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MICA BRITO
Direitos autorais © 2022 MMBRITO
Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais,
vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.
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transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou
outro, sem a permissão expressa por escrito da editora.
ISBN-13: 9781234567890
ISBN-10 1477123456
MICA BRITO
FASE 1
Quem eu sou?
CAPÍTULO 1
O clarão
De repente um clarão, Raissa acorda toda quebrada numa cama de
hospital. A coisa está feia para o seu lado, ela tenta se sentar na cama,
mas todo seu corpo está dolorido. Uma perna engessada, o abdômen
enfaixado, inúmeros hematomas roxos pelo corpo, e uma dor terrível na
coluna. Eis o seu estado atual. Sentia-se atordoada e com muita sede.
Onde estou?, perguntou. Seus olhos varreram o ambiente. O cheiro
característico do lugar, o cateter no braço, o exagero do ar-condicionado
e o som do aparelho, que monitorava seus batimentos, a fizeram chegar
à conclusão de que estava em um hospital. Restava saber, por quê?
Uma vez que sua mente estava nebulosa.
Depois de escrutinar todo o ambiente, a jovem se esforçou para
desanuviar sua mente, queria lembrar o que aconteceu. Ela nem mesmo
sabia quanto tempo estava ali. Por que estou sozinha?, se perguntava.
Ter uma memória fotográfica tem que me servir para alguma coisa,
disse para si mesma. Com dificuldade e ignorando as dores que
começavam a se intensificar, ela fechou os olhos e inspirou profunda e
lentamente e, na mesma velocidade, soltava todo ar dos seus pulmões.
Repetiu o processo até conseguir acalmar sua mente. O funcionamento
da sua memória era algo muito interessante. Quando concentrada,
Raissa se via diante de um painel eletrônico cheio de imagens
embaralhadas, como se fosse um jogo infantil chamado: jogo do quinze.
E como se estivesse movendo as peças, aos poucos ela vai colocando
numa ordem cronológica: sexta-feira, a saída mais cedo do escritório, a
viagem até o município vizinho, o hotel, o aniversário, a discussão e o
retorno para casa. Como em um filme, a jovem fez uma retrospectiva
dos últimos acontecimentos até o momento presente.
Dois dias antes.
Raissa e seu noivo Guilherme são dois brilhantes advogados que
atuam na capital do Rio Grande do Norte. Eles se conheceram no
tribunal durante uma audiência, a advogada atuava no lado ativo,
enquanto o rapaz, no passivo. O advogado ficou impressionado com a
ferocidade daquela tão jovem advogada. Quando o processo terminou,
o homem finalmente pôde convidá-la para sair.
Os dois tinham viajado de Natal até a cidade de Acari, interior do
Rio Grande do Norte. Era a festa de aniversário do pequeno Vitor, fruto
do primeiro casamento do Guilherme. A festa aconteceu naquela
mesma sexta-feira. Estava divertido, o garoto estava superfeliz porque o
pai e sua madrasta, apesar da vida corrida que tinham na capital,
conseguiram ir a sua festinha de aniversário de sete anos. A festa estava
superlegal, e o plano do casal era passar o fim de semana na cidade,
para aproveitar um pouco mais da companhia do pequeno. Porém,
como sempre, o advogado estragou os planos. Ele, com sua mania de
ficar controlando a noiva, acabou irritando a morena, que o enfrentou.
Assim, os dois iniciaram uma constrangedora discussão. Para evitar
maiores escândalos, Raissa resolveu voltar para o hotel, deixando-o
brigando sozinho.
Guilherme chegou ao hotel irritado por ter sido deixado para trás.
Movido pela raiva, pegou as bagagens, que nem haviam sido abertas,
arrastou até o estacionamento, socou-as no porta-malas do carro, voltou
ao hotel, fechou a conta e, aos berros, disse que voltariam naquela
mesma noite para casa. Raissa, que conhecia o temperamento
intempestivo do noivo, tentou recuperar a calma, pois já era tarde e o
tempo estava fechado. Contudo, o homem estava irredutível. Cansada
de toda aquela discussão, a jovem cedeu.
— Ao menos me deixe dirigir – pediu. Ela estava preocupada, pois
Guilherme tinha bebido e estava visivelmente alterado. – Guilherme,
me deixa ao menos dirigir – insistiu, mesmo sabendo que dificilmente o
rapaz deixaria alguém assumir o volante do seu precioso BMW X6.
Ignorando-a, ele destravou as portas e entrou no veículo.
— Vamos! – gritou.
Contrariada, Raissa entrou no carro batendo a porta. Deveria ser
uma viagem longa, mas não para um motor de uma BMW X6.
Guilherme que já amava velocidade sóbrio, imagine-o se sentindo o
Ayrton Senna[1].
— Deixa de ser estúpido e diminua essa velocidade – pedia Raissa,
duas horas depois de pegarem a estrada.
Guilherme, muitas vezes, esquecia os 35 anos que tinha e agia feito
um adolescente idiota que se sentia o próprio super-homem. E só para
irritar ainda mais sua noiva, pisou um pouco mais no acelerador e ligou
o som colocando um rock a nível Iron Maiden[2].
Raissa estava apavorada, não só pela atitude idiota dele, mas
também porque o tempo estava ruim e a visibilidade da estrada era
péssima. De repente, um animal apareceu no meio da estrada. O
estrondo. O carro trocando de faixa e o clarão.
Aquelas nítidas lembranças fizeram o peito da jovem saltar de
forma brusca, ela mudou de um estado de espírito para outro em
questão de milésimos segundos. Tomada pelo desespero, começou a
perguntar aos gritos:
— Cadê o Gui? Cadê o Gui?
O grito da paciente chamou a atenção de uma enfermeira que
passava em frente ao seu quarto. Sem hesitar, a mulher entrou no
cômodo.
— A senhora já acordou? – perguntou a mulher ao entrar.
Não, estou dormindo, pensou a paciente. Apesar do pensamento
malcriado, ela fitou a enfermeira e perguntou:
— O que aconteceu? Por que estou aqui?
— A senhora sofreu um acidente – respondeu enquanto checava
seu soro.
— Onde estou? Cadê meu noivo? Por que estou sozinha? – A
paciente perguntava aflita.
— A senhora está no Hospital Anglo. Se ficar calma, chamarei o
médico, e ele poderá responder a todas as suas perguntas, mas preciso
que fique calma, está bem?
Ficar calma era um pedido um tanto impossível para a jovem.
Apesar do turbilhão que percorria em suas emoções, ela assentiu. A
enfermeira lançou um sorriso e, em seguida, saiu do quarto para chamar
o médico.
— Bom dia! – cumprimentou o profissional de saúde minutos
depois.
— Bom dia! Cadê a minha família, por que estou sozinha? –
questionou, agitada.
— Seus familiares estão aí fora, vou autorizar que entrem para vê-
la, mas vou examiná-la primeiro.
O médico a examinou minuciosamente, depois receitou algumas
medicações e passou para enfermeira ministrar. Em seguida, autorizou
que a jovem recebesse visita.
Tudo que Raissa queria naquele momento era ver sua família.
Sentia seu corpo extremamente pesado, provavelmente era efeito do
medicamento que foi ministrado. O médico anotou mais algumas coisas
na sua prancheta e depois saiu do quarto acompanhado pela enfermeira.
Segundos depois, um casal de senhores, na casa dos seus quase sessenta
anos, entrou. O homem era de estatura baixa, meio roliço, pele escura,
cabelos crespos e olhos verdes. Esse era João, seu carinhoso pai. Ao seu
lado, vinha uma senhora, na casa dos seus 57 anos, com seus 1,70 m,
pele branca, cabelos escuros e lisos, corpo esguio e olhar bravo, essa
era sua mãe, dona Thaís. A jovem Raissa era resultado genético do
amor daqueles dois. Puxou não apenas os cabelos lisos e escuros da
mãe, como sua sagacidade, autoconfiança e integridade. Do pai, herdou
mais que seus belos olhos verdes-oliva, aquele homem era a doçura em
pessoa. Transferindo através dos seus genes seu otimismo, sua
resiliência, sua humildade e seu altruísmo.
— Minha filhota – disse o homem, andando até a cama e
abraçando-a carinhosamente.
— Que susto nos deu – falou sua mãe, já com os olhos rasos
d’água.
Raissa era a joia mais preciosa do casal. Os dois abraçaram a filha,
enchendo-a de carinho.
— Tem espaço para mim. – A voz grave de Guilherme se fez notar.
O casal se afastou para que o noivo se aproximasse. A jovem sentiu
o coração aliviado ao ver que aparentemente ele estava bem.
— Paixão, você está bem? – perguntou, nitidamente preocupado. –
Senti tanto medo de te perder, eu morreria se algo de ruim te
acontecesse. – O advogado a abraçou e começou a chorar com
sinceridade.
A mulher demorou um pouco para conseguir acalmá-lo. Guilherme
se sentia culpado por ter colocado a vida da mulher que amava em
risco. Os senhores preferiram sair do quarto para lhes dar privacidade.
— Eu tô bem, eu estou bem – repetia ela, numa tentativa de
tranquilizá-lo. – Só foi um susto. Você está bem, eu estou bem.
Guilherme se afastou e limpou o rosto com o dorso da mão.
Esperou um minuto até finalmente se recompor. Sentou-se ao lado da
cama e tentou contar o que havia acontecido nos dois dias que a morena
passou quase desacordada, devido às fortes medicações para dor.
— Eu pensei que fosse um animal – iniciou.
Raissa percebeu que havia algo de errado. Guilherme desviou dos
seus olhos. Seu coração bateu num ritmo forte, cada palavra dita pelo
noivo lhe dava fisgada no peito. Segundo ele, depois de bater em algo,
ele perdeu o controle do carro, mudou de faixa e seu veículo colidiu
com outro. O poderoso airbag foi acionado, evitando que sofressem o
pior. No entanto, o impacto maior foi do lado do passageiro, o que fez a
advogada perder os sentidos no mesmo instante. Por sorte, eles já
estavam na entrada da cidade de Natal, o socorro não demorou a vir.
Quando a polícia rodoviária apareceu, Guilherme estava consciente.
— Alguém morreu? – Ela perguntou com a voz vacilante.
— Não. Mas… – Guilherme hesitou. Então veio uma longa pausa.
Os olhos verdes varreram o rosto do rapaz, não era só isso, ela sentia
que não era só isso. – Eles me enquadraram no art. 306, da Lei n.
9.503/97. Acredita?
Por sua expressão, não foi difícil para ela deduzir que aquele
homem achava um absurdo, eis um dos piores defeitos do seu noivo: a
arrogância. Guilherme era sobrinho de um dos mais prestigiados
advogados do estado. Ele era um brilhante advogado, mas, apesar de
conhecer a lei, se achava acima dela.
— Eu pensei que fosse um animal, sei lá, um cachorro ou um
cavalo – dizia. Ele ficou cabisbaixo, sua voz saiu num sussurro. – Mas
era uma pessoa, amor. Atropelei uma pessoa.
E veio aquele murro inesperado bem na caixa dos peitos. Raissa
sentiu falta de ar.
— Matamos… – tentou perguntar.
— Não matamos ninguém, foi um acidente, ela está viva –
apressou-se a dizer. – Mas está em coma.
— Quero ficar sozinha, Guilherme. – Foi a única coisa que a
mulher conseguiu dizer.
Noite do acidente.
— Ela está num estado pós-traumático, chegou com um GCS de
dois, pressão 8x6. Exames para traumatismo craniano. Respiração
irregular, pupila direita dilatada. Avisem que estou chegando, preciso
de um respirador e quero raio-x – falava o médico aos gritos,
empurrando a maca pelo corredor até a sala de cirurgia. – Há também
uma perfuração por arma de fogo, precisamos de um cirurgião geral.
Passaram-se 4 horas desde que aquela mulher entrou em duas
cirurgias simultaneamente. A hemorragia causada pela bala foi contida
pelo cirurgião geral. Agora, o neurocirurgião tenta conter o
sangramento no cérebro.
— Ela está tendo uma parada cardíaca. Vamos! Três e quatro,
carreguem em 200 – ordenava o médico. – De novo, aumentem para
400. Estamos perdendo-a – repetia o médico. – Vamos lá, moça, reaja,
reaja. Isso! – O aparelho anuncia que o coração volta a bater. Uma
hora depois a cirurgia na cabeça é finalizada. – Agora pode fechá-la,
Dra. Ingrid. – O cirurgião titular passou a bola para a residente.
◆◆◆
CAPÍTULO 2
“Mais que muito’’
Raissa ficou por quase uma semana internada. Ela já sentia falta da
sua casa e da sua rotina. Fisicamente, estava se recuperando bem, só o
gesso da perna direita que perduraria por mais algumas semanas.
Mesmo rodeada de todos que amava, seus pensamentos tinham ficado
no CTI do hospital com a desconhecida. Guilherme lhe contou que não
conseguiram encontrar nenhum documento ou qualquer coisa que
pudesse identificá-la.
— Como uma pessoa pode aparecer do nada? – questionou,
irritada.
— Não sei, amor – disparou o rapaz.
A advogada bem que tentou tirá-la da cabeça, mas simplesmente
não conseguia. Era um sentimento de culpa que não sabia explicar.
Uma semana depois, Raissa teve que voltar ao hospital para uma
consulta. Após ser liberada, pediu que sua mãe a aguardasse na
recepção, pois, antes de ir, queria saber notícias da desconhecida. Ela
caminhou com as muletas até o consultório do neurologista, ela já
estava se tornando conhecida, pois ligava quase que diariamente para o
médico em busca de notícias da garota.
— Pensei que já tinha me livrado de você – disse o médico, quando
ela entrou em sua sala.
— Acho meio difícil, doutor. Sou carne de pescoço – brincou.
A jovem sentiu os olhos daquele médico lhe varrer por inteira, mas
não no sentido sexual, era como se ele quisesse entender o porquê de
tanta preocupação com uma desconhecida.
— Queria saber como a moça está, estou preocupada. Já passaram
duas semanas desde que aconteceu o acidente.
Ele aproximou-se e a ajudou a se acomodar na cadeira, em seguida
se acomodou atrás da sua mesa. Com um timbre de voz calmo e muito
paciente, voltou a dizer o atual estado da paciente.
— Seu prognóstico continua inalterável – finalizou, minutos
depois.
— Gostaria de vê-la – pediu.
Mais uma vez, Raissa teve que usar da sua persuasão para
convencê-lo. Primeiro porque a garota estava no CTI, segundo porque
ela não tinha nenhum grau de parentesco com a paciente. Mas já dizia o
ditado: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.
— Não sei por que deixo-me enrolar por você, menina! Estou
quebrando não sei quantas regras deste hospital. – Ele disse risonho. –
Qualquer dia me faz perder o emprego.
— Ainda bem que sou amiga do diretor – disse, dando uma
piscadinha divertida, já que aquele simpático senhor era justamente o
diretor do hospital.
O médico riu, ele não entendia por que, mas tinha muita simpatia
por aquela jovem. Doutor Bernardo levantou-se, caminhou em direção
à porta e convidou-a para acompanhá-lo. Eles seguiram até o quarto
andar. Assim que chegaram ao quarto, Raissa visualizou, através do
vidro, uma mulher deitada numa cama repleta de aparelhos ligados ao
seu corpo.
— Quando ela vai acordar? – perguntou.
— Difícil dizer. Encontramos pequenas sombras nos lóbulos
frontais, o que não explica por completo o coma. Meu palpite é que ela
tenha sofrido uma hipóxia.
— O que é isso? – perguntou, pois de medicina não entendia nada.
— Falta de oxigênio no cérebro.
— Sim, mas quando vai acordar? – quis saber, agora buscando os
olhos escuros do médico.
— Não tenho essa resposta, Raissa. Só nos resta esperar. – Ele
disse.
Se Raissa já sentia “mais que muito”, depois dessa informação
tudo se agravou. Ela chegou à recepção do hospital arrasada.
— Você demorou, filha – disse dona Thaís.
— Destruímos uma vida, mãe – disse, com a voz embargada.
A mais velha fitou os olhos lacrimejados da filha. Raissa sentia-se
culpada, e não havia nada do que dissessem que poderia tirar esse peso
de seu coração.
Sete semanas depois.
— Posso entrar? – perguntou a advogada.
— A menos que tenha me trazido aquele bolo de laranja que só a
dona Thaís sabe fazer – respondeu Dr. Bernardo sorrindo.
Raissa devolveu o sorriso e entrou no consultório, em seguida
entregou uma sacola de papel, no qual estava o agrado enviado por sua
mãe. Ela sempre fazia bolo para a morena levar para as meninas do
hospital (enfermeiras e técnicas de enfermagem) e também para aquele
homem que já estava se tornando um amigo. Era uma pequena
retribuição pelo carinhoso tratamento que sua filha teve enquanto ficou
internada.
— Como está se sentindo? – Ele me perguntou.
— Livre! – respondeu, aliviada. – É ótimo andar sem as muletas. –
Riram juntos. Já acomodados, Raissa perguntou: – E ela, doutor,
alguma mudança?
Ele balançou a cabeça em sinal de negação.
— Já faz mais de um mês – disse, inconformada. – Como alguém
pode passar tanto tempo assim em coma?
— Isso é mais comum do que imagina, Raissa. Já lidei com casos
de paciente que passaram meses em coma – falou de modo realista. –
Quando se trata de traumatismo craniano é tudo muito complexo.
Difícil mensurar o tamanho do dano.
— Mas o senhor tem que fazer alguma coisa – exigia em tom de
desespero. – Precisa acordá-la, doutor. Arrumar um jeito de fazê-la
acordar.
O homem lhe olhou com ternura. Sua voz saiu docemente:
— Raissa, sou apenas um simples médico. Nem tudo está nas mãos
da medicina, pode ter certeza que estamos fazendo o possível.
Aquela impotência machucava profundamente a advogada.
— Agora que não precisa das muletas, vou permitir que a veja de
perto – disse no intuito de amenizar a tristeza da jovem.
Raissa levantou o rosto e arregalou os olhos que estavam
inundados, seu coração deu uma batida acelerada.
— Agradeça a dona Thaís – disse, olhando para a sacola que a
moça tinha trazido e dando uma piscadinha divertida. – Vamos! –
chamou.
A morena sorriu e levantou-se de sobressalto, em seguida
acompanhou o médico até o sétimo andar.
A desconhecida tinha sido transferida para um quarto particular do
hospital. Raissa tanto aporrinhou o noivo que conseguiu convencê-lo a
pagar pelas despesas médicas dela, como uma forma de compensação.
No 7º andar, os dois caminharam por um extenso corredor até o
médico parar e apontar para a porta de número 101. As persianas
estavam levantadas, então foi possível ver uma garota próxima à cama.
O médico girou a maçaneta e abriu a porta, segundos depois ambos
estavam dentro do quarto.
— Boa tarde! – cumprimentou o homem.
— Boa tarde, doutor, acabei de higienizá-la – informou a técnica de
enfermagem.
Alheia ao que os dois profissionais de saúde falavam, Raissa foi
puxada como um ímã até a cama onde a garota parecia dormir. O topo
de sua cabeça estava enfaixado, mas era possível ver a tonalidade dos
seus cabelos, eles eram amarelos e compridos. Havia uma sonda
nasogástrica. A parte superior do peito estava com vários fios fixados
na sua pele, provavelmente para monitorá-la. Quando a morena chegou
mais perto, foi possível ver com riqueza de detalhes seu rosto. Era
jovem. Meu Deus! Como parece ser jovem, disse Raissa baixinho. Os
olhos verdes-oliva passearam pelos traços delicados da mulher. Ela
tinha a pele clara, lábios finos, boca pequena e nariz afilado. Ela tem
um rosto tão angelical, pensou a advogada.
— Raissa, vou deixá-la ficar por alguns minutos, tá bem? – falou o
médico.
Materializar seu imaginário foi totalmente estranho. Sua pulsação
acelerou, e o suor escorreu por suas costas. Raissa apenas escutou a
porta fechar atrás de si. Mesmo se sentindo estúpida, a advogada
desatou a falar.
— Moça, me desculpe – disse. Sim, ela estava se sentindo uma
idiota falando com alguém que aparentemente não a ouvia, contudo,
outro dia, Raissa tinha lido um artigo médico que dizia que era bom
falar com pessoas em coma. Na verdade, pessoas em coma têm
ocupado bastante seu histórico de pesquisa no Google. – Eu sinto muito
pelo que aconteceu. Sinto de verdade, mas, olha, fique tranquila, agora
que estou plenamente recuperada, vou ajudar a encontrar sua família.
Te prometo. – Iria mesmo, agora que estava plenamente recuperada, a
jovem moveria céu e terra para descobrir quem era aquela garota. –
Agora seria interessante que acordasse, ajudaria bastante – brincou.
Depois desse dia, Raissa passou a visitá-la frequentemente.
◆◆◆
CAPÍTULO 4
O despertar
No dia seguinte.
O cirurgião ficou surpreso quando chegou para trabalhar e foi
informado sobre o que aconteceu com sua intrigante paciente. O
médico foi examiná-la pessoalmente.
— O dano no cérebro pode ter sido consequência da pancada na
cabeça, não da perda de oxigênio – dizia um dos residentes que
acompanhava o neurocirurgião. Era um grupo de quatro estudantes.
Doutor Bernardo parecia não os ouvir, pois sua atenção estava na
moça deitada sobre a cama de metal. Ele queria entender o que tinha
acontecido no dia anterior. Embora a médica plantonista tenha colocado
no prontuário que havia sido uma psicose de UTI, o neurologista não
estava convencido. Aquele caso em especial havia o fisgado.
— Tem uma pessoa muito preocupada com você. Vamos lá, acorde
– pediu baixinho. – Não me incomodo em receber bolo de laranja toda
semana, mas me incomoda ver aqueles lindos olhos verdes tristes –
falava o médico, com seu jeito doce de ser.
De repente, a mulher mexeu a mão esquerda. O residente que
estava daquele lado da cama deu um gritinho assustado.
— Ela se mexeu – disparou o jovem. – Santo Deus! Ela se mexeu –
afirmou o residente.
Doutor Bernardo sorriu e continuou a tagarelar com a paciente
desacordada. E o impossível aconteceu. Aos poucos a paciente foi
abrindo os olhos deixando todos, exceto seu médico, estarrecidos.
— Ela está acordando, ela está acordando – dizia outra residente. –
As pálpebras dela estão se mexendo, vejam.
Todos foram para cima da paciente, queriam ver de mais perto. O
médico pediu para se afastarem. E minutos depois, de fato, a bela
adormecida despertou.
◆◆◆
CAPÍTULO 5
Sou a mulher do cara que quase te matou
Já se passaram muitos dias desde que acordei. Minha vida ainda era
uma incógnita. Já me sentia bem melhor fisicamente, tinha ganhado
peso e a quantidade de exames e consultas diminuíram. As pessoas
pareciam já ter se acostumado com minha presença. Não que eu fosse
uma pessoa importante, mas, segundo Socorro, meu caso era instigante,
pois, embora tenha tido uma perda total de memória, eu não tinha
perdido ou sequer alterado minhas funções cognitivas. Era estranho,
pois, quando se tem esse tipo de amnésia, via de regra, é como se o
paciente acabasse de nascer, onde é preciso reaprender tudo.
Raissa vinha me visitar todos os dias, normalmente ficava mais que
o horário permitido de visita. Eu gostava da sua companhia, embora
não fosse de falar muito, ela falava por nós duas. Achava engraçado,
porque ela chegava agitada, sempre contando sobre seu dia e me
perguntando como havia sido o meu. E não perguntava apenas por
educação, ela parecia genuinamente interessada, mas naquela tarde não
estava me sentindo bem. Desde que acordei costumo sentir dores de
cabeça, porém, nos últimos dias, elas têm aumentado gradativamente.
— Quem eu sou? – De repente, a ansiedade rodopiou em minhas
entranhas e a pergunta escapuliu dos meus lábios. Vi as azeitonas se
arregalarem e depois se abaixarem se fixando em algum ponto do
quarto.
— Eu ainda não sei…. – Raissa me respondeu.
Ficamos nos fitando por alguns instantes. Minha cabeça deu uma
latejada que instintivamente me fez fechar os olhos com força. Doía,
doía muito. Usando a expressão que aquela moça gostava, doía mais
que muito.
— Eu queria ter essa resposta. Estou procurando, mas… – Havia
tristeza em sua voz. – Tem uma coisa que não te contei, moça. – Ela
disse. – No acidente, quem estava dirigindo era meu namorado….
Raissa contou mais detalhes sobre o acidente, mas, para mim, não
fazia nenhuma diferença, porque as únicas coisas que tenho na memória
são as que fui capturando nos vinte e seis dias que passei a existir. Já
que, para mim, passei a existir depois que abri os olhos neste hospital.
— O que será de mim, Raissa? Eu não sei quem sou, não sei o que
aconteceu comigo…
— Ei! Calma. Você sofreu uma pancada muito forte na cabeça.
Ficou em coma durante um longo tempo. Seu estado era tão delicado
que pensaram que não fosse sobreviver, mas você está aqui. Quando me
recuperei, tentei procurar por sua família, mas não consegui, no entanto
agora será diferente porque você acordou, em algum momento suas
lembranças virão. Vamos encontrar seus familiares, tenha fé. Por algum
motivo, o universo fez nossos caminhos se cruzarem, você nunca mais
estará sozinha.
◆◆◆
CAPÍTULO 7
Trânsito em julgado
◆◆◆
CAPÍTULO 8
Um novo lar
◆◆◆
CAPÍTULO 9
Ela morará comigo
◆◆◆
CAPÍTULO 10
A despedida
RENATA
— Com todo respeito, doutor, mas acho muito prematuro lhe dar
alta.
— Não há nada que possa fazer, Dra. Rosalinda. A paciente está
estável, tem respondido bem às medicações, não tenho como mantê-la
aqui. Em outras circunstâncias, já teria sido liberada há muito tempo.
— Ela tem apresentado… – insistiu.
— Escute, Rosalinda, não posso mantê-la aqui – cortou o
neurologista.
Embora a porta estivesse fechada, foi possível escutar a conversa
que ocorria no corredor. Em seguida, os dois médicos entraram no meu
quarto. O Dr. Bernardo, sempre com seu jeito brincalhão, e atrás dele a
doutora Rosa. Ela estava mais séria que o normal, mal trocamos
olhares.
— Vim lhe trazer uma boa notícia…
— Doutor, o senhor acha prudente que eu saia daqui? – perguntei.
— Você está ótima, amanhã lhe darei alta – decretou o médico.
Quando ele foi embora fiquei a pensar. Saber que de fato sairia dali
me deu medo. Medo de quê? Não sei. Tinha certeza de que aquilo tinha
sido obra da Raissa. Pensar na moça dos olhos cor de oliva era a única
coisa que preenchia meu coração. Sempre tão doce e tão protetora.
Contudo, havia muitas nuances que ela não sabia, como minhas dores
de cabeça. No início era suportável, porém, nos últimos dias, chegava
de um jeito tão excruciante que a única coisa que conseguia reproduzir
era repelir qualquer um que se aproximasse, muitas vezes de forma rude
ou agressiva.
Durante a madrugada, acordei aos gritos, sentia como se minha
cabeça fosse explodir, meus olhos lacrimejavam a cada pontada. Se
tivesse forças, eu teria arrancado minha própria cabeça, porque doía,
doía de uma forma que não sei descrever.
— O nariz dela está sangrando, chamem o Dr. Paulo. – Ouço
alguém falar. Paulo era o médico plantonista daquela noite. Isso é tudo
que lembro, antes de apagar.
Me sentia atordoada ao acordar, mas bastou abrir os olhos para
encontrar um par de verdes-oliva.
— Bom dia, dorminhoca. – Ela disse.
Constrangida, sentei-me na cama. O que Raissa fazia ali tão cedo?
Quer dizer, talvez não fosse tão cedo, a televisão estava ligada e, para
minha surpresa, passava o programa televisivo chamado Encontro com
Fátima Bernardes.
— Bom dia – respondi com a voz fraca.
Com seu jeito Raissa de ser, ela levantou-se da poltrona, deu um
pulinho sentando-se ao meu lado da cama e me envolveu num abraço.
— Eu já estava ansiosa para te ver, mas depois que me ligaram
contando que você tinha passado mal, não consegui me frear, vim o
mais rápido que consegui. – Ela disse no meu ouvido.
Fui nocauteada com aqueles braços fortes, o cheiro que cada dia se
tornava mais conhecido e com aquelas azeitonas. Entendo
perfeitamente todos os suspiros que essa mulher causa em algumas
enfermeiras. Não é apenas a beleza de Raissa que se destaca, mas seu
jeito doce, sua simplicidade e sua contagiante simpatia. Ela se afastou,
abriu um sorriso e levou aqueles lábios pintados de vermelho a minha
bochecha. Me deu um beijo estalado e, de maneira abrupta, pulou da
cama.
— Hoje só saio daqui com você. – Ela disse sorridente.
Naquele dia ela estava diferente, não usava seus trajes formais de
trabalho. Pelo contrário, usava uma calça jeans justa ao corpo, de
lavagem clara, e uma blusa de alça que realçava a beleza do seu colo
moreno. Além disso, usava sapatos baixos, e seus cabelos estavam
presos num rabo de cavalo curto.
— Como você se sente? O que houve? – Ela perguntou com uma
certa aflição na voz.
— Eu não sei. Às vezes sinto uma dor de cabeça, mas ontem foi
diferente, essa dor era tão intensa que pensei que minha cabeça fosse
explodir. Tudo que eu queria era… – E de repente, meus olhos se
encheram de água.
Não terminei a frase porque Raissa me puxou para si, apertando-me
contra seu corpo, dando beijos no topo da minha cabeça, dizendo que
tudo ficaria bem. Então, naquele abraço, chorei, chorei copiosamente.
Ela me apertava um pouco mais quando meu soluço era mais alto,
afrouxava quando sentia que estava me acalmando, até que finalmente
minha respiração foi voltando ao normal. Ela se afastou e, num gesto
terno, levou os fios dos meus cabelos para trás da orelha.
Delicadamente, enxugou meu rosto com o dorso da sua mão e disse:
— Hora de ir para seu novo lar. – Depois abriu aquele sorriso lindo.
– Chega de hospital, o que acha de tomar um banho e se arrumar para
irmos? – sugeriu.
— Você acha que vou ser liberada, mesmo depois de ontem?
— Dr. Bernardo já assinou sua alta. Você precisa respirar outro ar,
talvez uma mudança de cenário seja benéfica para você.
Confesso que respirei aliviada. Talvez Raissa estivesse certa, uma
mudança de cenário poderia ser boa para mim. Antes de seguir sua
sugestão, precisei arrumar minhas coisas. Todas doadas pelas médicas e
enfermeiras que cuidaram de mim. Separei um vestido de tecido leve,
uma calcinha e minha toalha. Depois de colocar minhas poucas roupas
na mochila, que minha salvadora tinha trazido, fui tomar banho. Seria o
último que tomaria naquele hospital. Uma nostalgia me abateu. Uma
retrospectiva desde que abri os olhos até ali passou diante da minha
retina. Não sei quanto tempo passei sob a água fria do chuveiro, presa
no fluxo dos meus pensamentos, então despertei com a batida leve na
porta.
— Rê, tá tudo bem aí? – A voz dela atravessou a porta.
Apressei-me para fechar o registro do chuveiro.
— Sim, já estou saindo.
Finalizei o banho, vesti a roupa que tinha separado, penteei meus
cabelos e saí do quarto. Para minha surpresa, ele estava enfeitado de
balões coloridos, flores e muitos sorrisos. Meus olhos perscrutaram
cada rosto presente. Aquelas pessoas eram as únicas que eu conhecia.
Embora eu não lembre de nada antes do meu acordar, eu lembraria de
cada uma delas, pois, mesmo num ambiente que costuma ser rondado
pela morte, recebi o carinho e o respeito de cada membro daquela
equipe que sempre se esforçou para me fazer sentir bem. Beijos,
abraços e agradecimentos. Um a um fui me despedindo.
— Obrigada por tudo – agradeci de forma geral.
Foi impossível evitar as lágrimas. Por mais estranho que pareça,
aquelas pessoas eram as únicas que eu tinha. Sentia carinho por cada
uma delas.
— Cuide dela, Raissa, e não esqueça que segunda-feira ela tem
uma consulta com o Dr. Teles.
— Não se preocupe, doutor.
Disto isso, Raissa segurou minha mão e caminhamos para um
futuro que desconhecíamos.
◆◆◆
CAPÍTULO 11
Seu novo lar
◆◆◆
CAPÍTULO 12
Então é ele
RENATA
O dia transcorreu muito agradável, a mãe e avó de Raissa foram
extremamente gentis, suas palavras e atitudes pareciam tão sinceras que
realmente me sentia acolhida. No final da tarde a senhorinha foi
embora. O pai de Raissa chegou pouco depois das 17h, também fui
muito bem recebida por ele. Quando já estávamos todos prestes a jantar,
a campainha tocou. Raissa levantou-se para ver quem era, minutos
depois ela voltou acompanhada de um homem de terno escuro, pele
branca, porte físico atlético, olhos castanhos, cabelos alinhados e
cavanhaque.
— Boa noite – cumprimentou, com sua voz grave.
— Amor, essa aqui é a Renata – disse Raissa, radiante.
Levantei da cadeira instintivamente, o homem de olhar impassível
se aproximou e estendeu sua mão em minha direção.
— Prazer, Renata, me chamo Guilherme. – Ele disse.
Desci minha vista até sua mão estendida. Não sei por que, não senti
vontade de apertá-la, mas, quando levantei a vista e me deparei com
aquelas azeitonas brilhando, não pude recusar, então apertei a mão
ofertada.
O clima era estranho, eu não conseguia dizer uma só palavra.
— Como está se sentindo, Renata? – Ele tentou puxar assunto.
— Viva! – A resposta veio sem eu perceber.
— Jante conosco, Guilherme – convidou seu João.
O homem assentiu com a cabeça e se acomodou do outro lado da
mesa e de frente para mim. Não sei por que, mas me senti observada
durante todo o jantar, e não era pelos donos da casa, era por aquele
homem. Tentei ignorar a presença de Guilherme que tentava puxar
assunto fazendo perguntas idiotas. Será que não sabia que era uma
desmemoriada? Na verdade, ele sabia, só que estava querendo me
testar. Isso ficou tão evidente que Raissa percebeu e lhe deu uma
cortada. O clima ficou tenso. Ao final, ele se despediu com a desculpa
de que tinha um compromisso. Confesso que senti uma coisa estranha
dentro de mim. Uma raiva inexplicável. Meu humor mudou depois que
o conheci. Quando Raissa voltou à sala, percebeu que algo tinha
mudado.
— Desculpe pelas perguntas idiotas que o Guilherme fez.
Olhei para a mulher à minha frente, ela não precisava se desculpar
pela antipatia do seu noivo. Minha cabeça começou a doer, embora
tentasse disfarçar, pois não queria preocupar ninguém, principalmente
no meu primeiro dia naquela casa.
— Está tudo bem? – perguntou Raissa, preocupada.
Assenti tentando ser convincente, mas ela não acreditou.
— Acho melhor descansar, foi um longo dia para seu primeiro dia.
Banho e cama lhe cairiam bem – disse ternamente.
Ela tinha razão, foi um longo dia para mim. Precisava processar as
últimas horas vividas. Recebi uma toalha limpa e fui para o banheiro.
Descobri o quanto é bom um banho gelado numa cidade tão quente,
passei quase meia hora sentindo aquela água fria percorrendo meu
corpo. A sensação de relaxamento foi divina, tanto que até a dor de
cabeça passou. Tudo bem, exagerei um pouco, ela permanecia, mas
estava suportável. Voltei ao quarto, estava me enxugando
tranquilamente quando Raissa entrou de supetão. Não tem aquele
momento que você simplesmente congela? Foi exatamente o que
ocorreu.
— Desculpa, é o costume. – Ela falou. Raissa não foi nada discreta,
seus olhos percorreram todo meu corpo. Quando seus olhos chegaram
ao meu rosto, ela deu um sorriso sacana e espontaneamente disse: –
Hum… quer dizer que você tem tatuagem… Borboletinha bonitinha,
que nome é esse? – perguntou na cara dura.
Não fiquei vermelha e, sim, roxa de tanta vergonha, me virei
rapidamente pegando a toalha e cobrindo minha nudez.
— Desculpe, Renata, às vezes esqueço do quanto você é tímida. Só
vim pegar meu computador, vou adiantar um trabalho.
Não consegui falar nada, ela entrou no quarto pegou o computador
que estava dentro de uma gaveta e depois saiu. Me senti extremamente
envergonhada, caminhei vagarosamente até a porta e girei a chave. Por
algum motivo, senti necessidade de privacidade. Meus olhos se fixaram
no espelho que ocupava duas portas do guarda-roupa. Hesitante, tirei a
toalha. Um pouco abaixo do meu seio direito havia uma cicatriz, devido
a minha pele ser muito clara, ela era quase imperceptível. Por que fui
baleada? Será que sou uma pessoa de má índole? Meu olhar desceu até
a tatuagem que ficava no lado direito, acima da minha virilha. Era o
desenho de uma borboleta de uns 5 cm, e abaixo dela havia uma frase
em pequenas letras cursivas Te adoro de paixão, Duda. DUDA, não
acho que seria meu nome. Te adoro de paixão, essa frase me soava tão
íntima e familiar. Me senti cansada em meio a tantas indagações, me
vesti e deitei na cama que seria minha. Depositei minha cabeça, e não
sei em que momento adormeci, mas lembro perfeitamente do momento
que acordei.
Raissa batia ferozmente na porta do quarto, levantei sonolenta,
tinha esquecido de destrancá-la.
— Por que trancou a porta? Você está bem? Faz mais de cinco
minutos que estou chamando.
Raissa estava agitada, me olhou de cima a baixo como se quisesse
se certificar de que eu realmente estava bem.
— Eu acabei adormecendo, me desculpe – disse, me sentindo
envergonhada.
— Não é por nada, mas prefiro que mantenha a porta destrancada
por segurança, caso você passar mal, entende? – Sua voz suavizou.
— Me desculpa.
Raissa me olhou nos olhos e sorriu de um jeito doce.
— Apenas me assustei, aqui é um ambiente novo para você, tive
medo que você tivesse…
Ela não terminou a frase, e nem precisava, eu havia compreendido.
Ela tinha medo de que eu tivesse uma crise como ocorreu no hospital.
— Vou tomar banho – falou, pegando uma toalha e seguindo para o
banheiro do quarto.
Voltei para cama e não demorou muito para voltar a adormecer.
Acordei na manhã seguinte, olhei para cama ao lado e não vi ninguém.
O relógio que ficava na cabeceira marcava mais de oito da manhã.
Levantei e fui fazer minha higiene matinal. Não sabia o que fazer,
sentia uma imensa vergonha em sair do quarto, fiquei andando de um
lado para o outro até que tomei coragem e saí. Fui andando pela casa
até chegar à cozinha.
— Bom dia – cumprimentei.
— Bom dia, Renata – respondeu simpaticamente dona Thaís.
Percebi que ela não estava sozinha, havia uma outra senhora que me
olhou curiosamente. – Dormiu bem, menina?
— Dormi, sim. Raissa…
— Foi trabalhar. Só volta à noitinha.
Dona Thaís me lançou um olhar que não consegui entender, mas,
quando ela se virou para a amiga que estava encostada na soleira da
porta da cozinha, compreendi.
— Maria, essa aqui é a Renata, minha afilhada, ela veio passar uns
tempos aqui, tentar arrumar trabalho.
A mulher se aproximou e estendeu a mão para mim.
— Oi, Renata. Tudo bem?
— Tudo, sim, senhora.
— Senta aí, menina, você precisa comer, está magrinha demais.
Não me fiz de rogada, realmente estava morrendo de fome. Dona
Thaís, muito solícita, me serviu enquanto tagarelava com sua vizinha.
Quando a mulher foi embora, ela virou-se para mim.
— Combinei com o João para dizer que você é nossa afilhada, será
mais fácil de evitar o falatório do povo. Sabe como é, né? Bairro
pequeno, todo mundo se conhece.
— Não quero trazer situações embaraçosas para vocês.
A mulher sorriu para mim. Seu sorriso lembrava o da sua filha.
O dia passou devagar, eu tentei de todas as formas ajudá-la nos
serviços da casa, mas aquela mulher era bastante teimosa. Pediu apenas
para eu descansar, assistir televisão ou ler um livro da Raissa.
Descansar de quê? O único cansaço que sentia era justamente o de não
fazer nada. Depois do almoço, Raissa ligou para saber se eu estava bem
e conversamos por alguns minutos ao telefone. A cada dia, eu gostava
mais daquela criatura. Impressionante como ela me fazia bem.
Tornei-me a novidade no bairro. Ora ou outra vinha algum vizinho
conhecer a afilhada do seu João e da dona Thaís que veio do Sul. Por
algum motivo, eles deduziram que eu tinha vindo do Sul. Coitados, não
sabiam eles que eu nem sabia meu próprio nome, quanto mais de onde
tinha vindo. Eu tentei ser a mais paciente possível, mas toda aquela
movimentação e aquelas perguntas curiosas estavam me dando dor de
cabeça. Na última visita, não consegui me conter, minha dor de cabeça
atacou e acabei sendo grosseira com a visita da dona da casa. Saí da
sala e corri para o quarto, sentia muitas pontadas na cabeça, então me
joguei na cama e comecei a chorar descontroladamente.
◆◆◆
CAPÍTULO 13
Ela é gaúcha
Raissa pegou uma roupa leve e foi para o quarto da mãe. Antes de
entrar no banho, ligou para suas melhores amigas e combinou de
encontrá-las na praça. Seu dia tinha sido cansativo, mas achava uma
boa levar Renata para sair um pouco, mesmo que fosse para tão perto
de casa. Depois de um banho relaxante, se arrumou e, meia hora depois,
já estava esperando Renata na sala de estar.
— Uau! Ficou uma gracinha! – disparou a advogada, quando a
moça chegou à sala trajando um vestido Criss Cross simples de tecido
leve e coloração verde.
— Foi um presente da dona Letícia – disse, sem jeito.
— Ficou muito bonito – disse dona Thaís ao olhar para a jovem. –
Você é uma moça muito bonita Renata.
Renata, ao fitar os olhos castanhos da mulher, sentiu-se
envergonhada. Imediatamente, pediu desculpas pelo seu
comportamento.
— Tudo bem, minha filha, vamos esquecer. Saia um pouco com a
Raissa, um pouco de ar puro lhe fará bem.
— Bem, vamos lá que Clara e Dora estão ansiosas para conhecê-la
– chamou Raissa.
As duas saíram de casa e caminharam até a praça do bairro, não era
muito longe. A noite estava fresca e havia bastante gente no espaço
público.
— Elas estão num trailer gourmet, logo ali.
Depois de caminhar mais uns duzentos metros, Raissa encontrou-se
com as amigas que estavam numa mesa. Ao chegar, fez as
apresentações e se acomodaram. Clara e Dora já conheciam a situação
da Renata, então evitaram fazer perguntas. O quarteto conversava
amenidades enquanto comiam hambúrguer artesanal. Para surpresa da
advogada, Renata e Dora engataram uma empolgada conversa sobre
casos clínicos, uma vez que Dora é fisioterapeuta. Clara e Raissa
apenas assistiam as duas conversarem.
— Já podemos deduzir duas coisas sobre você – disse Dora. – Com
certeza você é do Sul, aposto milzinho que é uma gaúcha nata. Seu
sotaque e vício de linguagem não negam – disse, rindo. – E a outra,
com mais certeza ainda, você é da área de saúde.
Raissa sentiu um estalo, esse tempo todinho nunca se atentou
àquela particularidade da moça à sua frente. Até as amigas da sua avó
perceberam o sotaque pesado que a jovem sem memória carregava em
sua pronúncia.
— Concordo – se manifestou Clara. – Esse sotaque é muito
carregado. Não é do Sudeste, está mais para o Sul.
— Como podem ter tanta certeza? – perguntou Raissa.
— Ora, amiga, esqueceu que sou uma telefonista de luxo –
disparou Clara, que na verdade era escriturária de um banco público.
Porém, ela lidava mais com clientes por telefone.
Renata sentiu um formigamento no corpo, seus olhos buscaram os
oliva. Quando as azeitonas a fitaram, a morena disse:
— Você falou com tanta propriedade e naturalidade sobre ossos,
circulação, procedimentos – fez uma breve pausa –, você sempre fala
tão pouco que não tinha reparado no quanto tem sotaque, mas te
ouvindo tão bem essa noite, é no mínimo intrigante.
Não lembrar de nada era agoniante para a jovem sem memória, e
aquelas observações fizeram emergir sua tristeza por não ter um
passado. Foi involuntário, seus olhos negros ficaram sob uma cortina de
água. Ao perceber isso, Raissa segurou sua mão em sinal de conforto.
— Desculpa… – falou Dora e Clara ao mesmo tempo. Elas
também perceberam a tristeza repentina da loira.
— Não precisam se desculpar – disse a Renata.
Raissa resolveu encerrar a noite. Suas amigas haviam se
simpatizado com a loira, aquele encontro tinha sido bastante agradável,
e ao menos nas duas horas que passou ali, Renata esquecera um pouco
das intempéries da sua vida. Quando chegaram em casa, os pais da
morena já haviam se recolhido. As duas foram direto para o quarto.
Desprovida de qualquer timidez, Raissa foi logo arrancando suas roupas
e procurando sua camisola. Quando fitou a loira, viu suas bochechas
vermelhas. Foi impossível não rir.
— Somos mulheres adultas, tudo que você tem, eu tenho também.
Nunca tive problemas de ficar pelada na frente das minhas amigas –
disse docemente. Raissa estava apenas de calcinha, ela deu alguns
passos à frente e apertou o nariz da outra num gesto terno, pois achava
uma graça o jeito tímido da loira.
Renata afastou a vista do corpo seminu da advogada. Ela virou-se e
também se trocou rapidamente, só que no banheiro. Quando retornou
Raissa já estava deitada na sua cama.
— Suas amigas são pessoas muito agradáveis – disse.
— Que bom que você gostou, elas também se simpatizaram muito
com você. Sábado, vou marcar alguma coisa leve, quero que conheça
meus outros amigos.
— Boa noite, Raissa e obrigada!
— Se você ficar me agradecendo até por um alfinete, juro que não
faço mais nada – retrucou, bocejando, pois estava cansada e morta de
sono. – Boa noite, Rê.
Renata também não tardou a dormir, porém, durante a madrugada,
ela acordou com uma forte pontada na cabeça. As dores vieram com
força. Raissa também acordou com os gritos. Foram momentos
angustiantes. Renata chorava compulsivamente reclamando da dor e, de
repente, seu nariz começou a sangrar. A morena tentava acalmá-la. Se
sentindo impotente, a única coisa que Raissa conseguiu fazer foi puxá-
la para cama e abraçá-la o mais forte que conseguiu. O corpo de Renata
foi amolecendo, seu choro diminuiu, quando a morena percebeu, a
jovem tinha adormecido em seus braços.
◆◆◆
CAPÍTULO 14
Estou gostando dela
RENATA
Um mês depois.
O tempo passa muito rápido. Tenho recebido tanto amor, carinho e
respeito que as lacunas do meu passado deixaram de me incomodar.
Contudo, uma pessoa que não aparecia nada satisfeito com esse
acolhimento era o noivo de Raissa. Sua presença sempre causava
tensões, seja durante um jantar ou em um almoço em família. Ontem,
para meu desânimo, Guilherme resolveu passar o dia conosco, pois era
domingo. Tive que aturar o dia todo aquele cara cheio de carícias e
malícias para o lado da Raissa. E tudo piorou no final da tarde quando
ela decidiu que iria com ele.
Passei a noite em claro numa angústia tremenda. Imaginá-la com
ele me dava náuseas, EU ESTAVA GOSTANDO DELA. Triste
conclusão. Adormeci apenas quando o dia raiou, acordei já era mais de
dez da manhã, estava banhada de suor e com uma forte dor de cabeça.
Tinha tido outro pesadelo. Eles se tornavam cada vez mais constantes,
neste:
Havia um jardim imenso, muito bonito e todo ornamentado com
várias mesas espalhadas por ele. Tudo muito elegante. Eu trajava um
vestido preto, bem justo, de costas nua e com um decote em “V”,
sandália de salto alto e usava uma maquiagem perfeita, realçando
ainda mais os negros dos meus olhos. Ao invés dos cabelos longos, no
meu sonho estava com um corte repicado um pouco acima dos ombros.
De acessórios, brincos tipo argola e um anel de rubi. Me sentia tensa
naquele ambiente, olhava ao redor à procura de um rosto. Rosto de
uma tal “Maria Eduarda”. Quando menos esperei, meu telefone tocou
e uma voz feminina soou do outro lado da linha. Ela dizia: — Hum…
você está gostosa, hein! – exclamou a voz. – Dá até pena te dar para
outra comer. – Ouço a risada do outro lado da linha.
Acordei de solavanco, com meu coração batendo muito
agressivamente no peito. Fiquei um tempo sentada até conseguir me
acalmar, quando isso aconteceu, tomei minha medicação e fui tomar um
banho. Quando cheguei à cozinha, a dona Thaís cantarolava na cozinha.
Sorri ao vê-la em suas roupas aeróbicas, cabelos presos num rabo de
cavalo alto e compenetrada no que fazia.
— Bom dia, dormiu bem, minha filha? – Ela me perguntou assim
que me viu.
— Dormi, sim, tia. Bom dia – cumprimentei.
Chamá-la de tia foi algo muito natural para mim, tanto ela quanto o
senhor João pareceram não se incomodar. Confesso que me sentia cada
vez mais próximo deles, era um sentimento de pertencimento que
crescia a cada dia. Não sei se tive isso na minha outra vida, mas sei que
nesta, onde passei a existir como “Renata”, esses dois senhores eram o
mais próximo do que eu teria de um pai e uma mãe. E aqui, me sentia
em casa.
— Por que não me chamou para ajudá-la? – disse ao ir até a
geladeira.
— Quase não tem nada para fazer. – Ela respondeu displicente. –
Tem salada de fruta na geladeira, trouxe para você.
Fui até ela e lhe dei um beijo na bochecha, agradecendo sua
gentileza. Eu não sei se eu costumava ser carinhosa com minha mãe ou
meu pai, mas o excesso de afetuosidade de Raissa deve ser contagioso,
porque hoje, pouco mais de trintas dias que morava aqui, um gesto
como esse era não apenas comum, mas muito natural da minha parte. E
havia muita reciprocidade.
Fiquei um bom tempo ali conversando amenidades, enquanto ela
terminava de preparar o almoço. No início da tarde, ela perguntou se eu
queria acompanhá-la à casa da dona Glória, mas minha dor de cabeça
resolveu me fazer companhia. Preferi ficar em casa, aproveitei aquele
silêncio para tentar cochilar um pouco.
Me via em um quarto bonito. Havia uma cama grande e redonda e
minuciosamente arrumada com lençóis vermelhos. Eu me despia
sensualmente diante do olhar abrasador de um homem. Ele era mais
velho, sorria para mim maliciosamente. Quando já estava pelada, ele
bateu com sua mão em sua coxa entoando: vem rebolar no colinho do
papai, vem!
Acordei extremamente nauseada, corri cambaleando até o banheiro
e, por pouco, não vomitei no chão. Tudo que estava no meu estômago
saiu em questão de segundos. Cai sentada ao lado do vaso sanitário.
Novamente me vi num show de imagens. Levei as mãos à cabeça e
gritei de dor. Porque doía, não sabia descrever a intensidade da dor.
Parecia que diversos ou um único filme estava passando diante dos
meus olhos em aceleração máxima. Não sei quanto tempo durou
quando a escuridão começou a me atrair.
— Renata, Renata. – Era dona Thaís aflita, entrando no banheiro e
se agachando.
Ela me abraçou forte, tão forte que sentia a pressão nos meus ossos.
Ela parecia ter descoberto o segredo de Raissa, era assim que a
advogada conseguia me acalmar. Não sei como ou o porquê, mas aquilo
era a única forma de me trazer de volta. Minhas lágrimas e o sangue
que jorrava do meu nariz mancharam sua blusa branca.
— Shhhh, vai passar. – Ela dizia enquanto me apertava em seus
braços.
Eu conseguia ouvir as batidas aceleradas do seu coração. As
imagens estancaram bruscamente, e a imagem de um rosto se
materializou em minha retina. “Um homem loiro, pele branca, barba
bem aparada, seus cabelos amarelos estavam num corte militar clássico,
mas a lembrança dos seus olhos fez todo meu corpo se arrepiar. Seus
olhos eram azuis, de um azul intenso, de um azul que embora lembrasse
o céu, por algum motivo me causavam um medo dolorido.
Não sei quanto tempo demorei para me acalmar, mas sabia que isso
tinha acontecido porque senti que os braços da dona Thaís se
afrouxaram. Ela se afastou um pouco para me ver. Seus olhos castanhos
estavam inundados. Sem hesitar, levou seus lábios a minha testa, num
gesto verdadeiro de amor e preocupação.
— Você tá bem? – Ela perguntou.
Me sentia fraca, a cabeça ainda doía, mas sempre doía menos após
um pesadelo ou aquele festival de imagens.
— Agora estou, mas a cabeça ainda dói.
— Desde quando você está sentindo dor? – Ela quis saber.
Titubeie. Se eu dissesse que era desde que acordei, ela ficaria
chateada, mas não poderia mentir. Acabei contando sobre o pesadelo
durante a noite e o de agora.
— Desculpa… – Tentei falar, mas ela não deixou.
— Quando eu perguntar se dormiu bem, se está com alguma dor
por mínima que for, você tem que me dizer, Renata. – Ela disse meio
brava. – Você lembra o que o doutor Bernardo falou? – Ela me
perguntou. Mas não precisei responder. Ela deu um suspiro pesado, sua
voz saiu mais baixa. – Quando você chegou aqui, eu e o João te vimos e
fizemos uma promessa. Somos pais e sabemos a dor que é perder um
filho. – Notei que sua voz embargou. Algumas gotas de lágrimas
começaram a ser derramadas. – Prometemos a Nossa Senhora
Aparecida que íamos cuidar de você até o dia que possamos lhe
entregar a sua verdadeira mãe. Só te entregaremos a ela. Então, não me
esconda nada, por enquanto você é nossa filha, então te proíbo de
esconder qualquer coisa da gente.
Dito isso, ela voltou a me abraçar com carinho, ternura e
preocupação, em seguida, pegou o telefone e ligou para aquele homem
que já se tornou amigo da família.
◆◆◆
CAPÍTULO 17
A entrega
RENATA
Quanta pretensão pensar que Raissa podia se interessar por mim.
Não quis ouvir mais nada, já tinha entendido o recado. Senti uma
tristeza invadindo meu peito, mas não insistiria, por mais difícil que
seja, preciso respeitá-la. Raissa era uma pessoa boa e muito correta,
traição não fazia parte do seu perfil. Por algum motivo, eu não queria
lhe trazer sentimentos de dualidade ou culpa. O que eu sentia, guardaria
para mim.
Passei o dia tentando me ocupar, seja com os serviços domésticos
da casa, ou até mesmo na preparação da sopa que o grupo de senhoras
da comunidade preparava para distribuir à noite para as pessoas em
condições de rua.
Engraçado, todos ali eram pessoas muito simples, muitos
dependiam de apenas um ou dois salários-mínimos para a sua
subsistência e a subsistência da sua família, mesmo assim, três vezes na
semana, o grupo liderado por nada mais, nada menos, que dona Glória,
uma senhorinha de quase oitenta anos, que desde muito cedo vivia
engajada em projetos sociais da paróquia que frequentava, ajudava o
próximo. Claro que na verdade quem ficava à frente era a tia Thaís.
Elas reuniam-se, cada uma colaborando com o que podia, seja com mão
de obra, seja arrecadando alimentos, roupas e material de higiene, por
aí, vai. O grupo denominado “TREVO”, composto por oito donas de
casa que poderiam simplesmente terminar seu dia, sentadas no sofá
assistindo a suas novelas, contudo, três vezes na semana saíam do
aconchego dos seus lares para levar um pouco de conforto àqueles que
não tinham nada. Raissa e seus pais não eram pessoas ricas, mas ali no
bairro, pelo que entendi, eram os que tinham condições melhores.
Então, esquecendo do próprio bem-estar, eles faziam questão de dividir
o que tinham. E, mais uma vez, digo, não sei se na minha outra vida eu
era uma pessoa religiosa, mas agradeço a Deus que, apesar da escuridão
na qual me envolvi, vim parar num lar de luz.
Depois de tudo pronto, perguntei à tia Thaís se poderia ajudar na
entrega. Ela pareceu não acreditar no meu pedido, seus olhos sorriram
para mim.
— Toda ajuda é bem-vinda. – Ela disse.
Naquela noite iríamos entregar 400 pratos de sopa, que seriam
acompanhados por café quentinho e um pão francês macio. O pão era
doação da dona da padaria do bairro que, além de ser uma integrante do
grupo, fazia as doações semanalmente sem falta. Os alimentos foram
divididos em cinco carros, cada um seguiria para um pedaço distinto da
cidade. Quando o relógio marcou 18h da noite, escutei o som da buzina
em frente de casa.
— O tio chegou – avisei.
Tio João já estava atrás do volante de uma kombi um tanto
desgastada do seu irmão. Ele sempre pegava emprestada para fazer as
entregas.
— Girassol, você vai conosco? – Ele perguntou sorridente.
Eu sempre me derretia quando o tio me chamava assim, me sentia
amada, não sei explicar. Não sei se tive um pai no passado, mas sei
exatamente o sentimento de ter um no presente. Tio João dizia que
meus cabelos eram como pétalas de girassol, devido à cor.
— Vou, sim, tio.
Ele desceu do carro para ajudar a carregar as coisas para dentro da
kombi. Após estar tudo pronto, saímos noite afora. Eu nunca tinha
participado da entrega, mas naquela noite passei por uma experiência
única. Depois que fui acolhida por aquela família, deixei de pensar no
que fui. Contudo, enquanto entregava aquela singela refeição, me
perguntei sobre meu papel no mundo. Não sei se as pessoas costumam
fazer essa pergunta. Podemos fazer tanto com tão pouco. Me pergunto
se em algum momento do meu passado fui capaz de algum gesto de
caridade. Acho que não, porque ao me questionar sinto uma fisgada no
peito. Um aperto, daqueles que sentimos quando sentimos nossa
pequenez nessa breve existência.
Terminamos às nove da noite, aproximadamente. Eu estava sentada
ao lado da tia Thaís no banco da frente da kombi que o tio dirigia.
Aquele senhorzinho gorducho, da pele escura e olhar carinhoso virou-se
para mim e disse:
— Obrigada pela ajuda, Girassol. Se cada um semeasse uma
mudinha, o mundo seria mais florido – parafraseou.
Às vezes eu me perguntava de onde aquele senhorzinho sem estudo
tirava tanta doçura.
— Que carinha triste é essa? – Ele perguntou.
Não consegui falar, porque sentia uma tristeza sem tamanho,
principalmente depois de realizarmos as últimas entregas. Tia Thaís
tinha pedido para o tio parar numa avenida que parecia muito conhecida
para eles. Quando o veículo foi estacionado, parecia que as pessoas já
os aguardavam. Diversas mulheres e travestis, que trabalhavam
vendendo seu corpo, se aproximaram felizes da vida com a nossa
chegada. Busquei nos olhares do senhor João, dona Thaís, senhora
Glória e até da dona Josefa (uma senhorinha que era carne de pescoço)
qualquer sinal de repúdio ou descriminação, mas o único olhar que
encontrei em cada íris foi o de amor. Amor ao próximo. Isso me
desencadeou uma imensa vontade de chorar.
— É um trabalho muito bonito que todos vocês fazem. Eu que
agradeço por me deixarem participar disso – disse com sinceridade.
— Você é da família, tem que participar mesmo – disse dona
Glória. – Se Deus partilhou o pão com doze, porque não podemos
colocar um pouco mais de água no feijão e alimentar mais algumas
dúzias.
Dona Thaís me olhou com aqueles olhos cheios de ternura, me
abraçou de lado e depositei minha cabeça em seu ombro.
— Raissa sempre fica assim quando vem com a gente, até hoje ela
nunca se acostumou – disse docemente. – Mas veja pelo lado bom, hoje
essas pessoas vão dormir de barriga cheia.
Quando chegamos em casa, Raissa estava deitada no sofá. Fui
direto para o quarto. Queria tomar um banho e me deitar, foi
exatamente o que fiz.
— Rê – escutei Raissa chamar, mas eu não queria conversar. Ver
todas aquelas pessoas em uma situação tão delicada mexeu muito
comigo. Principalmente, o último grupo. Me perguntava
incessantemente como alguém conseguiria vender o próprio corpo?
Raissa se aproximou e sentou-se na beira da minha cama.
Continuei de costa para ela.
— Está tudo bem? – Ela perguntou suavemente. – Está sentindo
dor?
Sinto o colchão afundando atrás de mim. Seus braços envolveram
minha cintura e sua respiração veio parar no meu pescoço. Me viro e
nossos olhares se nivelam. Suas azeitonas parecem apreensivas. Acho
que estava pensando que ela era o motivo da minha tristeza. Não sei se
conheci muitas pessoas boas pelo meu caminho, mas tenho certeza de
que nunca encontrei alguém mais humana do que aquela mulher. Raissa
me desperta sentimentos humanos, o que é estranho alguém dizer isso.
Queria saber explicar, mas não sei. É como se, apesar de ter tido uma
vida, essa era a primeira vez que eu realmente estava vivendo. Trago-a
mais para perto. Nossa química é muito forte. É involuntário, nossos
corpos puxam um para o outro. Levo uma das minhas mãos à sua nuca
e a roubo para mim.
◆◆◆
CAPÍTULO 19
Preciso fugir
◆◆◆
CAPÍTULO 20
Eu sinto mais que muito
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CAPÍTULO 21
Agora eu sou uma “Fernandes”
RENATA
— Alô – disse ao atender.
— Que voz mais gostosa de se ouvir às sete da manhã. – Acabei
sorrindo, era o Danilo ao telefone. Mais uma vez, uma sensação de déjà
vu. Dentre todos os amigos que conheci da Raissa, o rapaz era o que eu
mais gostava. Não sei por que, seu jeito, sua presença, me dava uma
sensação de déjà vu, como se em algum lugar do meu passado, eu
tivesse alguém assim. Com seu perfil. – E aí, minha loira, tudo bem
com você?
— Tudo sim, guri. Aconteceu alguma coisa? – perguntei, porque
estranhei sua ligação tão cedo.
— Aconteceu, mas não quero que me mate. Sou muito gostoso para
sair do mercado, e ainda bem que encontrei a tampa da minha frigideira
– respondeu, divertido. – Rê, ontem foi uma loucura na galeria, estamos
fazendo uma exposição de uma grande revelação do momento, ela é
recifense. “Leandra Oliveira”. A mulher estourou, loira. Pelejamos mais
de um ano para conseguir uma exposição dela aqui. Ela arrasa no
pincel, mas no grafite é coisa de outro mundo.
Senti uma onda de entusiasmo, por algum motivo eu adorava artes
plásticas. Com minha relação com Danilo estreitando, vez ou outra, ele
me levava a algumas exposições. Logo pensei que aquela ligação seria
um convite.
— Ligou só para me fazer inveja? – impliquei.
— Não, porque não perderia a oportunidade de vagar pelos
corredores com quem entende – falou. – Que minhas garotas não
escutem isso. – Rimos juntos ao telefone. Dora, Clara e Raissa não
entendiam bulhufas, na verdade, elas não achavam a menor graça
nesses eventos, porém, como fiéis escudeiras do Danilo, fingiam
entusiasmo e sempre iam prestigiar o amigo, quando ele era o
organizador do evento. — Mas, na verdade, estou te ligando para avisar
que sua entrevista é hoje, às dez da manhã.
— Hoje – perguntei alarmada, pulando da cama.
— Foi mal, gata, soube há dois dias, mas nessa correria realmente
esqueci de te avisar. Por isso, estou te ligando tão cedo. Pelo amor de
Deus, não se atrase. A dona do conservatório é muito chata com
horário, ela é britânica, então já viu, né?!
— Guri, nem sei como agradecer.
— Eu sei, esteja linda quarta-feira para ir à exposição comigo. Será
minha folga e quero apreciar os trabalhos como se deve. Às nove, passo
aí pra te levar para o conservatório.
— Não precisa, vai descansar.
— Faço questão. Nove horas, viu?!
— Tá, guri.
◆◆◆
CAPÍTULO 22
O jantar
RENATA
A festa na casa da dona Glória foi maravilhosa. Os familiares da
Raissa me trataram como um membro da família, os pequenos corriam
e pulavam de um lado para o outro. Para completar, me entupi de doces
e salgados. Quando voltamos para casa, era quase onze horas. A noite
teria sido perfeita se a Raissa tivesse ido. No domingo, ela tinha dito
que passaria o dia conosco, porém, poucas horas antes do almoço, ela
ligou se desculpando, dizendo que não poderia vir, pois, tinha aparecido
um imprevisto. Confesso que fiquei muito chateada, mas nada poderia
fazer. No domingo, dormi cedo, pois estava ansiosa para meu primeiro
dia de trabalho. Devido a isso, acordei cedo, aproveitei o bom hábito
que adquiri com a morena dos olhos azeitonas e fui correr na praça.
Passei quarenta minutos contornando-a. Voltei para casa, tomei banho e
tratei logo de me arrumar, eu não queria chegar atrasada em meu
primeiro dia. A dúvida foi sobre o que vestir, entre uma peça e outra,
escolhi uma vestimenta casual, composta por uma calça jeans preta de
cintura alta, blusa 3/4 branca e um scarpin também preto. Soltei os
cabelos e fiz uma maquiagem bem leve. Após aprovada minha imagem
no espelho, peguei minha bolsa e saí do quarto. O tio se ofereceu para
me acompanhar até o conservatório, já que era caminho para o seu
trabalho, eu achei ótimo. Mais uma vez o sentimento paterno aqueceu
meu coração. Meu relacionamento com o tio é diferente do que tenho
com a tia Thaís, não que o amor seja menor, pois eu os amava por igual.
Mas, com ele, havia uma conexão especial. Eu sempre admirei a
relação da Raissa com o pai, pois era linda demais a cumplicidade dos
dois. E a sensação de pertencimento aumentava. Pouco a pouco,
estávamos construindo uma relação muito parecida, e isso parecia ser
muito importante para mim. Pois, o carinho, cuidado e amor que aquele
senhorzinho me oferecia pareciam me preencher de um jeito muito,
muito, muito especial.
Após o café da manhã, seguimos para os nossos compromissos. Ele
ficou o caminho inteiro tentando atenuar meu nervosismo.
— Você trabalha pertinho de mim. Caso queira fugir, dá um grito
que o tio aparece a galope. – Ele disse todo brincalhão.
Olhei para aqueles olhinhos verdes e sorri. Ele me abraçou
carinhosamente, me acompanhou até a porta da escola, como se eu
fosse uma criança, mas adorei aquilo.
—Obrigada, tio.
— Tenha um bom dia de trabalho, meu Girassol.
Sorri bobamente e me joguei em seus braços parecendo uma
criança. Ele riu, respondeu ao abraço, beijou o topo da minha cabeça e
disse que precisava ir. Assenti e o vi se afastar. Então, olhei para o
casarão à minha frente. Respirei fundo, ergui a cabeça e entrei.
— Bom dia! – cumprimentei.
— Bom dia! – respondeu a recepcionista sorridente.
— Me chamo Renata…
— Hum, a nova professora?
— Acredito que sim.
— Vou avisar a dona Brenda que a senhorita já chegou.
— Obrigada.
Fiquei aguardando a secretária, minutos depois Brenda saiu da sua
sala e veio me cumprimentar formalmente.
— Seja bem-vinda – disse ela simpática.
— Bom dia. Mais uma vez, agradeço a oportunidade.
A diretora me apresentou para toda a escola, que era maior do que
pensava. Fiquei encantada com o local. Durante o tour, ela explicou o
funcionamento e regulamento daquele estabelecimento, esse passeio
durou cerca de 40 minutos. Voltamos ao seu escritório, onde tratamos
sobre carga horária e salário. Após acertado tudo, era hora de começar a
trabalhar, então ela pediu que sua secretária me levasse até meu
ambiente de trabalho. Acompanhei a mulher até o nível superior onde
ficavam as salas de aula.
— Você será assistente da professora Isabela – disse Marcela.
Caminhamos por um longo corredor que dava acesso a inúmeras
salas. Paramos na última do lado esquerdo. A porta estava aberta, e a
sala estava barulhenta. Parei no umbral da porta, tive a oportunidade de
observar com mais atenção o ambiente. Era uma sala ampla com
grandes janelas em forma de arco, que traziam muita luz natural. O piso
de madeira era bem ilustrado. Além disso, havia uma lousa e um birô.
Parecia uma sala comum.
— Com licença – disse Marcela ao entrar. – Bom dia, turma! –
cumprimentou.
— Bom dia – responderam em uníssono.
— Bom dia – também cumprimentei e recebi a mesma resposta.
Isabela levantou-se imediatamente, pediu que seus alunos
sentassem e fizesse silêncio. Assim o fizeram.
— Bom dia! – Ela cumprimentou.
— Bom dia! – respondemos.
— Professora, essa aqui é a Renata… – Marcela olhou para mim
como se perguntasse meu sobrenome.
— Fernandes – completei.
— Essa é a Renata Fernandes, será sua nova assistente.
— Já fomos apresentadas. Obrigada, Marcela. – Ela disse
gentilmente, depois virou-se para mim. – Seja bem-vinda, Renata.
— Obrigada – respondi meio sem jeito.
— Está entregue. Boa sorte, Renata. Seja bem-vinda à equipe.
— Obrigada – agradeci.
Marcela saiu, e Isabela me apresentou aos rostos curiosos que
estavam em nossa direção. Eram cerca de 15 alunos na idade entre 13 e
16 anos. No início fiquei um pouco acanhada. Isabela me explicou que
ali era uma turma de iniciante, o que me daria uma vantagem, pois
aprenderia no mesmo momento que ajudava a ensinar.
Isabela parecia ser uma mulher séria, mas não aquela séria chata.
— Como chegou agora, vou pedir que pegue uma cadeira e
coloque ao meu lado, quero que observe a dinâmica da aula, após a
aula, explicarei exatamente como vai me ajudar.
— Tá certo.
A professora pediu silêncio e deu início à aula, começou com a
origem da música clássica. À medida que ia explicando, considerava
tudo muito interessante. Parecia tão comum para mim. Sua explicação
era calma e paciente, os alunos pareciam compenetrados, ora ou outra,
ela era interrompida com uma pergunta de algum aluno curioso. Sua
postura era impecável em sala de aula, brincava com alguns detalhes
quando fazia menção a algum compositor. Eu apenas observava e
tomava nota de algumas coisas que tinha ficado na dúvida. Às
11h30min, ela encerrou a aula.
— Bem, agora vem o trabalho de verdade – disse, quando ficamos
sozinhas na sala. – Fiquei impressionada com o que ouvi no outro dia,
mas agora preciso saber o que sabe da parte teórica.
— Na verdade, não tenho lembrança se realmente sei algo. Quando
vejo as partituras, aquilo só me parece familiar, então apenas toco. Você
já deve saber que sofri um acidente…
— Sei, sim. Danilo me explicou sua situação, acho que temos
muito que conversar. Se não tiver compromisso agora, poderíamos
almoçar juntas e trocarmos algumas ideias.
— Claro.
Seguimos até um restaurante que fica próximo ao conservatório.
Isabela era muito simpática, conversamos bastante sobre música e sobre
arte, um assunto que sempre me agradava, nem sei o porquê. Ela me
explicou sua metodologia de ensino e o que esperava de mim. Uma
hora depois, voltamos à escola, ela disse que a próxima aula seria de
canto. Passou-me as partituras das músicas e pediu que tocasse, fiquei
bastante nervosa, porque ela me observava minuciosamente, atenta a
cada nota errada, corrigia-me na hora. Estava me sentindo uma aluna.
— Você precisa ficar mais atenta ao tempo de cada nota, veja. – Ela
sentou-se ao meu lado e seus dedos começaram a dedilhar no teclado do
piano. A música era reproduzida numa sincronia perfeita. – Você toca
muito bem, mas precisa conhecer o que está tocando, precisa sentir a
música, saber sua história. Treino é disso que precisa – decretou.
— Talvez eu não esteja apta...
— Renata, você tem um talento de pianista. Em minha opinião
profissional, acho que tem muito a contribuir, e dada sua situação, só
precisa reconhecer o que está tocando.
Isabela era uma mulher que gostava de fitar nos olhos, suas
palavras saíram com suavidade. O medo de não conseguir que começou
a se infiltrar recuou diante daquelas palavras.
— Podemos fazer o seguinte, após a última aula, posso lhe passar a
aula posterior. Então, lhe explicarei com antecedência a parte teórica.
Depois você treina a prática sob minha supervisão.
Quase não acreditei com sua sugestão. Meu coração pulou de
alegria. Já estava com medo de não conseguir executar o trabalho.
— Vou te dar trabalho dobrado – disse.
— Vai valer a pena. A parte mais difícil você já domina. Só precisa
reaprender, ou melhor, reconhecer o que está tocando.
Sorri em agradecimento. Sem perder muito tempo, ela me passou
os tópicos da aula seguinte. No início da tarde, recebemos sua segunda
turma. Aquela turma era mais agitada, pois era uma turma de
adolescentes entre 14 e 18 anos. Era aula de canto, e ela tinha me
avisado que eu atuaria mais ativamente.
A aula terminou às 16h. Quando todos os alunos saíram, Isabela
revisou algumas fichas, depois fomos para a nossa prática. O tempo
passou e nem percebemos. Consultei o relógio, já passava das 18h.
— Nossa, já é noite. – Ela disse, espantada. – Desculpe, Renata,
excedemos seu tempo, nem dei por mim. Vamos encerrar por hoje,
amanhã trarei alguns livros sobre história da música e outras coisas,
tenho certeza que pode lhe ser muito útil.
— Nem sei como agradecer, Isabela.
— Não precisa. Você mora onde?
— No bairro Petrópolis.
— Se quiser, posso te deixar lá – se ofereceu toda solícita.
— Agradeço, mas não é necessário. Muito obrigada mesmo assim.
— Então, até amanhã, Renata.
— Até amanhã, Isabela.
Peguei minha bolsa e algumas anotações e saí da sala. Estava
eufórica. Adorei o ambiente, os alunos, os professores, tudo. Me sentia
útil, embora soubesse dos muitos obstáculos à frente que ainda teria que
enfrentar. Música não era só tocar. Exigia muita técnica e
conhecimento, coisas que não sabia se tinha, mas não deixaria isso me
abalar. Devido ao trânsito, demorei para chegar em casa.
Assim que entrei na sala, fui abordada pela tia Thaís. Ela parecia
aflita.
— Minha filha, o que houve para você demorar tanto? – perguntou.
Sorri diante da sua preocupação tão genuína.
— Desculpe, tia. É que assim que terminou a aula, a professora
Isabela me passou algumas coisas. Acabou que perdi a hora.
— Eu sei que você é adulta, mas fiquei preocupada, você disse que
largaria às 17h. Não quero controlar seus horários, é só preocupação…
– Ela dizia atrapalhada.
—Tia, eu sei – interrompi. Peguei suas mãos com carinho e a puxei
para o sofá. Aproveitei que o tio também estava lá e contei
entusiasmada como havia sido meu primeiro dia.
— Fico feliz, Girassol, mas quando for chegar mais tarde, der sinal
de fumaça, só pra sabermos que está bem. Sua tia já tava querendo me
arrancar do sofá. Você sabe que não posso perder minha novela, num
sabe? – perguntou, piscando para mim. Tia Thaís revirou os olhos, e eu
ri.
— Prometo que aviso sim. Desculpe a preocupação que gerei.
— Vá tomar banho, estávamos esperando você para jantarmos.
Corri para o banheiro, tomei banho e fui jantar, minha barriga
roncava. O cheiro da comida gostosa invadia minhas narinas, comi, até
não caber mais nada. Passei um tempo conversando com os tios até que
uma leve dor de cabeça resolveu aparecer. Pedi licença com a desculpa
de que iria me deitar, então fiquei sentada na cama e levei a minha mão
à têmpora. Escutei meu telefone tocando ao longe, fui até minha bolsa
e, ao retirar o aparelho e ver o nome no visor, eu sorri.
— Já não morre mais, estava pensando em te ligar. – Eu disse
assim que atendi.
— Mal começou a trabalhar e já deu o primeiro susto na dona
Thaís. – Raissa falou. Ouvir sua voz me gerava alegria. – Você sabe que
esses dois velhos acham que somos adolescentes, num sabe? – disse
num tom de brincadeira.
— Deu pra perceber. Até gosto, me sinto cuidada.
— Como você está? – Ela perguntou.
— Estou bem, e você? Te esperamos ontem.
— Como foi seu primeiro dia? – desviou da minha pergunta.
Queria que ela estivesse aqui comigo, para narrar meu dia olhando
para suas azeitonas. Cada dia sentia mais falta da Raissa. Contei sobre
meu trabalho, depois sobre o quanto foi divertido a festa da sua avó, as
investidas incansáveis do seu primo adolescente a minha pessoa. Raissa
gargalhava do outro lado da linha.
— Aquele pivete não tem jeito. Ficou caidinho por você desde a
primeira vez que te viu. – Ela disse.
— Como foi a festa, com a família do seu marido? – Minhas
palavras saíram num tom de ironia. Houve um longo silêncio do outro
lado da linha, podia sentir sua respiração ficar mais forte.
— Agradável. – Se limitou a dizer.
Confesso que aquilo me intrigou, Raissa era uma pessoa muito
falante, uma festeira de plantão, esperei uma longa narrativa da noite
tão esperada do Guilherme, seu tom de voz mudou, parecia sério até
tentei insistir.
— Agradável? Apenas isso? Conta, você estava tão agitada com
essa festa. Aposto que deve ter se divertido bastante – falei com
suavidade, queria que ela se sentisse à vontade para falar.
— Foi agradável na medida do possível.
— Entendi! – disse, pois ficou bastante claro que ela não queria
falar sobre o assunto.
— Não sabe o quanto fico feliz pelo seu primeiro dia. Sei que vai
dar conta do recado.
— Me sinto tão feliz. Eu amo tanto vocês, Raissa, o que sua família
me desperta é algo que tenho certeza que não tive.
Conversamos por mais um tempo, depois ela teve que encerrar a
ligação.
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CAPÍTULO 24
Versão Ana Carolina ruiva
Dias atrás.
Naquela madrugada de sábado, depois que fizeram amor, Renata
perguntou sobre os machucados da morena.
— Aquele homem anda te batendo, Raissa? – Ela perguntou cheia
de raiva.
— Dessa vez foi a última vez. Quando ele chegar, vou terminar
tudo. Já perdemos o respeito um pelo outro. Quando isso acontece, a
relação acaba. A nossa acabou há muito tempo, acho que só não
queríamos dar o braço a torcer. E, também, desde que fiquei com você,
não consigo deixá-lo me tocar. – Foi sincera. Raissa abriu o coração
para a loira, falou dos seus medos e de suas inseguranças, admitiu que
ainda amava o noivo, mas sabia que ele era um cara muito tóxico.
Então, por mais amor que existisse ainda, não queria viver aquilo.
— Eu nunca pensei que fosse possível se apaixonar por uma
pessoa, amando um alguém – disse, fungando. – Mas aconteceu, eu me
apaixonei por você, não sei em que momento, mas, Rê – Raissa buscou
aqueles olhos tão bonitos, queria ser muito verdadeira com a garota à
sua frente –, apesar do sentimento que você desperta em mim, algo aqui
dentro, bem lá no fundo, diz que não posso me entregar a você, por isso
tentei resistir. Por isso, fugi.
— Mas por quê? Eu estou aqui – replicou.
Sim, você está, mas até quando?, respondeu Raissa para si mesma.
Há um passado entre nós, pessoas e sentimentos que podem existir. Eu
me apaixonei por você, Renata, contudo, algo grita dentro de mim. Um
grito de aviso, um grito de alerta, um grito que diz, sem deixar margem
para dúvida, que eu não posso amá-la. Eu simplesmente não posso te
amar. Embora seja isso que eu queira, sou covarde demais para
ignorar meu instinto de preservação. Eu sinto muito, Girassol, eu sinto
mais que muito.
Isso era tudo que Raissa queria verbalizar, mas havia um caroço em
sua garganta que não permitiu que as palavras saíssem de sua boca.
Aquele par de olhos negros a fitaram cheios de sentimentos, Raissa
despertava em Renata um sentimento leve, um sentimento terno, um
sentimento de calmaria, como se em sua vida anterior ela tivesse
deficiência disso.
— Eu sei que você está aqui – sorriu docemente. – Rê, vamos viver
o que tivermos que viver. Apenas um capítulo por vez.
— O que quer dizer com isso? – Renata perguntou com a voz
embargada, não estava gostando daquela conversa, porque lhe gerava
um sentimento de perda, e ela estava feliz demais para perder qualquer
coisa dessa nova vida.
— Vamos descobrir juntas, mas sempre, sempre, sempre, sendo
honesta uma com a outra.
Renata sorriu, e Raissa sorriu de volta. Ali ambas selariam algo só
delas, que ia muito além da luxúria da paixão.
RENATA
Naquela noite, antes de ir para casa, resolvi passar no mercado. O
sorvete de Raissa tinha acabado. Com dificuldade, consegui fazê-la
trocar sua preferência de sorvete de chocolate e calda de morango, pelo
de pavê. Não sei por que essa combinação mexia muito comigo. Após
passar no supermercado, caminhei para casa, achei estranho encontrar o
portão de pedestre aberto. Mais estranho foram as vozes agitadas que
vinham do seu interior. Senti uma angústia no peito, isso me fez
caminhar apressadamente para dentro. Ao entrar na sala me deparei
com a tia Thaís agachada em frente ao sofá, desesperada, enquanto meu
tio estava extremamente pálido com sua mão pressionada ao peito.
— O que houve? – perguntei, jogando tudo sobre a cadeira e
correndo até eles.
Difícil foi entender diversas pessoas falando ao mesmo tempo. Era
a equipe trevo que estava ali. Num ímpeto, fui até o tio e pedi que todos
se afastassem. Em movimentos automáticos, chequei sua pulsação e
notei que estava muito fraca. Então, perguntei o que ele estava sentindo.
Mesmo com dificuldade, contou:
— Começou com um mal-estar, pensei que estivesse cansado, até
começar com uma dor aguda no meu peito e formigamento no meu
braço esquerdo. – Ele falava com muita dificuldade.
O tio tinha a respiração ofegante e estava muito suado. Avaliei
aquele conjunto de reações em segundos.
— Esse homem precisa de uma ambulância agora – gritei.
— Já chamamos – disse alguém.
— O que está fazendo? – perguntaram.
— Precisamos afrouxá-lo o máximo possível. Tia, tire os sapatos
dele.
Meu corpo sentiu uma descarga familiar de adrenalina. Mesmo sem
entender aqueles comandos, eu abri sua camisa de botão e lhe tirei o
cinto, enquanto minha tia se livrava dos seus sapatos.
— Se ele ficar aqui, pode ter uma insuficiência respiratória.
Precisamos levar ele agora – berrei.
O tio João não tinha tempo para esperar a ambulância. Com a ajuda
de alguns homens, conseguimos colocá-lo no carro e socorrê-lo para o
hospital. Enquanto minha tia chorava desesperada, eu não conseguia
entender meu comportamento tão frio. Chegamos ao hospital pouco
tempo depois.
— A senhora não pode entrar aqui – disse o socorrista, arrastando
meu tio para o interior da emergência.
Foram longos minutos na sala de espera. A adrenalina continuava a
correr em alta velocidade dentro de mim. Tia Thaís havia sido
amparada por dona Antônia. Fiquei tão presa em mim, que não reparei
na chegada de Raissa, só percebi quando ela me abordou.
— O que aconteceu? – perguntou aquela voz que aprendi a
reconhecer e a abominar.
Virei para trás e, para minha surpresa, Guilherme aproximou-se
junto com a Raissa. Eu olhei para ela, mas a ignorei. Simplesmente a
ignorei. Me sentia agitada, minha mente fervilhava. Só conseguia
pensar no tio.
— O que aconteceu? – Ela perguntou chorosa.
— Ele teve um princípio de infarto – respondi.
Dona Thaís, ao ver a filha, veio ao encontro dela e se jogou nos
braços da mais nova. Em meio a choro e soluços, relatava os momentos
que antecederam a isso.
— Seu pai estava bem, estava comendo, enquanto eu tomava banho
para fazermos a distribuição das refeições. Quando cheguei à sala, ele
reclamou de uma dor no peito e, de repente... – Ela não conseguiu
terminar.
— Vou ver se consigo alguma informação – disse Guilherme, se
afastando.
Longa foi a espera por notícias, o que era uma coisa muito atípica.
Como sei disso? Não faço ideia. Depois de muito tempo, a médica que
o atendeu veio falar conosco.
— O estabilizamos, e ele passa bem, mas estamos fazendo novos
exames – disse.
— O que ele tem? – perguntei.
— Ele está bem. Assim que tivermos mais notícias, viremos avisar.
Não se preocupe.
— Que exames? – questionei. – Por que não podemos vê-lo, se ele
já foi estabilizado?
A mulher olhou para mim e senti sua hesitação.
— Você é interna? – Não sei o motivo por ter perguntado isso, mas
queria saber. A mulher, que parecia um pouco mais jovem que eu,
assentiu.
Havia alguma coisa errada, aquela situação não era típica. Agora
foi a vez daquele homem pressionar. Guilherme, com sua postura um
tanto intimidadora, encarou a mulher e repetiu as minhas perguntas. A
mulher alternava os olhos entre mim e ele.
— Ele precisou ser submetido a um exame de endoscopia. Assim
que terminarmos, ele será levado para o quarto e será permitido que
fique com um acompanhante – disse, querendo parecer displicente,
como se aquilo fosse rotina, porém, para mim, foi como sirenes de
ambulância soando escandalosamente, até porque o tio foi atendido
com um quadro de infarto, o que cardiologia tem a ver com
endoscopia?
Antes de ser bombardeada por perguntas, a mulher pediu licença e
saiu. Aquele homem voltou a abraçar Raissa, tia Thaís estava desolada
na cadeira com a vizinha, e eu me afastei. Minha mente parecia um
turbilhão. As horas corriam devagar. Depois de muito tempo,
finalmente recebemos autorização para vê-lo. A visita teria que ser
rápida, pois só era permitido um acompanhante.
— Pai! O senhor me dá cada susto, seu velho bobão – disse Raissa
assim que entrou no quarto.
— Ainda não foi dessa vez! – Ele brincou.
Tio João estava bastante abatido e sonolento, provavelmente efeito
das medicações. Ele também tinha dificuldade para respirar, então
usava uma máscara de oxigênio. Algo me inquietava. De repente, senti
um toque no meu ombro, e o gesto me assustou.
— O que você tem? – Ela perguntou baixinho. – Você está
estranha.
— Tem alguma coisa errada – disse prontamente. – Preciso falar
com o médico, Raissa, não é comum realizar uma endoscopia assim do
nada.
— Como assim?
— O tio veio aqui com sintomas claros de infarto do miocárdio,
que é a necrose de uma parte do músculo cardíaco causada pela falta de
irrigação sanguínea ao coração. A dor fixa no peito, o ardor no peito,
muitas vezes é confundido com azia. O tio vive comendo comidas
gordurosas, sem falar do excesso de cigarros. Ainda associando ao
excesso de peso, não seria incomum para ele a possibilidade de isso
ocorrer – falei, percebi que Raissa me escutava com atenção, então
continuei: – Contudo, por que fazer uma endoscopia? Não se encaixa.
O tio nunca teve problemas no estômago antes.
— Não que a gente saiba. – Raissa corrigiu. – Painho é um turrão,
pior que uma criança. Nem mesmo minha mãe consegue convencê-lo a
fazer meros exames de rotina.
Soltei o ar com força, estava tão submersa nessa angústia que não
parei para lhe oferecer um pouco de conforto. Meu objetivo era abraçá-
la, mas recuei ao sentir os olhos do Guilherme sobre nós. Três pessoas
de jaleco entraram no quarto, uma delas eu reconheci, era a médica da
emergência. Essa, em especial, segurava uma prancheta com papéis
fixados, e minha atenção se deteve ali. Senti um frio na espinha. Numa
atitude totalmente impetuosa, arranquei dela e folheei o conteúdo.
Minha atitude foi tão inesperada que todos me olharam estupefatos.
Após meus olhos passearem pelos papéis, levantei o rosto e os devolvi
à moça.
— Rê – chamou Raissa, surpresa pela minha atitude.
Senti um bolo na garganta, e meus olhos se encheram de lágrimas
instantaneamente. Quando olhei para o tio deitado naquela cama de
hospital, de repente minhas dores voltaram na velocidade da luz. Um
misto de imagens, sons, conversas vieram até mim de uma só vez.
Tentei controlar, mas Raissa me conhecia. Eu levei minha mão à cabeça
e tentei aplicar o exercício que meu médico tinha me ensinado. Eu
fechei os olhos com força, enquanto um filme em alta velocidade
passava em minha retina até estancar, daquele jeito brusco que já
aprendi a conviver. Não sei quantos minutos se passaram.
— Você teve um gatilho? – perguntou Raissa, aflita.
Os médicos tentaram me ajudar, mas eu os repeli. Raissa, que já
estava acostumada, me levou para um canto do quarto e me envolveu
num abraço apertado, o primeiro daquela terrível noite. Me afoguei em
seu pescoço e comecei a chorar baixinho.
— Não foi apenas um ataque cardíaco. – Eu disse. Ela se afastou de
imediato. Eu tinha sujado sua camisa de sangue. Naquele dia, Raissa
tinha ido trabalhar com uma saia lápis e camisa listrada vertical, com
manga bufante e de coloração azul. Sempre que os gatilhos eram muito
fortes, era comum expelir sangue pelo nariz.
— Renata, do que você está falando? – Foi a tia Thaís que
perguntou.
— Você é médica? – perguntou uma doutora mais velha, em seu
jaleco tinha gravado Dra. Josélia L. P. Sampaio e sob o nome:
Cardiologista.
— Meu Girassol, você está bem? – perguntou o tio com a voz
fraca. Perdido naquela tensão.
Eu limpei o resto de sangue do meu nariz com minha própria blusa,
me aproximei da cama e segurei delicadamente suas mãos
rechonchudas. Não queria perdê-lo. Tio João era como um pai para
mim, e a possibilidade de perdê-lo me deixou sem ar.
— Alguém pode explicar o que está acontecendo? – A voz grave
de Guilherme se fez presente. – Doutora, pode explicar exatamente o
que meu sogro tem?
Senti um frio na espinha ao ver a forma como ele se referiu ao tio.
Raissa me olhou no mesmo instante.
— Boa noite, me chamo Josélia Sampaio, sou cardiologista e esse é
o Dr. Leandro Soares – apresentou a mulher.
— Os exames demonstraram… – iniciou a médica, passando a bola
para o outro doutor.
Meu estômago se contraiu e me senti paralisada. A única voz que
soava naquele quarto era daquele doutor, cuja especialidade era
oncologia. Meu peito batia devagar, porém forte, tão forte que chegava
a doer.
— Vocês estão mentindo – disse tia Thaís, desabando no choro
quando o médico terminou.
Raissa foi amparada pelo Guilherme, e eu busquei o rosto daquele
senhorzinho sorridente, ele sorriu fraco para mim.
— Em que estágio? – perguntei diretamente ao médico.
— O câncer está em estágio três metastático.
— Meta… o quê? – perguntou Guilherme.
— Metastático é quando as células cancerígenas migram do seu
ponto de origem... – Eu não sentia as palavras saírem da minha boca,
elas apenas saíam. E não havia nada condescendente em minha voz.
— Exatamente isso – concordou o oncologista, após a minha
explanação. – O câncer no esôfago está se espalhando para o estômago.
— Mas não é só isso, não é?! – falei, agora olhando diretamente
para a médica mais velha. Ela sentiu meu olhar.
Raissa soltou-se do Guilherme e veio em minha direção.
— Por que está falando essas coisas? Como sabe de tudo isso?
— A pré-OP ECO[7] mostra que a válvula da aorta dele está
sangrando. – Eu disse.
— Você é médica? – A voz da mulher se fez presente, mas não lhe
respondi, afinal, cinco meses se passaram e eu nem sabia meu nome.
— A única chance de ele conseguir se submeter a uma cirurgia de
remoção do câncer é se conseguir sobreviver a uma cirurgia de válvula.
Em palavras simples, será preciso fazer um reparo na válvula doente,
ou até mesmo, uma troca, neste caso por uma prótese mecânica ou
biológica – continuei falando.
Minhas palavras saíram tão frias, que senti uma imensa raiva de
mim mesma. Como poderia dizer aquelas coisas? Como sei? Mas algo
no meu íntimo gritava aquelas informações.
— Ela está errada, não está? Ela não sabe o que diz – reclamou
Guilherme. – Você está assustando-as.
Havia muita tensão naquele quarto, os dois médicos e a residente
olhavam para mim confusos. Tomando as rédeas da situação, a
cardiologista tomou a palavra.
— Ela não está errada, eu sinto muito. – Primeiramente disse. –
Seu coração mostra que sua válvula está debilitada e sangrando, é
preciso trocá-la. Quando conseguirmos dar estabilidade ao seu coração,
será possível fazer a cirurgia de remoção do câncer. – Ela tocou
delicadamente o antebraço do tio. Foi um gesto de sensibilidade e
empatia. – Senhor João, seu quadro é muito delicado, preciso que
descanse, pois amanhã faremos os exames pré-operatórios. Quanto
antes fizer a cirurgia cardíaca, mais chances terá com a posterior.
Ainda impactados, apenas Guilherme falou.
— Obrigado, doutores.
Os médicos pediram licença e saíram. Eu fiz o mesmo. Precisava
respirar. Caminhei o mais rápido que minhas pernas conseguiram para
fora do hospital. Sentia-me sufocada, não conseguia compreender como
fui capaz de dizer todas aquelas coisas e de uma forma tão fria. Sentei
no meio-fio da calçada e desatei a chorar. Aquela dor insuportável
voltou para me fazer companhia, não tentei lutar contra aquilo, apenas
baixei a cabeça e esperei ela me possuir. E mais uma vez fui
espectadora de um filme que só minha cabeça conseguia reproduzir.
Me via em um auditório lotado, mas eu estava sentada logo nas
primeiras fileiras. As luzes eram direcionadas para um palco a poucos
metros de distância. Havia uma mulher madura, de pele marrom,
vestida em trajes elegantes. Seus cabelos eram escuros e
encaracolados. Ela estava participando de uma mesa redonda, e o
tema em questão era Cardiopatia Congênita.
Voltei ao quarto alguns minutos depois. Encontrei o tio sozinho.
— Cadê todo mundo?
— Foram falar com a equipe médica – disse tio João. Me
aproximei e beijei carinhosamente o topo da sua cabeça, em seguida
sentei ao lado de sua cama. – Me sinto como um carro velho numa
oficina, meu pequeno Girassol – falou docemente. – Passamos a vida
fazendo o possível para não levá-lo a uma revisão, ou maquiamos o
problema, no entanto, uma hora ele dá pau. Quando isso acontece,
vamos na certeza de que é um problema no carburador. – Ele sorriu
fraco. – Para a nossa surpresa, descobrimos que além do carburador,
temos sérios problemas no motor.
E o bolo na garganta voltou. Olhei no fundo daqueles olhos cor de
azeitona, foi impossível não lembrar da sua filha, Raissa tinha tanto do
pai. A relação que ambos tinham mexia comigo de uma forma que me
gerava inveja, mas não uma inveja ruim, pelo contrário, era uma inveja
de querer construir aquilo.
— Ainda bem que o senhor não é um carro velho – rebati.
— O tio aqui é sim, meu Girassol. Por causa de um prato de
calabresa e alguns cigarros, vim parar no hospital. Enquanto meu Lírio
– era como se referia a sua companheira – e minha Margarida, – era
como se referia à filha – sempre cuidaram do corpo, não apenas por
vaidade. Eu nunca me preocupei com isso. Já era casado com a mulher
mais linda do meu planeta, porque ia me preocupar com os quilos a
mais que fui acumulando ao longo dos anos. – Ele soltou o ar com
força. – Sempre fumei, bebi e principalmente comi sem me importar no
mal que essas coisas me causavam. Agora com quase sessenta anos,
descubro que tenho um câncer e ainda por cima que meu coração está
jorrando sangue, igual quando abrimos uma lata de cerveja, após agitá-
la.
— O senhor vai ficar bem, é comum a troca da válvula aórtica.
Com seu coração em estabilidade, poderemos cuidar do outro problema
com mais segurança.
— Renata, foi muito acertada a decisão que minha Margarida fez,
te amo, minha filha. Eu e a Thaís somos gratos por ter mais uma flor
em nosso jardim.
Escutar suas palavras foi demais para mim, eu levantei e, como
uma criança pequena, me joguei em seus braços. Eu amava aquele
homem como um pai, amava aquela família como minha. Aqui eu me
pertencia.
◆◆◆
CAPÍTULO 27
Aceite o fim
Raissa saiu do hospital entorpecida. Como poderia algo mudar
assim em ínfimo segundo? Apesar de toda aquela tensão, algo não
havia mudado dentro da advogada. Guilherme as levou para casa, no
final daquela noite. Quando o carro foi estacionado, Renata disparou
um “obrigada” e desceu do veículo rapidamente. Já sozinhos, o
advogado tentou:
— Raissa, sobre nós…
— Quero agradecer por todo apoio que nos deu hoje – disse,
interrompendo-o. – Quanto a nós, minha decisão continua sendo a
mesma, Guilherme.
Ela disse olhando em sua íris castanha. Não queria deixar margem
para esperança. Era hora de aceitar o fim.
— Amor, tenha calma, você precisa de tempo… – Ele tentou.
— Não, Guilherme – rebateu calmamente. – Vamos ser adultos.
Vamos terminar enquanto ainda existe uma pequena consideração entre
nós. Falhamos um com o outro. Deixamos de ser um casal a partir do
momento que deixamos de nos respeitar.
— O problema é que eu te amo, Raissa. Eu prefiro passar por cima
do meu orgulho a te perder.
Raissa sentia-se cansada, ela não queria dizer aquilo, mas precisava
que ele aceitasse o fim. Ela soltou o ar devagarinho, fitou o rosto
daquele homem que amou por tanto tempo e disse:
— Eu me apaixonei por ela – confessou. Sua intenção não era
magoá-lo, mas ela queria ser sincera.
Uma onda de irritação perpassou pelas íris castanhas. A mandíbula
estava cerrada, e Guilherme segurou o volante com força, numa
tentativa de conter a própria raiva. Raissa sentiu uma pontada de medo
começando a pinicar. Talvez tivesse sido dura demais ao jogar aquela
verdade tão crua, mas a morena estava cansada e dolorida para ser
sensível como sentimento do seu ex-parceiro.
— Enviarei suas coisas pelo motorista. – Ele disse por fim, sem
encará-la.
A morena desceu do carro e caminhou para casa. Ao entrar,
encontrou os braços que tanto precisava.
— Tá doendo, Rê, tá doendo mais que muito.
◆◆◆
CAPÍTULO 28
Quando tudo muda
Meses depois.
Após a turbulência do rompimento, toda aquela tensão começou a
esmorecer. Dias depois do episódio, Guilherme recuperou a sensatez e
tentou se desculpar com o casal, porém, o jovem não foi recebido. João
e Thaís não queriam vê-lo. Em respeito, o advogado se afastou
definitivamente daquela família.
Raissa também resolveu dar uma pirueta em sua vida profissional.
Alguns dias depois, foi sua vez de fechar um ciclo. Doutor Calheiro,
alheio à verdadeira motivação da sua mais brilhante advogada, ficou
chocado ao chegar em sua sala e deparar-se com o pedido de demissão
de Raissa. O homem que sempre admirou o profissionalismo e a
competência da jovem tentou fazê-la retroceder, até lhe ofereceu
sociedade, mas Raissa estava decidida, não só por causa de tudo que
houve com o Guilherme, pois não haveria mais clima para trabalharem
juntos, mas também porque aquele trabalho já não a fazia feliz. Após
findado esse ciclo, ela direcionou toda sua atenção para a recuperação
do seu pai.
João seria o novo protagonista da história. Aquele senhorzinho de
riso fácil e palavras doces lutou bravamente pela vida, passou por uma
delicada cirurgia cardíaca e posteriormente a remoção do tumor. A
família Fernandes passou por muitos altos e baixos ao longo dos meses
que se seguiram. Mas no fim, ele venceu.
Já a relação entre Raissa e Renata foi muito bem recebida na
família. A cada dia, elas pareciam mais conectadas uma à outra. Era
uma relação leve, pautada em muita cumplicidade, amizade, respeito e
paixão. Amor, bem, amor era uma coisa que ainda precisava criar
raízes. Raissa se apaixonava a cada dia pela moça sem memória que
levou para sua casa, contudo ainda existia aquele: porém, todavia,
contudo e por aí vai. Seus instintos ainda a deixavam na defensiva, a
proibição de amá-la se mostrava presente, mas o que tinham parecia
bastar para as duas, pois o que tinham era o suficiente para fazê-las
feliz.
Até que tudo volta a mudar, porque a vida é assim, nada é
permanente.
◆◆◆
FASE 2
Eu sei que é você
CAPÍTULO 29
Perdas
Existem perdas suportáveis e perdas irreparáveis. É difícil lidarmos
com qualquer uma delas, não importa o apoio da família nem o carinho
dos amigos, nenhuma palavra é capaz de preencher o vazio que fica em
nossa existência. Muitos conseguem prosseguir, outros não. A morte
chegou de forma devastadora na vida da jovem Maria Eduarda, seu
mundo tornou-se opaco e sem vida. A perda prematura da esposa, levou
consigo o que Duda tinha de melhor, sua alegria pela vida. Luiza se foi
deixando a mulher grávida de oito meses e com duas crianças pequenas.
Foram dias escuros para a médica, ela teve que passar por um parto
difícil e uma depressão profunda. Demorou para conseguir lidar com
sua perda. Na verdade, seu coração nunca conseguiu aceitar a morte da
esposa. Por mais que tentasse aceitar o luto, Luiza se mantém viva em
seu coração até os dias atuais.
No campo profissional, a jovem ganhou destaque em sua profissão.
Finalmente acabou de terminar sua residência, onde se especializou em
neurologia. Hoje ambicionava a carreira de neurocirurgia, trabalhava
duro e com muita dedicação, tornou-se assistente do ícone doutor
Romero Dantas. Um velho chato e extremamente exigente, mas era o
melhor no que fazia, tinha reconhecimento internacional e era
considerado um dos melhores neurocirurgiões do país. Há três anos foi
convidado pela dona do hospital para encabeçar uma promissora
pesquisa, que poderia revolucionar a medicina moderna.
Aquela garota que costumava ser tão inconsequente no passado,
tornou-se uma mulher de fibra, uma mãe maravilhosa e uma
profissional excepcional. Duda já não carregava seu sorriso fácil, nem
seu jeito de menina travessa, mas se esforçava para manter sua luz
acesa.
O pequeno João Gabriel cresceu, hoje já era um rapazinho com
onze anos, ao contrário de outrora, era um garoto mais tranquilo, no
entanto não deixara de ser um menino travesso, ora ou outra, vinha com
uma novidade deixando a mãe atarantada[8]. Mas ele era um grande
parceiro para sua mãe Duda, foi ele que esteve lá o tempo todo
segurando sua mão, confortando-a e ajudando-a a voltar à vida. Para a
médica, ele era seu pequeno homem.
A pequena Vitória estava com cinco anos, mas vivia em pé de
guerra com a irmã mais nova Maria Luiza, vulgo, Malu, que era uma
verdadeira terrorista mirim, mesmo ainda tão pequenina.
Maria Eduarda achava uma graça a Malu, era uma mistura
interessante da Duda e da Luiza. Ela herdara os traços da gaúcha, pois
era sua filha biológica, mas a pequena tinha a personalidade da outra
mãe. A garotinha de três anos conseguiu colocar os dois irmãos no
chinelo. E como conseguiu essa mistura? Bem, o casal, na época,
buscou pela segunda vez a participação da versão masculina da Maria
Eduarda, ou seja, o Lucas.
Na primeira gravidez foi Luiza que pediu ao amigo que fosse seu
doador genético. Não só porque o rapaz era seu segundo melhor amigo,
mas porque ele era uma pequena parte da Duda, seu amigo irmão. O
rapaz explodiu de alegria, mas só aceitou, sob a condição de ser pai
também. Assim como foi do filho da Amanda com a Camila. As
meninas o amavam e confiavam nele. Então veio a Vitória, que é uma
garotinha linda, uma cópia fiel do pai. Doce, inteligente, amorosa e
muito sensível. Fisicamente era uma mistura da Duda e do Lucas, pele
morena, cabelos escuros, olhos castanhos, uma graça de menina.
Mas Maria Eduarda queria cinco, esse era o plano, embora só dela,
porque Luiza só concordou com três. Devido ao trauma passado, a loira
não conseguia imaginar passando por uma gravidez, ia muito além do
que seu coração permitia, mas sua mulher queria muito um bebê seu,
então Duda fecundou o óvulo da gaúcha.
— Meu Deus, loira, desse jeito, vou trabalhar apenas para pagar
pensão – brincou o arquiteto. – Caio, Vitória, agora mais um. – Fez uma
cara pensativa. – Sua sorte é que amo ser pai, é lógico que vou fazer a
mistura com você, minha loira lindaaaa – disse, pegando Luiza nos
braços e a rodopiando no ar. Os dois gargalhavam. – Vou amar ser pai
de novo, Isa – disse com alegria e sinceridade. – Ainda bem que minhas
mulheres são todas muito bem financeiramente, então posso espalhar
meus genes nessas famílias lindas à vontade. – Riram juntos.
Assim veio a pequena Malu, a loirinha travessa dos olhos marrons
que Luiza não teve a oportunidade de conhecer.
DIAS ATUAIS
— Vamos, Duda, você precisa sair – insistia Amanda.
— Amanda, estou cheia de paciente, não posso me ausentar do
hospital. Muito menos para pular micareta – respondeu sem tirar os
olhos do computador. – E tem meus filhos, esqueceu? Tenho logo três.
— Nem vem com essa desculpa, tenho certeza que a tia Eduarda
vai amar ficar com meus sobrinhos. Vamos, amiga, você sempre curtiu
micareta. Já fiz nossas reservas. Será sua chance de pegar a ruiva
gostosa – argumentou Amanda, maliciosa.
— Amanda, usando suas palavras – disse Duda, direcionando sua
atenção à amiga. – Eu e a Mariane somos do mesmo espécime –
replicou, revirando os olhos. – E outro detalhe, você sabe muito bem
que ela está com os quatro pneus arriados pela tal da Giovanna.
— Meu Deus, o que está acontecendo com essas mulheres? –
replicou Amanda de um jeito inconformado, mas ela era Amanda, ou
seja, não daria por vencida diante do primeiro NÃO. – De toda forma, a
Mariane ainda está solteira, e você também. Ela é toda perfeitinha, bem
seu estilo. Vocês fariam um belo casal.
— Mariane é minha amiga, então pare de me jogar para cima dela
– reclamou Duda, impaciente.
— Se não quer ela, tudo bem – disse Amanda. – Até porque a
Giovanna vai também, então você não teria a menor chance – disse,
divertida.
Duda rolou os olhos. Sua amiga não tinha jeito, vivia jogando
mulheres para cima dela. A vítima em questão era a Mariane, uma linda
ruiva que trabalhava como psiquiatra no hospital.
— Amiga, a vida não pode ser só trabalhar e cuidar de crianças –
disse Amanda, ternamente.
Duda soltou o ar com força, ela sabia que sua amiga tinha razão,
essa tinha sido sua rota de fuga nos últimos anos.
— Não posso me ausentar por quatro dias – contra-argumentou. –
O tempo de gandaiar passou, está na hora de crescer, Amanda. Já
estamos com trinta anos nas fuças.
— Você fala como uma velha – resmungou a cardiologista.
— E você parece ter dificuldade de largar o osso da adolescência –
disse, ácida.
— Você roía muito esse osso há três anos atrás – rebateu. – Luiza
se foi, mas você continua viva, Maria Eduarda.
A conversa foi encerrada. Duda levantou-se e saiu da sala. A
morena soltou o ar com força, seu coração doía demais ao ver sua
amiga se definhando. Depois da morte da mulher, raramente Duda saía
com os amigos. Sempre arrumava uma desculpa, preferindo sua
solidão. Se relacionar com alguém soava como um absurdo para Maria
Eduarda. Ela sentia necessidade quase obsessiva em ser fiel à memória
de Luiza. Contudo, Amanda não desistiria de trazê-la de volta à vida
social.
◆◆◆
CAPÍTULO 30
O destino
O que você faria se visse alguém que já morreu? Estaria tendo
alucinação? Como isso se explicaria? A vida está brincando com você?
Difícil responder.
A grande custo, Amanda conseguiu convencer sua melhor amiga a
viajar para o estado vizinho no intuito de curtirem o Carnaval fora de
época. Duda não parecia muito animada com os planos das amigas, mas
se livrar da Amanda era mais difícil que ir nessa tal micareta.
Duda bem que tentou resistir, mas sair com sua melhor amiga era
um convite certo para a diversão, então a morena acabou se entregando
à folia. Ela estava no segundo dia de festa, cansada de correr atrás do
trio, por isso resolveu voltar ao camarote. Encostou-se no parapeito e
ficou olhando para a multidão lá embaixo. Sua atenção foi roubada ao
avistar um grupo de pessoas. Havia alguns rapazes e cinco moças, uma
mulher se destacou aos seus olhos, mas a garota estava de costas para
Duda. Sua curiosidade foi tanta que a morena se deslocou em busca de
um ângulo melhor para vê-la. Era uma adrenalina estranha, e, de
repente, a mulher virou o rosto. Duda sentiu uma martelada forte no
peito. Olhou ao redor em busca das suas amigas, mas Mariane,
Giovanna, Amanda e Camila tinham ficado na tenda eletrônica no
interior do camarote.
— Não pode ser… – sussurrou, com os olhos incrédulos voltando a
olhar para o grupo lá embaixo.
Um arrepio percorreu sua espinha, e Duda correu, correu como
nunca tinha corrido antes, descendo escada abaixo. Ao chegar na rua,
atravessou a corda e saiu em disparada, buscando entre os rostos aquele
que jamais se esqueceria. A morena continuou a caminhar, empurrar e
procurar. Suas pernas insistiam, seu coração incentivava, mas seus
olhos não encontravam. Então, veio a dor da perda voltando a se
arrastar para a superfície, e os olhos castanhos ficaram confusos. Será
que estou alucinando?, perguntou-se Maria Eduarda. Contudo, quando
tudo parecia perdido, o destino. Nesse exato momento, Duda passou a
acreditar no destino, pois, pela segunda vez, ele fizera seu caminho se
cruzar com ELA.
A morena caminhou apressadamente até aquela garota que estava
com as mãos nas têmporas e os olhos fechados exibindo uma expressão
de dor.
— Luiza! – disse Duda. Completamente perplexa ao ver a mulher à
sua frente.
Ao escutar aquele nome, Renata, em meio à dor excruciante na
cabeça, abriu os olhos. A loira deparou-se com um par de olhos
castanhos perplexos, eles não piscavam, eles apenas olhavam para ela,
penetrando sua íris negra. O tempo parecia ter congelado, até que a
garota dos cabelos negros falou:
— Você… Luiza, como… – Duda tentou, se esforçou, mas as
palavras não saíram da sua boca.
Renata piscou e olhou para a garota que a abordou. Esses cabelos,
disse a loira de forma inaudível. A dor veio mais forte, seu instinto mais
primitivo gritou: corra. A necessidade primitiva de sobrevivência
assumiu o controle dos seus músculos e, antes mesmo de saber o que
estava fazendo, Luiza/Renata correu, correu para longe.
Duda demorou demais para sair do seu estupor. Quando isso
ocorreu, já era tarde demais. Ela buscou novamente no meio da
multidão, mas não encontrou. Uma hora depois, voltou ao camarote aos
prantos. Duda foi até Camila e a puxou de forma brusca.
— Luiza está viva… Luiza está viva! – gritou.
As quatro garotas lhe olharam assustadas. Amanda pegou Duda
pelo braço e a arrastou para um lugar menos barulhento. Duda parecia
transtornada, gritava e chorava ao mesmo tempo, dizendo que Luiza
estava viva.
— Calma – pediu Amanda. – O que houve, Duda? Que porra você
bebeu?
— Luiza está viva. Eu acabei de vê-la – disse com dificuldade.
Amanda fez cara feia, achou que a amiga estava bêbada ou
drogada. Camila se aproximou. A mera menção do nome da irmã já lhe
causava tristeza. Duda se desvinculou da amiga e buscou os olhos azuis
da cunhada.
— Estou falando sério. Não sei como, mas LUIZA ESTÁ VIVA –
falou pausadamente, tentando controlar o turbilhão de suas emoções.
Camila olhou aflita para a esposa, seus olhos se encheram de
lágrimas e foi automático, Camila era outra pessoa que partilhava da
mesma resistência da Duda. A loira não conseguia aceitar a morte da
irmã. Seu coração não aceitava, para ele, Luiza embarcou numa longa
viagem sem data de retorno, foi só assim que conseguiu superar a
depressão que a abateu, após a morte da sua melhor amiga, porque, para
ela, Luiza era mais que sua irmã, era sua melhor amiga.
— Eu vi a Luiza. Juro pelos meus filhos que eu vi a Luiza – disse,
séria.
Amanda já previa o fim daquela noite.
— A Isa morreu, Du…
E quando essa pequena frase era pronunciada, acontecia um
tsunami. Camila e Duda se desintegraram em lágrimas.
— Vamos levar elas para o hotel – sugeriram Mariane e Giovanna
ao mesmo tempo.
E assim foram.
◆◆◆
CAPÍTULO 31
A paciente X
NATAL-RN
Depois do Carnatal, as coisas se agitaram na casa da família
Fernandes. Renata passou a ter pesadelos constantes e sua hemorragia
se agravava. Mesmo assim, a loira se recusava a viajar até o estado
vizinho para se consultar com o especialista indicado por seu
neurologista. Seu coração estava inquieto. Só de pensar em ir, algo
dentro de si a angustiava, porém Raissa estava irredutível e ameaçou
romper com a loira, caso ela não aceitasse ir. Com medo de perdê-la,
Renata acabou cedendo.
— Vai continuar até quando sem falar comigo? – perguntou a
advogada, enquanto dirigia até o estado vizinho. – Amor! – falou num
tom mais alto, tentando chamar a atenção da namorada, mas, como uma
criança birrenta, a loira aumentou o volume do som do carro. – Estou
fazendo isso para seu próprio bem. Ontem mesmo você passou mal no
conservatório e tive que ir buscá-la.
Renata permaneceu calada, o que a loira não tinha contado à
namorada era que tudo aquilo piorou depois daquela bendita festa de
Carnaval.
Retrocedendo ao dia do Carnatal.
Poucas horas antes de saírem de casa, Renata já começara a sentir
suas dores, mas ela não queria ser estraga prazeres. Raissa era uma
namorada cuidadosa demais, a morena com toda certeza deixaria de ir à
festa, só para ficar com ela em casa, e a loira não achava justo. Então
elas foram. A noite seguia muito divertida, por algumas horas Renata se
esqueceu do que a agoniava e se entregou ao momento. Brincou, pulou,
namorou a cada ida e vinda dos trios. O Carnatal era, de fato, uma festa
muito divertida, até que, em um dado momento, houve uma pequena
confusão entre os foliões. No empurra-empurra, a loira acabou se
perdendo do grupo. E ela foi atingida de uma forma extremamente
violenta pela sensação de déjà vu. Isso desencadeou uma sucessão de
flashbacks de memória, assim a dor veio com força, deixando-a
aturdida. Então veio aquela mulher. Luiza, esse nome penetrou em sua
mente. Quando fixou, a única coisa que Renata queria era fugir, e ela
fugiu para longe dali.
Raissa a encontrou chorando sentada na calçada num ponto de
encontro que o grupo tinha definido, no caso de alguém por algum
motivo se perder. Ao vê-la, a loira se jogou nos braços da morena
implorando para levá-la para longe dali. E assim Raissa o fez. Desde
então, os flashbacks aconteciam com frequência. Algumas vezes, a loira
conseguia controlar, outras nem tanto, mas, a cada vez, a hemorragia da
loira se intensificava e ela desmaiava.
Voltando aos dias atuais.
— Por favor, não fica assim – pediu a morena.
As duas chegaram à cidade do Recife quatro horas depois, ficaram
hospedadas em um hotel à beira mar no bairro do Pina. A ideia de irem
na sexta-feira foi justamente para aproveitarem o fim de semana. Raissa
tinha uma amiga na cidade, então combinaram de dar um rolê pela
cidade. Após se acomodarem, as duas foram se encontrar com um casal
de amigos da Raissa. Débora e Mauro eram um casal muito agradável,
jantaram juntos e marcaram para irem à praia de Porto de Galinhas no
dia seguinte.
Ao final, Raissa acabou quebrando o gelo entre elas. Renata já
estava mais relaxada e curtindo mais a cidade. Elas tinham passado o
dia em Porto, como chegaram cansadas, resolveram não sair à noite. No
domingo, a morena preferiu fazer um programa mais casal. Durante a
manhã, aproveitaram a praia, localizada em frente ao hotel, e, no início
da tarde, buscaram o bairro do Recife Antigo para relaxar. Raissa
conhecia muito pouco da cidade, então, para ela, aquilo era tão
novidade quanto era para sua namorada.
Renata, por sua vez, se sentia muito estranha ao caminhar pelas
ruas daquele bairro tão boêmio. Os prédios antigos, os monumentos
históricos, o clima, a música, tudo lhe parecia familiar.
— Tudo bem? – indagou Raissa, elas tinham parado para assistirem
a um ensaio de maracatu, que acontecia na Rua do Bom Jesus.
— Sinto como se já conhecesse isso aqui – disse. – Podemos ir,
estou cansada.
Raissa sorriu e a beijou nos lábios. Em seguida, voltaram para o
hotel.
— Vamos dar uma caminhada no calçadão – pediu Renata, quando
já estavam na porta do hotel.
A namorada assentiu, e, de mãos dadas, caminharam até a
passagem de pedestre. Raissa parecia distraída olhando para o celular,
enquanto Renata olhava para o fluxo de carros, até que o sinal ficou
amarelo e os carros começaram a parar, foi aí que a loira capturou um
olhar familiar. Os olhos que a fitaram se arregalaram de uma forma um
tanto exagerada. Renata desviou e se deixou levar por Raissa, que a
puxava pela mão para o outro lado da avenida.
Maria Eduarda ficou estupefata, quando parou o carro no sinal de
trânsito próximo a sua casa e viu duas garotas na faixa de pedestre.
Dessa vez, ela não estagnou, num movimento brusco, avançou o sinal e
buscou um lugar para encostar o carro.
— Que diabos está fazendo? – perguntou Camila, assustada com a
empreitada da cunhada.
— É ela, é ela! – gritou Duda, se livrando do cinto de segurança e
destravando as portas. – A Luiza está aqui.
Camila sentiu o coração bater em disparada. Mesmo contra sua
razão, acreditou na cunhada. Repetindo os gestos de Duda, ela se livrou
do cinto e desceu do carro.
— Vamos atrás dessa mulher – gritou Camila, pegando Duda pelo
pulso e a puxando para tentar atravessar a avenida.
As duas conseguiram atravessar e começaram a caminhar pela orla.
Elas buscaram entre os passantes a mulher, porém não a encontraram.
Derrotadas, sentaram num quiosque e pediram duas águas para tentar se
acalmarem. As duas choravam silenciosamente.
— Acho que realmente estou alucinando – disse Duda.
Camila não olhou para Duda porque ela estava em choque. Seu
rosto empalideceu. Duda olhou para a mesma direção que a loira, então
o impossível aconteceu.
— Eu não disse – disparou Maria Eduarda, levantando-se de
supetão.
As duas correram até o meio-fio, porém o dono do quiosque
pensou que elas iriam dar um calote e foi atrás das duas. Houve um
bate-boca. Camila queria correr até o outro lado da pista, onde sua irmã
caminhava para longe. Duda conseguiu pagar o homem, mas o fluxo de
carros não permitiu que elas atravessassem a avenida. Assim, os dois
pares de olhos a perderam de vista. Luiza esmaeceu novamente.
Após ficarem horas rodando pelo bairro, as duas voltaram para casa
desoladas.
— Chega! – gritou Amanda.
Duda e Camila chegaram muito agitadas dizendo que tinham visto
Luiza na praia.
— Nós a vimos! – gritou Camila, muito alterada.
— Duas loucas, não! – gritou Amanda.
◆◆◆
CAPÍTULO 33
Meu nome é Renata Fernandes
◆◆◆
CAPÍTULO 34
Eu sei que é você
— Eu sei que é você. Você é Luiza – gritou Duda, agitada demais.
Afinal, estava diante da sua esposa morta.
Raissa percebeu que a loira começou a sentir dores. Mesmo
confusa, seu instinto de cuidado emergiu. Temendo que algo
acontecesse à namorada, a advogada saiu arrastando aquela médica para
fora da sala. Duda tentou impedir, contudo Raissa era mais forte.
— Você está assustando-a – gritou a advogada. – Fica calma –
pediu.
Duda tentou se controlar. A médica inspirava e expirava
vagarosamente. Aos poucos, foi se acalmando. Ao perceber que a
jovem estava mais calma, Raissa soltou seus braços. Os olhos verdes-
oliva fitaram o rosto da mulher à sua frente. Duda fez o mesmo. Ainda
com o coração martelando, a neurologista perguntou:
— Por que você agarrou minha mulher? – perguntou Maria
Eduarda, com os castanhos raivosos.
Raissa deu alguns passos para trás em busca de espaço, não porque
sentiu-se intimidada pela garota, mas porque aquela frase foi um soco
no seu peito, e doeu. A morena, ainda impactada com o que acabou de
ouvir, respondeu à altura.
— Renata é minha namorada – disse sem titubear.
E o espírito briguento e ciumento da Duda foi tirado de trás da
porta e devolvido de volta ao seu corpo. A morena cerrou os punhos e
trincou os dentes.
— Então foi você que roubou minha mulher? – disparou, indo para
cima da advogada.
Raissa a segurou pelos pulsos e foi obrigada a agir com
brutalidade, empurrando Duda até a parede, prendendo-a lá, enquanto a
outra se debatia tentando se soltar.
A confusão corria feito rastro de pólvora pelos corredores do
hospital, Andréia corria com dificuldade devido aos saltos sob os pés.
Ela havia sido chamada pelo colega. O coração da médica só faltava
sair pela boca.
— O que está acontecendo aqui? – gritou a diretora ao ver sua
afilhada sendo encurralada por uma mulher.
— Luiza está viva, Luiza está viva – gritava Duda.
Raissa continuou segurando a médica. Andréia tocou em seu
ombro.
— Por favor, solte-a – pediu a mais velha. – Duda não vai
machucá-la.
Raissa pareceu hesitar, mas acabou cedendo. Duda, ao ser solta, se
jogou nos braços da tia, chorando e dizendo que Luiza estava viva. Foi
naquele instante que a advogada soube que acabara de encontrar
alguém do passado da garota sem memória. “Duda” o mesmo nome
tatuado na virilha da loira. Raissa se afastou, todo seu corpo tremia.
— Era para ser apenas uma consulta – sussurrou Raissa, confusa,
assustada e amedrontada.
Andréia afastou-se da afilhada e se apresentou para a desconhecida.
— Sou a Dra. Andréia Queiroz, diretora desse hospital.
— Se alguma coisa acontecer a minha namorada, vou processá-los
– disse Raissa, tomando a defensiva. Os olhos da advogada se
encheram de lágrimas e sua voz começou a sair embargada. – Será que
a senhora pode me explicar o que está acontecendo?
Ver aqueles olhos chorosos trouxe Duda à realidade, lembrou-se
que a paciente X tinha perda total de memória. Naquele tsunami de
emoções havia se esquecido do seu estado de saúde. Era perceptível que
aquela mulher realmente parecia preocupada com a Luiza, constatou
Maria Eduarda.
— Preciso vê-la – disparou, deixando as duas mulheres no corredor
e voltando ao consultório.
Quando Raissa voltou ao consultório, encontrou Renata sentada no
estofado chorando. O peito da morena doeu, então se aproximou e a
abraçou com todo amor e cuidado que sentia.
— Me tira daqui, me tira daqui – implorava a loira.
— Que tipo de hospital é esse? Quem é essa Luiza? – perguntava a
advogada.
Antes que o médico respondesse, Andréia entrou no consultório. A
cardiologista quase caiu para trás quando seus olhos pousaram na
jovem abraçada a Raissa. Se não era Luiza, era alguém
assustadoramente idêntico a ela.
— Que bom que chegou – disse o médico tão perdido quanto as
duas mulheres que chegaram a sua sala.
Quando Renata levantou os olhos e fitou a mulher, algo aconteceu.
— Eu já vi você – disse Renata, reconhecendo a mulher do seu
sonho, a que participava da mesa redonda de um evento sobre
medicina. – É ela, Ray, a do meu sonho – disse.
Veio o grito, o sangue e o apagão. Renata acabou sendo submetida
a um atendimento de emergência pelo doutor Dantas. Raissa esperava
angustiada na sala de espera. Sua cabeça estava um turbilhão, sentia-se
com medo e sozinha.
— Não se preocupe, ela está sendo atendida pelo melhor
neurocirurgião do país – disse Andréia.
Raissa não conseguia articular uma conversa. Quando o médico
apontou na sala, a advogada correu até ele.
— Como ela está? – perguntou, apreensiva.
— Está bem, mas tive que sedá-la. Vamos mantê-la em observação.
— Quero vê-la.
— Raissa – chamou a cardiologista. – Esse é seu nome, não é? –
perguntou. A morena assentiu. – Sei que o momento é muito delicado,
mas precisamos conversar com você.
— Vou chamar a polícia para te prender, sua ladra de esposa –
disparou Maria Eduarda, caminhando em direção à advogada, mas foi
segurada pela tia.
Raissa encarou aqueles olhos sem medo.
— Não sei quem são vocês, nem quem é essa Luiza, mas se não me
deixarem ver a Renata agora, irei chamar as autoridades e abrir um
processo contra esse hospital – disse, fria.
— Srta. Raissa, venha comigo – chamou o médico.
O hospital ficou numa agitação daquelas. Os boatos de uma Luiza
viva correram feito rastro de pólvora. De repente, Camila, Amanda e
Heloísa apareceram todos ao mesmo tempo. Andréia tinha dificuldade
de lidar com a situação, até porque não sabia de nada ainda. Só sabia
que existia uma mulher idêntica à sua antiga aprendiz.
Raissa não deixou que ninguém, exceto o doutor Dantas, se
aproximasse da loira, que permanecia desacordada, devido ao forte
calmante que teve que tomar. A morena sabia que precisava enfrentar as
pessoas que estavam do outro lado da porta. Ao menos, aquelas horas
que passou ali, observando sua namorada dormindo, ajudou a acalmá-
la. O médico garantiu que ninguém, exceto ele, entraria naquele quarto.
Tomando coragem, Raissa saiu. Estava disposta a ouvir o que aqueles
estranhos tinham a dizer. Por que ficaram tão impressionados com a
Renata?
Chegando ao corredor, diversos pares de olhos foram em sua
direção, mas apenas um se destacou. Raissa sentiu-se aturdida. Eles
eram tão escuros quanto os da moça que dormia a poucos metros dali.
Heloísa sentiu um comichão no corpo ao sentir aqueles olhos verdes-
oliva fixados nos seus. Raissa se aproximou da mulher sem hesitar.
— Seus olhos são parecidos com os dela – disse a jovem.
Heloísa deu alguns passos para trás, Raissa mantinha o contato
visual muito intenso, realmente impressionados.
— Raissa, essa é Heloísa – disse Andréia, quebrando o momento.
Raissa piscou algumas vezes, sentiu-se atordoada, lembrou-se de
que esse mesmo nome foi mencionado meses atrás por seu amigo, no
dia que Danilo socorreu a Renata. As peças do quebra-cabeça pareciam
começar a se mover, mas não parava por aí. Outra pessoa estourou na
retina da advogada, essa chegou a ser mais impressionante. Novamente
aproximou-se de outra estranha, só que dessa vez, ela tinha o mesmo
tom de pele, cor de cabelos e traços muito, muito parecidos.
— Você se parece com a Renata – disse Raissa, olhando para
Camila.
— Foi você que vimos ontem com minha irmã, no calçadão do
Pina.
Raissa assustou-se com aquela informação.
— Srta. Fernandes, realmente precisamos conversar com você –
disse Andréia. – Mas esse corredor não é o lugar indicado, quero pedir
que nos acompanhe – pediu a diretora.
Raissa concordou, e todos se dirigiram à sala de reunião. Ela estava
muito perdida no meio daquelas pessoas, então dirigiu a palavra à única
pessoa naquela sala que lhe inspirava segurança.
— Eu não sei o que está acontecendo aqui. Eu trouxe minha
namorada para uma avaliação...
— Ela é minha esposa – gritou Duda, que estava quase dopada de
calmante, devido ao seu estado nervoso.
Raissa a ignorou e continuou:
— Trouxe minha namorada, porque doutor Dantas foi uma
indicação do seu médico. Não fazemos ideia de quem seja essa Luiza.
— Luiza é minha filha – A voz de Heloísa se fez presente.
Raissa sentiu um badalo no peito. A mulher caminhou em sua
direção e lhe estendeu o próprio aparelho celular. A tela de bloqueio era
uma foto dela com seus quatro filhos. Raissa arregalou os olhos
surpresa. Era exatamente a imagem da Renata quando a conheceu. Os
longos cabelos loiros, a pele translúcida. Não parou por aí. Camila abriu
sua rede social e estendeu seu telefone à morena. Dezenas de fotos das
duas loiras juntas, tão parecidas, mas precisava da última instância
sacramentar. Foi a vez de Duda levantar-se e entregar seu próprio
telefone. Raissa olhou com calma, como se estivesse analisando um
processo. Ao final, devolveu o último aparelho. A morena sentiu uma
certa emoção após três anos. Quando já não procuravam, encontrou a
família da loira.
— Houve um acidente – iniciou a advogada.
Raissa contou exatamente como tudo aconteceu, cada mínimo
detalhe, até mesmo sua parcela de culpa. Todos estavam atentos.
Centenas de perguntas brotavam em suas cabeças, mas muitas ficariam
sem resposta.
— Eu só parei de procurar quando Renata pediu. Ela construiu uma
nova vida. – Raissa começou a chorar, contando um pouco sobre a vida
atual da namorada.
— Ela sempre foi apaixonada pelo piano – disse Heloísa,
emocionada. – Aprendeu a tocar aos seis anos.
Raissa olhou para mulher de olhos escuros e sorriu.
— Nossa mãe é artista plástica – disse Camila.
— Explicado todas as suas habilidades e conhecimentos. Renata é
impressionante. Inteligente, dedicada, sensível. Um ser humano lindo –
disse a morena com ternura.
— Hora de saber o nosso lado da história – falou Amanda.
Pelos longos minutos que se seguiram, Raissa soube o que
aconteceu com a Renata. O congresso, o suposto acidente e a morte da
loira. Depois dessa troca de informação. Pediram para vê-la.
— Não! – disse Raissa.
— Como não? Ela é minha irmã – replicou Camila.
— Para a Renata, vocês não passam de desconhecidos. Ela está
doente e assustada, não vou arriscar sua saúde.
— Ela tem razão – concordou Amanda. – O quadro clínico da Isa é
mais delicado do que vocês imaginam.
— Ela sofre de uma amnésia rara – disse Duda, ganhando a atenção
de todos. – Luiza perdeu toda sua biografia. A probabilidade de ela
voltar a nos reconhecer numa escala de 0 a 10, eu diria que 2.
— Somos sua família – falou Heloísa, inconformada e chorosa.
— Preciso voltar ao quarto. Se ela acordar e não me ver, pode se
alterar.
— Precisamos vê-la – pediu Heloísa, segurando Raissa
delicadamente pelo pulso. – Preciso ver se essa moça é realmente
minha filha, por favor, Raissa.
A morena soltou o ar com força.
— Apenas você – disse, saindo imediatamente daquela sala.
As duas mulheres caminharam lado a lado até o quarto da loira. Era
estranho, Heloísa era uma mulher alta, com feições delicadas e
pouquíssimas marcas de expressão. Parecia jovem demais para ter uma
filha da idade da Renata, apesar de que a advogada não sabia a idade
exata da loira.
— Qual a idade da sua filha? – perguntou a morena de supetão.
Heloísa parou e virou-se para jovem ao seu lado, pareceu confusa
com a pergunta. Sentir aqueles olhos escuros a encarando fez a mais
nova corar.
— Camila está com vinte e quatro anos, e a Luiza, trinta e dois –
respondeu.
Raissa deu um sorriso sem graça e voltou a andar. Se sentiu uma
idiota perguntando aquilo, mas ficou surpresa em saber que Renata era
mais velha que ela, embora houvesse uma diferença entre as duas de
apenas dois anos. Quando chegaram em frente ao quarto, Camila vinha
correndo, ela respirava com dificuldade.
— Também preciso vê-la – disse a loira.
— Não sei se é uma boa ideia – alegou a advogada, mas a loirinha
lançou um olhar de gato de botas. — Você está usando o mesmo
artifício da Rê quando ela quer algo, sabia? – disse, fingindo uma
repreensão. Foi automático, as duas gaúchas sorriram ao mesmo tempo.
Era o primeiro sorriso daquele estranho dia.
Raissa acabou permitindo a entrada das duas, mas entrou no quarto
primeiro. Olhou para a namorada que permanecia dormindo. Raissa
ainda não sabia o que pensar disso tudo. Em seguida, ela voltou à porta
e pediu que entrassem.
O reencontro foi muito emocionante. Bastou os olhos escuros da
artista plástica pousarem na garota adormecida na cama, para ter
certeza de que era sua filha. Camila chorava e ria ao mesmo tempo.
— É minha filha, é minha filha – dizia Heloísa, convicta.
— Tem certeza? – perguntou a morena, incerta, embora começasse
a acreditar que aquelas pessoas eram parentes da Renata.
— Tenho, sim. – Heloísa aproximou-se da cama e começou a
acariciar os cabelos da filha. Raissa só pediu que elas não a acordassem,
pois tinha medo de uma reação negativa da loira. As duas não saíram
daquele quarto por nada no mundo. Raissa até gostou, porque acabou
conhecendo um pouco a história da moça sem memória. Descobriu que
além da Camila, Luiza tinha mais dois irmãos que atualmente estavam
morando fora do país. Descobriu também que de fato era uma médica,
ou melhor, uma cirurgiã cardiotorácica. Nesse momento, Raissa contou
como aquela garota salvou a vida do seu pai e a eterna gratidão que sua
família tinha por ela.
— Minha irmã é casada, sabia?! – informou Camila, certo
momento.
— Eu e Renata não somos apenas amigas – falou, encarando os
olhos azuis a sua frente. – Temos um relacionamento já algum tempo –
esclareceu.
— Impossível. Isa é completamente apaixonada pela Maria
Eduarda. Nunca se casaria de novo. Além do mais, ela tem três filhos
com Duda – retorquiu.
Aquilo pegou a morena de surpresa, não a questão do casamento,
pois já tivera o prazer de conhecer sua “rival”, mas saber que Renata
havia deixado três crianças para trás lhe causou aperto no peito. Então,
a velha sensação de culpa voltou a se arrastar por dentro de si.
— Camila – interveio Heloísa, percebendo a reação da morena. –
Desculpe, Raissa. De todos os meus filhos, a Camila é a que menos tem
filtro.
Raissa sorriu timidamente. Heloísa não era de falar muito, mas,
quando falava, sua voz era penetrante e melodiosa. Raissa a fitou com
curiosidade, buscava semelhança entre a sua namorada e aquela mulher,
mas a única que encontrou foi seus olhos. Voltando a encarar a sua
possível cunhada, Raissa pontuou:
— Pode até ser, Camila, porém Renata, não. É bom que antes
mesmo de ela acordar, vocês tenham em mente uma coisa, Luiza, para
Rê, é apenas um nome. A pessoa que ela foi, a história que ela viveu,
tudo foi apagado da sua mente. Renata construiu outra história,
entende? E outra coisa, antes de jogar essa Luiza sobre seu colo, é
preciso ter certeza que ambas são a mesma pessoa.
— Eu não tenho dúvida alguma que ela seja minha filha, Raissa –
afirmou Heloísa.
— Não me entendam mal – pediu. – Só que a situação é muito
novelística. Meu Deus! Vocês enterraram um corpo. A situação por si
só é inverossímil – falou com sinceridade.
— Um DNA resolve – disse Camila. – Mamãe está aqui, Isa tá
aqui. Vamos fazer um exame de DNA agora mesmo.
— Por mim, tudo bem – concordou Heloísa.
— Não tenho esse poder de decisão, cabe a Renata...
— Raissa – replicou Camila, impaciente. – Quem parece precisar
de provas que somos a família da Luiza é você. Pouco me importa o
mistério de como isso é possível, o que importa é que ela está aqui,
viva, em carne e em osso.
— Tudo bem, vamos fazer o DNA – concordou a morena.
Camila levantou-se no mesmo instante, saiu do quarto e foi atrás da
esposa para fazer o teste, embora não tivesse a menor dúvida de que
aquela era sua irmã, sua Isa.
◆◆◆
CAPÍTULO 35
Luiza Lafaiete
◆◆◆
CAPÍTULO 36
Visita inesperada
◆◆◆
CAPÍTULO 38
As visitantes
A casa dos Fernandes estava bastante agitada. Dona Thaís andava
de um lado para o outro dando ordem aos três. Queria a casa impecável
enquanto ela preparava o almoço para receber as visitas. Ao contrário
do que combinaram, mãe e filha, duas penetras, resolveram se convidar
para o almoço. Preocupada com a reação da filha, Heloísa ligou para a
nora, explicando a situação, e lhe pedindo que ajudasse com a Luiza.
Raissa, como sempre, foi muito simpática e atenciosa, informou que
não se preocupasse, pois todas seriam muito bem recebidas em sua
casa.
— Mãe, a senhora fez a gente faxinar tudo ontem – reclamou
Raissa.
Raissa foi ignorada pela mãe, resignada foi fazer a última vistoria
no imóvel. Luiza e João estavam jogados no sofá conversando
amenidades quando a advogada se aproximou.
— Vocês ficam aí de boresta[11], enquanto eu sou obrigada a limpar
pela décima vez o que já está limpo – reclamou, se jogando no outro
sofá.
— Não conhece sua mãe? Quer causar boa impressão – disse João.
— Tio, mamãe acabou de dizer que estão saindo do hotel – avisou
Luiza despreocupadamente.
Raissa levantou-se de sobressalto. O combinado era para que a
visita chegasse por volta do meio-dia, e não eram nem dez horas da
manhã.
— Você não é doida, mainha vai surtar – avisou a morena.
— O tio sugeriu de mostrarmos nosso trabalho na estufa, e a
mamãe ficou bastante interessada.
Raissa correu para o interior da casa. Luiza e João escutaram os
berros em reclamação da dona Thaís, que acabou optando por comprar
o almoço em um restaurante que tinha confiança. Assim teria tempo
para dar atenção às visitas. Raissa e a mãe tomaram um banho rápido e
se arrumaram. Pouco tempo depois, a campainha tocou, Luiza correu
para abrir a porta.
— Como é bom vê-la, mãe – disparou a loira, abraçando
impetuosamente a mãe.
Heloísa ficou surpresa em receber um carinho tão impetuoso da
filha, já que antes esse tipo de demonstração de afeto era um tanto
contido, devido às amarras do passado. Porém, a gaúcha correspondeu
àquele carinho com lágrimas nos olhos. Abraçou longamente a filha e
lhe deu um beijo terno no rosto. Após se afastarem, foi a vez da Camila,
que agarrou a irmã como se tivesse medo de que ela fosse embora.
— Como você está, guria? – perguntou Luiza.
— Feliz, muito feliz – disse a loirinha, enxugando o rosto.
Luiza direcionou sua atenção para a outra garota, algo nela a fez
sorrir. Isabella estava muito emocionada em ver a prima, Luiza sempre
foi sua melhor amiga.
— Você deve ser a Isabella – disse Luiza.
A outra loira estava tão emocionada que não conseguiu falar, quem
tomou a iniciativa de abraçá-la foi Luiza. Então, Isabella desatou a
chorar. As duas ficaram um longo minuto conectadas uma à outra. Era
estranho, mas aquelas presenças traziam fagulhas de felicidade para a
gaúcha sem memória.
— Vamos entrar, quero que conheça a minha família – disse a loira
com naturalidade.
Luiza conduziu todos para dentro de casa. Ao chegar à sala de
estar, as visitas foram recebidas com três lindos sorrisos. Luiza puxou a
mãe pela mão e apresentou ao casal que lhe deu um lar. Houve muita
emoção no momento, a primeira coisa que Heloísa fez foi agradecer por
tudo que fizeram por sua filha. Em seguida, as demais visitantes foram
apresentadas.
— Meu Deus, nessa família só nascem lindos girassóis? –
perguntou João, divertido, ao avistar as duas loiras ao lado da Luiza,
arrancando risadas de todos.
— Meu pai chama a Luiza de Girassol devido à tonalidade de seus
cabelos – explicou Raissa, sorrindo.
O domingo não poderia ter sido mais gostoso. A loira não
desgrudou das suas visitas, era bonito de se ver.
— Ela parece tão feliz – comentou Heloísa enquanto tomava um
café com a dona da casa. – Eu nunca a vi assim, tão feliz.
— Você tem uma linda menina – disse Thaís com ternura.
As duas mulheres se olharam nos olhos. Os negros da artista
plástica se encheram de lágrimas.
— Agora eu a entendo – disse Heloísa.
Quem pareceu não entender foi Thaís, que franziu o cenho.
— Ela encontrou em vocês o que nunca teve enquanto morou
conosco. – A voz saiu embargada. – Podemos conversar?
De mãe para mãe, Heloísa contou um pouco da história da sua
filha, foi uma conversa sofrida. As horas que passou naquela casa a
fizeram perceber o motivo de sua Luiza ter tanto apego a sua vida
presente. O carinho que aquele casal tinha por ela transbordava em seus
sorrisos, nos olhos e nos cuidados. Luiza estava sendo amada e cuidada
por um pai e uma segunda mãe da forma como deveria ser. Ao invés do
sentimento de amargura, inveja ou culpa, a gaúcha se sentiu apenas
grata. Gratidão por sua filha, pela primeira vez na sua vida, sentir amor
de um pai na forma mais pura.
Thaís sentiu uma forte pontada no peito ao ouvir o relato daquela
mãe.
— Se ela não quer saber, melhor assim – disse a dona de casa, por
fim. – Estou dividindo com você nosso lindo Girassol – falou, tentando
quebrar o clima ruim que se instalou. Depois de toda a revelação de
abusos e infortúnio que aquela jovem passou. – Aquele velho barrigudo
tem um ciúme das suas flores, eu também não fico atrás. – Thaís
segurou as mãos da mulher. – Cuide dela com todo amor que você
sente, é sua segunda chance. Luiza tem um pai agora, um pai que ama e
cuida e que vira um touro bravo se alguém mexer com suas meninas
(filhas).
— Obrigada – agradeceu a gaúcha emocionada.
O domingo rendeu na casa dos Fernandes. As visitas só foram
embora mais dez horas da noite, mas ficou a promessa de novos
encontros.
◆◆◆
CAPÍTULO 39
Operação trazê-la de volta
Dias depois.
— Fica assim não, Duda – pedia Amanda.
— Desculpa, Du, fiquei tão empolgada com a visita – falou Camila
sentindo-se culpada. Ela tinha contado minuciosamente como havia
sido o reencontro com a irmã, como era a família da Raissa e
principalmente o relacionamento tão cúmplice que as duas pareciam ter.
– Pior de tudo é que a Raissa é uma fofa. Ela e os pais receberam a
gente tão bem.
— Minhas chances com a Isa são as mesmas de ela recuperar a
memória – concluiu, triste, após o relato da amiga.
— Raissa é uma fofa, mas continuo preferindo você como cunhada.
Conhecer o terreno me fez pensar numa forma de trazer a Isa pra cá –
disse Camila.
Amanda e Duda a fitaram com curiosidade. A loira abriu um
sorriso travesso.
— Nunca leram Sun Tzu? Conheça o inimigo e a si mesmo, e você
obterá a vitória sem qualquer perigo; conheça o terreno e as condições
da natureza, e você será sempre vitorioso.” [12] É uma boa cartilha para
ser um excelente advogado – gracejou, vaidosa. – Já era difícil trazer
minha irmã de volta pelas vias normais, imagina depois que a vimos no
domingo. Uma coisa ficou muito clara, Luiza é feliz nessa vida que
construiu. Ela tem uma família adorável, um trabalho pelo qual parece
ter se apaixonado e uma linda Camila Pitanga na cama – provocou. Sua
esposa deu uma cotovelada. Camila nem ligou. – Calma, Ísis Valverde –
brincou com a Duda. – Você me tem no seu time, então a chance de
vitória é alta.
Duda se afundava ainda mais na poltrona, cada palavra lançada
pela cunhada, se via mais distante do amor da sua vida, doía demais
saber que ela era feliz com outra.
— Amor, para de chutar cachorro morto – disparou Amanda.
— Precisamos trazer a Raissa pra cá – disse simplesmente a loira.
— Como se isso fosse fácil! – rebateu, desanimada.
— Então, Raissa é advogada. Uma brilhante advogada. Desde que
voltei, temos conversado bastante sobre carreira e tudo. Ela é uma fera,
assim como você, Duda. Andei investigando a procedência da minha
nova cunhada – falou com certo tom de admiração. – Cara, meu patrão
ficou louco quando mostrei o currículo da Raissa. Ela tem uma boa
experiência na área criminal, já advogou no maior e melhor escritório
de advocacia do Rio Grande do Norte. Tem uma taxa de eficiência de
quase 90%, vocês têm noção do que é isso?
— Pontuar o quanto essa mulher é boa não está ajudando, Mila –
repreendeu Amanda, solidária a sua melhor amiga.
— Foi mal, é que eu não esperava que ela fosse tão, tão. Mas,
enfim, estava eu conversando com o Dr. Pedro, comentei que Raissa
tinha saído há pouco tempo do escritório porque estava querendo novos
desafios, o instiguei o suficiente para ele convidá-la para trabalhar
conosco.
Duda arregalou e se empertigou no assento. A intenção da Camila
acendeu como uma lâmpada em seu intelecto.
— Será que ela aceita? – perguntou, sentindo uma pontada de
esperança
— É o que espero. Eu mesmo digitei o convite. Raissa já deve ter
recebido. Em questão de tempo, teremos uma resposta.
— Você está contando com o ovo no fiofó da galinha – replicou
Amanda com os pés no chão. — Amanda tem razão, se ela
não aceitar? – indagou Duda, desanimando de novo.
— Impossível não aceitar. Afinal, estamos falando de Dr. Pedro
Moraes, e outra, minha sogra vai dar aquela forcinha junto com o Dr.
Dantas. Luiza precisa ter um acompanhamento que só o Hospital La
Esperanza oferece. Tudo isso vai pesar.
O que a loira falou fazia sentido. Se a mudança realmente
ocorresse, Maria Eduarda teria uma chance.
Natal-RN
Raissa ficou surpresa quando recebeu uma carta de um
determinado escritório de advocacia. Leu atenciosamente o conteúdo
que, além de elogios ao seu trabalho, a convidava para uma reunião.
Intrigada, acabou aceitando, já que seria por videoconferência. No dia
marcado, compareceu à chamada com três advogados, cujo peso no
mundo jurídico ela conhecia muito bem. A jovem ficou lisonjeada com
o convite que recebeu para atuar naquele escritório. O único problema
era que o ambiente de trabalho era situado no estado vizinho. Após o
fim da reunião, buscou os conselhos de sua mãe. Thaís ficou feliz pela
filha. Pelo que entendeu, era uma oportunidade valiosa para a carreira
da advogada, pois ela trabalharia justamente na área que gosta de atuar.
Quando Renata chegou, à noite, a morena abordou o assunto.
— Amor, recebi uma proposta de trabalho.
— Mais uma, você quer dizer – disse, rindo. – Você sempre recebe
proposta de emprego, mas não aceita nenhuma.
— Mas essa é diferente.
— E o que de especial tem nela? – perguntou enquanto terminava
de se vestir. – Você não estava pensando em abrir seu próprio
escritório?
— Então, encarar a burocracia de administrar um escritório não me
agrada. Eu gosto mesmo é de advogar, única e exclusivamente isso.
Uma hora, as minhas economias vão acabar, preciso voltar ao mercado.
Luiza sentiu que naquela conversa tinha muitos: no entanto,
todavia, porém, mas. Sentiu um leve incômodo subir. Isso a fez encarar
seriamente as azeitonas à sua frente.
— Diz logo, Raissa – pediu.
— O escritório que me convidou fica em Recife. É um grande
escritório, assumirei toda parte criminal – contou e esperou reação.
— Nossa vida é aqui – disparou, séria. – Ao longo desse ano, você
recebeu dezenas de propostas de emprego. Tem seus clientes que
insistem que você continue os representando. Por que tem que mudar
para aquela cidade?
— Por causa de você – respondeu, também séria. – Não podemos
tapar o sol com a peneira, seu estado se agrava a cada dia. Os riscos
aumentam cada vez que você tem um gatilho.
— Eu não quero voltar àquele hospital.
— E eu não quero te perder.
Os olhos escuros marejaram e sua voz saiu embargada.
— Por que eu sinto que ir para aquela cidade será nosso fim? Eu
ainda sou sua Raissa.
Raissa sentiu um aperto no peito. Era o que sentia também, mas era
o que seu coração mandava fazer, e, como sempre, a morena respeitava
seus instintos.
Raissa protelou a resposta por quase uma semana. Uma parte de si
ainda tinha dúvida, mas outra falava que aquele momento tinha
chegado. A mudança abalou muito seu relacionamento com a loira, mas
Raissa estava decidida, faria por si e faria por ela. Após aceitar a
proposta, seu novo empregador lhe deu um prazo de duas semanas para
que ela assumisse seu posto. O casal teve que correr. Apesar do medo
de voltar a sua cidade natal, a loira não estava disposta a abrir mão da
namorada, iria com ela. Com isso, Luiza teve que se desvincular do seu
trabalho e se despedir das pessoas que passaram a fazer parte da sua
vida.
— Minha mãe ficou muito feliz em nos receber em sua casa – disse
a loira. – Mesmo eu dizendo que só é até acharmos um lugar adequado
pra gente.
— Natural ela querer grudar em você.
Luiza aproximou-se da morena. As coisas andavam muito tensas
entre elas, Raissa havia mudado. Desde que voltaram de Recife, a
morena tinha certa resistência para receber seus carinhos.
— Eu quero você, Raissa.
As duas fizeram amor naquela noite, mas ao contrário das outras
vezes, foi Luiza a se sentir estranha. Seu corpo reagiu a cada investida,
correspondeu à altura o ápice do prazer, contudo, ao final, sentiu-se
incompleta. Raissa ressonava baixinho em seu pescoço. Por breves
segundos, a loira lembrou-se da jovem de olhos castanhos e rosto tão
juvenil. Seus cabelos eram os mesmos que viu em alguns flashbacks,
longos, escuros e sem nenhuma onda. A lembrança da Maria Eduarda a
fez abraçar ainda mais o corpo que tinha grudado ao seu. Luiza gostava
do rio tranquilo que Raissa lhe oferecia. Por algum motivo, seus
instintos lhe diziam que a médica de cabelos sem onda era um mar
revolto, e Luiza não sabia se sabia surfar. Ela olhou para o rosto de
Raissa adormecido e a beijou carinhosamente no topo da sua cabeça. Te
adoro de paixão, guria, disse baixinho, fechando os olhos e convidando
o sono para lhe fazer companhia.
◆◆◆
CAPÍTULO 40
Novo começo
◆◆◆
CAPÍTULO 41
Camila Lafaiete será sua assistente
◆◆◆
CAPÍTULO 42
Luiza morreu
Hospital La Esperanza.
As coisas não estavam sendo nada fáceis para Duda. Seu coração
se partia toda vez que sabia notícias da esposa. Ela descobriu que a loira
já estava morando na cidade, e tudo que queria era trazê-la de volta para
casa, mas não podia. Pela primeira vez na sua vida, Maria Eduarda
tinha que enjaular sua fera ciumenta e colocar a saúde e o bem-estar da
mulher que amava em cima dos seus sentimentos.
— O que você acha? – perguntou Maria Eduarda.
— Não sei, Duda. Os últimos exames mostraram que o córtex
cerebral está sendo pressionado. Mas não foram encontradas lesões
hemorrágicas ou tumores. Nunca vi resultados assim. – Amanda soltou
o ar com força. – A hemorragia vem da camada externa do córtex onde
fica a memória. Comparando com exames passados, descobrimos uma
grande reconstrução neural.
Duda pensou diante daquele painel de radiografias.
— A cirurgia tem muitos riscos, os danos cerebrais podem ser
irreversíveis – pontuou Maria Eduarda.
— De cérebro, medula espinhal, nervos periféricos e por aí vai, é
sua área, amiga – disse Amanda, cansada. – Realmente não sei como te
ajudar. Eu entendo de sistema circulatório e coração.
— Mesmo se operarmos, não temos a certeza de que a memória
dela possa voltar. Nesse tipo de cirurgia, temos 95% de probabilidade
de não dar certo – falou com a voz embargada, pois, seu lado
profissional não conseguia ignorar a ciência.
— Quais eram as chances de Luiza estar viva? – perguntou
Amanda. – Quais as chances de que no meio de milhares de pessoas
você a encontraria num bloco de Carnaval? Quais são as chances de,
entre tantos neurologistas no país, ela ser paciente justamente do amigo
do doutor Dantas? – pontuou Amanda. – Duda, até ontem eu diria que
era baboseira, mas é impossível negar a movimentação do universo
para te devolver essa mulher. Então, suas chances de tê-la de volta eram
menores que os 5% de chance dessa cirurgia. Então, será nesses 5% que
vamos acreditar.
Duda abraçou a amiga com carinho. Amanda tinha razão.
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CAPÍTULO 44
Rompimento
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CAPÍTULO 45
O universo
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CAPÍTULO 46
A ponta do novelo
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CAPÍTULO 47
Cabelo sem onda
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CAPÍTULO 49
Janta comigo?
Luiza não tinha palavras para descrever suas emoções. Ela e Maria
Eduarda saíram do centro comunitário pouco depois das onze da
manhã, pois ainda teriam que cruzar a cidade para chegar em casa antes
que as crianças chegassem da escola. A loira agradeceu o silêncio que
se instaurou, precisava se preparar para o segundo round do seu dia.
Aquele a deixava apreensiva, pois, finalmente, iria conhecer suas filhas.
— Você realmente uniu o útil ao agradável. Além do mais,
trabalhar com minha mãe, por algum motivo, torna isso ainda mais
especial para mim. Obrigada, Maria Eduarda – agradeceu com
sinceridade.
Duda, que tinha sua atenção para o trânsito, desviou rapidamente
para encará-la. Ela queria dizer o quanto estava animada por Luiza ter
gostado, afinal, sua intenção foi a melhor possível, contudo se limitou a
sorrir. Naquele dia na cafeteria, quando a loira contou sobre seu
trabalho, seus olhos brilharam de um jeito que nem mesmo a medicina
os fazia brilhar. Por algum motivo, o universo, ao devolvê-la para este
mundo louco, a devolveu com um novo amor profissional. Isso ficou
muito evidente para Maria Eduarda, e, ignorando totalmente a
racionalidade, o universo resolveu trabalhá-las (Duda e Isa) de forma
diferente dessa vez. Ambas morreram naquele suposto acidente
rodoviário e ambas renasceram, com a diferença apenas no espaço
físico. Contudo, elas precisavam de algo em comum, precisavam da
ponta do novelo, e olha só, Duda e Luiza se ressignificaram justamente
em um trabalho sem retorno financeiro, onde entenderam que o pouco,
com muitos outros poucos, se transforma em muito.
— Não me agradeça. – Finalmente disse a morena. – Você terá
muito trabalho pela frente, inclusive, arraste a sua doutora também.
Camila é a única advogada que conheço, porém mais advogados
voluntários cairiam bem – sugeriu na maior cara de pau. – Você não
imagina a dificuldade que essas pessoas têm para conseguir um mero
benefício social – contou Duda com indignação na voz.
— Vou falar com ela, sim. Tenho certeza que Raissa vai querer
conhecer o projeto.
Depois de quase quarenta minutos, Duda entrou numa área de
condomínio fechado. As casas eram cada uma maior que a outra, a
morena percorreu alguns metros até chegar em frente a um impotente
casarão.
— Chegamos! – informou a motorista.
As portas foram destravadas, e as duas desceram do veículo. A
loira olhou um pouco impressionada para a casa a sua frente.
— Sua casa é muito bonita, porém parece grande demais – disse a
loira, olhando para a fachada, fazendo a morena rir.
— Também acho – concordou, subindo a escadaria que levava à
entrada principal, sendo acompanhada pela visitante. – Morávamos em
Boa Viagem, porém nos mudamos depois que eu engravidei da Vitória.
Como o plano era termos três filhos, achamos que seria melhor
trocarmos o apartamento por uma casa, assim teríamos mais espaço.
Você passou quase seis meses reformando essa casa. Escolheu e
decorou cada peça dessa propriedade. Eu nunca tive paciência para isso
– explicou.
Embora todos os empregados tivessem sido avisados, foi
impossível a loira não receber os olhares impressionados deles. Maria
Eduarda iria iniciar um tour pela propriedade quando três crianças
entraram abruptamente correndo, e duas delas gritaram ao mesmo
tempo o famoso:
— Mamãe!
Foi uma cena linda de se ver. Duda soltou a mão da gaúcha,
agachou-se e abriu os braços para receber as meninas que pularam em
cima dela sem demora, porém a morena parecia acostumada com
aquela recepção, pois conseguiu se manter firme. Luiza permaneceu
quieta, apenas observando.
— Oi, mãe! – A loira se assustou ao ver seu pequeno príncipe a
abraçando com carinho. – Você veio, você veio – disse, denotando toda
sua alegria.
Luiza desviou os olhos das meninas e correspondeu ao abraço do
filho.
— Foi o combinado, não foi?! – disparou a loira, abraçando-o mais
forte e beijando sua cabeleira amarela.
Duda se reergueu. João tomou a dianteira e fez a apresentação das
irmãs antes da mãe Duda.
— Mãe, essa aqui é a Vitória, minha irmã do meio. – Apontou para
a garotinha de mais ou menos 1,10 m.
Luiza, por sua vez, olhou para a garotinha dos cabelos escuros e
sorriu.
— Oi, Vitória. Sabia que você é uma guria muito linda? – disse
docemente.
Vitória, envergonhada, se embrenhou atrás das pernas da sua outra
mãe. Ela era a mais tímida dos três.
— Filha, diz “olá” para a mamãe Luiza – pediu a morena
docemente.
— Oi, quem é você? – Foi a vozinha do outro lado quem
perguntou.
Luiza desviou da pequena miniatura da Maria Eduarda para a sua
pequena miniatura dos cabelos amarelos que não chegava nem a um
metro de altura. Maria Luiza, vulgo, Malu, sem hesitação, ficou bem na
frente da loira.
— Você deve ser a Malu – disse a loira. – Oi, Malu. Eu sou a
Luiza.
Tomando coragem por estar ao lado da irmã, Vitória voltou para
posição anterior, assim ficando lado a lado da pequena Malu e de frente
para a desconhecida. Luiza não sabia como agir diante da emoção
estranha e gostosa que estava sentindo ao conhecer as filhas.
— Mamãe Duda disse que você também é nossa mamãe. –
Finalmente a loira pôde ouvir a vozinha da sua filha do meio.
— Claro que é, mas ela não lembra – disparou João, revirando os
olhos, pois, em sua cabeça, as irmãs tinham compreendido a conversa
que tiveram na noite anterior sobre a sua mãe que perdeu a memória.
— Filho, suas irmãs não entendem – replicou Duda, sorrindo. –
Vamos para o sofá – sugeriu. Assim, os cinco se dirigiram à sala de
estar.
Luiza literalmente não sabia como se comportar, as meninas a
olhavam com curiosidade. Duda voltou a apresentar as filhas.
— Elas são lindas – disse a loira com um sorriso bobo no rosto. –
A Vic parece com você.
— Ufaaaaaaaaaaaaaa! – disparou a médica de um jeito engraçado,
dando pulinho no ar e fazendo uma dancinha engraçada. As meninas se
empolgaram e espelharam a atitude da mãe Duda e dançaram também,
mesmo sem saber o motivo. Luiza riu diante da cena. Ao final da
coreografia, a médica explicou: – Não aguento ouvir que ela é a cara do
pai – fingiu-se de brava, voltando a se sentar no sofá.
Luiza riu, Maria Eduarda tinha um jeito muito moleca. A loira
voltou a olhar para a garotinha do sorriso banguelo. De fato, a menina
carregava fortes traços do pai, porém a gaúcha só conseguia enxergar a
morena na filha. As meninas foram levadas por suas respectivas babás
para que tomassem um banho antes do almoço, João, a contragosto,
também fez o mesmo. Pouco tempo depois, os três retornaram à
companhia dos adultos. Malu e Vic trataram logo de arrastar suas
bonecas favoritas para mostrar à visita. Luiza tentou demonstrar
interesse enquanto estava tendo aquele primeiro contato com as
meninas.
O almoço foi servido, e os cincos se acomodaram à mesa. Maria
Eduarda tentava sufocar a explosão de alegria em seu peito, por noites a
fio chorou achando que nunca viveria um momento como aquele. A
mesa de jantar, ao contrário do tradicional retangular, era redonda, o
que permite mais proximidade aos ocupantes. Luiza sorria o tempo todo
enquanto escutava os filhos tagarelarem, normalmente a Vitória era a
mais tímida, mas, quando estava na companhia da irmã mais nova,
soltava a língua.
Chamar atenção é natural para crianças quando estão diante de
pessoas estranhas, e os filhos do casal não eram diferentes. Por mais
que João já tivesse mais contato com a mãe Luiza, no início daquela
tarde, ele parecia ter a mesma idade das irmãs, brigando por qualquer
besteira e tentando a todo custo ter a atenção da loira só para ele. Findo
o almoço, foram servidas quatro pequenas taças da famosa combinação
sorvete de chocolate com calda de morango. O UHUUUUU foi quase
coletivo. Arrancando uma gargalhada alta da visitante. Era muita
quentura (carinho, amor, ternura ou qualquer adjetivo que se encaixe)
para o pobre coração.
— Pelo visto, sou voto vencido aqui – disparou a loira, tentando
lançar um olhar conspiratório, porém não conseguiu mantê-lo por muito
tempo. Aquelas quatros carinhas de total satisfação eram fofinhas
demais.
— Ainda é tempo de entrar na seita da família Lins, Srta.
Fernandes Lafaiete – disparou Maria Eduarda de boca cheia.
— Mãe, é muito gostoso – disse João, se espelhando na mãe e
falando de boca cheia.
As meninas, mesmo sem entender o que diziam, cada uma a seu
modo fez a mesma coisa. Luiza finalmente se rendeu àquelas doces
criaturas. De um jeito espontâneo, empurrou sua taça de sorvete de
creme sem calda para o lado e meteu sua colher na taça da morena.
Duda riu e puxou a cadeira para mais perto. O momento foi terno, as
duas mulheres mais velhas não conseguiram evitar a troca de olhares.
Não houve nenhuma tentativa de flerte, pelo contrário, as coisas
seguiam ao ritmo de um riacho tranquilo. Após a sobremesa, elas se
reuniram no jardim. As meninas corriam de lá para cá, mostrando seus
brinquedos, enquanto o garoto João brincava com seus cachorros de
estimação. Certo momento, Luiza sentiu as pontadas na cabeça, foi
automático. Estar exatamente naquela casa foi gatilho suficiente para
que inúmeros flashbacks viessem à luz, porém, dessa vez, foi
arremessada sobre ela diversos momentos, momentos compartilhados
com a moça do cabelo sem onda.
— Você está bem? – perguntou a morena. No momento que Luiza
começou a passar mal, ela a levou para um canto afastado, não queria
assustar os filhos que estavam brincando com os cachorros da casa.
— Estou. Só alguns flashbacks, mas nada muito claro – disse.
Duda assentiu, e elas voltaram para a área de descanso no jardim.
As horas voaram. Quando deram por si, a noite já tinha caído.
— Preciso ir – disse a loira com um verdadeiro pesar.
Tudo que Maria Eduarda queria era prolongar aquele dia, porém
achou melhor não brincar com a sorte. Luiza viveu muitas emoções
num só dia, ela precisava de espaço para absorver tudo. Por diversas
vezes, a médica viu aqueles olhos escuros marejados diante das
crianças. O contato ainda era tímido, visto que as meninas ainda
estavam conhecendo-a naquele dia, mas pareceu muito significativo.
Como Vitória era maiorzinha e Duda tinha explicado algumas vezes
sobre a existência da outra mãe e seu irmão a lembrava o tempo todo,
chamar Luiza de mamãe foi natural, e mais natural ainda foi a pequena
Malu se espelhar nos irmãos e chamá-la também de mãe. Luiza ainda
precisava se adaptar, mas escutar essa pequena palavra lhe gerava um
sentimento terno em seu peito.
— Tudo bem, vamos te levar.
Luiza pensou em contestar, pois percebeu que morava apenas a
algumas quadras de distância, mas Duda insistiu.
— Ei! Que tal levarmos a mamãe Isa na casa da vovó Helô?! –
sugeriu Maria Eduarda.
E a alegria foi geral, as crianças estavam todas suadas e
descabeladas de tanto brincarem, Luiza guardou aquela linda imagem
em um lugar especial da sua mente. Seus filhos pareciam crianças
felizes. Duda estava fazendo um rabo de cavalo nas madeixas negras da
filha do meio. Malu chegou perto da loira e deu saltinhos num pedido
velado para que a pegasse nos braços. Ela realmente era uma
pimentinha, fazia os irmãos de gato e sapato. Luiza abaixou-se para
pegá-la no colo.
— Coloca essa porquinha no chão, Isa – disparou Duda.
— Porquinha não, mamãe, Malu não é a Peppa[19] – contestou a
pequenina.
Duda deu uma gargalhada gostosa.
— Acho que vou querer essa Peppa pra mim, Du… – provocou a
loira.
Os olhos da morena brilharam ao ouvir o apelido que Luiza
costumava chamá-la. O sorriso se alargou em seu rosto. Tudo que
Maria Eduarda queria era abraçá-la até a loira reclamar do aperto.
— Pode levar, dou de graça e ainda pago uma gorda pensão –
replicou a médica com humor.
— Até parece, guria – replicou a loira. – Você tem cara de quem é
extremamente ciumenta.
— Malu não é a Peppa – gritou a pequena, brava.
— Filho, pega a chave do carro de vocês, por favor – pediu.
João correu para dentro da casa enquanto os outros foram até a
garagem. O menino apareceu pouco tempo depois e entregou a chave à
mãe. Duda destravou as portas e ajudou Vitória a se acomodar em sua
elevação de assento que ficava no banco do meio. Malu pulou dos
braços da loira sentando-se em sua cadeirinha, enquanto João
acomodou-se na outra janela. Duda abriu a porta para a loira e depois
contornou o carro e se acomodou atrás do volante. O carro foi ligado, e
a morena os conduziu até a casa da ex, quase novamente, sogra. À
medida que o carro avançava, mais uma vontade crescia no peito da
gaúcha. Ela olhava para trás o tempo todo e, em seguida, olhava para a
moça de cabelos sem onda. Os suspiros eram inevitáveis. Quando o
carro estacionou em frente ao condomínio, era hora da despedida. Luiza
se rendeu à vontade gritante de permanecer na companhia daqueles.
— Não quer subir? Mamãe vai adorar ver as crianças – disse,
embora por dentro estivesse implorando para que a morena aceitasse.
Duda pareceu hesitar. Também precisava processar o
acontecimento do dia. Só ela sabia a guerra de titãs que era para domar
a impetuosidade do seu amor. No entanto, ela queria realmente fazer
diferente, oferecer um amor diferente. Aquela Luiza à sua frente era
interessante demais para assustá-la com sua possessividade. Os
castanhos estavam prontos para recusar, quando a loira tocou em suas
mãos.
— Sobe rapidinho – pediu de um jeito tão dengoso e espontâneo
que foi impossível não aceitar.
As crianças foram soltas e já correram pela recepção do prédio,
elas eram conhecidas ali. Luiza, animada, pegou na mão da morena e
puxou para dentro do condomínio. O grupo pegou o elevador e subiram
para o apartamento. Heloísa tinha acabado de chegar quando viu sua
casa sendo invadida pelos netos. Entre beijos, abraços, euforia, Duda e
os filhos ficaram para jantar.
— Enquanto a vovó pede as pizzas, hora de tomar banho, seus
porquinhos – ordenou Maria Eduarda. – João, já para o banho e sem
retrucar. – E vocês duas porquinhas, vamos tomar banho.
Heloísa mantinha um quarto na casa para os netos, já que era muito
comum eles vez ou outra passarem o dia ou até mesmo fim de semana
com ela. Então era possível encontrar roupas e objetos pessoais dos
pequenos ali.
— Malu não é a Peppa – voltou a contestar a pequena.
— Malu é a Peppa, sim – implicou. – Uma porquinha muito fedida.
A menina já fazia cara de choro, quando Luiza a pegou no colo e a
rodopiou no ar. O gesto espontâneo lhe deu uma sensação de déjà vu.
Ao colocá-la no chão, Vitória lhe olhava com expectativa. A loira
sorriu, embora com um pouco mais de dificuldade, ela fez o mesmo,
arrancando gritinhos da filha.
— Elas podem tomar banho no meu quarto, me deixa te ajudar –
pediu a loira.
As meninas pularam cada uma em uma mãe como umas
verdadeiras macaquinhas. As risadas delas era uma doçura. O banho foi
a maior algazarra. Luiza se deliciava com aquele momento tão singelo,
mas, para si, tão cheio de algo.
— Meu Deus! Essa guria não para! – disparou Luiza, terminando
de vestir a filha mais nova. – A Vic é um docinho, mas acaba se
corrompendo pela Malu.
Duda achava a maior graça cada gesto surpreso da loira, ela
percebeu que essa Luiza não tinha muito contato com crianças.
— Prontinho – disse a morena, liberando a Vic que correu no
encalço da irmã. – Para que academia quando se tem três filhos
jorrando energia?! – disparou.
— Deve ser bem puxado para você, não é? – perguntou.
Duda deu um suspiro. Sim, era bastante puxado para ela ser mãe
solo, mas ela se esforçava.
— Vale a pena, era o que sempre sonhei…
Maria Eduarda parecia ainda mais linda aos olhos da loirinha. Seus
cabelos estavam num coque todo desajeitado no alto da cabeça e seu
rosto estava suado devido à guerra do banho das duas sapequinhas.
Duda tinha a pele cor de oliva e traços delicados. Luiza acompanhava
quase que hipnotizada a movimentação daqueles lábios carnudos. A
morena sentiu-se observada. Seu coração acelerou ao ver que as orbes
negra fixaram em sua boca. Uma onda de nervosismo tomou conta da
morena, que acabou falando a primeira coisa que veio a sua mente.
— Você está me olhando com seu olhar de tarada, Isa – revela e ri,
nervosa.
Aquele adjetivo parecia familiar e fez a loira rir sem mostrar os
dentes. Sem querer pensar muito, fez o que lhe deu muita, muita, mais
muita vontade. Luiza findou a distância a ponto de seus narizes roçarem
um no outro e a respiração se misturar. Seus nervos estavam como fios
elétricos, e um poço de ansiedade se formou em seu estômago. Sem
pedir permissão, Luiza a beijou. Movida por sua curiosidade
desenfreada em provar daqueles lábios, a loira conduziu um beijo
lânguido, arrancando suspiros da morena, que correspondeu com
entusiasmo. Contudo, ao se afastarem em busca de ar, a morena
retrucou.
— Assim não gosto – reclamou com a voz entrecortada. – Você
nunca aprende, Luiza. Eu gosto assim…
Luiza não teve tempo para pensar, seus lábios foram tomados pela
moça do cabelo sem onda. Duda a puxou para si, segurando uma mão
em cada lado da bochecha. Ao contrário do beijo anterior, esse era
ditado pela morena, que inclinou a cabeça levemente para o lado para
se encaixar melhor. Seus lábios se moveram devagar. Primeiro
querendo sentir a textura daqueles outros que por anos lhe
proporcionaram os mais deliciosos prazeres. Sugou o inferior, subiu
para o superior, voltou para o inferior, onde alternava entre sugadas e
leves mordidas. Luiza choramingou quando seu corpo começou a sentir
uma vibração diferente, diante daquela singela provocação.
Instintivamente a puxou para perto de si. Duda sorriu em seus lábios,
sorriu com seu coração, sorriu com o seu mais puro sentimento. Então,
proporcionou o que a loira tanto queria, invadiu sua boca com sua
língua, buscou a língua da outra, provando-a como sempre fizera no
passado, sem fobia. Duda a beijava com a alma, isso fica muito claro no
seu ritmo, na sua condução. Algo voltou a explodir no peito da loira.
Não! Não era o beijo caloroso e intenso que costumava trocar com
Raissa, era diferente, tinha um sabor embriagante que fazia seu corpo
vibrar, seu estômago congelar, seu baixo ventre aquecer, sua intimidade
escorrer. Duda acelerou a intensidade à medida que os apertões da outra
ficavam mais brutos. Faltava-lhes ar, mas era difícil descolar, e, quando
aconteceu, demorou tão poucos segundos para as bocas se unirem de
novo que elas nem chegavam a abrir os olhos. Luiza queria continuar
beijando-a, não, na verdade, ela queria continuar sendo beijada, porque
o beijo daquela garota era sem igual. Duda percebeu seu desejo ao
sentir a outra pacientemente esperá-la, e a morena não tardou, a beijou
novamente, na mesma proporção e com o mesmo sentimento. Mas o
famoso ditado de “o que é bom dura pouco” se fez presente, pois o
barato foi cortado quando duas crianças a puxaram, cada uma para um
lado.
— Beijo na boca, eca! – gritou Vitória, fazendo careta, sendo
repetida pela irmã.
As mães, apesar do calor, da emoção e da surpresa de terem sido
interrompidas abruptamente pelas filhas, olharam uma para a outra e
gargalharam. A gargalhada teve o efeito do bocejo, contagia todos que
estiverem presentes. A pequena Malu e a pequena Vitória não
entenderam nada, mas gargalharam juntas. Luiza e Duda trocaram um
olhar travesso uma para a outra e, num gesto espontâneo, cada uma
pegou uma das meninas e deu um ataque de cócegas. As duas gritavam
de tanto rir, depois as mães trocaram de filhas e houve mais uma leva
de cócegas.
— Mamãe, para – imploravam as pequenas.
As duas mais velhas finalmente deram uma trégua, e, ao se
afastarem, as pequenas trataram logo de fugir, para não sofrer novos
ataques.
— Acho que me apaixonei pelas minhas filhas à primeira vista –
disse Luiza, tentando se recompor e cheia de sinceridade.
— Acho que houve muita recíproca hoje – afirmou Duda.
Duda voltou a prender seus cabelos num coque apertado no alto da
cabeça. Luiza acompanhou o gesto, o filho colocou a cabeça para
dentro do quarto para avisar que as pizzas já tinham chegado e que a
avó estava chamando-as, mas, antes de sair, Luiza disparou:
— Janta comigo no sábado? – O convite veio assim, de supetão.
Duda sentiu o coração chegar na boca, seus olhos se arregalaram.
Estava mesmo sendo convidada para jantar? Porque a morena pareceu
duvidar. Luiza a puxou pela cintura e buscou aqueles olhos castanhos
tão bonitos.
— Há algumas semanas perdi minha namorada e, ainda por cima,
descobri que fui viúva sem saber – disse, sorrindo. – Minha vida tinha
tudo para estar triste e solitária, contudo, ouvi de um alguém que:
quando Deus nos tira algo, ele nos dá outro em troca. Engraçado,
porque certa manhã esbarrei com uma linda morena no hospital onde
faço tratamento. Ela me convidou para um almoço que se estendeu para
um café, tive uma tarde deliciosa. Desde então, ela tem ocupado
bastante meus pensamentos. Estou com muita vontade de conhecê-la
melhor, você acha que tenho alguma chance? Ela é uma médica muito
ocupada, ainda faz trabalho voluntário, tem três filhos e quatro
cachorros. Ela parece ser incrível – disse, sincera.
Duda sentiu suas bochechas corarem, mas foi inevitável não abrir
um sorriso luminoso.
— Ela parece um bom partido, hein! – brincou a médica.
Luiza deu um beijo suave em seus lábios e repetiu o convite.
— Janta comigo, Du?
— Janto, mas sábado está muito longe, pode ser amanhã?
A pergunta arrancou uma gargalhada da loira.
— Amanhã, será ótimo. Te pego às 20h, pode ser? – perguntou
Maria Eduarda.
— Pode, sim.
Com os corações sob um ritmo diferente, Duda e Luiza retornaram
à sala, onde encontraram os filhos e Heloísa.
◆◆◆
CAPÍTULO 50
Ristorante Italiano Família Lins
◆◆◆
CAPÍTULO 52
Quando tudo se encaixa
Bem, isso é assunto para outra história. Nos esbarramos por aí. ;-D
[1] Piloto de F1, brasileiro.
[2] Banda inglesa de heavy metal.
[3] Pessoa sem documentação.
[4] Por David Spiegel , MD, Stanford University School of Medicine.
[5] Cantora brasileira de MPB.
[6] Atriz norte-americana.
[7] Ecocardiograma pré-operatório.
[8] Louca da vida.
[9] Pressão arterial.
[10] Atriz brasileira.
[11] Bobeira.
[12] A arte da Guerra – Sun Tzu.
[13] Ator brasileiro.
[14] 6.am: a hora mais curta – Tessa Reis
[15] Repreensão, chamar à atenção, levar uma bronca.
[16] Um dos maiores novelistas brasileiros.
[17] Fliperama.
[18] http://cienciasecognicao.org
[19] Peppa Pig, o personagem de uma porquinha.
Sobre o autor
MICABRITO
Recifense, amante das letras e apaixonada pelas cores. Sempre fui uma
leitora voraz. Gosto de pensar que o livro é uma verdadeira caixa de
Pandora. Ao abri-lo, nunca sabemos que emoção emergirá. Foi em 2009 que
criei coragem para sair do anonimato. Usei uma comunidade de leitores do
falecido Orkut para publicar meu primeiro romance entre mulheres. O
conhecido “a minha doce prostituta”. Desde então, fui autora de diversos
romances. Os amigos mais próximos, costumam dizer, que sou uma autora
do cotidiano, pois, gosto de pegar a realidade de alguém e lhe dar novas
cores. Afinal, assim como as cores, as palavras se misturam, se confundem e
se transformam.
Livros deste autor
A MINHA DOCE PROSTITUTA
- LIVRO 1
Luiza é uma jovem prostituta que trocou sua fria cidade natal (Porto Alegre),
pela capital pernambucana para um novo recomeço. Viu em Recife, uma
oportunidade para resgatar seus sonhos e se livrar dos fantasmas do passado.
Tudo ia bem até que numa reviravolta do destino seu caminho se cruza com
Amanda, uma patricinha que se acha dona do mundo e estava acostumada a
ter tudo que queria. Movida pela raiva, a patricinha buscou o serviço da
acompanhante para um duplo trabalho. Para Luiza, aquilo era apenas um
trabalho, ou seja, bastava levar uma garota para a cama. O serviço era
simples e os ganhos atraentes, o que não previa, era que aquele simples
trabalho iria lhe trazer um emaranhado de sentimentos e novas descobertas.
ACIDENTE DO DESTINO
Larissa é uma promotora de justiça bem-sucedida e reconhecida em sua
profissão. Dedicada e muito talentosa, conseguiu levar aos bancos dos réus
um dos maiores traficantes do país em um julgamento que repercutiu em
rede nacional. Com o traficante preso e a justiça feita, o caso foi encerrado.
Bom, não exatamente. Mal sabia a promotora que o resultado daquele
trabalho ocasionaria uma reviravolta em sua vida. Agora a vida de Larissa
corre perigo e seu coração também. Acidente do Destino fará você descobrir
que um pequeno acidente pode transformar a sua vida.