico, eu não. Ha ha.
— Bem, eu não estava esperando você, então tive que
recorrer a algo fácil. Eu deveria ter seguido o caminho da
promiscuidade.
— Uma oportunidade perdida — eu respondi secamente.
— Como você sabia que eu estava aqui?
— Eu estava passando e ouvi você murmurando sozinha. —
Ele apontou para a parede ao lado da porta, por onde eu passei
pela soleira e vi que havia uma pequena tela de segurança.
— Eu não estava murmurando.
— Sim, você estava. Por um tempão. Eu estava aqui rindo
de você.
Olhei em volta procurando por sinais de quaisquer outros
membros inespecíficos da família Quinn. No corredor, uma
porta estava entreaberta e música e risadas fluíam.
— Vou presumir que Ruby te convidou em alguma névoa
sáfica pós-sexo, mas você está muito atrasada para o jantar.
Posso presumir que foi convite para uma rapidinha?
— Nós não… — eu comecei, mas não terminei. Eu não tive
que responder a ele. Eu senti uma pequena emoção quando ele
disse o nome dela, no entanto. Uma emoção de amizade. Novos
amigos são emocionantes.
— Deve ser uma primeira vez para você — disse ele,
sorrindo.
Revirei os olhos. Corrigi-lo só iria encorajá-lo a pensar que
era da conta de qualquer pessoa, menos minha e da pessoa com
quem eu não estava fazendo isso.
— E algum dia você terá sua primeira vez também — eu
disse, apertando seu ombro.
Olhei para a sala de onde a música estava vindo. A luz de
uma tela cintilou contra a lasca visível de papel de parede
opulento. E se eu entrasse lá e Ruby ficasse irritada comigo e
me dissesse para sair? Ou se ela realmente não se lembrasse de
mim? Talvez ela beijasse garotas e as convidasse para festas o
tempo todo. Ela disse que era uma coisa de família, mas ela
poderia ter conhecido muitas pessoas desde a semana passada.
E se aquela sala estivesse cheia de lésbicas gostosas?
Bem, quero dizer, isso não soava terrível, mas ainda assim.
— Você está certo, porém — eu disse, recuando —, eu estou
muito atrasada e eu não deveria atrapalhar a festa.
— Oliver, tem alguém na porta? — uma mulher chamou.
Eu balancei minha cabeça para ele.
— Sim, mãe, temos uma visita.
Eu dei a Oliver meu olhar mortal mais potente. Isso não o
incomodou. Ele me arrastou para a sala pela mão. Era
iluminada por velas e lâmpadas de aparência cara que lançavam
sombras misteriosas na parede, fazendo a cena parecer mais
sinistra do que realmente era. Isso me lembrou aquela parte em
um romance de Agatha Christie pouco antes do corpo de uma
pessoa rica ser encontrado em um tapete persa. Havia alguns
balões de hélio com “18” neles que meio que aliviavam a tensão
da atmosfera. Eu me perguntei se Ruby ainda não tinha
terminado a escola, ou se ela era apenas uma das mais novas da
turma como eu.
A mãe de Oliver estava sentada em um dos dois sofás estilo
Luís XVI, do tipo que são fantasticamente desconfortáveis,
mas muito chiques. Ela sabia que Jack Kennedy perdeu a
virgindade em um daqueles sofás? A julgar pelo fato de que eles
não tinham incendiado os dois, provavelmente não. O pai de
Oliver estava no centro da sala, com um microfone na mão,
parado, evidentemente no meio da apresentação.
Ruby não estava lá.
— Mãe, pai, esta é Saoirse — disse Oliver.
— Prazer em vê-los, Sr. e Sra. Quinn — eu disse.
Seu pai saltou para frente para apertar minha mão. Eu
odiava quando os pais faziam isso. Foi tão estranho, mas ele
tinha um sorriso tão caloroso no rosto quando ele me disse para
chamá-los de Harry e Jane que eu não pude culpá-lo.
— Saoirse, seja bem-vinda à festa. Você tem uma música
tema? — Ele indicou a tela da TV, que ainda estava tocando a
letra do que reconheci como uma música de Sarah McLachlan,
embora alguém tivesse silenciado a música de fundo quando
entrei.
— Não… — Eu não cantaria. Nem agora, nem nunca.
— Não deixe a pobre garota sem graça. — Jane balançou a
cabeça. — Sente-se, querida, eu vou pegar a lista para você
olhar.
Não sei o que me deu mais pânico, a lista de opções de
músicas ou ter que escolher entre os dois sofás sem saber qual
era o sofá do sexo. Tentei chamar a atenção de Oliver para
silenciosamente verificar o estado dos sofás, mas ele me deu um
olhar vazio em troca. Assim que me sentei e ninguém estava
olhando, Oliver fez o gesto universal para sexo hetero e
apontou para o lugar em que eu estava sentada.
Estremeci involuntariamente.
— Ruby, nós temos uma convidada — Jane disse, e minha
cabeça se ergueu.
Lá estava ela, parada na porta, os olhos arregalados de
surpresa. Levantei-me automaticamente, como se ela fosse
algum tipo de dignitário. Ela tinha uma taça de algo
borbulhante na mão, não alcoólica, eu assumi, e seu cabelo
bagunçado estava jogado para um lado, seu piercing no lábio
brilhando contra a luz das velas. Ela usava um vestido-avental
jeans coberto de insígnias com meia-calça rosa e sapatilhas
douradas brilhantes nos pés. Eu me preparei para a
possibilidade de ela me olhar friamente e perguntar por que eu
estava ali.
Mas ela sorriu.
Eu a absorvi, verificando meu corpo em busca de sinais da
oscilação. Para batimentos cardíacos ignorados ou reviravoltas
no estômago. Eu estava bem. Ela era apenas uma garota.
Apenas uma garota que eu beijei que eu poderia ser totalmente
amiga.
Então ela atravessou a sala em poucos passos e me abraçou.
O cheiro de produto de cabelo frutado subiu pelo meu nariz.
Não que eu tenha cheirado o cabelo dela, você sabe. Você não
faz isso com os amigos.
Ela sussurrou em meu ouvido:
— Estou muito feliz por você ter vindo. — Sua respiração
fez cócegas. Ela segurou meu olhar por um momento enquanto
se afastava, os olhos brilhando. Ela me deu um longo olhar para
cima e para baixo. Ou talvez tenha apenas parecido muito
tempo. — Eu suponho que você está escondendo um presente
em algum lugar? — ela disse, seus lábios se curvando
ligeiramente.
A oscilação voltou.
A oscilação era uma responsabilidade.
Antes que eu pudesse dizer algo inteligente ou apenas pedir
desculpas, Jane falou.
— Você conseguiu falar com sua mãe? — Ela perguntou
com uma ruga simpática de sua testa.
Ruby balançou a cabeça. Ela parecia triste, mas deu de
ombros. Talvez percebendo que agora todos estavam olhando
para Ruby, Jane se virou para mim.
— Saoirse, como você já conhece minha linda sobrinha? Ela
está na cidade há apenas dez minutos e fez uma amiga.
Ruby e eu nos sentamos ao mesmo tempo. Perto o
suficiente para que eu pudesse sentir o cheiro de seu perfume.
Perto o suficiente para que, quando deixei minha mão
descansar ao meu lado, seu dedo mindinho fez cócegas no meu.
De uma forma amigável, é claro.
— Oh, bem, Oliver nos apresentou. Mais ou menos — eu
disse significativamente, lembrando a ele que eu poderia
denunciá-lo sobre seu hábito de festa em troca de não me avisar
sobre o sofá. Havia pânico em seus olhos e eu sorri
presunçosamente antes de continuar. — Ele está sempre
reunindo as pessoas, fazendo conexões e tudo mais.
— Você está na sala de Oliver?
Eu balancei a cabeça em concordância.
— Quais são seus planos, então, para o próximo ano?
Universidade? Ou talvez tirar um ano sabático como a nossa
Ruby?
— Saoirse está indo para Oxford, mãe — Oliver disse antes
que eu pudesse responder.
A cabeça de Ruby virou na minha direção. Mas eu não olhei
diretamente para ela. As pessoas têm sentimentos fortes sobre
lugares como Oxford. Ou eles pensam que você é algum tipo
de gênio (eu não sou), que você é rico (eu não sou) ou que você
acha que é melhor do que todo mundo (definitivamente não
sou assim).
— Ah, muito bem, querida. O que você vai estudar?
Dei de ombros e desviei da pergunta.
— Talvez eu nem consiga entrar. Tudo depende de obter
pontos suficientes nas provas.
Era isso que eu dizia às pessoas, que talvez eu não entrasse.
Porque você não pode dizer eu não quero ir. Embora
respondesse à pergunta de se ela ainda estava na escola, me
perguntei por que Ruby estava tirando um ano sabático.
Provavelmente vai viajar pelo mundo ou alguma outra coisa
boêmia excitante que só pessoas ricas fazem. Ela achava que eu
era chata por não fazer algo mais divertido?
Ela se mexeu um pouco e deixou seu joelho cair contra o
meu de uma forma que parecia deliberada. Não sou chata,
então.
— E o seu verão? — Harry esfregou as mãos. — Algum
plano emocionante?
— Acho que vou procurar um emprego, mas ainda não
recebi nenhuma proposta ainda.
— Veja, Oliver — Harry disse, apontando para seu filho,
que olhou em volta inocentemente, como se pudesse haver
outro Oliver na sala. — Você deveria estar procurando por um
emprego de verão também.
— Querido pai, já passamos por isso... estou ocupado.
Jane riu.
— Vou ocupar você. O que você acha, Saoirse? Oliver
deveria ter que levantar a bunda e realmente fazer alguma coisa?
— Que tal um bom trabalho voluntário? Ajudar a
comunidade — eu disse com inocência de olhos arregalados.
Oliver parecia traído. Presumivelmente, a única coisa pior
para ele do que trabalhar seria trabalhar de graça.
Ruby tinha acabado de tomar um gole de sua bebida, então
quando ela bufou de tanto rir da expressão de Oliver, ela
engasgou. Eu coloquei minha mão em seu joelho quando
perguntei se ela estava bem e então a tirei rapidamente quando
me lembrei da coisa do amigo. Eu não queria dar a ela a ideia
errada.
— Oh, Saoirse, nós ainda não pegamos uma bebida para
você, o que você quer?
— Estou bem, de verdade, obrigada.
— Cale-se agora, você vai precisar de um pouco de coragem
holandesa se você vai se aproximar do microfone — disse
Harry, rindo.
— Isso mesmo, eu disse que te daria a lista de músicas que
temos — Jane disse, levantando-se. — Você é mais uma garota
pop ou uma estrela do rock?
— Uh…
— Saoirse é obviamente perfeita para uma balada pop
poderosa. — Oliver sorriu, me pagando de volta pelo meu
comentário sobre o trabalho voluntário.
Eu cutuquei Ruby com meu joelho e ela chamou minha
atenção. Tentei enviar-lhe sinais de pânico, mas não sabia se
estávamos no nível da comunicação tácita do globo ocular.
— Jane, acho que Saoirse talvez seja um pouco tímida
demais para cantar agora.
Foi a vez de Oliver bufar.
— Talvez mais tarde, quando você tiver visto o resto de nós
nos envergonhar — disse Harry, e estendeu o microfone para
Oliver. — Filho, você não ia cantar “Kiss from a Rose” em
seguida?
Eu mal podia conter minha alegria. Eu me virei para Oliver,
esperando que ele ficasse envergonhado. Ele caminhou até seu
pai e pegou o microfone. Ele estendeu os braços acima da
cabeça e, em seguida, esticou as pernas no braço do sofá como
se estivesse se aquecendo para uma corrida.
— Tenho apenas um pedido. — Ele dirigiu essa fala para
mim.
Presumi que ele ia me pedir para não dizer uma palavra a
ninguém. Eu estava errada.
— Por favor, guarde seus aplausos para o final da
apresentação.
Depois de mais três performances de Oliver em vários gêneros,
mais duas de Sarah McLachlans de Harry, e um dueto divertido
de Ruby e uma Jane muito embriagada e levemente dramática,
Ruby me lembrou que eu tinha deixado minha blusa no andar
de cima e perguntou por que não eu ia lá em cima pegar. Harry
e Jane estavam bêbados demais para questionar por que ou
quando eu deixei peças de roupa na casa deles.
— Oliver na verdade não é ruim — eu disse enquanto seguia
Ruby escada acima. — Você sabe que eu não diria isso a ele,
mas ele sabe como segurar uma nota. Eu não vou aconselhá-lo
a desistir de seus planos de universidade ou qualquer coisa,
mas… — Eu estava divagando. Eu estava nervosa. Sentada ao
lado dela a noite toda, mesmo quando eu estava assistindo
Oliver cantar “Um Mundo Ideal” (ambas as partes), eu senti
esse zumbido de eletricidade, uma carga estática que continuou
crescendo e crescendo.
Seu quarto estava mais vivo do que da última vez. A bolsa
esportiva na qual eu tropecei havia sumido e havia livros nas
prateleiras. Ruby se sentou em uma poltrona azul-pavão que
não estava lá na semana passada, dobrando as pernas sobre o
assento.
— Então, onde está o meu top? — Eu disse.
— Eu não faço ideia. Joguei na lavanderia e desapareceu. —
Ela sorriu.
Eu me sentei na beirada da cama ao lado de seu laptop
aberto. Estava congelado no meio da cena de um filme que não
reconheci.
— O que você estava assistindo?
— Quatro Casamentos e um Funeral — disse ela. — Estou
na parte em que Hugh Grant está dizendo a Andie MacDowell
que a ama na chuva.
— Nunca ouvi falar.
Ela parecia genuinamente chocada.
— É um clássico. É o meu favorito. A comédia romântica
para acabar com todas as comédias românticas.
— Eu realmente não assisto a esse tipo de filme. Eles dão às
pessoas expectativas irreais de amor. — Se você fosse o tipo de
pessoa que confiava em comédias românticas para lhe dizer
como era a vida, ficaria muito desapontado. Coração partido
não é comer um pote de sorvete e depois encontrar o novo
amor da sua vida na livraria independente. Se era assim que
Ruby via os relacionamentos, ela provavelmente não
entenderia minha aversão a eles.
— Que filmes você gosta?
— Se eu tivesse que escolher um gênero, seria terror.
— Isso não lhe dá expectativas irreais sobre a probabilidade
de você ser esfaqueado por um maníaco empunhando uma
faca?
— Você tem um ponto — eu ri. — Mas são os finais que me
incomodam nas comédias românticas. Você sabe, onde eles
ficam juntos, se casam ou o que quer que seja e você deve pensar
que são felizes para sempre, mas você nunca vê a sequência
onde o cara a abandona por sua melhor amiga ou a garota fica
cansada de pegar calças largadas do chão do quarto.
— Seria um filme terrível. — Os olhos de Ruby brilharam.
Acho que ela achou engraçado meu cinismo desenfreado. Isso
fez minhas bochechas ficarem quentes.
— Então, você disse que ficaria para o verão? — Eu disse
casualmente.
— Até setembro. — Ela assentiu. — Minha família está fora,
mas eles não queriam que eu ficasse sozinha o verão todo.
Isso era estranho. Se eles não queriam que ela ficasse sozinha,
por que não a levaram com eles? Problema deles. Eu poderia
fazer companhia a ela durante o verão. Eu era capaz de passar
algumas semanas com uma garota bonita e não precisar beijá-la
novamente. Eu não era algum tipo de peste sexual.
— Estou feliz que você veio esta noite — disse ela, mudando
de assunto. Eu observei seus lábios enquanto ela falava. — Você
chegou atrasada, mas você veio.
— Eu provavelmente deveria ter mencionado que eu vinha.
— Mas você se decidiu no último minuto. — Não era uma
pergunta. Seus dentes brincaram com o piercing no lábio,
torcendo o lábio inferior. Ela empurrou o cabelo de um lado da
cabeça para o outro com os dedos.
— Tipo isso.
— Então, o que fez você vir?
Achei que poderíamos sair. Eu queria ser sua amiga.
— Eu queria te beijar de novo.
Por alguma razão eu deixei a verdade sair. Mesmo que eu
não tivesse admitido para mim mesmo até agora que, embora
mal nos conhecêssemos, eu sentia que havia algum tipo de
conexão intangível, um sentimento de agarrar, alcançar,
procurar, que significava que eu não tinha escolhido tanto vir
aqui. quando me vi puxada em sua direção.
Ruby apoiou o cotovelo na mesa ao lado da cadeira e levou
o punho à boca como se estivesse refletindo sobre algo muito
sério.
— Vou manter isso em mente — disse ela finalmente.
Eu abaixei minha cabeça para esconder minha diversão. Eu
poderia suportar um pouco de provocação.
— Então você e Oliver são realmente amigos? — ela
perguntou.
— Oh, Deus. Não. Absolutamente, não. Acho que inimigos
mortais é uma descrição mais precisa.
— E por que isso?
— Ele roubou minha namorada no segundo ano... e
tecnicamente eu terminei com ele antes disso, na sexta aula.
Parti seu pobre coração de menino rico. Ele estava totalmente
devastado, tenho certeza de que ele lhe diria isso. Acho que ele
roubou minha namorada como parte de um plano de vingança
de longa data. O pobre coitado não conseguia lidar com isso,
uma vez que aceitei que era lésbica, tive muito mais sorte do
que ele.
Ruby riu.
Eu gostava de fazê-la rir.
— Acho que nenhum de vocês tem sorte.
Engasguei com minha indignação, batendo no peito duas
vezes para tirar tudo.
— Com licença. Eu peguei você e seu primo — eu rebati. —
Claro, nós tínhamos onze anos, mas nos beijamos com línguas
e tudo mais. Mais ou menos.
— E ainda assim você quer me beijar de novo, mas você veio
ao meu aniversário sem nem trazer um presente? — Ruby
fingiu se abanar como as damas de outrora.
— Eu também tenho um presente para você — eu disse,
pulando da cama. — Espere um segundo.
Com o conteúdo insignificante de um velho pote de canetas
e uma folha de papel rasgada de um bloco de arquivo sobre a
mesa, comecei a trabalhar. Depois de rabiscar apressadamente
por alguns segundos, chamei-a para a janela que dava para o
jardim dos fundos. Eu pensei ter visto nossa gata rastejando
pela parede no escuro. Minha mão descansou na curva de suas
costas, o lado esquerdo de seu corpo pressionado contra mim.
Entreguei-lhe a folha de papel.
Desenhei uma borda ondulada com marcador azul e, com a
caneta preta, escrevi:
Este documento declara que “aquela estrela ali”
tem o nome de Ruby Quinn.
Assinado: Brian Cox, proprietário da Stars.
Ruby deu uma risadinha.
— Qual é?
— Aquela estrela bem ali. — Apontei vagamente para o céu.
— Diz isso no certificado, Ruby.
— Vou guardá-lo para sempre. — Ela enxugou uma lágrima
falsa. Então ela me deu uma olhada, um olhar que só posso
descrever como avaliador.
— O que foi?
— Bem, eu não sei se você vai gostar disso — ela disse,
fingindo uma espécie de suspiro teatral — mas você deveria
saber que essa é minha parte favorita da comédia romântica.
— O que você quer dizer?
— Você sabe, o grande gesto em que o cara compra uma
estrela para a garota porque é muito mais significativo do que,
tipo, um colar ou um buquê de flores.
— Eu não sou especialista, mas não acho que este seja o
grande gesto — eu disse, e Ruby se virou um pouco, então
minha mão estava agora descansando em sua cintura. Ela estava
olhando diretamente para mim agora e era quase demais para
suportar.
— Você me deu uma estrela. Como isso não é um grande
gesto?
— O grande gesto vem depois de uma briga, não é? Nós não
tivemos uma briga. — Tentei parecer relaxada, embora sentisse
que poderia derreter em uma poça.
— Você está certa, na verdade — Ruby admitiu. — Como
Hugh e Andie, ou John Cusack segurando o aparelho de som
do lado de fora da janela do quarto de Ione Skye. — Ruby me
cutucou no peito e estreitou os olhos. — Como você sabe disso
se você não as assiste? Tem certeza de que não é uma fã secreta
de comédias românticas?
— Eu não preciso assistir, esse é o meu ponto; uma vez que
você viu um, você viu todos eles. Eles se encontram de uma
maneira peculiar, como se esbarrando um no outro...
— O encontro fofo.
— Se você diz.
Ruby mostrou a língua para mim e se afastou. A tensão que
se acumulou entre nós era como um elástico apertado; quanto
mais longe ela ficava, mais eu pensava que poderia explodir. Ela
subiu na cama e se deitou. Resisti à vontade de segui-la e me
encostei na parede, esperando parecer devastadora no fluxo de
luar da janela.
— Então o encontro fofo, daí eles têm uma sequência
apaixonada de piqueniques, encontros e alegria geral, mas oh
não, o que é esse conflito inventado? Uma grande briga, o herói
percebe que é um idiota, depois um grande gesto e felizes para
sempre. Esses caras não teriam que trabalhar tanto se não
agissem como idiotas em primeiro lugar, mas acho que seria
anticlimático.
— Ok, essa é a fórmula. Todas as histórias têm fórmulas.
São os personagens que os tornam especiais. — Ruby parecia
pensativa. — E quase não há comédias românticas gays, então
nossas regras podem não ser as mesmas. Poderíamos reinventar
o gênero.
— Oh, eles definitivamente não são os mesmos. Se fosse um
filme lésbico, infelizmente, uma de nós teria que se matar no
final.
— Drástico.
— Eu não faço as regras. Eu gostaria que houvesse muitas
comédias românticas felizes com garotas? É claro. Merecemos
tantos filmes brilhantes e de alto orçamento quanto qualquer
outra pessoa. Mas há, tipo, dois e elas se beijam quatro vezes no
total em ambos os filmes. Nem mesmo... — Faço gestos
entrelaçados com os dedos.
— Definitivamente, beijos nunca são suficientes — Ruby
disse, encontrando meus olhos. A maneira como ela disse isso
me fez querer pular pela sala e beijá-la, mas de alguma forma
meus pés estavam colados no local. O que estava errado
comigo?
— Certo. Quero dizer, há dois beijos em um filme — eu
disse, vagamente ciente de que estava me repetindo.
Ruby assentiu. Ela se levantou da cama.
— E você não pode nem mesmo chamá-los de grande
orçamento. Tipo, você só consegue reconhecer um ou outro
ator famoso.
Ruby caminhou em minha direção mantendo os olhos nos
meus.
— Eu vi um filme lésbico uma vez — eu falei —, onde uma
garota pula de um prédio e realmente parece que ela se
transforma em uma águia e...
Ruby parou de andar quando os dedos de suas sapatilhas
brilhantes bateram contra minhas botas militares gastas. O
resto da minha frase ficou preso na minha garganta.
— Você fala muito — disse ela.
Eu balancei a cabeça.
Ela virou o cabelo para o lado oposto. Meu estômago virou
para o lado oposto.
— Acho que devemos nos beijar agora. Você me deu a
estrela, afinal. — Ela gesticulou para o céu noturno. — E tenho
a sensação de que você está nervosa, então talvez devêssemos
fazer isso.
Eu não estava nervosa. Quero dizer, nós nos beijamos antes.
Então, por que eu estaria nervosa? Tentei dizer que não estava
nervosa, mas nada saiu.
Cale-se.
Um momento de silêncio se passou, a energia entre nós
aumentando. Seus dedos encontraram meus braços e ela traçou
uma linha do meu cotovelo até a palma da minha mão com o
dedo em ambos os lados, segurando minhas mãos levemente
quando as alcançou. Nossos dedos tocaram suavemente. Eu
podia sentir o subir e descer de seu peito contra o meu. Todos
os pelos do meu braço se eriçaram. Um arrepio correu da minha
garganta ao meu estômago e ainda mais. Nossos lábios ainda
não se tocavam, mas a ponta de seu nariz roçou minha
bochecha e eu podia sentir cílios longos tremulando contra
minha bochecha enquanto ela fechava os olhos. Por um
segundo respiramos o ar entre nós. Seus quadris se moveram,
espremendo o último pedaço de luz entre nossos corpos.
— Conheço alguns caras que pagariam um bom dinheiro
para ver isso. — Oliver se inclinou na porta, um sorriso
presunçoso em seu rosto, como sempre. — Mas não é
realmente minha praia, então feche a porta da próxima vez.
Eu ia matá-lo.
— Oliver! — Ruby gritou. Ela enterrou o rosto nas mãos.
— Vá embora, estranho. — Eu fui em direção a ele e ele
correu.
— Acredite em mim, não tenho vontade de ver minha
querida prima dando uns amassos na minha inimiga mortal,
mas a porta estava aberta. — Ele parecia tão genuinamente
ofendido que eu pensaria que ele nos espionaria que acreditei
nele.
— Está tudo bem, Oliver — Ruby disse com os dentes
cerrados; seu rosto reapareceu, mas suas bochechas estavam
rosadas. Ela havia recuado para sua cadeira e tinha os joelhos
puxados até o peito.
— Você deixou seu telefone no sofá. — Ele jogou para mim
e eu quase peguei. Deve ter caído do meu bolso.
— É melhor você não ter mexido nele.
— Eu nunca faria isso! — disse ele, indignado. Fiz uma nota
mental para verificar minhas fotos e mensagens mais tarde.
— Mamãe me pediu para levá-la para casa — continuou ele.
— Ela disse que era tarde demais para deixá-la ir para casa
sozinha. Eu disse que você provavelmente preferiria enfrentar
um assassino no mato do que passar dez minutos no carro
comigo, mas, por algum motivo, ela achou que eu estava
brincando.
Eu hesitei.
— Eu não bebi — acrescentou. — Isso interfere na
integridade do meu instrumento. — Ele acariciou sua garganta.
Eu poderia ter chamado papai para me pegar, mas pelo
menos assim eu não correria a chance de interrompê-lo no meio
de qualquer coisa. E se incomodava Oliver, era ainda melhor.
Olhei para trás, o rosto de Ruby estava de volta à sua cor
normal. Isso que eu vi era decepção?
— Você pode me dar cinco minutos?
— Até eu duro mais de cinco minutos, Saoirse. Existem
pílulas para isso.
Examinei a sala em busca de algo próximo, mas ele se
abaixou muito rápido, e o pote de caneta atingiu a porta em vez
de sua cabeça.
— Vocês dois são engraçados — disse Ruby.
— Ele é como o irmão chato que eu nunca quis e que um
dia vou ter que envenenar com cianeto.
Eu queria voltar para o beijo, mas não tinha certeza de como
recuperar o momento.
— E agora? — disse Ruby.
O que eu deveria dizer? Fui eu que voltei. Fui eu quem disse
que queria beijá-la de novo, mas quando chegou a hora de dizer
vamos fazer isso de novo ou eu ligo para você, foi como uma
pedra caindo no meu estômago, pesada e fria. Tinha sido tão
fácil manter a minha regra até agora, e claro, eu poderia jogá-la
fora, mas eu fiz isso por uma razão. Passei a maior parte da
minha vida com Hannah, melhores amigas e depois
namoradas. Quando ela me disse que não queria mais isso, eu
não sabia como ficar sem ela. Eu tinha passado pelos
movimentos da minha vida com o refrão constante Ela não te
ama mais e isso me fez sentir como se eu não contasse como
uma pessoa inteira por conta própria. Eu mal tinha passado
dessa fase e não podia voltar. E eu não podia dizer isso para
Ruby. Foi patético.
Mas eu poderia explicar de outra forma.
— Então, você sabe nas comédias românticas onde sempre
há uma pessoa que não quer estar em um relacionamento sério?
Ruby levantou uma sobrancelha e isso me fez desejar poder
levantar uma sobrancelha. Não que isso seja o foco aqui, mas
seria tão legal.
— É você, eu presumo — disse ela com a mesma expressão
que minha professora de francês faria quando eu disse a ela que
realmente deixei minha lição de casa na mesa da cozinha. Eu era
uma boa aluna e, no entanto, de alguma forma, sempre
inspirava apenas ceticismo. Não consigo imaginar por quê.
— Eu quero ser honesta — eu disse (desonestamente
mantendo a verdadeira razão pela qual eu não queria entrar em
um relacionamento em segredo).
— O que há de errado com os relacionamentos? Você quer
as coisas que vêm com eles.
— Um pouco disso — eu concedi. As coisas de beijar e
apalpar. Com ela. Eu queria mais disso com ela do que com
qualquer um. Desde Hannah. — A coisa é que, porém, os
relacionamentos estão fadados ao fracasso. Ninguém fica junto
para sempre. As separações nunca são mútuas. Uma pessoa é
surpreendida e magoada e é feio e bagunçado e... e além disso,
estou indo embora em alguns meses para a universidade e você
está aqui apenas para o verão. Então realmente não tem sentido.
Recusei-me a mencionar a parte em que estava seriamente
duvidando da minha decisão de me mudar. Não havia nada a
ganhar em entrar em todo aquele drama também.
— É isso? — Ruby disse, incrédula. — Relacionamentos
acabam?
— Bastante. — Eu me preparei para uma palestra sobre
como você tem que dar uma chance ao amor e o amor
verdadeiro está lá fora e você nunca vai encontrá-lo se você não
colocar seu coração na linha e uma história sobre como os avós
dela se conheceram quando tinham sete anos e eles ainda estão
juntos agora, embora tenham cento e sessenta e oito.
— E daí? — Foi é o que ela disse em vez disso.
— Er... o quê?
— Eu não estou tentando forçá-la a nada que você não
queira fazer. Confie em mim, não tenho o hábito de implorar
às garotas para sair comigo. Mas eu gosto de você e há outra
maneira de pensar sobre isso.
Eu estava interessada, mas não convencida. Eu também
fiquei um pouco irritada com esse negócio de “confie em
mim”. Aposto que as garotas estavam em cima dela. Aposto
que havia um monte de garotas gostosas na Inglaterra
esperando do lado de fora da porta dela. Obriguei-me a desligar
aquela tangente e prestar atenção, Ruby ainda estava falando.
— Como você disse, vou voltar para casa em setembro. Já
sabemos exatamente quando isso vai acabar.
— Ok… — eu disse, meu tom transmitindo que eu não
entendi onde ela queria chegar com isso. Ela estava provando
meu ponto. Estávamos condenadas desde o primeiro dia.
— Entãooo — ela disse, impacientemente explicando o que
ela achava que era óbvio —, sem surpresas, sem expectativas de
amor eterno. Nosso próprio experimento com um tipo
diferente de história lésbica. As coisas divertidas. O beijo, a
conversa, o namoro e ninguém morre no final.
— Apenas a sequência romântica — eu disse, finalmente
entendendo.
— Exatamente. Você não precisa levar tudo tão a sério.
Ela tinha um ponto.
— Você tem razão — eu disse. Era possível ter tudo e depois
não ficar triste quando o tudo deixa você e esmaga seu coração
em uma polpa mole? — Mas como isso funcionaria?
Ruby pensou por um segundo.
— Podemos experimentar. Um encontro, algo clássico do
cinema. Se nos divertimos, fazemos um plano adequado. Se
não o fizermos ou eu me apaixonar perdidamente por você,
juro que podemos cancelar.
Ela estava tirando sarro de mim, mas soava bem. Contava
como quebrar a regra de ouro de nenhum relacionamento?
Tecnicamente. Mas era uma brecha. As brechas estavam bem.
Eu não tinha levado em conta as brechas antes.
Tudo bem, escute, eu vou concordar com você, nós dois
sabemos que estou cheia de merda, mas deixe-me ficar com
esta, ok?
— Que tipo de clássico você está pensando? — Eu
perguntei. — Sinto que as pessoas sempre vão patinar no gelo
nesses filmes, mas não temos uma pista de gelo. E é junho.
— Esse é um clássico de “Filme de Natal em Nova York”.
Estamos fazendo o verão na praia. E depois? Tem que ser um
parque de diversões.
— Que conveniente — eu disse. — Temos um parque de
diversões aqui todo verão. — Fazia tempo que eu não ia.
Honestamente, ficar com torcicolo e náuseas fica chato depois
de alguns anos. Com Ruby, poderia ser divertido, no entanto.
Seria legal apalpar no corredor dos espelhos.
— Claro que vocês têm. — Ruby saiu da cadeira, ficou na
minha frente e puxou o tecido da minha blusa para me puxar
para perto. Ela me beijou suavemente. Eu descansei minhas
mãos em seus quadris e assim que comecei a sentir o impulso
urgente de abraçá-la mais forte, mais perto, ela se separou.
— É uma comédia romântica — disse ela, terminando sua
frase, deixando-me querendo mais. — Nas comédias
românticas, as pessoas fazem coreografias de dança
coordenadas, correm pelos aeroportos sem serem paradas pela
segurança e apresentam discursos perfeitos no calor do
momento. Você realmente acha que teríamos que tentar
encontrar algo tão básico quanto um parque de diversões?
Na manhã do sábado após o aniversário de Ruby, antes mesmo
de eu ter a chance de ver mamãe, papai me implorou para ir ver
um apartamento com ele. Veja, com o fim das provas, eu decidi
mudar minha agenda e colocar as visitas à mamãe como
prioridades. Eu sempre fui depois da escola durante a semana,
mas as manhãs são melhores para pessoas com demência. Os
médicos não sabem o motivo, mas à noite elas ficam mais
agitadas. Parte de mim se sentiu culpada por estar evitando ver
esse lado dela, mas não insisti nisso. Era melhor para ela
também, menos perturbador. Eu também não gostava quando
minhas visitas coincidiam com as de papai, e ele sempre visitava
à noite, depois do trabalho. Havia algo em estarmos juntos,
como uma família, que parecia uma mentira. Especialmente
quando eu sabia sobre Beth e mamãe não entendia e não
conseguia entender. Agora com o noivado, era dez vezes pior.
A cada momento que eu deixava papai fingir que “papai e
Beth” e todas as mudanças que eles estavam fazendo eram
normais, era como se eu fosse cúmplice. Achei que deveria estar
engajada em algum tipo de protesto ininterrupto, mas não
estava. Claro, eu resmunguei e fiz comentários maliciosos, mas
mamãe merecia mais do que isso.
O apartamento era menor do que a nossa casa, é claro,
embora isso não me incomodasse. Ficava fora do subúrbio,
mais perto do calçadão, perto das praias turísticas. Quando eu
parei no meu novo quarto, eu pude ouvir o barulho dos
turistas, rindo, cantando, gritando, e cheirava a algodão doce.
Ele me perguntou se eu havia gostado e eu resmunguei em
resposta. Havia outros lugares, ele me assegurou, mas eu podia
dizer que este era o que ele queria. Era elegante e com interior
moderno, vidro preto e cromo. Tão diferente da nossa casa
bagunçada e aconchegante, que tinha tapetes grossos e
bugigangas adornando cada superfície. Eu me perguntei se as
linhas nítidas e monocromáticas eram do gosto de papai ou de
Beth. Talvez fosse disso que ambos gostassem. Talvez tudo que
fazia do nosso lar, lar, fosse mamãe. Eu disse a ele que estava
tudo bem e seu rosto se iluminou com a minha tolerância
indiferente. Meu estômago ficou dolorido com a culpa.
Vindo direto da visita para ver mamãe, senti como se eu
fosse o marido que compra flores para a esposa porque fez algo
errado. Mas eu tirei isso da minha cabeça; eu estava ficando boa
nisso. Respirei fundo antes de bater. Eu faço isso toda vez. É a
respiração que diz, não espere nada, não deixe isso te atingir, não
fique frustrada, não fique com raiva. É a respiração que me faz
erguer os escudos.
Quando ela não respondeu, eu mesma abri a porta. Ela
estava assistindo TV e um raio de sol iluminou seu rosto,
fazendo sua pele brilhar. Ela tinha apenas cinquenta e cinco
anos. Quando andei pelos corredores do prédio da Seaview
Home, vi pessoas idosas, a pele enrugada se acumulando em
poças ao redor do pescoço e cotovelos. Alguns mal conseguiam
se mexer; eles tinham que ser trocados pela equipe a cada
poucas horas para que não ficassem com feridas onde sua pele
fina como papel se rompesse. Todos eles tinham algum tipo de
demência – era uma casa especializada – mas nenhum deles se
parecia com minha mãe. Ela sempre foi bonita e isso não
mudou. Eu retocava suas raízes todos os meses para que seu
cabelo ruivo ficasse brilhante e sem grisalhos, como ela gostaria.
Parecia fazê-la feliz.
Ela olhou para mim e sorriu e eu pude respirar novamente.
Os bons dias eram os dias em que ela me olhava assim. Quando
percebia que ela ficava feliz em me ver entrar no quarto, mesmo
que ela não soubesse por quê.
— Oi, mãe — eu disse.
— Olá, olá. — Ela me conduziu para dentro. — Você quer
uma xícara de chá?
Ela pergunta isso a todos quando eles chegam. O quarto dela
é como um pequeno apartamento independente. Há um
quarto/sala, um banheiro e uma “cozinha” com pia. Todos os
aparelhos são amigáveis à demência, como um chuveiro que
desliga automaticamente ou uma pia com um sensor de pressão
que drena se ficar muito cheia. Um dos problemas de ter
demência quando você é jovem é que você ainda está em forma
e capaz e pode ter muitos problemas que uma pessoa menos
móvel não pode.
— Por que não me deixa fazer isso? Então, você pode ficar
aí mais um pouquinho — eu disse.
Eu tive que pedir a um dos funcionários para nos trazer um
chá. Mamãe não tem permissão para ter uma chaleira em seu
quarto, mas não gosto de envergonhá-la dizendo isso.
— Por que você não nos traz alguns biscoitos, mãe? — Eu
disse quando a garota entrou com uma bandeja. Mamãe entrou
na “cozinha” e pegou um prato de melamina da prateleira.
Às vezes me impressiona como tudo isso é estranho. Minha
esperta e incrível mãe não podia mais ter uma chaleira. Eu a
segui até a cozinha e joguei meus braços em volta dela e a abracei
forte. Ela me abraçou de volta. Às vezes ela não abraçava.
Quando me afastei, ela estava olhando para mim com aquele
olhar ausente. Mamãe sempre foi tão perspicaz, tão brilhante.
Era seu trabalho como psicoterapeuta. Quando aquele olhar
afiado some de seus olhos, ela se parece com outra pessoa.
Ela ficou na cozinha hesitante e eu poderia dizer que eu a
distraí e ela esqueceu o porquê ela estava lá. É engraçado; todos
nós já tivemos aquele momento em que você entra em uma sala
e de repente toda a razão pela qual você estava lá é apagada do
seu cérebro. Você sabe que vai voltar para você se você esperar
um segundo. Às vezes eu me perguntava se mamãe se sentia
assim, que tudo o que ela havia esquecido, uma tarefa, uma
lembrança, o rosto de alguém, voltaria para ela em um segundo.
Ou se a doença já foi tão longe que ela nem sabe que esqueceu
alguma coisa.
— Biscoitos, mãe — eu instiguei.
— Você quer uma xícara de chá? — ela perguntou.
— Temos chá. Precisamos de alguns biscoitos. Você quer
que eu os pegue?
Ela me enxotou da cozinha e arrumou alguns Digitives1 de
chocolate em um prato. Ela estava ficando mais desajeitada o
tempo todo, como se sua memória muscular estivesse
desaparecendo também, então eu a observei cuidadosamente.
Havia uma novela australiana na TV, então fui passando
pelos canais até encontrar as notícias. Mamãe odiava novelas.
Ela era intelectual ao ponto de ser esnobe e papai e eu sempre a
provocamos por isso. Ela e Hannah costumavam conversar
sobre coisas de esnobes o tempo todo. Elas liam os mesmos
livros chatos onde nada realmente acontece com muitas
metáforas prolixas. Elas assistiam aos mesmos filmes chatos
onde nada realmente acontece com muitas metáforas visuais.
Uma vez elas até foram a um show juntas. Vivaldi interpretado
por Vilde Frang. Só me lembrei do nome porque achei
engraçado e ainda não sei se Vilde Frang é uma pessoa ou uma
banda. Na mesma noite, papai e eu fomos a uma versão musical
não autorizada de Garota Infernal. Foi incrível, para ser justa,
mas às vezes eu sentia uma pontada de arrependimento por não
ter feito as coisas que mamãe queria fazer, mesmo que eu as
odiasse. Houve momentos em que me perguntei se ela teria
1
Biscoito doce de origem escocesa
preferido Hannah como filha. Quando terminamos, fiquei
feliz por mamãe não entender mais nada, mas fiquei com raiva
de Hannah porque parecia que ela também havia abandonado
mamãe.
Eu podia me sentir sendo sugada para aquele buraco negro
de ruminar coisas que eu tinha feito de errado e honestamente
eu poderia ficar aqui o dia todo se eu deixasse isso tomar conta.
Como um grande filósofo disse uma vez: afaste-se disso.
— Como você está, mãe? — Eu perguntei, tentando injetar
um pouco de leveza na minha voz.
— Eu estou realmente bem. Papai vai me buscar em breve.
Mamãe muitas vezes pensa que ela é mais nova do que é. Às
vezes ela parece pensar que está no trabalho. Ela muitas vezes
pensa que seus pais ainda estão vivos, seus pais adotivos, quero
dizer. Ela não se lembra de descobrir que foi adotada. Isso não
aconteceu até ela estar em seus vinte e tantos anos. Parecia que
suas memórias se embaraçavam até certo ponto. Ela podia
contar histórias de sua infância com detalhes vívidos, mas não
se lembrava de que tinha uma filha. Na maioria das vezes, ela
achava que tinha vinte e poucos anos, até onde podíamos dizer.
Essa pessoa era Elizabeth O'Kane. Ela não conheceria Rob
Clarke por mais treze anos, muito menos seria minha mãe. Era
como se aquela parte dela tivesse desaparecido. Tentei me
lembrar da última vez que ela soube que eu era sua filha. Mas
eu não sabia que seria a última vez, então não tinha se
destacado. Outra memória que se foi, para nós duas.
— Isso é adorável — eu disse. — Que horas ele vem?
— Em breve. Eu acho. Como você está? Sobre o que você
gostaria de falar?
Como você está? Sobre o que você gostaria de falar? O
roteiro da mamãe. Frases se formam em seus lábios, coisas que
ela disse mil vezes antes. Imagino-a dizendo as mesmas coisas
para seus clientes. Às vezes, quando chego à porta dela, ela
parece pensar que sou um deles. Às vezes eu também penso
isso.
Eu me derramei. Eu tinha tanta coisa acontecendo em
minha cabeça, e não era como se eu tivesse alguém para contar.
Eu pensei em ligar para Izzy. Não pensei seriamente sobre isso,
apenas me senti irritada com ela por não poder contar tudo
sobre Ruby e descobrir o que ela pensava. Se ela não tivesse
estragado nossa amizade com suas mentiras e traição, eu
poderia estar dissecando tudo com ela agora. Eu não escolhi a
dramática vida solitária, ela me escolheu.
Ainda assim, eu tinha mamãe, e agora era mais fácil contar a
ela coisas que eu nunca teria contado antes. Cada nebulosidade
e toda essa bobagem. Eu preferiria que ela estivesse bem e
tentando arrancar informações sobre minha vida de mim como
a mãe de todo mundo, é claro. Levei semanas para admitir a ela
que Hannah e eu começamos a nos ver. Lembro-me dela
sentar-me muito seriamente para perguntar se algo estava
acontecendo conosco. Quando eu disse que estávamos saindo,
ela chorou. Lágrimas de felicidade. Ela disse que sempre
esperou que finalmente veríamos como éramos perfeitas uma
para a outra e disse algo bobo sobre nosso futuro casamento.
Revirei os olhos e disse que não íamos nos casar, pelo amor de
Deus. Fiquei contente, de verdade, mas tinha quatorze anos e
não podia dizer isso em voz alta.
— Eu conheci uma garota. — Soprei meu chá para esfriar e
mamãe me copiou. — Acho que ela gosta de mim.
Mamãe colocou a mão na minha e apertou.
— Isso é ótimo — disse ela.
— A questão é que gostar dela é meio que o problema.
Mamãe parecia não estar seguindo minha linha de
pensamento. Mas quem iria? Essa afirmação era objetivamente
absurda. Ainda assim, não gosto de deixar que a consciência do
meu próprio absurdo atrapalhe minha expressão. Mamãe
franziu a testa, como se estivesse tentando se concentrar. Você
não perde sua inteligência quando tem demência, mas pode ser
mais difícil expressá-la da maneira que está acostumado. Pelo
menos foi o que o médico disse. Eu continuei mesmo assim.
— Ela acha que se nós duas soubermos quando vai acabar,
ninguém vai se machucar. — Eu corri meu dedo ao redor da
borda da xícara de chá, realmente não esperando uma resposta.
— Essa foi a pior coisa sobre Hannah me largar, mãe. Eu não
esperava isso nem em um milhão de anos. Você acha que isso
pode funcionar ou é uma péssima ideia?
Eu realmente não estava esperando uma resposta, mas
mamãe acariciou minha bochecha com a mão.
— Você tem que fazer o que te faz feliz, Claire — ela disse.
— Você sempre parece tão triste.
Lágrimas brotaram em meus olhos e eu pisquei rápido.
Minha tia Claire não é irmã biológica da minha mãe. Não há
preocupações para ela sobre herdar a demência. Ela não a visita
muito e eu a odeio por isso, mas de certa forma, estou feliz que
mamãe pensa que sou ela. Pelo menos ela não sabe quantas
pessoas a deixaram para trás. Ela não pode sentir minha falta –
ela não sabe quem eu sou. Mas ela poderia sentir falta de Claire
se ela não aparecesse.
Assim, pelo menos, posso fazê-la feliz.
Então, o término. Óbvio que você quer saber. Do jeito que
você quer analisar qualquer acidente terrível para ver de onde o
sangue e as tripas estão saindo. Depois de visitar minha mãe,
não conseguia parar de pensar nisso. Eu pensei sobre isso
durante todo o caminho para casa, então quando eu olhei ao
redor e me vi de volta ao meu quarto, eu realmente não me
lembrava de ter chegado lá. Faço o possível para não remoer
mais isso. Veja, por meses depois da separação eu repassava-a
várias vezes na minha cabeça, como se eu fosse uma operadora
de câmera olhando para todo o clichê lamentável, sentindo
pena da garota no café que não tinha ideia do que estava por
vir. Vamos dar uma olhada de novo, não é?
Lá estou eu, sentado do outro lado da mesa de Hannah. É
uma cafeteria fofa com toalhas de mesa xadrez e fotos melosas
na parede que dizem coisas como Cafeteria: Onde as pastas
americanas vão pastar. Tudo o que eu estou pensando sobre o
quão bonita ela é. Eu não percebo que ela está prestes a arruinar
minha vida. Estou notando a maneira adorável como seus
óculos ficam em suas bochechas redondas, de modo que,
quando ela fala, eles meio que saltam para cima e para baixo.
Perco totalmente o tom da conversa. Também gosto muito do
bolo de caramelo em que acabei de enfiar um garfo.
— Você é minha pessoa favorita, Saoirse. Você é tão
generosa e engraçada e doce e eu amo essas coisas em você,
mas… — Hannah diz, e eu sorrio. Como eu não notei isso? Este
é o início de todas as cenas de separação na história.
— Eu também te amo. — Eu me levanto e me inclino sobre
a mesa para beijá-la. Em uma cafeteria. Isso não é algo que eu
teria feito dois anos atrás, quando eu era um bebê gay que
achava que todo mundo estava olhando para mim.
Ela vira a cabeça para que meus lábios roçam sua bochecha,
deixando uma mancha de protetor labial de menta em sua pele.
É quando a palavra mas viaja até mim de dez segundos atrás e é
registrada em meu cérebro.
Eu me sento. Pelo menos há isso, o fato de que o resto do
rompimento não acontece comigo em uma posição meio
pairando, minha bunda saindo no ar. Meu rosto congela, vazio,
sem expressão. Mas à medida que a câmera se aproxima, você
pode ver uma pitada de medo.
Nossos olhos se encontram. Quando você está com alguém,
há um tipo de olhar secreto que passa entre vocês que você dá
como certo. Algo em seus olhos que lhe diz que eles são como
um lar para você.
Não estava mais lá.
Mais tarde, eu me perguntaria se ele havia sumido por
semanas ou meses e eu não tinha notado.
— O que há de errado? — Eu digo.
Eu nunca tinha terminado antes, mas a cena era tão familiar
que eu conhecia minhas falas. Cenas como essa acontecem com
tanta frequência na vida real que acabam nos filmes, ou os
filmes estão nos dando um roteiro conveniente para conversas
inconvenientes?
— Eu sinto muito. — Seu queixo treme. — Eu não quero
mais ter um relacionamento com você.
O fato de que ela está perto de chorar me assusta mais do
que tudo. Você pode pensar que é um comportamento
totalmente normal, mas Hannah é sensata e lógica a ponto de
ficar meio fria se você não a conhece. Ela não costuma ser
dominada pela emoção. Ou pelo menos ela não expressa isso da
mesma forma que a maioria das pessoas.
Se você olhar de perto agora, verá uma mudança de minuto
na minha expressão de vazio para devastação total. Está tudo
nos olhos. Esse é o momento em que tudo que eu planejei virou
fumaça. Naquela época, eu realmente acreditei no sonho de
que seríamos o primeiro amor em um milhão que dura para
sempre.
— Mas por quê?
Essa pergunta me faz estremecer. Mas na hora eu tive que
perguntar. Eu a amava tanto e estava tão feliz que não
conseguia entender o que ela queria dizer. Mesmo agora,
quando penso nisso, tenho que me proteger da resposta.
— Eu te amo. Mas eu não estou apaixonada por você.
É tão clichê que eu nem sabia o que significava. Como
distinguir paixão e amor?
— Quero que ainda sejamos amigas, mas entendo que pode
levar algum tempo.
Esta foi a minha grande chance de jogar com calma e salvar
alguma dignidade.
— Mas eu te amo — eu lamentei em vez disso. — Eu acho
que você é a melhor pessoa que eu já conheci literalmente e eu
vou morrer se você me deixar.
Não diga uma palavra. Eu já sei.
— Saoirse — ela disse, e ela apertou minha mão na mesa.
Parecia familiar e estranho ao mesmo tempo. — Você vai ficar
bem. Eu prometo.
— Por que agora? O que mudou?
Isso foi um erro. Hannah é inabalavelmente honesta. Foi
quando aprendi a não fazer uma pergunta para a qual você
pode não querer a resposta.
— Não sei o que mudou. Eu estive pensando sobre isso por
um tempo. Eu esperava que chegasse um momento em que as
coisas em sua vida fossem mais calmas. Eu não queria te
machucar quando as coisas já estavam tão ruins, mas está
começando a parecer que estou mentindo para você e não
quero fazer isso.
As coisas na minha vida de que ela está falando são minha
mãe tendo que ir para uma casa de repouso, meu pai tendo um
caso e a cereja no topo do bolo de merda: Surpresa! Você pode
acabar com demência também. Um pensamento entra em
minha mente e, uma vez que o faz, fica alojado lá. É exatamente
por isso que ela está terminando comigo. Não há futuro
comigo. Se meu pai soubesse que minha mãe poderia acabar
como ela acabou, tenho certeza de que ele teria fugido cedo
também. Deve significar que ela nunca realmente me amou,
como papai nunca deve ter realmente amado mamãe. É o fim
do mundo. É uma dor que posso sentir fisicamente.
As velhinhas da mesa ao lado se inclinam visivelmente em
nossa direção. Hannah se levanta e tira uma nota de dez de sua
bolsa, depois a coloca sobre a mesa. Fico confusa por um
momento até perceber que ela está pagando pelo bolo.
— Você é minha melhor amiga — diz ela, olhando para os
pés. — Acho que ainda podemos ser amigas. Se você quiser.
Eu olho para ela. Ela está mordendo o lábio. Eu não sei o
que dizer. O que quer que ela diga sobre querer ser amiga, ainda
é algo que ela está disposta a arriscar desistir para sair do nosso
relacionamento.
Ela sai do café. Meus olhos a seguem involuntariamente. Eu
deixo minha cabeça cair em minhas mãos, mas meu cotovelo
escorrega e eu acidentalmente viro o prato com o bolo sobre a
mesa, onde ele bate no chão, chacoalhando do jeito que uma
moeda faz quando você a gira e ela para lentamente. O bolo
desliza pelo café, deixando uma longa faixa de glacê de caramelo
nos azulejos como uma marca de derrapagem.
Uma das velhinhas estende a mão e me dá um tapinha no
joelho.
— Uma hora melhora, querida.
Mais tarde, descobri que Izzy sabia há séculos.
Naturalmente, porque a vida é apenas uma humilhação atrás
da outra, ela não me disse isso até que eu passei um mês falando
sobre isso sem parar. Dissecando cada pequeno momento.
Imaginando em voz alta se havia alguma maneira de Hannah
mudar de ideia. O amor não simplesmente desapareceu, não é?
O meu não. Não era uma luz que eu pudesse acender e apagar.
Era algo que cresceu dentro de mim, suas raízes emaranhadas
em torno de todos os órgãos do meu corpo. Eu precisava disso
para viver. Por muito tempo, eu esperei. Eventualmente, eu
parei. De esperar, quero dizer. Eu não gostava de pensar se
poderia ou não deixar de amar Hannah. Aprendi a não
examinar esses sentimentos. É por isso que eu não queria vê-la
nunca mais. Eu tive que fingir que ela não existia. Izzy também.
Elas estavam muito inextricavelmente ligadas.
As pessoas dizem que você não pode mudar o passado, mas
não é verdade.
Papai havia colocado mamãe em uma casa de repouso. Ele
prometeu que nunca faria isso. Ele prometeu que sempre
cuidaria dela. Mas ele não o fez, e isso mudou tudo o que tinha
acontecido antes, tornando as velhas memórias amargas em vez
de doces. Foi o mesmo para mim e Hannah. Tudo o que já
tivemos foi contaminado. Estava tudo podre.
Deitada na minha cama, olhando para o telhado, incapaz de
parar de me culpar por ser tão ingênua e estúpida, percebi que
precisava de novas regras. Eu posso ter explorado
delicadamente a brecha na minha regra de relacionamento – ah,
e a parte sobre não beijar lésbicas ou garotas bi porque isso leva
a brechas, obviamente – mas é por isso que eu precisava de uma
rede de segurança. Uma maneira de me proteger de ter meu
coração estraçalhado novamente. Se alguma dessas coisas
acontecesse, seria hora de encerrar este pequeno experimento
com Ruby. Peguei meu telefone e anotei os cinco cavaleiros do
apocalipse: os descumpridores do acordo, os precursores da
desgraça.
(que
nem em O Casamento do Meu Melhor Amigo, (500) Dias
com Ela). Eu protestei com veemência, apontando que já
tínhamos feito o karaokê. Ruby insistiu que eu não tinha
cantado, então não contava. Eu decidi que faria de tudo
para convencê-la a substituir isso por algo menos horrível.
(tem em todos eles, aparentemente). Eu ainda
não estava convencida disso, mas a insistência de Ruby de
que isso seria encontrado em qualquer comédia-
romântica me deu um bom argumento para não adicionar
mais filmes específicos à minha lista de observação.
(tem em De
Repente 30, Desfile de Páscoa). Eu estava começando a
sentir que precisava ser uma estrela do West End apenas
para conseguir passar este verão com minha dignidade
intacta.
(que nem em Para Todos os Garotos
que Já Amei, Um Lugar Chamado Notting Hill).
Obviamente, esse encontro deve estar repleto da tensão de
um beijo iminente no ar.
(tem em Quatro
Casamentos e Um Funeral, Bonequinha de Luxo). OK, eu
estava totalmente a favor desse.
(que nem em A
Proposta, 10 Coisas que Eu Odeio em Você). Eu não era a
maior fã de remar. Meus braços ficam cansados só de eu
secar meu cabelo.
(tem em Feito Cães e Gatos, Confidências à
Meia-Noite). Ela realmente teve que procurar no fundo
do baú para esse.
(que nem em A Alegre Divorciada,
Harry e Sally - Feitos Um para o Outro). Ruby explicou
que isso era diferente da coreografia, que deveria ser
divertida e animada. A dança lenta era romântica e
apaixonada. Ambas eram danças sangrentas, se você quer
minha opinião, mas deixei passar, no entanto. Me chame
de romântica incorrigível.
Deus do sexo
Ah, é. Eu esqueci disso.
Saoirse
Estou mudando para algo mais apropriado
Saoirse
Imagens reais delas te olhando quando
você tira a roupa.
Saoirse
Está funcionando! Eu quero explodir minha
mente agora com essa conversa.
Saoirse
Estou assistindo Simplesmente Amor em
julho. Eu precisava confessar meus pecados
a alguém. Você já viu?
Saoirse
Desculpe, mas podemos falar sobre como
eles continuam dizendo que a menina do
chá tem coxas grandes? Quero dizer 1.
coxas grandes são incríveis, 2. isso é uma
mentira de qualquer maneira, 3. por que
você precisa comentar sobre isso? Hugh
Grant deveria estar morto porque ele não
se importa com coxas?
Saoirse
Deprimente.
A bola esquerda murcha de Satanás
Você ainda não viu o pior.
Saoirse
Ah, você tem que estar falando sobre o
cara com os cartazes, né? Qual é a desse
cara? Imagine chegar na casa do seu
melhor amigo e dizer à esposa dele que
você a ama em um monte de cartões
manuscritos. Tão sem noção.
Saoirse
E ela o beijou! Porque ele não é um idiota,
ele é apenas um cara legal e triste, certo.
Foda-se.
Saoirse
Não?
Saoirse
Acabei de chegar.
Saoirse
Não.
Saoirse
Tudo bem, talvez eu tenha lacrimejado um
pouco.
Saoirse
Cale-se.
— Pai, vamos lá.
— Não sei. Você é uma péssima motorista. — Ele apertou
as chaves em seu peito.
— Por que você me colocou como motorista no seguro do
seu carro se eu não teria permissão para dirigi-lo?
— Em caso de emergência.
— Isto é uma emergência. Já comprei os ingressos e a
Lamborghini está na loja.
— Não sei se você entende completamente o termo
emergência.
— Eu não gosto disso mais do que você, mas é uma
necessidade. — Eu arranquei as chaves de seu aperto mortal e
as balancei. — Eu não vou bater em uma árvore ou sair do píer.
Ninguém vai morrer. Vai ficar tudo bem.
— Eu realmente não estou com medo de que você morra.
Vivemos em uma zona de trinta quilômetros por hora. Estou
mais preocupado que você acerte alguém e meu seguro
premium vá pelo ralo.
— Sua preocupação é tocante — eu resmunguei, mas ele
não me impediu.
— Não se esqueça de acender os faróis, está escuro — papai
gritou atrás de mim. Ele realmente achava que eu era estúpida.
Eu deixei o carro morrer seis vezes no caminho para a casa
de Oliver, mas quando cheguei lá eu meio que tinha pegado o
jeito. Ruby estava esperando por mim nos portões, vestida com
um par de meias listradas e macacão bordado com um top por
baixo. Eu podia ver uns seis centímetros de pele na abertura. Eu
não sabia que poderia ser atraída pelo lado da cintura de alguém
até conhecer Ruby. Eu usava um top preto com jeans preto. Os
jeans que eu quase nunca usava porque eram tão perfeitos e eles
não vendiam mais, então eu tinha medo de usá-los. Parecíamos
Wandinha Addams e Pippi Longstocking em um encontro.
Eu me senti boba por pensar isso, mas parte de mim estava
envergonhada de pegá-la no carro do meu pai. Eu não conhecia
ninguém da minha idade, exceto Oliver, que tinha um carro
porque a vida não era um programa de TV americano, mas me
senti estúpida de qualquer maneira. Não ajudava que o carro
fosse velho, bege, e tivesse um amassado desde o momento em
que dei ré no canto da casa porque eu não entendia muito bem
como usar espelhos retrovisores. Não é como se eu achasse que
tenho que ser rica ou que Ruby pensaria alguma coisa sobre
isso, mas de alguma forma ainda parece estranho saber que a
pessoa com quem você está tem muito mais dinheiro do que
você.
Ruby me beijou na bochecha quando ela entrou no carro e
então ela parecia um pouco envergonhada. Estávamos em uma
fase desconfortável. Tínhamos as coisas intensas de apalpar no
início, mas de alguma forma as coisas deram um passo para trás
desde que decidimos realmente sair em encontros. Eu
absolutamente queria pular em cima dela (com seu
consentimento) e esmagar todas as partes dos nossos corpos,
mas era fácil nos sentirmos sexy quando realmente não nos
conhecíamos. Agora que estávamos tendo conversas reais,
incluindo uma sobre eu me molhar, era como se ela soubesse
que eu não era uma estranha sexy e misteriosa, eu era uma
esquisita desajeitada com problemas de compromisso.
— Você está pronta para o número seis: a noite de cinema?
— Eu disse o título do encontro como se fosse a narração em
uma prévia de um filme.
— Sim. Nem um pouco aterrorizada — acrescentou Ruby.
Decidimos pular para o número seis quando vi que Scream
estava passando em um drive-in pop-up. A lista não precisava
ser completada em nenhuma ordem específica e isso era
perfeito demais para perder. Além disso, concordamos que eu
poderia escolher um filme de terror para o nosso encontro. Eu
estava assistindo a todas as suas amadas comédias românticas e
queria compartilhar um dos meus favoritos com ela.
Eu posso ter me recusado a mencionar que na semana
seguinte eles estariam passando Casablanca. Eu tive que assistir
com Hannah e achei que era o filme mais chato que eu já tinha
visto.
Enquanto eu dirigia, Ruby parecia meio distraída. Ela
continuou recebendo mensagens e mesmo sabendo que
provavelmente era a mãe dela, senti um lampejo de curiosidade.
Eu realmente não sabia nada sobre a vida de Ruby em casa e
estava com medo de perguntar. Uma pergunta inocente sobre
os amigos dela levaria naturalmente a perguntas sobre os meus.
O que levaria a Izzy e Hannah. O que levaria à dor e
sentimentos e desgraça. Como o ser humano maduro que sou,
tentei, em vez disso, ver disfarçadamente quem estava enviando
mensagens para ela. Não dei uma boa olhada.
— Desculpe — disse ela, notando-me olhando. — Vou
guardar isso em um segundo, eu juro.
— Não se preocupe — eu respondi, como se eu nem tivesse
notado.
Ding. Outra mensagem. Estiquei o pescoço para ver se
conseguia pegar um nome.
— PARE! — ela gritou.
Eu pisei no freio.
Um grito.
Uma buzina.
Um alto “VAI SE FODER.”
Parei a apenas trinta centímetros do carro na minha frente.
Eu não tinha notado eles freando ou a luz ficando vermelha.
Meu coração batia tão forte que eu praticamente podia ouvi-lo
em meus ouvidos.
— Você está bem? — Eu disse sem fôlego.
Ruby riu de um jeito aliviado.
— Estou bem. Estávamos indo a vinte e cinco quilômetros
por hora. Mas talvez seja melhor que você mantenha os olhos
na estrada. É só minha mãe.
Corei, absolutamente mortificada.
— Eu não estava…
— Nem tente fingir.
— Desculpe — eu disse, me afastando quando a luz acendeu
novamente.
Eu queria perguntar por que sua mãe era, ao mesmo tempo,
tão carente e ainda assim não ligou para Ruby em seu
aniversário. Pareciam conversar muito, mas ela tinha saído de
férias sem a filha. Era bizarro.
Ruby apertou minha coxa e eu quase pulei para fora da
minha pele.
— Já que nós não morremos, eu vou te perdoar. Mas dar
uma de stalker para cima de mim não é fofo.
Ela realmente não parecia brava, o que eu não merecia; eu
estava agindo de maneira muito assustadora, afinal.
— Ah, claro, a menos que eu seja Hugh Grant — eu disse,
citando o nome para mostrar que eu estava fazendo minha lição
de casa.
Ela sorriu.
— Quatro Casamentos Hugh ou Um Lugar Chamado
Notting Hill Hugh?
— Notting Hill — eu disse — Eu assisti ontem à noite. Eu
juro que pensei que quando ele apareceu no set, ele achava que
estava indo para Atração Fatal. Ele tem uma vibe séria de
perseguidor.
— Não! Não. Eles estão destinados a ficar juntos.
— Achei que eu deveria estar com Chloë Grace Moretz dos
treze aos dezesseis anos, mas não a segui até o trabalho.
Ruby riu, e um pequeno fogo brilhou dentro de mim.
— Mas eu amei o discurso — eu disse.
— O Eu sou apenas uma garota? Por quê?
— É sempre Hugh ou outro personagem principal
masculino branco que faz o discurso, mas em Notting Hill, a
garota faz o grande discurso.
— Hugh também tem um discurso. Mais ou menos. Ele tem
seu momento. Na coletiva de imprensa…
— Sim, mas ninguém se lembra dessa parte.
Chegamos mais ou menos intactas e paramos de debater os
méritos de um Hugh contra outro Hugh por tempo suficiente
para encontrar um lugar e descobrir como deveríamos
sintonizar o rádio.
O estacionamento encheu rapidamente e havia um monte
de vans de comida ao redor do perímetro, então estocamos
suprimentos, como se o fim do mundo pudesse chegar, e
esperamos o filme começar.
— Isso é tão legal — disse Ruby enquanto tentávamos
arrumar bebidas, um balde de pipoca e uma variedade de doces
que você normalmente só vê na fábrica de Willy Wonka, em
um Fiat de três portas.
— É?
— Sim — disse ela enfaticamente. — Você nunca seria capaz
de fazer isso onde eu moro. O bairro é cheio de construções;
ninguém usaria vagas de estacionamento para algo divertido. E
veja como isso é aconchegante.
Ela segurou minha mão e apertou.
A maneira como ela crepitava de entusiasmo pelas pequenas
coisas era contagiante.
— É aconchegante — eu concordei. — Você está quente o
suficiente, no entanto? — Fez um calor escaldante o dia todo e
nenhuma de nós tinha nada quente conosco. Uma brisa
começou a passar quando o sol se pôs.
— Estou com um pouco de frio — disse ela, então liguei o
motor e deixei o calor nos aquecer.
— Está começando — eu disse, e liguei o rádio. De alguma
forma, eu realmente consegui sintonizá-lo corretamente. Senti
orgulho de mim mesma por navegar nessa tecnologia primitiva.
— E você realmente nunca viu Scream? — Eu perguntei,
enrolando um puxa-puxa de morango em volta do meu dedo
antes de colocar o rolo perfeito na minha boca.
— Lançou antes de eu nascer.
— Assim como quase todos os filmes da sua lista para a
sequência romântica.
— Sim, mas histórias de amor são atemporais. Olha — ela
apontou para a tela — essa pessoa está ligando para um telefone
fixo. Se eles tivessem celulares, esse filme nem faria sentido.
— Não é verdade. — Eu balancei minha cabeça. — A
tecnologia emergente de telefones celulares realmente
desempenha um papel fundamental neste filme e, como tal, é
basicamente um artefato histórico. Você precisa tratá-lo com a
reverência que merece.
Ruby riu.
— Me desculpe.
— Além disso, eu acredito que você é a pessoa que colocou
um telefonema real na nossa lista, não é? — eu apontei.
— Como uma homenagem a clássicos como Confidências à
Meia-Noite e Sintonia de Amor.
— Este também é um clássico. Você vai adorar. É
basicamente a versão de filme de terror da sequência de se
apaixonar. Ele brinca com todas as tropes dos filmes de terror.
— Eu não conheço nenhuma das tropes dos filmes de terror.
— Você conhece. Elas se infiltram no inconsciente coletivo
de alguma forma. Da mesma forma que eu sabia que o grande
gesto vem depois da grande briga, lembra?
Ruby ergueu uma sobrancelha.
— Você realmente deveria ser uma advogada ou algo assim.
Você continua falando até vencer.
Eu coloquei minha mão no meu coração e engasguei
— Eu me sinto tão ofendida agora.
— Você acha que eu deveria ser uma advogada? — ela
perguntou.
Dei uma longa olhada nela.
— De jeito nenhum. Você é boa demais. Você guarda
guloseimas para gatos no bolso, caso veja um vira-lata. Isso não
é jeito de advogados.
Ruby corou e eu senti uma onda de calor, percebendo que
talvez eu tivesse sido capaz de fazê-la se sentir do jeito que ela
me fez sentir.
Ao longo do filme, continuei olhando para Ruby com o
canto do olho. Seus olhos estavam fixos na tela. Nós
conversamos no início – Ruby não gostou de todas as facadas
– mas depois de um tempo, a conversa morreu, exceto por
alguns comentários aqui e ali. Eu normalmente não digo esse
tipo de coisa, mas o cabelo da Monica é horrível. Espere até ver
essa cena, é selvagem! Aww, não, eu gostei do amigo atrevido.
Havia um elefante na sala. Ou no carro. Quero dizer, o
objetivo de vir aqui era unir nossas bocas. Nós não deveríamos
realmente assistir ao filme, certo? Mas eu não tinha certeza de
como atravessar para a terra dos beijos sem problemas. Olhei o
espaço entre nós, avaliando-o em busca de armadilhas. Eu
estava realmente muito perto do volante para me mover,
mesmo que eu quisesse tentar beijá-la.
Talvez se eu deixasse o banco para trás um pouco.
— Uau. — Eu não tinha percebido que estávamos
estacionados em um pequeno declive e, quando soltei o
assento, ele deslizou para trás dramaticamente. Sutil.
— Eu estava apenas, muito perto do… — Eu parei,
gesticulando para o volante.
Ruby sorriu aquele sorriso desconfortável, você sabe qual,
onde seus lábios estão pressionados e você meio que acena para
concordar com ele.
Eu nem estava mais prestando atenção no filme e parecia
que Ruby também não. A tensão efervescente no ar era muito
alta. Cada parte do meu corpo estava em alerta máximo; cada
leve roçar de seu braço contra o meu parecia carregar o ar ao
nosso redor. Ela estava fazendo isso de propósito? Era só eu?
Como você faz a transição de ter uma conversa para beijar?
Tentei me lembrar de qualquer outra vez em que beijei alguém,
mas não consegui. Nem sempre pode ter sido tão difícil. Eu
teria lembrado.
— Eu gosto do seu top — Ruby disse levemente. Ela
estendeu a mão e tocou a bainha da minha blusa preta muito
simples. Sua mão roçou uma faixa de pele nua onde minha
camiseta subiu e enviou choques elétricos pelo meu sistema.
— Foda-se — eu declarei, e me lancei sobre ela como se
estivesse mergulhando em uma piscina pela primeira vez. Você
só tinha que ir em frente e se afogar, se fosse para você se afogar.
Eu não me afoguei. Eu a beijei e ela me beijou de volta e eu me
senti afundar nisso. Depois de alguns momentos sem fôlego, eu
me afastei um pouco.
— Graças a Deus — ela respirou —, eu não sabia como
começar.
Eu ri e a beijei novamente e sua risada escapou para o espaço
entre nossos lábios, como se os beijos tivessem bolhas de
champanhe.
— Você sabe o que realmente faria isso engrenar? — ela
sussurrou. Com um floreio, ela puxou a maçaneta que liberava
a parte de trás de seu assento e voou para trás com um baque.
Eu não pude deixar de rir, tentando me desvencilhar do meu
assento e pular no freio de mão. Eu me apoiei sobre ela, cabeça
com cabeça, dedo do pé com dedo do pé, e isso deixou de ser
engraçado. Eu a beijei gentilmente desta vez, suave como uma
pergunta, e ela respondeu me puxando para perto. Eu me
inclinei para ela, me pressionando contra ela, querendo sentir
mais de seu corpo contra o meu do que apenas nossos lábios.
Minhas mãos encontraram as curvas de seus quadris e seios.
Quando meu coração batia tão rápido que pensei que
poderia se soltar do meu peito e voar para longe, quando nossas
pernas se entrelaçaram, encontrando uma deliciosa fricção que
carregou todo o meu corpo, quando tudo que eu conseguia
pensar era tirar sua blusa e encontrar a pele para toque e beijo,
Ruby se separou, sua mão no meu peito forçando o ar entre
nós.
— Você acha que as pessoas ao nosso lado podem nos ver?
— ela perguntou.
Olhei pela janela. Assim como nos filmes, eles estavam
embaçados, mas eu ainda podia ver que o filme estava quase no
fim. Neve Campbell tinha acabado de jogar uma TV na cabeça
do bandido.
— Não exatamente.
— Você acha que eles sabem que nós estamos…?
— Sim, definitivamente.
— Talvez devêssemos voltar para sua casa — disse ela. Senti
algo se alojar na minha garganta. Ela quis dizer…? (Caso você
esteja se perguntando, pelas reticências, quero dizer sexo, mas
você sabia disso, certo?)
— Ah, claro. Sim. — Papai tinha ido para a casa de Beth,
certo? Ele disse que talvez fosse, mas ele não tinha o carro, é
claro. E se ela tivesse ido à nossa casa? Por que não me
emancipei aos dezesseis anos, arrumei minha própria casa e a
decorei como um boudoir romântico? Meu eu passado não
tinha absolutamente nenhuma previsão de futuro.
Decidindo que iria arriscar e ver o que acontecia, eu me
desvencilhei de Ruby e voltei para o meu assento, ajustando-o
à sua posição normal. Virei a chave para ligar o motor. Vrrr- Eu
a virei novamente. Vrrr- vrrr- vrrr-.
Olhei para Ruby. Ela franziu a testa.
Vrrr- vrrr- vrrr-.
— O que isso significa? — Ruby perguntou.
— Só dirigi três vezes desde que tirei a carteira. Eu não faço
ideia. Pesquise no Google.
Alguns segundos depois, ela me disse que a bateria estava
descarregada. A do carro, não do telefone dela. Verifiquei o
painel e percebi que não tinha apagado as luzes. Papai ia me
matar. Embora acontecesse mais tarde. Agora eu não tinha
ideia do que fazer.
— O que nós fazemos? — Eu perguntei, entrando em
pânico.
Ruby pesquisou novamente.
— Você tem um carregador de bateria?
— Não? — Eu nem sabia que eles faziam isso para carros.
— Cabo auxiliar de partida?
— Uh, eu acho que não? — Mas eu saí do carro e olhei no
porta-malas. Havia uma velha garrafa esportiva e um romance
úmido de Stephen King.
As pessoas estavam começando a sair do estacionamento.
Bati na janela do carro ao lado e uma mulher de trinta e poucos
anos baixou a janela.
— Você por acaso tem cabos auxiliares de partida? — Eu
perguntei.
— Sinto muito, querida — Ela fechou a janela de novo.
Abri a porta do lado do motorista do carro do papai
novamente e me inclinei.
— Mais alguma coisa?
— E eles? — Ruby apontou para o carro do outro lado de
nós. Era um daqueles carros que foram rebaixados até o chão, e
tinha aros que provavelmente custavam mais do que o carro
inteiro do meu pai. Tentei dar uma olhada em quem estava lá
dentro. Um bando de garotos, talvez da mesma idade que nós,
talvez um pouco mais velhos. Definitivamente muito alterados
para dirigir.
— Hum… eu realmente não quero perguntar a eles. — Eu
disse, imaginando o que eles diriam para duas garotas
encalhadas à noite em um estacionamento que está esvaziando
rapidamente.
Voltei para o carro e tranquei a porta. Esta era a parte do
filme de terror em que fomos assassinados por um transeunte
“útil”. Já era ruim o suficiente que nossa sessão de apalpação
tivesse sido atingida por uma farsa estilo rom-com. Eu não
queria tentar o destino com horror. As consequências seriam
um pouco mais horríveis do que um ego ferido. Então,
novamente, se realmente fosse um filme de terror, o assassino já
estaria no banco de trás. Olhei lá atrás. Apenas um saco de
doces vazio.
— Eu acho que você vai ter que ligar para seus pais, certo?
— Ruby disse, mordendo o piercing no lábio. — Você acha
que eles vão ficar com raiva?
Percebi então que Ruby não tinha ideia de que meus pais
não eram casados e felizes. Por que ela saberia? Eu não tinha
dito nada a ela.
— Eu realmente prefiro não ligar para o papai. — Ele nunca
me deixaria em paz.
— E a sua mãe? — disse Ruby. — Quando eu quebrei a TV
dando um salto mortal na sala de estar, mamãe limpou minha
barra e disse que meu irmãozinho fez isso porque ele era muito
pequeno para alguém se incomodar com ele.
Vagamente eu fiz uma nota mental do fato de que Ruby
tinha um irmãozinho. Eu não tinha percebido. Ele estava de
férias com os pais dela também? O que estava errado com eles?
Havia algo realmente estranho sobre sua família. Embora agora
a questão mais urgente fosse que Ruby tinha acertado na
minha coisa número um que eu não queria falar.
— Mamãe não pode ajudar — eu disse com firmeza.
Minha mente ficou em branco quando tentei pensar em
uma boa razão para isso. Eu não queria inventar alguma
mentira elaborada que eu teria que acompanhar, então eu
esperava que ela desistisse disso.
— Por quê? — Ruby perguntou. — Você está sendo
sexista? Ela é uma mulher adulta. Tenho certeza de que ela já
teve uma bateria descarregada antes.
— Confie em mim, ela não seria boa nessa situação. — Senti
minha irritação crescer. Era como se ela soubesse o que estava
fazendo. Ela não sabia, no entanto, certo? Oliver disse que não
mencionaria isso.
— Bem, talvez ela possa nos dizer o que…
— Jesus Cristo, Ruby, dê um descanso — eu rebati. — Ela
não pode ajudar.
Ruby piscou. Suas sobrancelhas franziram e seus lábios se
separaram ligeiramente. A culpa tomou conta de mim
imediatamente.
— Desculpe — eu disse rapidamente. — Eu não deveria ter
surtado, só estou estressada com o carro. Papai vai me matar.
Ele não iria. Ele seria irritante sobre isso, mas ele realmente
não ficaria muito nervoso.
— É melhor descobrirmos o que fazer, então — ela disse,
mas seu tom era frio e ela não olhou para mim.
Merda. Merda, merda, merda.
Eu disquei um contato no meu telefone. Era a única pessoa
em quem eu conseguia pensar que poderia ajudar. Isso dizia
muito sobre minha total falta de amigos, mas isso era algo para
se preocupar em outro dia.
Oliver chegou em seu estúpido Jeep chique vinte minutos
depois. Vinte longos minutos onde o ar ao nosso redor esfriou
literal e figurativamente. Ruby passou a maior parte do tempo
em seu telefone. Após os primeiros dez minutos, não aguentei
mais, então saí do carro e me sentei no capô. O que eu deveria
fazer? Eu tinha pedido desculpas. Não foi tão ruim assim, foi?
Eu tinha sido um pouco mal-humorada, mas não tinha
atropelado um gato nem nada. Percebi que tinha sido estúpida.
Se Ruby soubesse sobre minha mãe, ela teria simplesmente
seguido o baile; era assim que ela era. Eu estava paranoica.
— Senhoras. — Oliver saltou de seu Jeep e tirou um chapéu
imaginário. — Ouvi dizer que há donzelas em perigo?
— Ah, sai fora. — Eu sabia que teria que ouvir suas
bobagens se ligasse, mas honestamente, o garoto nunca desistia.
— Estou aqui para resgatá-las como o homem viril que sou.
— Ele usou uma voz que era pelo menos uma oitava abaixo de
sua voz normal e balançou um conjunto de cabos
sedutoramente.
— Por que você está fazendo uma voz de homem? Você é,
de fato, um homem. — Revirei os olhos.
Oliver deu de ombros. Ruby saiu do carro e nossos olhos se
encontraram. Tentei me desculpar novamente com um sorriso.
— Alguma ideia de como dar partida no carro? — Ela
dirigiu sua conversa apenas para Oliver.
— Obviamente que não, mas é para isso que serve o
YouTube.
O sorriso de Ruby estava cheio de gratidão e alívio. Isso a
deixou um pouco menos assustadora. Eu falaria com ela a
caminho de casa, decidi. Uma vez que o estresse de estar presa
passasse, ela poderia estar em melhor forma.
Entre nós três, conseguimos descobrir. Eu quase chorei de
alegria quando o motor começou a fazer barulhos de motor de
novo.
— Quer uma carona para casa? — Oliver acenou para
Ruby.
Ela hesitou. Tentei comunicar por telepatia que eu
realmente sentia muito por ser uma idiota e que queria que ela
viesse comigo. Voltar para minha casa estava obviamente fora
de cogitação. Eu não queria que acontecesse assim de qualquer
maneira (“isso” é sexo, você já sabe disso, certo? Não preciso
ficar falando isso?). Se fosse acontecer, deveria ser em um dia
perfeito.
— Saoirse vai me levar para casa — Ruby disse.
Aparentemente, eu tinha o poder de transmissão de
pensamento psíquico. Usaria para o bem ou para o mal?
Foi só quando eu a deixei com um beijo de boa noite (e uma
mão de boa noite no peito, high five!) que um pensamento
terrível me ocorreu.
Isso contava como uma briga? E se contava como uma briga,
nós fizemos as pazes? Eu tinha convidado um dos precursores
da desgraça?
Não. Certamente não. Não foi uma briga. Era tão
pequenino. Era quase um nível baixo. Uma briga seria como
um grande desentendimento sobre algo importante. Uma
partida gritante. Palavras horríveis trocadas e lágrimas
derramadas. Isso é obviamente o que eu quis dizer quando disse
luta. Todo mundo tem pequenas brigas. Isso é normal, mesmo
para uma montagem. É tudo parte da natureza antagônica da
química.
Não contava.
Cale-se.
Cinco dias depois, comecei o processo de encaixotar a casa
inteira para me preparar para a mudança. Eu sabia que papai
seria negligente sobre arrumar tudo. Ele sempre subestimou
quanto tempo as coisas demoravam, resultando em ele se
atrasar para basicamente tudo. Isso me deixou com raiva
porque, enquanto eu era a única que não queria me mudar, eu
ainda estava fazendo todo o trabalho.
Achei que talvez fosse triste empacotar os últimos
aproximadamente dez anos. Tive visões de mim mesma
examinando bugigangas melancolicamente e chorando uma
única lágrima de reminiscência. Na verdade, era tão
dolorosamente chato que eu não tinha energia para esse tipo de
coisa mais. Eu me cortei várias vezes quando usei com
entusiasmo a pistola de fita adesiva para selar as caixas e perdi o
controle, o impulso arrastando a ponta afiada no meu joelho.
O que significava que mais uma vez tive uma lesão no joelho
com risco de vida. A pior parte foi pensar em talvez fazer tudo
de novo por Oxford. Eu não conseguia imaginar estar lá, mas
também não conseguia imaginar estar com papai e Beth no
novo apartamento. Eu me sentia no limbo, incapaz de me
acomodar até mesmo em minha própria mente, então toquei
música incrivelmente alto enquanto trabalhava para tentar
abafar minha voz interior.
Embalar a casa inteira estava consumindo meu tempo de
sequência de me apaixonar e isso era imperdoável. Ruby e eu
tínhamos dado um passeio na praia na manhã seguinte ao drive-
in e eu estava confiante de que tínhamos superado a não-briga,
mas eu não a tinha visto desde então. Ela tinha ido com a
família de Oliver para visitar seus avós por alguns dias e quando
ela não estava fora da cidade, entre visitar minha mãe, fazer as
malas e preencher mais dez formulários de emprego, não havia
tempo. Tínhamos mandado mensagem, mas não era a mesma
coisa e estava me deixando impaciente.
E, no entanto, aqui estava eu de novo, no quarto de papai,
dobrando suas camisas em uma caixa.
— Saoirse, se você sangrar no tapete, vou ter que limpá-lo
novamente antes de sairmos. — Papai pairava sobre mim, o
que, dado que ele tinha apenas cerca de 1,70m, era uma grande
façanha. Ele estava vestido com sua roupa de folga. Uma camisa
justa de mangas compridas, colete de tweed, jeans da seção
infantil enrolados na bainha para mostrar seus sapatos de
amarrar sem meias. Honestamente.
— Sua preocupação com meu bem-estar é tocante, pai. —
Eu me levantei e me encostei na cama. — Como posso ajudá-lo
hoje? Você gostaria que Dobby passasse sua cueca ou
engraxasse seus sapatos?
— Menos atrevimento seria um ótimo começo e depois
disso, se você pudesse deixar Beth entrar quando a campainha
tocar. Certifique-se de ouvi-la sobre sua música de morte.
— Por música da morte, você quer dizer cantores folclóricos
escandinavos?
— Sim, eu vi uma reportagem de que garotas norueguesas
com violões levam crianças à bruxaria e heroína.
— Você não pode atender a porta? — Eu choraminguei.
— Eu tenho que ir para a casa de repouso. Eu deveria sair
com sua mãe mais tarde para... — Ele se interrompeu. — De
qualquer forma, ela está tendo um dia ruim. Ela estava bem esta
manhã?
Sua mãe. Como se ela não tivesse nada a ver com ele.
— Ela parecia bem esta manhã.
Um dia ruim significava que ela estava angustiada,
chorando, gritando, possivelmente violenta.
— Tentei ligar para Beth para cancelar, mas ela não atendeu
— papai disse ao sair. — Aposto que ela deixou o telefone em
casa. Diga a ela que sinto muito e eu ligo para ela mais tarde.
Ah, e se você puder fazer essa coisa de calças também, seria
ótimo.
— Eu não posso prometer que não vou sacrificá-la para o
Goat King se a música me disser para fazer isso — eu disse, meio
brincando. Eu estava inclinada a ser um pouco mais gentil,
sabendo que ele iria se certificar de que mamãe estava bem.
Especialmente porque eu não tinha me oferecido para ir com
ele.
— Eu entendi aquilo. Que tipo de tirano irracional você me
considera?
Eu estava colocando livros em caixas quando a campainha
tocou. Tecnicamente, em alguma parte madura do meu
cérebro, eu sabia que não tinha o direito de ficar brava com
Beth, mas eu não ia deixar essa parte ganhar. Eu não era algum
tipo de desistente. Eu me arrastei até a porta. Beth estava na
minha frente, um grande sorriso em seu rosto que derreteu,
comicamente, quando ela viu que era eu. Ela o substituiu o
mais rápido que pôde.
— Saoirse. Que bom ver você de novo — disse ela.
— Claro. Olha, papai teve que sair... — Eu não sabia se
deveria dizer a ela onde ele realmente estava. Obviamente ela
sabia sobre mamãe, mas era estranho trazê-la à tona.
— Devo esperar? Ele disse se voltaria em breve?
— Sinceramente, não sei.
Ele provavelmente levaria pelo menos uma ou duas horas,
mas quem era eu para fazer previsões malucas?
— Vou esperar um pouco então — disse ela. — Se você não
se importa.
— Sinta-se em casa — eu disse, e me virei para sair. Beth
estava sentada na ponta do sofá como se estivesse esperando em
um consultório médico por más notícias.
Suspirando pesadamente, eu me obriguei a voltar.
— Você quer uma xícara de chá ou algo assim?
Seu rosto se iluminou.
— Isso seria adorável, obrigada.
Eu trouxe seu chá e me sentei na poltrona ao lado do sofá
para ser educada. Percebi que também estava empoleirada na
ponta do assento. Talvez seja assim que você se senta quando
planeja fugir a qualquer momento.
— Então… — Eu procurei por qualquer assunto de
conversa, exceto o casamento. — O que você está fazendo hoje,
então?
— Vou comprar o vestido para o casamento. — Beth sorriu.
Esta foi minha primeira lição de que quando há um
casamento sendo planejado, não há conversas que não sejam
sobre o casamento.
— Espere, com o papai? — Beth assentiu. O vapor da caneca
subiu na frente de seu rosto e embaçou seus óculos. — Isso não
é meio que contra as regras?
Beth deu de ombros, parecendo desconfortável.
— Eu realmente não tenho mais ninguém para ir comigo.
Minha mãe faleceu quando eu era pequena. Eu não tenho
irmãs. Eu realmente não tenho muitas amigas mulheres aqui.
É uma coisa que me irrita mulheres heterossexuais
chamarem suas amigas de “namoradas”.2 Elas não são suas
namoradas. Se você não está se aproximando do jardim da
senhora, então há palavras para isso: amigas, companheiras,
migas, besties, etc., etc. Deixe-nos com nossa palavra, ok?
2
“girlfriends” no original, podendo ser traduzido por amigas
mulheres ou namoradas.
Mas eu não disse nada. Lembrei-me vagamente de papai
dizendo que Beth se mudou para a Irlanda há alguns anos para
abrir uma filial de seu negócio em Dublin e ainda assim ela
ainda não tinha amigos de verdade. Não tendo amigos por um
tempo agora, pensei que poderia ser meio difícil para alguém.
Se eles fossem do tipo carente como Beth obviamente era.
Portanto, não sugeri que ela levasse os amigos de mamãe
também, embora tenha sido a primeira coisa que me ocorreu.
Eu realmente senti um pouco de pena dela.
Um a zero para maturidade.
Ela acenou com a mão, insistindo que não importava. Ela
queria que papai estivesse lá para comprar o vestido de
qualquer maneira. Eu não sabia o que era mais lamentável, que
ela não tinha amigos ou que ela só tinha papai para compensar
isso.
Então aconteceu algo que não consigo explicar, mesmo
agora. A pena que eu estava sentindo por ela de alguma forma
se transformou nas palavras:
— E se eu for com você?
Assim que elas saíram da minha boca, eu quis pegá-las de
volta e rezei para que ela dissesse, Oh, eu não poderia pedir para
você fazer isso e eu acenaria com a cabeça e correria para cima
antes de me meter em mais problemas.
— Sério? — Seu corpo inteiro se animou de uma vez, e seus
olhos brilharam.
— Bem, eu tenho certeza de que você não me quer lá…
— Não, não, eu quero. Isso seria brilhante. Você sabe, eles
te dão champanhe grátis e tudo mais — ela disse, como se fosse
um suborno.
Eu verifiquei meu relógio de mentira.
— Bem, está na hora do meu drinque das três da tarde, então
isso funciona bem. Que horas é o compromisso?
— Em meia hora.
— Vou me vestir — eu disse, colando um sorriso e tentando
o meu melhor para não estremecer visivelmente com
arrependimento.
Meia hora. Como papai pensou que ele seria capaz de entrar
e sair da casa de repouso a tempo de fazer isso? Clássico dele.
Eles teriam perdido esse compromisso se eu não tivesse
concordado em ir, ou ela acabaria indo sozinha. Isso contou
como minha boa ação para o ano, talvez até a década. Isso ficou
para ser visto.
Fomos recebidos na porta da loja Pronuptuous por uma
mulher com uma bagunça de cachos grisalhos presos em um
lenço colorido, uma idade completamente indecifrável entre
sessenta e cem.
— Entrem, meninas, entrem — ela nos conduziu, em um
tom encantado. Eu esperava alguém mais jovem, arrogante e
desdenhoso, porque minha única experiência em lojas de
vestidos de noiva era de TV e filmes. Todo o resto foi bastante
local, no entanto. Ela nos levou a um enorme camarim com
tantas superfícies reflexivas que me senti como se estivesse em
um corredor de espelhos. Por que alguém iria querer ver cada
centímetro de si mesmo de uma vez? Algumas coisas são
melhores não vistas se você me perguntar. A velha empurrou
um copo de algo borbulhante na minha mão e eu obedeci,
tomando um gole. Também havia um prato de trufas de
chocolate embrulhadas em papel dourado. Oh bem, seria rude
não participar.
— OK, agora, querida, me diga o que você está procurando?
Corte em trapézio, flare, trompete, vestido de baile,
comprimento médio, princesa, sereia, tubinho, cauda curta,
cauda da realeza, cauda média, cauda sobreposta, cauda de
capela, cauda de catedral, nenhuma cauda… — A mulher
respirou fundo.
— Uh… — Beth piscou várias vezes.
— Véu de catedral, véu de capela, véu de valsa, mantilha, véu
de camada dupla, decote quadrado, gola, decote em V, decote
coração, grego, barco, transparente, ombro a ombro, rainha
Anne, frente única, tomara que caia, cintura basca, cintura
descaída…
— Pare. — Beth levantou a mão. — As palavras perderam
todo o significado agora.
A mulher riu.
— Uma daquelas — disse ela, sem julgamento.
— Uma do quê? — Beth perguntou.
— Aquelas que não sabem o que querem. Há duas
extremidades do espectro, querida. As noivas que sabem
exatamente o que querem até o número de lantejoulas no
corpete, e as que não fazem ideia. Não se preocupe, Bárbara
sabe o que você quer antes de você.
Enfiei um dos chocolates na minha boca e dei de ombros
para Beth. Achei que era a Bárbara.
— Ok, deixe-me ver você. — Bárbara fez o gesto universal
de “me dá um giro” e Beth virou-se lenta e incerta no local.
— Bem, você tem uma figura incrível, querida, mas nada de
peitos.
Os olhos de Beth se arregalaram em descrença e eu comecei
a rir, pingando mingau de chocolate no meu queixo.
— Não falei nada engraçado — disse Bárbara, balançando a
cabeça para mim. — É o que é. Devemos ser honestas com nós
mesmas. — Ela se virou novamente para Beth. — Você quer os
enchimentos então ou você está feliz o suficiente como está?
— Assim como eu estou — Beth disse, confusa —, eu
suponho.
— Não há suposições aqui. Você tem que ter certeza. Eu
tenho muitos vestidos para um peito liso, mas se você vai
encher seu sutiã com esses peitos de gelatina, então você precisa
me dizer agora.
— Não, não. Não para… gelatina — Beth disse.
Tive a sensação de que ela estava com um pouco de medo de
Bárbara. Achei a Bárbara incrível e queria que ela fosse minha
avó. Sentei-me no pequeno sofá estofado ao lado da sala para
ver tudo se desenrolar, o prato de trufas no meu colo.
— Como você quer se sentir no grande dia? — Bárbara
prendeu uma fita métrica nos quadris de Beth.
— Feliz?
— Bem, eu espero que sim, mas não é isso que quero dizer.
Você está querendo se sentir como uma linda princesa fofa ou
uma mulher sensual e sedutora? Ou você está pensando mais
no visual refinado da noiva mais velha? Virgem, prostituta ou
velha? Essas são suas únicas opções, querida. — Bárbara olhou
astutamente para mim. — E nunca uma palavra mais
verdadeira dita — acrescentou ela com os lábios franzidos.
— Você deveria ser coach, Bárbara. — Eu levantei minhas
mãos para sua sabedoria inviolável. Eu considerei brevemente
pegar meu telefone para gravar isso e enviá-lo para Ruby, mas
eu suspeitava que Bárbara alegremente o pegaria de minhas
mãos e jogaria no banheiro ou algo assim.
— Hum, sexy, eu acho? — Beth meio que olhou para mim,
envergonhada. Tentei bloquear a parte do meu cérebro que
conectava Beth sexy de qualquer coisa a ver com meu pai e
coloquei outra trufa na minha boca, deixando-a derreter na
minha língua.
— Boa escolha. Eu não gosto de julgar, sabe, mas na sua
idade, o visual de princesa é um pouco triste. E você ainda não
tem idade suficiente para o terno de saia de casamento.
Havia alguns papéis de idade e gênero muito rígidos no
mundo de conseguir roupas para usar em seu próprio
casamento.
— Fique aqui, tome outra taça de champanhe, e eu volto em
alguns minutos com algumas opções.
Beth se sentou ao meu lado e bebeu um pouco de
champanhe.
— Isso é meio intenso — ela sussurrou.
— Eu acho que se você fizer a escolha errada, Bárbara vai
colocá-la no tronco e atirar em você com trufas — eu sussurrei
de volta.
— Por que estamos sussurrando? — Beth perguntou, ainda
sussurrando.
— Porque ela vai nos repreender por conversarmos na sala
de aula.
Bárbara voltou com um único vestido em uma capa de
plástico.
— Com seu tom de pele, querida, você pode usar a cor que
quiser, mas achei que um branco brilhante ficaria bonito. —
Ela abriu o zíper do plástico e segurou um pouco do tecido até
o rosto de Beth. Com certeza, estourou, fazendo-a brilhar.
Bárbara assentiu, satisfeita.
Beth pegou o vestido incerta e se arrastou para o trocador,
me dando um olhar perplexo pelas costas de Bárbara.
— Mas não você. — Bárbara se virou para mim. — Sempre
que você vier a mim, é marfim ou dourado champanhe para
você. Essa sua pele rosa pastosa não aguenta mais nada. — Ela
apontou para mim como se minha pele rosada a ofendesse.
— Saúde — eu disse —, mas não vou me casar.
— Por que não? — Ela torceu o rosto, pessoalmente
ofendida por minha rejeição ao casamento. — Claro que as
lésbicas podem se casar agora.
— Como você sabe que eu sou lésbica?
Eu não deveria ter ficado surpresa. Essa era a Barb. Ela era
sábia e também psíquica, aparentemente.
— Oh, querida. Você acha que pode trabalhar no negócio
do amor por tanto tempo e não conseguir um pouco desse
gaydar? Conheço algumas noivas da minha época que não
deveriam testar um casamento com noivos, com certeza. Você
ainda encontra uma estranha aqui e ali que ainda não sabe,
coitadas. Eu tento dar uma dica, você sabe, sutil, você não
gostaria de um belo terninho, querida. Esse tipo de coisas.
— Você está verdadeiramente fazendo o trabalho de Deus,
Barb.
Barbara assentiu sabiamente e bateu no nariz.
— Mas eu não acho que um casamento seja para mim de
qualquer maneira — eu continuei. — Todo esse até que a
morte nos separe? Meio ridículo, não é?
— Oh, o discurso da morte — Barbara resmungou. — O
que tem a dizer sobre a vida ser curta demais para ficar se
questionando o tempo todo? Você só precisa lidar com o que
sente agora e se sentir que isso pode te fazer feliz, mesmo que
por um tempo, pule com os dois pés, garota, e se molhe.
Olhei para Barb com curiosidade. Ela era tão boa em ler as
pessoas ou ela falava sabedoria o tempo todo e isso aconteceu
de ser excepcionalmente relevante para meus interesses?
Nesse momento, Beth saiu do vestiário e paramos de
conversar. O vestido era branco puro com um decote de barco
e renda que caía sobre seus ombros. Abraçava sua cintura e
quadris e depois se alargava no joelho. Quando ela se virou,
havia pequenos botões cobertos de seda a cerca de três quartos
acima das costas. Era realmente lindo.
Beth olhou no espelho e chamou minha atenção no vidro.
— É isso — disse ela —, é esse.
Bárbara assentiu com aprovação
— Veja, eu disse que saberia exatamente o que você
precisava.
Saímos da loja exclamando sobre o quão estranha e
maravilhosa Barb era, então eu não a notei até que fosse tarde
demais. Ela não me notou porque parou no meio da rua para
vasculhar sua bolsa. Foi assim que literalmente esbarrei em Izzy
no caminho do lado de fora de uma loja de vestidos de noiva.
— Oh, Saoirse — ela disse, depois que nós duas nos
recuperamos e trocamos o pedido de desculpas de eu não te vi
aí, estranha e percebemos para quem estávamos pedindo
desculpas.
Eu disse oi porque nem eu era fria o suficiente para dar de
cara com alguém e depois ignorá-lo. Se eu estivesse prestando
atenção e a tivesse visto mais cedo, teria sido subitamente
distraída por algo e fingiria não vê-la, como uma pessoa normal.
Beth estava ao nosso lado, radiante, talvez esperando uma
apresentação. Ela esperaria por muito tempo, deixe-me dizer-
lhe. Quando ela percebeu que tinha caído de cara em uma
situação estranha, ela murmurou algo sobre esquecer de contar
a Bárbara sobre botões, então fugiu de volta para a loja. Pelo
menos ela não era uma desligada completa. Se eu estivesse com
papai, ele teria provavelmente começado sua própria conversa
com Izzy e dito algo imperdoável como, Oh, Izzy, porque nunca
mais te vemos, ou eu gostaria que vocês duas se reconciliassem,
sentimos sua falta por aqui em casa, ou Deus me livre, Saoirse
está presa em seu quarto o tempo todo, você deveria vir e tirá-la
de minhas mãos.
Izzy olhou além de mim para a vitrine do Pronuptuous e eu
vi o brilho em seu rosto.
— É ela… — ela sussurrou, mesmo que Beth não estivesse
nem perto de estar ao alcance da voz.
Eu balancei a cabeça.
— Eu nunca pensei que veria o dia em que vocês duas
estariam saindo juntas — disse ela.
Ela não parecia chocada, ela parecia estar impressionada
com meu crescimento pessoal, mas eu tive a sensação de ser
pega fazendo algo vergonhoso.
— Não é grande coisa. — Sorri com força e esfreguei meu
polegar em minha cicatriz.
Izzy percebeu e me deu um olhar como se estivesse tentando
me dizer alguma coisa. Se fôssemos amigas, eu provavelmente
saberia que ela estava tentando me dizer que eu não podia
enganá-la e que deveria parar de fingir. Mas não éramos amigas,
então decidi que estava totalmente perplexa com qualquer
coisa misteriosa que ela estava tentando comunicar.
— Nós poderíamos conversar sobre isso — ela ofereceu.
— Eu tenho que ir — eu disse, e me apressei, deixando-a na
rua me olhando. Quero dizer, suponho que ela estava me
olhando. Eu não conseguia ver essa parte, mas eu estava
assistindo a muitos filmes ultimamente e parecia a coisa certa,
dramaticamente falando.
Alguns segundos depois, Beth me alcançou.
— Tive a impressão de que deveria dar a vocês duas algum
espaço — disse ela. — O que foi isso?
Dei a volta para olhar Beth, parando nós duas na calçada.
— Nós não somos amigas, Beth, ok?
— Eu sei — disse ela, e seu rosto caiu. — Mas eu gostaria de
ser sua amiga. Não tenho muitos amigos aqui. É difícil
conhecer alguém quando você se muda para uma cidade onde
todos são melhores amigos desde os quatro anos. É meio
solitário.
Sua vulnerabilidade era excruciante. Eu não poderia
suportar alguém sendo tão carente. Isso me fez querer arrancar
minha própria pele. Imagine admitir a alguém que você estava
sozinho. Você não iria simplesmente morrer?
— Eu realmente não tenho esse problema — eu disse.
— Se você diz — Beth respondeu, e eu pensei ter visto um
lampejo de algo em seus olhos. Eu não sabia dizer se era tristeza
por ela ou pena por mim. — Você sabe onde me encontrar se
mudar de ideia.
Dado que um grito de frustração teria sido uma regressão
longe demais, eu me satisfiz em ir na direção oposta, rangendo
os dentes. De onde ela saiu sendo tão compreensiva o tempo
todo?
Quando eu era pequena, mamãe me levava ao museu. Eu
odiava isso. Ela ficava olhando para as pinturas por muito
tempo e eu ficava entediada. Eu não sabia por que ela demorava
tanto para seguir em frente. Então eu puxava a mão dela e a
arrastava. A única coisa que eu gostava era a loja de presentes
com os brinquedos e livros coloridos.
Agora eu a levava pelo menos uma vez por mês e ficava lá o
tempo que ela queria. Estava praticamente vazio no início da
manhã, então era um dos poucos lugares que podíamos ir
aonde eu não sentia que todos estavam olhando, imaginando o
que havia de errado com ela.
Quando eu a peguei naquela manhã, a cuidadora principal
de mamãe, Nora, mencionou que ela se apaixonou por uma
jovem que trabalhava lá no turno da noite e elas assistiram a um
vídeo de um show online. Eu dei a ela um olhar de pedra e ela
saiu correndo. Uma garota fazendo minha mãe assistir a um
vídeo granulado de telefone de quem estava atualmente no
topo das paradas não era fofo para mim. Mamãe era uma
esnobe maravilhosa e gloriosa que pode ter sorrido com
indulgência quando papai queria falar sobre uma banda
obscura, mas sempre encontrava outro lugar para estar quando
tocava sua música pelo sistema de som.
Ele nunca poderia acompanhá-la também. Ela era muito
rápida, muito culta; ela tinha fatos e números na ponta dos
dedos, e suas discussões na mesa de jantar sempre terminavam
com ele rindo e concordando que ela estava definitivamente
certa e não sabia por que discutia. Ela diria que também não
sabia por que ele discutia, porque ela sempre chutava a bunda
dele. Quando eu cresci, eu me juntei; foi a única vez em que eu
e mamãe éramos uma equipe em vez de mim e papai. Quando
ela começou a perder o fio da meada e ficar confusa, parei de
querer discutir. Especialmente desde que ela se mudou. Se ele
tentar me provocar agora com um comentário estúpido que ele
sabe que vai me irritar, eu faço o meu melhor para não morder
a isca. Isto me deixa triste. Acho que ele não entende isso.
As pessoas da casa não sabiam dessas coisas sobre ela. Pensei
em contar a eles. Eu criei longos discursos onde eu disse a eles
como ela realmente era e falei muito sobre minhas memórias
com ela. Mas eu nunca disse. Eles estavam apenas fazendo seu
trabalho. E havia uma parte de mim que pensava que se eu
compartilhasse essas coisas com outras pessoas elas sumiriam da
minha mente. Eu perderia a pequena parte de mamãe que eu
possuía por saber quem ela era antes.
Quando papai me disse que mamãe tinha que ir para a casa
de repouso, que não era seguro em casa, que não podíamos
fornecer supervisão suficiente, eu não podia aceitar. Claro, ela
estava se deteriorando, eu podia ver isso. Estávamos em estado
de alerta constante. Havia muito pouco acontecendo em nossas
vidas. Mas eu estava bem com isso. Era minha mãe. Nós
conseguíamos. Nós tentaríamos mais, eu disse.
Eu chorei, gritei e disse a ele que só aconteceria sobre o meu
cadáver. Ou dele, de preferência. Mas não muito tempo depois
que ele tocou no assunto, as coisas mudaram. Eu estava na
escola, meu pai estava no trabalho e os cuidadores que vinham
seis vezes por dia estavam ocupados. Mamãe saiu de casa e se
perdeu. Ela estava sempre tentando sair e era difícil de
administrar porque você não podia ficar de olho nela o tempo
todo e você não podia simplesmente trancá-la em um quarto.
Isso não era justo ou seguro. Mas também não era seguro deixá-
la vagar por aí. Ela estava muito confusa.
Naquele dia, a cuidadora chegou à casa e encontrou a porta
da frente aberta. Ela não conseguia encontrar mamãe em lugar
nenhum. Ela ligou para o meu pai e não conseguiu falar com
ele. Ela chamou a polícia. Então ela me ligou na escola. Liguei
para papai várias vezes e tentei seu escritório, mas eles disseram
que ele estava em uma reunião com um cliente e havia deixado
o telefone na mesa.
Hannah foi quem me levou para casa no final. Ela ligou para
o pai dela para nos buscar e eles me levaram pela cidade
procurando por mamãe. Hannah segurou minha mão
enquanto caminhávamos para cima e para baixo no calçadão,
ao longo das praias, por toda a nossa vizinhança. Ainda
estávamos procurando quando papai finalmente apareceu. Eu
queria gritar com ele e fazê-lo se sentir mal por não estar lá, mas
o olhar ferido em seu rosto me parou.
Eu sempre pensei que morava em um lugar pequeno até
aquele dia. Uma pequena cidade litorânea. Quando percebi
que minha mãe poderia estar em qualquer lugar, parecia
infinito. Eu não chorei o dia todo, embora eu tenha
provavelmente machucado a mão de Hannah que eu estava
segurando com tanta força. Eventualmente, a polícia recebeu
uma ligação. Eles a pegaram ao lado de uma via dupla. Seu rosto
estava arranhado, uma gota de sangue escorria de seu couro
cabeludo e suas calças estavam encharcadas de urina. Nunca
descobrimos o que aconteceu com ela, como ela conseguiu
esses arranhões. Se ela caiu ou se alguém a machucou. Parte de
mim queria trancá-la em um quarto em nossa casa só para que
ela ainda estivesse lá, onde eu pudesse vê-la todos os dias.
Eu ainda me ressentia do alívio que vi no rosto de papai
quando disse a ele que não iria mais brigar com ele sobre a casa
de repouso.
Acima de tudo, tentei fingir que não senti o alívio também.
— Como você está? — Mamãe perguntou mais tarde, no
café do museu. Não havia nenhum sinal do colapso que ela teve
ontem. Ela estava em boa forma e gostava de passear pelas
exposições. Foi bom vê-la em seu ambiente. Ela colocou a mão
na minha. Fechei os olhos por um momento e saboreei a
pressão. Mamãe sempre me abraçava se eu fosse abraçá-la, mas
ela nem sempre iniciava contato físico hoje em dia. A garçonete
colocou dois biscoitos na nossa frente e deu um grande sorriso
para mamãe. Ela estava aqui o tempo todo e eu tinha certeza de
que ela nos reconhecia agora.
Cortei o bolinho de mamãe ao meio, untei com manteiga e
passei geleia. Ela começou a me contar essa história sobre
quando era pequena, sobre seu pai.
— Então, toda vez que a estação mudava, eu escrevia uma
carta para uma nova fada. A fada da primavera ou a fada do
verão. E de manhã eu saía para o jardim e pegava a pedra, e o
bilhete que eu havia deixado sumia e havia um novo bilhete
escrito em linguagem de fadas. Papai me dizia o que estava
escrito porque ele entendia a linguagem das fadas. — Ela
parecia tão feliz lembrando quanto provavelmente estava
naquelas manhãs em que encontrou suas anotações.
Mamãe falava muito sobre seu pai. Não seu pai biológico,
mas seu pai “verdadeiro” como ela o chamava. Ele morreu antes
de eu nascer, mas mesmo quando eu era pequena ela falava
tanto dele que eu sentia que o conhecia. Ele soava como se
tivesse feito a magia acontecer. Eu estava tão grata que as
memórias que ela continuava revisitando eram aquelas que a
faziam feliz. Nem sempre funcionava assim. Havia uma mulher
em sua casa de repouso que revivia a morte de seus pais como
se tivesse acabado de acontecer. Toda aquela dor e trauma de
novo e de novo.
Eu me perguntava se eu tivesse parada no tempo, o que eu
diria sobre meu pai.
Haveria palavrões, imagino.
Mamãe se levantou e olhou em volta, mordendo o lábio.
— Onde é o banheiro? — ela perguntou.
Eu disse a ela que a levaria e peguei minha bolsa, mas deixei
nosso chá meio bebido e o cardigã de mamãe para mostrar que
voltaríamos para que a garçonete não pensasse que não íamos
pagar a conta. Eu a conduzi até o banheiro para deficientes e
fiquei lá fora. Mamãe geralmente não precisava de ajuda com o
banheiro, mas você ainda tinha que esperar por ela,
especialmente em um lugar que ela poderia se perder ou
desorientar facilmente. Não pude deixar de pensar no dia em
que ela precisaria de ajuda lá dentro. Não é que eu me
importasse, mas eu sabia que ela se importaria.
Mamãe abriu a porta e olhou para mim.
— Hm… a pia não funciona? — ela disse. Olhei para ela e vi
que era uma daqueles chiques em que você tinha que passar as
mãos exatamente no local certo para obter água e sabão, então
eu a peguei e a ajudei a lavar as mãos. No mesmo momento em
que estávamos saindo do banheiro, um homem passou por
mim no corredor estreito para chegar ao banheiro masculino.
Ele parou quando nos viu.
— Você não deve usar o banheiro para deficientes se você
não for deficiente — disse ele no tom de voz mais professor
possível.
Eu dei a ele o olhar mais frio que pude reunir, esperando que
ele saísse e nos deixasse em paz. Em vez disso, ele parecia esperar
por uma resposta. O rosto de mamãe se contorceu e ela deu um
passo atrás de mim.
— Desculpe. Sinto muito — disse ela.
Eu não acho que ela realmente entendeu por que ele estava
reclamando, mas ela podia sentir o tom.
— Foda-se — eu disse, moderando minha linguagem
porque mamãe odiava palavrões. — Cuide da sua maldita vida.
O homem resmungou com raiva e quando ele virou as
costas eu lhe dei o dedo. Em ambas as mãos. E também teve um
pouco de dança.
Voltamos para nossa mesa para tomar nosso chá e terminar
os scones. Alguns minutos depois, vi o homem conversando
com a garçonete e apontando na direção dos banheiros. Ele
estava realmente acumulando pontos de intrometido hoje.
Desviei o olhar dele e rezei silenciosamente para que minha mãe
terminasse o chá logo para que pudéssemos sair.
— Oi. Me desculpe, eu fui rude com vocês antes. Eu não
sabia.
O homem pairava sobre nós e, embora suas palavras fossem
tecnicamente de remorso, ele parecia tão acostumado a se
desculpar que saíam como pequenas palavras duras e
constipadas, saindo do cu enrugado que ele chamava de boca.
— Não sabia o quê? — Eu disse em tom cortante e
desdenhoso.
— A garçonete disse que há algo errado com sua mãe. Eu
não percebi. Ela não parece… — Ele parou, mas ainda não tinha
terminado. — De qualquer forma, ela disse que você se importa
com ela, e eu acho isso realmente admirável. — Ele olhou para
mim mais com pena do que com admiração, porém, e ele não
olhou para minha mãe, mesmo sendo ela quem merecia o
pedido de desculpas.
Eu queria repreendê-lo. Fazer um discurso comovente em
defesa de cuidar da sua vida e não julgar as pessoas. Mais tarde,
na cama, eu pensaria nas palavras, mas não as tinha naquele
momento. O homem também não esperou por uma resposta;
ele saiu, presunçosamente, pensando que ele tinha sido tão
humilde e legal hoje. Concentrei-me muito no meu bolinho.
— Eu tenho que ir agora — mamãe disse de repente,
quebrando meu foco.
Eu reconheci a sugestão de urgência em seu tom. Ela estava
ficando chateada.
— Está tudo bem — eu disse suavemente. Eu não queria
que aquele cara arruinasse o dia dela. — Estamos nos
divertindo.
Sua testa franziu em uma carranca e ela fez o tipo de cara que
você faz quando sente o cheiro de algo desagradável.
— Eu realmente tenho que ir agora. Eu tenho trabalho. —
Ela olhou ao redor do café. — Você pode me levar para casa?
— Mãe, por favor. — Esfreguei a nuca. — Estamos nos
divertindo. Tudo está bem. Você não precisa ir ainda.
— Eu tenho que ir. — Ela bateu o pé debaixo da mesa. Eu
me odiava por verificar se a garçonete estava nos observando
agora. Por um segundo, fiquei com tanta raiva que queria bater
o pé também. Principalmente eu queria gritar. Eu queria dizer
a ela, que seu pai está morto e que ela teve que deixar seu
emprego porque você não conseguia se lembrar de seu próprio
sobrenome. Você não tem literalmente nenhum lugar melhor
para estar. Eu pressionei com força a cicatriz na minha palma.
Eu precisava respirar e me acalmar.
Mamãe parecia tão perdida. A expressão nublada em seu
rosto partiu meu coração. Olhei para o teto para não chorar. Só
iria piorar.
— Vou te levar para casa — eu disse, e juntei nossas coisas.
— Vamos, me dê sua mão.
Sua expressão clareou e ela se levantou, feliz novamente,
como se nada tivesse acontecido. Ela pegou minha mão e eu a
apertei.
— Eu te amo, mãe.
— Eu também te amo — disse ela. E mesmo sabendo que
ela só disse isso porque eu disse, eu saboreei ouvir aquelas
palavras na voz da minha mãe.
Saoirse
Ruby me encontre na praia à 1 da manhã
Ruby
Misteriosa
Saoirse
É hora do nº 8
Ruby
Não ia ser no sábado?
Saoirse
À 1 da manhã será sábado.
Saoirse
Quando você conseguiu meu telefone??
Saoirse
Ok, eu estou meio que gostando desse. A
trilha sonora é incrível.
00’Idiota.3
Vou precisar de mais do que isso
Saoirse
Assistindo 10 coisas que eu odeio em você.
00’Idiota.
Não sei se já vi esse.
Saoirse
3
Referência a 007 - James Bond.
Assista. Eu comecei agora. Eu vou fazer uma
pausa. Avise-me quando chegar à parte
em que ela está lendo a redoma de vidro4.
00'Idiota.
Tudo bem, estou indo.
Saoirse
Estou caidinha pela intensa amiga gótica.
00'Idiota.
Também.
Saoirse
Por que há tantas apostas em comédias
românticas para adolescentes?
00'Idiota.
Mais importante, entre todas as apostas e
travessuras românticas, quando essas
pessoas fazem sua lição de casa? Eles estão
prestes a terminar a escola? Ainda tenho
pesadelos com o certificado de conclusão
e acabou semanas atrás.
Saoirse
4
Livro da escritora americana Sylvia Plath, originalmente chamado “the bell
jar”.
A questão é, ou você gosta de alguém, ou
não. Se você tiver que criar uma serenata
elaborada de Can’t Take My Eyes Off Of
You para conseguir alguém para sair com
você, a pessoa provavelmente não gosta
muito de você.
00'Idiota.
Nem todos nós fomos abençoados com seu
magnetismo animal bruto. Como um
anúncio de Lynx ambulante.
Saoirse
Eca. Só é fofo porque Heath Ledger é fofo.
Se ele fosse um garoto padrão do pântano,
você estaria chamando os guardas.
00'Idiota.
Ela realmente acabou de mostrar os peitos
para o professor para tirá-la da detenção?
Saoirse
Sim. Você pode imaginar se exibir para o Sr.
Connolly?
00'Idiota.
Quer dizer, eu posso. Mas tenho muito
orgulho dos meus mamilos, então…
Saoirse
Vou ignorar o fato de que você levantou o
tópico dos seus mamilos.
Espere, por que ela está fazendo o poema
de desculpas quando foi ele quem fez a
aposta?
00'Idiota.
Porque ela não é mais feminista, por causa
do amor. Tenho certeza que essa é a moral
da história.
Saoirse
Isso não faz sentido.
00'Idiota.
Mas eles são todos tão bonitos que quase
não importa.
Saoirse
Ah, ele comprou a guitarra para ela porque
ele apoia seus sonhos musicais de garota
rebelde. Quer dizer, eu pessoalmente não o
perdoaria, mas é meio doce, acho.
00'Idiota.
Você está se transformando em uma
molenga. Vou contar à Ruby.
Saoirse
Ai, não. Por favor, não diga à garota que eu
gosto que eu secretamente gosto dos filmes
que ela ama. Isso seria um desastre.
00'Idiota.
Você me enganou. Eu sou apenas um peão
em seus jogos mentais, não sou?
Saoirse
Você teria que ter um cérebro para eu
jogar jogos mentais com você.
00'Idiota.
Golpe Crítico. Ego -2000pts
Na quinta-feira, agendamos um telefonema em que
nenhuma de nós desligava. Era a coisa da lista que eu mais
queria evitar porque ninguém gosta de falar no telefone. É
tortura. E todas as comédias românticas em que as pessoas não
querem desligar umas das outras são de antes que a tecnologia
nos concedesse o dom das mensagens de texto.
Mas estava na lista, então tinha que ser feito. Por
autenticidade, concordei em ligar do telefone fixo do escritório
do meu pai para o telefone fixo da casa de Oliver. Rezei para
que Ruby fosse a única a atender. Eu até mandei uma
mensagem para ela com um aviso. Se isso foi algo que os idosos
tiveram que enfrentar quando eram jovens, é uma maravilha
que a espécie tenha sobrevivido.
— Olá? — Uma voz masculina confusa atendeu o telefone.
Claro, era Oliver.
— Ruby está aí? — Eu disse, elevando minha voz e tentando
parecer super educada e profissional para que ele não
reconhecesse minha voz.
— Saoirse?
É claro.
— Sim, o quê? — Minha voz caiu de volta ao seu nível
normal embebida em desdém.
— Foi estranho. Eu ouvi esse barulho de campainha e me
perguntei de onde veio. Encontrei esta máquina estranha
coberta de teias de aranha.
Eu quase ri, mas isso só iria encorajá-lo.
— Você pode chamar Ruby?
— Seu telefone está quebrado? — ele perguntou, me
ignorando. Ele parecia genuinamente curioso para saber por
que alguém utilizaria esses modos de comunicação
ultrapassados.
— Não. Sim. Olha, não é da sua conta.
— Isso faz parte do seu joguinho romântico?
Todas as minhas extremidades ficaram frias. Este foi o
momento mais embaraçoso de toda a minha vida.
— O quê? — Fechei os olhos com força e esperei que de
alguma forma ele dissesse alguma coisa, qualquer coisa,
exceto…
— Ruby me contou sobre sua pequena lista. É adorável —
ele demorou. — Quem teria imaginado que você era uma
romântica tão anos 50? Você está fazendo um álbum de fotos
de vocês duas? Você escreve sobre isso em seu diário à noite?
Você quer que eu corte uma mecha do cabelo de Ruby para
você?
— Vá embora — eu gemi, e eu teria desligado se não tivesse
ouvido Ruby do outro lado.
— Oliver, pare com isso — ela disse a ele. — Oi — ela me
disse.
— Então. Eu sei que essa ligação deveria ser nós não
querendo desligar, mas na verdade, eu realmente quero
desligar.
Ruby riu.
— Por quê? O que está errado?
— Você disse a Oliver?
— Sim, e daí??
— Ele é meu inimigo. E você mostrou a ele minha fraqueza.
Meu ponto fraco.
Ruby riu novamente.
— Oliver não é seu inimigo. E certamente sua fraqueza é a
força lamentável da parte inferior do corpo e a incapacidade de
imitar pedaladas, certo?
— Você sabia que eu estava fingindo? — Eu realmente
pensei que tinha feito parecer que eu estava trabalhando
naquele pedalinho também.
— Eu estava fazendo todo o trabalho, é claro que eu sabia!
Meus glúteos estavam pegando fogo no dia seguinte.
— Entendo… — eu parei. — Estranho.
— Você acha que eu deveria ser uma marinheira
profissional? Eu poderia entrar para a marinha.
— Baseado na sua experiência com pedalinho?
Provavelmente não.
— Eu poderia ser a primeira mulher a dar a volta ao mundo
em um cisne.
— Saoirse, o que você está fazendo aqui? — Papai entrou
em seu escritório com um café em uma mão e um tablet na
outra. — Você está no telefone? Perdeu seu celular? Eu não vou
comprar um novo para você.
— Estou em uma ligação. Por favor, saia.
— Esse é o seu pai? Diga a ele que eu disse oi — Ruby disse,
parecendo mais animada do que qualquer adolescente já esteve
sobre um pai bisbilhotando uma conversa.
— Ah, Saoirse, você viu que um dos grandes cisnes escapou
— papai disse, virando seu tablet para que a tela ficasse de frente
para mim. Estava na página inicial do jornal local. “Vida de
Peda-xinho Rouba Cisne Gigante” era a manchete, e havia uma
fotografia de nossa ave, recuperada, com o dono.
— De jeito nenhum — eu disse.
— Por que não? — Ruby perguntou.
— Não é? — Papai disse. — Foi um escândalo. Eles acham
que eram crianças brincando. Foi encontrado encravado em
uma rocha mais acima na enseada.
Caótico. Honestamente.
— Quero dizer para Ruby. Pai, me dê um segundo, sim?
— Oh, é Ruuuuby — ele disse, infantilmente desenhando
o nome dela. Ele fez barulhos de beijo que fariam você ficar de
boca fechada para sempre.
— Por que não? Não posso dizer oi para o seu pai?
— Esta foi uma ideia terrível — eu disse, mais para mim
mesma do que para Ruby ou papai.
— Por que você não convida Ruby para jantar no sábado à
noite? — Papai disse, sorrindo sobre seu café.
Eu balancei minha cabeça ferozmente e falei de jeito
nenhum.
— Eu ouvi isso. EU ADORARIA IR PARA JANTAR —
Ruby gritou no meu ouvido, e eu instintivamente segurei o
telefone para evitar ferimentos permanentes. Meu coração
começou a bater rápido. Ela não podia vir aqui. Não para
conhecer o papai de qualquer maneira. Talvez se ele estivesse
fora e tivéssemos o lugar só para nós…
— Ruby, nós temos planos — eu disse, tentando lembrá-la
sobre o número três na lista de sequência. Íamos pegar um trem
para a cidade e ir fazer karaokê nesse bar que eu tinha certeza de
que não pedia identidade. Era a única maneira que eu podia
imaginar cantar. E até cantar parecia preferível a este jantar.
Papai gritou de volta para o telefone que segurava na minha
mão
— VOCÊ É ALÉRGICA A ALGUMA COISA?
Eu dei a papai uma cara de “não se atreva” de olhos
arregalados. Ele me ignorou. Eu poderia esperar isso dele.
— NÃO, MAS EU ODEIO COGUMELOS.
— Ruby, nós temos outros planos — eu disse. Ela não
percebeu meu aborrecimento.
— ENTENDI, SEM COGUMELOS.
Eu dei a papai um olhar que perguntava: Terminou? Ele
assentiu e saiu da sala.
— Vou te dar um pouco de privacidade. — Ele piscou.
Tarde demais.
Depois do telefonema, tentei não entrar em pânico. O que
considero um sinal de crescimento pessoal sério. Subi para o
meu quarto e comecei a assistir a um dos filmes, (500) dias com
ela, e ignorei o fato de que meu pé não parava, ficava batendo
tap tap na armação da cama. Infelizmente, o cara do filme não
quis ouvir a garota do filme dizendo a ele que ela não queria
algo sério e isso não ajudou a me distrair de Ruby, então eu
mudei para um filme apropriado com uma criança demônio e
uma mansão amaldiçoada. Papai colocou a cabeça para dentro
para dizer que estava saindo. Ele tinha uma sacola de presentes
na mão. Resmunguei em vez de me despedir e não perguntei o
que havia na sacola. Em parte, porque estava furiosa com ele e
em parte porque temia que fosse algo nojento como lingerie
para Beth.
Quando o filme acabou, eu ainda estava agitada e decidi que
tinha que sair de casa. Eu precisava ir ver mamãe. Eu a tinha
visto naquela manhã, como de costume, mas a vontade era
esmagadora. Eu queria abraçá-la, sentir o seu cheiro de mãe, me
enrolar em uma bola ao lado dela e ser confortada por isso,
mesmo que ela não soubesse o que dizer. A ideia de que Ruby
estaria em nossa casa, conversando com papai, estava me dando
palpitações e nenhuma quantidade de crianças demoníacas
poderia me distrair.
Não havia como ela vir aqui e não violar as regras de alguma
forma. Então, jantar com papai não estava exatamente na lista
em si, mas era uma coisa muito séria de se fazer. Isso foi um
“nós” em um nível metafórico, se não literal. E não havia como
passar uma noite inteira sem ter algo a ver com mamãe ou o
maldito casamento chegando. Ela gostaria de saber tudo sobre
isso, e eu não gostaria de falar sobre isso e então realmente
haveria uma briga. Estaríamos em território de relacionamento
sério então. Ruby estava metendo o nariz onde não devia.
Talvez toda essa coisa de sequência romântica tenha sido uma
má ideia. Ela obviamente não entendia limites. Quero dizer,
tudo bem, esses limites não foram exatamente definidos para
ela, mas ela deveria ter esperado que eu a convidasse, não meu
pai gritando ao telefone.
E, no entanto, eu realmente não queria terminar essa coisa
toda em um jantar, queria? Talvez eu pudesse sair disso de
alguma forma. Eu precisava falar com mamãe. Pode não ser o
mesmo de antes, mas conversar com ela sempre me ajudou a ter
alguma perspectiva.
Nora acenou para mim do outro lado do corredor. Ela deve
ter se perguntado por que eu estava visitando uma segunda vez
em um dia. Ou talvez ela não estivesse pensando em mim
porque ela era uma pessoa ocupada e eu era uma egocêntrica.
Quando cheguei à porta de mamãe, estava ligeiramente
aberta e ouvi uma voz baixa. A voz do papai. Verifiquei meu
relógio. Não era sua hora normal para visitar. Pensei em me
virar, mas algo me fez escutar na porta. Hábito talvez. Parecia
ser uma criança de novo e eu senti o mesmo ronco no
estômago, como se eu pudesse ouvir mais notícias terríveis.
Como se o pior já não tivesse acontecido.
A última vez que papai e eu visitamos juntos foi antes de eu
descobrir que ele estava saindo com Beth. Eu não iria com ele
depois disso. Eu não aguentava vê-lo sentado ali e falar com ela
sabendo que ele estava mentindo e traindo e ela nem percebeu.
Espiei pela porta, pensando que se eles me pegassem
olhando, eu entraria e fingiria que tinha acabado de aparecer.
Mas eles estavam sentados de frente para a janela, suas costas
meio viradas para mim, embora eu ainda pudesse ver seus
rostos de perfil.
— O que você acha? — Papai perguntou. — Eu me lembrei
de você dizendo que queria um assim anos atrás. Acho que
deveria ter comprado para você na época, mas não tínhamos
dinheiro e eu esqueci. Até agora, de qualquer maneira.
Ele estava segurando uma pequena caixa. Ela não prestou
atenção nele, então papai abriu e mostrou a ela o que estava
dentro. Eu não podia ver exatamente, mas eu pensei que
poderia ser uma pulseira. Ela pegou e disse obrigada, mas ela
estava ficando inquieta, eu podia ver no jeito que ela estava
inquieta. Papai podia sentir isso também. Sua voz assumiu
aquele tom entusiasmado de professora primária que eu me
peguei usando algumas vezes. Ele pegou outra caixa. Uma
maior.
— O que temos aqui? — ele disse, chacoalhando-a.
Ele puxou a fita e arrancou o papel como uma criança em
seu aniversário.
Era um porta-retrato quadrado preto, embora eu não
conseguisse ver o que havia nele.
— Eu adoro isso — disse ele no mesmo tipo de voz que ele
usava quando eu lhe dava canecas do Dia dos Pais ou cartões
feitos à mão, como se fosse a melhor coisa que ele já tinha
ganhado. Ele pegou a mão de mamãe e a beijou. — Você
sempre sabe exatamente o que eu quero. Feliz aniversário,
amor.
Eu esqueci completamente que era o aniversário deles. Não
era o tipo de coisa que eu já tinha prestado muita atenção de
qualquer maneira. Mamãe sorriu. Eu queria que ela fizesse
alguma coisa. Estender a mão e segurar sua mão ou inclinar-se
e beijar sua bochecha. Ela não fez nenhuma dessas coisas. Ela se
levantou e foi embora, tagarelando sobre algo completamente
alheio. Uma dor aguda me atingiu no peito e eu tive o desejo
irresistível de tentar alcançá-la e desenterrá-la, porque eu não
podia suportar.
Com os olhos embaçados de lágrimas, caminhei o mais
rápido que pude pelo corredor. Quando voltei a ver Nora,
parei-a e engoli em seco.
— Alguém levou minha mãe para fazer compras para dar
um presente ao meu pai? — Eu perguntei.
Ela balançou a cabeça.
— Não, querida, isso não é realmente parte do nosso
trabalho — ela disse gentilmente.
— Ela deu ao meu pai um presente de aniversário. De onde
ela tirou isso?
Nora sorriu.
— Bem, se eu me lembro bem, seu pai ganhou um presente
no aniversário dele há alguns meses também.
Quando eu pareci confusa, ela sussurrou atrás de sua mão
como se fosse algum tipo de segredo fofo que ela estava me
contando.
— Acho que ele mesmo compra e depois dá para ela, para
dar a ele. É bem doce.
Papai sempre assinava meus cartões de aniversário. Com
amor, mamãe e papai. Eu pensei que era algo que ele fazia por
mim, por hábito ou pena. Eu o imaginei vagando pelas lojas
escolhendo presentes da mamãe para si mesmo, tomando
cuidado para embrulhá-los e escrever cartões porque ela nunca
iria querer perder um aniversário ou aniversário de casamento.
Ele fez isso por ela. Algum tipo de vazio em mim se encheu e
doeu.
Eu não conseguia falar, apenas acenei para Nora e ela me
deixou na recepção enxugando lágrimas na manga.
Infelizmente não
5
National Health Service, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido.
Ruby me contou tudo sobre Noah. Como ele tinha um tipo
específico de paralisia cerebral e a cirurgia foi feita para
melhorar sua caminhada, equilíbrio e reduzir a espasticidade
muscular (o que Ruby teve que me explicar o que ra). Tinha
que ser seguido de muita fisioterapia. Ela também me disse que
Noah era o maior fã de Ariana Grande e que ele usava uma
roupa de Homem-Aranha seis dias por semana. Sua família
tinha viajado cedo para ter um pouco de férias e então eles
ficariam por algum tempo para recuperação e cuidados
posteriores. Ela disse que as complicações eram raras, mas ainda
entrava em pânico toda vez que sua mãe ligava. Quando
voltassem, Noah passaria muito tempo fazendo fisioterapia
intensiva em um centro de tratamento em Londres.
Felizmente, era uma curta viagem de sua casa. Ruby estava
adiando a faculdade até o ano que vem porque queria estar por
perto para ajudar e conseguir um emprego para ajudar a pagar
parte do custo de todas as viagens e coisas extras de que
precisavam. Surpreendeu-me que eles não tivessem dinheiro.
De alguma forma, eu tinha assumido que porque a família de
Oliver era rica, a família de Ruby também era. Mas não me
surpreendeu que Ruby fizesse isso por sua família. Eu pensei
sobre a história dela sobre as aulas de ginástica, a maneira como
ela resgatou (roubou) gatinhos, sua campanha de menstruação,
e como mesmo depois que eu errei e menti para ela, ela ainda
queria estar lá para mim e me ajudar com papai. Ela faria
qualquer coisa para cuidar das pessoas que amava.
Diferente de mim.
Ela era tão alegre e positiva e, embora estivesse obviamente
triste por seu irmãozinho ter que lidar com coisas tão grandes,
eu não conseguia ver nela as coisas horríveis que eu via em mim.
A frustração, o cansaço e a autopiedade. A vergonha ou raiva,
ou desesperança.
— Acho que ano que vem, quando as coisas estiverem um
pouco mais acertadas, vou tentar fazer algo parecido com o que
Beth estava falando na universidade. Eu fiz psicologia nível A,
você acha que seria relevante? Parece tão legal. Você acha que
ela me deixaria ir a uma reunião ou algo assim? — Ruby
tagarelava e parecia mais leve e feliz do que nunca. E foi a
primeira opção de carreira que ela considerou que durou mais
de quinze segundos.
— Provavelmente — eu disse, engolindo os pensamentos
horríveis.
Agora que Ruby finalmente foi capaz de me dizer algo que
era tão importante para ela, ela estava boba e livre como se
pudesse flutuar em uma brisa forte. Mas a leveza que eu senti
antes desapareceu. Uma tonelada de culpa me manteve
firmemente no chão.
— Você deveria perguntar — eu disse, engolindo. — Talvez
você pudesse conseguir um emprego lá depois da universidade.
Você pode se expandir para filmes e TV e trabalhar para
melhorar a representação lésbica na mídia.
— Não mais suicídios ou se transformar em falcões no final.
— E mil por cento mais beijos.
Em uma explosão espontânea, Ruby jogou os braços em
volta de mim e me abraçou com força.
— Estou muito feliz por ter contado a você, Saoirse. Não
parece certo manter algo tão grande escondido de você.
— Estou feliz que você me disse também.
Ela pressionou seus lábios nos meus e quando ela se afastou,
seus olhos castanhos salpicados travaram nos meus, capazes de
fazer minha pele formigar sem um único toque.
— Se você quiser falar sobre qualquer outra coisa, eu quero
ouvir também. Mesmo que não seja “divertido”. — Ela citou a
palavra no ar, como se o jogo bobo que estávamos jogando
tivesse acabado agora.
Mas uma coisa era Ruby me mostrar algo que só a fazia
parecer mais bonita, mostrar o quão forte ela era quando sua
família estava sob pressão. Se eu contasse a ela sobre mamãe, ela
veria todas as partes mais feias de mim e eu não queria que ela
visse isso. Ela estava ficando em casa para ajudar a família, e eu
me candidatei a deixar o país sem pensar na minha própria mãe.
Eu não podia dizer a ela mais do que já tinha dito. Não fazia
sentido compartilhar minhas falhas e falhas e arruinar tudo
quando tudo acabaria em breve.
— Eu realmente não tenho mais nada. — Eu sorri.
Siga em frente agora, nada para ver aqui.
Ruby hesitou.
— Onde está sua mãe? — ela perguntou, forçando a leveza
em sua voz como se a pergunta tivesse vindo do nada em
particular.
Minha mandíbula apertou involuntariamente e eu a forcei
a relaxar.
— Ela está por perto. Ela e meu pai são divorciados, só isso.
Verdadeiro.
— Você ainda a vê? — Ruby perguntou.
— O tempo todo.
Verdadeiro.
A testa de Ruby enrugou.
— Ah, tudo bem. Vou conhecê-la antes de eu ir embora?
— Sim, claro.
Mentira.
Saoirse
Você acha que pessoas que são amigas há
anos podem se apaixonar de repente?
Saoirse
Ps: honestamente. Como você fez dessa
vez? Não te vejo há séculos!
Saoirse
Estou assistindo Harry e Sally - Feitos Um para
o Outro. Ele confessou seu amor por ela
listando um monte de coisas que ela faz.
Ah, e diga a Ruby que ela é uma traidora
imunda.
Saoirse
Mas e você? Acha que os melhores amigos
podem de repente começar a gostar um
do outro? Quero dizer, certamente, se você
não estava interessado neles no começo,
depois de anos e anos sendo amigos, você
não está apenas se estabelecendo?
Saoirse
Não sabia que você era tão romântico.
Saoirse
Então, por que você não tem uma
namorada?
Saoirse
Acho que um dia você será um bom
namorado.
Saoirse
Não, por causa do seu carro legal e cofre
cheio de moedas de ouro.
Um dos tópicos não feitos em nossa lista era para uma de
nós ensinar uma habilidade a outra. Você sabe, como o
personagem esportivo (o homem geralmente) fica atrás do
personagem adoravelmente desajeitado (a mulher,
obviamente) e a ajuda a balançar um taco de golfe. Ou o rico
culto traz o zé ninguém ao teatro e os ensina a apreciar a beleza
da ópera. Descobrimos que nenhuma de nós era esportiva, a
menos que você contasse o passado de ginasta de Ruby, e eu
não ia tentar ficar de cabeça para baixo. Nenhuma de nós era
rica ou culta também. Na verdade, éramos duas pessoas
claramente inábeis, sem grandes talentos na vida. Nenhuma
inclinação para pintura a óleo ou violino, ou canto, ou mesmo
jogos de computador, ou podcasting, ou fazer zines com temas
de zumbis, basicamente qualquer coisa que torne um
personagem peculiar e interessante.
— Você acha que somos apenas duas pessoas realmente
chatas? — Eu lamentei sobre o pote de sorvete de baunilha
derretido que eu segurava frouxamente na minha mão.
Estávamos em um cobertor de piquenique na areia, na luz da
tarde, eu de bruços, Ruby sentada com os joelhos dobrados em
seu peito. O barulho de pessoas arrumando suas bolsas de praia
e crianças para o dia tocava ao fundo.
— Claro que não somos — Ruby disse, balançando a
cabeça. — Você sempre salta para a pior conclusão possível.
— Tem certeza? Nós duas estamos comendo sorvete de
baunilha — eu apontei. — Nunca experimentei a maioria dos
outros sabores.
— Bem, tecnicamente eu estou tomando o sorvete.
Olhei para ela e depois para minhas mãos. Ela roubou meu
sorvete sem que eu percebesse.
— Ladra — eu disse, pegando meu pote de volta.
— De jeito nenhum. Você estava deixando derreter.
— Está bem. — Eu desisti. — Devo ter algum tipo de
habilidade ou hobby. Eu… eu posso… hum… não. Eu não
tenho nada.
— Eu também — Ruby concordou, lambendo alegremente
a colher.
— Mas não somos chatas, certo?
— Não. Somos normais.
— Em comédias românticas, as garotas sempre têm uma
habilidade especial.
— Sim, bem, geralmente é sempre jornalismo de revista
feminina ou assistente pessoal. O que há com comédias
românticas e jornalistas?
— Isso é verdade. Talvez eu devesse ser uma jornalista de
revista feminina? — Eu soava como Ruby.
— Você lê alguma revista feminina?
— Não. Eu já sei todas as noventa e nove dicas para deixar
meu homem louco. — Eu me virei e me sentei, puxando um
cardigã sobre os ombros, o calor do dia se esvaindo com a brisa
fresca sobre as ondas.
— Talvez devêssemos encontrar outra paixão para você,
querida.
— Querida — eu repeti, zombando de seu sotaque inglês.
Ela me acenou com o dedo indicador.
— O que vamos fazer, então? Não temos nada para ensinar
uma à outra. A menos que você queira ouvir sobre o que eu
aprendi sobre a história da Prússia para o vestibular? Para ser
honesta, agora parece que a prova foi há muito tempo, então eu
não me lembro mais de muita coisa — eu disse.
— Por que nós duas não aprendemos algo novo? — Ruby
sugeriu. Ela esticou os pés, cravando os dedos dos pés na areia,
e os últimos raios de sol a iluminaram como se a luz viesse de
dentro.
— Ukulele? — Eu ofereci.
— Não, algo prático que podemos realmente usar na vida
real.
— Matemática financeira?
— Tudo bem, algo um pouco menos prático. Tipo…
cozinhar? Poderíamos fazer uma aula de culinária. — Ela se
iluminou. — Essa é uma ótima ideia. É algo que nós duas
podemos usar, vai ser divertido, e toda vez que você fizer
fettuccine fresco vai pensar em mim.
Imaginei meu futuro na cozinha de um apartamento
aconchegante. Haveria música e velas e Ruby estaria brincando
com nosso cachorro enquanto eu flambava coisas.
Nosso cachorro? Que pensamento ridículo.
Ruby era do time gatos.
Cozinhar era uma boa ideia, no entanto. Eu não tinha
considerado como me alimentaria se fosse para a universidade
ou me mudasse. Eu não tinha conseguido nenhum dos
empregos ainda, mas certamente em algum lugar logo se
encontraria precisando de uma adolescente totalmente
desqualificada? Mesmo se eu ficasse morando em casa,
cozinhar algo que não fosse pizza congelada provavelmente
seria útil. Eu deveria ter feito isso anos atrás e me poupado da
tortura de tentar engolir o que quer que papai tivesse fervido
até a morte.
— Você é brilhante —eu disse, e me sentei para beijar o nariz
sardento de Ruby, mais sardento agora do que quando nos
conhecemos.
— Eu sei. — Ela retribuiu mordiscando meu lábio inferior.
— Você deveria estar comemorando o dia em que me
conheceu.
— Eu estava comemorando — eu disse seriamente. —
Ganhei uma garrafa de vodca grátis naquela noite.
— Você é tão romântica. — Ruby agitou seus cílios para
mim. — É por isso que eu t…
Nós duas congelamos para um efeito quase cômico.
— Por isso que nós — ela começou de novo, o momento
congelado desaparecendo sem reconhecimento, uma falha na
matrix —, somos tão boas nessa coisa de sequência romântica.
Alguns dias depois, estávamos na cozinha de economia
doméstica da minha antiga escola com quatro casais
heterossexuais de trinta e poucos anos olhando um para o
outro com adoração, anéis brilhantes nos cegando da mão
esquerda de cada uma das mulheres, e um homem seriamente
velho sozinho. Ruby me cutucou quando o viu e fez uma cara
triste, então nos sentamos no banco atrás do velho. Éramos nós
e ele de um lado da sala e os casais amorosos do outro.
Estar na escola era estranho. Tinha a estranha sensação de
abandono do verão, mas me ocorreu que provavelmente era a
última vez que eu estaria neste prédio de verdade, a menos que
você contasse quando peguei meus resultados. Eu não tinha
pensado nisso no último dia de aula, talvez porque eu sabia que
estaríamos de volta na sala de provas em algumas semanas ou
talvez porque eu estava me concentrando no quanto eu queria
que o sinal tocasse para que eu pudesse ir embora.
Todo mundo estava correndo pelos corredores espalhando
serpentina em spray e pegando suas camisas assinadas com
caneta permanente. Eu só queria sair de lá, terminar meus
estudos e evitar os amigos que já tinha deixado para trás.
Enquanto descia os degraus para os portões da frente, espiei
Izzy com o canto do olho. Ela estava segurando um Sharpie e
eu tinha a sensação de que ela ia me pedir para autografar sua
camisa, embora não tivéssemos nos falado em meses. Esse é o
tipo de pessoa que ela era. O sentimentalismo do dia a faria
pensar que poderíamos de alguma forma fazer as pazes. Mas vi
papai no estacionamento e praticamente corri para a porta. Eu
não estava mais brava com ela. Eu estava com raiva da minha
amiga que sabia que eu teria meu coração partido e não me
contou. Mas Izzy não era mais minha amiga e eu simplesmente
não me importava. Eu não queria ser rude e me recusar a
assinar, mas também não queria assinar e fingir que olharia com
carinho para nossas lembranças, como se os últimos oito meses
nunca tivessem acontecido.
Os relacionamentos mudam e o passado não é uma coisa
estática que você pode guardar para sempre como uma
fotografia. Ninguém mais parece entender isso. Só porque algo
aconteceu, não significa que significará a mesma coisa para
você para sempre. Isso muda com você. A amizade que você
acalentava, a esposa que adorava, a criança que criava. Tudo
pode se tornar sem sentido tão facilmente, o que significa que
sempre foi sem sentido desde o início e você simplesmente não
percebeu.
Mas se tudo não tem sentido, você pode se divertir tanto
quanto possível.
Apertei a mão de Ruby e ela me beijou na bochecha. Eu não
pude deixar de me perguntar se os outros casais notaram. Às
vezes esqueço que sou lésbica. Como eu esqueço que é
estatisticamente incomum e que algumas pessoas têm fortes
sentimentos sobre isso. Mesmo que eu tenha encontrado
alguns comentários impensados ou completamente cruéis,
especialmente na escola quando eu saí do armário, na maioria
das vezes, as pessoas na minha vida não se importam. Mas as
pessoas ainda olhavam. Eu via quando Hannah e eu descíamos
a rua. As pessoas olhavam para nossas mãos entrelaçadas.
Brevemente. Às vezes elas sorriam, ocasionalmente eles
franziam a testa, na maioria eles apenas passavam a perceber a
próxima coisa, mas isso sempre me fazia sentir observada. Às
vezes são as pequenas coisas. Ser notada fazendo algo que seria
invisível se eu estivesse com um menino.
— Bom dia a todos. Sou Janet, sua instrutora hoje. — Uma
mulher pequena, mas redonda, com um sorriso entusiasmado
entrou na sala, esfregando as mãos. O casal ao nosso lado parou
o que estava fazendo imediatamente e prestou muita atenção.
O velho na nossa frente aumentou o nível de seu aparelho
auditivo.
— Vocês são todos iniciantes aqui, certo? — a mulher
perguntou. Ela tinha o fervor de um daqueles pregadores
americanos e eu tive a impressão de que ela realmente adorava
cozinhar. Ela também não esperou por uma resposta.
— Até o final da manhã, vocês não serão mais iniciantes.
Vocês vão aprender habilidades básicas que vocês podem levar
para casa e praticar, e se no final do dia você se sentir como Por
Deus, eu amo essa baboseira de cozinhar, vocês podem se
inscrever no meu curso de seis semanas a partir de setembro,
onde você aprende as respostas para todas aquelas perguntas
candentes como: O que diabos é uma vieira? Posso fazê-la em
casa em vez de pagar vinte euros por uma entrada num
restaurante? E por que todo mundo age como se fazer risoto
fosse tão difícil quando é apenas arroz mole?
Arrisquei um olhar para Ruby, que escondia a boca atrás do
punho.
— Mas hoje… — A mulher baixou a voz dramaticamente e
o velho sacudiu seu aparelho auditivo como se estivesse
quebrado.
— Nós vamos aprender a fazer… — Ela fez uma pausa para
um efeito dramático e eu mordi meu lábio para não rir alto.
— TORTA DE FRANGO! — Ela gritou a última palavra
e o velho pulou. O casal beijoqueiro à nossa frente começou a
aplaudir, mas parou quando ninguém mais se juntou.
— Não há necessidade de ficar tão animado com torta de
frango — eu disse a Ruby.
— Talvez seja a melhor torta de frango de nossas vidas. —
Ruby fez mãos de jazz e todos os três casais de beijoqueiros nos
calaram simultaneamente. Foi meio assustador.
Janet nos deu os passos de fazer a massa e descascar batatas.
Na verdade, os passos principais estavam escritos em um
folheto, mas ela ainda estava na frente da classe explicando por
que você cozinha batatas com água fria em vez de despejar água
fervente na panela. Os babacas estavam fazendo anotações.
Ruby e eu inspecionamos as instruções em papel.
— Você quer descascar e eu vou transformar isso em
migalhas de pão de alguma forma? — Eu disse, examinando os
ingredientes da massa com desconfiança.
— Tudo bem, mas e ele? — Ruby acenou na direção do
velho, que segurava um descascador de batatas em uma mão e
a folha de papel até o nariz na outra.
Ruby olhou para mim com olhos de cachorrinho e eu
suspirei e assenti.
Meia hora depois, Ruby e eu estávamos gargalhando.
Morris, nosso novo velho amigo, era principalmente
adorável, mas parecia profundamente desconfiado de alguém
tão alegre quanto Janet. Quando ela aplaudiu porque os
bajuladores fizeram um molho comestível, ele disse, no que
pensou ser um sussurro conspiratório, mas na verdade era um
rugido sobre o barulho da cozinha:
— Acho que ela está usando uma daquelas drogas legais que
você ouve falar nas notícias.
Eu meio que esperava que ela respondesse que estava no
ponto alto da vida, mas ela educadamente fingiu que não tinha
ouvido. Você pode se safar de muita coisa quando estiver velho.
— Por que vocês estão aqui nas férias de verão ajudando um
velho a aprender a cozinhar? — Morris perguntou enquanto
esperávamos que nossa torta esfriasse o suficiente para pegar
uma fatia. Parecia dourada e folhada e eu tinha aperfeiçoado
uma borda recortada que fez a professora quase se molhar de
alegria. Eu tinha grandes esperanças. Talvez a maldição de
cozinhar do papai não tivesse sido passada para mim.
— Saoirse queria aprender uma habilidade para a vida e eu
quero ajudar em casa — Ruby respondeu.
— Você é uma boa menina. Nenhum dos meus filhos
cozinhou um dia na vida quando estavam em casa. Mimados.
Bem, isso foi culpa da minha Anna. Ela os mimava demais.
Ruby e eu trocamos olhares. Eu já tinha assumido que
Morris estava recentemente enlutado, já que ele estava aqui
aprendendo a cozinhar sozinho, mas eu não queria trazer isso à
tona.
— Como ela era? — Eu perguntei gentilmente.
— Anna? Ela era uma velha rabugenta. Mas ela me fazia rir.
Sempre pouco se fodendo e se fazendo de cega sobre uma coisa
ou outra. Era apenas o jeito dela. Mas ela era uma mãe dedicada.
— Como vocês se conheceram? — Ruby perguntou,
cutucando a massa da torta para ver se ainda estava muito
quente.
— Nos conhecemos em uma festa. 1962, eu acho. Era de um
amigo meu. Não consigo lembrar o nome dele agora. Eu tinha
dezenove anos, ela tinha dezessete. Ela era a garota mais bonita
de lá. Eu mesmo não era desleixado, sabe.
Não era isso que eu esperava. De alguma forma, eu não
conseguia imaginar Morris em uma festa em casa bebendo
cervejas. Talvez ele quis dizer como um jantar?
— Você a chamou para dançar? — Ruby perguntou
sonhadoramente. Eu poderia dizer que ela estava imaginando
alguma cena de filme em preto e branco.
— O quê? Não. Eu sou um péssimo dançarino. Eu não
podia deixá-la ver aquilo. Não, não. Ela ficou bêbada e me
beijou e eu tive que carregá-la para casa. No dia seguinte, trouxe
para ela um seltzer e uma aspirina e nos casamos um ano depois.
— Isso é… é… tão romântico. — Ruby vacilou. Ela não me
olhava nos olhos.
— Quantos filhos vocês tiveram?
— Tivemos gêmeos cerca de seis meses depois disso. E agora
você sabe por que nos casamos tão rápido. — Morris bateu no
nariz.
Eu não pude evitar. Eu bufei.
— Eu não acreditava em almas gêmeas antes de conhecê-la.
Mas você sabe, nós não passamos uma noite longe desde o
casamento até o dia em que ela faleceu. Às vezes, a vida sabe o
que você precisa melhor do que você. — Morris ficou em
silêncio então. Ruby tossiu e se ocupou em limpar e eu pensei
que ela estava tentando não chorar. Um segundo depois, o
momento foi interrompido pela voz boba de Janet.
— Tudo bem, classe. Suas tortas devem estar frias o
suficiente. Vamos descobrir como vocês foram. Eu, pelo
menos, simplesmente não posso esperar mais um segundo. —
Ela esfregou as mãos e foi direto para um dos casais
beijoqueiros. Notei o casal na frente deles revirando os olhos
um para o outro.
— Momento da verdade — eu disse, e pairei uma faca afiada
sobre nossa torta brilhante e vitrificada. Então eu rachei. A
pressão foi demais.
— Eu não posso fazer isso, você faz.
Ruby ignorou a faca e enfiou um garfo no centro da torta.
Ela engoliu um bocado. Ela mastigou. Eu esperei. Ela engoliu.
— Hum… é... Você esqueceu alguma coisa?
— O que, não? O que há de errado com isso? — Peguei o
garfo da mão dela e peguei um pedaço da torta para mim.
Não era horrível. Também não era muito legal. Não era
nada. Não tinha gosto de nada.
— A maldição. A maldição me pegou. Sou geneticamente
incapaz de fazer comida com gosto de qualquer coisa —
lamentei.
Ruby me esfregou consoladoramente nas costas.
— Não foi só você. Eu também fiz parte.
— Meus poderes são tão grandes que até cancelaram sua
parte.
— Está tudo bem. Vamos tentar algo mais fácil da próxima
vez — ela continuou, me dando um tapinha nas costas
enquanto eu caía em um banquinho. — Como sopa. De uma
lata.
Eu ri uma risada triste com um soluço e olhei por cima do
ombro de Morris para sua torta.
— Como saiu a sua, então?
— Você acha que sua presença arruinou a dele também? —
Ruby me cutucou, fazendo uma careta.
— Você não pode experimentar a minha — disse ele,
cobrindo-a de forma protetora —, eu preciso dela para esta
noite.
Esqueci minhas terríveis habilidades com tortas e meu
coração doeu por Morris, pensando nele sozinho em casa com
sua torta.
— Tenho um encontro essa noite — disse ele.
— O quê? — Eu disse, levantando minha cabeça. — Você
tem um encontro?
— Morris, seu cachorro velho. — Ruby riu.
— Minha Anna se foi há cinco anos, meninas. Vocês
realmente acharam que eu ficaria no mercado por muito
tempo?
— Você disse que ela era sua alma gêmea — eu disse.
Eu não queria que soasse como uma acusação, mas soou, e
Ruby me deu um tapa no braço para me dizer para parar de
fazer o velho se sentir culpado por não passar o resto da vida de
luto.
— Ela era — disse Morris, surpreso. — Acho que há outra
por aí e vou encontrá-la. E a busca é uma boa diversão.
— Você não tem mais do que uma alma gêmea — eu disse,
irritada. Morris era claramente apenas um velho sujo.
— Quem disse? — Ele não parecia zangado comigo por
repreendê-lo. Ele apenas riu uma risada suave e ofegante. —
Meninas, não costumo sair por aí dando conselhos a pirralhos
porque acho que vocês têm que cometer seus próprios erros na
vida, mas vou lhes dizer uma coisa. Não acredito que exista uma
pessoa certa para todos, e passei cinquenta e um anos com a
mesma mulher. Mas eu acredito que há uma pessoa certa para
você em diferentes momentos de sua vida. Se esse
relacionamento dura uma semana ou cinquenta anos não é isso
o que o torna especial.
Na última noite antes da mudança, Ruby e eu montamos
acampamento no meu antigo quarto pela última vez para
assistir à única comédia romântica meio decente com
personagens lésbicas, Imagine Eu & Você, cercada por besteiras
e luzes cintilantes. Era um pouco estranho saber que papai
estava em casa, e ele fazia suas costumeiras piadas sobre
contracepção. Mas depois do jantar, tê-la em casa não parecia
grande coisa. Ambos tiveram a chance de serem intrometidos
um com o outro e eu pedi que ela chegasse tarde o suficiente
para que eles não tivessem tempo para interagir. Além disso, ela
insistiu em nos ajudar na mudança no dia seguinte, porque ela
é um anjo. Um tipo de anjo intrusivo que não leva um não,
sério, você não precisa fazer isso como resposta.
Para ser honesta, eu meio que gostei da ideia de passar minha
última noite aqui com ela. Papai sugeriu que passássemos a
última noite assistindo a um filme de terror e comendo bolos
Jaffa, mas aquela imagem na minha cabeça veio com mamãe em
algum lugar ao fundo falando sobre nosso péssimo gosto para
cinema e comida. Memórias da minha infância assombravam
esta casa e eu não queria passar a noite com fantasmas.
Na minha cabeça, esta noite com Ruby pareceria algo do
Pinterest, onde eu pegaria um monte de pisca-pisca e faria um
forte improvisado com cobertores boêmios. Na realidade, eu
não conseguia entender como diabos você deveria fazer os
cobertores ficarem de pé. Tentei usar as caixas, mas não tinha
estacas grandes o suficiente; toda a estrutura continuou
cedendo no meio. Eu também não tinha pisca-pisca, então
comprei alguns na loja de 99 centavos, mas quando fui colocar
as pilhas nelas, lembrei que as tinha embalado com outras coisas
da gaveta de lixo, e não ia voltar para a loja. Em vez disso,
coloquei todos os travesseiros que pude encontrar na minha
cama, empurrei as pilhas de caixas e sacos de lixo cheios de
porcaria para o lado e coloquei meu laptop em uma cadeira.
— Quase não tem beijos nesse filme, sabia? — Ruby
apontou. — Que tipo de comédia romântica quase não tem
beijos?
Estávamos espremidas juntas na minha cama e ela estava
enrolada debaixo do meu braço. Ela tinha uma pequena pilha
de Maltesers descansando no meu estômago, que estava
acabando rapidamente.
— Um filme gay. Sabe a parte do jogo de futebol em que ela
a ensina a gritar no número nove? Isso deveria ter sido um
momento de beijo. Pelo menos ela não volta para algum
homem no final.
Encarada estranha por Beijando Jessica Stein.
— Claro, mas tinha que haver um homem lá em algum
lugar. Mesmo que Matthew Goode seja adorável, eu quero um
em que a personagem não perceba que é gay por causa da linda
garota que ela conheceu. Quero dizer, ela tem trinta anos, você
está me dizendo que ela nunca conheceu uma garota antes?
Nunca nem pensou nisso? Ela parece tão chocada com a coisa
toda.
— Isso acontece na vida real, no entanto — eu apontei.
— Sim, eu sei, mas gostaria que houvesse um grande filme
de Hollywood sobre garotas que já sabem que gostam de
garotas. Sem caras no caminho e de preferência estrelado por
Kristen Stewart. Sim, ela tem tensão sexual com todas as
mulheres em todos os filmes, mas eu quero que isso esteja no
roteiro, sabe?
— Você tem opiniões muito fortes sobre isso — eu disse. —
Talvez essa seja sua futura carreira.
— O quê?
— Escrever roteiros. Você nem precisa esperar a
universidade começar a fazer isso. Você poderia ser a Nora
Ephron gay.
Ruby ergueu a sobrancelha.
— Nora Ephron?
— Eu sei das coisas agora — eu disse defensivamente. Pelo
menos eu era capaz de pesquisar no Google.
— Isso soa muito legal. Todo mundo acha que eu deveria
ser enfermeira porque tenho um irmão deficiente. Como se
isso significasse que quero ser enfermeira, médica ou
pesquisadora médica. — Ruby revirou os olhos. — As pessoas
sempre querem limitá-lo e dizer a ele o que ele não pode fazer.
Ele não ouve isso e eu também não. Se há mais no meu irmão
do que sua deficiência, há mais em mim também.
— É por isso que você ainda está tentando descobrir? — Eu
perguntei, pensando nas muitas opções de carreira que Ruby
tinha escolhido.
— É por isso que eu vou considerar qualquer coisa. Eu não
quero ser rotulada em algo. Não me interpretem mal, eu amo
que eu fui capaz de estar lá para ele. Eu quero fazer todo o
possível para ajudar na reabilitação dele também. Mas quero
ver no que mais posso ser boa se tiver a chance de tentar.
Eu poderia entender isso. Professores que sabiam sobre
minha mãe às vezes sugeriam a mesma coisa para mim, serviço
social ou enfermagem. Você poderia ajudar mais pessoas como
sua mãe. Até papai havia mencionado isso quando eu estava
escolhendo minhas opções. Cuidei de mamãe porque ela era
minha mãe, não porque eu sou uma espécie de padroeira da
demência. Eu queria dizer isso a Ruby, para que ela soubesse
que eu a entendia.
— Como está Noah? — Eu perguntei em vez disso.
— Ele está indo muito bem. Mamãe me ligou às duas e meia
da manhã. Ela não parece entender as diferenças de tempo, ou
mais provavelmente ela nem pensa nisso, mas eu tinha que falar
com ele também. Ele parecia muito feliz. Ele disse que sentia
minha falta. Eu realmente sinto falta dele. Estou acostumada a
passar a maior parte do meu tempo livre com ele.
Eu a apertei mais perto.
— Ele estará de volta em breve. Vai passar voando.
Ocorreu-me que se Noah voltasse logo, isso também
significava que nosso tempo acabaria logo. Nossos olhos se
encontraram e eu me perguntei se ela estava pensando a mesma
coisa. Então ela sorriu para mim e chupou um punhado de
Maltesers em sua boca.
— E você? — ela disse com a boca cheia de chocolate.
— O que você quer dizer? Você sabe como me sinto em
relação a Oxford.
— Certo, mas você ainda vai fazer alguma coisa. O que você
estava planejando estudar em Oxford? — Ela fez uma falsa voz
elegante quando disse Oxford.
— Você percebe que não precisa fingir um sotaque inglês?
Você tem um — eu brinquei. Mas na verdade eu estava
pensando que não tinha considerado nada além de Oxford para
a universidade. Claro, eu preenchi formulários para faculdades
e universidades irlandesas, mas só porque o professor de
orientação profissional não deixou passar. Oxford para mim
representava toda a experiência universitária. Quando eu disse
que não queria ir para lá, quis dizer que não queria ir a lugar
nenhum. Sim, era na Inglaterra, o que era uma desvantagem
agora que eu não estava tentando fugir de Hannah. Mas qual
seria o ponto de qualquer modo? Eu ainda era provável que
acabasse em uma casa de repouso aos cinquenta. Talvez mais
cedo porque eu não teria uma família para cuidar de mim.
— Sim, mas não é elegante. E não mude de assunto.
— Direito, eu acho. — Lembrei-me vagamente do meu
raciocínio de que talvez eu ganhasse uma tonelada de dinheiro
e pudesse gastá-lo em uma das casas de repouso realmente boas
para mamãe.
— O que fez você escolher a lei?
— Nada em particular — eu disse, ficando irritada. — Eu
não quero falar sobre isso. Que maldita diferença isso faz,
afinal? Um curso é igual ao outro. Você vai estudar, arranjar
um emprego e morrer.
Ruby pareceu surpresa com meu desvio repentino para o
niilismo.
— Eu não queria te chatear — ela disse calmamente.
Eu esfreguei meu rosto. Eu estava sendo uma idiota. Não era
culpa dela ela não saber o quanto eu queria nunca pensar sobre
esse assunto. Que para mim realmente não fazia diferença o que
eu aprendi porque eu ia esquecer tudo de qualquer maneira.
Ela não sabia que a única razão pela qual eu trabalhei tanto para
entrar em Oxford foi porque eu estava sob uma ideia
equivocada de que isso deixaria minha mãe orgulhosa. Exceto
no dia em que eu disse a ela que recebi minha oferta
condicional, ela disse, Isso é ótimo, e alguns minutos depois ela
esqueceu. Não era algum tipo de vínculo que tínhamos,
alguma conexão sobre um futuro compartilhado. O verdadeiro
vínculo que compartilhávamos era uma genética de merda.
Que bem todos os seus diplomas fizeram para ela?
— Não se desculpe. É apenas estressante não saber o que
fazer. Eu não deveria brigar com você, no entanto, não é sua
culpa.
— Entendo. Eu provavelmente soo como seus pais. O que
você vai fazer com sua vida, etc… — Ela fez uma careta.
Eu não merecia tanta compreensão.
— Você não precisa saber agora — ela continuou. —
Aposto que qualquer um que tem certeza do que vai fazer
agora, pelo resto de suas vidas, está provavelmente errado de
qualquer maneira. Eu também não faço ideia.
Ela estava certa. Mas não era reconfortante porque não era
o mesmo para mim e para Ruby. Eu não estava seguindo o
fluxo e me apaixonando por uma centena de opções diferentes.
Ruby precisava de um lugar para canalizar sua energia e
entusiasmo. Eu não tinha nenhum. Eu estava perdida. Passei a
maior parte dos últimos anos cuidando de mamãe ou
centrando minha vida em visitá-la. Antes que ela ficasse muito
ruim, minha vida era centrada em Hannah. Olha como isso
acabou.
Às vezes me ocorria que eu poderia não acabar como
mamãe, que eu poderia passar décadas esperando que a doença
se instalasse e isso nunca aconteceria. Eu não saberia se tivesse
desperdiçado metade da minha vida até que fosse tarde demais.
Qual era pior?
— Eu sei. Vai ficar tudo bem. Tenho certeza de que quando
obtiver meus resultados saberei o que fazer — menti, tentando
parecer alegre. — Estou feliz por ter escapado da escola com
vida. Agora eu só tenho que escapar do papai e da Beth e suas
constantes brigas um com o outro.
Eu os encontrei jogando um jogo de “como traumatizar seu
adolescente” ontem, quando eles deveriam estar fazendo um
mapa de assentos. Felizmente eles só chegaram ao nível um:
beijos com efeitos sonoros babados, mas eu ainda teria que
lavar meu cérebro com ácido.
— Você deve sentir falta de algumas coisas sobre a escola?
Fiquei tão triste no meu último dia porque sabia que não veria
meus amigos tanto.
— Confie em mim, eu não vou sentir falta de ninguém —
eu brinquei. — Eu parei de falar com meus velhos amigos
muito antes do fim das aulas. Estou feliz em escapar deles
também.
— Parece que você tem um monte de coisas das quais quer
fugir — Ruby disse seriamente. — O que você quer dizer
quando diz que você parou de falar com seus amigos?
Ops. Eu não queria dizer isso. Ou melhor, eu não tinha me
lembrado de não dizer algo assim.
— Ah, nada. Eu briguei com alguns amigos um tempo atrás.
E então fiquei presa na escola com eles por mais oito meses.
Estranho.
— Por que você se afastou? — Ruby disse, implacável pela
minha tentativa de fazer pouco disso.
Uma coceira na nuca começou a me incomodar.
— É bobo. De verdade. Drama feminino, só isso.
— Então me diga — ela disse. Parecia um teste. Eu já tinha
estragado tudo uma vez naquela noite.
— Um relacionamento acabou. Lados foram tomados. Foi
tudo muito dramático.
— Um relacionamento? De quem?
— Meu — eu disse, minha garganta apertada.
— Tudo bem… com quem?
— Ninguém.
Ruby bufou. Eu poderia imaginar fumaça saindo de seu
nariz se eu não apresentasse mais alguns detalhes.
— Eu não quero dizer ninguém. Quero dizer, não é mais
importante. O nome dela era Hannah.
— E então? Seus amigos escolheram o lado dela?
— Sim, bem, nossa melhor amiga. Izzy. Elas eram amigas
primeiro, eu acho. Ela realmente me superou naqueles dois
primeiros anos da escola primária. — Tentei rir, mas saiu
amargo.
— Vocês eram todas amigas desde o primário? E ela largou
você como amiga porque você e Hannah terminaram?
— Sim. Mais ou menos — eu menti novamente.
Eu podia sentir a pena prestes a sair dela, mas eu escolhi isso
em vez de contar a verdade. As palavras se agitaram em meu
cérebro. Eu larguei Izzy porque ela não me disse que Hannah ia
partir meu coração. Eu terminei com ela porque estava
envergonhada por ter falado sobre como Hannah e eu
passaríamos o resto de nossas vidas juntos, que éramos almas
gêmeas, e ela sabia que Hannah não se sentia da mesma
maneira. Eu a abandonei porque ela escolheu Hannah e eu senti
que não importava. Eu não podia dizer essas coisas em voz alta.
Ela não entenderia.
— Não se preocupe, eu superei isso. Não é tão grande coisa.
Ruby parecia lutar com o que dizer em seguida.
— Você quer que eu as mate? — ela disse finalmente.
Alívio inundou meu corpo.
— Vamos assistir o resto do filme e decidir depois. É tão
difícil cometer homicídio quando você está cheio de Maltesers.
Ela arqueou o pescoço para me beijar e logo deixamos o
filme para trás em favor de uma névoa de respiração pesada,
pele macia e cílios que tremulavam contra minha bochecha
enquanto nos beijamos.
Ruby passou a noite e se você realmente quer saber, não
fizemos nada que envolvesse tirar suas calças. Depois que ela
adormeceu, eu me joguei e virei e demorei séculos para
conseguir dormir. Fiquei pensando nela dizendo que havia
muitas coisas das quais eu queria fugir. Parecia algo que mamãe
teria dito. Pensei em todas as coisas das quais queria fugir neste
verão. Pensando no que eu faria com o resto da minha vida,
pensando em como seria o resto da minha vida se eu herdasse a
demência de mamãe, o casamento de papai e Beth, pensando
em deixar mamãe para trás. Eu preenchi todo aquele espaço
com Ruby. O que eu faria em algumas semanas quando ela se
fosse e eu tivesse que enfrentar todas essas coisas sozinha?
Na manhã seguinte, com os olhos turvos e grogue, fiz uma
xícara de chá para Ruby e para mim. A chaleira, uma caixa de
saquinhos de chá e algumas canecas eram as únicas coisas na
cozinha que não estavam embrulhadas em jornal e enfiadas em
uma caixa. Tínhamos alguns itens grandes que papai decidiu
deixar e comprar novos em vez de levar que seriam recolhidos
por um serviço de descarte amanhã para reciclagem – o sofá
gasto, o forno com a porta bamba, nossos colchões velhos –
mas o resto cabia a nós.
— Você não tem que ajudar hoje, você sabe. — Eu beijei a
bochecha de Ruby e tentei soar como se eu só quisesse poupá-
la do aborrecimento. — Realmente não é o seu trabalho.
Na verdade, eu estava lutando com a culpa de não ir ver
mamãe. Eu não poderia desaparecer exatamente por uma hora
esta manhã sem que Ruby percebesse. Se ela saísse agora, eu
ainda poderia ir.
— Eu quero. Eu vou ficar com você. — Ela sorriu e jogou o
cabelo de um lado para o outro e eu senti uma dor. Ela
realmente era a garota mais bonita que eu já tinha visto na vida
real. Nas últimas semanas eu me acostumei com ela de certa
forma e ela simplesmente parecia Ruby, mas às vezes, como
naquele momento, eu a via como se ela fosse uma estranha
novamente. Notei sua sarda azul e o jeito que seu cabelo sempre
parecia que ela estava passando os dedos por ele; eu vi seus olhos
cor de avelã, arregalados e curiosos; eu vi a curva onde sua
cintura encontrava seus quadris de uma forma que me fez
querer agarrá-la bem perto, e eu mal podia acreditar que ela me
deixava beijá-la e tocá-la e fazer todas as coisas que fizemos que
deixaram o ar entre nós pegajoso e quente.
Acho que poderia deixar de ver mamãe dessa vez. Minhas
duas vidas estavam ficando desconfortavelmente próximas de
uma forma que estava me dando palpitações e suor de
ansiedade na minha nuca. Lembrei-me de que Ruby partiria
em quatro semanas e tudo voltaria ao normal. De alguma
forma, isso não me confortou do jeito que deveria.
Mesmo que parecesse que eu estava fazendo as malas por
aproximadamente seis meses, ainda havia coisas por toda a casa.
As coisas tinham que ser limpas e consertadas antes de
partirmos para sempre, como esfregar o interior dos armários
da cozinha e apertar a dobradiça solta da porta do banheiro.
Beth já havia se mudado para o apartamento há três dias,
então ela também estava ajudando. Ela estava agitada o dia todo
e uma pequena parte de mim, a contragosto, achava que era
meio doce. Ela estava obviamente muito animada com a
mudança. Ela também tinha a intenção de garantir que meu
desejo de nunca mais ver ela e papai se beijando novamente
permanecesse insatisfeito. Eu os peguei no banheiro, encostada
no chuveiro, Beth com um braço em volta do pescoço do meu
pai e uma bolsa na mão na qual ela jogou escovas de dente e
xampus.
— Eu preciso trocar meu absorvente interno — eu disse em
voz alta e mal-humorada. Não era verdade, mas eu gostava de
envergonhar papai. Eles se separaram. Surpresos, mas
totalmente sem vergonha. Pelo beijo de qualquer maneira.
Papai escapou, resmungando sobre o feminismo arruinando
sua vida. Eu me perguntei se ele já pensou em como ele era
sortudo por mamãe ter conversado comigo antes de ficar muito
ruim.
— Ah, aqui, eu embalei o papel higiênico — disse Beth,
vasculhando a bolsa e tirando um rolo de papel higiênico como
se estivesse me presenteando com um grande presente.
— Sabe, eu acho que está tudo bem se nós realmente
deixarmos um desses para trás. Podemos conseguir mais rolos
de papel higiênico para o novo apartamento.
— Obrigada pelo conselho, espertinha — respondeu Beth.
— Sabe, se vocês dois não conseguem manter as mãos longe
um do outro, talvez devêssemos fazer isso por zonas. Você e
Ruby desmontam as armações da cama lá em cima e papai e eu
vamos descê-las.
— Sim, senhora. — Beth saudou e bateu no meu ombro
antes de sair do banheiro.
Esquisito. Ela geralmente estava tão sedenta de minha
aprovação e mortalmente ferida pela menor observação
sarcástica minha. Se ela estava se acostumando comigo, eu
realmente sentiria falta daquele rosto triste e carrancudo que ela
fazia quando eu estava sendo uma total idiota.
— Vosh pote des mes? — papai me disse enquanto passava
pela cozinha, curvado sob o peso de um caixote de livros, uma
chave de fenda entre os dentes. Eu estava fazendo outra xícara
de chá. Eu precisava de uma dose de cafeína para me sustentar
pelo resto da tarde.
— Quer tentar de novo? — Eu disse, pegando a chave de
fenda e limpando a saliva em sua camisa. — Nojento.
— Você pode desmontar a mesa? A do meu escritório?
— Sério, eu te disse para fazer isso ontem — eu gemi.
— Eu estava ocupado — disse ele.
— Então você faz isso agora — eu fiz beicinho.
— Estou ocupado. — Ele mudou seu peso, reajustando a
caixa de livros para provar seu ponto. — E você está aqui
relaxando e fazendo chá. Novamente.
Ele era uma criança. Se ele pudesse deixar de fazer alguma
coisa, ele o faria, e nós dois estávamos cansados de desmontar
móveis de encaixe nos últimos dias. Eu já havia desmontado um
armário de banheiro, um carrinho de cozinha enferrujado e
uma cômoda que arruinei cerca de dez anos atrás, colando
adesivos da equipe feminina olímpica irlandesa de natação em
todas as portas durante uma fase de natação que tive. Pensando
bem, essa pode ter sido a primeira pista de que eu era lésbica.
A escrivaninha ficava no escritório do papai, que costumava
ser o escritório da mamãe, e também era a escrivaninha dela.
Estava torta, as gavetas estavam emperradas o tempo todo e
simplesmente não havia espaço para um escritório em casa no
novo apartamento, então concordamos em nos livrar dela.
Comecei puxando as gavetas para fora de seus encaixes e
desparafusando as alças. Isso exigia muito trabalho duro e um
parafuso em particular estava tão apertado que precisou de
uma garrafa de WD-40 para soltá-lo. Limpei uma camada de
suor na testa e puxei a última gaveta. Ela emperrou no trilho de
metal e eu suspirei. Se naquele momento, o mundo achasse
adequado jogar uma bigorna de comédia gigante na cabeça do
meu pai como karma, eu estaria bem com isso.
Enfiei o braço até o ombro na gaveta e procurei por
qualquer coisa que estivesse impedindo a gaveta de sair. Eu não
conseguia ver nada, mas enfiei a chave de fenda no espaço atrás
da gaveta algumas vezes e senti algo se soltar. Saiu facilmente e
caiu no chão uma pasta de cartão azul. Eu o reconheci
imediatamente. Esses eram os arquivos em que mamãe
guardava as notas de seus clientes.
Quando ela parou de trabalhar, mais por necessidade que
por vontade, esquecemos dos arquivos. Depois que ela se
mudou para a casa de repouso, percebemos que não
conseguiríamos mantê-los. A maioria dos clientes que ela estava
atendendo até parar de trabalhar pediu que suas anotações
fossem enviadas para novos terapeutas, mas havia muitos de ex-
clientes que estavam em seu caminho alegre e não tinham ideia
do que estava acontecendo com mamãe. Perguntamos a uma
das antigas colegas de mamãe o que deveríamos fazer e ela
achou que, por questões de confidencialidade, deveríamos
destruí-las. Este tinha evidentemente escapado do abate.
Alguns meses atrás, quando papai destruiu aqueles
arquivos, eu realmente não tinha pensado no que havia neles.
Eles não me interessaram. Era um monte de papéis de trabalho
velhos e mofados. Mas sentada no chão do escritório do meu
pai, de repente fiquei louca de curiosidade sobre o que havia
dentro.
O anjo no meu ombro me disse que isso era privado e eu não
deveria olhar. Mamãe me mataria se soubesse que li o arquivo
de um cliente. Não era como se ela nunca tivesse falado sobre
eles. Ela às vezes me contava uma piada que ouviu de um ou eu
a ouvia falando com papai sobre pessoas com quem ela estava
particularmente preocupada, mas ela nunca mencionava seus
nomes e havia uma entrada separada para seu escritório, então
o mais próximo que eu chegava de identificar alguém foi
quando eles andaram ao redor da casa até a porta lateral. Um
borrão através das persianas que revelava uma loira ou morena,
talvez a cor do top que usavam, era isso.
Um nome foi escrito em Sharpie no canto. Dominik Mazur.
Coração batendo um pouco mais rápido, como se ela pudesse
entrar e me pegar no pulo, eu abri o arquivo. As primeiras
páginas pareciam formulários padronizados, então pulei um
pouco para frente.
Dominik começou a sessão dizendo que sua semana foi
boa. Falou sobre o novo emprego de sua mãe. Ela está
gostando. Dominik está aliviado por seu irmão mais novo
estar feliz na escola. Quando solicitado a falar sobre sua
própria semana, ele foi inicialmente reservado. Mais tarde,
ele admitiu que foi trancado no banheiro pelos colegas e teve
problemas por faltar à aula. Não contou à mãe sobre o
incidente, pois não queria preocupá-la. Nós encenamos uma
conversa com sua mãe. É claro que D não quer discutir suas
dificuldades por medo de perturbá-la. Perguntei o que
haveria de tão errado com ela estar chateada.
Voltei ao início do arquivo para ver a idade de Dominik.
Quinze. Dizia que ele a procurou depois de uma overdose. Mas
isso foi há dez anos. Ele estaria na casa dos vinte agora. Pulei
para o meio do arquivo.
Dominik expressou ansiedade sobre fazer a prova de
proficiência de sua segunda língua. Ele disse que tinha medo
de cometer erros de gramática e pontuação. Em seguida,
discutiu a ansiedade por esquecer o polonês. Acordou no meio
da noite incapaz de lembrar vocabulário obscuro. Ele riu,
mas parecia angustiado com isso. Disse que conversou com a
mãe sobre falar mais polonês em casa e ela concordou.
Anteriormente, ela insistia no inglês para incentivar o
aprendizado de uma segunda língua, mas sente que eles são
suficientemente fluentes agora. Eu expressei o quão incrível é
que D seja fluente em inglês quando é sua segunda língua.
Ele pareceu envergonhado. Discutiu sua inclinação para a
perfeição e se outros alunos também cometeriam erros de
pontuação e gramática.
Por meia hora eu me sentei com o arquivo de Dominik e
rastreei um ano em sua vida através das anotações de minha
mãe. Ele era intimidado, ansioso e se sentia sozinho. Pensei nele
vindo à minha casa toda semana e conversando com minha
mãe. Eu me perguntei se isso ajudava.
Sessão de alta. D trouxe resultados do Junior Cert. Parecia
orgulhoso e satisfeito. Falou animadamente sobre o ano de
transição. Decidiu mudar de escola para um novo começo.
Visitou St C's na semana passada e discutiu sua experiência
passada com o diretor e os pais. Expressou alguma
preocupação de que o bullying ocorreria novamente na nova
escola, mas disse que, se isso acontecesse, ele ficaria mais à
vontade para falar sobre com o novo diretor de quem ele gosta.
Triste por terminar as sessões (ambos!), mas D está feliz por
seguir em frente e demonstra maior confiança e maior
abertura ao discutir suas dificuldades com a família.
Eu procurei por Dominik online. Muitos surgiram, mas
apenas um no mesmo município que eu. Eu cliquei em seu
perfil de mídia social. Seu mural era privado, mas algumas
informações pessoais estavam abertas. Dominik Mazur. Vinte
e quatro. Trabalha na TEFL Singapore International School.
Em um relacionamento com Chloe Durand. Sua foto era ele,
bronzeado e bonito, com o braço em volta de uma garota
baixinha de cabelo encaracolado. Pareciam estar em um pub.
Eu não sou idiota. Eu sei que a mídia social não conta a
história completa sobre a vida de ninguém. Ele dificilmente iria
postar uma foto de si mesmo parecendo deprimido. Mas ele
estava vivo. Ele estava ensinando inglês em Cingapura e tinha
uma namorada. Então, pelo menos algumas coisas eram boas e
talvez parte disso se devesse a mamãe. Pisquei algumas lágrimas
tentando escapar rudemente.
— Como isso ainda não foi feito… Saoirse, isso é um dos
arquivos da sua mãe? — O tom de papai mudou de exasperado
para afiado na mesma frase. Ele marchou em minha direção
com sobrancelhas franzidas severas. Ele havia deixado um
espelho encostado na parede do corredor.
— Uh…
— Saoirse! Esses são privados. — Ele tirou o arquivo do meu
colo. — Sua mãe ficaria furiosa.
Eu abaixei minha cabeça. Eu sabia que era tecnicamente
errado, mas não sentia que estava espionando esse estranho,
esse garoto de quinze anos, tanto quanto estava espionando
uma versão da minha mãe que às vezes esquecia que existia. Eu
realmente não me arrependi e a julgar pela expressão cética de
papai, minha atuação foi exagerada.
— Acalme-se e volte ao trabalho, está ficando tarde — disse
ele rispidamente. Mas ele não parecia realmente bravo. Antes
que eu pudesse me conter, deixei escapar uma pergunta.
— Você acha que ela realmente ajudou as pessoas?
Papai parou na porta. Sua expressão suavizou.
— Claro que ela ajudou. Nem todos. Liz seria a primeira a
dizer que não era a terapeuta certa para todos. Mas ela era a
terapeuta perfeita para algumas pessoas.
— Isso é bom, eu suponho.
— Por que você pergunta?
Dei de ombros.
— Não sei. Eu acho que é bom saber que existem pessoas
por aí que se lembram dela. Que estão vivendo uma vida
melhor porque a conheceram.
Papai atravessou a sala rapidamente e colocou o braço em
volta do meu pescoço, me puxando para ele. Ele beijou o topo
da minha cabeça. Quando ele se afastou, pensei que seus olhos
estavam lacrimejando, mas ele piscou e aquilo desapareceu.
Ele voltou para o corredor e pulou.
— Desculpe, Ruby. Eu não te vi aí.
Ouvi Ruby dizer a ele que estava tudo bem e se ele sabia
onde ela poderia encontrar uma pá de lixo. Algo sobre o tom
alto de sua voz me fez pensar no que ela tinha ouvido. Meu
coração começou a palpitar desconfortável. Era como se eu
estivesse em uma sala que ficava cada vez menor. Aquele
pesadelo da infância que você vai ser esmagado pelas paredes.
Pelo resto do dia eu tentei notar se ela sabia alguma coisa
pelo jeito que ela olhou para mim ou pelas coisas que ela disse,
mas ela agiu normalmente, me beijando na bochecha enquanto
passava com uma caixa de canecas, me interrompendo
varrendo a cozinha quase vazia para me mostrar uma foto de
Noah e seus pais comendo cheeseburgers do tamanho do seu
rosto. A sala se acalmou. Um pouco mais de oxigênio circulou
ao meu redor. Ela não deve ter ouvido nada.
Quando papai e Beth entraram na van para fazer a última
viagem até o apartamento, era por volta das nove da noite e
estava começando a escurecer. Meus músculos já doíam em
antecipação ao amanhã e o pensamento de desempacotar tudo
de novo me fez querer chorar.
Papai me chamou para a van e baixou a janela. Ele balançou
um molho de chaves para mim.
— Você pode trancar e nos seguir?
Olhei para as chaves e olhei para Ruby. A última vez que
pegamos o carro, quase batemos em alguém e ficamos presas.
Embora o meio do caminho tenha sido bom.
Vimos papai e Beth partirem e Ruby colocou o braço em
volta da minha cintura e apoiou a cabeça no meu ombro.
— Não vamos direto.
— Onde você quer ir?
— Não vamos a lugar nenhum ainda — ela disse, e ela me
puxou de volta para dentro de casa, sua mão na minha
enquanto ela me levava para o sofá.
Um desejo intenso percorreu meu corpo, minha respiração
acelerou, e todas as coisas que eu queria correram na minha
cabeça como uma onda. Deitei em cima de Ruby, apoiada nos
cotovelos, e olhei em seus olhos por um momento. Eu vi aquele
olhar. Aquele em que algo passava entre nós sem palavras.
Então eu me inclinei e a beijei, suave no início, mas era como se
pequenos incêndios estivessem começando por todo o meu
corpo e ela fosse a água fria e escura que me salvaria. Sua boca
encontrou meu pescoço e arrepios me percorreram. Minhas
mãos encontraram a bainha de sua camisa e eu a tirei, jogando
a minha no chão. Ela estendeu a mão e desabotoou meu sutiã e
tirou o seu também. De alguma forma eu me senti quase
envergonhada de olhar, como se ela visse o quanto eu a queria
e ela riu. Ela me tocou primeiro e a sensação percorreu todo o
meu corpo. Nós derretemos uma na outra, seu corpo
pressionado contra mim, sua pele grudada na minha no verão
úmido.
Vinte minutos depois, emergimos. Amassados, sem fôlego e
incapazes de manter os sorrisos longe de nossos rostos.
— Eu não quero fazer isso pela primeira vez em um sofá
velho e feio — disse Ruby, voltando a se sentar, sem fôlego e
amarrotada, de uma forma que fez meu estômago vibrar. — Eu
ainda prefiro algo mais tradicional.
— Como depois do baile? — Eu sugeri, pensando na
sequência.
— Como em um quarto — disse ela.
— Certo.
Meu colchão ainda estava no andar de cima para ser
recolhido pelo pessoal da reciclagem amanhã, mas a estrutura
da cama havia sido movida e os lençóis e travesseiros estavam
embalados. Eu não achava que Ruby ficaria mais apaixonada
por um colchão vazio em um quarto vazio de alguma forma e
eu também não. Imaginei roupas de cama macias, iluminação
suave e música suave.
Mas não conte a ninguém que eu disse isso. É embaraçoso.
Recuperamos o fôlego em silêncio por um segundo, de
mãos dadas, embora nossas palmas estivessem suadas.
— Então — eu disse muito casualmente e não em um tom
mais alto do que o normal. — Quando você diz primeira vez,
você quer dizer primeira, primeira ou tipo a nossa primeira vez
juntas?
Ruby jogou o cabelo de um lado para o outro, algumas
mechas escorregadias grudadas na testa.
— Primeira, primeira.
— Primeira com uma garota ou primeira…
— Primeira de sempre. Já tive algumas namoradas, mas nada
sério. Eu nunca beijei um menino.
— Oh, meu Deus, talvez você seja secretamente
heterossexual, mas a agenda lésbica chegou a você antes que
você tivesse tempo de descobrir — eu brinquei. Eu estava
principalmente tentando não pensar naquelas outras garotas.
Todos nós sabemos que ter ciúmes de alguém do passado é
estúpido, mas isso não significa que você não sinta isso.
— Eu não sou — ela disse, sua voz rouca, e ela me beijou
novamente para que eu pudesse sentir o calor vindo de sua
boca, sua pele. — Ou eles fizeram um excelente trabalho ao
implantar alguns pensamentos realmente super gays na minha
cabeça agora.
Parecia redundante corar depois de tudo, mas minhas
bochechas não entenderam a mensagem.
— E você?
— Bem, você já sabe que eu beijei Oliver uma vez. Quero
dizer, é algo que eu gostaria muito de apagar da minha
memória, mas infelizmente a tecnologia ainda não existe.
Instantaneamente eu me encolhi, percebendo o que eu
disse. Ruby não pareceu notar.
— Eu esqueci que você me disse isso antes. Tão estranho.
— Tínhamos cerca de onze anos. Não foi um dos destaques
eróticos da minha adolescência.
— Você e Hannah…?
— Não. — Senti-me gelar com o nome dela e tentei me
lembrar de que não era culpa de Ruby. Ela não sabia o que falar
sobre Hannah fazia comigo. — Não fiz sexo com ninguém.
Eu não fiz sexo com Hannah e obviamente nunca fiz sexo
com nenhuma das garotas heterossexuais que eu beijei entre
Hannah e Ruby. Fazer sexo com Ruby seria um passo longe
demais? Fazer sexo com Ruby quebraria as regras? Não era um
dos precursores da desgraça especificamente, mas era muito
sério, não era? Significaria alguma coisa porque era a primeira
vez? Se literalmente tudo o que eu já tinha ouvido estava certo,
o primeiro era aquele que você lembrava para sempre. Foi
importante. Se fosse bom, ruim ou estranho, você não
esqueceria. Então, novamente, eu sabia que era perfeitamente
possível esquecer coisas extremamente importantes. Maridos,
filhos, trinta anos de sua vida.
Ruby sorriu e me beijou.
— Nós provavelmente deveríamos ir. Seu pai vai estar se
perguntando onde você foi.
Eu não queria ir, mas eu puxei minha camiseta sobre a
minha cabeça de qualquer maneira e vi Ruby colocar a dela
também. Havia algo mais íntimo em vê-la vestir suas roupas do
que tirá-las. Por um segundo, eu nos vi em nosso apartamento
imaginário em nosso futuro imaginário novamente. Acordar
ao lado dela e se vestir antes de descer. Era o tipo de momento
que você compartilhava apenas com uma pessoa e a maioria das
pessoas provavelmente não pensava muito nisso.
Quando levei Ruby de volta a Oliver, o carro só parou
quatro vezes. Estacionei na garagem e nos beijamos até que a
luz do sensor se apagou. Então concordamos que
definitivamente era hora de eu ir para casa antes que papai
começasse a ligar para saber se eu tinha sofrido algum tipo de
acidente grave.
— Ei, então por que os arquivos da sua mãe estão na sua
casa? — Ruby disse enquanto se virava na cadeira para pegar a
bolsa que havia jogado no banco de trás. Ela parecia
deliberadamente casual, como se ela estivesse sempre
interessada em detalhes mundanos sobre arquivamento.
— Ficaram presos na parte de trás da mesa, só isso — eu
disse. Mas toda a minha felicidade sonolenta desapareceu,
como se tivesse sido sugada, deixando-me fria.
— Por que seu pai disse que sua mãe ficaria brava?
— Porque eles são particulares. — Eu não olharia para ela.
Em vez disso, fiz uma produção verificando meus espelhos.
Meu peito apertou.
— Não, quero dizer, ele disse que sua mãe ficaria furiosa em
vez de vai ficar furiosa. E você perguntou se ela ajudava as
pessoas. Como se fosse passado. Mas ela tivesse…
— Morrido? — Eu terminei friamente, tentando cobrir a
sensação nauseante de que a coisa que eu estava tentando ficar
um passo à frente estava prestes a estender a mão e me agarrar.
— Você estaria sendo muito insensível se ela tivesse. Por que
você estava ouvindo nossa conversa, afinal? E memorizando a
frase exata para me pegar como se você fosse a maldita Jessica
Fletcher ou algo assim.
Cruzei os braços na frente do peito. Desejei que ela
simplesmente saísse do carro. Por que ela estava arruinando
tudo? Ela continuava fazendo isso.
Ruby bufou e jogou as mãos para cima.
— Esquece isso — ela retrucou. — Ninguém está ouvindo
suas conversas secretas. Eu não queria ouvir.
— Esquecer isso? — Pisquei, incrédula. Ouvi minha voz
subir. — Esquecer isso? Quantos anos você tem, doze?
— Se eu tenho doze anos? Você é tão imatura. Não é
interessante e misterioso guardar segredos, sabe. Não é. Eu sei
que há algo acontecendo com sua mãe. Não entendo por que
você não me conta. Eu te falei sobre Noah.
Meu coração parou por um segundo e quando começou a
bater, fez isso em dobro. A raiva borbulhante agitou meu
estômago e minha cabeça estava barulhenta com o zumbido.
— Como você sabe que está acontecendo alguma coisa com
minha mãe? — Eu disse com os dentes cerrados.
De repente me lembrei do jantar, Beth e Ruby chegando
juntas. Elas tinham falado sobre isso na porta? Ela sabia todo
esse tempo?
— É obvio. — Ruby disse isso como se eu fosse estúpida por
não perceber. — Você nunca fala sobre ela e eu sabia que você
estava mentindo quando disse que eu poderia conhecê-la,
então perguntei a Oliver...
Oliver.
Depois de nossa conversa sobre como eram meus negócios
e ética e tudo mais, ele contou de qualquer maneira. Eu me
senti traída por ambos.
— Você foi pelas minhas costas?
— Eu queria te perguntar. — Ela apontou o dedo para mim,
seu rosto contorcido. — Mas Deus nos livre de termos uma
conversa séria sobre qualquer coisa a ver com você.
— Então, em vez de respeitar minha privacidade, você
encontrou uma maneira de contornar isso? Que agradável. —
Eu cuspi as palavras.
Ruby fez uma pausa e então suspirou. Foi o segundo em que
ganhei a vantagem. Mais tarde, eu me perguntaria por que
nossa discussão era um jogo que eu estava tentando ganhar.
— Tudo bem, você tem razão. — Ela respirou fundo, então
pegou minha mão. — Isso foi péssimo. Mas eu não entendo
qual é o grande segredo.
Eu puxei minha mão.
— Não é segredo! Só não quero falar sobre isso com você.
Ruby parecia como se eu tivesse dado um tapa nela. Um
ponto para mim.
— Porque eu sou apenas uma garota com quem você quer
se divertir um pouco durante o verão e depois esquecer — ela
disse calmamente.
Dei de ombros.
— O que você quer que eu diga? Você sabia disso quando
aceitou. — Um golpe no corpo.
— Você não quer dizer isso — ela sussurrou. — Mas é
totalmente fodido você fingir que é.
— Como você sabe o que quero dizer? Você não me
conhece — gritei, e ela recuou. — Esse era todo o ponto, porra.
— Minha voz falhou e senti lágrimas furiosas caindo pelo meu
rosto. E então não consegui parar. Chorei até não conseguir
respirar o suficiente.
— Saoirse, respire fundo — Ruby disse com firmeza. —
Puxe pelo nariz. Um, dois, três, solte pela boca. Vamos.
Eu fiz o que ela disse. Ela contou as respirações para mim até
que eu fosse capaz de fazer isso por mim mesma. Eu vi sua mão
se contorcer e eu sabia que ela queria estender a mão e acariciar
minhas costas ou meu braço, algum gesto reconfortante, mas
ela estava com medo de que eu a afastasse novamente. Eu
queria dizer a ela que não, mas as palavras ficaram presas na
minha garganta.
— Desculpe — eu disse, enxugando as lágrimas —, eu não
quis dizer isso. Mas não era disso que se tratava. Nós
deveríamos estar nos divertindo. Não quero vir chorar por
minha mãe ter demência. Eu queria me divertir com uma
pessoa que não sente pena de mim.
— Demência? — Ruby disse, sua boca se abrindo
ligeiramente.
— Oliver te disse isso — eu disse.
— Não, ele não disse. Perguntei a ele, mas ele me disse que
eu deveria falar com você. Mas por que você não me contou?
Não é nada para se envergonhar.
Fechei meus olhos. Mesmo que não fosse um segredo, eu
senti de alguma forma que eu tinha perdido tudo contando a
ela. A integridade de Oliver era algo que eu teria que pensar
mais tarde. Engoli o caroço duro na minha garganta. Ela sabia
agora e era minha culpa. Mas realmente, de que outra forma
essa discussão poderia ter terminado?
— Eu não tenho vergonha — eu disse. — Mas eu não quero
falar com você sobre como minha mãe mora em um asilo de
idosos e não sabe quem eu sou.
Os olhos de Ruby estavam arregalados e tristes e ela mordeu
o lábio.
— Eu não quero falar sobre como foi minha culpa ela estar
em uma casa de repouso em primeiro lugar, porque eu não
consegui acompanhá-la e ela se machucou.
Ela abriu a boca para falar e eu continuei falando para não
ter que ouvi-la dizer as palavras que todos diziam. Não é sua
culpa. Porque mentiras não me faziam sentir melhor.
— E eu definitivamente não quero te contar sobre como
isso só vai piorar. Como um dia ela esquecerá como comer ou
se limpar e terá que usar uma fralda e ser banhada por
enfermeiras, mesmo tendo apenas cinquenta e cinco anos.
Eu não conseguia mais olhar para Ruby porque, na verdade,
eu tinha vergonha dessas coisas, fosse a coisa certa a se sentir ou
não, e eu sabia que ela ficaria enojada comigo se eu admitisse
isso.
Com o canto do meu olho eu vi sua boca abrir e fechar como
se ela estivesse tentando encontrar palavras, mas ela não disse
nada.
— Diga-me que você não sente pena de mim agora — eu
disse amargamente, e mantive meus olhos fixos em um ponto à
frente porque eu não queria olhá-la nos olhos. Ela começou a
chorar lágrimas silenciosas.
— Tudo bem. — Ela fungou e balançou a cabeça como se
quisesse clarear a mente. — Ok. Eu admito. Eu sinto muito por
você. Qualquer um sentiria. Mas o que há de errado com isso?
Eu me importo com você. Foda-se a sequência. Eu não ligo.
— Eu ligo. — Eu bati no volante com a palma da minha
mão. Uma dor aguda subiu pelo meu braço quando a buzina
tocou e Ruby se encolheu, se com o barulho ou comigo, eu não
sabia. Ela sentia pena de mim agora; como ela reagiria se
soubesse que eu poderia acabar como mamãe? Ela nunca
poderia saber disso. — Eu disse que não queria algo sério. —
Minha raiva explodiu novamente. — Eu concordei com essa
coisa de sequência porque íamos nos divertir.
Minha cabeça parecia que estava explodindo. Eu não gostei.
Com grande esforço, fechei toda a raiva atrás de uma porta e a
tranquei.
Eu era boa nisso quando tinha que ser.
— Eu ainda quero isso — eu disse finalmente. — Temos
apenas quatro semanas restantes. Não podemos aproveitar ao
máximo? — Virei-me no banco para encarar Ruby e peguei
suas mãos. — Vamos fazer o resto das coisas da lista e esquecer
isso. Podemos manter as coisas como estavam? Podemos fingir
que isso nunca aconteceu. — Eu estava envergonhada do tom
de súplica na minha voz, mas eu disse mesmo assim.
Ruby olhou além de mim, olhando para o espaço pelo que
pareceu uma eternidade.
— Não — ela disse finalmente.
Meu coração caiu como uma pedra no meu estômago. Eu
mal notei quando ela puxou as mãos das minhas.
— Eu não posso fazer isso. Eu concordei com os termos, eu
sei disso. Mas agora é diferente para mim. Eu quero tudo isso.
As coisas boas e as coisas ruins. — Ruby passou os dedos pelo
cabelo, jogando-o para o lado, e sua voz tremia enquanto ela
continuava falando. — Se você não quer isso também, então
tem que acabar agora. — Seu lábio inferior tremia, mas seus
ombros estavam rígidos e firmes e eu sabia que ela tinha se
decidido.
Eu balancei a cabeça. Eu estava entorpecida.
Eu disse a ela que desejava que não tivesse que ser assim.
Ela disse que tinha que ser honesta comigo e consigo
mesma.
As palavras soaram como um roteiro. Eu as deixei correr
sobre mim.
Ela abriu a porta do carro. Eu olhei para ela. Houve um
último apelo para não fazer isso em meus olhos e ela hesitou.
Por um segundo, pensei que ela poderia mudar de ideia. Mas
então ela enxugou os olhos com as costas da mão e sorriu
tristemente.
— Veja, a coisa sobre a sequência de se apaixonar — disse
ela, com a voz rouca —, é que quando acaba, os personagens já
se apaixonaram.
Papai e Beth estavam aconchegados no sofá quando finalmente
cheguei ao apartamento. Eles estavam assistindo a algum talk-
show americano de fim de noite. As caixas estavam por toda
parte. Eu estava realmente cansada de ver caixas em todos os
lugares.
— Eu estava prestes a chamar a polícia, senhorita — papai
disse.
Eu resmunguei e fui até a cozinha pegar um pouco de água.
Não havia copos. Os copos estavam em uma maldita caixa em
algum lugar.
— Pelo amor de Deus, você desembrulhou alguma coisa?
— Eu gritei. Eu tive um momento de satisfação sombria com
suas expressões confusas.
— Quero que você saiba que desembalei seu edredom e
travesseiros e coloquei lençóis em sua cama nova enquanto
você estava vagando para que você não tivesse que fazer isso
quando voltasse para casa.
— Ótimo… bem, eu vou para a cama então. E abaixem a TV,
está bem? As paredes são finas como papel neste lugar de
merda.
Eu pisei pelo corredor como uma adolescente mal-
humorada, o que me foi permitido fazer porque eu era uma
adolescente mal-humorada. Eu tinha um ano e um pouco de
folga legítima e ia torcer até a última desistência.
Papai ficou olhando para mim, mas eu sabia que ele não
diria nada. Mergulhei debaixo do edredom sem me trocar.
Exceto por tirar o sutiã porque não sou masoquista. Isso teria
sido uma merda para dormir. Eu queria adormecer. Eu estava
exausta. Mudar de casa e terminar um relacionamento no
mesmo dia realmente exige de você.
Meu cérebro não cooperou.
Em vez disso, decidiu repassar a discussão várias vezes até
que os detalhes começassem a se confundir. Eu não conseguia
lembrar exatamente o que Ruby disse e quais coisas eu
realmente disse versus o que eu gostaria de ter dito.
Eu me perguntei se isso era um sinal de que minha memória
já estava indo embora.
Na manhã seguinte, o sol bateu em mim e acordei suada e
inquieta. Ainda não havia cortinas ou persianas e fiquei deitada
desconfortavelmente por alguns minutos até que o cheiro de
minhas próprias axilas insistiu que eu tomasse banho. Em
algum momento, por volta da décima quarta repetição da
discussão e a milionésima vez que considerei enviar uma
mensagem de texto para Ruby, decidi que não ia desmoronar.
Isso não era como com Hannah. Não houve investimento.
Estávamos apenas nos divertindo. Não doeu. Eu não ia me
tornar uma bagunça patética. Eu me lembrei da fase bagunça
patética da Saoirse. Ela foi a razão pela qual eu não quis novos
relacionamentos para começar.
Depois de Hannah, eu chorei na cama. Chorei nos
banheiros da escola. Chorei na mesa de jantar e no caminho da
escola para casa. Enviei mensagens para ela que fizeram minhas
glândulas quase explodirem, coisas como eu ainda te amo, o
que posso fazer para consertar isso e você já me amou? No início,
ela respondia imediatamente com alguma bobagem sobre
querer ser amiga, e então demorou mais e mais e comecei a
imaginar o que ela estava fazendo no tempo que levou para
responder. Eu stalkeei o Instagram e o Facebook dela. Por um
tempo tentei ser amiga dela e mostrar a ela que ela ainda podia
me amar. Eu acabava dizendo algo carente ou trazendo piadas
internas do nosso relacionamento para tentar lembrá-la de
como éramos boas juntos. Ela sorria tristemente e mudava de
assunto. Chorei para Izzy várias vezes, e a entediei até as
lágrimas, fazendo perguntas como Ela disse alguma coisa sobre
mim? Você acha que vamos voltar a ficar juntas? Ela está saindo
com outra pessoa? Tudo antes de eu descobrir que ela sabia o
tempo todo que Hannah estava planejando terminar comigo, é
claro. Foi quando eu cortei as duas. Eu só queria ter feito isso
imediatamente e me poupado da humilhação.
Aquela garota me quebrou, e eu não ia passar por isso de
novo.
E se eu tivesse demência e meu cérebro estúpido decidisse
escolher este ano para lembrar, do jeito que mamãe pensava que
ela era jovem? Se eu ficasse deprimida por Ruby, poderia ficar
presa na depressão pós-separação para sempre.
O experimento de sequência para se apaixonar deu certo?
Não exatamente. Tecnicamente, tínhamos quatro semanas
restantes, mas o que importava? Nós teríamos terminado então
de qualquer maneira. Tive mais tempo para me preparar para o
que viria a seguir. Eu não ia me debruçar sobre o passado.
Mesmo que o passado tenha sido ontem.
Deixei o chuveiro lavar a noite anterior e pensei nas
próximas semanas. Os resultados das provas, o casamento… e o
que viria depois disso. Eu estava bem ciente de que ainda não
havia mencionado a papai que não estava totalmente de acordo
com Oxford. Toda vez que ele tocava no assunto, eu o
lembrava de que talvez não fosse, mas sabia que ele achava que
eu estava sendo cautelosa com minhas notas. Haveria uma festa
também, é claro, na noite dos resultados. Eu poderia ficar
bêbada e beijar garotas. Porém, provavelmente seria na casa de
Oliver, e talvez eu não devesse aparecer lá. Eu não queria
parecer que estava seguindo Ruby por aí. Embora se eu não
fosse, eu a estaria a evitando propositalmente e isso pareceria
que eu não tinha superado totalmente isso.
Eu sei o que você está pensando. Por que você se importa
tanto com o que as outras pessoas pensam, Saoirse? Mas na época
não me ocorreu que eu estava apenas considerando o que
parecia e não quais eram meus sentimentos reais. Na época eles
pareciam a mesma coisa. Como se Ruby pensasse que eu tinha
superado, então eu teria superado. As aparências eram a
realidade. E o que as pessoas que definitivamente não estavam
deprimidas com sua ex-não-namorada faziam? Eles seguiam
com a vida, e eu também.
Na cozinha, liguei a sofisticada máquina de café expresso de
Beth. Eu estava arrasada por uma noite ruim de sono, mas ia
visitar minha mãe da mesma forma que fazia todos os dias. Eu
senti falta dela ontem pela primeira vez em muito tempo por
causa de Ruby, então eu não faria isso de novo. Depois de ir ver
a mamãe? Bem, isso era um problema para a Saoirse do futuro.
Um passo de cada vez.
Encontrei copos e canecas no armário. Beth e papai devem
ter ficado acordados até tarde e guardado algumas coisas da
cozinha. Eu senti uma pontada de culpa por brigar com eles,
mas não era um sentimento com o qual eu estava confortável,
então eu ignorei. Eu realmente não bebia café, então eu não sei
o que eu estava esperando, mas tinha um gosto terrível e acabei
bebendo um café expresso como uma dose de tequila enquanto
Beth entrava na cozinha em uma camisola feia e meias fofas. Era
estranho vê-la de manhã. Eu não sabia como me sentir. Era
como se eu achasse que deveria ficar brava com ela ou com o
papai, talvez, mas o sentimento não vinha. Talvez fosse a
exaustão, no entanto.
— Você acordou cedo — ela bocejou, enchendo a chaleira.
— Não dormi bem — eu disse.
— Ah, sim — Beth disse como se tivesse esquecido algo em
sua névoa do sono. — Eu queria ir falar com você, mas seu pai
disse que era melhor deixar você em paz. Aconteceu alguma
coisa? Você e Ruby brigaram? Você ficou fora por muito
tempo.
Papai disse para me deixar em paz. Clássico. Se eu não
perguntar como você se sente, posso fingir que está tudo bem.
— Nós terminamos — eu disse brilhantemente. — Mas está
tudo bem. Foi para o melhor.
— Sério? Isso é triste, Saoirse, vocês duas pareciam muito
fofas juntas. O que aconteceu?
— Nós não estávamos tendo nada sério — eu disse. — Nada
aconteceu. Seguiu seu curso. — A cabeça de Beth começou a se
inclinar, seus olhos suavizando. — Não me olhe assim, Beth.
Sério, estou bem. Não é grande coisa.
— Se você diz — disse ela, olhando para mim como se eu
pudesse desmoronar.
— Estou dizendo.
— Ok, não diga mais nada. — Ela deu de ombros, mas eu
tinha a sensação de que ela realmente não ia deixar para lá. —
Você quer uma xícara de chá? — ela perguntou, tirando
canecas do armário.
— Não. Vou ver.… mamãe. — Eu tropecei na palavra
mamãe, como se mencioná-la pudesse ofender Beth de alguma
forma, mas ela não percebeu.
— Você tem planos depois disso?
— Não, acho que não.
— Excelente. Quer vir procurar um vestido de dama de
honra? Está chegando tão perto e ainda nem olhamos. — Ela
esfregou a têmpora direita, a tensão aparecendo em seu rosto.
— Eu sei que você esteve ocupada, então eu não queria
incomodá-la, mas eu vi alguns. Você precisa experimentá-los, é
claro.
— O que você quer dizer com vestido de dama de honra?
A expressão de Beth mudou rapidamente.
— Seu pai disse que ia perguntar a você.
— Er, não — eu disse. Tentei descobrir rapidamente como
me sentia sendo uma dama de honra. Eu não estava exatamente
emocionada, mas não senti a intensa repulsa que pensei que
sentiria. Exaustão de novo? — Ele realmente disse que eu disse
sim?
— Sim, ele disse — disse ela enfaticamente. — Ele disse
especificamente que você disse que adoraria fazer isso. Se você
não quiser… — Ela parou, parecendo um cachorrinho ferido.
— Não — eu disse, esfregando a parte de trás do meu
pescoço. Paciência. — Claro que eu vou. Mas nunca confie no
papai para fazer as coisas. Ele é uma pessoa que diz o que você
quer ouvir.
Beth fez uma careta.
— Anotado. Eu vou lidar com ele mais tarde, mas escute, eu
vi esse incrível vestido lavanda em Debenhams que eu acho que
ficaria deslumbrante em você.
Eu fiz uma nota mental para matar papai. Pelo menos seria
uma boa distração.
Mamãe ainda estava de pijama quando cheguei lá com
minha bolsa de suprimentos. Eu tinha notado alguns dias atrás
que ela estava mexendo no cabelo. Ela abriu a porta e pude ver
que sua cama estava desfeita e sua TV ligada.
— O que você está assistindo? — Eu perguntei, pensando
que provavelmente era algo terrível, mas era uma transmissão
de um festival de música clássica. Algo que minha mãe teria
realmente gostado muito, uma vez. — Parece muito chato —
eu disse com aprovação, mas desliguei porque é mais difícil para
ela se concentrar na conversa com ruídos de fundo como esse.
— Essa franja é tão longa que eu não sei como você vê com
isso — eu disse. — Vamos, vamos dar-lhe uma aparada. —
Peguei uma toalha no banheiro dela e a enrolei em seu pescoço,
prendendo-a na gola. Ela relaxou e fechou os olhos.
— Ruby e eu terminamos — eu disse. — Está tudo bem, no
entanto. Quero dizer, nós íamos terminar em breve de
qualquer maneira —, eu disse, cortando as pontas de seu
cabelo.
Mamãe disse que isso era terrível e me perguntou se eu
estava bem, mas percebi que não queria falar sobre isso, mesmo
com ela. Mudei de assunto rapidamente, perguntando sobre o
dia dela. Eu não podia seguir sua linha de pensamento o tempo
todo, mas fazia os ruídos e respostas apropriados quando
podia.
Quando acabei, o cabelo de mamãe ficou solto e arrumado
novamente. Talvez eu devesse ser uma cabeleireira. Estremeci
com meu próprio pensamento. Fechei os olhos com força,
bloqueando as palavras que me faziam pensar em Ruby.
Mamãe me trouxe seu livro de memórias. Ele estava na mesa
de café como se alguém o tivesse usado recentemente. Eu sabia
que não era papai porque, embora ele nunca admitisse, eu sabia
que ele odiava ver as fotos antigas. Deve ter sido um dos
funcionários. Isso era meio legal, pensei, que alguém estivesse
passando um tempo com ela daquele jeito.
— Eu quero te mostrar uma coisa — disse ela.
— Tudo bem, então — eu disse relutantemente, esfregando
a cicatriz da palma da minha mão distraidamente. Se isso a faz
feliz.
Mamãe me mostrou uma foto dela com Claire e me contou
uma história que eu tinha ouvido sete mil vezes. Eu não me
importei, porém, porque eu não me concentrei nas palavras.
Olhei para o rosto dela, que estava brilhante e feliz, e uma
sensação horrível de calor e dor em minha garganta ameaçava
chorar. Em algumas semanas eu deveria deixar o país e não
tinha dito ao papai que não queria. Eu estava com medo de
acabar indo de qualquer jeito, varrida pelo impulso de suas
expectativas, seguindo um plano que fiz quando estava com o
coração partido e procurando escapar. E agora eu sentia aquela
vontade de escapar da minha vida novamente. Mas se eu fizesse
isso não poderia vir aqui todos os dias, nem mesmo todas as
semanas ou meses. Quando cheguei naquela manhã, mamãe
não ficou surpresa ou angustiada por eu ter aparecido na porta
dela. Ela me deixou entrar e estava relaxada enquanto
conversávamos. E se tudo isso fosse embora quando eu não
conseguisse manter a rotina? Eu sabia que ela realmente não se
lembrava de ter uma filha, mas na maioria das vezes ela sabia
que eu era alguém com quem ela estava familiarizada. Isso era
algo. Era um pedaço patético de algo, mas significava tudo para
mim. Se eu não aparecesse todas as manhãs, eu me tornaria uma
completa estranha? Como é que abandonar minha mãe ainda
parecia que ela estava me abandonando?
O pensamento me fez sentir dolorosamente solitária. Então
pensei em papai embrulhando presentes para si mesmo e me
perguntei se ele sentia a mesma coisa. Se éramos duas pessoas se
sentindo sozinhas exatamente da mesma maneira. Foi tão difícil
vê-lo deixá-la porque eu sabia que se eu fosse ser livre para fazer
minha própria vida, eu poderia ter que fazer a mesma coisa?
— Quem é? — Perguntei a mamãe, apontando para uma
foto dela com Claire. Elas estavam sentadas na frente de um
espelho, se maquiando. Mamãe parecia estar tentando se
recusar a tirar uma foto, Claire estava se arrumando para a
câmera.
— Sou eu — disse mamãe, apontando para si mesma e
rindo.
— Quem é aquela? — Eu perguntei, indicando Claire.
Mamãe inspecionou a fotografia. Ela segurou o livro mais
perto de seu rosto e sua testa enrugou em concentração. Ela
olhou para mim, um pouco perdida.
— É você? — ela perguntou.
A foto era de cerca de 1985. Era uma festa. Claire usava um
vestido horrível e brilhante e tinha pequenas luvas de renda.
Não é exatamente meu estilo.
Coloquei meu braço em volta dela e a puxei para um abraço.
— São você e Claire — eu disse, e a beijei na cabeça, que
cheirava a xampu de maçã.
Ela tentou virar a página, mas eu a fechei. Papai não era a
única pessoa que não adorava se debruçar sobre fotos antigas.
Eu conhecia esse álbum de cor. Eu ajudei a fazê-lo.
— Isso é o suficiente por hoje.
Por duas semanas eu não pensei em Ruby. Eu não pensei em
Ruby quando recebi um e-mail de spam daquele lugar de
karaokê que nunca fomos. Não pensei em Ruby quando passei
pela roda gigante, pela enseada ou pelas gaivotas. Eu também
não pensava em Ruby quando jantava, lavava o cabelo ou
cortava as unhas dos pés. Eu parei de assistir comédias
românticas estúpidas, não porque os felizes para sempre faziam
meu coração doer, mas porque eu não gosto de comédias
românticas. Elas são estúpidas, sexistas e perpetuam a ideia de
que só importamos como pessoas se alguém estiver apaixonado
por nós. Eu ignorei as mensagens de Oliver, não porque eu
estava com medo de que ele mencionasse Ruby, mas porque ele
era um pé no saco como sempre foi.
Então, o que eu faria se não estivesse fazendo essas coisas?
Assisti muitos filmes de terror. Vi pessoas morrerem de várias
maneiras horríveis. Empalado em espinhos, decapitado e
defenestrado, levado à loucura por fantasmas, monstros e
demônios assustadores da floresta. Alguns morreram
lentamente, outros de surpresa. Todos eles acalmaram minha
alma. Até ajudei no casamento. Sim, o inferno tinha realmente
congelado, mas Beth continuou acumulando tarefas
domésticas para eu fazer e eu não estava exatamente ocupada
com mais nada. Não é como se eu estivesse começando a pensar
que ela fosse ok ou algo assim.
Tudo bem, tudo bem. Cale-se.
No dia do resultado do vestibular, acordei nauseada e
entorpecida. A monstruosidade de dama de honra lavanda era
a única coisa no meu guarda-roupa porque eu não tinha
desempacotado ainda. Eu não conseguiria colocar tudo no
guarda-roupa se tivesse que me mudar novamente em seis
semanas. Isso pode parecer muito tempo, mas a dor de fazer as
malas estava muito fresca em minha mente. Mas eu também
não tinha colocado nada na minha mala. Eu peguei um par de
jeans e camiseta de uma caixa.
Recusei-me a ir à escola para pegar meus resultados ao raiar
do dia, porque todo mundo estaria lá como cachorrinhos
ofegantes do lado de fora da sala de exames, esperando seus
papéis. Se eu pudesse esperar uma hora, perderia de ver todo
mundo. Eu nem fui ver mamãe naquela manhã; eu estava
muito ansiosa e ela percebe esse tipo de coisa. Pensei em ir
depois do almoço. Então, passei uma manhã desconfortável
vagando pela casa com papai me perguntando se eu tinha
certeza de que não queria ir ainda. Ele estava mais ansioso pelos
resultados do que eu. Ele e Beth até tiraram a manhã de folga
para que todos nós pudéssemos ter um almoço comemorativo
depois.
Apesar de meus sentimentos ambivalentes em relação a
Oxford, não pude deixar de me preocupar com o que
conseguiria. Eu tinha estudado tanto e trabalhado tanto, mas e
se minha memória não fosse tão boa quanto eu pensava? E se já
tivesse falhado e eu não conseguisse realmente lembrar que
tinha me saído mal, ou pensei ter respondido às perguntas
completamente, mas foi só porque não conseguia lembrar que
havia todas essas outras coisas que eu deveria incluir? Obter os
resultados que eu queria parecia mais um teste para saber se eu
sucumbiria ou não à demência. Como se obter todos os 100
fosse de alguma forma impedi-la.
Às dez, papai e eu paramos no portão da escola e, com
certeza, não conseguia ver ninguém por perto. Com uma
sensação de enjoo no estômago, deixei meu pai no carro,
tamborilando os dedos no volante, tentando parecer legal.
Quando eu estava na metade da escada que levava à porta da
frente, ele gritou freneticamente pela janela do carro.
— Eu te amo independentemente de qualquer coisa.
Olhei em volta, fingindo ver para quem ele estava gritando,
porque obviamente eu não conhecia esse esquisito, caso
alguém estivesse passando.
— Saoirse! — Louise, a secretária da escola, abriu um grande
sorriso para mim quando entrei pelas portas. — Não me diga
que você dormiu até agora?
Fiz minha melhor imitação de “vergonha”, como se estivesse
tão envergonhada por ter dormido até o dia do resultado do
vestibular. Oh, merda.
— Espere, eu levei o resto dos resultados para o escritório
para vocês que chegariam depois.
Ela tinha uma pilha de cerca de dez envelopes em sua mesa.
Ela os classificou e me entregou um do meio do pacote. Um
sorriso em seu rosto me disse que ela definitivamente queria
que eu abrisse na frente dela. Sorri educadamente e coloquei na
minha bolsa. Sua expressão mudou.
— Prazer em ver você — eu disse, acenando no meu
caminho para fora da porta do escritório. — Eita — eu grunhi
quando a porta me bateu. Alguém tentou entrar no momento
em que eu estava tentando sair.
— Oh, meu Deus, eu sinto muito — disse a pessoa. Depois
— Saoirse.
— Izzy. — Fiquei surpresa ao vê-la, mas me recuperei,
reorganizando minha boca aberta em um sorriso educado, mas
vazio. — Temos que parar de quase bater uma na outra assim.
Comédia romântica, tragédia, comédia. Tudo o que eu
precisava agora era encontrar um cara com facas nas mãos na
pedreira abandonada e eu poderia realmente completar minha
metáfora de vida como um filme.
Izzy devolveu um pequeno sorriso. Deixei passar um
segundo de silêncio desconfortável e então tentei sair correndo
pela porta. Ela se virou e colocou a mão no meu ombro.
— Espere um minuto, sim?
— Hum... meu pai está... — Fiz um gesto em direção ao
estacionamento.
— Por favor? — ela disse, uma nota suplicante em sua voz.
— Só um segundo.
Seria além de rude recusar. Olhei para a porta, considerando
uma fuga rápida de qualquer maneira. Minha cabeça dizia que
era infantil, mas minhas pernas estavam se preparando para
entrar em ação. Mas caramba, eu era muito legal para fazer isso,
então esperei enquanto Izzy entrava no escritório para pegar
seu envelope. Sentei-me no pé da escada que levava à sala de arte
e pensei em como eu era educada.
Então Izzy saiu do escritório. Ela sorriu timidamente para
mim e se sentou na escada ao meu lado. Nenhuma de nós disse
nada por um segundo. Ela tinha novas luzes em seu cabelo
desde a última vez que colidimos na rua. Parecia muito bonito.
Ela também tinha um bronzeado profundo e eu me perguntei
se ela conseguiu o emprego de salva-vidas para o qual estava se
candidatando, sem sucesso, nos últimos dois anos.
— Estou tão brava com você — ela disse finalmente.
— Espere, o quê? Você está brava comigo?
Ela assentiu. Ela não parecia brava. Ela parecia muito calma
e serena.
— Estou realmente brava.
— Que direito você tem de ficar brava? — Eu disse,
indignada.
— Você me abandonou, Saoirse — disse ela.
— Você... — Comecei a lembrá-la de sua grosseira traição
de confiança.
— Sim, eu sei que não te disse que Hannah estava pensando
em terminar com você. Eu sei. Você me disse isso. Eu te ouvi.
Pedi desculpas várias vezes. E eu pensei muito sobre isso e
entendi. Eu sei por que você estava brava, eu sei. — Tentei
interromper novamente, mas ela levantou a mão. — Me deixe
terminar. Eu sei por que você estava com raiva, mas não sei por
que você não conseguiu me perdoar e estou com raiva de você
por isso. Fomos amigas por dez anos e você decidiu que eu não
era nada para você porque eu te machuquei uma vez.
Minha boca abriu e fechou como um peixinho dourado
enquanto eu lutava para me defender.
— Não foi assim. Você escolheu Hannah em vez de mim.
Os dez anos em que fomos amigas obviamente não significaram
tanto para você quanto os doze anos em que você foi amiga de
Hannah.
— Isso é baboseira. Eu estava presa entre minhas duas
melhores amigas. Se eu lhe contasse o que Hannah me disse em
segredo, eu a teria traído. Sem te dizer, eu te traí. Ela me colocou
em uma posição ruim.
— Diga isso para Hannah, então.
— Eu disse. Eu estava zangada com ela também. Eu disse a
ela que estava chateada por ela me colocar em uma posição
onde eu tinha que mentir para você ou denunciá-la.
Eu não sabia o que dizer. Eu não precisava, no entanto. Izzy
ainda não tinha terminado.
— Sabe, talvez eu devesse ter lhe contado. Pelo menos acho
que Hannah teria me perdoado. Pelo menos eu era importante
para ela o suficiente para isso.
Na versão dos eventos de Izzy, eu soava egoísta e mesquinha.
Talvez ela estivesse certa.
— Eu realmente não pensei nisso assim. — Eu lutei para
conseguir as próximas palavras. Elas iriam me expor e me deixar
vulnerável. Eu estava começando a pensar que odiava conversas
emocionais tanto quanto meu pai. Talvez seja isso que me fez
dizer isso, finalmente.
— Pensei que não importava para você. Tudo que eu vi foi
você colocando-a em primeiro lugar quando ela partiu meu
coração e parecia que você não se importava comigo — eu
disse. — Eu estava me protegendo.
Izzy parecia querer discutir, mas ela fez uma pausa antes de
falar.
— Eu posso ver por que pareceu isso — disse ela.
— Eu posso ver por que parecia que eu não me importava
com você também.
Nós ficamos em silêncio. Meus pés imploraram para sair
correndo pela porta.
— Você se lembra de quando me conheceu? — Izzy
perguntou depois de um momento.
— Primeiro dia de primeira aula? — Chutei.
— Não. — Ela balançou a cabeça. — Eu pensei que você
diria isso. Mas durante todo aquele verão fomos amigas. Você
morava na minha rua e ainda não tinha começado a escola.
Eu tinha esquecido. Mamãe, papai e eu morávamos em um
lugar alugado antes de eles comprarem nossa antiga casa.
Mamãe me arrastou pela rua até a casa de uma vizinha porque
ela conheceu outra mãe e elas arranjaram para nós brincarmos.
— Eu me lembro agora. Eu não queria ir para sua casa, mas
quando eu te conheci, você me levou para aquela velha casa na
árvore, aquela que não era…
— Na verdade, em uma árvore, eu sei.
— Você me deu um picolé e então ficamos amigas.
— Tempos mais simples — Izzy riu. — Então, quando
começamos a escola, você conheceu Hannah. Ela era minha
melhor amiga na escola e você era minha melhor amiga em casa,
e então, assim que vocês se conheceram, vocês se tornaram
melhores amigas e eu era a estranha.
— Não foi assim — eu disse automaticamente.
— Foi. Mas tudo bem. Ainda éramos todas amigas. Até
vocês começarem a sair e eu ser a vela.
Havia muita verdade nisso para negar. Hannah e eu
passamos muito mais tempo juntas sem Izzy depois disso.
Éramos um casal, isso era normal. Mas então toda vez que Izzy
estava conosco, parecia que ela estava atrapalhando um
encontro, mesmo que não fosse realmente um encontro. Às
vezes eu ficava meio irritada com ela, mesmo sabendo que não
era culpa dela. Eu pensei que tinha escondido melhor porque
ela nunca tinha mencionado isso.
— Nós duas amamos você, no entanto — eu ofereci, e
imediatamente me perguntei se amor ou amávamos era o
tempo certo.
Izzy mordeu o lábio.
— E se parte de mim estivesse feliz, então, quando Hannah
me disse que queria acabar com isso? Eu não achava que sim,
mas e se eu estivesse?
— Você não estava. — Eu balancei minha cabeça.
— Como você sabe? — ela disse.
— Bem, e se você estivesse? Então você teve um sentimento
egoísta. Eu conheço você, você tem muito menos deles do que
a maioria das pessoas.
Ficamos sentadas por alguns segundos em silêncio e pensei
em como realmente conhecia a pessoa ao meu lado. Eu
conhecia os contornos de seu rosto mais do que conhecia o
meu. Eu a conhecia tão bem que poderia identificá-la em uma
multidão no parque de diversões, em um mar de pessoas. E eu
sabia que tipo de pessoa ela era. Mesmo que as coisas
mudassem, se ela começasse a fazer tricô ou mergulhar em alto
mar ou se casasse ou adotasse quatorze gatos e morasse em um
farol, algumas coisas nunca mudariam. Os anos de brigas
mesquinhas e festas do pijama, primeiros amores dissecados,
bilhetes passados e segredos compartilhados. Não tinham
desaparecido porque eles tinham acabado, e não podia ser
desfeito.
— E agora? — Izzy perguntou.
Eu não sabia se poderíamos ser amigas novamente depois de
uma conversa. Tinha passado muito tempo ou alguns meses
não significavam nada no grande esquema das coisas?
— Agora vamos abrir esses envelopes — eu disse,
descolando o lacre e tirando uma folha de papel.
— Beth, temos uma gênia entre nós — papai explodiu assim
que entrou pela porta. Ele acenou com os resultados dos meus
exames como se fossem um troféu que ele ganhou.
Beth estava segurando uma garrafa de alvejante e a casa
cheirava como se ela tivesse desinfetado-a completamente. Nas
últimas semanas morando juntos, descobri que o hábito
nervoso de Beth era limpar. Era também o que ela fazia quando
estava com raiva ou chateada com qualquer coisa, desde não
conseguir encontrar o relógio de seu falecido pai até ficar sem
saquinhos de chá depois que as lojas foram fechadas.
— Deixe-me ver. — Ela jogou de lado um par de luvas de
borracha e pegou o certificado. — Oito H1s, o que isso
significa? — Beth disse, lembrando-nos que ela era inglesa.
— 100 — eu disse. — Apenas seis realmente contam. Mas
você sabe, algumas pessoas são dotadas de boa aparência e
inteligência. Às vezes é mais um fardo do que qualquer outra
coisa.
Beth me abraçou apertado, me puxando sem pensar. Ela
cheirava a Dettol e perfume cítrico. Nós nunca tínhamos nos
abraçado antes. Ela começou a recuar, incerteza em seu rosto,
como se ela tivesse feito a coisa errada. Eu a abracei forte.
Afinal, era uma ocasião especial.
É melhor ela não se acostumar com isso, no entanto.
— Você já recebeu seu resultado final, então? — ela
perguntou.
Eu balancei minha cabeça. Eu verifiquei o rastreamento do
aplicativo no caminho para casa.
— Provavelmente levará algumas horas para aparecer.
— Mas você atendeu aos requisitos de sua oferta
condicional, certo?
— Sim… — eu disse, me sentindo desconfortável. Eu tinha
que dizer algo em breve. Eu pensei que talvez quando eu
obtivesse meus resultados eu mudaria de ideia. Talvez eu
quisesse ir. Todo mundo estava tão certo de que era uma oferta
que você não recusa.
— Sua mãe ficaria tão orgulhosa — papai disse, me
sufocando com outro abraço.
Talvez minha conversa madura com Izzy tenha subido à
minha cabeça. É a única razão pela qual eu poderia pensar que
escolhi aquele momento de euforia paterna para expressar
minhas dúvidas.
— E se eu não for para a universidade?
Papai me empurrou e ficou boquiaberto para mim. Beth se
mexeu desconfortavelmente.
— O que você está falando? Você tem oito H1s — papai
disse, como se boas notas significassem que você
absolutamente deve ir para a universidade e, claro, escolher o
diploma com os requisitos de entrada mais altos que você pode
escolher. Senti meu telefone vibrar no meu bolso de trás, mas
achei que não seria um bom momento para atender.
— Rob, espere. — Beth ergueu a mão em um sinal de pare.
— Talvez ela queira tirar um ano sabático. Tudo bem. Ou fazer
um tipo diferente de curso. Nem todo mundo tem que ir para
a universidade. — Ela colocou a mão no braço do papai.
— Só por cima do meu cadáver — ele murmurou.
Ignorei os dois e fiz uma cena servindo um pouco de suco
de laranja. Essa conversa precisava desacelerar, então fazer
coisas normais parecia a melhor solução. Agir casualmente.
Tomei um gole enquanto papai esperava. Aparentemente, ele
queria uma resposta à declaração de Beth, embora obviamente
discordasse.
Beber nunca foi tão antinatural na minha vida.
— Não é isso. Só não acho que seja para mim, só isso.
Papai piscou piscadas exageradas.
— Quero dizer, sejamos honestos — continuei —,
provavelmente será um desperdício.
— O que diabos você quer dizer com um desperdício? Como
pode uma educação de reconhecimento mundial ser um
desperdício? — Papai gritou as palavras. Beth estremeceu e com
grande esforço, ele o puxou. — É sobre Ruby? Só porque ela
não vai para a universidade não significa que você pode sentar
aqui e não fazer nada. Eu juro, Saoirse, se você não for, não
ficará aqui. Fim da história — papai disse.
— Acredite em mim, não quero viver com você nem um
segundo a mais do que preciso. — Eu cuspi as palavras,
esperando por mágoa máxima. Ele era incapaz de ouvir a razão.
Eu deveria saber. — Quero ficar perto da mamãe.
— Espere agora, Rob. — Beth interrompeu meu pai antes
que ele pudesse falar. — Claro que você pode ficar aqui,
Saoirse, esta é sua casa. Podemos conversar sobre isso.
Papai abriu a boca e eu pensei que ele ia explodir com Beth,
mas ela deu a ele um olhar que silenciaria uma multidão
enfurecida.
— Nem pense nisso — disse ela. — Esta é a minha casa
também.
— Então você quer permitir que ela desperdice sua vida? —
Ele se virou para mim. — Vá ver como é tentar conseguir um
emprego decente sem um diploma.
— Você não tem um diploma — Beth retrucou para ele.
— É diferente agora. Você quer jogar todo o seu trabalho
duro fora porque sua namorada é uma preguiçosa? Eu não vou
financiar isso.
Beth parecia que ia discutir, mas eu cheguei lá primeiro.
— Ninguém te pediu para financiar nada. Eu posso
conseguir um emprego. — Eu duvidava que seria fácil nesta
economia, na verdade. Eu não tinha sido capaz de conseguir
um emprego durante o verão. Nenhum dos empregos para os
quais me candidatei me chamou para entrevista. Nossa
pequena economia litorânea não estava exatamente
explodindo com empregos bem pagos e sem qualificação, e os
passageiros para a cidade aumentaram tanto os aluguéis que eu
achava que nunca conseguiria morar na cidade em que cresci, a
menos que eu me desfaça do papai e da Beth e herde o
apartamento. Tentador, mas confuso. Mas eu resolveria isso,
certo? Se fosse necessário. — Ruby ainda não vai para a
universidade porque vai ficar em casa para ajudar a família. Eu
sei que você não pode imaginar sacrificar qualquer coisa para
cuidar de alguém, mas ela não é assim.
Papai fechou os olhos e seus lábios se estreitaram, mas ele
não disse nada.
— E de qualquer forma, não tem nada a ver com ela. Nós
terminamos, lembra? — Acrescentei, sabendo que Beth havia
contado a ele, embora ele não tivesse tido coragem de abordar
o assunto comigo.
— Bem, o que diabos é isso, então? — Papai disse, sua fúria
e arrogância esvaziados.
— Você sabe exatamente do que se trata. Não adianta
aprender um monte de coisas inúteis quando só vou esquecer
tudo mais tarde.
Papai respirou fundo e observei os músculos de seu rosto
amolecerem. Os dedos de Beth cobriram seus lábios. Ela parecia
triste.
Finalmente, papai falou, sua voz calma, mas firme. Como se
ele pensasse que se falasse razoavelmente eu teria que concordar
com ele.
— Saoirse, você não sabe o que vai acontecer. Você tem que
continuar vivendo uma vida normal. Sua mãe fez isso.
Onde isso a levou? Trancada em um asilo de idosos e sem
saber seu próprio sobrenome. Meu telefone vibrou novamente.
Eu só registrei metade do que ele falou.
— Ela não sabia que isso ia acontecer. Eu sei quais são as
probabilidades. Isso muda as coisas.
Papai trocou o olhar mais infinitesimalmente rápido com
Beth.
— Pai? — De repente eu sabia o que aquele olhar
significava. Eu sabia disso com todo o meu corpo porque
minhas pernas começaram a ficar fracas. — Ela sabia?
Perguntei por que queria que ele negasse.
— Devemos nos sentar. Eu vou fazer uma xícara de chá —
Beth disse.
Eu a ignorei.
— Não tão cedo — papai disse. — Não tão jovem quanto
você.
Talvez ele pensasse que metade da verdade me satisfaria.
— Quando? — A palavra caiu como uma pedra.
Papai parecia lutar consigo mesmo e, finalmente, um lado
venceu.
— Sua mãe foi adotada, você sabe disso — disse ele. — Mas
na época em que nos conhecemos, ela estava procurando por
seus pais biológicos.
Eu não conhecia essa parte. Ela nunca tinha falado muito
sobre eles. Seus pais adotivos eram meus avós e nunca pensei
em perguntar se ela conhecia sua família biológica. Eles nunca
pareceram muito importantes para minha mãe, então eles
também não eram muito importantes para mim.
— Ela encontrou sua mãe, Joan. Ou melhor, ela encontrou
um parente. Uma prima. Joan já havia falecido. A prima, não
me lembro mais do nome dela, ela nos disse que Joan morreu
jovem. Demência precoce. Avançou rapidamente. Fizemos
algumas pesquisas e sabíamos que havia uma chance de sua mãe
também ter.
Quando mamãe me disse que eu também tinha chance de
ter, pensei: todo mundo não tem chance? Demorou um pouco
até que eu realmente entendesse o que isso significava. Mamãe
e papai discutiram sobre isso. Alguns anos depois que eles me
contaram sobre o diagnóstico dela, quando eu tinha uns quinze
anos, eu os ouvi brigando. Mamãe achou que eu merecia saber.
Papai achou que podia esperar. Mamãe disse que ele esperaria
para sempre se pudesse. Papai disse que talvez não fosse uma
má ideia. Mamãe disse que não era certo eles tomarem essa
decisão. Mamãe ganhou.
— Ela sabia antes de me ter que isso aconteceria com ela?
Eu não podia acreditar que ela faria algo tão egoísta.
— Não — papai disse rapidamente. — Nós não sabíamos.
Sabíamos que havia uma chance. Assim como você sabe que há
uma chance para você. Mas o ponto é que isso nunca a impediu
de viver plenamente qualquer parte de sua vida e não deveria
impedi-la. Às vezes acho que nunca deveríamos ter contado. Eu
estava com medo de que você vivesse toda a sua vida à sombra
de algo que poderia nunca acontecer e eu estava certo.
— Como você poderia ter um filho quando você sabia o que
poderia acontecer? — Eu disse, a voz tremendo. Apertei os
dedos com força contra o polegar. Não chore.
— Honestamente — papai disse, esfregando o rosto, as
palavras saindo de suas mãos — quando descobrimos que ela
estava grávida, perguntei se ela tinha certeza de que era uma boa
ideia. Sua mãe insistiu que era a vida dela, a escolha dela. — A
voz do papai falhou. — Então, quando você chegou, eu me
senti tão envergonhado que eu tenha pensado que você poderia
ser uma má ideia. — Ele disse isso como um pedido de
desculpas.
Não era o pedido de desculpas que eu queria.
— Bem, você estava errado — eu disse com os dentes
cerrados, e passei por Beth enquanto ela enxugava os olhos com
a manga. — Não era apenas a vida dela.
Minha mãe sabia antes de eu nascer que ela poderia esquecer
tudo. Que eu a perderia. Que ela poderia me abandonar. Foi
como sair da valsa quando seu corpo pensa que ainda está
girando, mas o chão abaixo de você está parado. Como o
momento de descobrir pela primeira vez que mamãe tinha
demência, de Hannah terminar comigo, de perceber que
mamãe tinha que se mudar, de saber que papai ia se casar
novamente. Repetidamente, continuei me adaptando a uma
nova maneira de viver. Eu cambaleava e depois me adaptava e
quando eu achava que sabia o que a vida ia ser agora, ela jogava
outra coisa em mim. Eu pensei que estava vivendo em uma
montanha-russa como todo mundo, com altos e baixos, mas
minha vida era mais como uma queimada emocional e eu
continuava sendo atingida. E mais uma vez, como em todos os
piores momentos da minha vida, eu não tinha para onde ir.
Meu telefone tocou novamente e eu verifiquei desta vez,
mais por hábito do que qualquer interesse real em qual era a
mensagem. No andar de baixo, quando o senti tocar, esperei
contra minha vontade que fosse Ruby. Mas os textos eram de
pessoas da escola perguntando sobre meus resultados. Shane e
Georgia, com quem eu andava um pouco, mas com quem não
falava desde a última prova, e alguns outros com quem eu mal
falava, o tipo de pessoa que precisava comparar seus resultados
com os dos outros para descobrir se eles estavam felizes com os
seus próprios ou não. Eu ignorei todos eles. Outro texto chegou
enquanto eu os excluía.
Oliver
Você não quer saber o meu resultado?
Saoirse
Não.
Oliver
6 H1s GÊMEOS
Saoirse
Não.
Oliver
Festa hoje à noite?
Oliver
Ruby não estará lá. Ela foi para casa por
alguns dias para que ela pudesse pegar
seus resultados com seus amigos. Não
voltará até o fim de semana.
Saoirse
Está bem. Estarei lá, mas não tem nada a
ver com ela. Nós estamos bem.
Oliver
Se você diz. Haverá muitas garotas héteros
bêbadas para você pegar em vez disso.
Saoirse
Eu não pego ninguém. Apenas me
aproveito delas.
Pai
Desculpa amor. Saí tarde e agora estou
preso no engarrafamento tentando sair da
cidade. Vou compensar você. O que acha
de uma Ferrari?
Oliver
Eu não posso acreditar que você conseguiu
as notas mais altas possíveis no vestibular e
levou duas semanas para descobrir isso. É
triste mesmo.
Saoirse
Você vai ser um idiota ou você vai me
ajudar?
Oliver
Tá bom.
Eu dei o aceno e Oliver apertou o play na música de fundo,
então o botão de chamada de vídeo em seu telefone. Comecei a
correr antes que ela atendesse. Oliver seguiu ao meu lado em
um skate. Ele parecia muito elegante para andar de skate, mas
era necessário para uma filmagem suave.
— O que está acontecendo? — Ouvi a voz de Ruby, mas
não consegui ver seu rosto, pois Oliver tinha o lado da câmera
apontado para mim. Tudo o que ela seria capaz de ver era eu
correndo.
— Apenas observe — disse ele.
Eu realmente esperava não vomitar. Ou do meu corpo
rejeitando o exercício como algo estranho ou dos nervos
doentios que começaram ontem quando eu mandei uma
mensagem para Oliver.
Corri de duas ruas adiante, o calor fazendo meu cabelo
grudar na nuca. É por isso que correr pela cidade ou pelo
aeroporto é uma parte tão importante das comédias
românticas: correr é terrível e você deve estar realmente
comprometido com seu grande gesto para fazê-lo.
Finalmente, entrei na garagem de Oliver, minhas bochechas
rosadas e brilhantes, e usei toda a energia que me restava para
subir em cima do capô de seu jipe, estrategicamente
estacionado abaixo da janela do quarto de Ruby.
— Cuidado — ele gritou, e cobriu seu coração com a mão.
Eu o ignorei e respirei fundo, não é fácil depois da maratona
mencionada.
— VOCÊ É UM WANKER, NÚMERO NOVE! — gritei
a famosa frase de Imagine Eu e Você, com o máximo de volume
que consegui em meu estado de esforço. Meu estômago revirou
e mentalmente atravessei tudo o que pude, esperando que
Ruby abrisse a janela. Talvez não tenha demorado muito, mas
parecia uma eternidade antes que ela o fizesse e sua cabeça
aparecesse no espaço aberto. Seu telefone estava em sua mão,
mas eu sabia que Oliver já havia encerrado a ligação. Ele tinha
outro trabalho para cumprir.
— O que você está fazendo? — Ela afastou uma vespa de seu
rosto.
— Eu sou apenas uma garota — eu ofeguei. Então eu me
dobrei com uma pontada e levantei minha mão, um dedo
erguido em um gesto de “só um minuto”. Eu vomitei um
pouco. Isso estava dando certo? Fiquei de pé depois de alguns
segundos e forcei as palavras a sair através de respirações
difíceis.
— Eu sou apenas. Uma garota. De pé na frente. De outra
garota, pedindo a ela. Por favor, aceite. Este grande. Gesto.
Como um pedido de desculpas por ser uma idiota absoluta. —
Minha respiração voltou ao normal (quase) e eu empurrei os
cabelos que escapavam do meu rabo de cavalo do meu rosto.
Ruby ergueu as sobrancelhas com ceticismo. — A questão é —
eu continuei, todos os meus nervos à flor da pele. Minha voz
estava tremendo, mas tentei meu melhor sotaque inglês. —
Desculpe, eu só, hum, eh, esta é uma pergunta realmente
estúpida, e particularmente em vista de nossa discussão recente,
mas, uh, eu só queria saber se por acaso, hum, uh, eu quero
dizer obviamente não por que eu sou apenas uma idiota que
nunca dormiu com ninguém, mas eu, eu só queria saber uh, eu,
eu realmente sinto, hum, resumindo, uh, para recapitular em
uma versão um pouco mais clara, uh, nas palavras de Heath
Ledger.… — Nesse ponto, a música tocou abruptamente nos
alto-falantes do iPhone de Oliver como uma faixa de apoio e eu
terminei minha frase com um gorjeio I LOVE YOU
BAAAABY e todo o refrão de "Can't Take My Eyes Off You".
Quando cheguei ao fim, olhei para baixo e, na hora certa,
Oliver me entregou o velho toca-fitas da nossa caixa de lixo e
um conjunto de cartões brancos tamanho A3. Ele se afastou e
eu me preparei. Alguns segundos depois, a água caiu. Fora do
campo de visão de Ruby, ele estava com uma mangueira, me
borrifando como se estivesse chovendo. Apertei o play na fita
e, embora não conseguisse segurá-la, tocou “In Your Eyes”.
Virei minhas cartas.
E depois o último.
Pai
PS internet diz que desejos doces são uma
menina.
Saoirse
Muito científico. PS Direi a Beth que você
usou emojis para transmitir sexismo.
Melhor É Impossível
(Des)Encontro Perfeito
Noiva em Fuga
Dormindo com Outras Pessoas
Questão de Tempo
Missão Madrinha de Casamento
Noivas em Guerra
As Apimentadas
Miss Simpatia
Da Magia à Sedução
De Repente 30
The Awful Truth (1937)
Always Be My Maybe
Bonequinha de Luxo
Três Vezes Amor
Quando o Amor Acontece
Jerry Maguire
Recém Casados
Um Lugar Chamado Notting Hill
Obvious Child
Afinado no Amor
Obrigada à minha família: Mãe por me ouvir dizer as mesmas
coisas repetidamente, como só uma mãe poderia. Papai por me
dizer para escrever um livro desde os quatorze anos (quer dizer,
quero deixar claro, não fiz isso porque você me disse, mas
obrigada de qualquer maneira). Obrigada aos meus irmãos
Rory, Conor e Barry por existirem; Aposto que vão dizer às
pessoas agora que têm uma irmã.
Obrigada a Steph por tudo, incluindo, mas não limitado a
conversas intermináveis, secando minhas lágrimas e tirando
sarro de mim por ser tão dramática.
A Darren pelo suporte técnico, trocadilhos e por me manter
viva; você é legalzinho, até.
Às minhas editoras, Stephanie Stein e Chloe Sackur, minha
eterna gratidão. Vocês são maravilhosas e engraçadas e este livro
não seria o que é sem toda a sua habilidade, discernimento e
dedicação.
Obrigada à minha agente, Alice Williams, que tornou meus
sonhos realidade. Obrigada a Allison Hellegers por seu
trabalho duro e Alexandra Devlin pelo dela. Peço desculpas a
cada um de vocês pela minha incapacidade de usar a função
responder a todos.
Obrigada a todos na HarperTeen: Louisa, que responde
minhas perguntas embaraçosas; Nicole Moreno e Jessica White
por sua magia geral; Jenna Stempel-Lobell e Spiros Halaris pelo
belo design e arte da capa; e Meghan Pettit e Shannon Cox na
produção e marketing.
Obrigada à equipe da Andersen Press: Kate Grove, Jenny
Hastings e Alice Moloney e qualquer pessoa a quem Chloe
possa ter perguntado se entendem o termo 'fazer o turno'.
Claro, obrigada a todas as pessoas de ambas as equipes que
talvez eu nunca conheça ou ouça falar, mas que também
contribuíram para este livro.
Ao coven, obrigada pelas conversas de escrita e apreciação
de Harry Styles. Agradecimentos especiais a Izzy por ler meus
manuscritos e acreditar em todos eles.
Obrigada à minha fofa equipe de apoio Heidi, Harry e
Albus; na verdade, eu não sei como eu teria aguentado sem
vocês todos implorando por comida, precisando sentar em
cima de mim imediatamente, ou latindo e miando quando eu
estava tentando escrever.
Para a pessoa que está lendo isso que achou que eu deveria
agradecer e agora está mortalmente ofendida, falha minha.
Você é realmente a minha favorita e eu vou fazer as pazes com
você.
Finalmente, com a maior gratidão a qualquer um que tenha
lido este livro, escrever um livro que ninguém lê é como falar
consigo mesmo. Quer dizer, tudo bem e tudo, mas não é o
mesmo que conversar com um humano de verdade. Então,
obrigada por ser um humano de verdade.