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A MINHA DOCE PROSTITUTA - LIVRO 2

EU SEI QUE É VOCÊ

MICA BRITO
Direitos autorais © 2022 MMBRITO

Todos os direitos reservados

Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais,
vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.

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transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou
outro, sem a permissão expressa por escrito da editora.

ISBN-13: 9781234567890
ISBN-10 1477123456

Design da capa por: Bia Prudente


Diagramação: Arien
Revisão de Texto: Tuany Teixeira

Número de controle da Biblioteca do Congresso: 2018675309

Impresso nos Estados Unidos da América


Prefácio
Sei que muitos já conhecem essa continuação, mas antes de
prosseguir queria esclarecer uma coisa. A intenção deste livro é trazer
as nuances daquela doce prostituta, que sempre carregou sobre seus
ombros, o peso do seu passado. Uma amiga, que também foi minha
leitora, uma vez me disse que, quando reeditamos um livro, acabam
roubando a magia da época. Essas simples palavras me fizeram refletir,
tanto que, quando resolvi lançar A minha doce prostituta na versão
ebook, decretei parar ali, no primeiro livro. Então, a princípio eu não
tinha a intenção em lançar essa segunda parte. A vida já é ácida demais
para mais drama. Contudo, recebi muitas mensagens nas minhas redes
sociais e por email, perguntando justamente sobre a segunda parte do
livro. Mais de dez anos se passaram, desde que esses livros vieram a
público, então é impossível editá-los com o mesmo olhar. Nessa nova
edição do Minha doce prostituta 2, trago para vocês uma história
diferente, que vai muito além do romance. Com personagens
amadurecidos, situações verossímil e claro, uma pitada de bom humor.
Caso queria manter aquela magia do que se lembra delas, sugiro que
busquem outra leitura. Caso queria vê-las sobre outra ótica, sejam bem-
vindas. Acredito que temos muitas versões de nós mesmo, hoje, a partir
das próximas páginas, ofereço uma nova versão daquelas que nos
arrancaram muitas risadas, mas geraram muita vontade de dar uma
voadora nelas, diante de tanto puxa-encolhe. Mas, acima de tudo,
buscam novas versões para se amarem.

MICA BRITO
FASE 1
Quem eu sou?
CAPÍTULO 1
O clarão
De repente um clarão, Raissa acorda toda quebrada numa cama de
hospital. A coisa está feia para o seu lado, ela tenta se sentar na cama,
mas todo seu corpo está dolorido. Uma perna engessada, o abdômen
enfaixado, inúmeros hematomas roxos pelo corpo, e uma dor terrível na
coluna. Eis o seu estado atual. Sentia-se atordoada e com muita sede.
Onde estou?, perguntou. Seus olhos varreram o ambiente. O cheiro
característico do lugar, o cateter no braço, o exagero do ar-condicionado
e o som do aparelho, que monitorava seus batimentos, a fizeram chegar
à conclusão de que estava em um hospital. Restava saber, por quê?
Uma vez que sua mente estava nebulosa.
Depois de escrutinar todo o ambiente, a jovem se esforçou para
desanuviar sua mente, queria lembrar o que aconteceu. Ela nem mesmo
sabia quanto tempo estava ali. Por que estou sozinha?, se perguntava.
Ter uma memória fotográfica tem que me servir para alguma coisa,
disse para si mesma. Com dificuldade e ignorando as dores que
começavam a se intensificar, ela fechou os olhos e inspirou profunda e
lentamente e, na mesma velocidade, soltava todo ar dos seus pulmões.
Repetiu o processo até conseguir acalmar sua mente. O funcionamento
da sua memória era algo muito interessante. Quando concentrada,
Raissa se via diante de um painel eletrônico cheio de imagens
embaralhadas, como se fosse um jogo infantil chamado: jogo do quinze.
E como se estivesse movendo as peças, aos poucos ela vai colocando
numa ordem cronológica: sexta-feira, a saída mais cedo do escritório, a
viagem até o município vizinho, o hotel, o aniversário, a discussão e o
retorno para casa. Como em um filme, a jovem fez uma retrospectiva
dos últimos acontecimentos até o momento presente.
Dois dias antes.
Raissa e seu noivo Guilherme são dois brilhantes advogados que
atuam na capital do Rio Grande do Norte. Eles se conheceram no
tribunal durante uma audiência, a advogada atuava no lado ativo,
enquanto o rapaz, no passivo. O advogado ficou impressionado com a
ferocidade daquela tão jovem advogada. Quando o processo terminou,
o homem finalmente pôde convidá-la para sair.
Os dois tinham viajado de Natal até a cidade de Acari, interior do
Rio Grande do Norte. Era a festa de aniversário do pequeno Vitor, fruto
do primeiro casamento do Guilherme. A festa aconteceu naquela
mesma sexta-feira. Estava divertido, o garoto estava superfeliz porque o
pai e sua madrasta, apesar da vida corrida que tinham na capital,
conseguiram ir a sua festinha de aniversário de sete anos. A festa estava
superlegal, e o plano do casal era passar o fim de semana na cidade,
para aproveitar um pouco mais da companhia do pequeno. Porém,
como sempre, o advogado estragou os planos. Ele, com sua mania de
ficar controlando a noiva, acabou irritando a morena, que o enfrentou.
Assim, os dois iniciaram uma constrangedora discussão. Para evitar
maiores escândalos, Raissa resolveu voltar para o hotel, deixando-o
brigando sozinho.
Guilherme chegou ao hotel irritado por ter sido deixado para trás.
Movido pela raiva, pegou as bagagens, que nem haviam sido abertas,
arrastou até o estacionamento, socou-as no porta-malas do carro, voltou
ao hotel, fechou a conta e, aos berros, disse que voltariam naquela
mesma noite para casa. Raissa, que conhecia o temperamento
intempestivo do noivo, tentou recuperar a calma, pois já era tarde e o
tempo estava fechado. Contudo, o homem estava irredutível. Cansada
de toda aquela discussão, a jovem cedeu.
— Ao menos me deixe dirigir – pediu. Ela estava preocupada, pois
Guilherme tinha bebido e estava visivelmente alterado. – Guilherme,
me deixa ao menos dirigir – insistiu, mesmo sabendo que dificilmente o
rapaz deixaria alguém assumir o volante do seu precioso BMW X6.
Ignorando-a, ele destravou as portas e entrou no veículo.
— Vamos! – gritou.
Contrariada, Raissa entrou no carro batendo a porta. Deveria ser
uma viagem longa, mas não para um motor de uma BMW X6.
Guilherme que já amava velocidade sóbrio, imagine-o se sentindo o
Ayrton Senna[1].
— Deixa de ser estúpido e diminua essa velocidade – pedia Raissa,
duas horas depois de pegarem a estrada.
Guilherme, muitas vezes, esquecia os 35 anos que tinha e agia feito
um adolescente idiota que se sentia o próprio super-homem. E só para
irritar ainda mais sua noiva, pisou um pouco mais no acelerador e ligou
o som colocando um rock a nível Iron Maiden[2].
Raissa estava apavorada, não só pela atitude idiota dele, mas
também porque o tempo estava ruim e a visibilidade da estrada era
péssima. De repente, um animal apareceu no meio da estrada. O
estrondo. O carro trocando de faixa e o clarão.
Aquelas nítidas lembranças fizeram o peito da jovem saltar de
forma brusca, ela mudou de um estado de espírito para outro em
questão de milésimos segundos. Tomada pelo desespero, começou a
perguntar aos gritos:
— Cadê o Gui? Cadê o Gui?
O grito da paciente chamou a atenção de uma enfermeira que
passava em frente ao seu quarto. Sem hesitar, a mulher entrou no
cômodo.
— A senhora já acordou? – perguntou a mulher ao entrar.
Não, estou dormindo, pensou a paciente. Apesar do pensamento
malcriado, ela fitou a enfermeira e perguntou:
— O que aconteceu? Por que estou aqui?
— A senhora sofreu um acidente – respondeu enquanto checava
seu soro.
— Onde estou? Cadê meu noivo? Por que estou sozinha? – A
paciente perguntava aflita.
— A senhora está no Hospital Anglo. Se ficar calma, chamarei o
médico, e ele poderá responder a todas as suas perguntas, mas preciso
que fique calma, está bem?
Ficar calma era um pedido um tanto impossível para a jovem.
Apesar do turbilhão que percorria em suas emoções, ela assentiu. A
enfermeira lançou um sorriso e, em seguida, saiu do quarto para chamar
o médico.
— Bom dia! – cumprimentou o profissional de saúde minutos
depois.
— Bom dia! Cadê a minha família, por que estou sozinha? –
questionou, agitada.
— Seus familiares estão aí fora, vou autorizar que entrem para vê-
la, mas vou examiná-la primeiro.
O médico a examinou minuciosamente, depois receitou algumas
medicações e passou para enfermeira ministrar. Em seguida, autorizou
que a jovem recebesse visita.
Tudo que Raissa queria naquele momento era ver sua família.
Sentia seu corpo extremamente pesado, provavelmente era efeito do
medicamento que foi ministrado. O médico anotou mais algumas coisas
na sua prancheta e depois saiu do quarto acompanhado pela enfermeira.
Segundos depois, um casal de senhores, na casa dos seus quase sessenta
anos, entrou. O homem era de estatura baixa, meio roliço, pele escura,
cabelos crespos e olhos verdes. Esse era João, seu carinhoso pai. Ao seu
lado, vinha uma senhora, na casa dos seus 57 anos, com seus 1,70 m,
pele branca, cabelos escuros e lisos, corpo esguio e olhar bravo, essa
era sua mãe, dona Thaís. A jovem Raissa era resultado genético do
amor daqueles dois. Puxou não apenas os cabelos lisos e escuros da
mãe, como sua sagacidade, autoconfiança e integridade. Do pai, herdou
mais que seus belos olhos verdes-oliva, aquele homem era a doçura em
pessoa. Transferindo através dos seus genes seu otimismo, sua
resiliência, sua humildade e seu altruísmo.
— Minha filhota – disse o homem, andando até a cama e
abraçando-a carinhosamente.
— Que susto nos deu – falou sua mãe, já com os olhos rasos
d’água.
Raissa era a joia mais preciosa do casal. Os dois abraçaram a filha,
enchendo-a de carinho.
— Tem espaço para mim. – A voz grave de Guilherme se fez notar.
O casal se afastou para que o noivo se aproximasse. A jovem sentiu
o coração aliviado ao ver que aparentemente ele estava bem.
— Paixão, você está bem? – perguntou, nitidamente preocupado. –
Senti tanto medo de te perder, eu morreria se algo de ruim te
acontecesse. – O advogado a abraçou e começou a chorar com
sinceridade.
A mulher demorou um pouco para conseguir acalmá-lo. Guilherme
se sentia culpado por ter colocado a vida da mulher que amava em
risco. Os senhores preferiram sair do quarto para lhes dar privacidade.
— Eu tô bem, eu estou bem – repetia ela, numa tentativa de
tranquilizá-lo. – Só foi um susto. Você está bem, eu estou bem.
Guilherme se afastou e limpou o rosto com o dorso da mão.
Esperou um minuto até finalmente se recompor. Sentou-se ao lado da
cama e tentou contar o que havia acontecido nos dois dias que a morena
passou quase desacordada, devido às fortes medicações para dor.
— Eu pensei que fosse um animal – iniciou.
Raissa percebeu que havia algo de errado. Guilherme desviou dos
seus olhos. Seu coração bateu num ritmo forte, cada palavra dita pelo
noivo lhe dava fisgada no peito. Segundo ele, depois de bater em algo,
ele perdeu o controle do carro, mudou de faixa e seu veículo colidiu
com outro. O poderoso airbag foi acionado, evitando que sofressem o
pior. No entanto, o impacto maior foi do lado do passageiro, o que fez a
advogada perder os sentidos no mesmo instante. Por sorte, eles já
estavam na entrada da cidade de Natal, o socorro não demorou a vir.
Quando a polícia rodoviária apareceu, Guilherme estava consciente.
— Alguém morreu? – Ela perguntou com a voz vacilante.
— Não. Mas… – Guilherme hesitou. Então veio uma longa pausa.
Os olhos verdes varreram o rosto do rapaz, não era só isso, ela sentia
que não era só isso. – Eles me enquadraram no art. 306, da Lei n.
9.503/97. Acredita?
Por sua expressão, não foi difícil para ela deduzir que aquele
homem achava um absurdo, eis um dos piores defeitos do seu noivo: a
arrogância. Guilherme era sobrinho de um dos mais prestigiados
advogados do estado. Ele era um brilhante advogado, mas, apesar de
conhecer a lei, se achava acima dela.
— Eu pensei que fosse um animal, sei lá, um cachorro ou um
cavalo – dizia. Ele ficou cabisbaixo, sua voz saiu num sussurro. – Mas
era uma pessoa, amor. Atropelei uma pessoa.
E veio aquele murro inesperado bem na caixa dos peitos. Raissa
sentiu falta de ar.
— Matamos… – tentou perguntar.
— Não matamos ninguém, foi um acidente, ela está viva –
apressou-se a dizer. – Mas está em coma.
— Quero ficar sozinha, Guilherme. – Foi a única coisa que a
mulher conseguiu dizer.

Noite do acidente.
— Ela está num estado pós-traumático, chegou com um GCS de
dois, pressão 8x6. Exames para traumatismo craniano. Respiração
irregular, pupila direita dilatada. Avisem que estou chegando, preciso
de um respirador e quero raio-x – falava o médico aos gritos,
empurrando a maca pelo corredor até a sala de cirurgia. – Há também
uma perfuração por arma de fogo, precisamos de um cirurgião geral.
Passaram-se 4 horas desde que aquela mulher entrou em duas
cirurgias simultaneamente. A hemorragia causada pela bala foi contida
pelo cirurgião geral. Agora, o neurocirurgião tenta conter o
sangramento no cérebro.
— Ela está tendo uma parada cardíaca. Vamos! Três e quatro,
carreguem em 200 – ordenava o médico. – De novo, aumentem para
400. Estamos perdendo-a – repetia o médico. – Vamos lá, moça, reaja,
reaja. Isso! – O aparelho anuncia que o coração volta a bater. Uma
hora depois a cirurgia na cabeça é finalizada. – Agora pode fechá-la,
Dra. Ingrid. – O cirurgião titular passou a bola para a residente.

◆◆◆
CAPÍTULO 2
“Mais que muito’’

Quatro dias após o acidente.


Saber que a imprudência do casal havia gerado dano a vida de
alguém não estava sendo nada fácil de processar. Principalmente para
Raissa, que fora criada para sempre se colocar no lugar do outro. A
moça estava tomada pelo sentimento de culpa. Depois da revelação do
noivo, a única companhia que queria era dos seus pais.
— Como está se sentindo? – perguntou o médico responsável pelo
seu caso.
— Estou bem. Só a perna que ainda incomoda – disse. – Doutor,
como está a outra vítima? Soube que ela está neste hospital.
O médico lançou um olhar confuso. Raissa foi mais direta, lhe
perguntando sobre a mulher que tinha sido atropelada no acidente. A
princípio o homem não quis responder, mas depois de muita insistência
por parte da advogada, ele acabou cedendo.
— Ela passou por uma cirurgia delicada, teve algumas paradas
cardíacas. Está viva, porém encontra-se em coma – disse com pesar. –
O doutor Feitosa é o médico responsável por ela.
— Será que posso falar com ele? – perguntou.
O médico estranhou o interesse da paciente.
— Pedirei que ele venha aqui, tudo bem? – disse, por fim. – Agora
preciso que descanse.
— Quando ela poderá ir para casa? – perguntou dona Thaís.
— Raissa está bem, porém vamos mantê-la em observação por
mais 24 horas. – Dito isso, ele foi embora e a mãe da morena deu um
suspiro aliviado.
No decorrer do dia, Raissa recebeu a visita de suas amigas e do pai.
Por algum motivo em seu íntimo, ela ainda não queria ver o noivo,
mesmo se sentindo injustiçado, Guilherme não insistiu. Porém, a visita
mais esperada ocorreu já no final do dia, quando o doutor Feitosa
entrou no quarto. Mas claro que isso só aconteceu depois da jovem ter
feito sua mãe ir umas trezentas vezes à sala do neurologista e ter
ameaçado ir lá pessoalmente caso ele não fosse vê-la.
— Boa tarde! – Alguém cumprimentou.
Raissa levantou os olhos para fitar o dono da voz. Era de um
senhor na casa dos seus sessenta e poucos anos. Era alto, magro, barba
por fazer e tinha uma cabeleira branca com entradas acentuadas devido
à calvície. Ao contrário dos profissionais que entravam em seu quarto,
aquele tinha um jeito um tanto desleixado. Sob o jaleco, vestia uma
calça jeans de lavagem clara e uma blusa de botão quadriculada em
tonalidades vermelho e preto. Em seus pés, um par de tênis All Star
preto.
— Olá, mocinha brava – disse ao entrar. – Fiquei sabendo que a
senhorita queria falar comigo. Me chamo Bernardo Feitosa, sou
neurocirurgião, mas até onde sei aqui neste quarto ninguém está
precisando abrir a cabeça – disse com bom humor.
O homem falou com tanta naturalidade que foi impossível não
sorrir. A jovem tinha a certeza de que o médico, que ela passou o dia
aporrinhando para ir vê-la, chegaria ali no mínimo com a cara de
poucos amigos. Porém, o doutor Bernardo não parecia nenhum pouco
irritado. Cansado, talvez, a julgar pelas olheiras sob as lentes grossas
dos seus óculos modelo tartaruga.
— Desculpe a insistência – falou a jovem, sentando-se na cama. –
Graças a Deus, não vai ser preciso abrir minha cabeça, até porque gosto
dos meus cabelos. Sabe quanto anda custando um corte de cabelo? –
Ela retribuiu a brincadeira.
Sua brincadeira fez o médico dar uma gargalhada daquelas bem
alta. Até a dona Thaís que acompanhava a interação sorriu.
— Posso imaginar, menina, a julgar pelas despesas de salão de
beleza da minha mulher e das minhas filhas – replicou ainda sorrindo. –
Três mulheres em casa me deixam em total desvantagem – continuou,
simpático.
Raissa agradeceu aos céus o bom humor e a receptividade do
cirurgião. Esperou ele se recompor para finalmente perguntar o que lhe
afligia.
— Acho que meu pai diria o mesmo, apesar de que lá em casa
somos duas – falou Raissa. – Então, doutor, me chamo Raissa
Fernandes – se apresentou de maneira formal. – Pedi para chamá-lo,
porque gostaria de saber sobre a mulher atropelada. Sei que está
internada aqui. Como está? Sua família já foi localizada?
— Você sabe que não posso lhe dar essa informação, não sabe? –
Ele disse.
Sim, ela sabia, mas não desistiria tão facilmente. Raissa usou
descaradamente suas habilidades de persuasão para convencer o médico
a passar informação. Demorou, mas, por fim, ele acabou cedendo, ao
perceber que sua preocupação era sincera.
— Infelizmente, não conseguimos encontrar seus familiares. Seu
quadro clínico é bastante delicado. A hemorragia cerebral foi contida,
porém só podemos fazer uma nova avaliação quando ela acordar.
— Mas ela está bem? – perguntou.
— Ela está estável, Raissa. Agora, para ser sincero, não sei como
sobreviveu, pois, além do impacto do acidente, encontramos
perfurações de bala em seu abdômen. Por sorte, nenhum órgão foi
atingido, conseguimos retirar todos os estilhaços, mas, como disse, o
trauma na cabeça a levou ao coma. As autoridades já estão cientes do
caso.
Raissa se encolheu na cama, ela não saberia descrever o que sentiu
ao ouvi-lo, tudo dentro de si pareceu congelar. Seu peito pulava
devagar, porém em batidas fortes e doloridas. Seu olhar se perdeu num
ponto fixo do quarto. Ao perceber aquela reação tão sincera, o médico
delicadamente apertou seu ombro, compreensivo.
— Eu sinto muito – disse o médico.
Eu também sinto. Mais que muito, disse Raissa, baixinho. Nem sei
se existe essa expressão, mas eu sentia mais que muito, repetiu quase
audível. Depois de mais algumas palavras trocadas, ele se retirou.
◆◆◆
CAPÍTULO 3
Ela está dormindo

Raissa ficou por quase uma semana internada. Ela já sentia falta da
sua casa e da sua rotina. Fisicamente, estava se recuperando bem, só o
gesso da perna direita que perduraria por mais algumas semanas.
Mesmo rodeada de todos que amava, seus pensamentos tinham ficado
no CTI do hospital com a desconhecida. Guilherme lhe contou que não
conseguiram encontrar nenhum documento ou qualquer coisa que
pudesse identificá-la.
— Como uma pessoa pode aparecer do nada? – questionou,
irritada.
— Não sei, amor – disparou o rapaz.
A advogada bem que tentou tirá-la da cabeça, mas simplesmente
não conseguia. Era um sentimento de culpa que não sabia explicar.
Uma semana depois, Raissa teve que voltar ao hospital para uma
consulta. Após ser liberada, pediu que sua mãe a aguardasse na
recepção, pois, antes de ir, queria saber notícias da desconhecida. Ela
caminhou com as muletas até o consultório do neurologista, ela já
estava se tornando conhecida, pois ligava quase que diariamente para o
médico em busca de notícias da garota.
— Pensei que já tinha me livrado de você – disse o médico, quando
ela entrou em sua sala.
— Acho meio difícil, doutor. Sou carne de pescoço – brincou.
A jovem sentiu os olhos daquele médico lhe varrer por inteira, mas
não no sentido sexual, era como se ele quisesse entender o porquê de
tanta preocupação com uma desconhecida.
— Queria saber como a moça está, estou preocupada. Já passaram
duas semanas desde que aconteceu o acidente.
Ele aproximou-se e a ajudou a se acomodar na cadeira, em seguida
se acomodou atrás da sua mesa. Com um timbre de voz calmo e muito
paciente, voltou a dizer o atual estado da paciente.
— Seu prognóstico continua inalterável – finalizou, minutos
depois.
— Gostaria de vê-la – pediu.
Mais uma vez, Raissa teve que usar da sua persuasão para
convencê-lo. Primeiro porque a garota estava no CTI, segundo porque
ela não tinha nenhum grau de parentesco com a paciente. Mas já dizia o
ditado: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.
— Não sei por que deixo-me enrolar por você, menina! Estou
quebrando não sei quantas regras deste hospital. – Ele disse risonho. –
Qualquer dia me faz perder o emprego.
— Ainda bem que sou amiga do diretor – disse, dando uma
piscadinha divertida, já que aquele simpático senhor era justamente o
diretor do hospital.
O médico riu, ele não entendia por que, mas tinha muita simpatia
por aquela jovem. Doutor Bernardo levantou-se, caminhou em direção
à porta e convidou-a para acompanhá-lo. Eles seguiram até o quarto
andar. Assim que chegaram ao quarto, Raissa visualizou, através do
vidro, uma mulher deitada numa cama repleta de aparelhos ligados ao
seu corpo.
— Quando ela vai acordar? – perguntou.
— Difícil dizer. Encontramos pequenas sombras nos lóbulos
frontais, o que não explica por completo o coma. Meu palpite é que ela
tenha sofrido uma hipóxia.
— O que é isso? – perguntou, pois de medicina não entendia nada.
— Falta de oxigênio no cérebro.
— Sim, mas quando vai acordar? – quis saber, agora buscando os
olhos escuros do médico.
— Não tenho essa resposta, Raissa. Só nos resta esperar. – Ele
disse.
Se Raissa já sentia “mais que muito”, depois dessa informação
tudo se agravou. Ela chegou à recepção do hospital arrasada.
— Você demorou, filha – disse dona Thaís.
— Destruímos uma vida, mãe – disse, com a voz embargada.
A mais velha fitou os olhos lacrimejados da filha. Raissa sentia-se
culpada, e não havia nada do que dissessem que poderia tirar esse peso
de seu coração.
Sete semanas depois.
— Posso entrar? – perguntou a advogada.
— A menos que tenha me trazido aquele bolo de laranja que só a
dona Thaís sabe fazer – respondeu Dr. Bernardo sorrindo.
Raissa devolveu o sorriso e entrou no consultório, em seguida
entregou uma sacola de papel, no qual estava o agrado enviado por sua
mãe. Ela sempre fazia bolo para a morena levar para as meninas do
hospital (enfermeiras e técnicas de enfermagem) e também para aquele
homem que já estava se tornando um amigo. Era uma pequena
retribuição pelo carinhoso tratamento que sua filha teve enquanto ficou
internada.
— Como está se sentindo? – Ele me perguntou.
— Livre! – respondeu, aliviada. – É ótimo andar sem as muletas. –
Riram juntos. Já acomodados, Raissa perguntou: – E ela, doutor,
alguma mudança?
Ele balançou a cabeça em sinal de negação.
— Já faz mais de um mês – disse, inconformada. – Como alguém
pode passar tanto tempo assim em coma?
— Isso é mais comum do que imagina, Raissa. Já lidei com casos
de paciente que passaram meses em coma – falou de modo realista. –
Quando se trata de traumatismo craniano é tudo muito complexo.
Difícil mensurar o tamanho do dano.
— Mas o senhor tem que fazer alguma coisa – exigia em tom de
desespero. – Precisa acordá-la, doutor. Arrumar um jeito de fazê-la
acordar.
O homem lhe olhou com ternura. Sua voz saiu docemente:
— Raissa, sou apenas um simples médico. Nem tudo está nas mãos
da medicina, pode ter certeza que estamos fazendo o possível.
Aquela impotência machucava profundamente a advogada.
— Agora que não precisa das muletas, vou permitir que a veja de
perto – disse no intuito de amenizar a tristeza da jovem.
Raissa levantou o rosto e arregalou os olhos que estavam
inundados, seu coração deu uma batida acelerada.
— Agradeça a dona Thaís – disse, olhando para a sacola que a
moça tinha trazido e dando uma piscadinha divertida. – Vamos! –
chamou.
A morena sorriu e levantou-se de sobressalto, em seguida
acompanhou o médico até o sétimo andar.
A desconhecida tinha sido transferida para um quarto particular do
hospital. Raissa tanto aporrinhou o noivo que conseguiu convencê-lo a
pagar pelas despesas médicas dela, como uma forma de compensação.
No 7º andar, os dois caminharam por um extenso corredor até o
médico parar e apontar para a porta de número 101. As persianas
estavam levantadas, então foi possível ver uma garota próxima à cama.
O médico girou a maçaneta e abriu a porta, segundos depois ambos
estavam dentro do quarto.
— Boa tarde! – cumprimentou o homem.
— Boa tarde, doutor, acabei de higienizá-la – informou a técnica de
enfermagem.
Alheia ao que os dois profissionais de saúde falavam, Raissa foi
puxada como um ímã até a cama onde a garota parecia dormir. O topo
de sua cabeça estava enfaixado, mas era possível ver a tonalidade dos
seus cabelos, eles eram amarelos e compridos. Havia uma sonda
nasogástrica. A parte superior do peito estava com vários fios fixados
na sua pele, provavelmente para monitorá-la. Quando a morena chegou
mais perto, foi possível ver com riqueza de detalhes seu rosto. Era
jovem. Meu Deus! Como parece ser jovem, disse Raissa baixinho. Os
olhos verdes-oliva passearam pelos traços delicados da mulher. Ela
tinha a pele clara, lábios finos, boca pequena e nariz afilado. Ela tem
um rosto tão angelical, pensou a advogada.
— Raissa, vou deixá-la ficar por alguns minutos, tá bem? – falou o
médico.
Materializar seu imaginário foi totalmente estranho. Sua pulsação
acelerou, e o suor escorreu por suas costas. Raissa apenas escutou a
porta fechar atrás de si. Mesmo se sentindo estúpida, a advogada
desatou a falar.
— Moça, me desculpe – disse. Sim, ela estava se sentindo uma
idiota falando com alguém que aparentemente não a ouvia, contudo,
outro dia, Raissa tinha lido um artigo médico que dizia que era bom
falar com pessoas em coma. Na verdade, pessoas em coma têm
ocupado bastante seu histórico de pesquisa no Google. – Eu sinto muito
pelo que aconteceu. Sinto de verdade, mas, olha, fique tranquila, agora
que estou plenamente recuperada, vou ajudar a encontrar sua família.
Te prometo. – Iria mesmo, agora que estava plenamente recuperada, a
jovem moveria céu e terra para descobrir quem era aquela garota. –
Agora seria interessante que acordasse, ajudaria bastante – brincou.
Depois desse dia, Raissa passou a visitá-la frequentemente.

◆◆◆
CAPÍTULO 4
O despertar

Treze meses depois.


Os dias foram se tornando meses. A vida daquela mulher ainda era
um grande mistério. Depois que se recuperou, Raissa iniciou uma
investigação particular para descobrir a identidade da garota. Ela perdeu
as contas das idas e vindas a diversas delegacias, não só da capital,
como também de outros distritos. Buscou por pessoas sequestradas,
desaparecidas e até foragidas, mas nada. Com a ajuda dos amigos,
divulgaram sua foto em suas redes sociais na esperança de que alguém
pudesse reconhecê-la, mas também não resultou em nada. Guilherme já
estava estressado com o assunto, até porque ele estava respondendo
processo criminal por conta do acidente. Devido ao fato de a garota ter
sido encontrada também baleada, as autoridades não passaram os panos
quentes, não adiantou nem mesmo o tio do advogado interceder. Doutor
Calheiros tentou abafar o caso, mas, por sorte, ao menos daquela vez,
um playboy não passaria por cima da justiça. As investigações
prosseguiram mesmo nos passos de um jabuti.
Domingo à tarde.
— Vai sair, filha? – perguntou dona Thaís.
— Vou visitá-la, não consegui ir durante a semana – explicou.
Apesar de todas as críticas que recebia do noivo, era mais forte que
ela, toda semana Raissa ia vê-la. Além de ligar dia sim e dia não para
saber sobre seu estado de saúde. Guilherme achava absurdo tanta
preocupação com alguém que manchou sua vida pregressa.
— Por que você não esquece essa mulher? Você já fez o que podia,
acho uma perda de tempo visitar uma moribunda – disse sua mãe.
— Tchau, mãe! – Raissa deu um beijo na mãe e saiu. Até mesmo os
seus pais começaram a pressioná-la para deixar aquilo de lado.
As pessoas parecem esquecer que esse ser humano pode ser: filha,
esposa, mãe de alguém. E sempre que Raissa pensava nisso, um frio
percorria sua espinha. Então, na sua cabeça, dedicar algumas horas do
seu dia para fazer aquela visita não lhe tiraria pedaço. Com esses
pensamentos, ela chamou um Uber e, em menos de quarenta minutos, já
estava no hospital.
Raissa seguiu direto para o 7º andar. Ela já tinha se tornado
conhecida ali, de modo que, por onde passava, cumprimentava as
pessoas. Ao cruzar a porta do quarto nº 101, foi logo disparando:
— Boa tarde, moça bonita! – falou rindo. Ela sempre se sentia uma
boba falando com alguém que sequer a ouvia, mas isso não a emudecia,
pelo contrário a fazia tagarelar ainda mais. – E aí, como tem passado? –
perguntou ao sentar na poltrona ao lado da cama. – Com certeza deve
ter sentido minha falta, nem pude vir na quarta-feira, tive uma
audiência. Estou muito feliz porque ganhei a causa. Se você estivesse
boa, poderíamos sair para comemorar, mas és uma preguiçosa. – Riu
das próprias bobagens. – Bem, agora me diga como está se sentindo?
Não seja mal-educada, abre os olhos, vai – pediu docemente segurando
delicadamente a mão fria da mulher.
Raissa ficou tagarelando durante todo horário de visita. Quando já
estava prestes a sair, algo aconteceu que a deixou estupefata. De
repente, a mulher elevou o corpo de supetão e começou a se debater.
Foi tudo muito rápido. Ao sair do seu estupor, a advogada começou a
gritar chamando alguém. Logo várias pessoas de uniformes branco
invadiram o quarto, uma das enfermeiras arrastou a visita para fora,
enquanto tentavam estabilizar a paciente. Depois de tensos minutos,
tudo ficou calmo novamente. A luz foi apagada, e todos saíram do
ambiente.
— O que houve? – Raissa foi em direção à médica. – Ela acordou?
– perguntou quase aos gritos. Não era sua intenção, mas estava muito
nervosa com o que presenciou.
— Calma – pediu a doutora Rosalinda.
— A vi se mexendo, isso significa que está saindo do coma, não é?
– Sua voz estava trêmula e alvoroçada ao mesmo tempo.
— Psicose de UTI – determinou a plantonista. – Não é raro que
pessoas que estejam em coma tenham momentos de lucidez – disse sem
mais explicações.
— Então ela está acordando – falou, esperançosa. Pois, por alguns
segundos, seu coração se encheu de esperança, mas foi só por alguns
segundos mesmo, porque lidar com cientista… era tipo assim: não tem
aquele dia ensolarado que você resolve pegar uma praia, aí junta a
família toda para fazer aquela farofagem? Pois, dentre todos os
apetrechos para esse momento em família, não pode faltar aquela caixa
térmica cheia de latinhas de cervejas finalizada com sacos de gelos que
será a alegria dos que bebem. No final do dia, as cervejas acabaram e o
gelo derreteu, mesmo assim ainda nos resta aquela água estupidamente
gelada que obviamente não será desperdiçada. Para os bons
entendedores, eles sabem que essa mesma água será usada para tirar o
excesso de areia dos pés antes de ir para casa. Pois bem, senhores, foi
justamente essa água estupidamente gelada que a Dra. Rosalinda (que
de linda não tinha nada. Não por sua estética, mas por sua frieza) jogou
sobre Raissa com sua falta de fé.
— Não tenho nada contra esperança, Raissa, porém essa mulher
está em coma a mais de 365 dias, ou seja, é bastante improvável que
saia dessa situação. E mesmo que saia, as sequelas podem ser bastantes
assustadoras – disse num tom frio e indiferente. – Há casos de pacientes
que acordam depois de um longo período de coma, mas não
sobrevivem.

No dia seguinte.
O cirurgião ficou surpreso quando chegou para trabalhar e foi
informado sobre o que aconteceu com sua intrigante paciente. O
médico foi examiná-la pessoalmente.
— O dano no cérebro pode ter sido consequência da pancada na
cabeça, não da perda de oxigênio – dizia um dos residentes que
acompanhava o neurocirurgião. Era um grupo de quatro estudantes.
Doutor Bernardo parecia não os ouvir, pois sua atenção estava na
moça deitada sobre a cama de metal. Ele queria entender o que tinha
acontecido no dia anterior. Embora a médica plantonista tenha colocado
no prontuário que havia sido uma psicose de UTI, o neurologista não
estava convencido. Aquele caso em especial havia o fisgado.
— Tem uma pessoa muito preocupada com você. Vamos lá, acorde
– pediu baixinho. – Não me incomodo em receber bolo de laranja toda
semana, mas me incomoda ver aqueles lindos olhos verdes tristes –
falava o médico, com seu jeito doce de ser.
De repente, a mulher mexeu a mão esquerda. O residente que
estava daquele lado da cama deu um gritinho assustado.
— Ela se mexeu – disparou o jovem. – Santo Deus! Ela se mexeu –
afirmou o residente.
Doutor Bernardo sorriu e continuou a tagarelar com a paciente
desacordada. E o impossível aconteceu. Aos poucos a paciente foi
abrindo os olhos deixando todos, exceto seu médico, estarrecidos.
— Ela está acordando, ela está acordando – dizia outra residente. –
As pálpebras dela estão se mexendo, vejam.
Todos foram para cima da paciente, queriam ver de mais perto. O
médico pediu para se afastarem. E minutos depois, de fato, a bela
adormecida despertou.

◆◆◆
CAPÍTULO 5
Sou a mulher do cara que quase te matou

Em algum lugar no bairro de Ponta Negra-RN.


Raissa estava trabalhando no meio de uma papelada danada quando
recebeu uma ligação do hospital, avisaram que a paciente tinha
acordado. Ela mal pôde acreditar, fez a telefonista repetir três vezes a
informação. Seu coração pulava de forma dolorida. Desligou o telefone
ainda sob os efeitos: surpresa, alegria e medo. Ela acordou!, falou em
voz alta para escutar a própria voz. Depois de ser ouvida, ela saiu de
sua sala apressadamente e foi até a sala do Guilherme.
— Não precisa me anunciar – disse para a secretária do advogado.
Sem hesitar, ela girou a maçaneta e entrou no escritório do noivo. –
Amor! – disse, animada ao entrar.
Ele estava sentado atrás da sua mesa falando com alguém ao
telefone. Quando a viu, sorriu, colocou a mão sobre o fone e falou
baixinho:
— Dois minutinhos – pediu.
Raissa caminhou em sua direção, ficando por trás dele e o
abraçando. Guilherme alisou os braços em volta do seu pescoço com
carinho. Falou por mais alguns segundos no telefone e encerrou a
chamada. Quando isso correu, girou a cadeira e a fez sentar em seu
colo.
— Ela acordou, acordou – disse, eufórica.
Antes mesmo de entender do que a mulher se referia, a puxou para
um beijo vagaroso.
— Agora me diga do que está falando? – perguntou depois de
finalizar o beijo.
— Acabaram de ligar do hospital avisando que a mulher acordou.
Ela finalmente acordou.
Guilherme fez menção de se levantar, o que fez Raissa levantar-se
do seu colo.
— E daí? – perguntou, sem interesse.
A morena trincou os dentes, a indiferença do seu noivo a irritava
profundamente. Em tom inflamado, perguntou:
— Como assim “e daí”, Guilherme? Essa mulher ficou em coma
durante um ano. UM ANO – fez questão de frisar.
— Não me olhe assim – reclamou diante daquele olhar duro. – Essa
mulher manchou o meu nome. – Ele disse. – Estou arcando com todas
as suas despesas, não tô? Já está de bom tamanho comparado a dor de
cabeça que tudo isso me gerou.
Raissa olhou para o homem que amava sem querer acreditar no que
acabou de ouvir. Sua voz saiu baixa e gelada.
— Acho que você esqueceu de um detalhe, doutor Guilherme
Alcântara. Não foi ela quem estava sentada atrás do volante se sentindo
o próprio Ayrton Senna.
— Ela apareceu do nada, Raissa, não foi minha culpa – defendeu-
se.
A morena deu um sorriso irônico e cruzou os braços.
— Claro que não. Foi culpa do fantasma Gasparzinho que estava
atrás do volante do seu precioso BMW X6 – debochou.
Os olhos da morena estavam faiscando de raiva, a falta de empatia
do homem colocava muitas dúvidas em sua cabeça. Ele, por sua vez,
lançou um olhar furioso. Raissa sabia como atingi-lo, e esse acidente
era como socos sequenciados em seu estômago.
— Foi um acidente – retorquiu. – Será que você nunca cometeu um
erro na sua vida? – perguntou, perdendo a paciência.
— Cometi, sim, mas não um capaz de roubar um ano da vida de
alguém. Você pode ter conseguido se livrar da cadeia, Guilherme, mas
isso não quer dizer que seja inocente.
Dito isso, a mulher lhe deu as costas e saiu da sala.
— Raissa, volta aqui! – exigiu ao interceptá-la no corredor.
A atitude do advogado não passou despercebida, algumas pessoas
pararam seus afazeres e observaram o casal. O rapaz, por sua vez, ao
perceber os olhares em sua direção, tentou se recompor, pois para ele
aparência era tudo, e dentro daquele escritório era visto como o
advogado “nervo de aço”.
— Vamos conversar na minha sala – chamou, segurando levemente
o braço da noiva.
— Não. Porque farei o que era para você fazer – disse Raissa, séria,
se livrando da mão do rapaz. – Vou vê-la e, assim que possível,
devolverei a vida que roubamos dela, custe o que custar.

Durante o percurso até o hospital, Raissa tentou se acalmar.


Embora ainda fosse quinze horas, o trânsito estava intenso naquela
tarde de segunda-feira. Um percurso de vinte cinco minutos durou
quase uma hora. O carro foi estacionado, e ela desembarcou do veículo.
— Olá, Raissa! – cumprimentou Socorro, uma das enfermeiras com
quem a morena fez amizade.
— Oi, Socorro. E aí, ela acordou mesmo? – perguntou.
Socorro lhe sorriu.
— Acordou, sim. Normalmente o período de coma dura apenas três
ou quatro semanas. Esse foi o primeiro caso que um coma perdurou por
mais de 365 dias – falou a enfermeira sem esconder o entusiasmo,
diante de um caso tão incomum para ela. – Ela despertou durante a
ronda dos estudantes. Imagine o alvoroço.
— Mas ela está bem? – Raissa quis saber.
— Fisicamente, sim, mas o doutor Bernardo vai lhe dar mais
detalhes. Vou avisá-lo que você está aqui.
— Obrigada. Será que posso vê-la? – perguntou, ansiosa.
A enfermeira hesitou, provavelmente tinha recebido ordem para
ninguém incomodar a paciente.
— Acho melhor avisar o doutor Bernardo antes… – Ela disse sem
jeito.
— Tudo bem. – Raissa a interrompeu. – Vou esperá-lo aqui, então.
Socorro meneou a cabeça e saiu. A morena se viu sozinha em
frente ao quarto nº 101. Exaurida toda raiva que movia seu corpo,
devido à discussão com o noivo, Raissa foi tomada por outro
sentimento. Ela está acordada, pensou. Parecia que a ficha tinha
acabado de cair. E essa constatação lhe causou uma tremedeira danada,
suas mãos começaram a suar e seu coração, coitadinho, dava solavanco
no peito. Normalmente, ela sempre sabia o que dizer, afinal, o direito
lhe ajudou a ter raciocínio rápido, a saber lidar com tensão, entre muitas
outras coisas, contudo, naquele momento ela travou. Simplesmente
paralisou diante daquela porta. Oi, sou a mulher do cara que quase te
matou era o que vinha a sua mente. Raissa ficou ali parada naquele
impasse: entra ou não entra, porém o medo que sentia não era maior
que sua curiosidade de vê-la. A risada nervosa que acometeu acabou lhe
enchendo de coragem. Após cessar o riso, respirou fundo, soltou o ar
devagar, girou a maçaneta e invadiu o quarto. Seus olhos escrutinaram
o local até encontrar uma figura parada próximo à janela, ela estava de
costas e parecia absorta na movimentação lá fora. Raissa sorriu ao ver a
garota em pé, ela está viva, pensou feliz.
— Olá! – falou na intenção de se fazer notar, mas a outra não
notou. – Olá! – repetiu, e não obteve resposta. Sem muito o que fazer,
Raissa aproximou-se a ponto de ficar a poucos passos da desconhecida.
– Oi!
A garota virou bruscamente fazendo seu corpo colidir com o da
advogada.
— Desculpa – disse a morena, segurando-a, pois a outra tinha se
desequilibrado. – Meu nome é Raissa, tudo bem com você? –
perguntou, soltando-a.
A paciente parecia um animal assustado que se sentia encurralado,
pois, à medida que a morena caminhava para frente, ela caminhava para
trás até chegar à sua cama.
— Ei, sou feia, mas não mordo – disse em tom de brincadeira, mas
a reação da garota foi estranha, ela subiu na cama e deitou-se em
posição fetal. – Eu não queria…
Raissa não terminou a frase, abruptamente a porta do quarto foi
aberta e a figura do doutor Bernardo apareceu.
— Boa tarde, Raissa! Vejo que conheceu a nossa dorminhoca –
disse o médico de forma simpática.
— Boa tarde, doutor! Me desculpe por não ter…
— Vamos tomar um cafezinho na minha sala, o que acha? – a
interrompeu. Sem esperar resposta, o doutor Bernardo segurou Raissa
pelos ombros e a conduziu para fora do quarto sem cerimônia. – Vamos
para meu consultório.
Os dois se dirigiram até o 9º andar. Depois de acomodados, ele a
atualizou sobre o estado de saúde da garota.
— Nesse tipo de caso, um grau de amnésia temporária é esperado –
explicou o neurologista. – Após um traumatismo craniano, pode ocorrer
a denominada amnésia lacunar, ou seja, a pessoa não se recorda do
acidente e de fatos que ocorreram imediatamente antes do mesmo.
Porém… – fez uma pausa.
— O que isso quer dizer? – A pergunta veio num fio de voz. O
estômago contraiu-se, e Raissa sentiu-se paralisada.
— Uma perda de memória é até comum nesses casos, mas perda
total de memória, não. Fizemos alguns exames preliminares, e a boa
notícia é que parte das suas funções cognitivas parecem normais,
contudo, ela apresenta uma amnésia dissociativa.
Eu pensei que as coisas não poderiam ficar piores, mas estava
enganada, disse a jovem para si mesma. Seu intelecto deu um giro de
360 graus. Sua confusão era tão visível que o médico tentou atenuá-la.
— Raissa, dada as circunstâncias do trauma e o período do coma,
não seria incomum esperar algum tipo de amnésia. Seja ela: retrógrada
ou anterógrada.
— Comum, incomum, não estou entendendo nada – disparou,
confusa e agitada.
O médico tirou os óculos de grau do rosto, se encostou no encosto
da cadeira e a fitou nos olhos.
— Raissa, o que estou querendo dizer é que embora seja
prematuro, nossa dorminhoca apresenta uma amnésia dissociativa, ou
seja, ela não consegue lembrar de nada da sua autobiografia. Nem
mesmo seu nome – finalizou, esperando ter sido claro.
E mais uma vez seu intelecto deu uma pirueta digna de medalha
olímpica. Embora seu corpo todo estivesse suando externamente, por
dentro estava tudo gelado, tão gelado que dava a sensação de que tudo
estava tremendo. Com a voz vacilante, ela conseguiu dizer:
— O senhor já imaginou acordar um dia e não se lembrar de nada?
– perguntou com os olhos marejados. – Abrir os olhos e encontrar
apenas o vazio? Não foram apenas treze meses que tiramos desta
mulher, tiramos tudo.
— Calma, menina. Vamos fazer uma nova bateria de exames
neurológicos, você não tem responsabilidade com ela.
A advogada se levantou e caminhou até a porta. Quando se virou
para o médico, forçou um sorriso fraco.
— Claro que tenho, doutor. Fui partícipe da imprudência do meu
noivo, o que me torna tão culpada quanto ele. Me sentir responsável por
essa mulher é o mínimo.

Não deve ser nada agradável acordar um dia e não ter um


passado, não saber do presente e não vislumbrar um futuro. A
advogada saiu do hospital com esses pensamentos. Quando chegou em
casa eram mais de 18 horas, e, para sua surpresa, encontrou o noivo
sentado no sofá conversando com seu pai.
— Oi, amor! – cumprimentou o advogado, se levantando e indo ao
seu encontro. – Vou dormir aqui.
Sinceramente, a última coisa que Raissa queria era sua companhia.
— Como foi lá? Ela está bem? – emendou. Guilherme era um
homem muito esperto. Ele sabia o quanto sua falta de empatia afetava
sua noiva. Perguntar sobre a moça era só uma forma de tentar amenizar
a tensão gerada no escritório.
— Não finja interesse – replicou, sem se importar de ser grosseira.
— Amor… – segurou pelo cotovelo.
— Vou tomar um banho, depois conversamos – disse,
desvencilhando e saindo.
Raissa tomou um banho mais que demorado, trocou de roupa sem
pressa e, quando voltou à sala, a mesa já estava posta. Todos só estavam
aguardando para jantar.
— Desculpa o jeito que falei hoje à tarde, não imaginei que essa
situação pudesse ter mexido tanto com você, mas não entendo o motivo
de tanta preocupação. – Ele disse quando a viu se acomodar na cadeira
ao seu lado.
Raissa sentia-se triste e não queria brigar. Ela virou-se para o rapaz.
— Quando recebi a ligação do hospital, senti como se um peso
enorme tivesse sido removido das minhas costas. Finalmente, íamos
poder atenuar os danos que causamos a ela. – Foi instantâneo, seus
olhos marejaram e sua voz embargou. – Nossa imprudência tirou tudo
dela, Guilherme. Absolutamente tudo. Tiramos seu passado, seu
presente e quem sabe lá o seu futuro. Ela perdeu totalmente a memória.
Acordou num lugar estranho e não se lembra nem do próprio nome.
— Não tive culpa, Raissa – rebateu, parecendo ignorar
propositalmente o que acabou de ouvir. – Quantas vezes terei que
repetir até você entender?
— O Guilherme tem razão, filha – se meteu dona Thaís. – Foi um
acidente, ninguém teve culpa, ele já está pagando por seu descuido.
Raissa levantou-se da mesa e fitou os olhos escuros de sua mãe.
— A senhora não pensaria assim, se ao invés daquela desconhecida
fosse eu – disse de forma dura. Dito isso, abandonou a mesa. O jantar
foi encerrado antes mesmo de ter começado.
Guilherme olhou para os sogros e também se levantou, pediu
desculpas e foi embora daquela casa.
CAPÍTULO 6
Eu não sei

— Socorro, quero que fique encarregada de acompanhar


exclusivamente essa paciente. Ela será monitorada a cada hora. Quando
seus exames saírem, quero que venha me entregar imediatamente –
ordenou o médico.
Socorro era uma simpática enfermeira, ela estranhou a ordem
recebida do diretor do hospital, mas não ousou questioná-lo.
Após acordar, as horas subsequentes foram cansativas e
estressantes para aquela famosa paciente. Ao final do dia, a enfermeira
lhe ajudou no banho e depois a deixou no quarto dizendo que em breve
alguém traria sua refeição. Assim, ela ficou ali sozinha, sem conseguir
coordenar seus pensamentos, na verdade, sequer tinha pensamentos.
Era tudo confuso e vazio em sua mente. As únicas palavras que
conseguiu pronunciar desde que acordou foram: “eu não sei”. O
homem de cabelos brancos e olhos perspicazes retesou. Repetia as
perguntas calma e vagarosamente, mas as respostas não mudavam. Não
havia nada para trás ou para aquele momento presente.
Já sozinha, seus olhos foram fisgados pela claridade do dia que
ainda brilhava lá fora. A paciente tinha sido conduzida pelo hospital
numa cadeira de rodas, onde todos os olhares pareciam voltados para
ela. Por esse motivo, só percebeu o quanto estava fraca, quando desceu
da cama e tentou se colocar em pé. Suas pernas fraquejaram, e ela teve
que segurar com força no metal frio da cama hospitalar. Seu coração
acelerou. O chão estava frio devido ao forte ar-condicionado. A garota
ergueu o corpo magro só coberto pela bata do hospital. O barulho
longínquo da vida lá fora parecia combustível para seus pés. Eram sons
diversos, mas os de buzinas se destacavam. Se apoiando pelas paredes,
conseguiu chegar à janela. Primeiro, olhou para o azul do céu, os raios
solares daquele fim de tarde ainda eram capazes de aquecer sua pele
translúcida. Depois, olhou lá para baixo onde os carros desfilavam
vagarosos, e seus olhos se perderam ali. Até que uma voz que parecia
familiar soou. Foi uma sensação estranha, além da voz, um cheiro
diferente invadiu o ambiente.
— Oi! – Alguém disse.
Aquele oi soou próximo, próximo demais, tão próximo que a fez se
virar tão bruscamente que ela perdeu o equilíbrio, mas, por sorte, Raissa
a segurou pela cintura.
— Desculpa, eu não quis te assustar.
Raissa segurou um corpo frágil da paciente. A moça era um pouco
mais baixa que ela, de 3 a 5 centímetros apenas. Vendo-a de tão perto,
notou sua palidez. Seus cabelos tinham crescido, eles chegavam quase
na cintura. E a advogada poderia apostar que ela era uma loira legítima,
a julgar pelos fios dourados de sua cabeleira e os castanhos tão claros
de suas sobrancelhas. Ela também parecia assustada. Com dificuldade,
se desvinculou daquele contato e foi caminhando de costas até chegar à
cama. Raissa tentou se desculpar, até que o médico entrou no quarto e a
levou para longe.

O dia seguinte não foi muito diferente do anterior, a paciente


passou por novos exames e foi analisada por outros profissionais de
saúde.
— Quando os resultados dos exames ficarem prontos, quero que
me entregue imediatamente, Socorro.
— Sim, doutor Feitosa.
O médico saiu da sala de tomografia, enquanto a enfermeira
ajudava a paciente a sair da máquina. Depois de acomodá-la na cadeira
de rodas, a levaria para seu quarto. O dia tinha sido cheio para ela, além
do mais, inúmeros pares de olhos estavam à sua espreita. Isso a deixava
desconfortável, embora não falasse uma só palavra.
— Você não gosta de falar, não é? – Socorro perguntou, mas não
obteve resposta. Contudo a baixinha faladeira pareceu não se importar e
continuava tagarelando: – Raissa ligou logo cedo para saber de você. –
Aquele nome gerou uma sensação estranha na paciente, que virou o
rosto para trás fitando a moça que empurrava sua cadeira. Socorro lhe
sorriu. – Ela foi a única que acreditava que você fosse acordar, não
deixou de vir visitá-la uma semana sequer, e sempre ligava para saber
de você – contava a mulher. – Ela enviou algumas roupas pelo
motoboy. Quanta gentileza dela, né?! Ela é muito fofa – disse com um
certo suspiro que não passou despercebido por sua locutária. – E linda
também, santo Deus, que advogata! – A última frase saiu entusiasmada
demais.
Elas chegaram ao quarto.
— Quer ajuda no banho? – perguntou a enfermeira.
A paciente olhou para a mulher, queria recusar, mas ainda se sentia
fraca, segundo seu médico, levaria um pouco de tempo para ela se
fortalecer. Socorro era uma simpática garota na casa dos seus vinte e
poucos anos, era enfermeira e tinha sido designada para dar uma
atenção especial à paciente.
— Eu te ajudo, precisa ficar apresentável. Sua musa disse que viria
no horário de visita – falou, dando uma risadinha travessa.
Meia hora depois, a moça estava de cabelos lavados, trajando calça
moletom e uma blusa de alça preta.
— Você é bonita. Embora esteja bem magrinha e muito
transparente – disse a mais nova risonha. – Já que está tudo okay aqui,
vou voltar para meus outros pacientes. Antes da troca de plantão, venho
te ver.
A DESMEMORIADA
Finalmente, aquela garota tagarela me deixou sozinha no quarto.
Antes de ir, ela tinha ligado o televisor, que ficava fixado na parede. E
naquele show de sons e imagens não vi a hora passar. Meus sentidos
estavam todos voltados para a televisão, então não percebi quando
alguém entrou.
— Boa tarde, moça bonita!
Olhei para a figura parada na porta. Não era como os outros. Não
estava de jaleco e roupas brancas. Ela tinha a pele marrom e os lábios
pintados de vermelho. Usava um vestido tubinho com transpasse sem
manga de tonalidade preto, que se estendia até acima dos joelhos, nos
pés estavam os sapatos scarpin, também da mesma cor. Seus cabelos
eram curtos, num modelo chanel de bico, muito lisos e escuros.
Instintivamente me encolhi na cama, e essa reação a fez caminhar a
passos largos em minha direção. Quando menos esperei, senti meu
corpo sendo envolvido em um abraço.
— Não sabe o quanto fico feliz em te ver acordada – disse com os
lábios próximos ao meu ouvido. Segundos depois, se afastou. Seus
olhos lembravam duas azeitonas, por causa da tonalidade do verde. Sem
desgrudar os olhos de mim, ela sentou-se na beirada da cama. Ela
parecia me conhecer, a julgar por sua espontaneidade, e essa
possibilidade fez meus batimentos acelerarem.
— Oi! – Ela disse. Seus lábios se comprimem num sorriso tímido.
– Queria ter vindo logo cedo, mas tive que passar no fórum… – Ela
começou a se explicar.
— Quem é você? – a interrompi. – Você me conhece?
Não sei o que ela viu em meu rosto, mas seus olhos fixaram nele.
De repente, suas “azeitonas” desviaram dos meus olhos. Senti suas
mãos pegando as minhas. Elas eram quentes e macias. Não consegui
mover um único músculo do meu corpo.
— Meu nome é Raissa. – Ela disse. Houve um silêncio após sua
pronúncia. Instintivamente, puxei minhas mãos.
— Você me conhece? – repeti a pergunta.
— Não. – Ela respondeu. – Sofremos um acidente automobilístico
há alguns meses…
Aquela mulher ficou por quase uma hora ali, sentada na cadeira ao
lado da minha cama. Era estranho. Eu não sabia quem era, e, pelo que
me contou, ela também não fazia ideia de quem eu era. Éramos duas
desconhecidas que tínhamos partilhado da mesma tragédia. Quando o
horário de visita terminou, ela se levantou e buscou meus olhos.
— Não posso imaginar o vazio que você deve estar sentindo –
falou. Automaticamente senti meus olhos encherem de água. As
azeitonas também marejaram. – Eu não sei quem é você, mas posso te
fazer uma promessa nesse instante, vou fazer o que for humanamente
possível para te devolver o presente. Eu sinto muito, moça. Eu sinto
mais que muito.
E meu corpo foi envolvido novamente pelos braços daquela
desconhecida. As lágrimas desciam com força, eu não sabia por que
estava chorando, o choro apenas veio trazendo uma opressão no peito.
Ela se afastou e enxugou os olhos rapidamente com o dorso da mão.
Alguns fios dos seus cabelos ficaram grudados em sua bochecha,
depois de respirar fundo ela sorriu e tentou me tranquilizar.
— Você vai ficar bem, logo sua memória voltará e te ajudo a voltar
para sua família. Eu prometo.
Quando Raissa foi embora, voltei a sentir a sensação de vazio. Por
mais que tentasse, eu simplesmente não lembrava. Qual meu nome? De
onde vim? Quem era minha família? Com essas perguntas, me vi
mergulhando em um mar de perguntas. E o medo de ser afogada por
elas veio forte.

Já se passaram muitos dias desde que acordei. Minha vida ainda era
uma incógnita. Já me sentia bem melhor fisicamente, tinha ganhado
peso e a quantidade de exames e consultas diminuíram. As pessoas
pareciam já ter se acostumado com minha presença. Não que eu fosse
uma pessoa importante, mas, segundo Socorro, meu caso era instigante,
pois, embora tenha tido uma perda total de memória, eu não tinha
perdido ou sequer alterado minhas funções cognitivas. Era estranho,
pois, quando se tem esse tipo de amnésia, via de regra, é como se o
paciente acabasse de nascer, onde é preciso reaprender tudo.
Raissa vinha me visitar todos os dias, normalmente ficava mais que
o horário permitido de visita. Eu gostava da sua companhia, embora
não fosse de falar muito, ela falava por nós duas. Achava engraçado,
porque ela chegava agitada, sempre contando sobre seu dia e me
perguntando como havia sido o meu. E não perguntava apenas por
educação, ela parecia genuinamente interessada, mas naquela tarde não
estava me sentindo bem. Desde que acordei costumo sentir dores de
cabeça, porém, nos últimos dias, elas têm aumentado gradativamente.
— Quem eu sou? – De repente, a ansiedade rodopiou em minhas
entranhas e a pergunta escapuliu dos meus lábios. Vi as azeitonas se
arregalarem e depois se abaixarem se fixando em algum ponto do
quarto.
— Eu ainda não sei…. – Raissa me respondeu.
Ficamos nos fitando por alguns instantes. Minha cabeça deu uma
latejada que instintivamente me fez fechar os olhos com força. Doía,
doía muito. Usando a expressão que aquela moça gostava, doía mais
que muito.
— Eu queria ter essa resposta. Estou procurando, mas… – Havia
tristeza em sua voz. – Tem uma coisa que não te contei, moça. – Ela
disse. – No acidente, quem estava dirigindo era meu namorado….
Raissa contou mais detalhes sobre o acidente, mas, para mim, não
fazia nenhuma diferença, porque as únicas coisas que tenho na memória
são as que fui capturando nos vinte e seis dias que passei a existir. Já
que, para mim, passei a existir depois que abri os olhos neste hospital.
— O que será de mim, Raissa? Eu não sei quem sou, não sei o que
aconteceu comigo…
— Ei! Calma. Você sofreu uma pancada muito forte na cabeça.
Ficou em coma durante um longo tempo. Seu estado era tão delicado
que pensaram que não fosse sobreviver, mas você está aqui. Quando me
recuperei, tentei procurar por sua família, mas não consegui, no entanto
agora será diferente porque você acordou, em algum momento suas
lembranças virão. Vamos encontrar seus familiares, tenha fé. Por algum
motivo, o universo fez nossos caminhos se cruzarem, você nunca mais
estará sozinha.

◆◆◆
CAPÍTULO 7
Trânsito em julgado

Raissa saiu daquele hospital arrasada. Ver aqueles olhos negros


chorosos a deixou muito abalada, ela sentiu-se impotente por não ter
sido incapaz de encontrar a família da desconhecida. Aquela moça,
embora tenha acordado, estava mais sozinha que nunca. Sem nada para
se apegar, sem nada para pensar, porque só existia o vazio. A morena
sentia que precisava fazer alguma coisa, e foi olhando para o casal na
sala de estar, assistindo televisão, que tomou uma importante decisão. O
que lhe tirei, vou devolver, determinou Raissa.
— Ela se sente confusa, perdida e sozinha – disse a jovem ao entrar
no cômodo.
Seu pai estava deitado no sofá maior com a cabeça apoiada no colo
da sua mãe. Aquela cena era muito comum na casa deles,
principalmente depois do jantar. Os pais de Raissa adoravam assistir
novelas. Também era um momento muito deles, uma oportunidade de
cada um contar sobre seu dia. Não importa o quão singelo tenha sido. A
morena aprendeu com o pai a importância desse pequeno gesto. Dona
Thaís, desde que casou, dedicou sua vida ao marido e posteriormente à
filha, então o fato de ela passar o dia cuidando da casa não queria dizer
que os afazeres dos dois eram mais importantes que os dela, naquela
família, todos têm igual valor. Então era com muita naturalidade que
seu João, não importava o quão cansado chegasse, estava sempre
disposto a ajudá-la, seja na preparação do jantar, ou na lavagem de uma
louça, ou qualquer outra coisa. Ele simplesmente ia lá e fazia. E depois,
era naquele sofá retrátil cinza que ele escutava toda a narração do dia da
sua esposa, seja as fofocas das vizinhas ou sua reclamação porque os
preços dos alimentos estavam cada dia mais altos.
— Queria falar com vocês – disse a filha.
Seu João ergueu o corpo e se sentou. Depois de ter a atenção dos
dois, calmamente Raissa voltou a explicar a atual situação da garota
sem memória.
— Mas, filha, o que pretende fazer? – perguntou seu pai.
Bem, aquele era o X da questão. A jovem respirou fundo, olhou
para um e depois para o outro e disse:
— Eu a tirei da sua família, então, enquanto não recupera a
memória, vamos dar uma família a ela – disse, simples assim. Mas a
situação não era tão simples, afinal, a filha do senhor João e da dona
Thaís estava querendo trazer uma completa estranha para aquele seio
familiar.
Dona Thaís levantou-se de sobressalto e suas expressões se
fecharam.
— O que quer dizer com isso, Raissa? – perguntou.
A jovem também se levantou do sofá. Ela conhecia a mãe,
precisaria ser muito convincente para a mulher ceder.
— Ela precisa de um lar, mainha. Ela está apavorada – disse com a
voz triste. – Imagine que certo dia eu saio por aquela porta e não
retorne – pediu. – Agora imagine que um ano depois eu acorde num
lugar estranho, sozinha, doente e sem memória.
— Filha, ela não é você! – rebateu, ríspida.
— Mas se fosse? Sou sua única filha, única. Apenas imagine –
pediu.
Raissa sabia que tinha que apelar, porque, se não fosse assim, sua
mãe não cederia. Não por falta de empatia, e sim por preocupação,
afinal se tratava de acolher uma desconhecida que sequer sabiam o
nome, quanto mais seus antecedentes criminais. Seu pai não se
manifestou, pois a verdade era que a mulher sempre foi o general da
casa, era ela quem dava a palavra final. Dona Thaís começou a andar de
um lado para o outro na sala, berrando todos os perigos que essa mulher
poderia oferecer. Raissa só tinha um único argumento para usar, e esse
mexia profundamente com sua mãe.
A jovem advogada era filha única do casal, e não única porque seus
pais não quiseram mais filhos, pelo contrário, três crianças eram o
sonho deles quando se casaram, porém Thaís tinha muita dificuldade
para segurar uma gestação, no decorrer dos primeiros dez anos de
casados foram cinco abortos espontâneos. Raissa veio quando a
esperança começava a esmaecer no coração deles. Depois do seu
nascimento, não houve mais novas tentativas, sua mãe apresentou um
problema e teve que se submeter a uma histerectomia, ou seja, não
havia qualquer possibilidade de uma nova maternidade.
— E onde ela vai dormir? Nossa casa é pequena…
Ouvir aquela pergunta foi um afago no coração da advogada, que
sem hesitar se jogou nos braços da mãe agradecendo seu apoio. Depois
de alguns minutos, os verdes-oliva pousaram nos castanhos da sua mãe.
A mais velha deu um suspiro resignado.
— Coração mole igual a esse velho barrigudo – disse, olhando para
o marido que sorria.
— Me ensinaram a respeitar minha intuição e a ouvir meu coração.
– Raissa falou com a voz embargada.
— Não quero imaginar o que a mãe dessa garota está passando,
porque não consigo me imaginar sem você. E se fosse você por aí
desaparecida, iria me ajoelhar todo santo dia pedindo a Deus para
mantê-la em segurança e trazê-la de volta. – Os olhos da mais velha se
encheram de água. Suas palavras eram sinceras.
— Ganharemos uma nova filha – disse seu João, se aproximando
das duas mulheres da sua vida. – Uma nova flor para nosso jardim.
Vamos cuidar dela, filha. Sua mãe tem razão, deve ter uma mãe e um
pai por aí chorando. Vamos acolhê-la até o dia que encontrarmos sua
família.
Os três se abraçaram conjuntamente. Pronto, agora foi um trânsito
em julgado. Aquela moça teria um novo lar, disse Raissa abraçada aos
pais.

◆◆◆
CAPÍTULO 8
Um novo lar

O assunto ainda estava em fase de digestão para os pais da


advogada, mas a jovem parecia decidida. Depois da conversa com o
casal Fernandes, Raissa pegou seu telefone para ligar para o noivo,
precisava deixá-lo a par da sua decisão. Por mais que a relação entre
eles tivesse esfriado desde o acidente, eles ainda mantinham um
relacionamento. O advogado atendeu no primeiro toque, porém havia
muito barulho ao fundo da ligação, pois Guilherme estava num bar com
os amigos assistindo a uma partida de futebol.
— Amor, hoje é dia de jogo, lembra? – falou o rapaz.
— Tinha esquecido. Tudo bem, amanhã nos falamos no escritório.
— Por que não vai lá para casa hoje? – sugeriu. – Estou com
saudade, Raissa, tem semanas que não dorme lá, eu que tenho que ficar
indo aí.
Raissa notou a leve cobrança no tom do namorado, o que era bem
justo. Sentiu-se culpada, pois Guilherme não media esforço para estar
em sua companhia, contudo foram tantas coisas acontecendo que a
última coisa que a morena pensava era em romance. Sem muito o que
dizer, ela resolveu sair pela tangente, deu uma desculpa qualquer e
desligou, com a promessa de que iria recompensá-lo. Não que não
sentisse saudade, o problema era que Raissa se sentia mentalmente
cansada, amava o Guilherme, tinha planos de casamento, porém suas
atitudes nos últimos tempos a faziam repensar muitas coisas. Ela deu
um suspiro pesado, jogou o telefone para o lado e fechou os olhos
tentando desacelerar, mas acabou adormecendo.
Raissa acordou cedo na manhã seguinte, fez sua corrida matinal,
que era de lei, tomou café com os pais, depois foi tomar banho e se
arrumar para o trabalho. Dona Thaís estava encostada na soleira da
porta, observando a filha terminar de se maquiar. Era impossível conter
o sorriso que se moldou em seu rosto. Raissa era a coisa mais preciosa
da sua vida, por mais que as pessoas dissessem que a morena se parecia
com ela, Thaís só conseguia enxergar seu marido na filha, aquela
simplicidade tão ímpar, aquela alegria tão contagiante e sua doçura tão
peculiar.
— Quando vai trazê-la?
Raissa olhou para a porta e só então notou a mãe.
— Vou ao hospital antes de ir para o escritório. Preciso conversar
com seu médico. Saber quando ela terá alta.
— Você acha que vão deixá-la trazê-la assim tão fácil? – perguntou
com real interesse.
Raissa finalizou a sua maquiagem e fitou a mãe. Sim, ela já tinha
feito essa pergunta para si. Na verdade, desde que a garota acordou,
vinha pensando e analisando todos os imbróglios jurídicos em torno
daquela mulher. Afinal, sua situação era um tanto incomum. Ela não
tinha documentos e não tinha memória.
— Eu ainda não sei como o hospital vai se portar, mas sei que eles
não vão poder mantê-la ali para sempre. Mesmo que ela seja
“invisível”[3] para o Estado, ela tem direitos, e de direito, eu entendo.
Sua mãe lhe olhou com ternura. Raissa era assim, sempre muito
decidida, sempre disposta a ajudar, e dona Thaís sabia que ela brigaria
na justiça se preciso fosse para ajudar aquela moça.
— Lembre-se de que doutor Bernardo sempre foi muito gentil com
você. Converse com ele direito.
— Mãe, eu sei – replicou revirando os olhos.
O gesto fez sua mãe sorrir.
— Quando está de uniforme (como advogada), você pode ser uma
mulher bastante dura, doutora Fernandes – implicou. Sua mãe já a vira
atuar algumas vezes no tribunal, por isso o comentário.
— Só quero trazê-la para cá e lhe dar um pouco de conforto
humano. Aquele lugar é frio e solitário. Eu não consigo parar de me
colocar no lugar dela, mãe. E me sinto responsável também, eu sabia
que o Guilherme estava embriagado, e mesmo assim deixei-o assumir o
volante.
Dito isso, a morena pegou sua bolsa e seguiu para o hospital. Não
eram nem nove horas da manhã quando a secretária do diretor anunciou
sua presença.
— Bom dia, Raissa! Hoje não posso lhe oferecer mais que dez
minutos de atenção, pois daqui a pouco vou entrar em cirurgia –
informou o cirurgião.
— Tempo mais que suficiente. Obrigada por me receber.
Os dois trocaram um abraço como de costume. Como tinha pouco
tempo, a advogada foi direto ao ponto.
— Então, doutor, vejo que a garota está bem fisicamente, mas até
agora nem sinal de sua memória – iniciou.
— O caso dela é complexo, Raissa, já lhe expliquei.
— Sim, doutor, é só o que tenho ouvido nas últimas semanas.
Quero saber se há alguma estimativa para a memória voltar?
— O caso dela é complexo – repetiu.
— Isso é o que tenho escutado desde que ela abriu os olhos, mas
até hoje ninguém conseguiu descobrir qual é o problema – rebateu
rispidamente. – Ela parece um rato de laboratório, a cada minuto se
submetendo a exames e a não sei lá mais o quê, para no final das contas
o caso dela é complexo – falou num só sopro.
O médico deixou que a moça a sua frente despejasse toda sua
frustração em cima dele, a entendia, mas infelizmente tudo que podia
fazer já estava fazendo. Consultou o relógio, não tinha muito tempo.
— Raissa – a interrompeu. – A paciente apresenta danos cerebrais
permanentes… – O médico pela enésima vez tentou explicar a
complexidade daquele caso. – Consultei um colega especialista em
amnésia dissociativa, ele virá nos fazer uma visita nos próximos dias.
Ele está à frente de um estudo muito interessante sobre perda de
memória autobiográfica, por enquanto não há muito o que fazer.
Raissa levantou-se e o fitou nos olhos. Ela estava irritada, muito
irritada. Se não havia o que fazer, então não tinha motivos para a moça
continuar internada, concluiu. Adotando uma postura extremamente
séria, perguntou:
— Se porventura a família dessa garota tivesse sido localizada e
dada a atual situação, qual seria o procedimento padrão?
Os olhos do médico se agitaram. Raissa fitava seus olhos, sua
expressão estava rígida, o que era incomum no rosto daquela jovem. O
homem mais velho analisou aquela pergunta e percebeu o perigo em
pronunciar sua resposta. Ele também se levantou, os dez minutos já
tinham se passado.
— Eu lhe daria alta – disse por fim. – Mas essa não é uma
circunstância normal – acrescentou.
— Já que ela está fisicamente bem e suas funções cognitivas
parecem normais, não há motivos para continuar internada, estou certa?
– Mais uma pergunta perigosa.
— Raissa, você é advogada, não é médica – disparou o cirurgião.
— O senhor acabou de dizer…
— Eu sei o que eu quis dizer, menina! – O homem sentiu-se
encurralado. – Ela tem respondido bem aos estímulos físicos e da fala,
porém há danos internos que ainda desconhecemos a real dimensão. As
coisas não são rápidas como um caldo de cana – replicou, sério. Muito
sério, na verdade. – Além do mais, nos últimos dias, ela tem
demonstrado oscilação de humor e agressividade. Precisamos
acompanhá-la e examiná-la constantemente.
Ignorando-o completamente, Raissa continuou:
— Esse acompanhamento teria que ser necessariamente dentro do
hospital?
Uma onda de fúria passou pelos olhos do médico, que massageou
as têmporas e depois respirou fundo em busca de controle.
— Hoje você está impossível, hein?! – retrucou. – O que quer com
tudo isso, Raissa?
Raissa percebeu que não era justo pressioná-lo daquela maneira.
Doutor Bernardo não era um réu em um julgamento. Então, ela
suavizou a voz e tentou se desculpar.
— Doutor Bernardo, me desculpe. É que tudo isso mexe muito
comigo – disse, sincera. – Eu quero ajudá-la. Estou tentando entender a
dimensão da complexidade que tanto se refere. No entanto, a única
coisa que consigo enxergar é uma garota assustada e sozinha num
quarto de hospital. Talvez um ambiente novo a ajude.
— Mas ela não tem ninguém – retrucou.
— Ela tem a mim – disse com tanta convicção que o médico lhe
olhou com ternura. – Se ela está apta para ir embora, deixe-me levá-la
para casa. O senhor poderá vê-la sempre que achar necessário.
Dr. Bernardo analisou a situação, o único motivo que ainda a
mantinha no hospital era porque a moça não tinha família. Se fosse um
caso comum a paciente já teria sido liberada há duas semanas. Seu
quadro clínico estava estável e, quanto a sua perda de memória,
infelizmente não existem medicamentos que possam curá-la. O
tratamento para amnésia mais grave começa com a criação de um
ambiente seguro e que lhe ofereça suporte. Essa medida isolada resulta
quase sempre em recuperação gradual das memórias esquecidas[4], e o
neurologista sabia disso.
— Quero que ela passe por uma avaliação semanalmente. E se
ocorrer qualquer alteração no seu quadro clínico, quero ser avisado
imediatamente – disse o médico, por fim.
A morena abriu um largo sorriso e se jogou nos braços daquele
homem de alma tão nobre. Doutor Bernardo correspondeu ao abraço, e,
depois de alguns segundos, se afastaram.
— Quando ela pode ir? — perguntou a morena feliz.
— Amanhã, Raissa, amanhã.
— Obrigada, doutor.
Raissa tinha saído daquele consultório dando pulos de alegria. Seu
coração dizia que tinha tomado uma boa decisão, cuidaria daquela
mulher, era o mínimo que poderia fazer. A jovem desceu ansiosa até o
sétimo andar, queria contar pessoalmente para a moça que em breve ela
sairia dali. Quando o elevador a deixou no andar indicado, caminhou a
passos largos até o quarto nº 101. Pelos vidros, viu que estava sozinha,
então resolveu entrar sem bater. A jovem estava sentada na cama
assistindo a alguma coisa que passava na televisão. O sol refletia em
seus cabelos os deixando mais amarelos. Ela tinha ganhado peso e mais
cor. Quando notou a presença da advogada, sorriu para Raissa, que
sorriu de volta.
— Se eu não fosse hétero e chegasse aqui bombardeada com esse
sorriso e toda essa beleza natural, ao certo eu teria problema, visto que
sou comprometida. – A morena fez um comentário idiota que podia
soar preconceituoso, ela percebeu isso segundos depois das palavras
terem escapulidos da sua boca. – Bom dia, moça bonita –
cumprimentou.
— Bom dia!
— Vamos ter que escolher um nome para você.
A loira achava uma graça o jeito daquela morena. Raissa era
sempre muito alegre e extremamente falante. Agia com tanta
naturalidade que às vezes esquecia que as duas ainda eram duas
desconhecidas. A loira, por sua vez, sentia-se cada vez mais confortável
com sua presença, de modo que pouco a pouco ia quebrando as
barreiras que a envolvia.
— Como você está? – perguntou, se acomodando na poltrona que
ficava ao lado da cama.
— Bem.
— Queria conversar com você – disse, um pouco mais séria. –
Mas, antes, escolhe um nome – pediu. – O que acha de: Bárbara,
Juliana, Kátia, Letícia, Isabella? – sugeriu vários prenomes.
— Isabella… – A paciente retrucou baixinho. Ela parecia
pensativa, o que logo acendeu o alerta na advogada.
— Gostou desse nome? Ele te remete a alguém? Pode ser teu
próprio nome, já pensou? – As perguntas foram feitas com uma leve
afobação que acabou retraindo a paciente.
— Não lembro de nada – disse a loira. – Me chame como quiser,
Raissa.
Os verdes-oliva fitaram os negros à sua frente.
— Gosto muito de Renata, afinal esse nome significa renascimento,
e você praticamente renasceu – falou docemente.
— Renata… – repetiu a paciente. – Renata – repetiu inúmeras
vezes, até, por fim, sorrir para a morena. – Agora eu tenho um nome.
— Então, Srta. Renata – riu –, agora que tem um nome, preciso
conversar sobre sua saída do hospital. – Raissa contou sobre o que
pretendia. – O que me diz sobre o que lhe falei? – perguntou ao final.
— Não posso aceitar, você já fez muito por mim – respondeu.
— Eu não faço isso só por causa do meu sentimento de culpa. Faço
porque sempre respeitei minha intuição e segui meu coração. E no
momento eles me levam a você. Por algum motivo do universo, nossos
caminhos se cruzaram. Quero que aceite a minha ajuda, Renata. Por
mais bem tratada que seja aqui, uma hora terá que sair. Também não sei
quando sua memória dará o ar da graça – disse com sinceridade. – Sou
uma mulher simples e moro num bairro simples com meus pais, mas
você será bem recebida. Te daremos todos os subsídios para se manter
até descobrimos a sua autobiografia. Aceite morar comigo – pediu de
coração aberto, mas a outra ainda parecia hesitante.
— E sua família vai querer uma desconhecida dentro da sua casa?
Raissa levantou-se da poltrona e sentou-se ao seu lado na cama.
Delicadamente pegou em suas mãos e entrelaçou seus dedos, riu do
contraste das cores, o famoso leite com chocolate, e as mãos daquela
garota eram macias e do tamanho das suas, se encaixavam tão bem uma
na outra. Quando levantou os olhos, encontrou aquelas duas bolinhas
escuras fitando-a. E aquele flagra fizeram suas bochechas esquentarem.
— Não quero dar trabalho! – disse Renata.
— Não dará – afirmou. – Amanhã venho te buscar assim que
confirmar o horário da sua alta.
Para surpresa de Raissa, a moça, que até nas palavras era contida,
teve um ato espontâneo, jogou-se nos braços da advogada, apertando-a
contra seu corpo, que já não estava tão frágil. Para a morena, foi
estranho e bom ao mesmo tempo. Ela sempre foi uma pessoa que
gostava muito de contato físico, e aquele abraço estava tão gostoso e
era tão sincero. O momento foi interrompido com a entrada da Dra.
Rosalinda que, ao vê-las, deu um pigarro alto para se fazer notar.
— Desculpe interrompê-las, apenas vim ver como está. – Ela disse
para a paciente.
— Renata, ela será chamada de Renata – falou a advogada.
A médica olhou para Raissa e assentiu com a cabeça.
— Renata, como está se sentindo? – perguntou a médica. – A dor
de cabeça voltou?
A doutora aferiu sua pressão, examinou suas pupilas, fez uma
bateria de perguntas sobre as dores de cabeça e, depois, anotou algumas
coisas em sua prancheta. Raissa acompanhou tudo com um leve
estranhamento, era notável que a médica permaneceu ali mais que o
necessário.
— Se as dores voltarem, mande-me chamar – pediu Rosalinda.
Raissa sorriu enquanto observava a loira acompanhar a médica até
a porta com os olhos. Quando finalmente voltaram a ficar sozinhas,
disparou:
— Descobri uma coisa a seu respeito.
Renata lhe olhou confusa.
— Acho que você tem uma leve preferência pelas mulheres – falou
com naturalidade. Ela já tinha reparado outras vezes, mas achava que
era coisa da sua cabeça, porém hoje conseguiu ter a certeza. Não era só
mais à vontade que Renata ficava na presença daquela doutora, elas se
olhavam de forma diferente.
Renata, por sua vez, não rebateu, pelo contrário, seu rosto ficou
severamente vermelho. Realmente seus olhos eram sempre atraídos
para aquela médica. Rosalinda era uma mulher de pele marrom, corpo
sinuoso, cabelos cacheados e olhos castanhos. Sim, ela era bonita, mas
não era sua aparência que lhe chamava atenção, tinha algo em seu
sorriso e no jeito que às vezes soltava uma piscadinha para ela que lhe
dava uma sensação de déjà vu.
— Acho essa médica muito… – Raissa fez uma careta engraçada,
torcendo o nariz. Desde o banho de água gelada que recebera da
doutora, ela não lhe descia.
Renata ficou toda encabulada com o comentário.
— Ela é sempre muito educada comigo – disse tão tímida que mal
dava para escutar.
— Pode ficar tranquila, Renata, graças à educação dos meus pais,
fui criada com mente aberta, inclusive meus melhores amigos são gays.
E apesar da minha falta de empatia com essa médica, não dá para negar
o óbvio, ela é bonita e parece interessada. Mas você terá tempo para
descobrir sua orientação sexual. Meu comentário não foi para
constrangê-la e, sim, uma observação boba.
A loira pareceu mais aliviada. Raissa consultou o relógio e já
estava tarde, precisava ir.
— Amanhã venho te buscar.
— Tem certeza?
Raissa via insegurança na garota à sua frente.
— Toda do mundo.

◆◆◆
CAPÍTULO 9
Ela morará comigo

Raissa chegou ao escritório muito atrasada, ela tinha esquecido da


importante reunião agendada para aquela manhã. Sua secretária não
parava de ligar a mando do seu chefe.
— Doutor Calheiros está furioso – avisou sua secretária. – Melhor
ir direto para lá.
A morena respirou fundo, entregou sua bolsa a sua secretária e
seguiu para a sala de reunião. Bateu à porta e entrou.
— Bom dia – cumprimentou a advogada.
— Doutora Fernandes, até que enfim – disse seu chefe.
— Peço desculpa a todos pelo meu atraso.
Aquela reunião não poderia ter sido mais entediante. Embora
atuasse na área criminal, doutor Calheiros adorava passar para ela casos
contenciosos. Segundo ele, Raissa tinha o perfil perfeito. A jovem
discordava, a parte cível do direito nunca havia sido um atrativo, porém
costumava respeitar o ditado que dizia: manda quem pode, obedece
quem precisa. Depois de ocupar o resto da manhã e as primeiras horas
do turno da tarde, finalmente a reunião acabou.
— Raissa, quero que dê uma atenção especial a esse caso. Alberto
é um cliente importante, seu interesse é resolver essa questão com um
mínimo de lesão possível – disse seu chefe. A lesão a que se referia era
o seu patrimônio.
Passando a perna na mulher que o aturou por quase 40 anos,
deixando-a com uma ninharia, pensou a advogada enojada.
A morena deu um sorriso inexpressivo, pediu licença e saiu.
Odiava aquele tipo de caso, o que esperava, Raissa? Você trabalha no
escritório Calheiros&Torres advogados, onde a carteira de cliente era
apenas a “nata” (ricos) do estado. Para seu desgosto, havia sido
designada para representar um importante empresário num processo de
divórcio litigioso, que embora o regime adotado fosse o de comunhão
universal de bens, seu cliente não queria dividir sua fortuna com a
esposa com quem foi casado por quase quarenta anos. Julgava-a não
merecedora, pois, segundo ele, ela nunca contribuiu para a construção
do patrimônio. Esquecendo-se do fato de ela ter abdicado de sua vida
profissional a pedido dele mesmo para se dedicar à criação dos filhos
do casal.
— Eu pedi seu almoço, chefe – disse sua secretária, entrando na
sala e lhe entregando uma embalagem.
— Obrigada, Ângela, você é meu anjo salvador. Estou morrendo de
fome.
— Imaginei – afirmou a outra sorrindo. – Você pegou o caso do
senhor Alberto, não foi? – perguntou Ângela.
Raissa fez uma careta engraçada. Sua secretária deu uma risadinha
e sentou-se na cadeira em frente à mesa da outra, que começava a
devorar sua salada.
— Foi exigência do Sr. Alberto – confidenciou Ângela. – Ele disse
que uma mulher o defendendo será mais fácil amolecer um juiz. Então
exigiu que você o representasse. Segundo ele, você é uma loba na pele
de um cordeiro.
— Machista, escroto… – Raissa xingou o cliente de todos os
adjetivos pejorativos que conhecia. Sua colega, por sua vez, se divertia
com sua indignação.
— Seu índice de vitória é mais alto do que o do doutor Guilherme
– falou Ângela depois de cessar o riso. – Mesmo que ele não tivesse te
escolhido, doutor Calheiros o faria. Você sabe que eles são sócios em
uma empresa de software, né?
Sim, ela sabia. Ângela levantou e caminhou até a porta.
— Já que minha chefe está alimentada, vou voltar à labuta – disse
divertidamente.
Raissa sorriu e agradeceu mais uma vez pela gentileza. Já sozinha,
ela jogou as embalagens na lixeira, foi até o banheiro que ficava dentro
da sua sala para fazer sua higiene e depois retornou. Sua mesa estava
cheia, e ela precisava concluir uma defesa, cujo prazo vencia naquele
dia, mas não estava com inspiração alguma para produzir. Na verdade,
fazia tempo que lhe faltava inspiração. Raissa sempre quis ser
advogada, e ela amava advogar. Buscar o justo utilizando dos meios
legais, priorizando a ética, foi o que a moveu durante os cinco anos que
passou no curso de direito. Cinco anos depois que se formou, havia
chegado a um patamar de causar inveja a muitos colegas militantes.
Contudo, de uns tempos para cá, não se sentia feliz. A cada dia se sentia
mais fora do lugar dentro daquele suntuoso escritório. A morena
respirou fundo, empurrou sua insatisfação para o lado e tentou
trabalhar. Ao fim, realmente trabalhou, passara a tarde absorvida por
leis, jurisprudência e o famoso encher salsicha. Quando se deu por
satisfeita, protocolou e riscou mais aquela pendência da sua agenda.
— Doutora Raissa – Ângela colocou a cabeça para dentro da sala –,
doutor Guilherme chegou – avisou.
— Quantas vezes vou te pedir para parar de me chamar de
“doutora”. Você é minha amiga – retrucou a morena, que detestava
aquele formalismo.
Sua secretária lhe sorriu. Sim, elas eram amigas, mas ali dentro
havia uma hierarquia que doutor Calheiros fazia questão de deixar
bastante evidente.
— Tenho dois filhos para alimentar – replicou, sorrindo da revirada
de olhos da amiga, pois formalismos eram quase um instrumento de
trabalho naquele escritório.
Uma vez, doutor Calheiros chegou a corrigir um estagiário de
forma bastante ríspida na frente de todos, quando o jovem usou apenas
o prenome de um advogado. Exagero? Certamente, mas ninguém iria
contra o dono dos bois (dono do escritório), e Ângela trabalhava ali há
tempo demais para saber disso.
— Obrigada.

Guilherme estava distraído respondendo a um e-mail quando teve


sua atenção furtada por uma leve batida na porta.
— Posso entrar? – perguntou Raissa na soleira.
O homem sorriu e assentiu com a cabeça. A morena entrou e
fechou a porta atrás de si. Guilherme estava com o aspecto cansado.
— Como foi a audiência? – perguntou com interesse.
— Agora só esperar a sentença, mas estou otimista. – Ele
respondeu. – Já disse que te amo hoje? – falou carinhosamente,
puxando a noiva pela cintura. Ele sentia sua falta.
— Hum… Acho que faz uns três dias que não escuto isso –
replicou, sorrindo.
— Sei que ando meio ausente com você, mas olha isso aqui. –
Mostrou os inúmeros processos sobre a mesa.
— Também ando muito enrolada – disse, afastando-se, afinal viera
ali para fazer um anúncio que tinha certeza de que iria exaurir aquele
bom humor. – Estava precisando conversar com você. Ela sai do
hospital amanhã – falou sem rodeio.
— Ela já está bem?
Raissa analisou aquela pergunta no intuito de checar se havia real
interesse ou se era mera educação.
— Está sim, ao menos fisicamente.
— Um problema a menos – falou. Guilherme continuou encarando
as orbes verdes da noiva, ele a conhecia, sabia que tinha algo mais. –
Então….
— Ela continua sem memória e precisando de cuidados, mas não a
ponto de precisar ficar num hospital. Por isso, conversei com meus pais
e vamos acolhê-la lá em casa. – A mulher falou de uma só vez.
O corpo de Guilherme enrijeceu. No rosto, a expressão de
incredulidade.
— Você está de brincadeira, não é? – Seu tom de voz era seco.
Raissa levantou o queixo e cruzou os braços, não respondeu, pois
não achou necessário. Percebendo que a noiva falava sério, o homem
trincou os dentes.
— Raissa, você só pode estar ficando louca. Tem certeza que não
bateu com a cabeça também? Como pode levar uma desconhecida para
casa?
— Você queria que a deixasse na míngua? – A jovem manteve a
postura.
O homem respirou fundo e sentou-se folgando sua gravata, a última
coisa que queria era perder a compostura novamente, já bastou da outra
vez que rendeu comentários pelos corredores do escritório por quase
uma semana. Acompanhando seu gesto, a advogada sentou-se na
cadeira em frente à mesa.
— E não podemos simplesmente alugar um apartamento ou uma
casa para ela e colocar uma cuidadora? – sugeriu. – Sei lá, Raissa! Por
que essa mulher precisa ir necessariamente para a sua casa?
— Você já se colocou no lugar dela? – perguntou, mas ele não
respondeu, afinal, era óbvio que não.
— Amanhã ela terá alta e pretendo levá-la para casa – disse
firmemente.
Guilherme nada disse. Raissa era do tipo de mulher que quando
decidia algo, dificilmente mudava de ideia, e o advogado a conhecia
bem demais para saber quando uma batalha estava perdida.
— E os seus pais o que acham dessa ideia insana? – perguntou,
debochado.
— Eles me apoiam, quero que você vá comigo buscá-la.
— Não posso, como pode ver, estou cheio de trabalho – disse,
indiferente.
— Ok, então! – se limitou a dizer, levantando-se da cadeira e se
dirigindo à porta.
Raissa voltou a sua sala, pegou sua bolsa, avisou para Ângela
cancelar todos seus compromissos para o dia seguinte e foi embora.
Deu por encerrado aquele dia. Ao chegar em casa, deparou-se com um
cenário de guerra, não teve tempo nem de questionar a mãe, teve logo
que arregaçar as mangas e ajudar na arrumação. Tira móveis, coloca
móveis, seu João já estava impaciente com a esposa que, desde que
recebeu a ligação da filha avisando que a moça sem memória teria alta
no dia seguinte, entrara em desespero. Primeiro esbravejou com a
morena: Como vamos receber alguém com a casa desse jeito? Nem
tempo temos para organizar as coisas, Raissa. Dona Thaís era muito
exagerada, mas também muito prática. Ligou para o marido exigindo
sua presença a todo custo. O homem deu uma desculpa no trabalho e
correu para socorrer a esposa, e ali começou a mudança. Estante de
livros, escrivaninha e até a cama de casal foram retirados do quarto. Seu
João correu até uma loja de móveis onde comprou duas camas de
solteiro, que tinham sido entregues há pouco tempo. Apesar da casa ser
espaçosa, ela tinha apenas dois quartos, ou seja, Raissa teria que dividir
seu espaço com a Renata.
— Que horas ela chega? – perguntou dona Thaís ao final de toda
arrumação.
— Às 10h.
— Espero que não esteja trazendo nenhuma criminosa para dentro
de casa, filha.
Raissa caminhou até a sua mãe, que tinha acabado de forrar a cama
que seria de Renata.
— Ela precisa de um lar.
— Você tem um coração mole demais. – A mais velha retrucou.
— Mãe, ela está assustada e se sentindo sozinha. Para dar certo,
preciso que abaixe a guarda.
Dona Thaís nada disse, apenas a envolveu em um abraço e deu um
beijo no rosto da filha. Em seguida, deixou o quarto.
Não me decepcione, Renata. Vou dividir as pessoas mais
importantes da minha vida com você, então, por favor, não me
decepcione, pediu com sinceridade, soltando o ar com força e seguindo
para o banheiro. Estava exausta e tudo que precisava era de um banho e
uma boa noite de sono.

◆◆◆
CAPÍTULO 10
A despedida

RENATA
— Com todo respeito, doutor, mas acho muito prematuro lhe dar
alta.
— Não há nada que possa fazer, Dra. Rosalinda. A paciente está
estável, tem respondido bem às medicações, não tenho como mantê-la
aqui. Em outras circunstâncias, já teria sido liberada há muito tempo.
— Ela tem apresentado… – insistiu.
— Escute, Rosalinda, não posso mantê-la aqui – cortou o
neurologista.
Embora a porta estivesse fechada, foi possível escutar a conversa
que ocorria no corredor. Em seguida, os dois médicos entraram no meu
quarto. O Dr. Bernardo, sempre com seu jeito brincalhão, e atrás dele a
doutora Rosa. Ela estava mais séria que o normal, mal trocamos
olhares.
— Vim lhe trazer uma boa notícia…
— Doutor, o senhor acha prudente que eu saia daqui? – perguntei.
— Você está ótima, amanhã lhe darei alta – decretou o médico.
Quando ele foi embora fiquei a pensar. Saber que de fato sairia dali
me deu medo. Medo de quê? Não sei. Tinha certeza de que aquilo tinha
sido obra da Raissa. Pensar na moça dos olhos cor de oliva era a única
coisa que preenchia meu coração. Sempre tão doce e tão protetora.
Contudo, havia muitas nuances que ela não sabia, como minhas dores
de cabeça. No início era suportável, porém, nos últimos dias, chegava
de um jeito tão excruciante que a única coisa que conseguia reproduzir
era repelir qualquer um que se aproximasse, muitas vezes de forma rude
ou agressiva.
Durante a madrugada, acordei aos gritos, sentia como se minha
cabeça fosse explodir, meus olhos lacrimejavam a cada pontada. Se
tivesse forças, eu teria arrancado minha própria cabeça, porque doía,
doía de uma forma que não sei descrever.
— O nariz dela está sangrando, chamem o Dr. Paulo. – Ouço
alguém falar. Paulo era o médico plantonista daquela noite. Isso é tudo
que lembro, antes de apagar.
Me sentia atordoada ao acordar, mas bastou abrir os olhos para
encontrar um par de verdes-oliva.
— Bom dia, dorminhoca. – Ela disse.
Constrangida, sentei-me na cama. O que Raissa fazia ali tão cedo?
Quer dizer, talvez não fosse tão cedo, a televisão estava ligada e, para
minha surpresa, passava o programa televisivo chamado Encontro com
Fátima Bernardes.
— Bom dia – respondi com a voz fraca.
Com seu jeito Raissa de ser, ela levantou-se da poltrona, deu um
pulinho sentando-se ao meu lado da cama e me envolveu num abraço.
— Eu já estava ansiosa para te ver, mas depois que me ligaram
contando que você tinha passado mal, não consegui me frear, vim o
mais rápido que consegui. – Ela disse no meu ouvido.
Fui nocauteada com aqueles braços fortes, o cheiro que cada dia se
tornava mais conhecido e com aquelas azeitonas. Entendo
perfeitamente todos os suspiros que essa mulher causa em algumas
enfermeiras. Não é apenas a beleza de Raissa que se destaca, mas seu
jeito doce, sua simplicidade e sua contagiante simpatia. Ela se afastou,
abriu um sorriso e levou aqueles lábios pintados de vermelho a minha
bochecha. Me deu um beijo estalado e, de maneira abrupta, pulou da
cama.
— Hoje só saio daqui com você. – Ela disse sorridente.
Naquele dia ela estava diferente, não usava seus trajes formais de
trabalho. Pelo contrário, usava uma calça jeans justa ao corpo, de
lavagem clara, e uma blusa de alça que realçava a beleza do seu colo
moreno. Além disso, usava sapatos baixos, e seus cabelos estavam
presos num rabo de cavalo curto.
— Como você se sente? O que houve? – Ela perguntou com uma
certa aflição na voz.
— Eu não sei. Às vezes sinto uma dor de cabeça, mas ontem foi
diferente, essa dor era tão intensa que pensei que minha cabeça fosse
explodir. Tudo que eu queria era… – E de repente, meus olhos se
encheram de água.
Não terminei a frase porque Raissa me puxou para si, apertando-me
contra seu corpo, dando beijos no topo da minha cabeça, dizendo que
tudo ficaria bem. Então, naquele abraço, chorei, chorei copiosamente.
Ela me apertava um pouco mais quando meu soluço era mais alto,
afrouxava quando sentia que estava me acalmando, até que finalmente
minha respiração foi voltando ao normal. Ela se afastou e, num gesto
terno, levou os fios dos meus cabelos para trás da orelha.
Delicadamente, enxugou meu rosto com o dorso da sua mão e disse:
— Hora de ir para seu novo lar. – Depois abriu aquele sorriso lindo.
– Chega de hospital, o que acha de tomar um banho e se arrumar para
irmos? – sugeriu.
— Você acha que vou ser liberada, mesmo depois de ontem?
— Dr. Bernardo já assinou sua alta. Você precisa respirar outro ar,
talvez uma mudança de cenário seja benéfica para você.
Confesso que respirei aliviada. Talvez Raissa estivesse certa, uma
mudança de cenário poderia ser boa para mim. Antes de seguir sua
sugestão, precisei arrumar minhas coisas. Todas doadas pelas médicas e
enfermeiras que cuidaram de mim. Separei um vestido de tecido leve,
uma calcinha e minha toalha. Depois de colocar minhas poucas roupas
na mochila, que minha salvadora tinha trazido, fui tomar banho. Seria o
último que tomaria naquele hospital. Uma nostalgia me abateu. Uma
retrospectiva desde que abri os olhos até ali passou diante da minha
retina. Não sei quanto tempo passei sob a água fria do chuveiro, presa
no fluxo dos meus pensamentos, então despertei com a batida leve na
porta.
— Rê, tá tudo bem aí? – A voz dela atravessou a porta.
Apressei-me para fechar o registro do chuveiro.
— Sim, já estou saindo.
Finalizei o banho, vesti a roupa que tinha separado, penteei meus
cabelos e saí do quarto. Para minha surpresa, ele estava enfeitado de
balões coloridos, flores e muitos sorrisos. Meus olhos perscrutaram
cada rosto presente. Aquelas pessoas eram as únicas que eu conhecia.
Embora eu não lembre de nada antes do meu acordar, eu lembraria de
cada uma delas, pois, mesmo num ambiente que costuma ser rondado
pela morte, recebi o carinho e o respeito de cada membro daquela
equipe que sempre se esforçou para me fazer sentir bem. Beijos,
abraços e agradecimentos. Um a um fui me despedindo.
— Obrigada por tudo – agradeci de forma geral.
Foi impossível evitar as lágrimas. Por mais estranho que pareça,
aquelas pessoas eram as únicas que eu tinha. Sentia carinho por cada
uma delas.
— Cuide dela, Raissa, e não esqueça que segunda-feira ela tem
uma consulta com o Dr. Teles.
— Não se preocupe, doutor.
Disto isso, Raissa segurou minha mão e caminhamos para um
futuro que desconhecíamos.

◆◆◆
CAPÍTULO 11
Seu novo lar

Toda equipe que trabalhou com Renata ficou comovida ao vê-la


finalmente saindo daquele hospital. As duas seguiram para o elevador
que logo as deixou no térreo. Apenas cinquenta metros a separava de
um novo mundo. A loira estancou no caminho. Raissa estava distraída
falando com o motorista do Uber, que informou que já tinha chegado.
Os olhos escuros daquela paciente sem memória se fixaram nas portas
de vidro que se abriam automaticamente quando alguém se aproximava.
Era uma sensação estranha. Ela inspirou profundamente aquele cheiro
tão característico de hospital. Era como se quisesse preencher todos os
seus pulmões com ele. O barulho das sirenes das ambulâncias, a
agitação da recepção... As pessoas que ocupavam as diversas filas de
cadeira esperando sua vez para fazer seu registro e posteriormente
serem atendidas, diversas pessoas em seus uniformes brancos andando
de um lado para o outro. Era uma sensação familiar para Renata.
— Rê – chamou quando viu a loira empacada no meio do saguão. –
Vamos, o carro chegou.
Renata piscou algumas vezes, era como se estivesse saindo de um
transe. Seus olhos varreram o ambiente pela última vez e depois
caminhou até a morena que lhe olhava com um sorriso.
Quando as duas chegaram à calçada, Raissa abriu a porta do carro e
pediu que a loira entrasse. Em seguida, ela entrou no veículo, que deu
partida e se dirigiu ao endereço indicado.
Renata parecia uma criança de cinco anos que sempre se empolga
com um simples passeio de carro. Não importava o destino, contanto
que pudesse ir na janela e observar o mundo que corre lá fora. Aquele
par de olhos negros sem passado parecia descobrir um mundo novo.
Para eles, tudo parecia tão novo, enquanto para meu íntimo parecia tão
conhecido. Era uma sensação muito estranha. Raissa até tentou puxar
conversa, mas observar aquela garota parecia ser mais interessante. Ela
estava com os olhos vidrados nos prédios e avenidas que existiam lá
fora.
O percurso era curto, e o trânsito daquele fim de manhã ajudou.
Vinte e três minutos depois, o Uber entrou em um bairro mais
residencial, onde as ruas eram pavimentadas e havia poucos prédios.
— Corro todas as manhãs nessa praça. – Raissa apontou para uma
arborizada praça.
O carro avançou um pouco mais, até parar em frente a uma casa
com um muro coberto de trepadeiras.
Você chegou ao seu destino, informou a voz mecânica do aplicativo
de GPS.
— Chegamos! – anunciou a morena.
As duas mulheres desafivelaram o cinto e desceram do carro.
— Pronta? – A morena perguntou ainda na calçada.
— Estou nervosa – confessou a loira.
— Não precisa. Vem!
Raissa tirou sua chave do bolso traseiro de sua calça jeans, depois
caminhou até o portão de pedestre. Após abri-lo, pegou a mão de
Renata e a puxou para dentro.
A casa da advogada era ladeada por uma bonita varanda em “L”.
Raissa fez questão de mostrar toda parte externa. Mostrou a garagem
onde estavam estacionadas duas bicicletas, e do lado direito era
composta por uma área de descanso e um bonito e colorido jardim com
direito a uma pequena estufa.
— Meu pai é apaixonado por flores, ele cultiva diversas espécies,
mas as preferidas dele são os girassóis.
Renata olhava tudo aquilo com muita curiosidade. Depois de
conhecer rapidamente toda parte externa, as duas voltaram até a entrada
principal. Subiram os degraus que levava ao terraço, depois
atravessaram a porta dupla de madeira com esquadria em arco e
detalhes em vidro. Uma voz longínqua se fez presente, e isso fez Renata
instintivamente segurar a mão da morena, que lhe olhou e sorriu.
— Você será bem recebida – disse docemente, apertando
delicadamente a mão da loira.
Por mais que suas palavras soassem verdadeiras, isso não diminuiu
as batidas do coração de Renata.
— Mãe, CHEGAMOS! – Raissa gritou.
Havia um pequeno hall entre a porta de entrada e a sala de estar.
Raissa penetrou a casa trazendo Renata consigo.
— Mãeeee! – gritou novamente.
— Até onde sei você não nasceu de sete meses. – Alguém
respondeu.
Raissa deu uma gargalhada gostosa. Renata sorriu sem mostrar os
dentes. O som daquela risada soava mais gostoso em seus ouvidos a
cada dia. De repente, uma senhorinha surgiu seguida por outra mulher
mais jovem.
— Você é a moribunda? Chega cá pra ver se você tá viva mesmo. –
O gesto foi espontâneo. A senhorinha aproximou-se da moça que
acompanhava sua neta e, sem nenhuma descrição, a puxou para si,
dando um abraço tão apertado que faltou ar em Renata.
Raissa ria ao mesmo tempo que pedia para sua avó soltá-la.
— Desse jeito, vai a senhora matar a menina, mãe – repreendeu
Thaís.
A senhorinha que Renata ainda não sabia o nome era avó de
Raissa. Ela ignorou a filha e a neta, afastou-se um pouco, apertou os
braços e as bochechas da moribunda como se quisesse ter certeza de
que ela estava viva. Quando se deu por satisfeita, afastou-se.
— Tá viva mesmo – decretou.
— Desculpa, Rê, como pode ver, tenho a quem puxar a
impetuosidade do abraço. Essa é dona Glória, mãe da minha mãe.
— Prazer – disse Renata, tímida.
A loira sentiu o olhar da outra mulher a analisando, não foi difícil
deduzir que ela era mãe da Raissa. O corpo esguio, cabelos lisos,
escuros e muito bem tratados na altura dos ombros e olhos castanhos
perspicazes. Dona Thaís era tão bonita quanto a filha.
— Essa aqui é minha mãe, dona Thaís – apresentou.
— Seja bem-vinda a nossa casa, Renata – disse Thaís, sincera.
— Obrigada, senhora.
Antes que o clima ficasse estranho, a dona da casa sugeriu:
— Por que não mostra a casa para a Renata, filha? Estou
terminando o almoço.
Raissa assentiu, pegou Renata pela mão e saiu mostrando todos os
cômodos. Por último, mostrou o dormitório. Ela avisou que teriam que
dividir o quarto. A loira ficou sem graça por ter tirado a privacidade da
advogada.
— Eu não me importo de dividir o quarto com você. Por ser filha
única, nunca precisei dividir nada, vai ser uma experiência interessante
fazer isso já beirando os trinta anos – disse, divertida. – Sua cama é
aquela. – Apontou para a cama sob a janela.
O quarto era bastante confortável, reparou a loira. Raissa contou
que tiveram que tirar alguns móveis para terem mais espaço.
— Eu reservei esse lado para você, depois vamos comprar algumas
coisas, mas temos o mesmo tipo físico, então, se precisar de algo, pode
pegar – disse, sorrindo.
— Não se preocupe, já está fazendo muito por mim, não quero te
dar mais despesa.
— Que despesa que nada! – rebateu. – É tudo muito simples, mas
espero que tenha gostado.
— Não sei se sou religiosa, mas sei que você é um anjo, sabia?! –
disse a loira, realmente grata por tudo que aquela mulher estava fazendo
por ela.
— Renata, queria te pedir uma coisa – disse suavemente. – Sem
agradecimentos, tá bem? Não estou fazendo caridade, repito, faço
porque meu coração manda fazer. Quero ajudá-la a encontrar sua
família, enquanto isso não acontece, seremos sua família. Agora vamos
deixar de papo que estou varada de fome.

◆◆◆
CAPÍTULO 12
Então é ele

RENATA
O dia transcorreu muito agradável, a mãe e avó de Raissa foram
extremamente gentis, suas palavras e atitudes pareciam tão sinceras que
realmente me sentia acolhida. No final da tarde a senhorinha foi
embora. O pai de Raissa chegou pouco depois das 17h, também fui
muito bem recebida por ele. Quando já estávamos todos prestes a jantar,
a campainha tocou. Raissa levantou-se para ver quem era, minutos
depois ela voltou acompanhada de um homem de terno escuro, pele
branca, porte físico atlético, olhos castanhos, cabelos alinhados e
cavanhaque.
— Boa noite – cumprimentou, com sua voz grave.
— Amor, essa aqui é a Renata – disse Raissa, radiante.
Levantei da cadeira instintivamente, o homem de olhar impassível
se aproximou e estendeu sua mão em minha direção.
— Prazer, Renata, me chamo Guilherme. – Ele disse.
Desci minha vista até sua mão estendida. Não sei por que, não senti
vontade de apertá-la, mas, quando levantei a vista e me deparei com
aquelas azeitonas brilhando, não pude recusar, então apertei a mão
ofertada.
O clima era estranho, eu não conseguia dizer uma só palavra.
— Como está se sentindo, Renata? – Ele tentou puxar assunto.
— Viva! – A resposta veio sem eu perceber.
— Jante conosco, Guilherme – convidou seu João.
O homem assentiu com a cabeça e se acomodou do outro lado da
mesa e de frente para mim. Não sei por que, mas me senti observada
durante todo o jantar, e não era pelos donos da casa, era por aquele
homem. Tentei ignorar a presença de Guilherme que tentava puxar
assunto fazendo perguntas idiotas. Será que não sabia que era uma
desmemoriada? Na verdade, ele sabia, só que estava querendo me
testar. Isso ficou tão evidente que Raissa percebeu e lhe deu uma
cortada. O clima ficou tenso. Ao final, ele se despediu com a desculpa
de que tinha um compromisso. Confesso que senti uma coisa estranha
dentro de mim. Uma raiva inexplicável. Meu humor mudou depois que
o conheci. Quando Raissa voltou à sala, percebeu que algo tinha
mudado.
— Desculpe pelas perguntas idiotas que o Guilherme fez.
Olhei para a mulher à minha frente, ela não precisava se desculpar
pela antipatia do seu noivo. Minha cabeça começou a doer, embora
tentasse disfarçar, pois não queria preocupar ninguém, principalmente
no meu primeiro dia naquela casa.
— Está tudo bem? – perguntou Raissa, preocupada.
Assenti tentando ser convincente, mas ela não acreditou.
— Acho melhor descansar, foi um longo dia para seu primeiro dia.
Banho e cama lhe cairiam bem – disse ternamente.
Ela tinha razão, foi um longo dia para mim. Precisava processar as
últimas horas vividas. Recebi uma toalha limpa e fui para o banheiro.
Descobri o quanto é bom um banho gelado numa cidade tão quente,
passei quase meia hora sentindo aquela água fria percorrendo meu
corpo. A sensação de relaxamento foi divina, tanto que até a dor de
cabeça passou. Tudo bem, exagerei um pouco, ela permanecia, mas
estava suportável. Voltei ao quarto, estava me enxugando
tranquilamente quando Raissa entrou de supetão. Não tem aquele
momento que você simplesmente congela? Foi exatamente o que
ocorreu.
— Desculpa, é o costume. – Ela falou. Raissa não foi nada discreta,
seus olhos percorreram todo meu corpo. Quando seus olhos chegaram
ao meu rosto, ela deu um sorriso sacana e espontaneamente disse: –
Hum… quer dizer que você tem tatuagem… Borboletinha bonitinha,
que nome é esse? – perguntou na cara dura.
Não fiquei vermelha e, sim, roxa de tanta vergonha, me virei
rapidamente pegando a toalha e cobrindo minha nudez.
— Desculpe, Renata, às vezes esqueço do quanto você é tímida. Só
vim pegar meu computador, vou adiantar um trabalho.
Não consegui falar nada, ela entrou no quarto pegou o computador
que estava dentro de uma gaveta e depois saiu. Me senti extremamente
envergonhada, caminhei vagarosamente até a porta e girei a chave. Por
algum motivo, senti necessidade de privacidade. Meus olhos se fixaram
no espelho que ocupava duas portas do guarda-roupa. Hesitante, tirei a
toalha. Um pouco abaixo do meu seio direito havia uma cicatriz, devido
a minha pele ser muito clara, ela era quase imperceptível. Por que fui
baleada? Será que sou uma pessoa de má índole? Meu olhar desceu até
a tatuagem que ficava no lado direito, acima da minha virilha. Era o
desenho de uma borboleta de uns 5 cm, e abaixo dela havia uma frase
em pequenas letras cursivas Te adoro de paixão, Duda. DUDA, não
acho que seria meu nome. Te adoro de paixão, essa frase me soava tão
íntima e familiar. Me senti cansada em meio a tantas indagações, me
vesti e deitei na cama que seria minha. Depositei minha cabeça, e não
sei em que momento adormeci, mas lembro perfeitamente do momento
que acordei.
Raissa batia ferozmente na porta do quarto, levantei sonolenta,
tinha esquecido de destrancá-la.
— Por que trancou a porta? Você está bem? Faz mais de cinco
minutos que estou chamando.
Raissa estava agitada, me olhou de cima a baixo como se quisesse
se certificar de que eu realmente estava bem.
— Eu acabei adormecendo, me desculpe – disse, me sentindo
envergonhada.
— Não é por nada, mas prefiro que mantenha a porta destrancada
por segurança, caso você passar mal, entende? – Sua voz suavizou.
— Me desculpa.
Raissa me olhou nos olhos e sorriu de um jeito doce.
— Apenas me assustei, aqui é um ambiente novo para você, tive
medo que você tivesse…
Ela não terminou a frase, e nem precisava, eu havia compreendido.
Ela tinha medo de que eu tivesse uma crise como ocorreu no hospital.
— Vou tomar banho – falou, pegando uma toalha e seguindo para o
banheiro do quarto.
Voltei para cama e não demorou muito para voltar a adormecer.
Acordei na manhã seguinte, olhei para cama ao lado e não vi ninguém.
O relógio que ficava na cabeceira marcava mais de oito da manhã.
Levantei e fui fazer minha higiene matinal. Não sabia o que fazer,
sentia uma imensa vergonha em sair do quarto, fiquei andando de um
lado para o outro até que tomei coragem e saí. Fui andando pela casa
até chegar à cozinha.
— Bom dia – cumprimentei.
— Bom dia, Renata – respondeu simpaticamente dona Thaís.
Percebi que ela não estava sozinha, havia uma outra senhora que me
olhou curiosamente. – Dormiu bem, menina?
— Dormi, sim. Raissa…
— Foi trabalhar. Só volta à noitinha.
Dona Thaís me lançou um olhar que não consegui entender, mas,
quando ela se virou para a amiga que estava encostada na soleira da
porta da cozinha, compreendi.
— Maria, essa aqui é a Renata, minha afilhada, ela veio passar uns
tempos aqui, tentar arrumar trabalho.
A mulher se aproximou e estendeu a mão para mim.
— Oi, Renata. Tudo bem?
— Tudo, sim, senhora.
— Senta aí, menina, você precisa comer, está magrinha demais.
Não me fiz de rogada, realmente estava morrendo de fome. Dona
Thaís, muito solícita, me serviu enquanto tagarelava com sua vizinha.
Quando a mulher foi embora, ela virou-se para mim.
— Combinei com o João para dizer que você é nossa afilhada, será
mais fácil de evitar o falatório do povo. Sabe como é, né? Bairro
pequeno, todo mundo se conhece.
— Não quero trazer situações embaraçosas para vocês.
A mulher sorriu para mim. Seu sorriso lembrava o da sua filha.
O dia passou devagar, eu tentei de todas as formas ajudá-la nos
serviços da casa, mas aquela mulher era bastante teimosa. Pediu apenas
para eu descansar, assistir televisão ou ler um livro da Raissa.
Descansar de quê? O único cansaço que sentia era justamente o de não
fazer nada. Depois do almoço, Raissa ligou para saber se eu estava bem
e conversamos por alguns minutos ao telefone. A cada dia, eu gostava
mais daquela criatura. Impressionante como ela me fazia bem.
Tornei-me a novidade no bairro. Ora ou outra vinha algum vizinho
conhecer a afilhada do seu João e da dona Thaís que veio do Sul. Por
algum motivo, eles deduziram que eu tinha vindo do Sul. Coitados, não
sabiam eles que eu nem sabia meu próprio nome, quanto mais de onde
tinha vindo. Eu tentei ser a mais paciente possível, mas toda aquela
movimentação e aquelas perguntas curiosas estavam me dando dor de
cabeça. Na última visita, não consegui me conter, minha dor de cabeça
atacou e acabei sendo grosseira com a visita da dona da casa. Saí da
sala e corri para o quarto, sentia muitas pontadas na cabeça, então me
joguei na cama e comecei a chorar descontroladamente.

Três horas depois.


— Boa noite – reconheci aquela voz, era ela. Senti uma tristeza no
peito. Permaneci calada com o rosto virado para a parede.
— Você não se sente bem? – perguntou.
— Como posso me sentir bem se nem sei quem sou? – falei
baixinho. – Fui grosseira com as amigas da sua mãe, me desculpe…
Raissa sentou-se na beirada da minha cama e tocou nos meus
cabelos.
— Olha para mim – pediu suavemente. – Rê, olha pra mim.
Com dificuldade, sentei na cama e fitei suas azeitonas.
— Me desculpe… – disse.
— Não tem por que se desculpar. Aqui no bairro todos se
conhecem, é natural que fiquem curiosos em querer saber quem é você.
Minha mãe queria poupá-la, então achou melhor dizer que você é uma
afilhada.
— Eu queria saber quem eu sou, Raissa.
— Você é Renata. Renata Fernandes – afirmou docemente. – As
dores de cabeça voltaram? – perguntou.
— Sim, por isso não consegui suportar. Eles ficaram me enchendo
de perguntas que eu não sabia a resposta, uma angústia foi me tomando,
e, quando vi, estava gritando.
— Tudo bem. Já passou.
Raissa é uma mulher muito carinhosa, sem hesitar me envolveu
num abraço terno. Sempre que ela me abraçava eu me sentia segura.
— Você se sente bem agora? – Ela perguntou. Eu assenti. Ela
rapidamente se levantou e me estendeu a mão. – Vamos respirar um
pouco. Levanta dessa cama, toma um banho e se arruma. Eu vou fazer o
mesmo. Vou para o quarto de mainha para agilizar. Em vinte minutos,
esteja arrumada, vamos sair. Quero que conheça duas pessoas
importantes para mim.

◆◆◆
CAPÍTULO 13
Ela é gaúcha

Duas horas antes.


— Doutora Raissa.
— Oi, Ângela.
— Sei que a senhora pediu que eu não passasse nenhuma ligação,
mas sua mãe insiste. Disse que é importante.
— Tudo bem, pode soltar a ligação.
Raissa estava no meio de uma petição importante, mas uma ligação
da sua mãe para seu trabalho não era algo comum, a advogada sentiu
uma onda de preocupação.
— Mainha.
— Raissa?
— Sou eu, mãe, o que houve?
— Essa moça não está bem.
— Como assim? Ela está passando mal, o que houve?
— Me deixa falar – falou, impaciente. – Sua avó veio para cá junto
com a dona Josefa, Socorro e dona Antônia, você sabe como sua avó é.
A rua já está cheia. Por sorte já tinha falado para a mamãe que se
alguém perguntasse era para dizer que ela é nossa afilhada, que veio
para cá atrás de emprego. Renata estava se saindo bem, mas, de repente,
começou a gritar… – Thaís narrou para filha o que acontecera naquela
tarde. Sua preocupação não foi pelo que as velhas fofoqueiras do bairro
iam falar, mas, sim, porque a jovem tinha se trancado no quarto e
chorava muito.
— Mãe, a Renata está doente. Ela não tem lembrança alguma do
seu passado, dou por vista a sabatina que as amigas da vovó devem tê-
la submetido.
— Filha, vem pra casa, já bati tantas vezes na porta do quarto, mas
só escuto seu choro. Se essa menina morrer, será culpa nossa – disse
Thaís, aflita.
— Vira essa boca pra lá, mãe! Eu só vou finalizar um trabalho aqui
e vou embora, mas, por favor, tenta ver como ela está.
Depois da ligação, a morena não conseguiu se concentrar no
trabalho. A vontade que sentia era de ir correndo para casa, porém não
podia, Guilherme estava cada vez mais irritado devido aos seus atrasos
e por ora ou outra precisar sair mais cedo ou faltar ao trabalho. Na
verdade, o que verdadeiramente irritava o advogado era o motivo que a
levava a isso. Empurrando sua preocupação para atrás da porta, ela
conseguiu concluir aquela petição. Após devidamente protocolá-la no
PJE, ela encerrou seu expediente. Chamou um Uber e seguiu para casa.
Assim que entrou, encontrou seu pai e sua mãe assistindo à novela das
seis.
— Como ela está?
— Mais calma, consegui fazê-la tomar um chá de camomila, mas
desde cedo não quis comer nada – disse dona Thaís.
— Ela deve estar assustada, minha filha, não é todo mundo que
encara sua avó e aquela comitiva de velhas assustadoras – disparou seu
João, divertido.
Raissa riu da brincadeira do pai, mas sua mãe lançou um olhar
fulminante para o marido, que correspondeu com um olhar brincalhão.
— Vou vê-la.

Raissa pegou uma roupa leve e foi para o quarto da mãe. Antes de
entrar no banho, ligou para suas melhores amigas e combinou de
encontrá-las na praça. Seu dia tinha sido cansativo, mas achava uma
boa levar Renata para sair um pouco, mesmo que fosse para tão perto
de casa. Depois de um banho relaxante, se arrumou e, meia hora depois,
já estava esperando Renata na sala de estar.
— Uau! Ficou uma gracinha! – disparou a advogada, quando a
moça chegou à sala trajando um vestido Criss Cross simples de tecido
leve e coloração verde.
— Foi um presente da dona Letícia – disse, sem jeito.
— Ficou muito bonito – disse dona Thaís ao olhar para a jovem. –
Você é uma moça muito bonita Renata.
Renata, ao fitar os olhos castanhos da mulher, sentiu-se
envergonhada. Imediatamente, pediu desculpas pelo seu
comportamento.
— Tudo bem, minha filha, vamos esquecer. Saia um pouco com a
Raissa, um pouco de ar puro lhe fará bem.
— Bem, vamos lá que Clara e Dora estão ansiosas para conhecê-la
– chamou Raissa.
As duas saíram de casa e caminharam até a praça do bairro, não era
muito longe. A noite estava fresca e havia bastante gente no espaço
público.
— Elas estão num trailer gourmet, logo ali.
Depois de caminhar mais uns duzentos metros, Raissa encontrou-se
com as amigas que estavam numa mesa. Ao chegar, fez as
apresentações e se acomodaram. Clara e Dora já conheciam a situação
da Renata, então evitaram fazer perguntas. O quarteto conversava
amenidades enquanto comiam hambúrguer artesanal. Para surpresa da
advogada, Renata e Dora engataram uma empolgada conversa sobre
casos clínicos, uma vez que Dora é fisioterapeuta. Clara e Raissa
apenas assistiam as duas conversarem.
— Já podemos deduzir duas coisas sobre você – disse Dora. – Com
certeza você é do Sul, aposto milzinho que é uma gaúcha nata. Seu
sotaque e vício de linguagem não negam – disse, rindo. – E a outra,
com mais certeza ainda, você é da área de saúde.
Raissa sentiu um estalo, esse tempo todinho nunca se atentou
àquela particularidade da moça à sua frente. Até as amigas da sua avó
perceberam o sotaque pesado que a jovem sem memória carregava em
sua pronúncia.
— Concordo – se manifestou Clara. – Esse sotaque é muito
carregado. Não é do Sudeste, está mais para o Sul.
— Como podem ter tanta certeza? – perguntou Raissa.
— Ora, amiga, esqueceu que sou uma telefonista de luxo –
disparou Clara, que na verdade era escriturária de um banco público.
Porém, ela lidava mais com clientes por telefone.
Renata sentiu um formigamento no corpo, seus olhos buscaram os
oliva. Quando as azeitonas a fitaram, a morena disse:
— Você falou com tanta propriedade e naturalidade sobre ossos,
circulação, procedimentos – fez uma breve pausa –, você sempre fala
tão pouco que não tinha reparado no quanto tem sotaque, mas te
ouvindo tão bem essa noite, é no mínimo intrigante.
Não lembrar de nada era agoniante para a jovem sem memória, e
aquelas observações fizeram emergir sua tristeza por não ter um
passado. Foi involuntário, seus olhos negros ficaram sob uma cortina de
água. Ao perceber isso, Raissa segurou sua mão em sinal de conforto.
— Desculpa… – falou Dora e Clara ao mesmo tempo. Elas
também perceberam a tristeza repentina da loira.
— Não precisam se desculpar – disse a Renata.
Raissa resolveu encerrar a noite. Suas amigas haviam se
simpatizado com a loira, aquele encontro tinha sido bastante agradável,
e ao menos nas duas horas que passou ali, Renata esquecera um pouco
das intempéries da sua vida. Quando chegaram em casa, os pais da
morena já haviam se recolhido. As duas foram direto para o quarto.
Desprovida de qualquer timidez, Raissa foi logo arrancando suas roupas
e procurando sua camisola. Quando fitou a loira, viu suas bochechas
vermelhas. Foi impossível não rir.
— Somos mulheres adultas, tudo que você tem, eu tenho também.
Nunca tive problemas de ficar pelada na frente das minhas amigas –
disse docemente. Raissa estava apenas de calcinha, ela deu alguns
passos à frente e apertou o nariz da outra num gesto terno, pois achava
uma graça o jeito tímido da loira.
Renata afastou a vista do corpo seminu da advogada. Ela virou-se e
também se trocou rapidamente, só que no banheiro. Quando retornou
Raissa já estava deitada na sua cama.
— Suas amigas são pessoas muito agradáveis – disse.
— Que bom que você gostou, elas também se simpatizaram muito
com você. Sábado, vou marcar alguma coisa leve, quero que conheça
meus outros amigos.
— Boa noite, Raissa e obrigada!
— Se você ficar me agradecendo até por um alfinete, juro que não
faço mais nada – retrucou, bocejando, pois estava cansada e morta de
sono. – Boa noite, Rê.
Renata também não tardou a dormir, porém, durante a madrugada,
ela acordou com uma forte pontada na cabeça. As dores vieram com
força. Raissa também acordou com os gritos. Foram momentos
angustiantes. Renata chorava compulsivamente reclamando da dor e, de
repente, seu nariz começou a sangrar. A morena tentava acalmá-la. Se
sentindo impotente, a única coisa que Raissa conseguiu fazer foi puxá-
la para cama e abraçá-la o mais forte que conseguiu. O corpo de Renata
foi amolecendo, seu choro diminuiu, quando a morena percebeu, a
jovem tinha adormecido em seus braços.

◆◆◆
CAPÍTULO 14
Estou gostando dela

RENATA
Um mês depois.
O tempo passa muito rápido. Tenho recebido tanto amor, carinho e
respeito que as lacunas do meu passado deixaram de me incomodar.
Contudo, uma pessoa que não aparecia nada satisfeito com esse
acolhimento era o noivo de Raissa. Sua presença sempre causava
tensões, seja durante um jantar ou em um almoço em família. Ontem,
para meu desânimo, Guilherme resolveu passar o dia conosco, pois era
domingo. Tive que aturar o dia todo aquele cara cheio de carícias e
malícias para o lado da Raissa. E tudo piorou no final da tarde quando
ela decidiu que iria com ele.
Passei a noite em claro numa angústia tremenda. Imaginá-la com
ele me dava náuseas, EU ESTAVA GOSTANDO DELA. Triste
conclusão. Adormeci apenas quando o dia raiou, acordei já era mais de
dez da manhã, estava banhada de suor e com uma forte dor de cabeça.
Tinha tido outro pesadelo. Eles se tornavam cada vez mais constantes,
neste:
Havia um jardim imenso, muito bonito e todo ornamentado com
várias mesas espalhadas por ele. Tudo muito elegante. Eu trajava um
vestido preto, bem justo, de costas nua e com um decote em “V”,
sandália de salto alto e usava uma maquiagem perfeita, realçando
ainda mais os negros dos meus olhos. Ao invés dos cabelos longos, no
meu sonho estava com um corte repicado um pouco acima dos ombros.
De acessórios, brincos tipo argola e um anel de rubi. Me sentia tensa
naquele ambiente, olhava ao redor à procura de um rosto. Rosto de
uma tal “Maria Eduarda”. Quando menos esperei, meu telefone tocou
e uma voz feminina soou do outro lado da linha. Ela dizia: — Hum…
você está gostosa, hein! – exclamou a voz. – Dá até pena te dar para
outra comer. – Ouço a risada do outro lado da linha.
Acordei de solavanco, com meu coração batendo muito
agressivamente no peito. Fiquei um tempo sentada até conseguir me
acalmar, quando isso aconteceu, tomei minha medicação e fui tomar um
banho. Quando cheguei à cozinha, a dona Thaís cantarolava na cozinha.
Sorri ao vê-la em suas roupas aeróbicas, cabelos presos num rabo de
cavalo alto e compenetrada no que fazia.
— Bom dia, dormiu bem, minha filha? – Ela me perguntou assim
que me viu.
— Dormi, sim, tia. Bom dia – cumprimentei.
Chamá-la de tia foi algo muito natural para mim, tanto ela quanto o
senhor João pareceram não se incomodar. Confesso que me sentia cada
vez mais próximo deles, era um sentimento de pertencimento que
crescia a cada dia. Não sei se tive isso na minha outra vida, mas sei que
nesta, onde passei a existir como “Renata”, esses dois senhores eram o
mais próximo do que eu teria de um pai e uma mãe. E aqui, me sentia
em casa.
— Por que não me chamou para ajudá-la? – disse ao ir até a
geladeira.
— Quase não tem nada para fazer. – Ela respondeu displicente. –
Tem salada de fruta na geladeira, trouxe para você.
Fui até ela e lhe dei um beijo na bochecha, agradecendo sua
gentileza. Eu não sei se eu costumava ser carinhosa com minha mãe ou
meu pai, mas o excesso de afetuosidade de Raissa deve ser contagioso,
porque hoje, pouco mais de trintas dias que morava aqui, um gesto
como esse era não apenas comum, mas muito natural da minha parte. E
havia muita reciprocidade.
Fiquei um bom tempo ali conversando amenidades, enquanto ela
terminava de preparar o almoço. No início da tarde, ela perguntou se eu
queria acompanhá-la à casa da dona Glória, mas minha dor de cabeça
resolveu me fazer companhia. Preferi ficar em casa, aproveitei aquele
silêncio para tentar cochilar um pouco.
Me via em um quarto bonito. Havia uma cama grande e redonda e
minuciosamente arrumada com lençóis vermelhos. Eu me despia
sensualmente diante do olhar abrasador de um homem. Ele era mais
velho, sorria para mim maliciosamente. Quando já estava pelada, ele
bateu com sua mão em sua coxa entoando: vem rebolar no colinho do
papai, vem!
Acordei extremamente nauseada, corri cambaleando até o banheiro
e, por pouco, não vomitei no chão. Tudo que estava no meu estômago
saiu em questão de segundos. Cai sentada ao lado do vaso sanitário.
Novamente me vi num show de imagens. Levei as mãos à cabeça e
gritei de dor. Porque doía, não sabia descrever a intensidade da dor.
Parecia que diversos ou um único filme estava passando diante dos
meus olhos em aceleração máxima. Não sei quanto tempo durou
quando a escuridão começou a me atrair.
— Renata, Renata. – Era dona Thaís aflita, entrando no banheiro e
se agachando.
Ela me abraçou forte, tão forte que sentia a pressão nos meus ossos.
Ela parecia ter descoberto o segredo de Raissa, era assim que a
advogada conseguia me acalmar. Não sei como ou o porquê, mas aquilo
era a única forma de me trazer de volta. Minhas lágrimas e o sangue
que jorrava do meu nariz mancharam sua blusa branca.
— Shhhh, vai passar. – Ela dizia enquanto me apertava em seus
braços.
Eu conseguia ouvir as batidas aceleradas do seu coração. As
imagens estancaram bruscamente, e a imagem de um rosto se
materializou em minha retina. “Um homem loiro, pele branca, barba
bem aparada, seus cabelos amarelos estavam num corte militar clássico,
mas a lembrança dos seus olhos fez todo meu corpo se arrepiar. Seus
olhos eram azuis, de um azul intenso, de um azul que embora lembrasse
o céu, por algum motivo me causavam um medo dolorido.
Não sei quanto tempo demorei para me acalmar, mas sabia que isso
tinha acontecido porque senti que os braços da dona Thaís se
afrouxaram. Ela se afastou um pouco para me ver. Seus olhos castanhos
estavam inundados. Sem hesitar, levou seus lábios a minha testa, num
gesto verdadeiro de amor e preocupação.
— Você tá bem? – Ela perguntou.
Me sentia fraca, a cabeça ainda doía, mas sempre doía menos após
um pesadelo ou aquele festival de imagens.
— Agora estou, mas a cabeça ainda dói.
— Desde quando você está sentindo dor? – Ela quis saber.
Titubeie. Se eu dissesse que era desde que acordei, ela ficaria
chateada, mas não poderia mentir. Acabei contando sobre o pesadelo
durante a noite e o de agora.
— Desculpa… – Tentei falar, mas ela não deixou.
— Quando eu perguntar se dormiu bem, se está com alguma dor
por mínima que for, você tem que me dizer, Renata. – Ela disse meio
brava. – Você lembra o que o doutor Bernardo falou? – Ela me
perguntou. Mas não precisei responder. Ela deu um suspiro pesado, sua
voz saiu mais baixa. – Quando você chegou aqui, eu e o João te vimos e
fizemos uma promessa. Somos pais e sabemos a dor que é perder um
filho. – Notei que sua voz embargou. Algumas gotas de lágrimas
começaram a ser derramadas. – Prometemos a Nossa Senhora
Aparecida que íamos cuidar de você até o dia que possamos lhe
entregar a sua verdadeira mãe. Só te entregaremos a ela. Então, não me
esconda nada, por enquanto você é nossa filha, então te proíbo de
esconder qualquer coisa da gente.
Dito isso, ela voltou a me abraçar com carinho, ternura e
preocupação, em seguida, pegou o telefone e ligou para aquele homem
que já se tornou amigo da família.

Havia sido só um susto mesmo, mas tia Thaís só ficou tranquila


depois de conseguir uma consulta com meu médico. No restante do dia,
ficamos grudadas uma na outra. Ajudei a limpar o quintal, reguei as
flores do tio e depois ficamos de bobeira vendo uma série na televisão.
Raissa tinha ligado, enquanto eu estava na estufa. Meu coração apertou
quando soube que ela não voltaria para casa hoje.
No início da noite, quando o tio João chegou, ele ficou sabendo do
ocorrido. Preocupado, voltou a repetir o mesmo discurso da esposa.
Mesmo tendo consciência da gravidade da situação, meu coração se
aquecia diante daquela preocupação. Eles genuinamente se importavam
comigo, e mais uma vez o sentimento de pertencimento a uma família
crescia um pouquinho mais.
Muitas horas depois.
Estava distraída lendo um livro quando a porta do quarto foi aberta
bruscamente. Acabei levando um susto.
— Desculpe! É essa merda de hábito – disse Raissa.
Sua expressão era séria, não tinha aquele sorriso costumeiro. Ela
parecia irritada. Mesmo insegura, perguntei:
— Tudo bem?
Ela apenas assentiu. Observei-a jogar sua bolsa no chão e começar
a se despir. Dessa vez, ela não ficou apenas de peças íntimas como de
costume, ficou completamente nua. De forma involuntária, olhei cada
pedaço do seu corpo. Deus! Como era linda. Um calor atingiu meu
corpo.
— Você está me comendo com os olhos. – Ela disse sem parecer se
importar.
Antes que eu pudesse elaborar qualquer coisa em minha defesa, ela
deu um dos seus sorrisos e seguiu para o banheiro, que ficava em nosso
quarto. Definitivamente, devo ser lésbica, pois a imagem de Raissa
causava mais que calor no meu corpo, molhava a minha calcinha.
Joguei-me na cama e fiquei a imaginá-la no banho. Ri dos meus
pensamentos nada inocentes. Ela demorou para voltar, quando isso
aconteceu, permaneceu calada enquanto se vestia. Havia algo de errado.
— Você é a criatura mais falante que eu conheço, e esse silêncio
não é normal – disse e observei sua reação. – O que houve?
Ela deu um suspiro audível, depois virou-se para mim.
— Levando em consideração que você só conhece uma dúzia de
pessoas – rebateu.
Sem resistir, eu sorri e ela acabou sorrindo de volta. Suas azeitonas
estavam tristes.
— Briguei com o Guilherme. – Ela disse baixinho.
— Pensei que vocês estavam bem.
— Eu também… Você viu ontem quando a gente estava aqui em
casa bem. À noite, saímos com uns amigos. Em casa, tivemos
momentos maravilhosos na cama. – Ela falava com espontaneidade.
Contudo, suas palavras me causaram uma sensação estranha e um gosto
amargo na boca. – Foi tão bom, mas hoje, ao acordar, tudo mudou.
Senti vontade de perguntar o que mudou, mas ignorei minha
curiosidade e esperei ela falar. Seu timbre de voz mudou e suas
azeitonas ficaram molhadas.
— Como ele pode duvidar do meu amor? Ele não tem esse direito.
– Ela dizia. Continuei sem entender o contexto. – Basta ficar nervoso
um pouquinho que começa com a mesma ladainha. Isso está me
enchendo, sabe?! Fiquei magoada, ele tem sido muito insensível
comigo, fica fazendo cobranças descabidas, até ciúmes de você ele
passou a ter, acreditas? – Sua voz era de indignação. – No fim das
contas, fui à sala dele e falei um monte.
Não sabia o que dizer naquele momento, meu único gesto foi
repetir o que ela costumava fazer comigo quando eu estava mal. Me
aproximei devagar e lhe ofereci um abraço. Ela se aconchegou nos
meus braços e ali permaneceu até cessar o choro. Não imaginei que sua
relação com o Guilherme estivesse tão estremecida. Raissa era uma
mulher muito bacana, aquele troglodita não a merecia.
— Sabe o que eu queria agora? – falou ao se afastar. Olhei confusa
para ela. – Sorvete de chocolate com calda de morango – disse num tom
dengoso, ela adorava doces quando estava deprimida ou agitada.
Encarei Raissa nos olhos. Aquela frase… Um flashback veio à
minha mente. Levei minha mão à cabeça e gemi de dor. A frase: Adoro
sorvete de chocolate com calda de morango, sorvete de chocolate com
calda de morango… ecoava aos gritos. De repente:
Me vi sentada numa cama de solteiro com alguém, não via seu
rosto, mas sabia que era uma garota. Ela tinha uma gargalhada
gostosa de se ouvir. Conversamos sobre alguma coisa. Eu tinha um
pote de sorvete de creme em minhas mãos, enquanto ela segurava o de
chocolate com calda de morango. Volta e meia, ela metia a colher no
meu, depois voltava a gargalhar.
— Seu nariz!
A voz de Raissa fez as imagens se dissolverem na minha mente.
— Seu nariz… – Ela tentou se levantar, mas segurei firme seu
pulso.
— Eu estou bem – consegui falar.
— Não, você não está. Terceira vez passando mal no mesmo dia –
disparou.
Raissa foi até o banheiro e voltou com um pano úmido,
calmamente limpou o sangue que tinha saído das minhas vias aéreas.
Ficamos longos minutos em silêncio.
— Precisamos achar uma forma de isso acabar. – Ela disse.
Senti um aperto no peito por deixá-la tão preocupada, já não
bastava seus problemas pessoais. Mas não havia muito o que fazer, por
mais brilhante que meu neurologista fosse, a extensão do dano causado
ao meu cérebro era uma incógnita.
— Acho que tive uma lembrança… – disse baixinho.
— Como assim? – Ela parou o que estava fazendo e me encarou de
olhos arregalados. – Lembrança? Que lembrança?
— Não sei… Não consigo colocá-la em ordem cronológica. São
imagens, ou melhor, foi como se passasse um filme em minha frente,
mas com cenas aleatórias, a frase do sorvete de chocolate com calda de
morango pareceu um gatilho.
Mesmo parecendo confuso, relatei exatamente a cena que vi, não
só essa, como as outras. — Mesmo sem fazer sentido, faz
sentido. – Ela disse. – Algumas coisas podem ser gatilhos.
— Eu não consigo ver nada para trás, Raissa. Absolutamente nada
– explodi. Eu queria saber quem sou, mas…. Como dizer a ela que, sim,
eu queria saber quem sou, mas algo muito dentro de mim, bem lá no
fundo, estava feliz por não existir o antes.
Ela sorriu para mim e disse:
— Você é a Renata, e continuo querendo tomar sorvete de
chocolate com calda de morango – afirmou, tentando me animar.
— Vamos tomar o de pavê – sugeri.
Ela deu uma gargalhada e disparou:
— Você pode não lembrar, mas estou achando que sorvete de
chocolate com calda de morango deve ser algo muito seu com um certo
alguém.
Eu nada disse, mas dentro de mim fez que sim. Talvez seja isso.
Mas agora eu era a Renata, e a Renata poderia tomar sorvete de pavê
com aquela linda morena.
◆◆◆
CAPÍTULO 15
Protagonista

— Bom dia, Dra. Raissa – cumprimentou a secretária, ao ver a


advogada chegar.
— Bom dia, dona Ângela – implicou.
A secretária deu um sorriso discreto, ela sabia que a amiga odiava
aquele formalismo.
— Dr. Guilherme pediu que, assim que a senhora chegasse, fosse à
sua sala.
Raissa revirou os olhos de um jeito engraçado, arrancando outra
risada discreta da mulher à sua frente.
— Faz tempo que ele chegou? – perguntou, pois a última coisa que
queria era um embate às nove da manhã.
— Quando cheguei, ele já estava. Então, deve ter chegado antes
das oito.
A morena agradeceu o recado e entrou na sua sala. Não queria se
aborrecer logo no início da manhã, então resolveu ignorá-lo.
Então, lá estava ela, analisando uma Contestação que tinha feito
quando seu noivo entrou sem ser anunciado.
— Sua secretária não lhe deu o recado? – perguntou, sério.
— Deu sim – respondeu de forma displicente, sem tirar os olhos do
computador. – Bom dia para você também! – alfinetou.
— Raissa, estou aqui! – exclamou.
A mulher respirou fundo e levantou a vista para o homem que
acabara de sentar na cadeira em frente à sua mesa.
— Eu já ia à sua sala, mas já que se deu ao trabalho de vir, diga, do
que se trata?
— A festa do tio já foi marcada.
— Eu já sei. O escritório só fala nesse jantar – disse, demonstrando
sua falta de interesse.
— Vai ter muita gente importante, vamos ter a oportunidade de
fazer muitos contatos. – Ele continuou.
— Meu Deus, Guilherme! Vai usar a festa do seu tio para arrumar
clientes – o repreendeu. – Que ridículo. Bom jantar para você, então.
— Como? – Fez de desentendido.
— Espero que você se divirta e esqueça um pouco do trabalho, mas
acho que isso será meio difícil – respondeu em tom deboche.
— Você quis dizer “nós”, né, Raissa? Vim aqui lembrá-la, já que
vive esquecendo do compromisso que tem comigo.
— Sinto muito, Guilherme, mas não poderei acompanhá-lo dessa
vez.
— Como assim não vai à festa? – disparou.
— Não posso ir, porque já tenho um compromisso. Não sei se você
se lembra, mas dia 15 é o aniversário de oitenta anos da vovó. Estão
organizando uma festa, e mainha quer aproveitar e apresentar a Renata
para o restante da família – disse de uma só vez.
— Você vai deixar de ir a um evento importante, para levar aquela
mulherzinha para conhecer o resto da sua família, é isso mesmo? –
perguntou, incrédulo. A raiva começou a emergir de suas entranhas.
Raissa, por sua vez, pareceu não reconhecer o homem à sua frente.
Diante do seu silêncio, Guilherme levantou-se, a fitou nos olhos e disse,
ou melhor, exigiu:
— Pois desmarque qualquer compromisso que for, porque dia 15
você irá àquela festa comigo, entendeu?
— Já disse que não irei – desafiou.
E, para sua surpresa, Guilherme rodeou a mesa e a segurou nos
braços de um jeito bruto.
— Você sabe que odeio ir nesses eventos desacompanhado.
— Você está me machucando. – Raissa gritou.
Ao perceber o que estava fazendo, Guilherme a soltou de imediato.
Seus olhos visualizaram a vermelhidão que ficou onde apertou. Raissa
lhe olhou com raiva.
— Desculpe…. Eu… – Ele tentou se desculpar.
— Sai daqui, Guilherme – vociferou. Ele tentou se aproximar, mas
ela caminhou para longe. – Não chegue perto de mim, seu estúpido. Viu
o que você fez?
— Raissa, não queria ter te machucado. Desculpe, amor…
— Melhor ir, Guilherme – disse a advogada, abrindo a porta da sua
sala.
Arrependido e envergonhado, ele saiu. Raissa fechou a porta atrás
de si, só então permitiu que seus olhos se umedecessem. Atitudes como
essa estavam se tornando cada vez mais frequentes, Raissa já tinha visto
esse filme, a diferença era que agora estava se tornando a protagonista.
A jovem resolveu empurrar a situação para trás da porta e se afogar no
trabalho, mas a advogada teve dificuldade de trabalhar, seus
pensamentos alternavam entre o noivo e a nova moradora da sua casa, e
pensar na moça sem memória a fez sorrir.
Já havia passado mais de um mês que Renata morava consigo. Sua
adaptação foi melhor do que o esperado. Primeiro, porque seus pais a
acolheram verdadeiramente. Segundo, porque Renata era uma pessoa
terna, daquelas que queremos junto da gente. Assim, não demorou
muito para conquistar o carinho de todos. Cada dia que passava, Raissa
amava mais sua companhia, de modo que elas estavam sempre muito
juntas. A morena não apenas a introduziu em sua família, mas a levou
também para seu ciclo de amizade.
Naquela manhã, a morena notou uma coisa que a deixou inquieta.
Na noite anterior, as duas resolveram maratonar uma série que a
advogada queria muito assistir. Raissa não sabe em que momento
aconteceu, ela só lembra de acordar com seu corpo enroscado no da
loira. Aquela respiração quente em seu pescoço, as pernas entrelaçadas
na sua, a mão em volta da sua cintura. Acordar daquela forma lhe
causou uma certa quentura em seu baixo-ventre, e foi justamente isso
que a inquietou. Raissa sempre foi uma pessoa extremamente afetuosa,
daquelas que onde ver os amigos, abraça, beija, cheira. Daquelas bem
grudadinhas mesmo. Contudo, em relação à loira, ela sabia que
precisava se controlar. A morena não era cega, já havia notado o olhar
diferente que Renata lhe direcionava, e sentir seu olhar causava-lhe um
reboliço no estômago, mas de uma forma boa.
Raissa balançou a cabeça numa tentativa de espantar seus
pensamentos, afinal, Renata era sua amiga, isso nunca lhe aconteceu
antes. Além do mais, era comprometida e, mesmo que seu
relacionamento estivesse por um fio, ela não era lésbica, ao menos
achava que não. Que merda! Por que tinha que ser tão bom senti-la
junto de mim?!, disse de forma audível. Foi impossível dispensar seus
pensamentos, principalmente quando no final da tarde recebeu uma
visita inesperada.
◆◆◆
CAPÍTULO 16
Canta pra mim

— Entre – disse Raissa ao ouvir as batidas na porta.


— Dora está aqui, posso mandar entrar? – perguntou a secretária.
— Claro.
— Vou mandá-la entrar e depois vou indo. Deveria ir também, são
quase 19h.
— Perdi a hora hoje, Ângela. Vai lá, bom descanso e até amanhã.
— Boa noite, Raissa.
Segundos depois, Dora e Renata entram na sala da advogada. A
morena teve sua atenção novamente roubada pela moça que até
momentos atrás estava despertando sensações e curiosidades. Raissa
não escondeu a felicidade de vê-la ali.
— Que surpresa boa! – disse ao abraçar e beijar primeiro sua
melhor amiga. Depois se voltou para a loira. Seus olhos a percorreram
de cima a baixo. – Como você está linda. O que houve com seus
cabelos?
Renata abriu um largo sorriso, e suas bochechas ficaram vermelhas
diante do entusiasmado elogio.
— Cortei – respondeu, displicente. – Você gostou?
— Ficou top, né, amiga? – Dora respondeu pela amiga. – Tinha
saído de um plantão e estava indo para casa, acabei encontrando a Rê e
a tia Thaís na rua. Elas estavam indo para o centro comunitário, mas
acabei roubando a Renata pra mim – explicou Dora, travessa. Ela tinha
se simpatizado muito com a loira. – Mas não foi nada fácil convencer
sua mãe a deixá-la dar uma volta comigo.
— Imagino, mainha às vezes esquece que a Rê é uma adulta.
— Deixa a tia Thaís, eu gosto do cuidado dela – contestou Rê,
risonha.
Era muito engraçado os cuidados que principalmente sua mãe tinha
com a loira. Renata também foi se apegando a esse acolhimento, já não
tinha a timidez de antes, vivia brincando, rindo e falava pelos cotovelos.
Raissa, sem perceber, tinha os olhos fixos unicamente na mulher à sua
frente, ela não tinha mais os longos cabelos loiros e o corpo frágil. Pelo
contrário, havia ganhado peso e seu corpo demonstrava curvas de
causar inveja a muita gente. Sua pele translúcida agora havia ganhado
cor, resultado de suas corridas matinais e as idas à praia quase todo fim
de semana. Enquanto os cabelos da morena eram um modelo de chanel
de bico curto, que na verdade estavam mais para longos, visto que
cresceram bastante nos últimos meses, a loira optou por um corte
modelo short Bob, repicado curto. Além de ter mexido na cor, seus fios
eram de um loiro natural claríssimo, agora sua cabeleira carregava uma
tonalidade um pouco mais escura. O corte e a cor lhe tiraram aquela
imagem de menina, lhe atribuindo uma imagem de mulher.
— Ficou muito linda… – comentou meio sem graça. A morena
teve certeza de que suas bochechas ficaram vermelhas, porque quando
desviou da loira e olhou para sua melhor amiga, viu um sorrisinho
debochado do qual conhecia bem a tradução.
— Essa daqui faz até hétero virar bi – alfinetou Dora. – Estávamos
dando uma volta no shopping, então aproveitamos para dar uma
recauchutada. A Renata disse que tinha vontade de dar uma cortada nos
cabelos, então resolvemos fazer o pacote completo.
— Ficou muito bom mesmo – disse baixinho. – Você já é linda,
mas esse visual te deu uma áurea mais mulher. – Foi sincera.
— Então! Viemos aqui te sequestrar… Liguei para a trupe e
marquei lá no Bar da Praia.
— Hum… Bar da Praia, é? Já gostei – disse Raissa, animada, ela
amava happy hour com os amigos.
— Eba! – gritou Dora, também animada.
Raissa olhou para Renata e novamente se viu admirando aquela
mulher, e ela tinha ciência de que sua admiração não era nada fraterna.
— Só preciso de cinco minutos para organizar as coisas aqui –
disse.
— Aqui tem um banheiro? – perguntou a loira.
— Tem, sim. Ali. – Apontou para uma porta que ficava dentro do
seu escritório.
Assim que Renata cruzou a porta, Dora não perdeu a oportunidade
de provocar:
— Se provar da fruta, não larga mais.
Raissa arregalou os olhos, surpresa com o comentário. Então,
sentiu uma inquietação. Não que tivesse aversão à ideia, mas, até ali,
em seus trinta anos de vida, nunca tinha se sentido atraída por mulheres.
— Tá doida! – replicou.
Dora riu e não desistiu. Chegou bem perto do seu ouvido e disse:
— Uma loira gostosa dessa, toda caidinha por você, dormindo na
cama ao lado, toda presente, toda carinhosa, toda compreensiva. – Fez
uma pequena pausa. O coração da morena acelerou. – É questão de
tempo, amiga. Aquele ogro não te merece, e você precisa de alguém
realmente leve, e seus olhos ao vê-la aqui… – Riu e não terminou a
frase, não precisou.
Raissa sentiu o peso daquelas palavras, logo lembrou-se da
sensação gostosa de quando acordou naquela manhã. Olhou novamente
para a loira que saía do banheiro. Me interessar por uma mulher a essa
altura do campeonato, pensou, sem saber o que sentir. E logo ela.
Alguns minutos depois, a morena anunciou.
— Preciso de álcool, podemos ir.

Devido ao trânsito, o trio demorou para chegar ao barzinho, mas a


espera valeu a pena, Raissa entrou com seus sete amigos inseparáveis.
Todos ainda da época de escola. Um grupo que, apesar da correria do
dia a dia, sempre arrumava um jeito de se encontrar e nunca deixar
enfraquecer o laço que os unia. Naquela noite, Renata, que até então só
conhecia Dora e Clara, foi apresentada aos demais. A noite seguiu
muito agradável, e mais uma vez a loira impressionou a advogada. Ela
participava da conversa e, mesmo sem memória, era indiscutível seu
nível cultural. Devido a um comentário, ela travou uma empolgada
conversa com Danilo, o rapaz era curador de uma conceituada galeria
de arte da cidade.
— Pelo amor de Deus, o que diabos é arte renascentista? Fala
sério! – cochichou Dora no ouvido da morena. Ela e Raissa estavam
atentas à conversa entre Danilo e Renata.
— A única arte que entendo é a de comer – respondeu a advogada
rindo e enchendo a boca de batata fritas.
— Li sobre alguns casos sobre pessoas sem memória – falou
Simone, outra amiga da Raissa, essa era enfermeira. – Pelo que vejo, o
caso dela realmente é bastante incomum. Estudos mostram que na
maioria dos casos de uma perda total de memória, o paciente regride
em boa parte das suas funções cognitivas.
Raissa soltou o ar com força, era o que todos diziam, mas isso não
se aplicava a Renata, pois, segundo seu médico, ela sofria de uma
amnésia rara.
Era umas 21h quando Tony subiu no pequeno palco para começar
sua apresentação. Raissa tinha se afastado para atender uma enfadonha
ligação com o Guilherme. Quando retornou à mesa, viu um certo
alvoroço.
— Seu amigo é louco! – dispara Renata.
— Vai lá, vai, Rê. – Danilo levantou e estendeu sua mão a ela. A
morena continuou sem entender. – Você ficou corrigindo as notas
erradas do Tony, sinal que deve saber tocar.
— O Dó maior era, na verdade, para ser um menor. Eu só disse isso
– replicou. – Eu não lembro meu nome, guri, como vou saber tocar?
— Você corrigiu cada nota errada desde que ele começou a se
apresentar. Tenho certeza que você deve saber tocar. Vamos lá, vai que
isso te traga algum gatilho?
A sugestão soou interessante para a loira. De fato, ela se sentiu
muito atraída pelo piano. Quando o pianista começou a tocar, algo a
inquietou. Ela ficou atenta à música, a cada nota entoada pelo
instrumento. Era uma sensação muito forte. Perceber os erros das notas
tocadas pareceu muito natural para si. Por algum motivo, Renata se viu
em pé e se deixando conduzir pelo seu mais novo amigo. Raissa
acompanhou tudo de onde estava, os dois chegaram ao palco e trocaram
palavras com o músico. Todos da mesa estavam agitados.
— Ela sabe tocar piano? – Um dos meninos perguntou.
— Danilo pegou pesado. O fato dela saber sobre não quer dizer que
saiba tocar um troço daquele. Ela não tem memória. – Foi a vez de
Dora comentar.
— Mas eu a ouvi dizer sobre “Dó”, “Ré” e isso e aquilo… – falou
Clara.
— Gente, sua perda de memória foi autobiográfica, não dos
conhecimentos adquiridos. Por isso é tão empolgante seu caso clínico –
comentou Simone – se ela já tocara antes, provavelmente saberá tocar
agora.
Raissa olhou apreensiva para o casal ao longe. Conhecia bem o
amigo, que às vezes perdia o senso. Ela não queria causar nenhum
constrangimento a Renata, então, pensando nisso, levantou-se e
caminhou até eles.
— O que está acontecendo? – perguntou.
— A Rê vai tocar – disse Danilo, animado.
Ela olhou diretamente para a Renata, que tinha a face vermelha.
Sabia que estava envergonhada, mas estava sorridente e não negou de
imediato.
— Você sabe tocar? – perguntou suavemente.
— Não sei, mas… – Ela hesitou. – Sinto as notas dentro de mim, é
algo familiar e vibrante…
— Eis nossa resposta – disse Danilo.
— Vamos! – convidou Tony.
— Não precisa fazer – disse Raissa.
Renata abriu um lindo sorriso, aproximou-se da morena e falou
alegremente:
— O problema é que quero fazer – disse.
Dito isso, Danilo pegou a mão da amiga e a conduziu de volta à
mesa. Todos se empolgaram quando Renata toda tímida foi apresentada
pelo artista da casa.
— Como todos sabem, aqui nosso microfone é aberto, quem quiser
mostrar seu talento, sinta-se à vontade, seremos espectadores
respeitosos…
Após aquela breve apresentação, Renata sentou-se ao lado do
pianista, seus dedos pousaram no instrumento, e a mágica começou.
Música Clássica nunca foi o forte da morena, e ela nem imaginava que
um instrumento como o piano fosse capaz de produzir ritmos atuais. O
Bar da Praia era um bar/restaurante muito eclético, toda semana rolava
um ritmo diferente, mas, por sorte ou ironia do destino, justamente
naquela quinta-feira seria uma noite regada ao som daquele
instrumento. Depois do casal cochichar entre si, as mãos da Rê
pousaram no piano entoando as primeiras notas. Tony se preparava para
cantar quando os pedidos começaram a chegar.
— Canta, garota! – Alguém gritou.
— Canta, loira! – Outra voz pediu.
Tony sorriu e posicionou o microfone próximo aos lábios da
mulher. Os olhos negros buscaram umas azeitonas que não cansava de
olhá-la. Sendo capturada por aqueles olhos, Raissa sentiu algo diferente
dentro de si, algo se revolucionando. Num gesto involuntário, seus
lábios sibilaram: Canta pra mim, e a outra, por sua vez, pareceu
entender, porque sorriu para a morena e segundos depois sua voz
começou a ecoar por todo ambiente.
TREM BALA
(Ana Vilela)
Não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si
É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti
É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz
(…)
A voz de Renata saía calmamente, acompanhada com as notas do
piano numa sincronia perfeita. Sua voz era linda. Simplesmente linda.
Os negros e as azeitonas permaneceram fixos um no outro. Raissa
sentiu um misto de emoções dentro de si. Sua razão mandava fugir
daqueles olhos, daquela voz, pois sabia o quanto aquilo era perigoso,
mas Renata a capturou com sua melodia. A loira cantou com uma
perfeição que deixou todos boquiabertos. Às vezes ela fechava os olhos
como se estivesse sentindo a música, depois voltava a abri-los. A
música acabou com aplausos, assobios e gritaria. Sem contar os pedidos
de bis. Renata se levantou, mas uma senhora pediu para tocar mais uma
música, pois era seu aniversário. E assim a loira o fez. Buscou
novamente aquelas azeitonas, sorriu para ela e começou a tocar as
primeiras notas.
ELA UNE TODAS AS COISAS
(Composição: Jorge Vercillo/Jota Maranhão)
Ela une todas as coisas
como eu poderia explicar
um doce mistério de rio
com a transparência de um mar?

E novamente a música acabou e surgiram os aplausos, assobios e


pedidos por mais e mais. Ela aceitou cantar só mais uma, cuja letra,
muito depois, contou a Raissa que gritava dentro dela. Enquanto
cantava o refrão da música Num corpo só, da cantora Maria Rita, as
notas começaram a sair erradas. De repente, ela levou as mãos à cabeça
em expressão de dor. Raissa levantou-se de sobressalto e correu até o
palco.
— Você está bem? – perguntou.
— As dores…
Ela não conseguiu terminar a frase, pois soltou um grito de dor. As
pessoas começaram a se aglomerar em sua volta. Os amigos da Raissa,
já conhecendo a situação, pediram para se afastarem. Renata foi levada
até o banheiro. Ela gemia e seu nariz expelia sangue. Em seguida,
diferente de todas as outras vezes, veio o desmaio.
— Chama a Simone. – A morena gritou.
Simone chegou correndo.
— Saiam daqui e me arrumem algo bem forte para ela inalar –
ordenou.
Todo mundo saiu do banheiro. Raissa ficou segurando a Rê em
meu colo, enquanto Dora correu atrás do que a Simone pediu. Clara já
tinha voltado com a mochila da enfermeira, pois, assim como todos os
colegas, ela também tinha vindo do trabalho. Sorte a delas. Em sua
pequena mochila havia diversos apetrechos médicos. Segundos depois,
Dora chegou trazendo uma garrafa de álcool. Simone molhou a gaze
com a bebida e levou ao nariz da Rê. Demorou alguns minutinhos para
que a loira despertasse, seus olhos foram se abrindo aos poucos.
— Você está bem? – perguntou Simone. – Vou aferir a sua pressão,
mas, antes, vamos limpar isso aqui.
Raissa apertava Renata no meu colo como se fosse uma criança
indefesa. A morena estava assustada. Embora já tivesse presenciado
aquilo outras vezes, não conseguia se acostumar. A enfermeira pegou
outra gaze e molhou no soro fisiológico, depois começou a limpar o
sangramento nasal da Rê. Concluído isso, examinou suas pupilas e
aferiu sua pressão arterial.
— Quando comecei a cantar aquela música, surgiram umas
imagens…
— Não vamos falar sobre isso. – Raissa a interrompeu, abraçando-
a com mais força.
— Acho que sua noite de estrela acabou – brincou Dora, ainda com
os olhos preocupados.
— Ela está bem, ao menos fisicamente, mas acho melhor levá-la
para casa, amiga – disse Simone.
— Obrigada, Si.
As meninas saíram do banheiro deixando-as a sós. Renata
levantou-se e caminhou até a pia, ela jogava água em seu rosto até se
sentir observada. Raissa estava diferente naquele dia, seu olhar dizia
algo. A loira não queria fazer interpretações equivocadas, não poderia
arriscar o que tinha. Em passos hesitantes, a morena parou ao seu lado,
ambas se viam pelo reflexo do espelho. A loira virou-se encarando o
perfil da advogada, havia uma tensão entre elas, não uma tensão
negativa, era apenas uma tensão diferente. Raissa era uma pessoa muito
transparente, ela soltou o ar com muita força, sentia necessidade, sentia
muita vontade, sabia que não podia, mas também sabia que não
conseguiria não querer. Nessa luta interna, ela se virou também. Seus
olhos passeavam pelo rosto daquela mulher, era a primeira vez que
olhava uma mulher com interesse além do fraterno. Renata tinha traços
delicados, parecia uma boneca. Apesar da beleza do seu rosto, eram
seus olhos que mais chamavam a sua atenção. A loira deu um passo
para frente, delicadamente pegou nas mãos da advogada e fez um
carinho.
— Quando eu cantei as primeiras músicas, eu cantei para você. –
Renata disse, fazendo o coração da outra acelerar. – Você me causa
leveza, Raissa. Uma leveza que acho que nunca existiu dentro de mim.
– Sua voz saiu baixa, carregada com seu sotaque gaúcho que cada dia
soava mais gostoso aos ouvidos da morena. – Posso não lembrar do que
tive, mas sei exatamente do que nunca existiu dentro de mim. Leveza.
Aquilo pegou a advogada em cheio, seu coração pulou, mas pulou
de uma forma que nunca sentiu antes, por nenhum homem, por nenhum
alguém. Durante toda sua carreira, Raissa aprendeu a aguçar sua
perspicácia. Há muito tempo percebeu o interesse da outra sobre si,
porém nunca se viu ameaçada, pois ela sempre a respeitou. Contudo,
seu interesse foi diretamente verbalizado em cada melodia que saía da
sua boca. A constatação daquilo estava mexendo consigo de um jeito
que a fazia querer. A verdade era essa, Raissa estava querendo-a, e, na
posição em que estavam, já conseguia sentir o hálito da outra se
misturando ao seu. As pupilas da loira se dilataram, Renata iria beijá-la,
e a outra não faria nada para impedi-la. A morena fechou os olhos, e
aquilo era tudo que a loira queria. Numa dominância que lhe era
inerente, Renata levou uma mão à cintura, enquanto a outra se
embrenhou nos cabelos escuros. Raissa teve seus lábios tomados com
ânsia e desenvoltura. O gemido foi involuntário quando sentiu aquela
língua invadir sua boca. Renata a explorava, a sugava, arrancando
gemidos e acalorando o baixo-ventre da advogada. Seus lábios foram se
arrastando pela pele frágil do pescoço moreno, enquanto suas mãos
apertavam a cintura, subiam pelas costas, desciam para a barriga,
subiam pela costela. Raissa perdera totalmente a razão diante daqueles
toques, seu corpo estava excitado, implorava por mais. Ela estremecia a
cada sussurro safado que a loira dava em seu ouvido, dizendo as coisas
obscenas que queria fazer com ela. Renata estava dominada pelo desejo
de possuir aquela mulher. Seus beijos quentes intercalavam entre boca,
pescoço e queixo. Suas mãos ágeis tentavam desabotoar a blusa da
advogada, que num resquício de razão a impediu.
— Renata… – Tentou empurrá-la um pouco, pois estava sem
fôlego. Essa mulher é um furacão, meu Deus!, pensou a morena,
ofegante, excitada e cheia de vontades.
A loira também respirava com dificuldade, seus lábios estavam
muito vermelhos e um pouco inchados devido aos beijos lascivos que
trocou com a advogada. Por um ínfimo momento, Renata teve um
gatilho, se viu num banheiro beijando uma garota, não via seu rosto,
mas lembrou-se dos tons dos seus cabelos, eram negros e extremamente
lisos, assim como os de Raissa. Espantando aquilo para longe, a loira
voltou a pressionar seu corpo contra a outra, seus lábios se buscaram
novamente. Renata a beijou com a mesma ânsia, porém, quando Raissa
tentou tomar o controle do beijo, diminuindo o ritmo, levando suas
mãos ao rosto da loira, seu gesto fez o corpo da outra automaticamente
tensionar. Antes que Renata esboçasse uma reação, as duas escutaram
uma risada escandalosa que foi logo identificada pela advogada.
— Uiiiii, que delícia, hein! Nem me chamaram para festa –
disparou Dora vendo as duas se afastarem com brusquidão. – Agora as
sapas de Natal vão pirar, Raissa Fernandes entrando na lagoa, haja
corações felizes – disse Dora, divertida.
No susto, a morena empurrou a loira com brusquidão. Ela não
soube definir seu grau de vergonha por ter sido pega no flagra.
— Agora tá explicado o porquê de tanta demora, ainda bem que fui
eu que me ofereci para vir aqui – continuou a fisioterapeuta, se
divertindo nas custas das amigas. – Acho melhor fechar a blusa antes
que a Renata caia de boca no seu decote – provocou.
Dora sabia fazer piada até nas horas mais constrangedoras
possíveis e imagináveis. Raissa, ainda sem muita reação, com o coração
martelando e os pulmões queimando, virou-se para o espelho. Seu rosto
estava muito vermelho, os lábios mais volumosos que o normal, sua
blusa toda amassada. Ela figurava uma imagem nítida de quem estava
dando uns amassos no banheiro. Já Renata não parecia nem um pouco
envergonhada, pelo contrário, ignorando a presença de Dora, tentou se
aproximar da morena, mas a mesma, nervosa, desviou e fugiu do
banheiro.
— Vocês duas estão muito ferradas. – Dora disse.
Renata soltou o ar devagarinho. Sentiu uma sensação estranha no
peito. E mais uma vez, um flashback rápido passou em sua retina. Você
é uma tarada mesmo, alguém gritou para ela, empurrando-a e
deixando-a sozinha no banheiro.
— Você tá bem?
A pergunta da fisioterapeuta a trouxe ao momento presente. Renata
assentiu e, após se recompor, retornou ao bar. Ela e Raissa evitaram se
olhar. Pouco tempo depois, a morena anunciou que já era hora de ir. O
grupo pediu a conta, e, como de costume, organizaram quem ia dar
carona a quem.
— Danilo, aproveita e deixa Raissa e Renata em casa – falou
Rogério. – Eu deixo a Dora e a Simone.
— Eu levo a Clarinha – falou Alberto.
Após pagar a conta, todos foram para suas respectivas casas.
— Rê, adorei te conhecer, vamos estreitar nosso contato – disse
Danilo quando estacionou em frente à casa das garotas.
— Claro, guri, você sabe onde moro. – Ela respondeu simpática.
Raissa nem se despediu direito do amigo, agradeceu a carona e
tratou logo de descer do veículo, deixando a loira para trás. Sua cabeça
não cansava de reprisar os momentos do banheiro. Outra coisa que a
acertou em cheio, quando a adrenalina assentou. Um pequeno e grande
detalhe se fez notar. Raissa tinha traído o Guilherme, pela primeira vez
em sua vida fora infiel. O que a angustiava era que não se sentia
arrependida. Ela agiu de forma irracional e nem poderia culpar a
bebida, pois só tinha tomado uma única caipirinha naquela noite.
Assim, naquele imbróglio de sentimentos, ela arrastou-se até seu
quarto, despiu-se e buscou um banho para relaxar. Quando saiu do
banheiro, encontrou Renata sentada na cama. A loira levantou-se e
buscou seus olhos. Em palavras claras e olhar seguro, falou:
— Estou apaixonada por você, Raissa – disse. – Não sei quando
aconteceu, mas sei que aconteceu.

◆◆◆
CAPÍTULO 17
A entrega

Em passos seguros, Renata se aproximou. Raissa sentiu seu


estômago congelar, e, mais uma vez, aquela mulher a puxou com
propriedade.
— Mas não quero fazer nada que você não queira – sussurrou, com
os lábios quase encostados nos da morena.
Ótimo isso, o problema é que eu quero, gritou internamente a
advogada.
— Renata, eu não posso… – Tentou dizer.
Chutando sua moralidade para atrás da porta, Raissa puxou a loira
para um beijo. A loira tinha necessidade de dominar o ritmo, sua língua
invadia a outra com urgência. Não precisou muito para que os corpos se
incendiassem. Raissa foi puxada pela cintura, e sua toalha deslizou para
o chão. Os lábios da loira buscaram seu pescoço oferecendo beijos
molhados e pequenas mordidas. Isso só aumentava a excitação da
advogada. Ao sentir os apertos em seu bumbum, a morena gemeu
baixinho. Renata queria mais, então, sem perder o contato visual,
arrancou as próprias roupas, fazendo a outra engoli em seco. Renata
tinha um corpo de tirar o fôlego. Sem perder tempo, empurrou a
morena, fazendo seu corpo desabar no colchão. Renata podia não ter
memória, mas seus instintos demonstraram o quanto era experiente.
Raissa nunca tinha se visto tão excitada. Seu sexo deslizava na coxa da
loira enquanto seus seios eram tomados, ora um, ora outro, lambendo,
sugando e mordendo. Aquilo estava enlouquecendo-a. Os lábios
deslizaram por sua barriga até chegar ao ventre. Raissa levantou o
corpo se apoiando em seus antebraços. Estava expectante para o que
viria a seguir. Ver aquela loira no meio das suas pernas, com os olhos
febris, era tão sexy que a fez morder seu lábio inferior com força.
— Primeiro, vou te beber todinha, depois vou te preencher inteira,
guria – sentenciou com sua voz rouca cheia de sotaque.
E foi exatamente o que fez, Renata a sugou sem reserva. Sua língua
explorou aquele sexo gerando uma sessão alucinante. A morena não
conseguiu emudecer o prazer do momento, ao invés disso gemeu,
pediu, profanou. Raissa gozou como há muito tempo não gozava.
Sentiu como se todas as forças do meu corpo tivessem sido
redirecionadas para um único ponto do seu corpo. Seu sexo estava
sensível, pois, mesmo após o orgasmo, a loira insistia em bebê-la. Por
isso, ela teve que puxar o corpo para cima. Renata afastou-se e sorriu,
um sorriso de pura vaidade.
— Quero entrar, entrar em você, Ray – sussurrou.
A morena não estava muito a par de como sexo lésbico funcionava,
mas não demorou muito para descobrir, porque estava com uma mulher
que era simplesmente um furacão na cama. Enquanto seus lábios eram
tomados num beijo sôfrego, a loira a invadia. E foi muito gostoso,
como foi gostoso para a advogada. A loira a preencheu inteira, a
morena não sabia com quantos dedos, pois só conseguia se deliciar com
aquela mulher entrando e saindo de dentro dela. Sua estocada era com
uma precisão que parecia que já conhecia aquele corpo. Ela entrava e
saia cada vez mais rápido e mais forte, e na mesma velocidade que se
esfregava em sua coxa. As duas gemeram juntas, até que Raissa sentiu
um abundante líquido quente saindo da outra, deixando um rastro
molhado em sua coxa. Renata gozou forte. Mesmo tendo seu corpo
desabando em cima da outra, manteve o ritmo da estocada, intensificou
a penetração de um jeito que atingiu o ponto G da garota, e foi
instantâneo, Raissa se desmanchou pela segunda vez naquela noite. O
cheiro do prazer pairava no ar. A loira saiu de dentro, deixando-a vazia,
escutou um resmungo que a fez sorrir. As duas estavam suadas e
ofegantes. Renata deitou-se ao lado de Raissa. Ambas pareciam
processar o momento que acabaram de vivenciar. Quando menos
esperou, a loira sentiu a morena encaixar sua cabeça no vão do seu
pescoço e abraçar seu corpo. Ambas tinham os ritmos cardíacos muito
acelerados. Dispensaram a conversa. A loira afastou-se para apagar a
luz e ligar o ar-condicionado, e voltou a puxar a morena para si, Raissa
se aconchegou em seus braços, puxaram o cobertor e se entregaram ao
sono.
— Foi incrível - sussurrou a morena, fazendo a loira sorrir e beijar
o topo da sua cabeça, feliz.
— Raissa… Raissa… – A morena escuta uma voz longínqua a
chamando. Seus olhos vão se abrindo vagarosamente. Renata lança um
sorriso tímido, logo chega à memória da advogada toda lembrança da
noite anterior. – Você está atrasada – disse a loira apontando para o
relógio que ficava numa mesa de cabeceira ao lado de cada cama.
A morena solta um suspiro e se sentou. Renata tinha acabado de
acordar também, em seguida se levantou, e involuntariamente os olhos
de Raissa percorreram seu corpo. Sua vista se fixou no desenho tatuado
na parte esquerda de sua virilha. Dessa vez, viu com exatidão. Era uma
linda tatuagem de uma borboleta sobre uma frase em letras cursivas. Ao
contrário das outras vezes, Renata não pareceu constrangida em ficar
nua em sua frente.
— Te adoro de paixão, Duda. Parece uma declaração de amor –
disse a morena.
Renata aproximou-se a ponto da outra tocar o desenho. Ele era
delicado, embora não tivesse colorido. A loira sentiu o corpo
estremecer com o toque que recebia.
— Sempre que me olho no espelho fico me perguntando quem será
Duda. Homem ou mulher, “Duda” é um prenome tão unissex. –
Suspirou. – Ontem, poucos minutos antes de passar mal, vi uma menina
loirinha, vestia um vestido azul bem clarinho com um laço bem bonito
na cintura, seus cabelos eram tão claros, eles estavam amarrados num
rabo de cavalo com um lulu de florzinha. Ela estava sentada diante de
um piano tocando: As quatro estações – Vivaldi.
Renata abriu um sorriso e seus olhos brilharam. Raissa olhou para
ela com atenção, tinha certeza de que aquilo era uma lembrança. A
garotinha poderia ser a própria Renata, pensava. O que explicaria o fato
de ela saber tocar piano.
— Onde essa menina estava, Renata? – perguntou suavemente,
pois não queria forçar sua memória.
— Não sei, era numa casa muito elegante. Tinha um piano de
cauda lindíssimo. Eu via bastante gente, homens, mulheres, crianças,
parecia um momento familiar porque eles interagiam com certa
intimidade. – Ela continuou contando. – O que mais me chamou a
atenção, foi uma mulher sentada numa poltrona de couro preta, ela
tinha em seu colo um lindo bebê, “Milinha” era assim que a mulher
chamava o bebê de olhos azuis.
— E a menininha que tocava piano, onde estava?
— Ela ainda estava sentada no banco do piano, mas parecia
cansada. Como se estivesse ali há muito tempo. Sempre que tentava
parar, um homem alto, loiro, de olhos azuis mandava tocar mais uma.
— Era você ali sentada? Qual idade essa pequena parecia ter? –
perguntou, cautelosa.
— Não sei, uns seis talvez sete, oito anos. Logo as imagens
evaporaram como se fossem sugadas e outras vieram. De repente, me vi
num lugar aberto, como uma praça de evento ou algo parecido, tinha
muita gente, me vi abraçada com alguém que não lembro o rosto, mas
lembro do seu cheiro, ela tinha o odor de colônia de bebê. Era um show,
um show da mesma cantora que cantei no bar. As dores aumentaram, e
o resto você sabe.
Renata piscou muitas vezes, para só então encarar a mulher à sua
frente. Raissa pediu que ela sentasse ao seu lado, pois precisavam
conversar.
— Renata – iniciou com cuidado –, isso são lembranças. Não sou
médica, mas tenho certeza que essas imagens que você tem são
lembranças da sua vida. Precisamos buscar outras opiniões, mas
daquela vez você não quis ser atendida pelo colega do doutor Bernardo,
ele é especialista em perda de memória. Ele e a doutora Lins vieram de
Recife só para te avaliar, e você não quis ir, tem que deixar de teimosia,
só queremos te ajudar.
O assunto era delicado, Renata parecia já ter se acostumado a viver
com o vazio do seu passado, assim ela se recusava a se submeter a mais
exames. Romero Dantas era um colega de longa data do doutor Feitosa,
o homem veio junto com sua assistente, a doutora Maria Eduarda Lins,
justamente para avaliar aquela intrigante paciente, porém, no dia da
consulta, Renata se recusou a ir, não teve nada que Raissa e seus pais
pudessem fazer ou dizer que fizessem a loira sair do quarto. Renata
sentiu um medo terrível naquela manhã. Ela simplesmente não queria, o
medo de perder o que tinha, foi maior que o desejo de trazer luz a sua
escuridão.
— Para que, Raissa? Ele vai dizer a mesma coisa. Estou cansada de
ser observada como um rato de laboratório, ser carregada de um lado
para o outro fazendo exames sempre com resultados inconclusivos. O
que preciso é me adaptar a essas dores. – Fez uma pausa. – Eu estou
feliz aqui. Por algum motivo, você e sua família me preenchem por
dentro. Não quero perder isso, não me tire isso, Raissa.
A morena soltou o ar com força. Não forçaria a situação, ao menos
não naquele momento. Ela pegou em suas mãos delicadamente e pediu
que a fitasse, pois teriam que conversar sobre outra coisa. Raissa sabia
que tinha errado, não poderia ter cedido ao desejo, era uma pessoa
comprometida, e Renata uma mulher fragilizada, não lhe parecia certo.
A morena só percebeu que ainda estavam nuas quando viu aqueles
olhos negros lhe olhando com desejo. Sem menos esperar, Renata
sentou-se em seu colo colocando uma perna em cada lado. Quando a
morena abriu a boca para protestar, a outra a beijou daquele jeito que
fazia seu corpo acender e ceder por completo. Raissa não estava se
reconhecendo, nem mesmo Guilherme provocava tanto tesão assim.
— Renata, espera… – Tentou contê-la. A loira a encarou por um
momento. – Você tem um olhar muito safado, sabia?!
— Quero você de novo, Raissa, quero ver você se derramando toda
na minha boca, nos meus dedos e na minha buceta.
O jeito que Renata falou foi tão sexy que a outra sentiu seu sexo se
contrair no mesmo instante. Assim, a loira a teve novamente do mesmo
jeito que ditou, a tomou em sua boca, a preencheu com seus dedos e
depois a fez experimentar outra forma de gozar. Renata se encaixou
entre suas pernas, sexo sobre sexo, prazeres se misturando, Raissa
conheceu o cavalgar das deusas. A loira começou a se movimentar em
cima da outra. Os sexos molhados deslizando um no outro de um jeito
tão sexy, tão alucinante. A morena tentou segurar os gemidos buscando
a boca da loira para abafar os gritos de prazer que gostaria de entoar,
mas não podia, afinal, era dia e sua mãe estava em algum lugar da casa.
Renata rebolava cada vez mais rápido, aumentando a fricção de um
jeito gostoso. Nem em seus sonhos mais pervertidos, Raissa imaginou
que o sexo entre mulheres era tão bom. A morena não poupou aquele
corpo tão alvo, mordeu, arranhou, enlouqueceu. As duas gozaram
juntas. A loira sentiu-se fraca, seu corpo caiu sobre o de Raissa. Seu
rosto se afogou no pescoço. Porém, as duas não tiveram tempo para se
recuperar, o momento foi interrompido com batidas na porta. Renata
deu um pulo da cama e correu para o banheiro, de repente a dona Thaís
colocou a cabeça para dentro do quarto. Nervosa, Raissa se cobriu e
fingiu estar dormindo, parecendo aquelas adolescentes apavoradas por
quase ter sido pega no flagra.
— Filha, são quase dez horas, não vai trabalhar? – perguntou dona
Thaís.
Por sorte, a mulher não chegou a entrar no quarto, abriu a porta e
ficou na soleira. Raissa fingiu estar acordando.
— Oi, mãe. Acho que perdi a hora – disse.
Thaís estreitou os olhos, olhou ao redor, notou que a cama da
Renata estava do mesmo jeito do dia anterior. A expressão da mulher
mudou. Buscou os olhos da filha, notou o rosto vermelho e suado. O
que era estranho, pois o ar estava ligado. Raissa permanecia imóvel,
tinha certeza de que sua mãe tinha percebido. A morena era horrível
para esconder as coisas.
— Renata, hora do seu remédio – gritou dona Thaís.
— Tá certo, tia, estou terminando aqui – gritou em resposta.
— Acho que bebi demais – disse, fingindo dor de cabeça.
Dona Thaís pensou em falar, mas acabou desistindo. Apenas girou
os calcanhares e foi embora. Raissa se permitiu respirar. Quando Renata
saiu do banheiro, já estava vestida.
— Não podemos – disse sem rodeio. – Eu sou praticamente casada,
meu relacionamento está ruim, mas isso não me dá o direito de trair o
Guilherme – disse com sinceridade, mesmo que seu coração estivesse
doendo naquele momento. – Sinto um carinho por você muito grande,
mas acredito que não seja da forma que espera. – Ela esperou a outra
dizer alguma coisa, no entanto, Renata permaneceu calada. Raissa
tentou tocar em sua mão, mas a outra se retraiu. – Não quero magoá-la,
mas acho que isso já está acontecendo…
Renata simplesmente caminhou até a porta e saiu do quarto.

Algum tempo depois, no escritório.


— Bom dia, Dra. Raissa!
— Bom dia, Ângela, preciso entrar em contato com a Dora.
— Sim, senhora.
Uma hora depois.
— Dra. Raissa, Dora na linha dois.
— Obrigada. – Mudou de linha. – Preciso falar com você – falou
antes mesmo de cumprimentá-la.
— Bom dia para você também, amiga – replicou. – Isso me cheira
a hétero arrependida – debochou.
— Fiz merda, amiga, preciso realmente conversar com você.
— Estou com o dia cheio hoje, amiga. Tenho expediente no
hospital infantil. Pode ser quando largar?
— É o jeito, né!
— Ah, amiga! É tão grave assim?
— Depende do ponto de vista.
— Pelo visto, a coisa é séria. Quando você vem com esse papo de
ponto de vista. Aconteceu, né?
Dora sempre foi uma pessoa muito direta. Dentre todos seus
amigos, era a única que não floreava nada quando queria abordar um
assunto.
— Aconteceu – disse.
— Se eu conseguir sair mais cedo, te aviso, nos encontramos no
Bar da Praia.
— Obrigada, amiga.
A morena passou o dia numa angústia danada. Sentia-se
arrependida, não por ter ficado com a Renata, mas, sim, por tê-la
magoado. Também sentia-se irritada por ter sido infiel com o
Guilherme. Assim, Raissa consultava o relógio a cada cinco minutos. O
dia demorou a passar. No final do expediente, ela pegou um Uber que a
deixou no calçadão de Ponta Negra. Chegou ao bar de sempre e ficou
aguardando sua melhor amiga. Dora não tardou a chegar.
— Corri o máximo que consegui – disse a fisioterapeuta ao sentar.
— Cheguei agora, também.
Raissa não ia desperdiçar um segundo dos ouvidos da sua amiga,
então respirou fundo e despejou.
— Eu transei com a Renata ontem à noite, hoje de manhã, e o pior
é que não estou nenhum pouco arrependida. Me sinto atraída por ela,
Dora, e depois da química de ontem, de hoje. Puta que pariu! – falou,
agitada.
A morena contou tudo que vinha sentindo nos últimos tempos pela
mulher que levara para morar em sua casa. Também aproveitou a
oportunidade para contar os dissabores que vinha passando em seu
relacionamento.
— Vou começar de trás para frente – disse Dora, com uma
expressão séria e raivosa. – Esse ogro está te agredindo e não venha
mascarar dizendo que são apenas pequenos descontroles. – Raissa
baixou os olhos envergonhada. – Não é a primeira vez, ele sempre foi
possessivo, Raissa. Me admira você tolerar essa relação abusiva.
Dora soltou o ar com força. Não queria ser dura com a amiga, sabia
que a última coisa que ela queria era receber críticas. Nunca gostou do
Guilherme, achava ele muito cheio de si, se achava o dono do mundo só
porque nadava na grana, mas sempre o engoliu em respeito a amiga.
Mudando de tom e assunto, disse:
— Você está muito ferrada, em relação à loira. Raissa, vamos por
etapa, o que sente por ela?
Boa pergunta, pensou a morena.
— Eu não sei. Tenho medo de estar confundido carinho, cuidado e
sentimento de proteção…
— Nem vem, Ray – replicou. – Você sempre foi muito assediada
por mulheres, principalmente por estar sempre muito grudada a mim, a
Clara e ao Danilo, mesmo assim você nunca titubeou.
— Eu nunca me senti atraída antes, mas…
— Mas a loira te pegou de jeito, a verdade é essa.
Raissa sentiu a dualidade em seu peito. Ela ainda amava o
Guilherme, mas andava tão desanimada com ele.
— Você se apaixonou por ela? – Veio a pergunta direta. Direta
demais.
Raissa encolheu os ombros, ela sabia a resposta, só não tinha
coragem de pronunciá-la.
— Talvez esteja começando a acontecer – respondeu com
dificuldade. – Mas eu amo Guilherme, ele faz merda, mas eu ainda o
amo.
— Complicado, Raissa. Alguém vai sair machucado nessa história,
isso é fato, e pelo visto é a loira.
— Eu sei… Agi de forma irracional… Estou com vergonha de
voltar pra casa. Fui uma canalha, Dora.
— Vergonha de ter transado com uma mulher?
A morena tentou, mas não conseguiu evitar o sorriso, e isso a
denunciou.
— Foi incrível. Aquela mulher é um furacão.
Dora deu uma risada alta, as duas conversaram por mais um tempo
até as duas irem para casa, como morava no mesmo bairro, a
fisioterapeuta deixou a amiga em casa.
— Ray, você está muito ferrada, e sabe disso. Como sua melhor
amiga, falo, não postergue a sua situação com o Guilherme, porque
apenas um único motivo te faria traí-lo, e não seria apenas por causa
dos abusos dele, você sabe disso, não sabe?
Sim, ela sabia, mas preferia lutar um pouco mais.
◆◆◆
CAPÍTULO 18
Operação – Trevo

RENATA
Quanta pretensão pensar que Raissa podia se interessar por mim.
Não quis ouvir mais nada, já tinha entendido o recado. Senti uma
tristeza invadindo meu peito, mas não insistiria, por mais difícil que
seja, preciso respeitá-la. Raissa era uma pessoa boa e muito correta,
traição não fazia parte do seu perfil. Por algum motivo, eu não queria
lhe trazer sentimentos de dualidade ou culpa. O que eu sentia, guardaria
para mim.
Passei o dia tentando me ocupar, seja com os serviços domésticos
da casa, ou até mesmo na preparação da sopa que o grupo de senhoras
da comunidade preparava para distribuir à noite para as pessoas em
condições de rua.
Engraçado, todos ali eram pessoas muito simples, muitos
dependiam de apenas um ou dois salários-mínimos para a sua
subsistência e a subsistência da sua família, mesmo assim, três vezes na
semana, o grupo liderado por nada mais, nada menos, que dona Glória,
uma senhorinha de quase oitenta anos, que desde muito cedo vivia
engajada em projetos sociais da paróquia que frequentava, ajudava o
próximo. Claro que na verdade quem ficava à frente era a tia Thaís.
Elas reuniam-se, cada uma colaborando com o que podia, seja com mão
de obra, seja arrecadando alimentos, roupas e material de higiene, por
aí, vai. O grupo denominado “TREVO”, composto por oito donas de
casa que poderiam simplesmente terminar seu dia, sentadas no sofá
assistindo a suas novelas, contudo, três vezes na semana saíam do
aconchego dos seus lares para levar um pouco de conforto àqueles que
não tinham nada. Raissa e seus pais não eram pessoas ricas, mas ali no
bairro, pelo que entendi, eram os que tinham condições melhores.
Então, esquecendo do próprio bem-estar, eles faziam questão de dividir
o que tinham. E, mais uma vez, digo, não sei se na minha outra vida eu
era uma pessoa religiosa, mas agradeço a Deus que, apesar da escuridão
na qual me envolvi, vim parar num lar de luz.
Depois de tudo pronto, perguntei à tia Thaís se poderia ajudar na
entrega. Ela pareceu não acreditar no meu pedido, seus olhos sorriram
para mim.
— Toda ajuda é bem-vinda. – Ela disse.
Naquela noite iríamos entregar 400 pratos de sopa, que seriam
acompanhados por café quentinho e um pão francês macio. O pão era
doação da dona da padaria do bairro que, além de ser uma integrante do
grupo, fazia as doações semanalmente sem falta. Os alimentos foram
divididos em cinco carros, cada um seguiria para um pedaço distinto da
cidade. Quando o relógio marcou 18h da noite, escutei o som da buzina
em frente de casa.
— O tio chegou – avisei.
Tio João já estava atrás do volante de uma kombi um tanto
desgastada do seu irmão. Ele sempre pegava emprestada para fazer as
entregas.
— Girassol, você vai conosco? – Ele perguntou sorridente.
Eu sempre me derretia quando o tio me chamava assim, me sentia
amada, não sei explicar. Não sei se tive um pai no passado, mas sei
exatamente o sentimento de ter um no presente. Tio João dizia que
meus cabelos eram como pétalas de girassol, devido à cor.
— Vou, sim, tio.
Ele desceu do carro para ajudar a carregar as coisas para dentro da
kombi. Após estar tudo pronto, saímos noite afora. Eu nunca tinha
participado da entrega, mas naquela noite passei por uma experiência
única. Depois que fui acolhida por aquela família, deixei de pensar no
que fui. Contudo, enquanto entregava aquela singela refeição, me
perguntei sobre meu papel no mundo. Não sei se as pessoas costumam
fazer essa pergunta. Podemos fazer tanto com tão pouco. Me pergunto
se em algum momento do meu passado fui capaz de algum gesto de
caridade. Acho que não, porque ao me questionar sinto uma fisgada no
peito. Um aperto, daqueles que sentimos quando sentimos nossa
pequenez nessa breve existência.
Terminamos às nove da noite, aproximadamente. Eu estava sentada
ao lado da tia Thaís no banco da frente da kombi que o tio dirigia.
Aquele senhorzinho gorducho, da pele escura e olhar carinhoso virou-se
para mim e disse:
— Obrigada pela ajuda, Girassol. Se cada um semeasse uma
mudinha, o mundo seria mais florido – parafraseou.
Às vezes eu me perguntava de onde aquele senhorzinho sem estudo
tirava tanta doçura.
— Que carinha triste é essa? – Ele perguntou.
Não consegui falar, porque sentia uma tristeza sem tamanho,
principalmente depois de realizarmos as últimas entregas. Tia Thaís
tinha pedido para o tio parar numa avenida que parecia muito conhecida
para eles. Quando o veículo foi estacionado, parecia que as pessoas já
os aguardavam. Diversas mulheres e travestis, que trabalhavam
vendendo seu corpo, se aproximaram felizes da vida com a nossa
chegada. Busquei nos olhares do senhor João, dona Thaís, senhora
Glória e até da dona Josefa (uma senhorinha que era carne de pescoço)
qualquer sinal de repúdio ou descriminação, mas o único olhar que
encontrei em cada íris foi o de amor. Amor ao próximo. Isso me
desencadeou uma imensa vontade de chorar.
— É um trabalho muito bonito que todos vocês fazem. Eu que
agradeço por me deixarem participar disso – disse com sinceridade.
— Você é da família, tem que participar mesmo – disse dona
Glória. – Se Deus partilhou o pão com doze, porque não podemos
colocar um pouco mais de água no feijão e alimentar mais algumas
dúzias.
Dona Thaís me olhou com aqueles olhos cheios de ternura, me
abraçou de lado e depositei minha cabeça em seu ombro.
— Raissa sempre fica assim quando vem com a gente, até hoje ela
nunca se acostumou – disse docemente. – Mas veja pelo lado bom, hoje
essas pessoas vão dormir de barriga cheia.
Quando chegamos em casa, Raissa estava deitada no sofá. Fui
direto para o quarto. Queria tomar um banho e me deitar, foi
exatamente o que fiz.
— Rê – escutei Raissa chamar, mas eu não queria conversar. Ver
todas aquelas pessoas em uma situação tão delicada mexeu muito
comigo. Principalmente, o último grupo. Me perguntava
incessantemente como alguém conseguiria vender o próprio corpo?
Raissa se aproximou e sentou-se na beira da minha cama.
Continuei de costa para ela.
— Está tudo bem? – Ela perguntou suavemente. – Está sentindo
dor?
Sinto o colchão afundando atrás de mim. Seus braços envolveram
minha cintura e sua respiração veio parar no meu pescoço. Me viro e
nossos olhares se nivelam. Suas azeitonas parecem apreensivas. Acho
que estava pensando que ela era o motivo da minha tristeza. Não sei se
conheci muitas pessoas boas pelo meu caminho, mas tenho certeza de
que nunca encontrei alguém mais humana do que aquela mulher. Raissa
me desperta sentimentos humanos, o que é estranho alguém dizer isso.
Queria saber explicar, mas não sei. É como se, apesar de ter tido uma
vida, essa era a primeira vez que eu realmente estava vivendo. Trago-a
mais para perto. Nossa química é muito forte. É involuntário, nossos
corpos puxam um para o outro. Levo uma das minhas mãos à sua nuca
e a roubo para mim.

◆◆◆
CAPÍTULO 19
Preciso fugir

Raissa chegou em casa um pouco depois das oito, ficou surpresa


por encontrar a casa vazia. Ligou para mãe e descobriu que naquela
noite a Renata tinha ido ajudar na operação trevo, era como as
senhorinhas denominam o gesto de caridade. Melhor assim, pensou a
advogada enquanto se dirigia para o banheiro. Ela tomou um banho
demorado. A conversa com sua melhor amiga havia sido boa. Raissa
refletiu bastante sobre o conteúdo. Estava decidida a não alimentar
qualquer coisa em relação a Renata. Sim, sentia-se atraída, mas aquela
atração lhe trazia peso na consciência, não só o fato de ser infiel, coisa
que nunca lhe acontecera antes, mas o fato de a Renata estar num
momento vulnerável. Não podia. Era errado.
Era mais de dez horas da noite, quando a morena escutou as vozes
no quintal. Renata foi a primeira a entrar, ela carregava uma carranca
séria. Cumprimentou Raissa com um boa noite e se dirigiu ao quarto.
Sem conversa e sem sorriso. Aquela atitude incomodou a advogada,
que no mesmo instante se perguntou se ela não estava chateada consigo,
afinal, pela manhã, agiu de forma cafajeste. Seus pais entraram em
seguida, o casal sentou-se um pouco no sofá e contou como havia sido a
noite. Mas eles estavam cansados, a conversa não perdurou, minutos
depois se levantaram e disseram que iriam se recolher. A morena
resolveu fazer o mesmo. Quando chegou ao quarto, seu coração
apertou. A loira estava deitada em sua cama, enrolada até o pescoço e
com o rosto virado para a parede.
Ela tentou falar, mas os únicos barulhos que ouvia eram: sua voz e
o som discreto do ar-condicionado. Agindo por impulso, a morena
aproximou-se da cama onde deitou-se no estreito espaço vazio. Em
seguida, abraçou carinhosamente a loira. Ela queria lhe pedir desculpa
pela forma escrota que agiu pela manhã. Queria explicar que estava
tentando fazer o certo. Renata não merecia alguém pela metade.
Contudo, as palavras só ficaram em seus pensamentos. Ao contrário
disso, a jovem não contou com a resposta do seu corpo após o contato
com o corpo quente de Renata. A loira, ao sentir os braços envolverem
sua cintura e aquela respiração em sua nuca, virou-se em posição
contrária. Elas ficaram uma de frente para a outra. Os olhos negros
penetraram na íris verdes-oliva, e, com a propriedade que já é inerente a
ela, Renata a roubou para si. Um assalto sem luta, sem um mero gesto
de resistência. O corpo de Raissa foi tomado de um jeito que já estava
se acostumando, pior, ansiando. As roupas foram jogadas ao chão. Só
que dessa vez, Raissa foi movida pela vontade, vontade de saber como
é tocar e saborear uma mulher. Principalmente, aquela mulher. Sua
língua explorava aquela boca tão macia num beijo molhado e
voluptuoso. Suas mãos apalpavam os seios rosados que já estavam
intumescidos. Seus lábios desceram pelo pescoço deixando um rastro
molhado, ela fitou os seios da loira. Renata via nas íris verdes vontade e
luxúria. Contudo, aquela passividade incomodava a loira de um jeito
estranho. Ela queria se entregar, ansiava ser tocada, bebida, preenchida,
e a morena parecia disposta a lhe oferecer isso. Raissa abriu um largo
sorriso. Não daquele meigo que costuma dar. Era um sorriso sacana.
Mas algo dentro da loira não permitiu, simplesmente repeliu a vontade
da carne. Confusa, Renata inverteu o jogo, tomando o controle,
oferecendo a outra o que ela queria lhe oferecer.
— É surreal – disse Raissa, baixinho. Após uma maratona de vários
orgasmos. – Nossa química é surreal.
As duas ficaram agarradas uma na outra até serem vencidas pelo
sono.
Na manhã seguinte, Renata acordou e percebeu que estava sozinha
na cama. Ela fechou os olhos e encheu os seus pulmões de ar, só para
ter o trabalho de soltá-lo bem devagarinho. Sobre o relógio que ficava
na mesa de cabeceira ao lado da sua cama, havia uma folha de papel.
Eu sinto muito. De todo meu coração, eu sinto mais que muito, Rê.
Mas não podemos continuar, não posso fazer isso com você, nem com
ele. Me perdoa.
O sentimento de perda e rejeição emergiu em seu coração.
Controlando a dor que sentia no peito, Renata seguiu com sua rotina.
Raissa lhe ligou no meio da tarde, mais uma vez tentou se desculpar,
mas não existia o que dizer.
— Eu te entendo – disse Renata.
— Eu nunca agi assim. – E a morena desatou a chorar.
— Faça o que tem que fazer, eu vou ficar bem, Raissa.
Renata não sabia se ficaria bem, mas se esforçaria para tal.

◆◆◆
CAPÍTULO 20
Eu sinto mais que muito

Raissa acordou enroscada nos braços da Renata mais uma vez. Eu


não sou assim, foi o que disse ao se levantar da cama. Em todos seus
relacionamentos, Raissa sempre prezou pelo respeito em seu mais
amplo sentido. No entanto, diante das suas atitudes nos últimos dias,
não só estava desrespeitando o Guilherme, mas também aos seus pais e
principalmente a própria Renata. Ainda era muito cedo, ela levantou-se,
vestiu-se e foi correr. A morena correu até exaurir seu fôlego e tentou
esvaziar sua mente, ela sabia que precisava tomar uma atitude antes que
alguém saísse magoado, o problema é que se sentia confusa. Ela tinha
certeza de que ainda amava o noivo, afinal, eram quatro anos de
relacionamento, mas Raissa não conseguia negar para si mesma que
sentia algo forte pela garota da cama ao lado. Forte o suficiente para
fazê-la agir sem pensar. Frustrada com aquela profusão de sentimentos,
ela voltou para casa. Renata ainda dormia serenamente, a morena
tomou seu banho e arrumou-se rapidamente para o trabalho. Quando
chegou à cozinha para tomar seu café da manhã, encontrou-se com sua
mãe.
— Senta. – Ela mandou.
O coração da mais jovem acelerou. Dona Thaís estava séria, notou
a advogada. Após sentar-se à mesa, a morena foi servida com uma
xícara de café com leite. Raissa levantou os olhos para encarar a mãe e,
ao fazer isso, percebeu naquelas íris castanhas que ela já sabia.
— Não tivemos a oportunidade de conversar ontem – iniciou. – O
que é engraçado, porque acho que não precisarei perguntar nada, a
julgar pelo que ouvir certa hora da madrugada hoje.
O rosto da morena empalideceu, seu coração batia com força no
peito e seus lábios tremeram.
— Dormi com ela, mainha – confessou sem suspense. – Eu… eu…
– Sua voz embargou, e ela começou a chorar enquanto tentava se
explicar.
— Nunca tive preconceito com nada, Raissa. Você sempre teve
mais amigos homossexuais do que heterossexuais, tanto que cheguei a
pensar que você tinha inclinações, o que não faria a menor diferença
para mim ou para seu pai.
— Eu nunca tinha me atraído por uma mulher antes, mãe –
conseguiu dizer.
— A questão é que essa garota é totalmente dependente de você.
Não apenas financeiramente, mas principalmente emocionalmente –
disparou em tom de repreensão. – Ela está sem memória e muito
fragilizada. É natural que acabe se apegando a você, que desde o
primeiro momento lhe ofereceu um porto seguro. – Os olhos castanhos
emitiram uma decepção que doeu fundo na advogada. – Francamente
Raissa, não esperava um comportamento tão errante de sua parte. Nem
vou mencionar o Guilherme. O que você está fazendo com ele é muito,
muito baixo. Se seu pai souber, vai ficar extremamente chateado com
você. Traição, Raissa, onde já se viu!
— Eu sei – retrucou. Raissa tinha muita dificuldade para se
defender, a falta de clareza do que sentia contribuiu bastante para isso.
— Escute – disse a mais velha –, você é uma mulher casada e deve
se dar ao respeito. Não é certo enganar o Guilherme dessa maneira, e
essa moça também não tem culpa de gostar de você, o melhor a fazer é
resolver isso de uma vez por todas. Você não pode ficar com os dois,
nem vou permitir essa sem-vergonhice na minha casa.
— Vou contar ao Guilherme, se ele ainda me quiser, vou me mudar
pra lá hoje mesmo.
— Ótimo, eu e seu pai cuidaremos dela. – Dona Thaís fez uma
breve pausa, ela precisava saber. – Raissa, você se apaixonou por ela?
Uma pergunta direta, típica da dona Thaís. O coração da mais
jovem bateu forte e as palavras ecoaram em sua mente em velocidade
mínima. Sim, provavelmente Raissa havia se apaixonado pela moça
sem identidade. Esse seria o único motivo que a levaria a trair. Os
castanhos fitaram as azeitonas marejadas, dona Thaís não precisou de
resposta para sua pergunta.
— Resolva sua vida – disse a dona de casa, levantando-se e
deixando-a na cozinha.
Raissa enxugou as lágrimas e também se levantou. Ela entendeu
perfeitamente o que dona Thaís quis dizer com: Resolva sua vida. Não
se tratava mais da traição que andava cometendo. Ia muito além disso,
sua tradução estava para: Resolva a bagunça que está por dentro do seu
peito. Como se fosse fácil resolver, pensou a morena enquanto se dirigia
para o trabalho. Alguém já se viu apaixonado por duas pessoas ao
mesmo tempo? Se houver um sim, por favor, ajude essa pobre criatura a
entender, porque no mundo da Raissa, até então, só existia a
monogamia.

Pouco tempo depois, a morena chegou ao escritório, precisava que


suas emoções se assentassem para ir conversar com o noivo. Sabia que
não seria uma conversa fácil, mas ela precisava confessar sua traição.
Era o mínimo que poderia fazer.
Passado algumas horas, Raissa não aguentou e ligou para casa. A
ligação foi curta, a morena queria se desculpar, pois, em sua cabeça,
estava sendo uma escrota. Para aumentar seu sentimento de culpa, a
Renata, por sua vez, foi sensível à sua confusão interna. Aconselhou
que a advogada fizesse o que fosse melhor para ela, que entendia sua
situação. Que ficaria bem. Com mais essa sentença, Raissa se levantou
da sua cadeira, saiu de sua sala e foi de encontro com as consequências
dos seus atos.
— Atrapalho? – perguntou, ao entrar na sala do namorado.
O rapaz, ao vê-la, abriu um largo sorriso.
— Amor, você nunca atrapalha – disse o homem.
— Hum, andou esquecendo-se de se barbear, foi? – comentou num
tom zombador, pois Guilherme sempre foi um homem vaidoso e muito
preocupado com aparência, então vê-lo com a barba por fazer era um
tanto atípico.
— Estou deixando crescer – explicou.
— Você fica muito sexy – falou a morena com sinceridade. –
Porém, prefiro seu rosto bem lisinho.
Raissa se arrependeu no mesmo instante do que disse, pois sua
mente cavernosa fez logo uma comparação.
— Me leva pra almoçar, queria conversar com você – pediu.
Guilherme olhou para o relógio no pulso e franziu a testa, a mulher
pensou que ele fosse recusar, ao invés disso sugeriu:
— Dá tempo de comermos na casa da sogrinha.
— Pensei em ir naquele restaurante japonês, aqui perto.
Raissa o abraçou pela cintura e aspirou seu forte perfume. Fazia
tempo que não o abraçava, quando sentiu aquele abraço gostoso, sua
culpa aumentou mais um pouquinho.
— Vamos! Temos apenas uma hora, porque tenho uma audiência às
15h.
Os dois se dirigiram ao restaurante, que fica muito próximo do
escritório. Guilherme se comportava como um verdadeiro cavalheiro,
abriu a porta do carro, puxou a cadeira para que se sentasse, lhe
ofereceu a primeira taça de vinho. A todo o momento lançava um olhar
sedutor em direção a sua noiva. Ele sabia ser romântico quando queria.
Os dois conversaram sobre amenidades, riram e relaxaram como há
muito tempo não ocorria.
— Sinto sua falta, Raissa.
Ele tocou as mãos da morena sobre a mesa. O pequeno gesto gerou
um friozinho na barriga da mulher. A comida chegou, e, durante todo o
almoço, ambos trocaram olhares apaixonados. O casal há muito tempo
não ia bem, isso se tornava cada vez mais óbvio, mas, ao menos durante
esses sessenta minutos que passou na companhia dele, foram suficientes
para a morena titubear, querer tentar mais uma vez, pelos quatro anos
que estiveram juntos, pelo que ainda existia. Guilherme a amava, ela
também o amava. Com essa sentença, Raissa sentiu-se na obrigação de
tentar, mas para isso precisava expor a verdade.
— Eu preciso te contar uma coisa – disse.
Guilherme no mesmo instante fugiu das orbes verdes-oliva, seu
corpo tensionou. Ele conhecia sua mulher, Raissa era transparente e
muito verdadeira. Ele sabia, já previa na verdade, contudo, preferiu não
ouvir. Antes que ela pudesse contar, ele se antecipou, e isso a pegou
desprevenida.
— Acabou? – Ele perguntou. A morena a princípio não tinha
entendido a pergunta, até observar a reação do outro. A constatação a
fez baixar os olhos envergonhada. – Eu sabia que se acontecesse algo,
aqui estaríamos, só quero saber duas coisas, Raissa – falou, sério. –
Acabou?
Ela não sabia, contudo, assentiu com a cabeça. Satisfeito com a
primeira resposta, veio a seguinte:
— Você me ama?
— Amo – disse a verdade, pois ainda o amava.
Guilherme pagou a conta e saíram do restaurante. Ele permaneceu
mudo durante o caminho de volta, não queria falar sobre o assunto.
Havia um bolo em sua garganta. Ele amava Raissa, admirava sua
integridade, foi justamente isso que lhe chamou a atenção desde que a
conheceu. A considerava uma mulher perfeita, mas não era, ela era uma
mulher como qualquer outra. Passível de erro, e o erro que cometeu o
acertou em cheio.
Raissa sentia-se apreensiva, não sabia o que aquele silêncio
significava. Guilherme mantinha-se insondável. Quando chegaram ao
escritório, ele virou-se para ela e lhe entregou a chave do seu carro.
Com a voz firme e o rosto sério, disse:
— Encerre sua aventura e busque suas coisas. Te espero em casa.
Em seguida, continuou a caminhar deixando sua noiva sem
palavras.
No final do dia, foi o que Raissa fez. Dada as circunstâncias achou
que seria o melhor a fazer. Ela nunca pensou em sair da casa dos seus
pais, pois ela e o namorado tinham uma relação muito boa cada um
vivendo em sua casa, contudo, mudanças eram necessárias. No início
da noite, ela estacionou o carro e resolveu enfrentar as consequências
da sua escolha. Após arrumar as suas coisas, veio a parte mais difícil, a
despedida. Se despediu dos seus pais e depois foi a vez da Renata. A
loira tinha os olhos marejados.
— Eu sinto muito. Eu sinto mais que muito. – Foi a única coisa que
conseguiu dizer.
Após o abraço, Renata se afastou e sorriu de um jeito doce.
— Eu não esperava menos de você – falou com sinceridade. –
Quero te ver feliz, Ray, independente de quem seja a pessoa ao seu
lado. Te adoro de paixão, guria.
A loira deu um beijo em sua bochecha e voltou a abraçá-la com
carinho. Seu desejo era verdadeiro.

◆◆◆
CAPÍTULO 21
Agora eu sou uma “Fernandes”

RENATA
— Alô – disse ao atender.
— Que voz mais gostosa de se ouvir às sete da manhã. – Acabei
sorrindo, era o Danilo ao telefone. Mais uma vez, uma sensação de déjà
vu. Dentre todos os amigos que conheci da Raissa, o rapaz era o que eu
mais gostava. Não sei por que, seu jeito, sua presença, me dava uma
sensação de déjà vu, como se em algum lugar do meu passado, eu
tivesse alguém assim. Com seu perfil. – E aí, minha loira, tudo bem
com você?
— Tudo sim, guri. Aconteceu alguma coisa? – perguntei, porque
estranhei sua ligação tão cedo.
— Aconteceu, mas não quero que me mate. Sou muito gostoso para
sair do mercado, e ainda bem que encontrei a tampa da minha frigideira
– respondeu, divertido. – Rê, ontem foi uma loucura na galeria, estamos
fazendo uma exposição de uma grande revelação do momento, ela é
recifense. “Leandra Oliveira”. A mulher estourou, loira. Pelejamos mais
de um ano para conseguir uma exposição dela aqui. Ela arrasa no
pincel, mas no grafite é coisa de outro mundo.
Senti uma onda de entusiasmo, por algum motivo eu adorava artes
plásticas. Com minha relação com Danilo estreitando, vez ou outra, ele
me levava a algumas exposições. Logo pensei que aquela ligação seria
um convite.
— Ligou só para me fazer inveja? – impliquei.
— Não, porque não perderia a oportunidade de vagar pelos
corredores com quem entende – falou. – Que minhas garotas não
escutem isso. – Rimos juntos ao telefone. Dora, Clara e Raissa não
entendiam bulhufas, na verdade, elas não achavam a menor graça
nesses eventos, porém, como fiéis escudeiras do Danilo, fingiam
entusiasmo e sempre iam prestigiar o amigo, quando ele era o
organizador do evento. — Mas, na verdade, estou te ligando para avisar
que sua entrevista é hoje, às dez da manhã.
— Hoje – perguntei alarmada, pulando da cama.
— Foi mal, gata, soube há dois dias, mas nessa correria realmente
esqueci de te avisar. Por isso, estou te ligando tão cedo. Pelo amor de
Deus, não se atrase. A dona do conservatório é muito chata com
horário, ela é britânica, então já viu, né?!
— Guri, nem sei como agradecer.
— Eu sei, esteja linda quarta-feira para ir à exposição comigo. Será
minha folga e quero apreciar os trabalhos como se deve. Às nove, passo
aí pra te levar para o conservatório.
— Não precisa, vai descansar.
— Faço questão. Nove horas, viu?!
— Tá, guri.

Danilo me pegou na hora combinada. O conservatório ficava no


centro da cidade, ao chegar, ele me levou para conhecer a escola.
Danilo parecia bem familiarizado com o lugar.
— Você conhece bem aqui?
Ele riu para mim, mas nada comentou. Chegamos à sala de canto,
uma música maravilhosa tomava conta do local. Fiquei maravilhada
com tudo, havia uma mulher sentada no piano. Observei
cuidadosamente sua fisionomia. Ela era jovem, seus cabelos ruivos
eram longos. Pensei que Danilo fosse nos apresentar, mas ele foi me
arrastando de volta ao piso inferior. Lá, seguimos por um curto corredor
até pararmos diante de uma porta. Ele bateu três vezes e, em seguida,
escutou o “entre”.
E tudo dentro de mim congelou. Senti minhas pernas tremerem e
uma onda de insegurança invadir o meu corpo. Me encorajando, Danilo
me empurrou para dentro da sala.
— Bom dia. – Alguém cumprimentou. Era uma mulher de meia-
idade. Assim que nos viu, ela olhou imediatamente para o relógio do
seu pulso esquerdo.
— Bom dia, mamãe! Essa aqui é a Renata, a moça que lhe falei.
Arregalei os olhos surpresa. Danilo me olhou divertido. Ele, em
momento algum, falou que a dona do conservatório de música era sua
mãe. Notando minha surpresa, a mulher olhou para ele de um jeito que
ele pareceu entender, pois, no mesmo instante, se despediu e disse que
precisava ir.
— Bom dia, senhora Brenda. – Finalmente fui capaz de
cumprimentá-la.
— Bom dia, Renata. Sente-se. – Embora ela falasse português
fluentemente, seu sotaque estrangeiro era bem carregado. – Danilo
disse que você ficou interessada em trabalhar conosco, mas que não têm
documentos. – Foi direta, ao certo Danilo deve ter explicado minha
situação.
— Pois é, sofri um acidente e acabei perdendo minha identidade
por completo, mas já estou providenciando meus documentos. – Me
apressei a dizer.
— Danilo me contou sua situação, realmente lamentável, mas o
importante é que hoje você me parece bem e saudável – disse com
empatia.
— Tenho tentado construir minha vida, já do passado não tenho
nada. – Fui sincera.
— Então vamos lá, diante da sua situação não teria como fazer uma
avaliação de currículo, então vou avaliá-la pela prática. Renata, meu
filho não costuma interferir no meu trabalho, então você está aqui é
uma coisa atípica. Não sei como, mas você o impressionou. A vaga
existente é para assistente de uma de nossas professoras. Peço que me
acompanhe.
Segui Brenda até uma sala de instrumentos. Havia uma mulher lá.
A mesma ruiva que havia visto alguns minutos atrás. A dona da escola
fez nossas apresentações, onde descobri que aquela mulher era a
Isabela. Isabela tinha os olhos cor de esmeralda, muito bonitos. Um
rosto quadrado e marcante. Sem me conter, desci minha vista para seu
corpo, era alta, trajava uma calça jeans escura de cintura alta e uma
blusa social de manga comprida com um decote discreto. Ela era
bonita. Após sermos apresentadas, iniciamos os testes.
— Dou aula de canto e de piano – disse a professora. Ela tinha uma
voz grave, um pouco grave demais para uma mulher. Ela explicou mais
ou menos o que fazia, e qual seria a minha função, caso eu passasse na
entrevista.
Havia dois pianos, um de cauda e um vertical, confesso que o que
mais me atraía era o de cauda. Contudo, Isabela pediu que eu me
acomodasse no vertical. Em seguida, me apresentou algumas partituras.
Foi estranho, no papel havia um emaranhado símbolos que, por algum
motivo, meus dedos pareciam conhecê-los. Me senti muito nervosa,
pois estava sendo observada por duas mulheres muito experientes. É
sua chance de ter uma vida, Luiza, essa frase gritou de dentro de mim,
de uma forma que me fez dar um pulinho assustada.
— Algum problema? – perguntou Brenda.
Dei um sorriso sem graça e neguei com a cabeça. Empurrei meu
nervosismo para o lado, respirei fundo, posicionei as partituras no
suporte e deixei, deixei que algo de dentro de mim emergisse. E
emergiu. Por não sei quanto tempo, meus dedos se moveram naquele
teclado, produzindo os encantos de Beethoven, Vivaldi, Chopin. Depois
vieram algumas músicas mais atuais, poucas foram as que não consegui
tocar. Ao final:
— Renata, gostaria que me esperasse lá embaixo – pediu a dona do
conservatório.
Assenti com a cabeça e saí dali. A espera foi terrível. Estava
ansiosa e com medo de um resultado negativo. Olhava para a escadaria
o tempo todo. Brenda demorou, mas, quando retornou à recepção, pediu
que eu a acompanhasse de volta até sua sala.
— Acho que Danilo não foi o único a ficar impressionado com seu
talento – disse a mulher. – Você toca muito bem, Renata. Se tiver real
interesse, a vaga é sua.
Mal pude acreditar no que escutei, a vaga era minha. Minha.
Segurei o quanto pude para não dar pulos de alegria. Agradeci a
oportunidade e prometi dar o meu melhor. Saí daquela sala muito feliz.
De repente, senti uma forte dor de cabeça, me sentei na primeira cadeira
que vi. Um filme correu em minha retina.
Eu estava diante de um homem, ele era velho, na casa dos sessenta
anos. Ele dizia: leciono há quase três décadas, dizem que costumo ser
um professor exigente, mas, na verdade, prefiro acreditar que, como
professor, tenho a obrigação de extrair todo potencial dos meus alunos.
Devo dizer que poucas foram as vezes que tive a oportunidade de dar
uma nota como essa. O homem me estendeu algumas folhas de papel.
Seja bem-vinda. Saí daquela sala saltitante.
E tudo evaporou. Fiquei um tempinho ainda sentada tentando
controlar aquela dor excruciante, mas sempre que essas “coisas” iam
embora, a dor amenizava. Quando isso ocorreu, finalmente pude ir
embora dali. Peguei um ônibus e fui para casa, tinha pressa de
compartilhar minha felicidade com aquelas pessoas que se tornaram
minha família. Tia Thaís ficou extremamente feliz. Tio João me ligou
para me parabenizar. Só restava uma pessoa saber, e não hesitei em
ligar para ela.
— Alô.
— Oi, Renata.
— Como sabe que sou eu?
— Identificador de chamada e o som da sua voz. – Ela disse. –
Aconteceu alguma coisa?
— Arrumei um emprego – soltei quase no grito.

— Que coisa boa. Na escola de música?


Fazia dias que eu não conversava com Raissa. Desde que ela se
mudou, nos afastamos. Acho que aquele foi um acordo velado entre
nós. Não vou negar que doía a sua ausência, mas também não podia
negar que de alguma forma dentro de mim eu a entendia, e a quero bem
demais para insistir numa situação que a machuca. Raissa estava com a
voz muito estranha, rouca, como se tivesse chorado. Perguntei se estava
bem, ela disse que sim e redirecionou a conversa para meu momento.
Entendi o recado e não insisti. Contei tudo e perguntei a ela sobre como
ficaria minha situação, pois Brenda informou que poderia começar a
trabalhar de forma imediata, mas que não poderia demorar a me
registrar, para não haver problema com o Ministério do Trabalho.
— Consegui agilizar as coisas. Ter um marido importante deve
servir para alguma coisa. – Ela disse, mas senti algo a mais naquelas
palavras. – Em poucas semanas, você será uma Fernandes. Se
acostume, em breve será Renata Fernandes.
Fiquei ainda mais feliz com o que ouvi, em breve eu deixaria de ser
uma “invisível” (pessoa sem documento) para a sociedade, eu passaria
a ser alguém. Seria uma Fernandes.

◆◆◆
CAPÍTULO 22
O jantar

Já fazia alguns dias que Raissa tinha falado com a Renata ao


telefone. A loira estava muito animada contando sua conquista. Raissa
também ficou muito feliz por ela, sabia o quanto era importante esse
começo, e parecia que o universo estava conspirando a seu favor,
porque dias depois daquela ligação, saiu a liminar na justiça. Renata
passaria a ser: Renata Fernandes. Ela carregaria o sobrenome da família
que a acolheu, pois, para eles, a loira já fazia parte dela. Tudo que a
advogada queria era abraçá-la, participar da sua felicidade, mas
encontrava-se engessada. A morena, desde que se mudou, evitava ir à
casa dos seus pais, não por falta de vontade, na verdade, ela evitava por
causa do Guilherme. Embora ele não falasse, ela sabia que não estava
sendo fácil para ele.
Fazia exatamente duas semanas que havia se mudado de vez, mas,
ao contrário do que o casal pensava, o relacionamento não ia nada bem.
Pareciam dois estranhos dividindo o mesmo ambiente, e tudo piorou
quando eles estavam em um entedioso jantar na casa dos pais do
advogado. O celular de Raissa insistia em tocar. Quando a morena
finalmente atendeu, era seu pai do outro lado da linha, seu João,
agitado, informou que Renata tinha passado mal e acabou sendo levada
para emergência. Raissa ficou tão desesperada que não pensou duas
vezes em ir até ela. Guilherme, como sempre, ficou irritado, dizia que
não havia necessidade, pois os pais da morena já estavam lá, mas
Raissa iria de qualquer forma, então, mesmo a contragosto, ele acabou a
acompanhando até o hospital.
— O que aconteceu, Danilo? – perguntou Raissa ao avistar o amigo
na recepção da emergência.
— Estávamos na galeria, a Rê estava amando a exposição. Quando
apresentei a artista, foi estranho.
— Estranho como? – Guilherme perguntou com curiosidade.
Danilo não gostava do Guilherme, e havia recíproca entre eles.
Ignorando-o, o curador fitou a amiga.
— Leandra disse: Engraçado, seus olhos me lembram a Heloísa.
— E quem é essa Heloísa? – perguntou Raissa.
— E como vou saber? – replicou. – Leandra Oliveira é a dona das
obras em exposição. Renata queria cumprimentá-la, eu só fui a ponte.
Ela parabenizou o trabalho, fez alguns comentários e só. Quando nos
afastamos, ela começou a passar mal e apagou. Igual ao que aconteceu
no bar – explicou.
Raissa os deixou ali e foi atrás de informação. Por sorte, Danilo,
lembrou-se do hospital que a loira vinha sendo acompanhada e a levou
diretamente para lá. Assim, ela pode ser atendida por seu médico.
— Ela está bem – disse Raissa. – Vou subir para vê-la. Pode ir,
Dan. Obrigada por tê-la trazido.
Os dois amigos se abraçaram e se despediram. Danilo só foi
embora devido à insistência da amiga. Raissa e Guilherme subiram até
onde a loira estava internada. Ao chegar no quarto, encontrou com seus
pais.
— Não faça isso comigo – pediu sem se conter, caminhando
apressadamente até a loira que estava sentada na cama hospitalar. Tudo
que Raissa queria era abraçá-la, mas, antes que o fizesse, sua mãe a
segurou pelo braço disfarçadamente e meneou a cabeça no sentido da
porta.
Guilherme estava bem atrás, sua expressão estava séria. A morena
soltou o ar devagarinho e se recompôs rapidamente.
— Me desculpe. – A loira disse. – Não queria preocupá-los.
— Você está bem?
Renata apenas assentiu. Raissa percebeu que as orbes escuras
pousaram na figura masculina encostada no umbral da porta. A
presença do Guilherme deixou o clima denso. Seu João, percebendo,
chamou o genro para acompanhá-lo num café. Guilherme sorriu
fracamente, mas não conseguiu dizer não ao sogro. Quando os viu
cruzar a porta, Raissa abraçou a loira fortemente, mesmo diante do
olhar de reprovação da mãe. Passados alguns minutos, dona Thaís
repassou o que o médico informou.
— O cérebro dela está sobrecarregado – disse. – Os lapsos de
memória estão aumentando, e, segundo o doutor Bernardo, é como se
estivesse acumulando anos e anos de lembranças de uma vez só.
— O que isso significa? – perguntou a advogada.
— Vai chegar uma hora que meu cérebro não vai aguentar o fluxo.
– Foi a voz loira que se fez presente.
Raissa queria ficar com a Renata no hospital, pois a loira passaria a
noite em observação, contudo sua mãe não deixou. Após o casal deixar
seu João em casa, eles seguiram para o apartamento do Guilherme.
Ambos não trocaram uma palavra durante o percurso. Quando
chegaram, a morena tomou um banho e se aninhou na cama. Pouco
tempo depois, ela sentiu o noivo deitar ao meu lado. Naquela noite, ele
a procurou. Desde que fora morar ali, isso não tinha acontecido, pois
provavelmente o homem ainda estava magoado. Guilherme beijou sua
nuca, em seguida girou meu corpo, quando ficaram frente a frente, ele
buscou seus lábios, mas Raissa espalmou a mão em seu peito e virou o
rosto.
— Não, Guilherme. – Foi a única coisa que ela disse.
O afastamento foi imediato. O homem recuou e, antes de se virar
para o outro lado, fitou os olhos verdes e disparou de forma sarcástica:
— Por que não estou surpreso?

Nos dias que se seguiram, Raissa só falou com a Renata pelo


telefone. A loira estava bem e muito animada, pois na segunda-feira
seria seu primeiro dia de trabalho. A morena ficou muito feliz com a
notícia, embora se preocupasse, afinal, Renata assumiria uma
responsabilidade que talvez sua condição de saúde não estivesse
preparada. Contudo, a loira precisava se sentir um pássaro livre, e
Raissa jamais apararia suas asas.
— Qual gravata? – perguntou Guilherme ao entrar no quarto.
Era o dia da bendita festa do seu tio. A morena não estava com
clima algum para ir, mas não ir, não era opção.
— A lilás – respondeu olhando-o pelo reflexo do espelho. Raissa
estava terminando de me maquiar.
— Você ainda está assim? – disparou. – São 20h, quer chegar ao
final da festa, é?
— Não, Guilherme – respondeu no mesmo tom. – Falta apenas
vestir o vestido, isso é rápido, que agonia. Aff!!! – resmungou.
— Então termina logo.
Quando a morena chegou à sala de estar totalmente pronta, os
olhos do marido a varreram por inteira. O homem largou o copo de
uísque e foi em sua direção. Raissa conhecia aquele brilho; satisfação e
luxúria.
— Você está linda. – Ele disse com um sorriso de rasgar as
bochechas.
Ignorando-o, ela caminhou até a porta. Pouco tempo depois, o
veículo estacionou numa suntuosa casa de festa.
— Sorria, está cheio de colunistas aqui – pediu Guilherme, antes de
saírem do veículo.
A morena rolou os olhos e manteve a carranca fechada. Após
cumprimentarem os anfitriões, o casal seguiu sua caminhada. Avistaram
muitos executivos, advogados e empresários. Guilherme andava de um
lado para o outro falando com diversas pessoas, sem saber a quem dava
mais atenção. Raissa, por outro lado, nunca foi uma pessoa antissocial,
sempre transitou em diversos ambientes, dos mais humildes até os mais
chiques, era sempre muito simpática, alegre e divertida, contudo estar
ali era algo que a deixava extremamente deslocada. Talvez seja porque
aquela festa coincidiu justamente com o dia do aniversário da sua vovó.
Então tudo que queria era estar entre os seus, que provavelmente
naquele mesmo horário deveriam estar todos juntos comemorando os
80 anos da dona Glória.
A noite corria entediante. Por sorte, a advogada encontrou o
pessoal do escritório e acabou se juntando a eles. A conversa seguia
agradável, ora ou outra o Guilherme se juntava ao grupo, embora
preferisse estar na companhia das pessoas mais importantes da cidade.
Tudo ia bem até Raissa perceber sinais de embriaguez no marido. Do
nada, ele passou a cobrar ciúme do Tadeu, seu melhor amigo. Isso
porque Tadeu tinha feito um elogio à elegância da morena, também sua
esposa a elogiou, porém o Guilherme não gostou. Para evitar mais
constrangimento, a morena pediu desculpas e saiu, puxando-o para
longe do grupo.
— Você vai mesmo cobrar ciúmes do Tadeu? – perguntou,
incrédula e muito zangada.
— Se até uma zé-ninguém conseguiu te levar pra cama, imagina o
filho do homem mais rico da cidade. A mulher dele pareceu muito
interessada também. Um ménage, talvez?! – insinuou.
Os lábios da morena tremeram de raiva. Ela pareceu não acreditar
no que acabara de ouvir. Com sua ira borbulhando, ela achou melhor
sair dali antes de fazer uma cena. Simplesmente girou os calcanhares e
caminhou até a saída. Raissa sentia-se extremamente humilhada. Seus
olhos se encheram de lágrimas.
— Onde pensa que vai? – Ele perguntou, furioso, segurando-a pelo
braço de forma bruta.
— Embora, Guilherme. – Desvencilhou. – Ou melhor, dar para o
primeiro ou para a primeira que me fizer um elogio – gritou.
— Raissa.
— Você é um imbecil! – Raissa se entregou à fúria, foi para cima
dele de punhos serrados esmurrando seu peito. – Um estúpido, um
grosso… – E desatou a falar todos os impropérios que conhecia e ainda
criou mais alguns.
Guilherme a segurou pelos pulsos.
— Se quer ir embora, pois vamos.
— Você está louco! Me solta, Guilherme.
Quando o veículo chegou, ele abriu a porta do carro e a empurrou
para dentro de um jeito tão brusco que machucou sua perna.
— Você quer me fazer de idiota? – começou a gritar enquanto
entrava no carro, dando partida e saindo cantando pneu.
Com lágrimas escorrendo incontrolavelmente pelo seu rosto, a
morena caiu em um choro rasgado e descontínuo.
◆◆◆
CAPÍTULO 23
Meus primeiros passos

RENATA
A festa na casa da dona Glória foi maravilhosa. Os familiares da
Raissa me trataram como um membro da família, os pequenos corriam
e pulavam de um lado para o outro. Para completar, me entupi de doces
e salgados. Quando voltamos para casa, era quase onze horas. A noite
teria sido perfeita se a Raissa tivesse ido. No domingo, ela tinha dito
que passaria o dia conosco, porém, poucas horas antes do almoço, ela
ligou se desculpando, dizendo que não poderia vir, pois, tinha aparecido
um imprevisto. Confesso que fiquei muito chateada, mas nada poderia
fazer. No domingo, dormi cedo, pois estava ansiosa para meu primeiro
dia de trabalho. Devido a isso, acordei cedo, aproveitei o bom hábito
que adquiri com a morena dos olhos azeitonas e fui correr na praça.
Passei quarenta minutos contornando-a. Voltei para casa, tomei banho e
tratei logo de me arrumar, eu não queria chegar atrasada em meu
primeiro dia. A dúvida foi sobre o que vestir, entre uma peça e outra,
escolhi uma vestimenta casual, composta por uma calça jeans preta de
cintura alta, blusa 3/4 branca e um scarpin também preto. Soltei os
cabelos e fiz uma maquiagem bem leve. Após aprovada minha imagem
no espelho, peguei minha bolsa e saí do quarto. O tio se ofereceu para
me acompanhar até o conservatório, já que era caminho para o seu
trabalho, eu achei ótimo. Mais uma vez o sentimento paterno aqueceu
meu coração. Meu relacionamento com o tio é diferente do que tenho
com a tia Thaís, não que o amor seja menor, pois eu os amava por igual.
Mas, com ele, havia uma conexão especial. Eu sempre admirei a
relação da Raissa com o pai, pois era linda demais a cumplicidade dos
dois. E a sensação de pertencimento aumentava. Pouco a pouco,
estávamos construindo uma relação muito parecida, e isso parecia ser
muito importante para mim. Pois, o carinho, cuidado e amor que aquele
senhorzinho me oferecia pareciam me preencher de um jeito muito,
muito, muito especial.
Após o café da manhã, seguimos para os nossos compromissos. Ele
ficou o caminho inteiro tentando atenuar meu nervosismo.
— Você trabalha pertinho de mim. Caso queira fugir, dá um grito
que o tio aparece a galope. – Ele disse todo brincalhão.
Olhei para aqueles olhinhos verdes e sorri. Ele me abraçou
carinhosamente, me acompanhou até a porta da escola, como se eu
fosse uma criança, mas adorei aquilo.
—Obrigada, tio.
— Tenha um bom dia de trabalho, meu Girassol.
Sorri bobamente e me joguei em seus braços parecendo uma
criança. Ele riu, respondeu ao abraço, beijou o topo da minha cabeça e
disse que precisava ir. Assenti e o vi se afastar. Então, olhei para o
casarão à minha frente. Respirei fundo, ergui a cabeça e entrei.
— Bom dia! – cumprimentei.
— Bom dia! – respondeu a recepcionista sorridente.
— Me chamo Renata…
— Hum, a nova professora?
— Acredito que sim.
— Vou avisar a dona Brenda que a senhorita já chegou.
— Obrigada.
Fiquei aguardando a secretária, minutos depois Brenda saiu da sua
sala e veio me cumprimentar formalmente.
— Seja bem-vinda – disse ela simpática.
— Bom dia. Mais uma vez, agradeço a oportunidade.
A diretora me apresentou para toda a escola, que era maior do que
pensava. Fiquei encantada com o local. Durante o tour, ela explicou o
funcionamento e regulamento daquele estabelecimento, esse passeio
durou cerca de 40 minutos. Voltamos ao seu escritório, onde tratamos
sobre carga horária e salário. Após acertado tudo, era hora de começar a
trabalhar, então ela pediu que sua secretária me levasse até meu
ambiente de trabalho. Acompanhei a mulher até o nível superior onde
ficavam as salas de aula.
— Você será assistente da professora Isabela – disse Marcela.
Caminhamos por um longo corredor que dava acesso a inúmeras
salas. Paramos na última do lado esquerdo. A porta estava aberta, e a
sala estava barulhenta. Parei no umbral da porta, tive a oportunidade de
observar com mais atenção o ambiente. Era uma sala ampla com
grandes janelas em forma de arco, que traziam muita luz natural. O piso
de madeira era bem ilustrado. Além disso, havia uma lousa e um birô.
Parecia uma sala comum.
— Com licença – disse Marcela ao entrar. – Bom dia, turma! –
cumprimentou.
— Bom dia – responderam em uníssono.
— Bom dia – também cumprimentei e recebi a mesma resposta.
Isabela levantou-se imediatamente, pediu que seus alunos
sentassem e fizesse silêncio. Assim o fizeram.
— Bom dia! – Ela cumprimentou.
— Bom dia! – respondemos.
— Professora, essa aqui é a Renata… – Marcela olhou para mim
como se perguntasse meu sobrenome.
— Fernandes – completei.
— Essa é a Renata Fernandes, será sua nova assistente.
— Já fomos apresentadas. Obrigada, Marcela. – Ela disse
gentilmente, depois virou-se para mim. – Seja bem-vinda, Renata.
— Obrigada – respondi meio sem jeito.
— Está entregue. Boa sorte, Renata. Seja bem-vinda à equipe.
— Obrigada – agradeci.
Marcela saiu, e Isabela me apresentou aos rostos curiosos que
estavam em nossa direção. Eram cerca de 15 alunos na idade entre 13 e
16 anos. No início fiquei um pouco acanhada. Isabela me explicou que
ali era uma turma de iniciante, o que me daria uma vantagem, pois
aprenderia no mesmo momento que ajudava a ensinar.
Isabela parecia ser uma mulher séria, mas não aquela séria chata.
— Como chegou agora, vou pedir que pegue uma cadeira e
coloque ao meu lado, quero que observe a dinâmica da aula, após a
aula, explicarei exatamente como vai me ajudar.
— Tá certo.
A professora pediu silêncio e deu início à aula, começou com a
origem da música clássica. À medida que ia explicando, considerava
tudo muito interessante. Parecia tão comum para mim. Sua explicação
era calma e paciente, os alunos pareciam compenetrados, ora ou outra,
ela era interrompida com uma pergunta de algum aluno curioso. Sua
postura era impecável em sala de aula, brincava com alguns detalhes
quando fazia menção a algum compositor. Eu apenas observava e
tomava nota de algumas coisas que tinha ficado na dúvida. Às
11h30min, ela encerrou a aula.
— Bem, agora vem o trabalho de verdade – disse, quando ficamos
sozinhas na sala. – Fiquei impressionada com o que ouvi no outro dia,
mas agora preciso saber o que sabe da parte teórica.
— Na verdade, não tenho lembrança se realmente sei algo. Quando
vejo as partituras, aquilo só me parece familiar, então apenas toco. Você
já deve saber que sofri um acidente…
— Sei, sim. Danilo me explicou sua situação, acho que temos
muito que conversar. Se não tiver compromisso agora, poderíamos
almoçar juntas e trocarmos algumas ideias.
— Claro.
Seguimos até um restaurante que fica próximo ao conservatório.
Isabela era muito simpática, conversamos bastante sobre música e sobre
arte, um assunto que sempre me agradava, nem sei o porquê. Ela me
explicou sua metodologia de ensino e o que esperava de mim. Uma
hora depois, voltamos à escola, ela disse que a próxima aula seria de
canto. Passou-me as partituras das músicas e pediu que tocasse, fiquei
bastante nervosa, porque ela me observava minuciosamente, atenta a
cada nota errada, corrigia-me na hora. Estava me sentindo uma aluna.
— Você precisa ficar mais atenta ao tempo de cada nota, veja. – Ela
sentou-se ao meu lado e seus dedos começaram a dedilhar no teclado do
piano. A música era reproduzida numa sincronia perfeita. – Você toca
muito bem, mas precisa conhecer o que está tocando, precisa sentir a
música, saber sua história. Treino é disso que precisa – decretou.
— Talvez eu não esteja apta...
— Renata, você tem um talento de pianista. Em minha opinião
profissional, acho que tem muito a contribuir, e dada sua situação, só
precisa reconhecer o que está tocando.
Isabela era uma mulher que gostava de fitar nos olhos, suas
palavras saíram com suavidade. O medo de não conseguir que começou
a se infiltrar recuou diante daquelas palavras.
— Podemos fazer o seguinte, após a última aula, posso lhe passar a
aula posterior. Então, lhe explicarei com antecedência a parte teórica.
Depois você treina a prática sob minha supervisão.
Quase não acreditei com sua sugestão. Meu coração pulou de
alegria. Já estava com medo de não conseguir executar o trabalho.
— Vou te dar trabalho dobrado – disse.
— Vai valer a pena. A parte mais difícil você já domina. Só precisa
reaprender, ou melhor, reconhecer o que está tocando.
Sorri em agradecimento. Sem perder muito tempo, ela me passou
os tópicos da aula seguinte. No início da tarde, recebemos sua segunda
turma. Aquela turma era mais agitada, pois era uma turma de
adolescentes entre 14 e 18 anos. Era aula de canto, e ela tinha me
avisado que eu atuaria mais ativamente.
A aula terminou às 16h. Quando todos os alunos saíram, Isabela
revisou algumas fichas, depois fomos para a nossa prática. O tempo
passou e nem percebemos. Consultei o relógio, já passava das 18h.
— Nossa, já é noite. – Ela disse, espantada. – Desculpe, Renata,
excedemos seu tempo, nem dei por mim. Vamos encerrar por hoje,
amanhã trarei alguns livros sobre história da música e outras coisas,
tenho certeza que pode lhe ser muito útil.
— Nem sei como agradecer, Isabela.
— Não precisa. Você mora onde?
— No bairro Petrópolis.
— Se quiser, posso te deixar lá – se ofereceu toda solícita.
— Agradeço, mas não é necessário. Muito obrigada mesmo assim.
— Então, até amanhã, Renata.
— Até amanhã, Isabela.
Peguei minha bolsa e algumas anotações e saí da sala. Estava
eufórica. Adorei o ambiente, os alunos, os professores, tudo. Me sentia
útil, embora soubesse dos muitos obstáculos à frente que ainda teria que
enfrentar. Música não era só tocar. Exigia muita técnica e
conhecimento, coisas que não sabia se tinha, mas não deixaria isso me
abalar. Devido ao trânsito, demorei para chegar em casa.
Assim que entrei na sala, fui abordada pela tia Thaís. Ela parecia
aflita.
— Minha filha, o que houve para você demorar tanto? – perguntou.
Sorri diante da sua preocupação tão genuína.
— Desculpe, tia. É que assim que terminou a aula, a professora
Isabela me passou algumas coisas. Acabou que perdi a hora.
— Eu sei que você é adulta, mas fiquei preocupada, você disse que
largaria às 17h. Não quero controlar seus horários, é só preocupação…
– Ela dizia atrapalhada.
—Tia, eu sei – interrompi. Peguei suas mãos com carinho e a puxei
para o sofá. Aproveitei que o tio também estava lá e contei
entusiasmada como havia sido meu primeiro dia.
— Fico feliz, Girassol, mas quando for chegar mais tarde, der sinal
de fumaça, só pra sabermos que está bem. Sua tia já tava querendo me
arrancar do sofá. Você sabe que não posso perder minha novela, num
sabe? – perguntou, piscando para mim. Tia Thaís revirou os olhos, e eu
ri.
— Prometo que aviso sim. Desculpe a preocupação que gerei.
— Vá tomar banho, estávamos esperando você para jantarmos.
Corri para o banheiro, tomei banho e fui jantar, minha barriga
roncava. O cheiro da comida gostosa invadia minhas narinas, comi, até
não caber mais nada. Passei um tempo conversando com os tios até que
uma leve dor de cabeça resolveu aparecer. Pedi licença com a desculpa
de que iria me deitar, então fiquei sentada na cama e levei a minha mão
à têmpora. Escutei meu telefone tocando ao longe, fui até minha bolsa
e, ao retirar o aparelho e ver o nome no visor, eu sorri.
— Já não morre mais, estava pensando em te ligar. – Eu disse
assim que atendi.
— Mal começou a trabalhar e já deu o primeiro susto na dona
Thaís. – Raissa falou. Ouvir sua voz me gerava alegria. – Você sabe que
esses dois velhos acham que somos adolescentes, num sabe? – disse
num tom de brincadeira.
— Deu pra perceber. Até gosto, me sinto cuidada.
— Como você está? – Ela perguntou.
— Estou bem, e você? Te esperamos ontem.
— Como foi seu primeiro dia? – desviou da minha pergunta.
Queria que ela estivesse aqui comigo, para narrar meu dia olhando
para suas azeitonas. Cada dia sentia mais falta da Raissa. Contei sobre
meu trabalho, depois sobre o quanto foi divertido a festa da sua avó, as
investidas incansáveis do seu primo adolescente a minha pessoa. Raissa
gargalhava do outro lado da linha.
— Aquele pivete não tem jeito. Ficou caidinho por você desde a
primeira vez que te viu. – Ela disse.
— Como foi a festa, com a família do seu marido? – Minhas
palavras saíram num tom de ironia. Houve um longo silêncio do outro
lado da linha, podia sentir sua respiração ficar mais forte.
— Agradável. – Se limitou a dizer.
Confesso que aquilo me intrigou, Raissa era uma pessoa muito
falante, uma festeira de plantão, esperei uma longa narrativa da noite
tão esperada do Guilherme, seu tom de voz mudou, parecia sério até
tentei insistir.
— Agradável? Apenas isso? Conta, você estava tão agitada com
essa festa. Aposto que deve ter se divertido bastante – falei com
suavidade, queria que ela se sentisse à vontade para falar.
— Foi agradável na medida do possível.
— Entendi! – disse, pois ficou bastante claro que ela não queria
falar sobre o assunto.
— Não sabe o quanto fico feliz pelo seu primeiro dia. Sei que vai
dar conta do recado.
— Me sinto tão feliz. Eu amo tanto vocês, Raissa, o que sua família
me desperta é algo que tenho certeza que não tive.
Conversamos por mais um tempo, depois ela teve que encerrar a
ligação.

◆◆◆
CAPÍTULO 24
Versão Ana Carolina ruiva

Alguns dias depois.

— Raissa! Colocasse as minhas gravatas?


— Coloquei, Guilherme. Tudo que você precisará está na sua mala.
— Tem certeza de que não quer ir comigo?
— Tenho.
— Raissa – insistiu.
— NÃO – gritou. – Quem sabe longe, você repense nas besteiras
que tem feito.
— Já pedi desculpa.
Ele tentou se aproximar, mas ela fez sinal de que não se atrevesse.
— Você sempre pede desculpa, mas acaba fazendo a mesma coisa.
O que tenho me perguntado é se isso sempre fez parte de você.
— Não me culpe, depois que essa mulher…
— Ahhhh – berrou. – Lá vem você com a mesma ladainha, sempre
colocando a Renata em nossas discussões. Errei, Guilherme, mas fui
mulher o suficiente para assumir meus erros, e quanto a você? Isso vem
muito antes da Renata, e você sabe disso. – Lhe apontou o dedo.
Guilherme pegou sua mala de mão e saiu do apartamento sem dizer
mais nada. O que tinha acontecido na festa do tio dele, foi apenas um
aperitivo. Na manhã seguinte, Guilherme pareceu recuperar a sensatez.
Veio cheio de pedidos de desculpas e falsas promessas. Claro que jogou
sobre Raissa a culpa, pois, segundo ele, estava sendo muito difícil lidar
com sua “aventura”. Era assim que nomeava a traição da Raissa. A
morena, por sua vez, nunca pensou que vê-lo saindo pela porta, fosse
lhe gerar uma sensação de alívio tão boa. Seus hematomas eram bem
visíveis. Se sua pele não fosse morena, com certeza o estrago teria sido
maior. A última briga entre eles foi a pior de todas, Guilherme tinha
acabado de chegar em casa, quando encontrou Raissa numa empolgada
conversa com Renata ao telefone. Ele achou uma afronta, os dois
discutiram feio. Ele fez acusações absurdas, ela revidou e os dois
acabaram indo para as vias de fato.
— Amor… – Ele tentou dizer, após agredi-la fisicamente.
— Não encoste em mim, seu monstro – disse completamente
despedaçada.
Raissa chorou até não haver mais força. Passou o resto da semana
sem falar com ele. Por sorte, ele precisou viajar para Curitiba a fim de
supervisionar a filial do escritório, onde ficaria cinco dias. Tempo o
suficiente para ela decidir o que faria com a sua relação.
Sozinha naquela casa que sequer sentia como sua, ela pegou a
chave do seu carro e foi para seu verdadeiro lar. Atravessou a cidade e,
quarenta minutos depois, estava em casa. Assim que entrou, deu de cara
com a Renata no quintal.
— Pensei que tinha esquecido o caminho de casa – recepcionou a
loira, feliz ao vê-la.
— Sei que não ando cumprindo minha palavra ultimamente. –
Raissa a puxou para um abraço apertado. – Sinto tanta sua falta –
confessou.
— E eu a sua.
As duas se afastaram e seguiram para o interior da casa. Seus pais a
receberam de braços abertos, estavam com saudade da filha.
— Cadê o Guilherme?
— Viajou, mãe. Vai passar a semana em Curitiba, supervisionando
um trabalho.
— Que bom. Minha Margarida vai poder ficar um pouco mais no
meu jardim – disse seu João, arrancando uma risada da filha, que achou
uma maravilhosa ideia.
Assim, Raissa acabou ficando por lá mesmo. Isso era tudo que
precisava.
Algumas horas depois.
Raissa e Renata estavam no quarto conversando amenidades. A
morena observava a garota na cama ao lado, Renata estava muito
diferente, parecia mais confiante e centrada. Ela contou
minuciosamente sobre sua primeira semana de trabalho, principalmente
a ajuda que estava recebendo de sua superiora.
— Impressão minha, ou você está interessada na professora? –
questionou a morena, tentando mascarar o incômodo que sentiu ao ver
o entusiasmo da loira ao falar da professora.
— Não estou interessada em ninguém – rebateu. – Quer dizer…
Renata a encarou daquele jeito que gerava expectativa e excitação
na advogada. A loira sorrateiramente se aproximou até que seus rostos
ficaram a um milímetro um do outro.
— Me interesso pela única pessoa que não posso ter. – Ela disse.
— Não faz isso – pediu com a voz fraca.
Renata fitou aquelas duas azeitonas. Ao contrário do que
costumava ver, naquela noite elas pareciam tristes, isso a fez recuar.
Algo dentro de si lhe dizia que Raissa andava tendo dias difíceis, e a
última coisa que a gaúcha queria era bagunçar mais suas emoções.
— Danilo marcou com o pessoal no Bar da Praia, amanhã, você
vai? – Mudou de assunto.
— Tinha esquecido, vamos sim. Saudade da turma. Dora me ligou
umas cinquenta vezes para confirmar minha presença.
As duas foram dormir tarde da noite. Estar ali era tão natural para
morena que por algumas horas esqueceu a realidade que a assolava.
Quando estava se trocando, ela se sentiu observada.
— Que mancha é essa nas suas costas? – perguntou Renata.
Raissa sentiu seu coração gelar, aquela roncha era fruto da
discussão que tivera com o Guilherme, dias atrás.
— Devo ter me machucado em algum lugar, você sabe o quanto
sou destrambelhada – desconversou. – Dorme comigo – pediu.
Seu pedido fez a loira mudar de foco no mesmo instante. Ela sorriu
e abriu espaço na sua cama para a morena se acomodar. Raissa sorriu e
correu para lá, se aconchegando naqueles braços.
— Sua cama é muito pequena para nós duas – disse Raissa, se
enroscando no corpo da loira.
— É bom que assim dormimos grudadinhas.
Após formular a frase, Renata teve uma forte sensação de déjà vu.
De repente teve um flashback muito rápido.
A gaúcha se viu em um quarto muito parecido com o seu atual.
Havia outro alguém. A loira mais uma vez não conseguia ver seu rosto.
Era uma garota, ela estava parada bem ao centro, parecia nervosa.
Renata estava vestida com uma camisola de seda preta, num modelo de
laço contraste simples de costa nua, o que realçava as curvas do seu
corpo. Sua imagem tão sexy pareceu intimidar a garota sem rosto. De
repente, Renata ouviu sua voz. Ela tem uma voz de ASMR, ou seja, uma
voz baixa, calma, talvez atenuada por sua timidez.

— Sua cama é de solteiro – disparou, nervosa, quando a loira


caminhou em sua direção.
— Melhor, porque isso faz com que grude em mim – replicou,
sorrindo.

Um frio percorreu sua espinha, Renata balançou a cabeça na


tentativa de dissipar seus pensamentos.
— Tudo bem? – perguntou Raissa.
— Tá – respondeu, puxando a morena mais para si.
A química entre as duas era mesmo uma filha da p… bastava o
contato entre os corpos para causar uma combustão. Raissa sentiu e
Renata também, porém, aquele não era o momento. A loira sabia que
tudo que Raissa precisava no momento era de colo e carinho, e foi
exatamente isso que deu a ela.
Na manhã seguinte, as duas acordaram com uma baita disposição,
correram na praça, ajudaram a organizar a casa, dando uma folga à
dona Thaís, que aproveitou aquele sábado para ir com o marido visitar
sua irmã que morava em outro município. Durante esse tempo, as duas
resolveram pegar uma praia e, à noite, foram se encontrar com os
amigos, no barzinho de sempre. A noite seguia animadíssima. Raissa
não cansava de admirar a loira ao seu lado, ela era uma pessoa tão
agradável, foi tão bem recebida por seus amigos que eles já tinham a
adotado. A morena se derretia toda, pois isso nunca aconteceu com o
Guilherme, ela sabia que seus amigos só o suportavam em respeito à
sua pessoa, até porque o rapaz não fazia nenhum esforço para
conquistá-los.
— Boa noite! – cumprimentou a famosa professora Isabela.
Na mesma hora, Danilo e Renata se levantaram para cumprimentá-
la com beijo no rosto e abraço apertado.
— Jurava que você não fosse mais vir – disse Danilo.
— Perdão, Nilo. Tive um contratempo. – Ela respondeu, porém,
seus olhos verdes-esmeraldas estavam pousados na loira ao lado do
Danilo.
Danilo apresentou sua amiga a todos. Conhecer finalmente a garota
que Renata não parava de mencionar gerou um formigamento no corpo
da advogada. De fato, Renata não exagerou em nada. A mulher era
dona de uma beleza marcante. Para piorar, era muito simpática. Seus
olhos insistiam em pousar em um certo alguém, e isso começou a
incomodar Raissa. Principalmente quando via o sorriso da loira em
resposta. Sentimento de ciúme era algo muito novo para a morena,
Guilherme é um homem muito bonito e bastante cortejado, mas ele
sempre a deixou muito segura. Ele pode ter muitos defeitos, mas
mulherengo não é um deles. Contudo, não importava o sinônimo que
queira usar para nomear o incômodo de ver a Renata tão entrosada com
aquela ruiva morta de linda, pois o único que se encaixaria era o
CIÚME.
— Pessoas lindas do meu coração – iniciou Danilo. – Têm duas
divas aqui em nossa mesa, então não é justo ficarmos nessa poluição
sonora. O que acham de dividirem conosco seus talentos musicais,
detalhe, isso não é uma pergunta. – Ele disse divertido.
— Nem, nem… – disse Isabela, negando com a cabeça e sorrindo
ao mesmo tempo.
— Nada disso, guri, o bar está lotado. Não vou passar vergonha –
replicou Renata toda divertida.
As duas se recusaram o quanto pôde, até que a ruiva virou-se para a
loira, pegou em sua mão de um jeito galante e, com aqueles olhos
horríveis, só que não, falou:
— Se você for, eu vou. – Ela disse com sua voz rouca, quase Ana
Carolina.[5]
A verdade, pelo que Raissa observou desde que a professora
chegou, era bem isso. Isabela era uma Ana Carolina nordestina numa
versão ruiva. Não só pelo tom de voz, que era parecido, mas pelo
trejeito, forma de se vestir e a classe. Essa percepção desanimou de
forma gigantesca a morena, que passou a questionar: Será que a Rê se
sentia atraída por esse tipo de mulher? Será que estava rolando algum
clima entre elas?
Isabela levantou-se da cadeira e estendeu a mão para Renata, que
sentava ao seu lado e de frente para mim.
— Tocamos juntas. Senão eles não vão parar de insistir. – Ela disse
suavemente lhe oferecendo um sorriso.
Renata sorriu de volta e levantou-se. As duas se dirigiram até o
piano. Uma das coisas que atraía o grupo aquele bar era que o palco,
apesar de ser para as apresentações dos artistas da casa, também era
aberto ao público. Era legal, pois sempre tinha alguém que queria
cantar, seja a musiquinha de parabéns de aniversário, ou até mesmo
fazer uma declaração de amor para alguém especial. Bastava respeitar o
regulamento do estabelecimento, e isso o grupo conhecia de cor e
salteado.
— O que você tem? – perguntou Dora à advogada.
— Nada – respondeu, desviando os olhos do casal ao longe.
— De todos nós, você é a mais palhaça e tagarela do grupo, e hoje
você só tem sua atenção para duas pessoas. Justamente as duas figuras
que estão sentadas lado a lado, cheias de sorrisos lá no palco.
— Você acha… – Raissa soltou o ar com força e fitou a amiga.
— Tenho certeza, aquela sapatão ruiva está doida para dar o bote
na sapa loira lá, que com todo respeito, amiga, tá gostosa hoje, viu?
Essa loira é muito linda, parece a versão brasileira de Amanda
Seyfried[6] – disse Dora, sem cerimônia.
— Quem?
— A atriz que interpretou aquele filme que você adora Querido
John.
Raissa olhou com atenção para a loira ao longe, sim, ela bem que
parecia com a referida atriz, exceto os olhos, já que os seus eram
negros.
— Amiga – Dora chamou sua atenção –, hora de baixar o espírito
de cadela e marcar seu território.
— Que horror! – exclamou a outra.
— Raissa, deixa de frescura. Você é girina ainda, tem muito o que
aprender. Então vai ao primeiro ensinamento da sapa chefe – disse,
tentando parecer séria. Por mais estúpida que fosse a fala da amiga,
Raissa não conseguiu ignorá-la. – Faça igual ao cachorro, que levanta a
patinha e faz um xixizinho marcando seu território. Uma boa sapa
sempre reconhece a marcação da outra – disse, dando uma piscadinha
divertida para a amiga.
A morena riu mesmo sem querer, negando com a cabeça. Em seus
trinta anos de estrada, nunca precisou fazer isso. Isso é ridículo,
pensava Raissa.
— A menos que queria terminar a noite vendo sua loira dando uns
amassos na ruiva posuda, versão Ana Carolina de cabelos vermelhos,
que aliás, só pra você, saber é o sonho de consumo de 70, quiçá 80%
das sapas do mercado – provocou.
Aquela possibilidade fez a morena arregalar os olhos assustada.
Seu coração apertou só com a possibilidade. Dora se divertiu um pouco
mais da cara da amiga, até que as primeiras notas começaram a soar no
ambiente, interrompendo-as.
ZERO
Artista: Liniker, Álbum Cru, 2015

A gente fica mordido, num fica?


Dente, lábio, teu jeito de olhar
Me lembro do beijo em teu pescoço
Do meu toque grosso, com medo de te transpassar
(…)
Quem ficou mordida, muito mordida foi a morena ao assistir
Renata cantar com os olhos fitos na moça que estava sentada ao seu
lado, que dedilhava sobre o piano, enquanto a voz de Renata
hipnotizava o público. Essa mulher deve ter uma veia artística, é a
única explicação, pensava Raissa, embasbacada com a voz daquela
mulher que levara para morar em sua casa. Renata cantou lindamente,
cheia de gestos e sorrisos, mas o sorriso naquela noite estava para a
mulher que a acompanhava no piano. A música terminou, e ela buscou
entre os presentes aquelas azeitonas. Ao encontrá-las sorriu, Raissa
suspirou e sorriu de volta. Aplausos e gritaria soavam pelo bar.
Os músicos se aproximaram das duas, eles conversaram entre si e,
em seguida, outro microfone foi trazido e entregue a Isabela, dessa vez
as duas cantaram, ritmadas por outros instrumentos.
— Essas duas arrasam, não arrasam? Elas têm uma sintonia
perfeita – disse Danilo, animado. – A Isa perguntou se a Rê tinha
alguém, acho que ficou interessada na loira – comentou o rapaz. –
Quem não ficaria? Além de linda, a Rê é inteligente, doce, sensível.
Dora deu uma cotovelada no amigo que olhou surpreso.
— Para com essa mania de cupido – repreendeu a fisioterapeuta.
— As duas têm tudo a ver – rebateu ele.
Na segunda música, a postura da loira foi diferente, ela buscou as
azeitonas o tempo todo. Renata sabia exatamente como roubar a Raissa.
Aquela música ela cantou única e exclusivamente para a dona dos
verdes-oliva.
ILEGAIS
Vanessa da Matta/Multishow

Desse jeito vão saber de nós dois


Dessa nossa vida
E será uma maldade veloz
Malignas línguas
Nossos corpos não conseguem ter paz
Em uma distância
(…)
A apresentação se estendeu por mais duas músicas. Ao final, as
duas agradeceram a atenção, receberam os gritos, assobios e aplausos e
voltaram sorridentes para a mesa. Quando Renata aproximou-se linda e
sorridente, a morena a puxou para sentar-se ao seu lado. Raissa sentiu-
se uma adolescente, estúpida e insegura, mas ignorou tudo aquilo,
então, momentos antes, na maior cara dura pediu que a sua amiga Dora
trocasse de lugar, fazendo a fisioterapeuta sentar-se ao lado da
professora. Renata estranhou a troca de lugar, mas não comentou.
Isabela deu um sorrisinho sem mostrar os dentes quando viu a troca
de lugares. Ela também era uma boa observadora, sentiu-se observada
pela bela morena desde o momento que chegou. Pelo que percebeu,
aquela observação não era por sua pessoa em si e, sim, pela sua
interação com a sua assistente. Isso não a incomodou, pelo contrário, só
a intrigou. Danilo já tinha comentado que a loira era solteira, mas diante
dos olhares que presenciou entre as duas mulheres à sua frente,
começou a se questionar se havia algo mais.
— Está tudo bem? – Renata perguntou a Raissa, pois a notou muito
calada naquela noite, o que era muito atípico.
— Vamos ao banheiro comigo – chamou.
Renata levantou prontamente e a acompanhou até o banheiro.
Havia duas garotas retocando a maquiagem no espelho. Raissa fingiu
lavar as mãos, Renata encostou-se no balcão de mármore.
— Está tudo bem? – repetiu a pergunta.
Raissa desligou a torneira, seus olhos perscrutaram rapidamente o
banheiro. Ao perceber que já estavam sozinhas, a morena empurrou sua
razão para longe e puxou a loira pelo cós da sua calça jeans, trazendo-a
para perto. Renata sorriu com o gesto e em resposta a tomou para si. Os
lábios se encaixaram com secura. Suas línguas brincavam uma com a
outra. O beijo da loira era sempre voluptuoso. Sempre que Raissa
tentava domar o ritmo para algo mais calmo, a gaúcha a atropelava. Era
instintivo, como se para loira apenas aquele ritmo fosse permitido. Mas
isso não deixava o beijo menos gostoso, pelo contrário, era gostoso
demais para a advogada, que se entregava ao momento.
— Guria, desse jeito é difícil ser decente com você – gemeu a loira,
deslocando seus lábios para o pescoço da outra.
Renata queria mais contato, queria sentir a pele quente daquela
garota que ativava sua libido. Quando suas mãos penetraram o tecido
fino daquela blusa, avançando para os seios intumescidos da morena, o
momento foi interrompido com a entrada de alguém no banheiro.
Assustada, Raissa se afastou abruptamente, e ambas olharam para a
mesma direção. E lá estava a Ana Carolina ruiva. Os olhos esmeraldas
avistaram as duas, e, sem disfarçar, Isabela deu um sorrisinho sacana
em direção a Renata. Raissa não sabia se estava envergonhada ou
enciumada, pois a loira sorriu sem mostrar os dentes. Nesse instante, as
palavras da sua professora de assuntos lésbicos (Dora) ecoaram em sua
mente. Então, como uma colegial insegura, a advogada fez exatamente
o que sua amiga instruiu. Puxou a loira de volta para perto, numa
demonstração de posse. Raissa sentiu-se ridícula, mas foi mais forte que
ela. Suas respirações ainda estavam muito ofegantes. Raissa permanecia
com os olhos fitos nos negros à sua frente.
Isabela entrou numa cabine e, minutos depois, a ruiva saiu do
reservado, lavou suas mãos, as olhou pelo reflexo do espelho e, sem
dizer uma só palavra, saiu do banheiro.
— Me leva pra casa! – Raissa pediu, quebrando o silêncio.
Raissa sabia que estava sendo egoísta, precisava resolver sua
situação com Guilherme antes, embora já estivesse resolvida em sua
cabeça. Mas não conseguiu agir diferente. Renata nada falou, selou os
lábios, a pegou pela mão e as conduziu para fora dali. Elas voltaram à
mesa e anunciaram sua partida. Após pagarem a conta, foram embora.
— Fiquei com ciúmes – disse Raissa, já acomodada no banco
traseiro do carro de aplicativo. Renata lhe olhou surpresa.
Raissa não conseguiu manter o contato visual, ao invés disso encostou
sua cabeça no ombro da loira.
— Todas as canções, eu cantei para você. – Renata disse baixinho.
— Você e aquela versão Ana Carolina tão feia de tão bonita
pareciam tão entrosadas, tão…
Renata não a deixou terminar, selou os lábios e aprofundou o beijo
tão característico delas. Se afastaram apenas quando faltou ar.
Chegaram em casa quase às três da manhã. A morena foi direto para o
banho. Para ganhar tempo, Renata foi tomar banho no banheiro social.
Quando Renata retornou ao quarto, encontrou Raissa já em seu pijama
sentada na cama. A loira fechou a porta atrás de si e ligou o ar.
— Eu estou uma bagunça, Rê – falou. – Sei que não é certo o que
estou fazendo, mas hoje naquele bar…
— Eu quero você, Raissa! – disse Renata.
— Naquele bar, eu percebi que também quero você.
E as duas se tiveram. Depois de muitas noites mal dormidas, Raissa
pôde desfrutar de um sono tranquilo.
◆◆◆
CAPÍTULO 25
Término

Raissa não voltou ao apartamento do Guilherme nos dias seguintes.


O advogado lhe ligou dezenas de vezes, mas nunca era atendido. Raissa
o evitava, não queria ouvi-lo. Sempre que lembrava de sua pessoa, seu
coração sangrava. Não adianta romantizar cenas de ciúmes ou
descontroles. Arrumar outros sinônimos, mascarar uma agressão.
Raissa demorou a aceitar a verdade crua, estava vivendo um
relacionamento tóxico e, diante disso, só tinha uma coisa a fazer.
Esperaria ele voltar só para oficializar o término.
— Doutora Raissa, o doutor Guilherme está na linha dois – avisou
sua secretária.
— Obrigada.
— Até que enfim – disse ele.
— Tudo bem com você? – falou num tom brando, deixando claro
que não queria discutir.
— Estou tentando falar com você desde sexta-feira. O que está
havendo, Raissa? Por que você não está em casa?
— Eu não queria falar com você, Guilherme. Pensei que as
rejeições das ligações tivessem deixado isso claro – disse sem rodeio. A
morena não estava disposta a escutar suas estupidezes. – Estou na casa
da minha mãe. Estava precisando pensar um pouco. Assim que você
chegar, conversaremos seriamente.
— Já dormiu com aquela mulher de novo? – acusou. – Que tipo de
mulher você está se tornando, Raissa? Uma vaga…
— Nem ouse, seu estúpido – berrou. – E sabe de uma coisa, vai
para o inferno. Acabou, Guilherme, acabou. Não vou aturar mais suas
ofensas, nem suas agressões. Minha intenção era falar pessoalmente
quando chegasse, mas já ligou, FIM. ACABOU.
— Não me deixa, Raissa. Eu te amo! – Sua voz mudou
instantaneamente.
— Não dá mais, Guilherme. Não dá mais. Eu não quero mais. –
Raissa desligou o telefone nervosa e desatou a chorar.

Dias atrás.
Naquela madrugada de sábado, depois que fizeram amor, Renata
perguntou sobre os machucados da morena.
— Aquele homem anda te batendo, Raissa? – Ela perguntou cheia
de raiva.
— Dessa vez foi a última vez. Quando ele chegar, vou terminar
tudo. Já perdemos o respeito um pelo outro. Quando isso acontece, a
relação acaba. A nossa acabou há muito tempo, acho que só não
queríamos dar o braço a torcer. E, também, desde que fiquei com você,
não consigo deixá-lo me tocar. – Foi sincera. Raissa abriu o coração
para a loira, falou dos seus medos e de suas inseguranças, admitiu que
ainda amava o noivo, mas sabia que ele era um cara muito tóxico.
Então, por mais amor que existisse ainda, não queria viver aquilo.
— Eu nunca pensei que fosse possível se apaixonar por uma
pessoa, amando um alguém – disse, fungando. – Mas aconteceu, eu me
apaixonei por você, não sei em que momento, mas, Rê – Raissa buscou
aqueles olhos tão bonitos, queria ser muito verdadeira com a garota à
sua frente –, apesar do sentimento que você desperta em mim, algo aqui
dentro, bem lá no fundo, diz que não posso me entregar a você, por isso
tentei resistir. Por isso, fugi.
— Mas por quê? Eu estou aqui – replicou.
Sim, você está, mas até quando?, respondeu Raissa para si mesma.
Há um passado entre nós, pessoas e sentimentos que podem existir. Eu
me apaixonei por você, Renata, contudo, algo grita dentro de mim. Um
grito de aviso, um grito de alerta, um grito que diz, sem deixar margem
para dúvida, que eu não posso amá-la. Eu simplesmente não posso te
amar. Embora seja isso que eu queira, sou covarde demais para
ignorar meu instinto de preservação. Eu sinto muito, Girassol, eu sinto
mais que muito.
Isso era tudo que Raissa queria verbalizar, mas havia um caroço em
sua garganta que não permitiu que as palavras saíssem de sua boca.
Aquele par de olhos negros a fitaram cheios de sentimentos, Raissa
despertava em Renata um sentimento leve, um sentimento terno, um
sentimento de calmaria, como se em sua vida anterior ela tivesse
deficiência disso.
— Eu sei que você está aqui – sorriu docemente. – Rê, vamos viver
o que tivermos que viver. Apenas um capítulo por vez.
— O que quer dizer com isso? – Renata perguntou com a voz
embargada, não estava gostando daquela conversa, porque lhe gerava
um sentimento de perda, e ela estava feliz demais para perder qualquer
coisa dessa nova vida.
— Vamos descobrir juntas, mas sempre, sempre, sempre, sendo
honesta uma com a outra.
Renata sorriu, e Raissa sorriu de volta. Ali ambas selariam algo só
delas, que ia muito além da luxúria da paixão.

Depois de chorar por um longo tempo, Raissa tentou se recompor,


pois teria um dia muito cheio naquela quarta-feira. Além do trabalho do
escritório, teria duas audiências no mesmo dia. No meio da manhã,
ligou para Renata contando a conversa desastrosa que teve com o ex-
noivo. A outra, como sempre, foi extremamente sensível à sua dor,
oferecendo todo o carinho e apoio que precisava. A morena ainda não
tinha contado para os pais, ela ainda não se sentia pronta. Seu João e
dona Thaís tinham um carinho paternal pelo advogado, dessa forma,
sabia que o fim da sua relação abalaria seus pais também.
Raissa também decidiu que naquele mesmo dia levaria o restante
das suas coisas de volta à casa da sua mãe. Quando Guilherme voltasse,
ela não estaria mais em seu apartamento, pelo contrário, se limitaria a
ter sua presença unicamente no ambiente de trabalho. Assim, foi
exatamente o que fez. Porém, quando finalmente chegou ao
apartamento e cruzou a porta, Raissa teve uma surpresa.
— Oi! – Ele disse, levantando-se do sofá assim que a viu.
Guilherme parecia cansado, tinha olheiras sob os olhos e uma
aparência desleixada. O homem havia pegado o primeiro voo de volta,
após a conversa com a noiva. Ao chegar à cidade, ele tinha ido direto
para o escritório, no entanto, a secretária da advogada o avisou que a
morena estava em audiência e que não retornaria mais para o escritório.
Raissa estava em choque, não esperava vê-lo, principalmente
assim, tão abatido e com os olhos tão vermelhos.
— Eu sei que eu tenho sido um canalha com você. – Ele disse. –
Talvez, minhas atitudes tenham te jogado nos braços dela, mas, Raissa,
eu te amo. Temos uma história juntos. Sonhos. Planos de construir uma
família, por favor, me perdoe.
Guilherme ajoelhou-se aos pés da mulher, chorando feito um
menino, sentia-se verdadeiramente arrependido. A ideia de perder a
mulher era inconcebível. Raissa se esforçou para manter-se forte, mas
doía muito, doía mais que muito. Guilherme usou de todos os
argumentos para se defender, mas não tinha o que fazer. O telefone da
advogada tocava insistentemente na sua bolsa, ela não queria atender,
queria ter uma última conversa com o homem, sua história merecia ser
finalizada com decência em uma conversa civilizada entre dois adultos.
Porém, o telefone insistia demais. Guilherme se levantou e pediu que
ela atendesse. Raissa o observou enxugar o rosto com o dorso da mão,
ele não tirava os olhos dela. A morena buscou o telefone na bolsa, era o
número da Renata no visor. Havia mais de vinte perdidas, mas, além
delas, havia uma notificação na tela que lhe tirou o chão, a pré-
visualização de uma mensagem: “Estamos levando o tio para o
hospital…”. E em questão de segundos, Raissa sentiu sua vida dando
uma pirueta, ela abriu a mensagem, seus olhos pousaram em Guilherme
que lhe olhou aflito.
— Meu pai sofreu um infarto – conseguiu dizer.
◆◆◆
CAPÍTULO 26
Só sei que sei

RENATA
Naquela noite, antes de ir para casa, resolvi passar no mercado. O
sorvete de Raissa tinha acabado. Com dificuldade, consegui fazê-la
trocar sua preferência de sorvete de chocolate e calda de morango, pelo
de pavê. Não sei por que essa combinação mexia muito comigo. Após
passar no supermercado, caminhei para casa, achei estranho encontrar o
portão de pedestre aberto. Mais estranho foram as vozes agitadas que
vinham do seu interior. Senti uma angústia no peito, isso me fez
caminhar apressadamente para dentro. Ao entrar na sala me deparei
com a tia Thaís agachada em frente ao sofá, desesperada, enquanto meu
tio estava extremamente pálido com sua mão pressionada ao peito.
— O que houve? – perguntei, jogando tudo sobre a cadeira e
correndo até eles.
Difícil foi entender diversas pessoas falando ao mesmo tempo. Era
a equipe trevo que estava ali. Num ímpeto, fui até o tio e pedi que todos
se afastassem. Em movimentos automáticos, chequei sua pulsação e
notei que estava muito fraca. Então, perguntei o que ele estava sentindo.
Mesmo com dificuldade, contou:
— Começou com um mal-estar, pensei que estivesse cansado, até
começar com uma dor aguda no meu peito e formigamento no meu
braço esquerdo. – Ele falava com muita dificuldade.
O tio tinha a respiração ofegante e estava muito suado. Avaliei
aquele conjunto de reações em segundos.
— Esse homem precisa de uma ambulância agora – gritei.
— Já chamamos – disse alguém.
— O que está fazendo? – perguntaram.
— Precisamos afrouxá-lo o máximo possível. Tia, tire os sapatos
dele.
Meu corpo sentiu uma descarga familiar de adrenalina. Mesmo sem
entender aqueles comandos, eu abri sua camisa de botão e lhe tirei o
cinto, enquanto minha tia se livrava dos seus sapatos.
— Se ele ficar aqui, pode ter uma insuficiência respiratória.
Precisamos levar ele agora – berrei.
O tio João não tinha tempo para esperar a ambulância. Com a ajuda
de alguns homens, conseguimos colocá-lo no carro e socorrê-lo para o
hospital. Enquanto minha tia chorava desesperada, eu não conseguia
entender meu comportamento tão frio. Chegamos ao hospital pouco
tempo depois.
— A senhora não pode entrar aqui – disse o socorrista, arrastando
meu tio para o interior da emergência.
Foram longos minutos na sala de espera. A adrenalina continuava a
correr em alta velocidade dentro de mim. Tia Thaís havia sido
amparada por dona Antônia. Fiquei tão presa em mim, que não reparei
na chegada de Raissa, só percebi quando ela me abordou.
— O que aconteceu? – perguntou aquela voz que aprendi a
reconhecer e a abominar.
Virei para trás e, para minha surpresa, Guilherme aproximou-se
junto com a Raissa. Eu olhei para ela, mas a ignorei. Simplesmente a
ignorei. Me sentia agitada, minha mente fervilhava. Só conseguia
pensar no tio.
— O que aconteceu? – Ela perguntou chorosa.
— Ele teve um princípio de infarto – respondi.
Dona Thaís, ao ver a filha, veio ao encontro dela e se jogou nos
braços da mais nova. Em meio a choro e soluços, relatava os momentos
que antecederam a isso.
— Seu pai estava bem, estava comendo, enquanto eu tomava banho
para fazermos a distribuição das refeições. Quando cheguei à sala, ele
reclamou de uma dor no peito e, de repente... – Ela não conseguiu
terminar.
— Vou ver se consigo alguma informação – disse Guilherme, se
afastando.
Longa foi a espera por notícias, o que era uma coisa muito atípica.
Como sei disso? Não faço ideia. Depois de muito tempo, a médica que
o atendeu veio falar conosco.
— O estabilizamos, e ele passa bem, mas estamos fazendo novos
exames – disse.
— O que ele tem? – perguntei.
— Ele está bem. Assim que tivermos mais notícias, viremos avisar.
Não se preocupe.
— Que exames? – questionei. – Por que não podemos vê-lo, se ele
já foi estabilizado?
A mulher olhou para mim e senti sua hesitação.
— Você é interna? – Não sei o motivo por ter perguntado isso, mas
queria saber. A mulher, que parecia um pouco mais jovem que eu,
assentiu.
Havia alguma coisa errada, aquela situação não era típica. Agora
foi a vez daquele homem pressionar. Guilherme, com sua postura um
tanto intimidadora, encarou a mulher e repetiu as minhas perguntas. A
mulher alternava os olhos entre mim e ele.
— Ele precisou ser submetido a um exame de endoscopia. Assim
que terminarmos, ele será levado para o quarto e será permitido que
fique com um acompanhante – disse, querendo parecer displicente,
como se aquilo fosse rotina, porém, para mim, foi como sirenes de
ambulância soando escandalosamente, até porque o tio foi atendido
com um quadro de infarto, o que cardiologia tem a ver com
endoscopia?
Antes de ser bombardeada por perguntas, a mulher pediu licença e
saiu. Aquele homem voltou a abraçar Raissa, tia Thaís estava desolada
na cadeira com a vizinha, e eu me afastei. Minha mente parecia um
turbilhão. As horas corriam devagar. Depois de muito tempo,
finalmente recebemos autorização para vê-lo. A visita teria que ser
rápida, pois só era permitido um acompanhante.
— Pai! O senhor me dá cada susto, seu velho bobão – disse Raissa
assim que entrou no quarto.
— Ainda não foi dessa vez! – Ele brincou.
Tio João estava bastante abatido e sonolento, provavelmente efeito
das medicações. Ele também tinha dificuldade para respirar, então
usava uma máscara de oxigênio. Algo me inquietava. De repente, senti
um toque no meu ombro, e o gesto me assustou.
— O que você tem? – Ela perguntou baixinho. – Você está
estranha.
— Tem alguma coisa errada – disse prontamente. – Preciso falar
com o médico, Raissa, não é comum realizar uma endoscopia assim do
nada.
— Como assim?
— O tio veio aqui com sintomas claros de infarto do miocárdio,
que é a necrose de uma parte do músculo cardíaco causada pela falta de
irrigação sanguínea ao coração. A dor fixa no peito, o ardor no peito,
muitas vezes é confundido com azia. O tio vive comendo comidas
gordurosas, sem falar do excesso de cigarros. Ainda associando ao
excesso de peso, não seria incomum para ele a possibilidade de isso
ocorrer – falei, percebi que Raissa me escutava com atenção, então
continuei: – Contudo, por que fazer uma endoscopia? Não se encaixa.
O tio nunca teve problemas no estômago antes.
— Não que a gente saiba. – Raissa corrigiu. – Painho é um turrão,
pior que uma criança. Nem mesmo minha mãe consegue convencê-lo a
fazer meros exames de rotina.
Soltei o ar com força, estava tão submersa nessa angústia que não
parei para lhe oferecer um pouco de conforto. Meu objetivo era abraçá-
la, mas recuei ao sentir os olhos do Guilherme sobre nós. Três pessoas
de jaleco entraram no quarto, uma delas eu reconheci, era a médica da
emergência. Essa, em especial, segurava uma prancheta com papéis
fixados, e minha atenção se deteve ali. Senti um frio na espinha. Numa
atitude totalmente impetuosa, arranquei dela e folheei o conteúdo.
Minha atitude foi tão inesperada que todos me olharam estupefatos.
Após meus olhos passearem pelos papéis, levantei o rosto e os devolvi
à moça.
— Rê – chamou Raissa, surpresa pela minha atitude.
Senti um bolo na garganta, e meus olhos se encheram de lágrimas
instantaneamente. Quando olhei para o tio deitado naquela cama de
hospital, de repente minhas dores voltaram na velocidade da luz. Um
misto de imagens, sons, conversas vieram até mim de uma só vez.
Tentei controlar, mas Raissa me conhecia. Eu levei minha mão à cabeça
e tentei aplicar o exercício que meu médico tinha me ensinado. Eu
fechei os olhos com força, enquanto um filme em alta velocidade
passava em minha retina até estancar, daquele jeito brusco que já
aprendi a conviver. Não sei quantos minutos se passaram.
— Você teve um gatilho? – perguntou Raissa, aflita.
Os médicos tentaram me ajudar, mas eu os repeli. Raissa, que já
estava acostumada, me levou para um canto do quarto e me envolveu
num abraço apertado, o primeiro daquela terrível noite. Me afoguei em
seu pescoço e comecei a chorar baixinho.
— Não foi apenas um ataque cardíaco. – Eu disse. Ela se afastou de
imediato. Eu tinha sujado sua camisa de sangue. Naquele dia, Raissa
tinha ido trabalhar com uma saia lápis e camisa listrada vertical, com
manga bufante e de coloração azul. Sempre que os gatilhos eram muito
fortes, era comum expelir sangue pelo nariz.
— Renata, do que você está falando? – Foi a tia Thaís que
perguntou.
— Você é médica? – perguntou uma doutora mais velha, em seu
jaleco tinha gravado Dra. Josélia L. P. Sampaio e sob o nome:
Cardiologista.
— Meu Girassol, você está bem? – perguntou o tio com a voz
fraca. Perdido naquela tensão.
Eu limpei o resto de sangue do meu nariz com minha própria blusa,
me aproximei da cama e segurei delicadamente suas mãos
rechonchudas. Não queria perdê-lo. Tio João era como um pai para
mim, e a possibilidade de perdê-lo me deixou sem ar.
— Alguém pode explicar o que está acontecendo? – A voz grave
de Guilherme se fez presente. – Doutora, pode explicar exatamente o
que meu sogro tem?
Senti um frio na espinha ao ver a forma como ele se referiu ao tio.
Raissa me olhou no mesmo instante.
— Boa noite, me chamo Josélia Sampaio, sou cardiologista e esse é
o Dr. Leandro Soares – apresentou a mulher.
— Os exames demonstraram… – iniciou a médica, passando a bola
para o outro doutor.
Meu estômago se contraiu e me senti paralisada. A única voz que
soava naquele quarto era daquele doutor, cuja especialidade era
oncologia. Meu peito batia devagar, porém forte, tão forte que chegava
a doer.
— Vocês estão mentindo – disse tia Thaís, desabando no choro
quando o médico terminou.
Raissa foi amparada pelo Guilherme, e eu busquei o rosto daquele
senhorzinho sorridente, ele sorriu fraco para mim.
— Em que estágio? – perguntei diretamente ao médico.
— O câncer está em estágio três metastático.
— Meta… o quê? – perguntou Guilherme.
— Metastático é quando as células cancerígenas migram do seu
ponto de origem... – Eu não sentia as palavras saírem da minha boca,
elas apenas saíam. E não havia nada condescendente em minha voz.
— Exatamente isso – concordou o oncologista, após a minha
explanação. – O câncer no esôfago está se espalhando para o estômago.
— Mas não é só isso, não é?! – falei, agora olhando diretamente
para a médica mais velha. Ela sentiu meu olhar.
Raissa soltou-se do Guilherme e veio em minha direção.
— Por que está falando essas coisas? Como sabe de tudo isso?
— A pré-OP ECO[7] mostra que a válvula da aorta dele está
sangrando. – Eu disse.
— Você é médica? – A voz da mulher se fez presente, mas não lhe
respondi, afinal, cinco meses se passaram e eu nem sabia meu nome.
— A única chance de ele conseguir se submeter a uma cirurgia de
remoção do câncer é se conseguir sobreviver a uma cirurgia de válvula.
Em palavras simples, será preciso fazer um reparo na válvula doente,
ou até mesmo, uma troca, neste caso por uma prótese mecânica ou
biológica – continuei falando.
Minhas palavras saíram tão frias, que senti uma imensa raiva de
mim mesma. Como poderia dizer aquelas coisas? Como sei? Mas algo
no meu íntimo gritava aquelas informações.
— Ela está errada, não está? Ela não sabe o que diz – reclamou
Guilherme. – Você está assustando-as.
Havia muita tensão naquele quarto, os dois médicos e a residente
olhavam para mim confusos. Tomando as rédeas da situação, a
cardiologista tomou a palavra.
— Ela não está errada, eu sinto muito. – Primeiramente disse. –
Seu coração mostra que sua válvula está debilitada e sangrando, é
preciso trocá-la. Quando conseguirmos dar estabilidade ao seu coração,
será possível fazer a cirurgia de remoção do câncer. – Ela tocou
delicadamente o antebraço do tio. Foi um gesto de sensibilidade e
empatia. – Senhor João, seu quadro é muito delicado, preciso que
descanse, pois amanhã faremos os exames pré-operatórios. Quanto
antes fizer a cirurgia cardíaca, mais chances terá com a posterior.
Ainda impactados, apenas Guilherme falou.
— Obrigado, doutores.
Os médicos pediram licença e saíram. Eu fiz o mesmo. Precisava
respirar. Caminhei o mais rápido que minhas pernas conseguiram para
fora do hospital. Sentia-me sufocada, não conseguia compreender como
fui capaz de dizer todas aquelas coisas e de uma forma tão fria. Sentei
no meio-fio da calçada e desatei a chorar. Aquela dor insuportável
voltou para me fazer companhia, não tentei lutar contra aquilo, apenas
baixei a cabeça e esperei ela me possuir. E mais uma vez fui
espectadora de um filme que só minha cabeça conseguia reproduzir.
Me via em um auditório lotado, mas eu estava sentada logo nas
primeiras fileiras. As luzes eram direcionadas para um palco a poucos
metros de distância. Havia uma mulher madura, de pele marrom,
vestida em trajes elegantes. Seus cabelos eram escuros e
encaracolados. Ela estava participando de uma mesa redonda, e o
tema em questão era Cardiopatia Congênita.
Voltei ao quarto alguns minutos depois. Encontrei o tio sozinho.
— Cadê todo mundo?
— Foram falar com a equipe médica – disse tio João. Me
aproximei e beijei carinhosamente o topo da sua cabeça, em seguida
sentei ao lado de sua cama. – Me sinto como um carro velho numa
oficina, meu pequeno Girassol – falou docemente. – Passamos a vida
fazendo o possível para não levá-lo a uma revisão, ou maquiamos o
problema, no entanto, uma hora ele dá pau. Quando isso acontece,
vamos na certeza de que é um problema no carburador. – Ele sorriu
fraco. – Para a nossa surpresa, descobrimos que além do carburador,
temos sérios problemas no motor.
E o bolo na garganta voltou. Olhei no fundo daqueles olhos cor de
azeitona, foi impossível não lembrar da sua filha, Raissa tinha tanto do
pai. A relação que ambos tinham mexia comigo de uma forma que me
gerava inveja, mas não uma inveja ruim, pelo contrário, era uma inveja
de querer construir aquilo.
— Ainda bem que o senhor não é um carro velho – rebati.
— O tio aqui é sim, meu Girassol. Por causa de um prato de
calabresa e alguns cigarros, vim parar no hospital. Enquanto meu Lírio
– era como se referia a sua companheira – e minha Margarida, – era
como se referia à filha – sempre cuidaram do corpo, não apenas por
vaidade. Eu nunca me preocupei com isso. Já era casado com a mulher
mais linda do meu planeta, porque ia me preocupar com os quilos a
mais que fui acumulando ao longo dos anos. – Ele soltou o ar com
força. – Sempre fumei, bebi e principalmente comi sem me importar no
mal que essas coisas me causavam. Agora com quase sessenta anos,
descubro que tenho um câncer e ainda por cima que meu coração está
jorrando sangue, igual quando abrimos uma lata de cerveja, após agitá-
la.
— O senhor vai ficar bem, é comum a troca da válvula aórtica.
Com seu coração em estabilidade, poderemos cuidar do outro problema
com mais segurança.
— Renata, foi muito acertada a decisão que minha Margarida fez,
te amo, minha filha. Eu e a Thaís somos gratos por ter mais uma flor
em nosso jardim.
Escutar suas palavras foi demais para mim, eu levantei e, como
uma criança pequena, me joguei em seus braços. Eu amava aquele
homem como um pai, amava aquela família como minha. Aqui eu me
pertencia.

◆◆◆
CAPÍTULO 27
Aceite o fim
Raissa saiu do hospital entorpecida. Como poderia algo mudar
assim em ínfimo segundo? Apesar de toda aquela tensão, algo não
havia mudado dentro da advogada. Guilherme as levou para casa, no
final daquela noite. Quando o carro foi estacionado, Renata disparou
um “obrigada” e desceu do veículo rapidamente. Já sozinhos, o
advogado tentou:
— Raissa, sobre nós…
— Quero agradecer por todo apoio que nos deu hoje – disse,
interrompendo-o. – Quanto a nós, minha decisão continua sendo a
mesma, Guilherme.
Ela disse olhando em sua íris castanha. Não queria deixar margem
para esperança. Era hora de aceitar o fim.
— Amor, tenha calma, você precisa de tempo… – Ele tentou.
— Não, Guilherme – rebateu calmamente. – Vamos ser adultos.
Vamos terminar enquanto ainda existe uma pequena consideração entre
nós. Falhamos um com o outro. Deixamos de ser um casal a partir do
momento que deixamos de nos respeitar.
— O problema é que eu te amo, Raissa. Eu prefiro passar por cima
do meu orgulho a te perder.
Raissa sentia-se cansada, ela não queria dizer aquilo, mas precisava
que ele aceitasse o fim. Ela soltou o ar devagarinho, fitou o rosto
daquele homem que amou por tanto tempo e disse:
— Eu me apaixonei por ela – confessou. Sua intenção não era
magoá-lo, mas ela queria ser sincera.
Uma onda de irritação perpassou pelas íris castanhas. A mandíbula
estava cerrada, e Guilherme segurou o volante com força, numa
tentativa de conter a própria raiva. Raissa sentiu uma pontada de medo
começando a pinicar. Talvez tivesse sido dura demais ao jogar aquela
verdade tão crua, mas a morena estava cansada e dolorida para ser
sensível como sentimento do seu ex-parceiro.
— Enviarei suas coisas pelo motorista. – Ele disse por fim, sem
encará-la.
A morena desceu do carro e caminhou para casa. Ao entrar,
encontrou os braços que tanto precisava.
— Tá doendo, Rê, tá doendo mais que muito.

Na manhã seguinte, após avisar seus empregadores, as duas


retornaram ao hospital. Raissa determinou para si mesma que não
sofreria por causa do rompimento com o Guilherme. Apesar do seu
erro, ela saiu daquela relação sabendo que dera o seu melhor. Agora
direcionaria todas as suas energias na recuperação do pai.
— Como ele está, mãe? O que os médicos disseram? – perguntou a
advogada.
— Calma, ele está bem. Estável, sua pressão arterial está ótima.
Graças a Deus, não precisa de ajuda para respirar. Se tudo continuar
bem, logo ele opera. Conversei com a médica hoje de manhã, gostei
dela, ela passa muita confiança.
— A senhora perguntou se essa cirurgia é perigosa?
— Toda cirurgia tem seu risco, mas esse é um procedimento padrão
– disse Renata, ganhando a atenção das duas mulheres. – Irão sedá-lo, e
depois o médico vai serrar o esterno. – Thaís e Raissa arregalaram os
olhos. Os olhos negros se perderam em algum ponto da lanchonete do
hospital, onde conversavam com mais privacidade. – Primeiro, sangrará
um pouco até chegar à cartilagem óssea. Uma vez chegado lá, vão
inserir um retrator que abrirá o saco pericárdico. – Um sorriso estranho
se formou em seus lábios. – Farão um ecocardiograma visual, Raissa.
Eles vão observar o coração do seu pai. – Para Renata, parecia uma
sucessão lógica que maquinava em sua cabeça, observou Raissa
intrigada. A loira falava com a mesma propriedade que a advogada
falava, quando se tratava de leis e processos. Aquilo para elas era
familiar. – Feito isso, vão reparando e dando pontos. Depois é só
esperar que a natureza siga seu curso. – Ela piscou muitas vezes, como
se tivesse saído do seu insight. Com a voz mais séria e o olhar mais
preocupado, disse: – O que me preocupa é o tumor, porque ele está se
espalhando com muita rapidez, ele tem que iniciar o quanto antes o
tratamento.
— Como sabe disso tudo? – perguntou a morena.
— Pra mim, está mais que claro, você foi ou é uma médica, menina
– determinou dona Thaís, se levantando para voltar ao quarto do
marido.
Apesar daquela certeza que começava a se instalar, Raissa via
confusão nos olhos escuros. Não deve ser nada fácil para ela, saber de
tanto, e não saber de nada quando se trata da própria história, pensou
a advogada.
— Essa é uma pergunta que me faço a todo o momento –
respondeu, triste. – Não sei como posso tocar piano. Só sei que quando
estou diante dele, meus dedos criam vida e meus olhos reconhecem
aqueles emaranhados de símbolos, mas isso aqui – disse se referindo ao
ambiente hospitalar. Ela não terminou a frase. Renata deu um suspiro
pesado e se questionou: – Como posso ler laudos médicos, diagnosticar
doenças? Falar sobre o procedimento de uma cirurgia cardíaca? Não sei
como posso entender a linguagem da medicina, se nem consigo
enxergar a escuridão de meu passado. – Seus olhos marejaram. – Mas é
uma sabedoria gritante, Raissa, assim como tocar piano, eu apenas sei.
— A única explicação plausível é que você seja médica – pontuou
a morena, analisando a situação de forma mais analítica. – E não
qualquer médica, porque cirurgia cardíaca é algo muito específico, Rê.
Se você for médica, tudo muda, porque cria um fio para puxarmos.
Pode haver milhões de pessoas por aí, mas não há milhões de médicos
no país, muito menos no Rio Grande do Norte. Podemos refinar nossa
busca – disse Raissa, eufórica com a possibilidade.
— Você nunca vai entender. – Ela rebateu triste. – Eu só quero ser a
Renata, só quero ser o Girassol.
— Já, já, fará dois anos....
— Não me tira isso, Raissa. Não me tira essa vida.
Raissa não desistiria, mas aquele não era o momento. As duas se
levantaram e foram até o quarto. Quando chegaram, se depararam com
o Guilherme. Ele estava com a mesma roupa da noite anterior, todo
amassando e cheirando a bebida. Quando viu as duas mulheres, seus
olhos se cravaram em Renata. Raissa conhecia aquele olhar de fúria,
instintivamente, com adrenalina em seu coração, colocou-se frente à
loira.
— O que está fazendo aqui? – perguntou, com tremulação de medo
em seus olhos.
— Já contou para seus pais que você andou me traindo com
essazinha? – disparou, sarcástico.
— Que absurdo é esse, Guilherme? – perguntou seu João,
sentando-se na cama.
— Vai embora. – Raissa pediu, pois não queria abrigar ali diante
dos seus pais.
— Melhor você ir – disse Renata, enfrentando-o.
Raissa puxou a loira para longe do homem, tinha medo de que ele
pudesse agredi-la, os dois senhores não sabiam o que diabo estava
acontecendo. Guilherme chegou ali embriagado procurando pela Raissa
e falando que ela o largou para ficar com uma mulher.
— Vai embora, antes que eu chame a segurança – ameaçou a
advogada, ainda tentando manter a calma e evitar um escândalo.
— Não sem antes contar aos seus pais que tipo de mulher eles
criaram. Uma vagabunda que se deitou com a primeira…
Furiosa, Raissa lhe deu um tapa seguro no rosto. Contudo,
Guilherme continuou resoluto, tornando claro que não tinha intenção de
ir a lugar algum.
Seu João sempre foi um homem calmo, mas se tinha uma coisa que
o fazia se transformar num bicho feroz era quando alguém mexia com
sua família. No mesmo instante, o homem se livrou do acesso do seu
braço e se meteu entre os dois.
— Não ouse ofender a minha filha! – gritou o senhor, apontando o
dedo riste para o ex-genro.
— Sua filha é uma vagabunda que me traiu debaixo do meu
nariz…
Guilherme foi interrompido com o impacto do punho do senhor
João, que provavelmente quebrou o seu nariz com o soco. O sangue
jorrou no mesmo instante.
— Nunca mais ouse ofender minha filha, seu canalha – gritou,
furioso, querendo ir para cima do advogado, mas foi segurado pela
esposa e por Renata.
Houve o maior alvoroço no quarto. Seu João parecia um touro
bravo, Raissa saiu puxando Guilherme pela camisa para fora dali. O
advogado ensandecido, cuspiu ofensas em cima da ex-noiva. Ele foi
segurado por dois seguranças que tentavam arrastá-lo para fora. Dona
Thaís saiu do quarto furiosa e foi sua vez de destilar sua raiva, calando-
o com um tapa na cara.
— Eu o via como um filho – disse a mulher. Guilherme pareceu
perceber a grande besteira que tinha cometido. Ele tinha uma grande
admiração e carinho pelos pais de Raissa, que sempre o trataram como
um filho. – Nunca mais chegue perto da nossa família e fique longe da
minha filha – disse a mulher de forma calma e fria. Embora por dentro
estivesse explodindo de raiva e decepção.
— Dona Thaís, me desculpe – pediu, mas era tarde demais.
— Não, Guilherme, eu não o desculpo.
Derrotado, Guilherme deixou ser levado pelos dois seguranças.
Raissa tentou se aproximar da mãe, mas a mais velha a repeliu.
Sem dizer nada, as duas voltaram ao quarto.
— Você precisa ter calma – disse Thaís, ao ver o homem
caminhando de um lado para o outro.
— Aquele moleque… – A raiva ainda borbulhava como larva de
vulcão no pobre homem. – A verdade! – exigiu diretamente a filha.
— Pai… – Raissa não estava acostumada a ver o pai assim, ela se
assustou, não só pela agressividade do senhorzinho, mas também por
causa da sua condição de saúde. – Estou esperando – gritou.
A morena não encontrou rota de fuga. Renata se posicionou ao seu
lado e segurou sua mão, numa menção silenciada de que estaria com ela
para o que desse e viesse. Raissa lhe olhou com ternura, se encantou um
pouco mais pela jovem.
— Eles têm o direito de saber, Ray – disse Renata.
Raissa viu que era hora de contar as nuances daquela história, que
começara muito antes daquela moça sem memória chegar. Ao final, seu
pai ficou tão alterado que acabou passando mal.
— Tirem essas pessoas daqui – falou um jovem médico. – Preciso
de verapamil 5 mg – pediu para a enfermeira que o acompanhava.
— A pressão está caindo. – Renata gritou. – O que pretende dar?
— Verapamil 5 mg – respondeu o médico, inseguro.
— Você está louco? Com isso você irá matá-lo. – Sua voz soou
rude, acentuando a arrogância que lhe era própria. Ela empurrou o
jovem e examinou o paciente. – Ele está tendo fibrilação
atrioventricular. – Dê 100 mg de lidocaína. – O jovem estava estagnado,
seu rosto, pálido e nitidamente assustado. Ele era um interno no seu
primeiro mês de residência médica. – Dê isso agora. – O grito da
Renata fez Raissa e Thaís darem um pulo assustadas. A postura da loira
era impressionante.
Diante da inércia do jovem residente, a enfermeira em movimentos
rápidos preparou a medicação e entregou à gaúcha, pois também
concordava com a medicação indicada.
— Aqui estar, doutora. – Essa curta frase foi um estalo dentro da
mulher sem memória. Ela pegou a seringa e aplicou a medicação sem
hesitação.
Os olhos de Renata observavam a resposta do paciente. Os minutos
transcorreram devagar.
— Ele estabilizou – disse a enfermeira.
Todos respiraram aliviados. Renata ainda carregava uma carranca
fechada. Ela examinou minuciosamente o paciente, depois lhe colocou
uma máscara de oxigênio. A adrenalina do momento começou a esvair
do seu corpo. Ela, então, virou-se e reparou nos três pares de olhos
arregalados olhando em sua direção, mas apenas um ganhou sua
atenção. Eram os olhos claros do jovem médico. De um jeito bastante
arrogante, disse:
— Obrigada – agradeceu a enfermeira que o ajudou. – Agora
chame um médico de verdade.
— Já bipei a doutora Sampaio.
Renata afastou-se da cama e caminhou até a janela, precisava de ar.
Sentia-se estranha, sua cabeça começou a latejar. Antes que Raissa e
sua mãe falassem qualquer coisa, a cardiologista entrou no quarto
apressadamente.
— O que houve? – perguntou.
Todos olharam-se entre si. Hesitante, o jovem médico saiu da sua
estagnação e relatou a ocorrência de minutos atrás.
— Ele estava tendo uma fibrilação atrioventricular, foi ministrado
lidocaína para colocá-lo no ritmo normal.
A cardiologista examinou o paciente, e, por fim, direcionou sua
atenção ao jovem.
— Ótimo trabalho, doutor Pedro. Você salvou a vida desse homem.
Ao ouvir aquilo, Raissa e dona Thaís olharam imediatamente para a
mulher encostada na parede da janela. Dona Thaís correu até ela e
abraçou tão forte o corpo da loira que chegou a doer. Em seguida, ela
desatou a chorar. Renata também se permitiu chorar.
— Você o salvou – dizia dona Thaís.
— Eu não posso perdê-lo, tia, eu não quero perdê-lo.
A médica ficou sem entender. Vendo a confusão da médica e a
vergonha do jovem residente, a enfermeira a chamou num canto e
elucidou a situação à cardiologista. A expressão da médica mudou
drasticamente, lançou um olhar mais que furioso ao residente, pois, por
pouco, não matara aquele paciente. Falaria com ele, mas não ali. Ao
invés disso, se dirigiu à loira do outro lado do quarto.
— Mais uma vez me surpreendendo, senhorita Fernandes – disse,
mas Renata nada falou. – Agora preciso que ele descanse e que só fique
no quarto o seu acompanhante.
— E eu quero que esse médico fique longe do meu pai, porque
ficou muito claro que seu erro iria matá-lo – disparou Raissa, irritada.
— Não se preocupe. O doutor Pedro será penalizado por sua
conduta.
Dito isso, todos tiveram que deixar o paciente descansando.
Já no corredor, Raissa teve dificuldade de fitar a mãe. Renata
também aprendeu a conhecer as expressões daquela senhora. Ela não
estava apenas triste com toda aquela situação, ela estava furiosa,
magoada e decepcionada.
— Mãe – chamou Raissa.
— Quero que vocês duas vão para casa – ordenou a mais velha. –
Preciso de um tempo.
— Prefiro ficar – retrucou a filha.
— Melhor irmos – sugeriu Renata sabiamente, ela sabia que o casal
precisava de tempo para processar as coisas. Não se tratava apenas de
um relacionamento rompido, ia muito além disso.
— Eu espero que seja a última vez que você esconda algo desse
tipo de mim… – disparou. Seus olhos se encheram de lágrimas. Toda
sua fúria não era pelo relacionamento das garotas, mas pela decepção
que teve com o Guilherme e por ficar magoada pela filha não ter
confiado nela para contar que, mesmo que sutis no começo, Raissa
estava vivendo um relacionamento abusivo, ao ponto de sofrer
agressões físicas, no final.
— Me desculpa, mãe, eu não queria que…
— Antes dele, você, Raissa – disse enxugando as lágrimas. – Você
é a nossa filha, sempre apoiamos seu relacionamento, porque pensamos
que havia respeito entre vocês.
Thaís se recompôs, agora alternou o olhar entre as duas garotas.
— Repito o que já lhe disse – falou diretamente à filha. – Pouco me
importa se você namora um homem ou uma mulher, apenas peço que
respeitem onde mora e as pessoas que as circundam. Sejam discretas.

◆◆◆
CAPÍTULO 28
Quando tudo muda

Meses depois.
Após a turbulência do rompimento, toda aquela tensão começou a
esmorecer. Dias depois do episódio, Guilherme recuperou a sensatez e
tentou se desculpar com o casal, porém, o jovem não foi recebido. João
e Thaís não queriam vê-lo. Em respeito, o advogado se afastou
definitivamente daquela família.
Raissa também resolveu dar uma pirueta em sua vida profissional.
Alguns dias depois, foi sua vez de fechar um ciclo. Doutor Calheiro,
alheio à verdadeira motivação da sua mais brilhante advogada, ficou
chocado ao chegar em sua sala e deparar-se com o pedido de demissão
de Raissa. O homem que sempre admirou o profissionalismo e a
competência da jovem tentou fazê-la retroceder, até lhe ofereceu
sociedade, mas Raissa estava decidida, não só por causa de tudo que
houve com o Guilherme, pois não haveria mais clima para trabalharem
juntos, mas também porque aquele trabalho já não a fazia feliz. Após
findado esse ciclo, ela direcionou toda sua atenção para a recuperação
do seu pai.
João seria o novo protagonista da história. Aquele senhorzinho de
riso fácil e palavras doces lutou bravamente pela vida, passou por uma
delicada cirurgia cardíaca e posteriormente a remoção do tumor. A
família Fernandes passou por muitos altos e baixos ao longo dos meses
que se seguiram. Mas no fim, ele venceu.
Já a relação entre Raissa e Renata foi muito bem recebida na
família. A cada dia, elas pareciam mais conectadas uma à outra. Era
uma relação leve, pautada em muita cumplicidade, amizade, respeito e
paixão. Amor, bem, amor era uma coisa que ainda precisava criar
raízes. Raissa se apaixonava a cada dia pela moça sem memória que
levou para sua casa, contudo ainda existia aquele: porém, todavia,
contudo e por aí vai. Seus instintos ainda a deixavam na defensiva, a
proibição de amá-la se mostrava presente, mas o que tinham parecia
bastar para as duas, pois o que tinham era o suficiente para fazê-las
feliz.
Até que tudo volta a mudar, porque a vida é assim, nada é
permanente.

— Amor, nem vamos precisar comprar os abadás do bloco, porque


um dos patrocinadores da festa é a empresa onde o Rogério trabalha,
então o caneludo (apelido do rapaz) conseguiu os ingressos para a trupe
toda. Uhuhuhu – comemorou Raissa.
Renata sorriu e continuou organizando as roupas no guarda-roupa.
Era um sábado à tarde, Raissa estava jogada na cama conversando com
os amigos pelo grupo de WhatsApp sobre a festa de Carnaval fora de
época que ocorreria dali a algumas semanas na cidade. O Carnatal era
uma festa muito esperada pelos natalenses. Raissa e seus amigos eram
apaixonados pelo Carnaval fora de época da cidade.
Renata sentiu novamente aquela constante sensação, não apenas de
déjà vu, era algo mais, que aumentava quando estava entre os amigos
da Raissa. Eles eram sempre muito agarrados uns aos outros, muito
parceiros. E aquela festa a inquietava. Inquietava de uma forma muito
intensa. Mas não era só isso que vinha a inquietando, Raissa era outra
pessoa que lhe causava uma sensação, uma sensação que crescia dentro
de si. Renata não conseguia nomear, não conseguia entender, ela só
conseguia sentir. Enquanto guardava as roupas no armário, Renata se
perdeu no fluxo dos seus pensamentos.
Raissa era filha única. O que a fez se apegar demasiadamente aos
amigos, a Dora principalmente, pois a fisioterapeuta assumiu o posto de
sua melhor amiga, ou irmã, como a advogada a intitulava. Esse ponto já
fazia a sensação começar a se arrastar para dentro de si. Depois vinha o
Danilo, ele era o cara mais doce que Renata tinha conhecido desde que
acordou naquela cidade, ele ocupava o posto de segundo melhor amigo
da advogada. O que os tornavam um trio, um trio muito inseparável. E a
sensação tomava volume. Era a vez das peculiaridades da sua
namorada, que fazia algo ebulir.
A simples preferência por sorvete de chocolate com calda de
morango; a paixão pelo ritmo local, ou seja, forró; o grude com os
amigos; era o jeito que se dava bem com todo mundo; sua leveza; sua
meiguice; seu amor pela família. Raissa brilhava sobre a íris escura,
mas era um brilho semelhante, semelhante a outro alguém. E a sensação
inundava a loira que a levava à angústia, principalmente depois que as
duas formaram um casal.
Raissa levantou-se de sobressalto quando viu a loira caindo no
chão. Renata apagou. Ao contrário das outras vezes, a morena não
conseguiu fazê-la retornar. Desesperada, Renata foi levada ao hospital
às pressas. A loira foi atendida e passou por diversos exames. Algumas
horas depois, ela já descansava num quarto, enquanto Raissa
conversava com seu médico no consultório.
— Mas tem que haver uma maneira de ajudá-la. – Raissa falava
com o médico.
— Entendo sua preocupação, Raissa, mas já fiz tudo que está ao
meu alcance. O quadro clínico da Renata é muito complexo, sinto-me
frustrado em não poder ajudá-la. Precisamos fazer exames mais
detalhados, mas nossa estrutura não nos permite isso. Esse caso está
além do meu conhecimento acadêmico – confessou o neurologista,
derrotado.
— A hemorragia tem piorado muito. Tenho medo…
— O cérebro está sobrecarregado. Toda vez que tem flashbacks, é
como se ela acumulasse centenas de lembranças em fração de segundo.
Perigoso por sinal. Raissa, você precisa convencê-la a aceitar a se
consultar com o doutor Dantas. Ele é neurocirurgião especialista em
déficit cerebral e ficou muito interessado no caso da Renata. Está à
frente de uma pesquisa promissora sobre amnésia dissociativa.
— O senhor pode conseguir uma consulta com ele?
— Posso tentar, ele tem uma agenda muito apertada, porém, somos
amigos de longa data, vou pedir como algo pessoal. Porém, dessa vez,
vocês terão que ir até ele. Ele atende num hospital em Recife, o
contatarei hoje mesmo. Assim que tiver uma resposta, aviso você.
— Obrigada, doutor.
Raissa faria o possível para levar Renata a essa consulta, mesmo
contra vontade da namorada.

◆◆◆

FASE 2
Eu sei que é você
CAPÍTULO 29
Perdas
Existem perdas suportáveis e perdas irreparáveis. É difícil lidarmos
com qualquer uma delas, não importa o apoio da família nem o carinho
dos amigos, nenhuma palavra é capaz de preencher o vazio que fica em
nossa existência. Muitos conseguem prosseguir, outros não. A morte
chegou de forma devastadora na vida da jovem Maria Eduarda, seu
mundo tornou-se opaco e sem vida. A perda prematura da esposa, levou
consigo o que Duda tinha de melhor, sua alegria pela vida. Luiza se foi
deixando a mulher grávida de oito meses e com duas crianças pequenas.
Foram dias escuros para a médica, ela teve que passar por um parto
difícil e uma depressão profunda. Demorou para conseguir lidar com
sua perda. Na verdade, seu coração nunca conseguiu aceitar a morte da
esposa. Por mais que tentasse aceitar o luto, Luiza se mantém viva em
seu coração até os dias atuais.
No campo profissional, a jovem ganhou destaque em sua profissão.
Finalmente acabou de terminar sua residência, onde se especializou em
neurologia. Hoje ambicionava a carreira de neurocirurgia, trabalhava
duro e com muita dedicação, tornou-se assistente do ícone doutor
Romero Dantas. Um velho chato e extremamente exigente, mas era o
melhor no que fazia, tinha reconhecimento internacional e era
considerado um dos melhores neurocirurgiões do país. Há três anos foi
convidado pela dona do hospital para encabeçar uma promissora
pesquisa, que poderia revolucionar a medicina moderna.
Aquela garota que costumava ser tão inconsequente no passado,
tornou-se uma mulher de fibra, uma mãe maravilhosa e uma
profissional excepcional. Duda já não carregava seu sorriso fácil, nem
seu jeito de menina travessa, mas se esforçava para manter sua luz
acesa.
O pequeno João Gabriel cresceu, hoje já era um rapazinho com
onze anos, ao contrário de outrora, era um garoto mais tranquilo, no
entanto não deixara de ser um menino travesso, ora ou outra, vinha com
uma novidade deixando a mãe atarantada[8]. Mas ele era um grande
parceiro para sua mãe Duda, foi ele que esteve lá o tempo todo
segurando sua mão, confortando-a e ajudando-a a voltar à vida. Para a
médica, ele era seu pequeno homem.
A pequena Vitória estava com cinco anos, mas vivia em pé de
guerra com a irmã mais nova Maria Luiza, vulgo, Malu, que era uma
verdadeira terrorista mirim, mesmo ainda tão pequenina.
Maria Eduarda achava uma graça a Malu, era uma mistura
interessante da Duda e da Luiza. Ela herdara os traços da gaúcha, pois
era sua filha biológica, mas a pequena tinha a personalidade da outra
mãe. A garotinha de três anos conseguiu colocar os dois irmãos no
chinelo. E como conseguiu essa mistura? Bem, o casal, na época,
buscou pela segunda vez a participação da versão masculina da Maria
Eduarda, ou seja, o Lucas.
Na primeira gravidez foi Luiza que pediu ao amigo que fosse seu
doador genético. Não só porque o rapaz era seu segundo melhor amigo,
mas porque ele era uma pequena parte da Duda, seu amigo irmão. O
rapaz explodiu de alegria, mas só aceitou, sob a condição de ser pai
também. Assim como foi do filho da Amanda com a Camila. As
meninas o amavam e confiavam nele. Então veio a Vitória, que é uma
garotinha linda, uma cópia fiel do pai. Doce, inteligente, amorosa e
muito sensível. Fisicamente era uma mistura da Duda e do Lucas, pele
morena, cabelos escuros, olhos castanhos, uma graça de menina.
Mas Maria Eduarda queria cinco, esse era o plano, embora só dela,
porque Luiza só concordou com três. Devido ao trauma passado, a loira
não conseguia imaginar passando por uma gravidez, ia muito além do
que seu coração permitia, mas sua mulher queria muito um bebê seu,
então Duda fecundou o óvulo da gaúcha.
— Meu Deus, loira, desse jeito, vou trabalhar apenas para pagar
pensão – brincou o arquiteto. – Caio, Vitória, agora mais um. – Fez uma
cara pensativa. – Sua sorte é que amo ser pai, é lógico que vou fazer a
mistura com você, minha loira lindaaaa – disse, pegando Luiza nos
braços e a rodopiando no ar. Os dois gargalhavam. – Vou amar ser pai
de novo, Isa – disse com alegria e sinceridade. – Ainda bem que minhas
mulheres são todas muito bem financeiramente, então posso espalhar
meus genes nessas famílias lindas à vontade. – Riram juntos.
Assim veio a pequena Malu, a loirinha travessa dos olhos marrons
que Luiza não teve a oportunidade de conhecer.
DIAS ATUAIS
— Vamos, Duda, você precisa sair – insistia Amanda.
— Amanda, estou cheia de paciente, não posso me ausentar do
hospital. Muito menos para pular micareta – respondeu sem tirar os
olhos do computador. – E tem meus filhos, esqueceu? Tenho logo três.
— Nem vem com essa desculpa, tenho certeza que a tia Eduarda
vai amar ficar com meus sobrinhos. Vamos, amiga, você sempre curtiu
micareta. Já fiz nossas reservas. Será sua chance de pegar a ruiva
gostosa – argumentou Amanda, maliciosa.
— Amanda, usando suas palavras – disse Duda, direcionando sua
atenção à amiga. – Eu e a Mariane somos do mesmo espécime –
replicou, revirando os olhos. – E outro detalhe, você sabe muito bem
que ela está com os quatro pneus arriados pela tal da Giovanna.
— Meu Deus, o que está acontecendo com essas mulheres? –
replicou Amanda de um jeito inconformado, mas ela era Amanda, ou
seja, não daria por vencida diante do primeiro NÃO. – De toda forma, a
Mariane ainda está solteira, e você também. Ela é toda perfeitinha, bem
seu estilo. Vocês fariam um belo casal.
— Mariane é minha amiga, então pare de me jogar para cima dela
– reclamou Duda, impaciente.
— Se não quer ela, tudo bem – disse Amanda. – Até porque a
Giovanna vai também, então você não teria a menor chance – disse,
divertida.
Duda rolou os olhos. Sua amiga não tinha jeito, vivia jogando
mulheres para cima dela. A vítima em questão era a Mariane, uma linda
ruiva que trabalhava como psiquiatra no hospital.
— Amiga, a vida não pode ser só trabalhar e cuidar de crianças –
disse Amanda, ternamente.
Duda soltou o ar com força, ela sabia que sua amiga tinha razão,
essa tinha sido sua rota de fuga nos últimos anos.
— Não posso me ausentar por quatro dias – contra-argumentou. –
O tempo de gandaiar passou, está na hora de crescer, Amanda. Já
estamos com trinta anos nas fuças.
— Você fala como uma velha – resmungou a cardiologista.
— E você parece ter dificuldade de largar o osso da adolescência –
disse, ácida.
— Você roía muito esse osso há três anos atrás – rebateu. – Luiza
se foi, mas você continua viva, Maria Eduarda.
A conversa foi encerrada. Duda levantou-se e saiu da sala. A
morena soltou o ar com força, seu coração doía demais ao ver sua
amiga se definhando. Depois da morte da mulher, raramente Duda saía
com os amigos. Sempre arrumava uma desculpa, preferindo sua
solidão. Se relacionar com alguém soava como um absurdo para Maria
Eduarda. Ela sentia necessidade quase obsessiva em ser fiel à memória
de Luiza. Contudo, Amanda não desistiria de trazê-la de volta à vida
social.

◆◆◆
CAPÍTULO 30
O destino
O que você faria se visse alguém que já morreu? Estaria tendo
alucinação? Como isso se explicaria? A vida está brincando com você?
Difícil responder.
A grande custo, Amanda conseguiu convencer sua melhor amiga a
viajar para o estado vizinho no intuito de curtirem o Carnaval fora de
época. Duda não parecia muito animada com os planos das amigas, mas
se livrar da Amanda era mais difícil que ir nessa tal micareta.
Duda bem que tentou resistir, mas sair com sua melhor amiga era
um convite certo para a diversão, então a morena acabou se entregando
à folia. Ela estava no segundo dia de festa, cansada de correr atrás do
trio, por isso resolveu voltar ao camarote. Encostou-se no parapeito e
ficou olhando para a multidão lá embaixo. Sua atenção foi roubada ao
avistar um grupo de pessoas. Havia alguns rapazes e cinco moças, uma
mulher se destacou aos seus olhos, mas a garota estava de costas para
Duda. Sua curiosidade foi tanta que a morena se deslocou em busca de
um ângulo melhor para vê-la. Era uma adrenalina estranha, e, de
repente, a mulher virou o rosto. Duda sentiu uma martelada forte no
peito. Olhou ao redor em busca das suas amigas, mas Mariane,
Giovanna, Amanda e Camila tinham ficado na tenda eletrônica no
interior do camarote.
— Não pode ser… – sussurrou, com os olhos incrédulos voltando a
olhar para o grupo lá embaixo.
Um arrepio percorreu sua espinha, e Duda correu, correu como
nunca tinha corrido antes, descendo escada abaixo. Ao chegar na rua,
atravessou a corda e saiu em disparada, buscando entre os rostos aquele
que jamais se esqueceria. A morena continuou a caminhar, empurrar e
procurar. Suas pernas insistiam, seu coração incentivava, mas seus
olhos não encontravam. Então, veio a dor da perda voltando a se
arrastar para a superfície, e os olhos castanhos ficaram confusos. Será
que estou alucinando?, perguntou-se Maria Eduarda. Contudo, quando
tudo parecia perdido, o destino. Nesse exato momento, Duda passou a
acreditar no destino, pois, pela segunda vez, ele fizera seu caminho se
cruzar com ELA.
A morena caminhou apressadamente até aquela garota que estava
com as mãos nas têmporas e os olhos fechados exibindo uma expressão
de dor.
— Luiza! – disse Duda. Completamente perplexa ao ver a mulher à
sua frente.
Ao escutar aquele nome, Renata, em meio à dor excruciante na
cabeça, abriu os olhos. A loira deparou-se com um par de olhos
castanhos perplexos, eles não piscavam, eles apenas olhavam para ela,
penetrando sua íris negra. O tempo parecia ter congelado, até que a
garota dos cabelos negros falou:
— Você… Luiza, como… – Duda tentou, se esforçou, mas as
palavras não saíram da sua boca.
Renata piscou e olhou para a garota que a abordou. Esses cabelos,
disse a loira de forma inaudível. A dor veio mais forte, seu instinto mais
primitivo gritou: corra. A necessidade primitiva de sobrevivência
assumiu o controle dos seus músculos e, antes mesmo de saber o que
estava fazendo, Luiza/Renata correu, correu para longe.
Duda demorou demais para sair do seu estupor. Quando isso
ocorreu, já era tarde demais. Ela buscou novamente no meio da
multidão, mas não encontrou. Uma hora depois, voltou ao camarote aos
prantos. Duda foi até Camila e a puxou de forma brusca.
— Luiza está viva… Luiza está viva! – gritou.
As quatro garotas lhe olharam assustadas. Amanda pegou Duda
pelo braço e a arrastou para um lugar menos barulhento. Duda parecia
transtornada, gritava e chorava ao mesmo tempo, dizendo que Luiza
estava viva.
— Calma – pediu Amanda. – O que houve, Duda? Que porra você
bebeu?
— Luiza está viva. Eu acabei de vê-la – disse com dificuldade.
Amanda fez cara feia, achou que a amiga estava bêbada ou
drogada. Camila se aproximou. A mera menção do nome da irmã já lhe
causava tristeza. Duda se desvinculou da amiga e buscou os olhos azuis
da cunhada.
— Estou falando sério. Não sei como, mas LUIZA ESTÁ VIVA –
falou pausadamente, tentando controlar o turbilhão de suas emoções.
Camila olhou aflita para a esposa, seus olhos se encheram de
lágrimas e foi automático, Camila era outra pessoa que partilhava da
mesma resistência da Duda. A loira não conseguia aceitar a morte da
irmã. Seu coração não aceitava, para ele, Luiza embarcou numa longa
viagem sem data de retorno, foi só assim que conseguiu superar a
depressão que a abateu, após a morte da sua melhor amiga, porque, para
ela, Luiza era mais que sua irmã, era sua melhor amiga.
— Eu vi a Luiza. Juro pelos meus filhos que eu vi a Luiza – disse,
séria.
Amanda já previa o fim daquela noite.
— A Isa morreu, Du…
E quando essa pequena frase era pronunciada, acontecia um
tsunami. Camila e Duda se desintegraram em lágrimas.
— Vamos levar elas para o hotel – sugeriram Mariane e Giovanna
ao mesmo tempo.
E assim foram.

O dia tinha raiado, Duda não conseguiu dormir, fingiu tomar o


remédio só para que Amanda a deixasse sozinha. Ela sabia o que tinha
visto. Luiza era real. Com esses pensamentos, tomou um banho gelado
e decidiu procurá-la sozinha. Pegou o carro e saiu pela cidade. Duda
vagou o dia inteiro, entrando e saindo de lugares na esperança de ver
aquele rosto novamente. As horas passaram, e nada. Ela voltou para o
hotel no final da tarde, exausta e arrasada.
— Onde você estava? – questionou Amanda. – Eu estava morrendo
de preocupação e nem para atender a droga do celular, Duda!
— Preciso achá-la, eu sei o que eu vi.
Amanda respirou fundo. Olhou para a amiga e pediu paciência ao
universo para lidar com a negação da irmã.
— Vai tomar um banho, vou pedir uma comida para você,
provavelmente não comeu nada – disse com ternura. – Aí conversamos
com calma, e você me conta exatamente o que viu ontem à noite.
A jovem apenas assentiu. Tudo que precisava era do apoio da sua
melhor amiga. Meia hora depois, ela estava sentada na mesa lanchando
com Amanda.
— Onde está Camila?
— Foi às compras. Aquela mulher ainda me leva à falência –
reclamou a morena.
— Bem empregado para você – brincou Duda.
Amanda sorriu. Agora alimentada e mais calma, era hora de
conversarem. A cardiologista precisava tirar aquela loucura da cabeça
da amiga, vieram ali para se divertir, não arrumar mais neura para
cabeça obsessiva da Maria Eduarda.
— Me diga como era essa mulher. Como foi que aconteceu?
— Bem, eu estava lá no camarote vendo o trio passar, tinha umas
pessoas lá embaixo, um grupo que lembrou a gente nos carnavais. Eu
mudei de lugar, então a vi. Amanda, tenho certeza absoluta que era a
Isa.
— Você sabe que isso não é possível, não sabe?
— Eu desci do camarote para procurá-la e, quando pensei que
estava ficando louca, a vi. Me aproximei, falei com ela, Amanda.
— Você falou com a mulher? – perguntou, desconfiada. – O que ela
disse?
Duda encolheu os ombros e abaixou os olhos.
— Eu fiquei nervosa… Gaguejei mais do que falei – confessou.
— E como era essa mulher? – Tentou não opinar antecipadamente.
— Era a Luiza – afirmou.
Amanda lhe olhou feio, esperando uma resposta mais completa.
— Loira, linda, estava bem bronzeada, seus cabelos loiros eram
bem curtos, estava mais forte...
— Elucidado o mistério! – interrompeu Amanda. – Duda, você se
enganou, deve ter visto uma mulher parecida com a Luiza e acabou se
confundindo. Juntando com o teor de álcool em sua corrente
sanguínea…
— Não estava bêbada, Amanda – replicou.
— Duda, pense comigo. Luiza tinha os cabelos longos, e não
curtos. Era uma branquela, não uma bronzeada – suavizou a voz. –
Luiza morreu, e você sabe disso. Quanto mais demorar para aceitar,
mais se machucará. Já se passaram três anos, amiga. Hora de deixá-la ir.
Era o que Duda mais queria, sua vida seria infinitamente mais fácil.
O problema era que não importava quanto tempo tenha passado, seu
coração não aceitava o fim.
— Você tem razão – fingiu concordar.
— Até que enfim – disparou Amanda, aliviada. – Melhor
voltarmos para casa.
— Não! – exclamou. – Vamos ficar até o final da festa.
Amanda acabou concordando. Duda queria ficar por um único
motivo, encontrar Luiza. As garotas foram brincar nas noites seguintes.
Enquanto as amigas pareciam se divertir, a morena se mantinha em sua
vigília, buscava entre aquelas centenas de foliões aquele rosto familiar.
Os dias seguintes foram iguais, Duda passava o dia inteiro rodando pela
cidade, e a noite pela micareta. Sua busca se tornou obsessiva,
principalmente porque a festa tinha acabado e elas precisavam voltar
para casa.
— Duda, já chega dessa procura infundada, voltamos para casa
hoje.
— Preciso encontrá-la.
— Você vai encontrá-la no cemitério, Maria Eduarda – explodiu
Amanda. A morena estava exausta daquela loucura.
— Ela não morreu…
Duda ficou enfurecida diante da afirmação da amiga. Sem se
conter, foi para cima dela com toda sua força. Amanda, que sempre foi
mais forte, tentou conter a fúria da melhor amiga.
— Luiza morreu. – Amanda continuou gritando.
— Cala boca, sua vagaba… – xingou.
Amanda não calou, ela repetiu aquela dolorosa frase até que ficasse
impregnada em suas mentes.
— Nós a perdemos, Duda. Ela se foi.
Os olhos cor de mel que costumavam ser tão divertidos estavam
inundados. Amanda chorou. Deixou todas as lágrimas descerem de uma
só vez. Durante todo esse tempo se esforçava para se manter forte, por
causa da sua melhor amiga, por causa da sua esposa, mas ela também
sofria. Luiza havia conquistado um lugar muito especial no seu coração.
Então, ela sentia aquela perda.
— Eu sinto tanta falta dela.
— Eu sei miguxa, eu sei…
Uma buscou conforto nos braços da outra conforto. Passado um
tempo, Amanda finalmente se recompôs e sugeriu:
— Sabe o que a gente vai fazer agora?
Duda negou com a cabeça.
— Vamos beber, cair e levantar – disse, sorrindo.
Duda sorriu de volta.
— Como nos velhos tempos? – perguntou a neurologista.
— Exatamente como nos velhos tempos.
Duda e Amanda saíram sozinhas nessa noite e tomaram o maior
porre de suas vidas.

◆◆◆
CAPÍTULO 31
A paciente X

Recife-PE, um mês depois.


— Mãe, o que faremos? Duda insiste no assunto e pretende
contratar um detetive particular para encontrá-la.
— Sua tia já marcou uma consulta com o psiquiatra dela e também
farei meu reforço.
— Até parece que ela vai querer ir, a senhora não a conhece?
— Amanda – a diretora do hospital parou o que estava fazendo e
encarou a filha do outro lado da mesa –, isso eu e sua tia resolvemos,
agora traga-me os exames da senhora Sofia.
Amanda saiu do consultório da mãe e foi trabalhar.
Algumas horas depois, Duda entrou no bloco cirúrgico,
cumprimentou seus colegas e iniciou a cirurgia. Desta vez, ela não seria
uma auxiliar, atuaria no papel principal sob a égide do seu mentor.
— O sugador está pronto? – perguntou a cirurgiã.
— Sim, doutora Lins!
A cirurgia prosseguia até que algo inusitado aconteceu deixando
Duda assustada.
— Droga! – exclamou.
O doutor Romeu Dantas se aproximou, ele era chefe do
departamento. Sua presença intimidava ainda mais a jovem cirurgiã.
Maria Eduarda sabia que estava sendo avaliada o tempo inteiro.
— O que aconteceu? – O cirurgião perguntou.
Duda tentou manter o controle, aquela não era sua primeira
cirurgia, embora fosse a primeira que o seu mentor participava apenas
como mero espectador.
— PA[9] é de 88 por 60 – disse Dr. Dantas. – Qual o procedimento,
Dra. Lins?
— Preciso de duas unidades de sangue, e tragam o sugador – pediu
a médica. Segundos depois: – Meu Deus! – disparou Maria Eduarda, o
sugador extraía muito sangue.
— Pressão caindo! – Uma voz informou.
— Ainda não terminei – gritou Duda, ainda fazendo o
procedimento. – Grampos provisórios – pediu.
— Dra. Lins! – falou o médico, atento à situação da paciente. – PA
é de 110 por 72 – advertiu o cirurgião.
Todo bloco cirúrgico ficou apreensivo.
— Microsuturas, por favor – pediu a jovem, sendo rapidamente
atendida. Após alguns segundos, tudo ficou num absoluto silêncio.
Duda analisava seu trabalho e, por fim, respirou aliviada. – O fluxo
parece bom. Obrigada, gente.
Em seguida, Maria Eduarda se afastou da mesa cirúrgica. Seu
professor lhe olhou sério. Duda não fazia ideia do que ele estava
pensando. O homem girou os calcanhares e foi embora. Duda soltou o
ar com força. Agradeceu mais uma vez a equipe e saiu dali. Precisava
de um banho.
— Arrasou, amiga. Fiquei apreensiva quando a PA subiu – disse
Amanda, que tinha aproveitado seu intervalo e foi assistir à
performance da amiga.
— Nem me fale. Fiquei nervosa um pouco, mas consegui.
Duda tomou um banho rápido e ficou conversando amenidades
com a amiga na sala de descanso, até que o momento de descontração
foi interrompido com a chegada da secretária da diretora do hospital.
— Oi, meninas. A doutora Andréia convoca as duas para uma
reunião no consultório do doutor Dantas.
— Aposto que mainha vai reclamar de alguma coisa. Nada do que
a gente faz está bom para ela – replicou a morena com certa tristeza.
Andréia de fato era uma professora implacável, cobrava mais de
Maria Eduarda e Amanda do que de qualquer outro residente.
Simplesmente, não tolerava erros. Por mais que as duas se esforçassem,
era difícil impressioná-la. Na verdade, Andréia era assim porque não
queria que os outros achassem que ela favorecia a filha e a afilhada.
Muito pelo contrário, a cardiologista tinha um imenso orgulho das duas
profissionais que estavam se transformando. Duda destacou-se no seu
período de residência, e Amanda não ficava atrás. Mesmo sem perder o
jeito não convencional de levar o trabalho, Amanda se mostrava uma
grande pupila da médica, visava seguir os passos da mãe e se dedicava
muito à cardiologia. Era sempre muito bem elogiada pela equipe e pelos
pacientes, deixando Andréia mais que orgulhosa.
As jovens caminharam até o andar da neurologia. Chegaram ao
consultório do cirurgião chefe, e receberam autorização para entrar na
sala.
— O que fiz dessa vez, mãe? – perguntou Amanda assim que
entrou e viu a mãe conversando com o neurologista.
Andréia olhou para filha e sorriu.
— Dessa vez nada, filha – respondeu docemente. Depois, ela virou-
se para a sua segunda filha. – Soube que você foi muito bem hoje,
Duda. Embora não tenha seguido o protocolo, você fez um excelente
trabalho.
Duda ficou surpresa com o elogio, sua tia não era dada a eles, pois,
segundo ela, infla demais o ego dos jovens residentes.
— Parabéns, doutora Lins. Apesar do jeito atrapalhado, conseguiu
reter a hemorragia cerebral, bloquear o aneurisma e reparar os danos
causados dando estabilidade ao paciente. – Foi a vez do médico falar.
Realmente aquele era um dia muito atípico no Hospital La
Esperanza. Receber dois elogios num dia só era demais para sua pessoa,
principalmente vindo das pessoas que raramente elogiavam.
— Obrigada.
— O que estamos fazendo aqui? – perguntou Amanda, impaciente.
— Vamos à sala de estudo – chamou o médico.
Ao chegarem na sala de estudo de caso, Duda e Amanda
encontraram mais três residentes na sala. As duas se acomodaram junto
aos colegas, e, em seguida, o cirurgião apresentou o caso. Maria
Eduarda rapidamente o reconheceu, era da mulher que não compareceu
à consulta quando ela e o doutor Dantas foram a Natal/RN
especialmente para vê-la.
— Renata Fernandes, estimativa de idade entre 30 e 35 anos –
iniciou o neurologista. – Passou por estado vegetativo por 427 dias. Ao
recobrar a consciência, foi diagnosticada com amnésia dissociativa e
déficit cerebral.
À medida que o médico apresentava detalhes daquele caso, Duda
se sentia inquieta. O caso era muito complexo. Doutor Dantas informou
que a paciente não reagiu a nenhum tratamento e que nunca
conseguiram achar a raiz do problema. Não era apenas uma perda
simples de memória, como acontecia normalmente nos casos de
traumatismo craniano, a situação daquela paciente ia muito além, pois,
segundo novas informações, ela não se lembrava absolutamente de nada
da sua biografia. Até Amanda que não tinha a menor simpatia pela
neurologia ficou instigada.
— Irei receber essa paciente na próxima semana – informou o
médico. – Será entregue uma cópia do seu prontuário. Quero que até o
final dessa semana tenhamos ideias de como podemos ajudá-la.
Houve muito burburinho na sala. Dito isso, os residentes foram
dispensados. Exceto Duda e Amanda.
— Dra. Lins e Dra. Queiroz, aproximem-se – chamou Andréia.
As duas garotas olharam uma para a outra antes de se levantarem.
— Acho que houve um engano – disse Amanda. – Não sou mais
residente e muito menos neurologista. Boa sorte para vocês nesse ninho
de passarinho – disparou a jovem cardiologista sorrindo, aliviada,
achando que havia sido um equívoco ter sido convocada para atuar
naquele caso.
— Amanda! – replicou Andréia num tom bravo, fazendo a filha
revirar os olhos.
— Mãe, cérebro, nervos, essas coisas não são minha praia –
reclamou, mas foi ignorada pela mãe. Inconformada, aproximou-se da
lousa.
Amanda e Duda passaram a olhar para o painel, estudando todas as
radiografias da paciente X.
— Isso aqui é muito doido – falou Amanda, e Duda concordou.
Andréia perdeu a paciência e deu um beliscão nas duas, que
gritaram de dor.
— Vocês podem ter acabado de terminar a residência de vocês, mas
isso não as tornar boas cirurgiãs – disparou a diretora, irritada. –
Enquanto estiverem aqui, serão eternas alunas, então olhem para essas
radiografias com atenção e nos digam o que veem – exigiu a
cardiologista, arrancando um sorriso discreto do colega. Ele gostava da
impetuosidade da filha da colega, achava Amanda talentosíssima e
muito perspicaz. Ela havia sido a segunda melhor residente do
programa, ficando atrás apenas da falecida doutora Lafaiete. Eis o
motivo pelo qual o neurologista pediu que a convocasse, um olhar de
alguém fora do ninho (neurologia) poderia ampliar o campo de visão.
Amanda respirou fundo e olhou com mais atenção para aquelas
imagens. Duda fez o mesmo.
— É muito complexo, os danos cerebrais são muito extensos –
observou Duda, aquelas imagens eram recentes, foram enviadas há
poucos dias pelo atual médico da paciente X.
— O cérebro dela está acumulando informações de forma
desordenada, causando pressão no córtex cerebral – falou o médico.
— Isso faz com que as hemorragias ocorram? – perguntou
Amanda.
— Isso, Dra. Queiroz. Agora olhem para isso aqui. – Andréia
apontou para um ponto da imagem.
— Se essa pressão não for contida, o cérebro não suportará o fluxo
de informação. Isso irá romper essa linha aqui. – O homem apontou
para outro ponto.
— Ela pode morrer – concluíram as duas ao mesmo tempo.
— Essa mulher tem uma panela de pressão na cabeça – falou
Amanda, levando um cutucão da mãe.
— Prestes a explodir – acrescentou Duda.
— O que me preocupa não é a pressão no córtex cerebral, mas,
sim, o agente causador. Segundo seu histórico médico, essa pressão
acontece quando um fluxo de informações ocorre. Mas me pergunto,
quando esses flashbacks ocorrem? Quais são os gatilhos?
— Se ela tem flashbacks de lembranças, então por que sua
memória não voltou? – perguntou Amanda, curiosa, arrancando um
sorriso da mãe.
— Boa pergunta, doutora Amanda – disse o médico. – Doutora
Maria Eduarda, pode ajudar a sua amiga? – pediu.
— Porque provavelmente essas lembranças vêm de forma
desorganizada. Como sua perda é total, ela não tem um parâmetro, não
tem uma referência para organizá-la. Mesmo que ela veja um rosto, por
exemplo, ela não saberá a quem pertence.
— A origem da amnésia ainda não foi solucionada. Tenho feito
uma vasta pesquisa nesse campo e acredito que possamos ajudar essa
paciente. Meu estudo mostra uma nova linha de tratamento promissora
– dizia o médico, animado. – Se conseguirmos reverter a pressão
cerebral, podemos achar uma maneira de trazer luz à escuridão.
— Mas eu sou cardiologista – replicou Amanda baixinho.
— Você foi uma das melhores residentes do programa – disse
Andréia, com sinceridade – E estamos em meio a uma pesquisa
inovadora que pode mudar o rumo da medicina. Você vai continuar
sendo cardiologista, filha, só peço que se abra para um novo conhecer.
— Pedi para Andréia me trazer os melhores, esse caso foi enviado
por um amigo, um amigo de longa data – frisou. – Eu não costumo
decepcionar um amigo – disse o neurocirurgião.
Duda e Amanda engoliram em seco, sabiam a pressão que isso
traria, também havia outras coisas envolvidas. Os dois médicos à sua
frente estavam trabalhando há muito tempo numa pesquisa que faria
uma grande revolução em tratamentos para cura da amnésia e outros
setores. O resultado positivo desse tratamento seria de extrema
importância para o hospital, que certamente seria destaque nas revistas
científicas, sem falar na publicidade. Assim, a paciente X parecia ser a
“cobaia” perfeita.
— Estamos ferradas! – concluiu Amanda, ao saírem da sala.
— Concordo – disse Duda. – Doutor Dantas ficou fascinado com o
caso dessa paciente. Pelo que acompanhei, ela vem sendo atendida por
um colega de faculdade dele.
— Depois de uma dessa, precisamos relaxar – disse Amanda.
— Nem dá, já tenho compromisso – negou Duda, sorrindo.
— E com quem, posso saber? – perguntou a morena, cruzando os
braços e arqueando a sobrancelha.
Duda negou com a cabeça e se foi, deixando a amiga morta de
curiosidade.
Amanda acabou fazendo o mesmo. Ao final do expediente correu
para casa, estava louca para chegar em casa e fazer as pazes com a
mulher. Antes de ir, passou numa joalharia para pegar sua encomenda,
tinha comprado uma linda pulseira de brilhantes para esposa.
◆◆◆
CAPÍTULO 32
Duas loucas, não!

NATAL-RN
Depois do Carnatal, as coisas se agitaram na casa da família
Fernandes. Renata passou a ter pesadelos constantes e sua hemorragia
se agravava. Mesmo assim, a loira se recusava a viajar até o estado
vizinho para se consultar com o especialista indicado por seu
neurologista. Seu coração estava inquieto. Só de pensar em ir, algo
dentro de si a angustiava, porém Raissa estava irredutível e ameaçou
romper com a loira, caso ela não aceitasse ir. Com medo de perdê-la,
Renata acabou cedendo.
— Vai continuar até quando sem falar comigo? – perguntou a
advogada, enquanto dirigia até o estado vizinho. – Amor! – falou num
tom mais alto, tentando chamar a atenção da namorada, mas, como uma
criança birrenta, a loira aumentou o volume do som do carro. – Estou
fazendo isso para seu próprio bem. Ontem mesmo você passou mal no
conservatório e tive que ir buscá-la.
Renata permaneceu calada, o que a loira não tinha contado à
namorada era que tudo aquilo piorou depois daquela bendita festa de
Carnaval.
Retrocedendo ao dia do Carnatal.
Poucas horas antes de saírem de casa, Renata já começara a sentir
suas dores, mas ela não queria ser estraga prazeres. Raissa era uma
namorada cuidadosa demais, a morena com toda certeza deixaria de ir à
festa, só para ficar com ela em casa, e a loira não achava justo. Então
elas foram. A noite seguia muito divertida, por algumas horas Renata se
esqueceu do que a agoniava e se entregou ao momento. Brincou, pulou,
namorou a cada ida e vinda dos trios. O Carnatal era, de fato, uma festa
muito divertida, até que, em um dado momento, houve uma pequena
confusão entre os foliões. No empurra-empurra, a loira acabou se
perdendo do grupo. E ela foi atingida de uma forma extremamente
violenta pela sensação de déjà vu. Isso desencadeou uma sucessão de
flashbacks de memória, assim a dor veio com força, deixando-a
aturdida. Então veio aquela mulher. Luiza, esse nome penetrou em sua
mente. Quando fixou, a única coisa que Renata queria era fugir, e ela
fugiu para longe dali.
Raissa a encontrou chorando sentada na calçada num ponto de
encontro que o grupo tinha definido, no caso de alguém por algum
motivo se perder. Ao vê-la, a loira se jogou nos braços da morena
implorando para levá-la para longe dali. E assim Raissa o fez. Desde
então, os flashbacks aconteciam com frequência. Algumas vezes, a loira
conseguia controlar, outras nem tanto, mas, a cada vez, a hemorragia da
loira se intensificava e ela desmaiava.
Voltando aos dias atuais.
— Por favor, não fica assim – pediu a morena.
As duas chegaram à cidade do Recife quatro horas depois, ficaram
hospedadas em um hotel à beira mar no bairro do Pina. A ideia de irem
na sexta-feira foi justamente para aproveitarem o fim de semana. Raissa
tinha uma amiga na cidade, então combinaram de dar um rolê pela
cidade. Após se acomodarem, as duas foram se encontrar com um casal
de amigos da Raissa. Débora e Mauro eram um casal muito agradável,
jantaram juntos e marcaram para irem à praia de Porto de Galinhas no
dia seguinte.
Ao final, Raissa acabou quebrando o gelo entre elas. Renata já
estava mais relaxada e curtindo mais a cidade. Elas tinham passado o
dia em Porto, como chegaram cansadas, resolveram não sair à noite. No
domingo, a morena preferiu fazer um programa mais casal. Durante a
manhã, aproveitaram a praia, localizada em frente ao hotel, e, no início
da tarde, buscaram o bairro do Recife Antigo para relaxar. Raissa
conhecia muito pouco da cidade, então, para ela, aquilo era tão
novidade quanto era para sua namorada.
Renata, por sua vez, se sentia muito estranha ao caminhar pelas
ruas daquele bairro tão boêmio. Os prédios antigos, os monumentos
históricos, o clima, a música, tudo lhe parecia familiar.
— Tudo bem? – indagou Raissa, elas tinham parado para assistirem
a um ensaio de maracatu, que acontecia na Rua do Bom Jesus.
— Sinto como se já conhecesse isso aqui – disse. – Podemos ir,
estou cansada.
Raissa sorriu e a beijou nos lábios. Em seguida, voltaram para o
hotel.
— Vamos dar uma caminhada no calçadão – pediu Renata, quando
já estavam na porta do hotel.
A namorada assentiu, e, de mãos dadas, caminharam até a
passagem de pedestre. Raissa parecia distraída olhando para o celular,
enquanto Renata olhava para o fluxo de carros, até que o sinal ficou
amarelo e os carros começaram a parar, foi aí que a loira capturou um
olhar familiar. Os olhos que a fitaram se arregalaram de uma forma um
tanto exagerada. Renata desviou e se deixou levar por Raissa, que a
puxava pela mão para o outro lado da avenida.
Maria Eduarda ficou estupefata, quando parou o carro no sinal de
trânsito próximo a sua casa e viu duas garotas na faixa de pedestre.
Dessa vez, ela não estagnou, num movimento brusco, avançou o sinal e
buscou um lugar para encostar o carro.
— Que diabos está fazendo? – perguntou Camila, assustada com a
empreitada da cunhada.
— É ela, é ela! – gritou Duda, se livrando do cinto de segurança e
destravando as portas. – A Luiza está aqui.
Camila sentiu o coração bater em disparada. Mesmo contra sua
razão, acreditou na cunhada. Repetindo os gestos de Duda, ela se livrou
do cinto e desceu do carro.
— Vamos atrás dessa mulher – gritou Camila, pegando Duda pelo
pulso e a puxando para tentar atravessar a avenida.
As duas conseguiram atravessar e começaram a caminhar pela orla.
Elas buscaram entre os passantes a mulher, porém não a encontraram.
Derrotadas, sentaram num quiosque e pediram duas águas para tentar se
acalmarem. As duas choravam silenciosamente.
— Acho que realmente estou alucinando – disse Duda.
Camila não olhou para Duda porque ela estava em choque. Seu
rosto empalideceu. Duda olhou para a mesma direção que a loira, então
o impossível aconteceu.
— Eu não disse – disparou Maria Eduarda, levantando-se de
supetão.
As duas correram até o meio-fio, porém o dono do quiosque
pensou que elas iriam dar um calote e foi atrás das duas. Houve um
bate-boca. Camila queria correr até o outro lado da pista, onde sua irmã
caminhava para longe. Duda conseguiu pagar o homem, mas o fluxo de
carros não permitiu que elas atravessassem a avenida. Assim, os dois
pares de olhos a perderam de vista. Luiza esmaeceu novamente.
Após ficarem horas rodando pelo bairro, as duas voltaram para casa
desoladas.
— Chega! – gritou Amanda.
Duda e Camila chegaram muito agitadas dizendo que tinham visto
Luiza na praia.
— Nós a vimos! – gritou Camila, muito alterada.
— Duas loucas, não! – gritou Amanda.

◆◆◆
CAPÍTULO 33
Meu nome é Renata Fernandes

O telefone não parava de tocar, Duda buscou o aparelho em algum


lugar da sua cama, tinha ido dormir muito tarde, as emoções do dia
anterior haviam sido fortes demais.
— Alô – atende sonolenta.
— Quero você aqui em 30 minutos – falou Andréia.
— Tia, eu não vou…
— Dra. Lins, em 30 minutos – disse entredentes.
Duda levantou em sobressalto, conhecia aquele tom, sabia que
provavelmente Amanda tinha contado à mãe sobre o que ela e a Camila
tinham visto. A morena tomou banho rapidamente e foi para o hospital.
Ainda eram 07h40min, Duda foi direto à sala da tia, esperava levar uma
baita bronca, assim como levou da sua mãe.
— Dra. Andréia teve uma emergência – avisou a secretária.
Duda agradeceu ao universo por aquilo, sinal de que não precisaria
enfrentar sua chefe naquela hora da manhã. Um pouco mais animada,
resolveu iniciar seu expediente.

Poucos minutos antes do horário marcado, Raissa entregou a chave


do seu veículo ao manobrista do Hospital La Esperanza. Renata estava
muito nervosa. Assim que entraram no hospital, a loira teve uma
sucessão de flashbacks.
— Eu já estive aqui… – disse Renata. – Eu já estive aqui.
— Calma – pediu a morena ao ver a agitação da namorada, não
queria que ela tivesse um apagão, pois eles eram sempre sinal de muito
perigo.
As duas caminharam até a recepção e se apresentaram.
— Bom dia! Temos uma consulta com o doutor Romero Dantas,
em nome de Renata Fernandes – disse Raissa, simpática.
A atendente parecia que estava vendo um fantasma. Seus olhos se
arregalaram, e ela não conseguia falar uma só palavra.
— Nono andar – falou a outra recepcionista também com os olhos
esbugalhados.
A advogada agradeceu e ambas se dirigiram ao elevador. Quando
chegaram ao andar, outra sucessão de olhares estranhos. Começando a
se incomodar com aquilo, Raissa caminhou apressadamente até a
recepção do andar. Falou com uma atendente, que as conduziu até a
recepção do consultório do neurologista.
— Por que essas pessoas nos olham como se estivessem vendo um
fantasma? – perguntou Raissa.
— Pensei que só eu que tivesse notado – comentou a loira.
Poucos minutos depois, as duas entraram no consultório. O Dr.
Dantas saiu de trás da sua mesa e foi ao encontro das duas mulheres.
Ele era um homem na mesma faixa etária do doutor Bernardo, ou seja,
com sessenta e poucos anos. Era de estatura mediana, pele negra e
olhos perspicazes.
— Bom dia, senhoras! – cumprimentou ao entrarem.
Houve os cumprimentos formais, em seguida, elas se acomodaram.
Renata perscrutava o consultório com os olhos, enquanto sua namorada
conversava com o médico. A loira acompanhava a conversa, embora a
única coisa que saiu da sua boca desde que entrou foi seu cumprimento.
O médico parecia um tanto empolgado com seu caso.
— Srta. Renata, vou precisar examiná-la e também fazer uma
bateria de exames – disse o médico.
— Não entendo para quê. Os resultados são sempre inconclusivos –
disparou de uma forma extremamente seca.
— Rê – falou Raissa, segurando levemente sua mão e fazendo um
carinho.
A loira revirou os olhos contrariada, mas respondeu a bateria de
perguntas do neurologista.
— Agora vou pedir que a minha assistente a acompanhe nos
exames – informou o homem, bipando sua assistente.
— Ela precisará ficar internada? – perguntou Raissa.
— A princípio não...
Como a vida pode vencer a morte em tão poucos segundos? Duda
estava em sua ronda quando foi bipada por seu superior. Consultou o
relógio e lembrou-se que provavelmente a paciente X deveria ter
chegado. Em outro momento, a médica ficaria eufórica em estar por
dentro de um caso tão complexo, porém, depois de saber que ali não
seria apenas um caso, ela desanimou, já bastava a pressão e o
preconceito que sofria só porque era afilhada da dona do hospital. Ela e
Amanda precisavam provar seu valor o tempo todo, isso chegava a ser
cansativo e desmotivante. Perdida nos seus pensamentos, ela caminhou
despreocupadamente até o consultório do seu chefe, bateu duas vezes
antes de ouvir o “entre”. Quando entrou, o destino mais uma vez, lhe
mostrou o quanto ele é real e palpável.
— Bom dia! – cumprimentou a médica.
Aquela voz soou familiar para Renata, que se levantou e virou-se
para trás imediatamente. Duda sentiu o mundo parar. Renata a encarava
sem piscar. Raissa também se levantou e viu uma moça que parecia
jovem demais para ser uma médica, parada, com os olhos estatelados.
— Essa é a Dra. Lins, minha assistente – disse o médico. – Dra.
Lins, leve a Srta. Fernandes para sala de ressonância. Vamos iniciar os
exames padrão – ordenou o médico.
Duda finalmente saiu do estupor e correu até a suposta paciente,
abraçando-a abruptamente.
— Você está viva, você voltou. – Duda desatou a chorar, deixando
todos em choque.
Raissa não conseguiu entender nada. Renata tentou se soltar. Ao
ver o desespero da loira, a advogada puxou Duda para longe.
— Quem é você? – perguntou a loira, indo para trás de Raissa
como um bicho acuado.
Duda tinha dificuldade para falar, e Raissa aproximou-se da garota.
A advogada controlou a adrenalina no corpo e ficou de frente para
Duda.
— Você a conhece? – perguntou calmamente.
Duda pareceu finalmente notar a mulher. Olhou Raissa de cima a
baixo, ainda estava em choque, mas a resposta saiu rápida.
— Claro que conheço, ela é minha esposa – disparou. – Luiza, seu
nome é Luiza.
As palavras da mulher caíram como uma bomba atômica naquele
consultório. Dessa vez foi o médico que olhou atentamente para a
jovem. Ele não tinha lembrança da esposa da sua assistente, pois tinha
acabado de chegar ao hospital quando ela morreu. Mas ouviu muitos
rumores a respeito da morte prematura da mulher.
— Eu não a conheço – rebateu Renata, cada vez mais assustada.
— Luiza. – Duda repetiu.
— Meu nome é Renata Fernandes – gritou.

◆◆◆
CAPÍTULO 34
Eu sei que é você
— Eu sei que é você. Você é Luiza – gritou Duda, agitada demais.
Afinal, estava diante da sua esposa morta.
Raissa percebeu que a loira começou a sentir dores. Mesmo
confusa, seu instinto de cuidado emergiu. Temendo que algo
acontecesse à namorada, a advogada saiu arrastando aquela médica para
fora da sala. Duda tentou impedir, contudo Raissa era mais forte.
— Você está assustando-a – gritou a advogada. – Fica calma –
pediu.
Duda tentou se controlar. A médica inspirava e expirava
vagarosamente. Aos poucos, foi se acalmando. Ao perceber que a
jovem estava mais calma, Raissa soltou seus braços. Os olhos verdes-
oliva fitaram o rosto da mulher à sua frente. Duda fez o mesmo. Ainda
com o coração martelando, a neurologista perguntou:
— Por que você agarrou minha mulher? – perguntou Maria
Eduarda, com os castanhos raivosos.
Raissa deu alguns passos para trás em busca de espaço, não porque
sentiu-se intimidada pela garota, mas porque aquela frase foi um soco
no seu peito, e doeu. A morena, ainda impactada com o que acabou de
ouvir, respondeu à altura.
— Renata é minha namorada – disse sem titubear.
E o espírito briguento e ciumento da Duda foi tirado de trás da
porta e devolvido de volta ao seu corpo. A morena cerrou os punhos e
trincou os dentes.
— Então foi você que roubou minha mulher? – disparou, indo para
cima da advogada.
Raissa a segurou pelos pulsos e foi obrigada a agir com
brutalidade, empurrando Duda até a parede, prendendo-a lá, enquanto a
outra se debatia tentando se soltar.
A confusão corria feito rastro de pólvora pelos corredores do
hospital, Andréia corria com dificuldade devido aos saltos sob os pés.
Ela havia sido chamada pelo colega. O coração da médica só faltava
sair pela boca.
— O que está acontecendo aqui? – gritou a diretora ao ver sua
afilhada sendo encurralada por uma mulher.
— Luiza está viva, Luiza está viva – gritava Duda.
Raissa continuou segurando a médica. Andréia tocou em seu
ombro.
— Por favor, solte-a – pediu a mais velha. – Duda não vai
machucá-la.
Raissa pareceu hesitar, mas acabou cedendo. Duda, ao ser solta, se
jogou nos braços da tia, chorando e dizendo que Luiza estava viva. Foi
naquele instante que a advogada soube que acabara de encontrar
alguém do passado da garota sem memória. “Duda” o mesmo nome
tatuado na virilha da loira. Raissa se afastou, todo seu corpo tremia.
— Era para ser apenas uma consulta – sussurrou Raissa, confusa,
assustada e amedrontada.
Andréia afastou-se da afilhada e se apresentou para a desconhecida.
— Sou a Dra. Andréia Queiroz, diretora desse hospital.
— Se alguma coisa acontecer a minha namorada, vou processá-los
– disse Raissa, tomando a defensiva. Os olhos da advogada se
encheram de lágrimas e sua voz começou a sair embargada. – Será que
a senhora pode me explicar o que está acontecendo?
Ver aqueles olhos chorosos trouxe Duda à realidade, lembrou-se
que a paciente X tinha perda total de memória. Naquele tsunami de
emoções havia se esquecido do seu estado de saúde. Era perceptível que
aquela mulher realmente parecia preocupada com a Luiza, constatou
Maria Eduarda.
— Preciso vê-la – disparou, deixando as duas mulheres no corredor
e voltando ao consultório.
Quando Raissa voltou ao consultório, encontrou Renata sentada no
estofado chorando. O peito da morena doeu, então se aproximou e a
abraçou com todo amor e cuidado que sentia.
— Me tira daqui, me tira daqui – implorava a loira.
— Que tipo de hospital é esse? Quem é essa Luiza? – perguntava a
advogada.
Antes que o médico respondesse, Andréia entrou no consultório. A
cardiologista quase caiu para trás quando seus olhos pousaram na
jovem abraçada a Raissa. Se não era Luiza, era alguém
assustadoramente idêntico a ela.
— Que bom que chegou – disse o médico tão perdido quanto as
duas mulheres que chegaram a sua sala.
Quando Renata levantou os olhos e fitou a mulher, algo aconteceu.
— Eu já vi você – disse Renata, reconhecendo a mulher do seu
sonho, a que participava da mesa redonda de um evento sobre
medicina. – É ela, Ray, a do meu sonho – disse.
Veio o grito, o sangue e o apagão. Renata acabou sendo submetida
a um atendimento de emergência pelo doutor Dantas. Raissa esperava
angustiada na sala de espera. Sua cabeça estava um turbilhão, sentia-se
com medo e sozinha.
— Não se preocupe, ela está sendo atendida pelo melhor
neurocirurgião do país – disse Andréia.
Raissa não conseguia articular uma conversa. Quando o médico
apontou na sala, a advogada correu até ele.
— Como ela está? – perguntou, apreensiva.
— Está bem, mas tive que sedá-la. Vamos mantê-la em observação.
— Quero vê-la.
— Raissa – chamou a cardiologista. – Esse é seu nome, não é? –
perguntou. A morena assentiu. – Sei que o momento é muito delicado,
mas precisamos conversar com você.
— Vou chamar a polícia para te prender, sua ladra de esposa –
disparou Maria Eduarda, caminhando em direção à advogada, mas foi
segurada pela tia.
Raissa encarou aqueles olhos sem medo.
— Não sei quem são vocês, nem quem é essa Luiza, mas se não me
deixarem ver a Renata agora, irei chamar as autoridades e abrir um
processo contra esse hospital – disse, fria.
— Srta. Raissa, venha comigo – chamou o médico.
O hospital ficou numa agitação daquelas. Os boatos de uma Luiza
viva correram feito rastro de pólvora. De repente, Camila, Amanda e
Heloísa apareceram todos ao mesmo tempo. Andréia tinha dificuldade
de lidar com a situação, até porque não sabia de nada ainda. Só sabia
que existia uma mulher idêntica à sua antiga aprendiz.
Raissa não deixou que ninguém, exceto o doutor Dantas, se
aproximasse da loira, que permanecia desacordada, devido ao forte
calmante que teve que tomar. A morena sabia que precisava enfrentar as
pessoas que estavam do outro lado da porta. Ao menos, aquelas horas
que passou ali, observando sua namorada dormindo, ajudou a acalmá-
la. O médico garantiu que ninguém, exceto ele, entraria naquele quarto.
Tomando coragem, Raissa saiu. Estava disposta a ouvir o que aqueles
estranhos tinham a dizer. Por que ficaram tão impressionados com a
Renata?
Chegando ao corredor, diversos pares de olhos foram em sua
direção, mas apenas um se destacou. Raissa sentiu-se aturdida. Eles
eram tão escuros quanto os da moça que dormia a poucos metros dali.
Heloísa sentiu um comichão no corpo ao sentir aqueles olhos verdes-
oliva fixados nos seus. Raissa se aproximou da mulher sem hesitar.
— Seus olhos são parecidos com os dela – disse a jovem.
Heloísa deu alguns passos para trás, Raissa mantinha o contato
visual muito intenso, realmente impressionados.
— Raissa, essa é Heloísa – disse Andréia, quebrando o momento.
Raissa piscou algumas vezes, sentiu-se atordoada, lembrou-se de
que esse mesmo nome foi mencionado meses atrás por seu amigo, no
dia que Danilo socorreu a Renata. As peças do quebra-cabeça pareciam
começar a se mover, mas não parava por aí. Outra pessoa estourou na
retina da advogada, essa chegou a ser mais impressionante. Novamente
aproximou-se de outra estranha, só que dessa vez, ela tinha o mesmo
tom de pele, cor de cabelos e traços muito, muito parecidos.
— Você se parece com a Renata – disse Raissa, olhando para
Camila.
— Foi você que vimos ontem com minha irmã, no calçadão do
Pina.
Raissa assustou-se com aquela informação.
— Srta. Fernandes, realmente precisamos conversar com você –
disse Andréia. – Mas esse corredor não é o lugar indicado, quero pedir
que nos acompanhe – pediu a diretora.
Raissa concordou, e todos se dirigiram à sala de reunião. Ela estava
muito perdida no meio daquelas pessoas, então dirigiu a palavra à única
pessoa naquela sala que lhe inspirava segurança.
— Eu não sei o que está acontecendo aqui. Eu trouxe minha
namorada para uma avaliação...
— Ela é minha esposa – gritou Duda, que estava quase dopada de
calmante, devido ao seu estado nervoso.
Raissa a ignorou e continuou:
— Trouxe minha namorada, porque doutor Dantas foi uma
indicação do seu médico. Não fazemos ideia de quem seja essa Luiza.
— Luiza é minha filha – A voz de Heloísa se fez presente.
Raissa sentiu um badalo no peito. A mulher caminhou em sua
direção e lhe estendeu o próprio aparelho celular. A tela de bloqueio era
uma foto dela com seus quatro filhos. Raissa arregalou os olhos
surpresa. Era exatamente a imagem da Renata quando a conheceu. Os
longos cabelos loiros, a pele translúcida. Não parou por aí. Camila abriu
sua rede social e estendeu seu telefone à morena. Dezenas de fotos das
duas loiras juntas, tão parecidas, mas precisava da última instância
sacramentar. Foi a vez de Duda levantar-se e entregar seu próprio
telefone. Raissa olhou com calma, como se estivesse analisando um
processo. Ao final, devolveu o último aparelho. A morena sentiu uma
certa emoção após três anos. Quando já não procuravam, encontrou a
família da loira.
— Houve um acidente – iniciou a advogada.
Raissa contou exatamente como tudo aconteceu, cada mínimo
detalhe, até mesmo sua parcela de culpa. Todos estavam atentos.
Centenas de perguntas brotavam em suas cabeças, mas muitas ficariam
sem resposta.
— Eu só parei de procurar quando Renata pediu. Ela construiu uma
nova vida. – Raissa começou a chorar, contando um pouco sobre a vida
atual da namorada.
— Ela sempre foi apaixonada pelo piano – disse Heloísa,
emocionada. – Aprendeu a tocar aos seis anos.
Raissa olhou para mulher de olhos escuros e sorriu.
— Nossa mãe é artista plástica – disse Camila.
— Explicado todas as suas habilidades e conhecimentos. Renata é
impressionante. Inteligente, dedicada, sensível. Um ser humano lindo –
disse a morena com ternura.
— Hora de saber o nosso lado da história – falou Amanda.
Pelos longos minutos que se seguiram, Raissa soube o que
aconteceu com a Renata. O congresso, o suposto acidente e a morte da
loira. Depois dessa troca de informação. Pediram para vê-la.
— Não! – disse Raissa.
— Como não? Ela é minha irmã – replicou Camila.
— Para a Renata, vocês não passam de desconhecidos. Ela está
doente e assustada, não vou arriscar sua saúde.
— Ela tem razão – concordou Amanda. – O quadro clínico da Isa é
mais delicado do que vocês imaginam.
— Ela sofre de uma amnésia rara – disse Duda, ganhando a atenção
de todos. – Luiza perdeu toda sua biografia. A probabilidade de ela
voltar a nos reconhecer numa escala de 0 a 10, eu diria que 2.
— Somos sua família – falou Heloísa, inconformada e chorosa.
— Preciso voltar ao quarto. Se ela acordar e não me ver, pode se
alterar.
— Precisamos vê-la – pediu Heloísa, segurando Raissa
delicadamente pelo pulso. – Preciso ver se essa moça é realmente
minha filha, por favor, Raissa.
A morena soltou o ar com força.
— Apenas você – disse, saindo imediatamente daquela sala.
As duas mulheres caminharam lado a lado até o quarto da loira. Era
estranho, Heloísa era uma mulher alta, com feições delicadas e
pouquíssimas marcas de expressão. Parecia jovem demais para ter uma
filha da idade da Renata, apesar de que a advogada não sabia a idade
exata da loira.
— Qual a idade da sua filha? – perguntou a morena de supetão.
Heloísa parou e virou-se para jovem ao seu lado, pareceu confusa
com a pergunta. Sentir aqueles olhos escuros a encarando fez a mais
nova corar.
— Camila está com vinte e quatro anos, e a Luiza, trinta e dois –
respondeu.
Raissa deu um sorriso sem graça e voltou a andar. Se sentiu uma
idiota perguntando aquilo, mas ficou surpresa em saber que Renata era
mais velha que ela, embora houvesse uma diferença entre as duas de
apenas dois anos. Quando chegaram em frente ao quarto, Camila vinha
correndo, ela respirava com dificuldade.
— Também preciso vê-la – disse a loira.
— Não sei se é uma boa ideia – alegou a advogada, mas a loirinha
lançou um olhar de gato de botas. — Você está usando o mesmo
artifício da Rê quando ela quer algo, sabia? – disse, fingindo uma
repreensão. Foi automático, as duas gaúchas sorriram ao mesmo tempo.
Era o primeiro sorriso daquele estranho dia.
Raissa acabou permitindo a entrada das duas, mas entrou no quarto
primeiro. Olhou para a namorada que permanecia dormindo. Raissa
ainda não sabia o que pensar disso tudo. Em seguida, ela voltou à porta
e pediu que entrassem.
O reencontro foi muito emocionante. Bastou os olhos escuros da
artista plástica pousarem na garota adormecida na cama, para ter
certeza de que era sua filha. Camila chorava e ria ao mesmo tempo.
— É minha filha, é minha filha – dizia Heloísa, convicta.
— Tem certeza? – perguntou a morena, incerta, embora começasse
a acreditar que aquelas pessoas eram parentes da Renata.
— Tenho, sim. – Heloísa aproximou-se da cama e começou a
acariciar os cabelos da filha. Raissa só pediu que elas não a acordassem,
pois tinha medo de uma reação negativa da loira. As duas não saíram
daquele quarto por nada no mundo. Raissa até gostou, porque acabou
conhecendo um pouco a história da moça sem memória. Descobriu que
além da Camila, Luiza tinha mais dois irmãos que atualmente estavam
morando fora do país. Descobriu também que de fato era uma médica,
ou melhor, uma cirurgiã cardiotorácica. Nesse momento, Raissa contou
como aquela garota salvou a vida do seu pai e a eterna gratidão que sua
família tinha por ela.
— Minha irmã é casada, sabia?! – informou Camila, certo
momento.
— Eu e Renata não somos apenas amigas – falou, encarando os
olhos azuis a sua frente. – Temos um relacionamento já algum tempo –
esclareceu.
— Impossível. Isa é completamente apaixonada pela Maria
Eduarda. Nunca se casaria de novo. Além do mais, ela tem três filhos
com Duda – retorquiu.
Aquilo pegou a morena de surpresa, não a questão do casamento,
pois já tivera o prazer de conhecer sua “rival”, mas saber que Renata
havia deixado três crianças para trás lhe causou aperto no peito. Então,
a velha sensação de culpa voltou a se arrastar por dentro de si.
— Camila – interveio Heloísa, percebendo a reação da morena. –
Desculpe, Raissa. De todos os meus filhos, a Camila é a que menos tem
filtro.
Raissa sorriu timidamente. Heloísa não era de falar muito, mas,
quando falava, sua voz era penetrante e melodiosa. Raissa a fitou com
curiosidade, buscava semelhança entre a sua namorada e aquela mulher,
mas a única que encontrou foi seus olhos. Voltando a encarar a sua
possível cunhada, Raissa pontuou:
— Pode até ser, Camila, porém Renata, não. É bom que antes
mesmo de ela acordar, vocês tenham em mente uma coisa, Luiza, para
Rê, é apenas um nome. A pessoa que ela foi, a história que ela viveu,
tudo foi apagado da sua mente. Renata construiu outra história,
entende? E outra coisa, antes de jogar essa Luiza sobre seu colo, é
preciso ter certeza que ambas são a mesma pessoa.
— Eu não tenho dúvida alguma que ela seja minha filha, Raissa –
afirmou Heloísa.
— Não me entendam mal – pediu. – Só que a situação é muito
novelística. Meu Deus! Vocês enterraram um corpo. A situação por si
só é inverossímil – falou com sinceridade.
— Um DNA resolve – disse Camila. – Mamãe está aqui, Isa tá
aqui. Vamos fazer um exame de DNA agora mesmo.
— Por mim, tudo bem – concordou Heloísa.
— Não tenho esse poder de decisão, cabe a Renata...
— Raissa – replicou Camila, impaciente. – Quem parece precisar
de provas que somos a família da Luiza é você. Pouco me importa o
mistério de como isso é possível, o que importa é que ela está aqui,
viva, em carne e em osso.
— Tudo bem, vamos fazer o DNA – concordou a morena.
Camila levantou-se no mesmo instante, saiu do quarto e foi atrás da
esposa para fazer o teste, embora não tivesse a menor dúvida de que
aquela era sua irmã, sua Isa.

◆◆◆
CAPÍTULO 35
Luiza Lafaiete

Renata acordou atordoada, o quarto estava à meia luz. Além disso,


ela ouvia vozes. Reconheceu a da Raissa, mas as outras duas vozes lhe
soavam familiar, havia sotaque, não o sotaque que costumava ouvir na
sua cidade, era outro diferente, quer dizer, igual, igual ao seu. Aquela
constatação a fez erguer o corpo abruptamente e chamar pela advogada.
— Oi, amor – disse a morena, aproximando-se rapidamente da
cama e a abraçando carinhosamente.
Camila e Heloísa se entreolharam.
— Quem são elas? – perguntou ao ver as duas estranhas sentadas
no sofá do quarto.
— Rê, essas pessoas podem ser sua família – iniciou suavemente. –
Tudo indica que você é na verdade Luiza, Luiza Lafaiete. Filha desta
senhora – falou apontando para Heloísa, que se aproximou da cama. A
mulher fazia um esforço sobre-humano para não abraçá-la. Não queria
pressioná-la, embora seu peito estivesse explodindo de emoção.
Renata olhou confusa para a mulher. Heloísa sorriu sem mostrar os
dentes.
— Oi – disse. – Como está se sentindo? – perguntou a artista
plástica.
— Eu lembro do seu rosto – disse. – Do meu sonho.
— Filha... – A mulher não se conteve, abraçou Luiza e chorou em
seu pescoço.
Ao contrário do que se esperava, a loira se permitiu abraçar. Seu
corpo foi envolvido numa emoção diferente. Elas permaneceram ali
abraçadas por um longo minuto. Aos poucos, Heloísa se afastou e fez
carinho no rosto da filha, depositando um longo beijo em sua testa.
— Te adoro de paixão, filha, te adoro demais de paixão.
Aquela curta frase, encheu o coração da jovem sem memória de
algo. Ela olhou para a mais velha e sorriu. Houve uma recíproca velada
ali.
— Meu coração nunca acreditou que você tinha partido. – Foi a vez
de Camila se aproximar.
A jovem, ignorando o fato de a irmã estar sem memória, se jogou
em seus braços, desatando a chorar e a falar o quanto sentiu sua falta e
o quanto também a “adorava de paixão”. Renata gostou do que recebeu
daquelas duas pessoas que eram desconhecidas para ela. A interação foi
interrompida com a entrada do médico que veio examiná-la.
— Melhor que esperem lá fora – pediu o homem.
— Raissa fica! – disse Renata, segurando o braço da namorada.
— Tudo bem.
Dantas examinou atenciosamente sua paciente e avisou que os
resultados dos exames estariam prontos em algumas horas.
— E quando vou poder ir para casa? – perguntou a paciente.
O homem não sabia o que dizer, Andréia pediu para segurá-la um
pouco mais no hospital.
— Receio que amanhã, Renata, quero mantê-la em observação essa
noite. Sua hemorragia é preocupante... – O médico usou meias-
verdades. De fato, a hemorragia era preocupante, mas toda confusão
serviu para ele riscar um item da sua lista de investigação. Doutor
Romeu descobriu que os gatilhos aconteciam quando algo ou uma
situação do passado acontecia de forma semelhante no presente. Isso
era muito interessante, pensava o neurologista.
— Quero ir embora assim que possível. Nunca mais quero voltar a
vê-los – disse Renata, decidida.
— No momento peço que descanse – pediu o homem.
Depois que o médico saiu, Renata não quis ver mais ninguém.
Aquela agitação trazia muitas dores.
Depois de algumas horas, Raissa foi à lanchonete do hospital,
precisava comer alguma coisa e também ligar para seus pais.
— Venho logo, tá? – disse a morena.
— Pode ir, amor – respondeu a loira.
Raissa lhe deu um beijo nos lábios e saiu do quarto. Ver a morena
pegar o elevador era tudo que Maria Eduarda precisava. Sem perder a
oportunidade, caminhou apressadamente até o quarto. Os olhos de
Renata ficaram amedrontados quando viram aquela garota entrando.
— Oi – disse a morena. – Como está se sentindo?
— Não chegue perto de mim – pediu.
— Luiza, eu sei que você não se lembra de mim, mas eu sou a
Duda. A sua Duda.
— Meu nome é Renata – falou num fio de voz.
— Não. Seu nome é Luiza Torres Lafaiete. Você é médica desse
hospital, minha esposa e mãe dos meus filhos, um menino chamado
João Gabriel de onze anos e duas meninas, Vitória de cinco e Maria
Luiza de três.
— Cala boca – gritou, se alterando.
— O que está fazendo? – perguntou Raissa, que tinha voltado para
pegar seu celular.
— Tira ela daqui, amor – implorou Renata, já chorando.
— Eu sou seu amor, Isa – gritou Duda, furiosa. – Você é casada
comigo!
A irracionalidade domava Maria Eduarda, que jogou inúmeras
fotografias das duas juntas sobre a loira, assim como uma cópia da sua
certidão de casamento. Renata olhou para aquelas fotos abismada, seu
peito doía, uma dor vazia. Ela só sabia que doía, doía mais que muito.
Completamente furiosa com a atitude da médica, Raissa puxa
Maria Eduarda pelos ombros, empurrando-a para fora.
— Você é Luiza, sim, eu sei que é você e vou te provar isso. Você
tem uma tatuagem na sua virilha direita igual a essa – gritou.
Raissa a soltou, aquilo era demais para sua cabeça. Duda
desabotoou a calça e abaixou mostrando a tatuagem. As duas mulheres
olharam ao mesmo tempo para o desenho.
— Te levei para fazer no dia do nosso aniversário de um ano de
casamento. Você escolheu o símbolo da borboleta, porque disse que,
pela primeira vez na sua vida, um pedido seu foi atendido pelo
universo. Você veio a Recife em busca de recomeço. E foi exatamente o
que aconteceu, finalmente a Luiza saiu das camadas da Vanessa. Se
transformou, como uma borboleta. Eu escolhi essa frase, Te adoro de
paixão, Isa, porque é a forma que você diz: EU TE AMO. Assim como
seus irmãos, vocês absorveram isso da sua mãe. É uma coisa muito de
vocês. Minha caligrafia está gravada em sua pele, da mesma forma que
a tua está na minha.
Renata ficou muda, Raissa também. A morena ficou muito
comovida, via tanta dor e desespero naquelas íris castanhas, mas via
algo mais, algo muito maior. Via amor.
— Você pode não lembrar, Luiza, mas você é, sim, a nossa Luiza.
Uma cardiologista brilhante, uma esposa maravilhosa e uma mãe sem
igual – cuspia as palavras.
— Melhor deixá-la sozinha – disse Raissa suavemente. – Ela
precisa processar tudo isso.
Duda atendeu, deixou que algumas lágrimas caíssem, só então
deixou o quarto.
Raissa olhou para a loira que se encolhia na cama num choro baixo.
— Quero ir embora agora.
— Rê...
— Sinto tanto medo – disparou a loira.
Raissa também sentiu, e não houve argumento, as duas mulheres
não quiseram conversar. Sem alternativa, o médico assinou a alta. As
duas saíram naquela mesma noite.
— Raissa.
A morena olhou para trás, Heloísa caminhou em sua direção
apressadamente.
— Ela está muito assustada – disse a morena, cansada.
— Não posso perdê-la duas vezes.
A advogada a puxou para um canto para que Renata não a visse.
Então, pediu que Heloísa anotasse seu número. A mais velha se
apressou a fazer.
— Me dê um pouco de tempo para ajudá-la a processar as coisas.
Vou tentar inseri-la na vida dela, mas, entenda, essa Luiza não existe
mais. Pense que você acabou de ganhar uma nova filha – disse com
sinceridade.
Heloísa abraçou Raissa impulsivamente, disparando diversos
obrigados. Depois, as duas se afastaram desajeitadamente. A mais velha
pareceu entender perfeitamente o que a jovem lhe dissera e a
confirmação veio logo em seguida:
— Acabei de parir uma guria de trinta e dois anos – disse com seu
sotaque puxado e sorrindo emocionada.
A frase arrancou uma gargalhada da mais nova.
— Exatamente isso, e ela tem os olhos lindos da mãe.
As palavras saíram de maneira espontânea, Raissa só percebeu
depois de dizê-la. O elogio deixou tanto o seu quanto o rosto da gaúcha
vermelhos. Desconcertada, a morena disse que entraria em contato e,
em seguida, foi embora.
As duas chegaram ao hotel aproximadamente dez da noite. Raissa
sentia-se exausta. Tomaram um banho e comeram no quarto mesmo, ao
final foram se deitar.
— Não quero voltar a ver aquelas pessoas – disse a loira baixinho.
— Elas podem ser sua família, Rê.
— Vocês são minha família – retorquiu.
A morena não insistiu. Se aquelas pessoas fossem mesmo os
familiares da Renata, levaria tempo para a loira aceitar. Raissa fechou
os olhos e tentou descansar, o cansaço as venceu em poucos minutos.
Renata retornou para o Rio Grande do Norte pior do que tinha ido.
Estava muito abatida e mentalmente sensível. Quando chegou em casa,
só queria uma coisa, colo. Colo daqueles dois senhores que se tornaram
tão importantes para si. Longe dos ouvidos da Renata, Raissa contou
aos pais tudo que aconteceu na capital pernambucana, principalmente a
possibilidade, ou melhor, a certeza de terem encontrado a família da
moça sem memória, deixando os dois senhores felizes e amedrontados
ao mesmo tempo. Afinal, Renata tornou-se uma filha para eles, desta
forma, não queriam perdê-la.
De volta, Renata tentou manter sua rotina.

◆◆◆
CAPÍTULO 36
Visita inesperada

Alguns dias depois.


Maria Eduarda ficou revoltada com a alta de Luiza, principalmente
após sair o resultado do exame de DNA, que confirmou que a loira de
fato é Luiza Lafaiete. Sem pensar duas vezes e instigada pela cunhada,
a morena arriscou a própria carreira ao entrar nos registros do hospital e
pegar o endereço da paciente. Algumas horas depois, Duda e Camila
foram bater no Rio Grande do Norte. Quando soube, Amanda ficou
uma fera e saiu em disparada atrás das duas antes que fizessem uma
besteira irremediável.
— Deve ser aqui – disse Duda.
— Vamos lá – chamou Camila, tirando o cinto de segurança.
— Calma, Camila! Isa está muito fragilizada, tenho medo de que
ela possa piorar.
As duas ficaram observando a movimentação da rua. Era um bairro
bem arborizado e calmo. Elas avistaram Raissa chegando, ela trajava
roupa aeróbica.
— Gostosa, hein! – comentou Camila. – Mesmo sem memória,
minha irmã não perde o bom gosto. Apostou na sósia da Camila
Pitanga[10], só que de olhos verdes.
Duda deu uma cotovelada na cunhada, que chiou de dor. Em
seguida, emburrou a cara enciumada.
— Você sabe que não estou mentindo, olha lá. – Apontou para
morena parada no portão de pedestre, ela falava com uma senhora que a
abordou. Raissa falava e sorria para a senhorinha. – Raissa é muito
gata. Stalkeei o perfil dela no Instagram, por sorte ela aceitou meu
convite. Duda, vi várias fotos dela com a Isa no maior love, o que
significa que o relacionamento é bem público – disse com pesar.
Duda sentiu uma pontada no peito. Além de toda a situação de
encontrar Luiza viva depois de três anos, lidar com o fato de que ela
estava sem memória e havia reconstruído sua vida com outra pessoa lhe
causava uma dor que chegava a ser física.
As duas ficaram à espreita por mais alguns minutos.
— Vamos, Duda. Não aguento suspense. Luiza é minha irmã e já
temos uma prova irrefutável – disparou a gaúcha.
Se enchendo de coragem, as duas desceram do carro e caminharam
até a casa número 23. Camila tocou a campainha até que um homem
apareceu.
— Boa noite – cumprimentaram as duas em uníssono.
— Virgem Maria Santíssima – disparou o homem, impressionado
ao ver Camila.
A loira sorriu, estava com saudade daquela reação que sua
semelhança causava.
— Oi, meu nome é Camila, vim falar com minha irmã, a Luiza –
disse prontamente a garota, abrindo um sorriso de orelha a orelha.
— Renata, queremos falar com a Renata – corrigiu Maria Eduarda
oferecendo um sorriso gentil.
João olhou desconfiado para as duas garotas, fez algumas
perguntas, para só então as convidarem para entrar.
— Renata ainda não chegou do trabalho, mas a Raissa está em
casa, vou chamá-la para falar com vocês.
O homem deu passagem para Duda e Camila entrarem. As jovens
entraram no quintal, observando tudo muito discretamente. O homem
indicou que as meninas caminhassem na frente, elas passaram por um
terraço, um pequeno hall até chegarem à sala de estar.
— Amor, essas moças estão procurando a Girassol.
Thaís aproximou-se. Ao olhar Camila, logo deduziu que era a irmã
da Renata, que Raissa tinha comentado.
— Boa noite, senhora, desculpe aparecer assim sem avisar – falou
Duda educadamente. – Eu sou a Maria Eduarda e essa é a Camila.
— Thaís – disse, apertando a mão das garotas. Primeiro uma,
depois a outra. – Me chamo Thaís.
— Sou a irmã da Luiza, quer dizer, Renata.
Thaís olhou para a loirinha dos olhos azuis e sorriu.
— A semelhança não nega – disse, dando um risinho discreto. –
Raissa falou que encontrou a fotocópia da Renata em Recife.
E Camila voltou a sorrir de orelha a orelha.
As meninas respiraram aliviadas, pelo pouco que perceberam,
aquele casal era bastante educado e simpático. A anfitriã convidou as
meninas para se sentarem. Thaís informou que a filha estava no banho,
mas que ia chamá-la.
— Renata ainda não chegou do trabalho.
— Quem é mãe? – Raissa apareceu na sala. Tinha acabado de sair
do banho quando ouviu vozes estranhas vindo da sala, mas, assim que
ouviu aquele sotaque, se apressou. Ela vestiu-se rapidamente, nem
penteou os cabelos molhados e caminhou até a sala. Ao ver as duas
garotas sentadas no sofá conversando com seus pais, sua expressão
endureceu.
— O que fazem aqui? – perguntou a advogada rispidamente.
— Vieram ver a Rê, minha filha. Já ia te chamar – disse Thaís.
— Viemos falar com a Luiza – disse Duda. – Trouxe algumas
coisas para ajudá-la a lembrar da sua família. Como pode deixá-la
trabalhar se ela está sem memória? – disparou, enfrentando o olhar
carrancudo da advogada.
— Vai dizer isso a ela – rebateu. – Aquela mulher tinhosa igual a
uma mula – disparou Raissa.
Camila, João e Thaís riram ao mesmo tempo, pois Luiza era uma
teimosa, mesmo. Duda soltou o ar com força, seus olhos avistaram
Raissa de cima a baixo, a visão que viu não era nada animadora. Essa
versão Camila Pitanga de araque, retrucou para si mesma, erguendo a
cabeça para encarar a morena nos olhos. Não se deixaria intimidar pela
beleza da sua rival. Então, usando um tom mais comedido falou:
— Raissa, estamos com o resultado do DNA. Luiza e Renata são a
mesma pessoa. 98% de compatibilidade com o DNA da minha sogra.
Está aqui a prova que você queria. – Deu uma cotovelada em Camila.
Camila chiou, pegou dentro da sua bolsa o resultado do exame que
tinha roubado da sua mãe e entregou. Raissa e os pais entreolharam-se.
Hesitante, pegou o papel à sua frente. Ela tinha se arrependido de ter
autorizado aquele exame sem a autorização da Renata. Não queria nem
imaginar o que a loira faria quando soubesse. A morena abriu o
envelope e leu calmamente, porém não entendia nada do que estava
escrito, a única coisa que ficou clara foi a taxa de compatibilidade,
98%.
— Então, minha filha, Renata é ou não é essa Luiza? – perguntou
Thaís, cheia de tensão.
— Claro que ela é – respondeu Maria Eduarda. – Como pode ver,
ela é a Luiza, ou seja, minha ESPOSA – disse a última palavra em um
tom mais alto.
— Não fale como se Renata…
— Luiza – corrigiu a médica.
— A Luiza fosse uma propriedade. Vocês não entendem que, para
ela, vocês não passam de desconhecidos?
— Minha filha tem razão – se intrometeu Thaís. – Renata chegou
aqui parecendo um bichinho do mato, pouco a pouco fomos ganhando
sua confiança.
— A única família que ela conhece no momento é a gente,
pequenas flores – complementou João.
— Eu sei – concordou Maria Eduarda, triste. – Mas, no hospital,
oferecemos o melhor tratamento possível, não se preocupem, ela é
nossa responsabilidade agora – disse Duda, decidida.
A conversa seguiu acirrada. Renata estranhou o carro estacionado
na sua porta. Entrou em casa e escutou vozes estranhas. Ao chegar na
sala de estar, deparou-se com duas figuras. A loira respirou fundo e
aproximou-se de todos.
— Boa noite – cumprimentou, séria, olhando diretamente para as
visitas. Depois foi até Thaís e seu João, cumprimentando-os com beijos
no rosto e um abraço, como de costume. – Boa noite, tios! –
cumprimentou.
Sua atitude não passou despercebida pelas duas intrusas. Ambas
notaram que a relação que Luiza havia construído com aqueles senhores
parecia paternal. O pior foi a imagem a seguir, ao menos para Maria
Eduarda, que teve seu braço segurado discretamente pela cunhada.
— Oi, amor! – Luiza se aproximou de Raissa e lhe deu um selinho,
em seguida a abraçou.
Duda ficou morta de raiva. Raissa recebeu o olhar raivoso da
médica e achou engraçado. Duda era uma mulher muito bonita,
observou a advogada. Tinha feições tão delicadas que parecia que a
jovem não havia saído da adolescência.
— Rê, senta aí, precisamos conversar – pediu Raissa.
Luiza olhou desconfiada para a mulher, mesmo assim acomodou-se
numa das poltronas vagas. A morena respirou fundo e encarou a
realidade dos fatos. O clima esquentou quando Luiza soube que haviam
feito um teste de DNA sem sua autorização. Raissa tentou se justificar,
porém a loira estava possessa.
— Você não tinha esse direito, Raissa – gritou a loira, furiosa com
a advogada, levantando-se da poltrona.
— Você é minha irmã, não há mais dúvida – disparou Camila
alegremente.
— Você está enganada – replicou a loira, direcionando sua atenção
para a outra loira da sala.
— Não. Olhe – Camila pegou o papel das mãos de Raissa e
entregou à irmã, – leia, você consegue entender, você é médica.
Luiza olhou desconfiada para o papel. Soltando o ar com força,
seus olhos passearam por cada linha ali descrita. Ao final, sentiu faltar o
chão sobre seus pés.
— Eu sou…
— Você é a Luiza. A nossa Luiza – disse Duda, feliz.
A loira virou-se para a Duda. Suas palavras saíram extremamente
duras.
— Isso não muda os fatos, não interessa o que diz esse papel,
continuarei sendo a Renata Fernandes. Vocês não passam de
desconhecidos. Então, peço que se retirem e parem de me procurar –
disse entredentes. – Seja quem for essa Luiza, ela morreu.
A loira levantou-se e saiu em disparada da sala.
— Por que ela não nos aceita? – perguntou Camila, se entregando
ao choro. – Somos sua família. Sofremos esses anos todos achando que
ela tinha morrido.
— Florezinhas, ela precisa de tempo para se acostumar – disse João
docemente.
— Você precisa nos ajudar, Raissa – pediu Maria Eduarda, com os
olhos marejados.
— Vocês não deveriam ter vindo. Ela está se sentindo pressionada.
Você, mais do que ninguém, sabe da sua condição de saúde, Maria
Eduarda.
— Pressionada? Se coloque você em nosso lugar! Luiza não é
apenas minha mulher, ela é a MÃE DOS MEUS FILHOS – gritou. –
Filhos que sofrem por uma perda que não existe.
João e Thaís arregalaram os olhos surpresos, olharam para a filha
atônitos. A advogada tinha esquecido de contar aquele pequeno grande
detalhe aos pais. Na verdade, ela o evitou, porque até para Raissa,
estava sendo difícil de processar.
— Nossa Girassol tem pequenas florezinhas? – perguntou o senhor
João.
Duda fitou os olhos verdes daquele senhor que parecia tão
simpático, acabou sorrindo com a pergunta.
— Três – respondeu, pegando o seu telefone e mostrando uma foto
dos filhos.
Thaís e João não hesitaram em pegar o aparelho em suas mãos.
Eram três lindas crianças, dois loirinhos e uma de cabelos escuros.
— Como são lindos – disse o casal.
A campainha tocou, e Raissa se levantou para atender, sua cabeça
estava a mil. Queria ver a Renata, mas não queria deixar as duas garotas
chorando em sua sala. Seus pais não ajudavam em nada. Saber da
existência dos filhos só aumentaria a pressão sobre a advogada. Como
se fosse pouco, ao abrir a porta, deu de cara com outra médica daquele
hospital.
— O estrago foi grande? – perguntou Amanda, afobada. – Lembra
de mim? Sou Amanda, sua concunhada. – Ainda teve tempo para
brincar. – Esposa da loira mandona, irmã da morena bravinha e cunhada
da loira sem memória.
Raissa riu, aquele povo era maluco mesmo, pensava ela, mas,
dentre todas aquelas garotas, Amanda era a que parecia mais sensata.
— Melhor você levá-las daqui. Renata disse coisas muito duras
para elas. Preciso vê-la como está depois de saber do resultado do
DNA.
— Aquelas duas são loucas varridas pela Isa, me desculpe.
— Deu pra perceber, só que Renata…
— Luiza, o nome dela é Luiza – corrigiu.
— Que seja! Luiza não está bem. Ela precisa de tempo.
Amanda concordou. Assim que entrou na sala, as visitantes
correram para seus braços. Pouco tempo depois, as três saíram dali.
◆◆◆
CAPÍTULO 37
Não entendo por que
Renata que agora passaria a ser chamada de Luiza, não pensava
que as coisas poderiam ficar piores, ledo engano. Sua cabeça estava
uma pilha de nervos. Saiu daquela sala furiosa com a Raissa. A morena
não tinha o direito de submetê-la a um exame sem sua autorização. Mas
havia outra coisa bem mais forte que angustiava.
Eu deveria estar feliz, afinal, foi acesa a luz do meu passado.
Então por que sinto tanta angústia? Por que sinto tanto medo? Não o
medo dessas pessoas que parecem ser minha família, mas o medo de
quem foi essa Luiza. Eu não faço ideia de quem seja, mas tenho a
certeza de quem eu não quero ser: ELA.
A loira conjecturava enquanto arrancava as roupas e entrava dentro
do chuveiro. Após um longo banho, quando saiu do banheiro,
encontrou a namorada sentada na cama. Raissa carregava uma
expressão preocupada. Luiza ainda estava chateada com a namorada.
— Me desculpe – iniciou. – Sei que eu não tinha o direito, mas
aquelas pessoas pareciam tão certas…
— O que aquele papel diz não muda o que sinto – disse Luiza. – Eu
quero continuar sendo a Renata.
— Renata e Luiza são apenas um nome, o que importa é que você
encontrou sua família – disse suavemente, Raissa sabia que precisava
usar as palavras com cuidado. – Sei que é difícil, mas pense também
naquelas pessoas, elas passaram anos chorando por uma perda que não
existiu.
Aproveitando a oportunidade, Raissa contou a loira sobre a suposta
morte da garota. Luiza escutou tudo muito atentamente, mas nada disse.
Não tinha o que dizer, as únicas lembranças que tinha era de tudo que
viveu após acordar no hospital, mais de um ano depois.
— Eu só quero continuar onde e como estou. Será que você
consegue respeitar isso? – perguntou, séria.
Raissa soltou o ar devagarinho, não adiantaria tentar persuadi-la.
Renata estava de guarda levantada. Ao contrário do que a morena
imaginou, encontrar a família daquela garota não lhe trouxe paz ao seu
coração culpado, pelo contrário, Raissa ficara ainda mais preocupada,
pois não esperava uma reação tão negativa da loira. Na sua vã
inocência, imaginou que, quando esse dia chegasse, Renata ficaria feliz,
afinal, as lacunas do seu passado seriam preenchidas, mas não, muito
pelo contrário, a mera menção a ele criava uma armadura de aço sobre a
moça sem memória.
— Para você, pode não existir nada, mas para eles existe o tudo,
Renata. Tente se colocar no lugar dessas pessoas – pediu a morena,
levantando-se da cama e saindo do quarto.
Aquela situação mexia demais com a advogada, era mais forte que
ela, era automático. Raissa não conseguia evitar, era impossível evitar,
então ela se colocava: no lugar de uma mãe, de uma irmã, e, o pior, de
uma viúva. Poderia parecer mais fácil para a loira, pois não tinha com o
que se apegar, mas para aqueles que um dia fizeram parte do seu
passado, só em pensar no que eles poderiam estar sentindo,
desestabilizava profundamente a morena. Quando Raissa voltou ao
quarto, a loira já estava dormindo. Já era tarde, a morena se acomodou
na cama, convidou o sono a vir, mas ele não veio. Meu Deus, você é
mãe de três crianças. Tem uma esposa, dizia a morena ao fitar a figura
adormecida da namorada. Com esses pensamentos, Raissa viu o dia
clarear.
— Acordada tão cedo, filha – comentou dona Thaís, que estava na
cozinha terminando de tomar sua vitamina para ir para a academia.
— Não consegui dormir – confessou a mais nova.
— Por causa daquelas garotas?
— Por causa de tudo, mãe. Renata, quer dizer Luiza, tem uma
família – disse com angústia na voz. – Não apenas família de mãe e
irmãos, ela tem filhos, mãe, uma esposa. Não entendo por que prefere
ignorá-los.
Dona Thaís entendia toda angústia da filha e tentou atenuá-la da
melhor forma que pôde. Raissa sentiu-se mais calma depois da
conversa com a mãe e resolveu seguir seu conselho. Conselho esse que
a levou até o hotel que as três garotas estavam hospedadas.
Tempos mais tarde, no bairro de Ponta Negra.
— O que ela queria? – perguntou Camila a Amanda.
— Não sei. Ela só perguntou se poderia vê-la agora pela manhã –
respondeu, displicente.
— E por que ela ligou para você? Ela poderia ter me ligado –
voltou a questionar a advogada.
— Amor, talvez, Raissa ainda esteja brava com vocês duas. –
Apontou para a esposa e a melhor amiga. – Eu não sei o que ela quer,
mas nossas perguntas serão respondidas, Raissa acabou de chegar.
Raissa saiu sem que Luiza visse. Após a conversa com a mãe, a
morena resolveu conversar com a única pessoa que parecia ser a mais
sensata do trio. O que ocorreu na noite passada não poderia se repetir.
Por sorte, Amanda tinha lhe passado seu número de telefone. Desta
forma, a morena ligou para ela e a chamou para uma conversa séria.
Então, ali estava. Ao chegar ao hotel, as três mulheres já a aguardavam
no restaurante do estabelecimento. Após os cumprimentos de praxe, a
advogada foi direto ao ponto. A conversa foi tensa, Raissa não hesitou
em externar toda sua indignação pela atitude das garotas, ela já tinha
conversado com Heloísa, com quem vinha tendo contatos constantes
desde que retornou da capital pernambucana, disse que ajudaria no que
fosse preciso na aproximação.
— Não vamos abrir mão da Luiza – replicou Duda. – Luiza é
minha esposa, então ela deve ficar comigo.
Raissa respirou fundo contando de um até dez. Aquela morena era
carne de pescoço. O jeito possessivo que se referia a Luiza incomodava
profundamente a advogada. Adotando uma postura rígida, Raissa
voltou a falar, dessa vez diretamente para a morena possessiva.
— Primeiramente, não vou disputá-la, Maria Eduarda, até porque
Renata, ou melhor Luiza, tem trinta e dois anos, pode não ter memória,
mas é maior e capaz, então, tem bastante discernimento sobre seus
sentimentos – disse, fitando os olhos castanhos a sua frente. – Segundo,
minha única preocupação no momento é com sua saúde, a presença de
vocês no momento faz mal a ela...
— Você não é sua dona – interrompeu Camila, furiosa. – Vamos à
justiça se preciso…
Raissa virou-se para a loira que parecia um pimentão de tão
vermelha. Amanda recostou na cadeira e só assistiu ao show. Duda e
Camila estavam movidas demais pela emoção, e nada do que dissesse ia
fazê-las entender.
— Sou advogada, menina – disparou Raissa, irritada, enfrentando
os azuis fuzilantes da sua nova cunhada. – Sei perfeitamente o que essa
situação implica. Não quero ser rude, mas, se vocês insistirem em se
aproximar da Luiza, entrarei hoje mesmo com um pedido de medida
protetiva – ameaçou, séria.
— Você quer afastá-la da sua verdadeira família, a quer só pra
você.
— Não seja infantil, Maria Eduarda. Você está a tratando como se
fosse um objeto – esbravejou Raissa. – Conquistei meu espaço e sugiro
que vocês conquistem o seu. Eu não sei que tipo de vida ela teve, mas a
Luiza, a quem tanto vocês se referem, a causa medo.
Aquelas palavras atingiram fundo as três garotas. Os olhos de Duda
lacrimejaram instantaneamente, a morena lembrou-se do passado não
tão florido que sua doce prostituta peregrinou.
— Hora de voltar para casa – disse Amanda, levantando-se da
mesa.
Raissa olhou para as três garotas e soltou o ar devagarinho. Sabia
que suas palavras saíram duras, mas precisava resguardar a Renata.
— Maria Eduarda – chamou Raissa. – Você mais do que ninguém
aqui nesta mesa sabe quão delicada é a situação de saúde da Luiza. Não
estou dizendo para desistirem, o que estou dizendo é que não dá para
empurrar essa Luiza de goela abaixo. Renata precisa de tempo.
Luiza se mantinha firme em não querer contato com sua família,
mas, pouco a pouco, o casal Fernandes conseguiu amolecer a loira.
Era uma terça-feira, feriado na cidade, Luiza estava com seu João
cuidando do jardim. Era uma atividade que a loira aprendeu a apreciar,
principalmente porque tornou-se um momento muito deles. João, na
maior paciência do mundo, ensinava a filha (do coração) a mexer na
terra, podar as flores e toda aquela atividade de floricultura, já Luiza se
mostrava uma exímia aluna. Os dois estavam ali envoltos naquela
atividade quando o homem resolveu abordar o assunto.
— O que tem medo, Girassol? – João perguntou
despretensiosamente.
Luiza levantou a vista e encarou as azeitonas daquele senhorzinho.
Ela vinha pensando muito na sua família biológica. Lembrou-se das
vezes que falou com sua mãe Heloísa por videochamada. Embora a
gaúcha ainda fosse para si uma desconhecida, a loira sentiu uma
emoção muito terna quando se comunicou com a artista plástica.
Heloísa, apesar do alvoroço de suas emoções, seguiu à risca os
conselhos da Raissa, nada de pressão, nada de menção ao passado.
Apenas conversou sobre o cotidiano, perguntando como a filha estava,
sobre seu trabalho, coisas da sua vida atual. Aquela sutil abordagem fez
a loira se sentir confortável e fez com que a comunicação fluísse. Luiza
percebeu o quanto se parecia com a mãe. Cada dia sua vontade de
conhecê-la crescia. Sobre seu pai, perguntou sobre ele uma única vez. A
artista plástica sentiu o peito retumbar e um amargo em sua boca. Seu
pai morreu de câncer há alguns anos, respondeu a mulher. Heloísa
sentiu medo das perguntas a seguir, afinal, havia muitas dores do
passado, mas, para sua surpresa, Luiza não se mostrou interessada em
saber mais.
— Eu não sei, tio. Não entendo por que não consigo aceitá-los.
Quando penso no que essa Luiza possa ter sido, um muro ergue-se
sobre mim. Uma voz grita, olhe apenas para frente, apenas para frente.
— Você sempre fará parte do nosso jardim, Luiza – disse o homem
docemente. Aquela era a primeira vez que a chamava pelo seu nome
verdadeiro.
Luiza parou o que estava fazendo e olhou para ele com amor. A
única coisa que sabia sobre seu pai era que tinha morrido. Por algum
motivo, ela não se sentia confortável em perguntar sobre ele. Se ele foi
importante, morreu com a outra Luiza, porque ESSA só conseguia
enxergar e amar um único pai, era justamente o senhorzinho gordinho
de pele escura e olhar carinhoso que lhe cuidava e a preenchia de uma
forma que não deixava nenhum espacinho livre.
— Acho que tenho medo justamente disso – disse, com a voz
embargada. – Tenho medo de perder o que tenho aqui – disse, deixando
as lágrimas rolarem pelo seu rosto. – É como se essa Luiza me
ameaçasse constantemente. Sei que é confuso, mas…
— Ei, olha para o tio aqui – pediu, puxando delicadamente seu
rosto para que o fitasse. – Não há a menor chance de você perder o que
tem aqui. – Ele disse. – Porque nossos corações, falo por mim e por sua
tia, a adotaram como nossa. Pra gente, só será acrescentado um
sobrenome em você – disse com sinceridade. – Luiza Lafaiete
Fernandes – brincou. – Ou o inverso, Luiza Fernandes Lafaiete. Seja
como for, assim como minha Margarida (Raissa), você pertence a esse
jardim aqui. – Apontou para o lindo jardim daquela casa.
A loira sorriu e o abraçou com carinho. Ela o amava tanto, queria
tão bem para aquela família, de um jeito inexplicável.
— Eu e sua tia precisamos cumprir uma promessa – disse o homem
ao se afastar.
Luiza sabia exatamente que promessa era essa. Seu sorriso se
alargou, naquela mesma manhã ligou para a mãe.
— Mãe, gostaria de convidá-la para almoçar aqui em casa. Queria
que conhecesse duas pessoas muito especiais para mim.
Heloísa ficou maravilhada com o convite. As duas conversaram por
um tempo e combinaram da gaúcha ir visitar a filha no domingo. Seria
a primeira vez que visitaria a filha. Heloísa sentiu seu coração explodir
numa felicidade diferente. Não existia passado para elas, porque Luiza
deixou muito claro naquela ligação que não queria saber quem foi a
Luiza ou deixou de ser. Se a mulher estivesse disposta a conhecer e
acolher aquela Luiza Lafaiete Fernandes, a loira permitiria uma
aproximação física.
— Te adoro de paixão, filha, até domingo. – Escutar aquela frase
naquele sotaque fez a loira sorrir.
— Até domingo, mãe.

◆◆◆
CAPÍTULO 38
As visitantes
A casa dos Fernandes estava bastante agitada. Dona Thaís andava
de um lado para o outro dando ordem aos três. Queria a casa impecável
enquanto ela preparava o almoço para receber as visitas. Ao contrário
do que combinaram, mãe e filha, duas penetras, resolveram se convidar
para o almoço. Preocupada com a reação da filha, Heloísa ligou para a
nora, explicando a situação, e lhe pedindo que ajudasse com a Luiza.
Raissa, como sempre, foi muito simpática e atenciosa, informou que
não se preocupasse, pois todas seriam muito bem recebidas em sua
casa.
— Mãe, a senhora fez a gente faxinar tudo ontem – reclamou
Raissa.
Raissa foi ignorada pela mãe, resignada foi fazer a última vistoria
no imóvel. Luiza e João estavam jogados no sofá conversando
amenidades quando a advogada se aproximou.
— Vocês ficam aí de boresta[11], enquanto eu sou obrigada a limpar
pela décima vez o que já está limpo – reclamou, se jogando no outro
sofá.
— Não conhece sua mãe? Quer causar boa impressão – disse João.
— Tio, mamãe acabou de dizer que estão saindo do hotel – avisou
Luiza despreocupadamente.
Raissa levantou-se de sobressalto. O combinado era para que a
visita chegasse por volta do meio-dia, e não eram nem dez horas da
manhã.
— Você não é doida, mainha vai surtar – avisou a morena.
— O tio sugeriu de mostrarmos nosso trabalho na estufa, e a
mamãe ficou bastante interessada.
Raissa correu para o interior da casa. Luiza e João escutaram os
berros em reclamação da dona Thaís, que acabou optando por comprar
o almoço em um restaurante que tinha confiança. Assim teria tempo
para dar atenção às visitas. Raissa e a mãe tomaram um banho rápido e
se arrumaram. Pouco tempo depois, a campainha tocou, Luiza correu
para abrir a porta.
— Como é bom vê-la, mãe – disparou a loira, abraçando
impetuosamente a mãe.
Heloísa ficou surpresa em receber um carinho tão impetuoso da
filha, já que antes esse tipo de demonstração de afeto era um tanto
contido, devido às amarras do passado. Porém, a gaúcha correspondeu
àquele carinho com lágrimas nos olhos. Abraçou longamente a filha e
lhe deu um beijo terno no rosto. Após se afastarem, foi a vez da Camila,
que agarrou a irmã como se tivesse medo de que ela fosse embora.
— Como você está, guria? – perguntou Luiza.
— Feliz, muito feliz – disse a loirinha, enxugando o rosto.
Luiza direcionou sua atenção para a outra garota, algo nela a fez
sorrir. Isabella estava muito emocionada em ver a prima, Luiza sempre
foi sua melhor amiga.
— Você deve ser a Isabella – disse Luiza.
A outra loira estava tão emocionada que não conseguiu falar, quem
tomou a iniciativa de abraçá-la foi Luiza. Então, Isabella desatou a
chorar. As duas ficaram um longo minuto conectadas uma à outra. Era
estranho, mas aquelas presenças traziam fagulhas de felicidade para a
gaúcha sem memória.
— Vamos entrar, quero que conheça a minha família – disse a loira
com naturalidade.
Luiza conduziu todos para dentro de casa. Ao chegar à sala de
estar, as visitas foram recebidas com três lindos sorrisos. Luiza puxou a
mãe pela mão e apresentou ao casal que lhe deu um lar. Houve muita
emoção no momento, a primeira coisa que Heloísa fez foi agradecer por
tudo que fizeram por sua filha. Em seguida, as demais visitantes foram
apresentadas.
— Meu Deus, nessa família só nascem lindos girassóis? –
perguntou João, divertido, ao avistar as duas loiras ao lado da Luiza,
arrancando risadas de todos.
— Meu pai chama a Luiza de Girassol devido à tonalidade de seus
cabelos – explicou Raissa, sorrindo.
O domingo não poderia ter sido mais gostoso. A loira não
desgrudou das suas visitas, era bonito de se ver.
— Ela parece tão feliz – comentou Heloísa enquanto tomava um
café com a dona da casa. – Eu nunca a vi assim, tão feliz.
— Você tem uma linda menina – disse Thaís com ternura.
As duas mulheres se olharam nos olhos. Os negros da artista
plástica se encheram de lágrimas.
— Agora eu a entendo – disse Heloísa.
Quem pareceu não entender foi Thaís, que franziu o cenho.
— Ela encontrou em vocês o que nunca teve enquanto morou
conosco. – A voz saiu embargada. – Podemos conversar?
De mãe para mãe, Heloísa contou um pouco da história da sua
filha, foi uma conversa sofrida. As horas que passou naquela casa a
fizeram perceber o motivo de sua Luiza ter tanto apego a sua vida
presente. O carinho que aquele casal tinha por ela transbordava em seus
sorrisos, nos olhos e nos cuidados. Luiza estava sendo amada e cuidada
por um pai e uma segunda mãe da forma como deveria ser. Ao invés do
sentimento de amargura, inveja ou culpa, a gaúcha se sentiu apenas
grata. Gratidão por sua filha, pela primeira vez na sua vida, sentir amor
de um pai na forma mais pura.
Thaís sentiu uma forte pontada no peito ao ouvir o relato daquela
mãe.
— Se ela não quer saber, melhor assim – disse a dona de casa, por
fim. – Estou dividindo com você nosso lindo Girassol – falou, tentando
quebrar o clima ruim que se instalou. Depois de toda a revelação de
abusos e infortúnio que aquela jovem passou. – Aquele velho barrigudo
tem um ciúme das suas flores, eu também não fico atrás. – Thaís
segurou as mãos da mulher. – Cuide dela com todo amor que você
sente, é sua segunda chance. Luiza tem um pai agora, um pai que ama e
cuida e que vira um touro bravo se alguém mexer com suas meninas
(filhas).
— Obrigada – agradeceu a gaúcha emocionada.
O domingo rendeu na casa dos Fernandes. As visitas só foram
embora mais dez horas da noite, mas ficou a promessa de novos
encontros.
◆◆◆
CAPÍTULO 39
Operação trazê-la de volta

Dias depois.
— Fica assim não, Duda – pedia Amanda.
— Desculpa, Du, fiquei tão empolgada com a visita – falou Camila
sentindo-se culpada. Ela tinha contado minuciosamente como havia
sido o reencontro com a irmã, como era a família da Raissa e
principalmente o relacionamento tão cúmplice que as duas pareciam ter.
– Pior de tudo é que a Raissa é uma fofa. Ela e os pais receberam a
gente tão bem.
— Minhas chances com a Isa são as mesmas de ela recuperar a
memória – concluiu, triste, após o relato da amiga.
— Raissa é uma fofa, mas continuo preferindo você como cunhada.
Conhecer o terreno me fez pensar numa forma de trazer a Isa pra cá –
disse Camila.
Amanda e Duda a fitaram com curiosidade. A loira abriu um
sorriso travesso.
— Nunca leram Sun Tzu? Conheça o inimigo e a si mesmo, e você
obterá a vitória sem qualquer perigo; conheça o terreno e as condições
da natureza, e você será sempre vitorioso.” [12] É uma boa cartilha para
ser um excelente advogado – gracejou, vaidosa. – Já era difícil trazer
minha irmã de volta pelas vias normais, imagina depois que a vimos no
domingo. Uma coisa ficou muito clara, Luiza é feliz nessa vida que
construiu. Ela tem uma família adorável, um trabalho pelo qual parece
ter se apaixonado e uma linda Camila Pitanga na cama – provocou. Sua
esposa deu uma cotovelada. Camila nem ligou. – Calma, Ísis Valverde –
brincou com a Duda. – Você me tem no seu time, então a chance de
vitória é alta.
Duda se afundava ainda mais na poltrona, cada palavra lançada
pela cunhada, se via mais distante do amor da sua vida, doía demais
saber que ela era feliz com outra.
— Amor, para de chutar cachorro morto – disparou Amanda.
— Precisamos trazer a Raissa pra cá – disse simplesmente a loira.
— Como se isso fosse fácil! – rebateu, desanimada.
— Então, Raissa é advogada. Uma brilhante advogada. Desde que
voltei, temos conversado bastante sobre carreira e tudo. Ela é uma fera,
assim como você, Duda. Andei investigando a procedência da minha
nova cunhada – falou com certo tom de admiração. – Cara, meu patrão
ficou louco quando mostrei o currículo da Raissa. Ela tem uma boa
experiência na área criminal, já advogou no maior e melhor escritório
de advocacia do Rio Grande do Norte. Tem uma taxa de eficiência de
quase 90%, vocês têm noção do que é isso?
— Pontuar o quanto essa mulher é boa não está ajudando, Mila –
repreendeu Amanda, solidária a sua melhor amiga.
— Foi mal, é que eu não esperava que ela fosse tão, tão. Mas,
enfim, estava eu conversando com o Dr. Pedro, comentei que Raissa
tinha saído há pouco tempo do escritório porque estava querendo novos
desafios, o instiguei o suficiente para ele convidá-la para trabalhar
conosco.
Duda arregalou e se empertigou no assento. A intenção da Camila
acendeu como uma lâmpada em seu intelecto.
— Será que ela aceita? – perguntou, sentindo uma pontada de
esperança
— É o que espero. Eu mesmo digitei o convite. Raissa já deve ter
recebido. Em questão de tempo, teremos uma resposta.
— Você está contando com o ovo no fiofó da galinha – replicou
Amanda com os pés no chão. — Amanda tem razão, se ela
não aceitar? – indagou Duda, desanimando de novo.
— Impossível não aceitar. Afinal, estamos falando de Dr. Pedro
Moraes, e outra, minha sogra vai dar aquela forcinha junto com o Dr.
Dantas. Luiza precisa ter um acompanhamento que só o Hospital La
Esperanza oferece. Tudo isso vai pesar.
O que a loira falou fazia sentido. Se a mudança realmente
ocorresse, Maria Eduarda teria uma chance.
Natal-RN
Raissa ficou surpresa quando recebeu uma carta de um
determinado escritório de advocacia. Leu atenciosamente o conteúdo
que, além de elogios ao seu trabalho, a convidava para uma reunião.
Intrigada, acabou aceitando, já que seria por videoconferência. No dia
marcado, compareceu à chamada com três advogados, cujo peso no
mundo jurídico ela conhecia muito bem. A jovem ficou lisonjeada com
o convite que recebeu para atuar naquele escritório. O único problema
era que o ambiente de trabalho era situado no estado vizinho. Após o
fim da reunião, buscou os conselhos de sua mãe. Thaís ficou feliz pela
filha. Pelo que entendeu, era uma oportunidade valiosa para a carreira
da advogada, pois ela trabalharia justamente na área que gosta de atuar.
Quando Renata chegou, à noite, a morena abordou o assunto.
— Amor, recebi uma proposta de trabalho.
— Mais uma, você quer dizer – disse, rindo. – Você sempre recebe
proposta de emprego, mas não aceita nenhuma.
— Mas essa é diferente.
— E o que de especial tem nela? – perguntou enquanto terminava
de se vestir. – Você não estava pensando em abrir seu próprio
escritório?
— Então, encarar a burocracia de administrar um escritório não me
agrada. Eu gosto mesmo é de advogar, única e exclusivamente isso.
Uma hora, as minhas economias vão acabar, preciso voltar ao mercado.
Luiza sentiu que naquela conversa tinha muitos: no entanto,
todavia, porém, mas. Sentiu um leve incômodo subir. Isso a fez encarar
seriamente as azeitonas à sua frente.
— Diz logo, Raissa – pediu.
— O escritório que me convidou fica em Recife. É um grande
escritório, assumirei toda parte criminal – contou e esperou reação.
— Nossa vida é aqui – disparou, séria. – Ao longo desse ano, você
recebeu dezenas de propostas de emprego. Tem seus clientes que
insistem que você continue os representando. Por que tem que mudar
para aquela cidade?
— Por causa de você – respondeu, também séria. – Não podemos
tapar o sol com a peneira, seu estado se agrava a cada dia. Os riscos
aumentam cada vez que você tem um gatilho.
— Eu não quero voltar àquele hospital.
— E eu não quero te perder.
Os olhos escuros marejaram e sua voz saiu embargada.
— Por que eu sinto que ir para aquela cidade será nosso fim? Eu
ainda sou sua Raissa.
Raissa sentiu um aperto no peito. Era o que sentia também, mas era
o que seu coração mandava fazer, e, como sempre, a morena respeitava
seus instintos.
Raissa protelou a resposta por quase uma semana. Uma parte de si
ainda tinha dúvida, mas outra falava que aquele momento tinha
chegado. A mudança abalou muito seu relacionamento com a loira, mas
Raissa estava decidida, faria por si e faria por ela. Após aceitar a
proposta, seu novo empregador lhe deu um prazo de duas semanas para
que ela assumisse seu posto. O casal teve que correr. Apesar do medo
de voltar a sua cidade natal, a loira não estava disposta a abrir mão da
namorada, iria com ela. Com isso, Luiza teve que se desvincular do seu
trabalho e se despedir das pessoas que passaram a fazer parte da sua
vida.
— Minha mãe ficou muito feliz em nos receber em sua casa – disse
a loira. – Mesmo eu dizendo que só é até acharmos um lugar adequado
pra gente.
— Natural ela querer grudar em você.
Luiza aproximou-se da morena. As coisas andavam muito tensas
entre elas, Raissa havia mudado. Desde que voltaram de Recife, a
morena tinha certa resistência para receber seus carinhos.
— Eu quero você, Raissa.
As duas fizeram amor naquela noite, mas ao contrário das outras
vezes, foi Luiza a se sentir estranha. Seu corpo reagiu a cada investida,
correspondeu à altura o ápice do prazer, contudo, ao final, sentiu-se
incompleta. Raissa ressonava baixinho em seu pescoço. Por breves
segundos, a loira lembrou-se da jovem de olhos castanhos e rosto tão
juvenil. Seus cabelos eram os mesmos que viu em alguns flashbacks,
longos, escuros e sem nenhuma onda. A lembrança da Maria Eduarda a
fez abraçar ainda mais o corpo que tinha grudado ao seu. Luiza gostava
do rio tranquilo que Raissa lhe oferecia. Por algum motivo, seus
instintos lhe diziam que a médica de cabelos sem onda era um mar
revolto, e Luiza não sabia se sabia surfar. Ela olhou para o rosto de
Raissa adormecido e a beijou carinhosamente no topo da sua cabeça. Te
adoro de paixão, guria, disse baixinho, fechando os olhos e convidando
o sono para lhe fazer companhia.

◆◆◆
CAPÍTULO 40
Novo começo

O prazo proposto por seu novo empregador passou na velocidade


da luz, era hora da despedida. Luiza e Raissa se despediram de Natal e
foram em busca de um novo amanhecer.
— Não sabe o quanto fico feliz em tê-las aqui – disse a mãe da
gaúcha, sorridente, ao ver as duas garotas em sua casa.
— Agradeço sua hospitalidade, Heloísa – disse Raissa.
Raissa ainda não estava acostumada com a imponência da mãe da
sua namorada, sentia uma enorme dificuldade de chamá-la de senhora.
Seus verdes-oliva sempre a perseguiam mais do que deviam, e isso
causava incômodo em si.
— Será por pouco tempo, mãe. Hoje mesmo começo a procurar um
apartamento.
— Filha, não há necessidade alguma. Essa casa é enorme, eu moro
sozinha. Não me tire sua companhia – replicou a mais velha. – Não
quero ficar longe de você, guria. – Abraçou-a com carinho.
— Eu também, mãe. Vou procurar algo próximo. Quero conhecê-
la, quero senti-la – disse a loira com sinceridade, arrancando algumas
lágrimas emocionadas da mãe.
A mais velha mostrou o apartamento para as garotas.
— São seus irmãos – disse Heloísa, ao ver a filha diante dos porta-
retratos em um determinado móvel.
— Nessa família só há pessoas loiras? – perguntou Raissa ao
avistar os quatro filhos da mulher.
— Eu sou morena – replicou Heloísa, divertida.
Raissa virou-se, cruzou os braços e arqueou as sobrancelhas
fingindo-se de séria.
— Eu sou morena – rebateu, apontando para a cor do seu
antebraço. – Você é uma branquela dos cabelos escuros que acha que é
morena – contra-argumentou.
Heloísa reproduziu a mesma postura e replicou:
— Olha o preconceito, guria! – fingiu certa seriedade. – Segundo
meu registro de nascimento, sou parda, logo, não sou branca – replicou
com um falso ar de superioridade.
Raissa desmanchou a pose e deu uma gargalhada, acompanhada
pela mais velha.
— Eu deixo você se iludir que é morena – implicou a advogada.
Luiza parecia alheia ao que as duas conversavam, seus olhos foram
fisgados por uma foto específica. Suas mãos ficaram trêmulas e um
misto de emoção foi tomando conta do seu corpo. Seus olhos se
encheram de água.
— É ele – disse, recebendo a atenção das duas mulheres. – Vi esse
guri várias vezes nos meus sonhos e em alguns flashbacks.
— Esse é o João Gabriel, seu filho mais velho.
— João, igual ao tio João – lembrou-se Luiza, sorrindo com a
coincidência dos nomes.
Desde que soube que Renata e Luiza eram a mesma pessoa, a loira
afastou qualquer pensamento sobre a Duda e os seus filhos. Não que
não tivesse curiosidade, Luiza só não se sentia pronta para lidar com
isso. Era algo que ainda a travava, queria viver uma coisa de cada vez,
conhecer uma pessoa por vez, porque ela não queria absolutamente
nada da outra Luiza. Os que quisessem se aproximar precisavam saber
que a Luiza que hoje respirava nada tinha a ver com a que perderam há
três anos.
— Ele se parece muito com você, principalmente na personalidade.
Ele é apaixonado pelo piano – disse a mais velha, risonha.
— Ele é um guri muito bonitinho – respondeu Luiza.
Heloísa aproveitou a oportunidade para mostrar os outros netos.
Foi até um móvel e pegou um álbum com fotos. Luiza ficou
maravilhada com o que viu, seu coração bateu num ritmo diferente. Ali
conheceu além dos seus filhos, também seus sobrinhos, filhos dos seus
irmãos que moravam no exterior e também o da Camila.
— Vocês têm uma família grande – comentou Raissa, diante de sete
crianças.
— Deixa eu te mostrar uma coisa – falou a mais velha ligando a
TV e enviando um vídeo do seu celular para o aparelho eletrônico.
Era uma peça teatral, Luiza aparecia no vídeo toda boba junto com
o filho mais velho fantasiado de Peter Pan. Pendurada ao seu pescoço,
havia uma linda menininha de cabelos escuros, igual à moça dos
cabelos sem onda. A cena causou certa inquietação, pois a loira parecia
muito feliz. Seus olhos não desgrudaram do aparelho de tevê. Luiza se
despediu do garoto que correu para o centro do palco. A apresentação ia
começar. Nas imagens a seguir, a voz da Duda se fez presente.
— Hoje a cidade do Recife vai conhecer o futuro Tarcísio
Meira[13], com sangue gaúcho e laços pernambucanos. – Apontou para
o pequeno João que estava contracenando no palco. – Lindo, eu sei – se
gabava Duda. – Esse é nosso primogênito, o mais gato, o mais esperto
dos garotos. Vai arrasar os corações das meninas por aí.
A loira fez uma falsa revirada de olhos e tomou a câmera da
mulher. A imagem de Duda se materializou, ela estava com a barriga
redonda, demonstrando sua nítida gestação. A morena puxou a loira
pela cintura e tascou um beijo. Em seguida, gargalharam, lindas, felizes
e apaixonadas.
Heloísa acompanhou a reação da filha, mas foi a reação da nora
que chamou sua atenção. Raissa baixou os olhos e se afastou um pouco.
— Já é o bastante, mãe – disse a loira.
Heloísa não insistiu. Luiza levantou-se e foi para seu quarto,
poucos minutos depois Raissa escutou um grito. A morena correu para
socorrê-la. Ao chegar no cômodo, Luiza estava se debatendo no chão
com a mão na cabeça e sangue expelindo pelo nariz. Em menos de 24h
na cidade, a loira deu entrada no Hospital La Esperanza.
Após atendimento, a paciente descansava no quarto, enquanto o
neurologista conversava com Raissa e Heloísa. O médico foi muito
direto com as mulheres, Luiza precisava passar por uma cirurgia para
diminuir a pressão em seu córtex cerebral, ou um de seus gatilhos
poderia levá-la à morte.
Algumas horas mais tarde.
Raissa sentiu-se sufocada, levantou-se da cama e caminhou até a
varanda daquele apartamento. Agora, ali, naquela cidade estranha, a
morena começou a repensar se tinha feito a escolha certa. Havia
arriscado tudo para dar uma segunda chance a Luiza. Aceitara aquele
trabalho unicamente porque, estando na cidade, a loira poderia ter o
cuidado que precisava para se manter viva e estar perto dos seus
verdadeiros familiares. O pouco que a morena conviveu com aquelas
pessoas foi possível perceber o quanto a loira era amada.
Mas a morena havia se apegado à loira também, tinha um
sentimento imensurável por sua pessoa.
— Perdeu o sono? – A voz melodiosa da artista plástica
interrompeu seus pensamentos. Raissa assustou-se, virando-se para trás
bruscamente e colidindo com a dona da casa.
— Desculpe, não quis assustá-la – desculpou-se Heloísa.
Raissa riu fraco. Heloísa estava na cozinha quando viu Raissa
atravessar a sala. Curiosa, acabou indo atrás da jovem.
— Também não consigo dormir, nem na base do remédio – disse a
mais velha, tentando quebrar o silêncio constrangedor que se instalou.
As duas se encostaram no parapeito da varanda, a brisa fria
acariciava seus rostos.
— Está tudo bem? – perguntou suavemente.
— Acho que não – disse Ray, soltando o ar com força. – Eu não
consigo ignorar o fato de ela ter uma esposa e três filhos. Quando tento
abordar o assunto, ela foge. Meu Deus! Basta vê-la naquele vídeo para
perceber o amor que existia.
— Duda foi o primeiro amor da Luiza, as duas trilharam um longo
caminho até ficarem juntas. Mas agora ela tem você – disse Heloísa
serenamente.
Raissa lhe olhou, mas nada falou. Seus olhos estavam marejados.
Heloísa não sabia como agir.
— Talvez não por muito tempo – disse Raissa, sorrindo fraco e se
preparando para sair.
Por instinto, Heloísa a segurou pelo pulso. Os olhos verdes
penetraram os escuros.
— Luiza não está preparada para perdê-la, Raissa.
— Uma vez ouvi uma pessoa dizer que: Algumas pessoas nos
servem com bússola, e outras como mapas[14].
— Não entendi – disse Heloísa.
— Mapas mostram tudo ao redor, enquanto bússolas apontam
direções.

◆◆◆
CAPÍTULO 41
Camila Lafaiete será sua assistente

Raissa acordou cedo naquela segunda-feira. Aquele seria seu


primeiro dia de trabalho, e a morena estava ansiosa. Após tomar café da
manhã com Luiza e a sogra, a advogada rumou para seu novo ambiente
de trabalho. Por sorte, o escritório também ficava situado na zona norte
da cidade, ou seja, a poucos minutos de sua atual moradia. Raissa levou
apenas vinte cinco minutos para chegar. Se não fosse o trânsito intenso
da Avenida 17 de Agosto, teria chegado em menos tempo. O trânsito
daqui é duas vezes pior do que o de Natal, disse para si mesma ao
descer do veículo. Ela respirou fundo, pegou sua bolsa, trancou o carro
e caminhou até o escritório.
— Por aqui, doutora. – A secretária conduziu a advogada até a sala
do dono do escritório.
O advogado levantou-se da sua cadeira e foi receber sua nova
colaboradora. Foi bastante simpático e parecia animado com sua
aquisição. Raissa conhecia o currículo do novo chefe. Pedro Moraes era
um homem com seus sessenta e poucos anos, juiz aposentado e
professor da Universidade Federal do Estado, além de um exímio
escritor de livros jurídicos. O que a morena não sabia era que aquele
homem foi professor da sua atual cunhada. Esse detalhe ficaria para
mais tarde.
Após conhecer seus chefes, o escritório e alguns colegas de
trabalho, a morena foi apresentada à sua nova sala.
— Depois que perdemos a Dra. Cícera, ficamos em desfalque no
nosso quadro. Você responderá por toda parte criminal. Pelo seu
currículo, tem uma vasta experiência – explicava Dra. Maíra, esposa do
dono e sócia do escritório. – Você terá em sua equipe quatro advogados
e dois estagiários, porém quem os coordenará será você. Já mandei
chamá-los para que os conheça.
Passados alguns minutos, três pessoas entraram no escritório da
nova contratada. Dois homens e uma mulher. Foram feitas as
apresentações formais. Raissa permaneceu impassível numa postura
extremamente profissional. Cumprimentou Douglas, Fernando e Luana,
a outra advogada estava em uma diligência. Os advogados foram
dispensados, e Raissa voltou até a companhia apenas da chefe.
— A senhora disse que são quatro – inquiriu Raissa, querendo
confirmar sua suspeita.
Doutora Maíra revirou os olhos de um jeito engraçado.
— A outra advogada se chama Camila Lafaiete, a mais briguenta,
reclamona e exigente de todas. Ela costuma deixar o Pedro de cabelos
em pé – replicou a mulher, mas Raissa não via nada de negativo em sua
voz, pelo contrário, a mulher tinha ar de riso. – Contudo, ela é a mais
promissora entre eles – disse em tom de confidência. – Ela é recém-
formada, foi aluna do Pedro. Trabalha aqui desde o 5º período de
faculdade.
Após mais algumas trocas de informações, Raissa finalmente pode
desfrutar da solidão da sua nova sala. A morena riu largamente. Que
menina astuciosa, falou para si mesma.

Raissa logo juntou os pontos, seria coincidência demais trabalhar


justamente no mesmo escritório que Camila. Agora entendia sua
curiosidade em saber sobre sua carreira profissional, especificamente na
última conversa.
— E por que você não procura um emprego em Recife? Um
currículo como o seu, não seria difícil se associar a algum escritório de
renome? – perguntou a jovem, na época.
— Já disse que não tenho vontade de morar em Recife, Camila. As
únicas chances de tal mudança seriam: passar num concurso público ou
se recebesse uma proposta para atuar exclusivamente na área criminal,
e claro, com um atraente salário.
— Mas…
— Camila. Amo o lugar onde vivo. Estou pensando em abrir um
escritório pra mim. Quem sabe não te contrato como minha estagiária –
provocou.
— Já saí desse status – rebateu, vaidosa.
— Sua OAB ainda está engatinhando – implicou a advogada. Ela
não precisava estar perto para imaginar a loira revirando os olhos.
Camila era uma garota muito divertida, podia até se parecer com a irmã,
mas tinha uma personalidade muito diferente. Desde a visita, a jovem
puxava conversa quase diariamente com a morena. Raissa até que
gostava, elas conversavam sobre tudo, principalmente sobre o assunto
que fazia o coração de ambas acelerar. O Direito.
Voltando ao momento presente.
Raissa gostou do seu novo escritório e sentiu-se à vontade, assim
fez questão de ligar para seu antigo empregador para agradecer a
recomendação. Dr. Calheiro, apesar de ser um homem inflexível no
ambiente de trabalho, era justo. Reconhecia o potencial dos seus
colaboradores. Quando recebeu a ligação do Pedro Moraes, não poupou
elogios à pessoa e ao profissionalismo de Raissa, deixando Pedro mais
que satisfeito.
Durante o período da manhã, Raissa teve a oportunidade de
conhecer mais a fundo os membros da sua equipe. Luana era uma
mulher jovem, casada e mãe de dois filhos, era inteligente e dedicada,
logo as duas se simpatizaram, uma com a outra. Douglas já era um
homem maduro, em seus cinquenta e poucos anos, era de poucas
palavras. Já o Fernando foi uma surpresa, Raissa descobriu que ele era
filho dos donos do escritório. Pelo que entendeu, era apenas uma figura
naquele escritório, era um profissional desatento e desleixado.
Costumava deixar todo o trabalho nas costas dos estagiários. Isso
gerava inúmeras discussões com Camila, seu grande desafeto.
No início da tarde, quando Raissa voltou do almoço, deu de cara
com uma figura familiar. Camila sorriu sem graça ao ver a cunhada. A
morena manteve uma postura impassível, Luana fez a apresentação.
— Raissa, essa é a Dra. Camila Lafaiete, também membro da
equipe.
— Já nos conhecemos, Luana. Mesmo assim, obrigada – disse a
morena.
Notando o clima tenso, Luana resolveu sair pela tangente, deu uma
desculpa qualquer e deixou as duas mulheres sozinhas.
— Recebemos um novo caso e o doutor Pedro pediu que passasse
para você – disse a jovem, insegura.
Raissa manteve-se séria. Sentou-se na sua cadeira e fez sinal para
que a jovem se sentasse. A morena segurou o riso ao notar o
nervosismo da jovem advogada.
— Quando sugeri que fosse minha estagiária, não estava falando
sério – iniciou, mantendo uma postura rígida.
Camila se empertigou na cadeira e mordeu a parte interna da
bochecha em sinal de nervosismo. Seu plano era apenas trazer a
cunhada para trabalhar ali, não imaginou que seria designada para
trabalhar justamente na equipe de Raissa.
— Não sei do que está falando, trouxe cópia do processo e algumas
anotações pessoais que fiz ao analisá-lo, isso a ajudará a se familiarizar
com a causa. É um tanto trabalhosa. – Camila tentou desviar do
assunto.
— Eu não costumo acreditar em coincidência, doutora Lafaiete.
Raissa levantou da cadeira e caminhou até Camila, mantendo uma
carranca fechada. A mais jovem tremeu na base.
— Me desculpe – disparou Camila. – Esse era o único jeito de
trazê-la para perto. Sei que agi de forma manipuladora… – A garota
tentou se desculpar de todas as formas possíveis.
— Para uma advogada, você é muito frouxa – falou Ray, rindo da
cara de desesperada da cunhada. – Basta uma comida de rabo[15] para se
desmanchar toda. Sua moral foi lá pra baixo, pivete. –O pavor se tornou
alegria no rosto de Camila. A advogada se recompôs, agora sua voz
saiu em tom de seriedade: – Se sua irmã descobre que meu emprego foi
manipulação sua, você estará encrencada.
O sorriso de Camila se desfez.
— Eu não pensei nessa parte.
— Deveria, Camila. Eu e a Luiza somos um casal. Qualquer
decisão que eu tenha, preciso levar em consideração o que ela quer, e
ela não queria vir para cá.
— Ela não precisa saber. E sobre seu trabalho, apenas falei que
tinha conhecido uma advogada que tinha experiência na área e o perfil
que Dra. Maíra procurava – justificou. – O escritório estava precisando
de uma advogada e você, de um emprego.
— Eu não precisava de um emprego, menina, tinha meus trabalhos
independentes.
— Sem essa, Raissa. Você merece mais que meia dúzia de clientes.
Muitos deles com dívida com a justiça – falou Camila com certa
arrogância. – Ao certo eles nem pagam seus honorários direito.
Raissa buscou os olhos azuis à sua frente.
— Não são meia dúzia de clientes, Camila – disse a morena com
uma tranquilidade que lhe era peculiar. – Aprenda uma coisa, não é a
quantidade de casos que constrói uma carreira, e sim a qualidade do seu
trabalho. Não cabe a mim julgar a culpabilidade dos meus clientes. A
justiça os julgará de acordo com nossa Constituição. Minha obrigação é
oferecer uma defesa técnica para que tenham um julgamento justo. –
Fez uma pausa. Camila permanecia a fitando. – Por cinco anos,
trabalhei em um escritório conceituado, mas isso não significou nada, e
olha que representava “pessoas importantes”. O que é engraçado, pois
os números que você mesma destacou em meu currículo foram frutos,
em sua grande maioria, de defesas de pessoas humildes que pagaram
meus honorários com abraços apertados e sorrisos de agradecimento.
Foram justamente essas pessoas que me trouxeram exatamente para
esta sala. Essas pessoas pagam, sim, nossos honorários. Onde você
estudou, Camila?
— Na Federal.
— E quem sustenta o sistema?
Camila não respondeu. A loira estudou na Federal, não porque não
poderia pagar uma faculdade privada, mas pelo status que a
universidade carregava. Independente da qualidade do ensino, ter um
diploma da Federal sempre a deixaria a um passo à frente na carreira
que escolhera.
— Foram essas pessoas humildes que, através dos seus impostos,
pagaram os meus e os seus estudos, além de muitos outros
profissionais. Então, para mim, não importa se estou defendendo um
rico ou um pobre. Independente da classe social do meu cliente, ele
merece respeito e total comprometimento. É assim que venho
construindo minha carreira. Foi assim que consegui os quase 90% de
taxa de eficiência em meus processos.
Camila ergueu ligeiramente os olhos, como se refletisse sobre o
que acabara de ouvir. Sentiu-se envergonhada.
— Desculpe, acho que me expressei mal – disse a loira.
Raissa lhe sorriu, sua intenção não foi repreendê-la, até porque
sabia que Camila viera de uma realidade muito diferente da sua.
Contudo, a morena queria plantar naquele primeiro momento a semente
da humildade no coração profissional daquela jovem advogada.
Camila sentiu realmente envergonhada, nunca foi uma pessoa
arrogante. Fez um comentário infeliz e se arrependia por isso. As
palavras da sua nova chefe a fizeram ver uma porção de coisas que não
enxergava. Admirou um pouco mais a profissional à sua frente. Raissa
usou a mesma linha de pensamento que seu velho professor de Direito
Criminal usava em sala de aula. Pedro também viera de família
humilde, a muito custo cursou a faculdade, advogou, exerceu o cargo de
juiz e voltou a advogar após a aposentadoria. Apesar de toda sua
conquista, ele nunca esquecera de suas raízes, tanto é que seu escritório
era híbrido, onde 50% era dedicado à advocacia pro bono. Esse foi um
dos motivos que motivou Raissa a encarar aquele desafio, pois não só
advogaria para elite.
— Estou com vergonha – confessou Camila humildemente. – Acho
que tenho muito o que aprender.
— Aprenderemos juntas, Camila – disse Raissa docemente,
encerrando o assunto, e iniciando o trabalho.

◆◆◆
CAPÍTULO 42
Luiza morreu

Hospital La Esperanza.
As coisas não estavam sendo nada fáceis para Duda. Seu coração
se partia toda vez que sabia notícias da esposa. Ela descobriu que a loira
já estava morando na cidade, e tudo que queria era trazê-la de volta para
casa, mas não podia. Pela primeira vez na sua vida, Maria Eduarda
tinha que enjaular sua fera ciumenta e colocar a saúde e o bem-estar da
mulher que amava em cima dos seus sentimentos.
— O que você acha? – perguntou Maria Eduarda.
— Não sei, Duda. Os últimos exames mostraram que o córtex
cerebral está sendo pressionado. Mas não foram encontradas lesões
hemorrágicas ou tumores. Nunca vi resultados assim. – Amanda soltou
o ar com força. – A hemorragia vem da camada externa do córtex onde
fica a memória. Comparando com exames passados, descobrimos uma
grande reconstrução neural.
Duda pensou diante daquele painel de radiografias.
— A cirurgia tem muitos riscos, os danos cerebrais podem ser
irreversíveis – pontuou Maria Eduarda.
— De cérebro, medula espinhal, nervos periféricos e por aí vai, é
sua área, amiga – disse Amanda, cansada. – Realmente não sei como te
ajudar. Eu entendo de sistema circulatório e coração.
— Mesmo se operarmos, não temos a certeza de que a memória
dela possa voltar. Nesse tipo de cirurgia, temos 95% de probabilidade
de não dar certo – falou com a voz embargada, pois, seu lado
profissional não conseguia ignorar a ciência.
— Quais eram as chances de Luiza estar viva? – perguntou
Amanda. – Quais as chances de que no meio de milhares de pessoas
você a encontraria num bloco de Carnaval? Quais são as chances de,
entre tantos neurologistas no país, ela ser paciente justamente do amigo
do doutor Dantas? – pontuou Amanda. – Duda, até ontem eu diria que
era baboseira, mas é impossível negar a movimentação do universo
para te devolver essa mulher. Então, suas chances de tê-la de volta eram
menores que os 5% de chance dessa cirurgia. Então, será nesses 5% que
vamos acreditar.
Duda abraçou a amiga com carinho. Amanda tinha razão.

Luiza estava almoçando tranquilamente com a mãe e sua prima em


um shopping da cidade, quando começou a passar mal, resultando em
uma nova ida ao hospital. A loira acordou horas depois, sentia-se muito
fraca e com um resquício de dor de cabeça. Seu coração disparou ao
encontrar a moça dos cabelos sem onda.
— O que faz aqui? – perguntou a loira.
— Você deu entrada na emergência e fui chamada, doutor Dantas
não está no hospital… – Duda explicou calmamente o que havia
acontecido. Em seguida, caminhou para o lado da cama, afastou um
pouco do tecido e posicionou o estetoscópio no peito da loira.
Luiza sentiu sua pele queimar ao sentir o toque daquela mulher.
Seus olhos examinavam minuciosamente o rosto da médica. Duda pôde
ouvir seus batimentos acelerados. A loira fechou os olhos quando sentiu
aquele odor, era um perfume que lhe parecia familiar. Os batimentos
aceleraram ainda mais. Luiza se viu abraçada a alguém no meio de uma
multidão. Uma garoa pairava no ar e aquele cheiro. A loira arregalou
os olhos e se afastou do contato. Duda procurou forças para não perder
o controle.
— Melhor descansar – disse a médica, mantendo uma postura
séria. – Sente alguma coisa? – perguntou, fingindo anotar algo no
prontuário.
— Eu já senti esse cheiro antes – disse a loira. Duda levantou os
olhos para encará-la. A loira sentiu seu rosto enrubescer. – Do seu
perfume.
— Sou alérgica a quase todos os perfumes, o único que consigo
usar é uma colônia de bebê – respondeu docemente. – Pode me contar
sobre o episódio? – perguntou a médica.
Luiza sentiu-se desconfortável em relatar o flashback que teve, pois
a protagonista era justamente a moça à sua frente. A loira havia
assistido a um pequeno filme no qual estava naquela mesma praça de
alimentação, rindo e conversando com a Duda e seu filho mais velho,
eles faziam planos para as férias. A morena queria viajar para o
exterior, João queria ir para praia e Luiza queria ver os irmãos que
ainda moravam em Santa Catarina.
— Não lembro – mentiu. Maria Eduarda continuou com os olhos
fitos nos seus. – Eu vi as fotos das crianças. São três, não é? – falou
Luiza, quebrando o silêncio que ameaçava se instalar.
Duda quase não acreditou no que ouviu, seu rosto se iluminou com
a pergunta. Com muita dificuldade, manteve-se controlada, pois não
queria fechar a pequena aresta que se abria para ela.
— São três, sim – confirmou, aproximando-se ainda mais. Duda
tirou o seu celular do bolso do jaleco e abriu sua galeria de fotos. Em
seguida, ofereceu o aparelho a Luiza. A loira hesitou um pouco, mas as
imagens daquelas três crianças que viu no álbum da sua mãe não saíram
de sua mente. O desejo de vê-los em carne e osso se tornava mais
crescente.
Seus olhos pousaram numa foto sorridente de uma garotinha
banguela. Ela tinha os olhos castanhos e os cabelos escuros e sem
ondas. Duda se aproximou, sentando-se na beira da cama. —
Essa é a Vitória, a nossa filha do meio. Ela fez cinco anos, mês passado.
Dentre os três, é a mais tranquila. Toda delicadinha. Lucas se gaba, diz
que é sua pequena Lady.
— Lucas é o pai?
— Sim. Ele é ou era seu melhor amigo, e o meu segundo melhor
amigo. Nos conhecemos desde as fraldas. Ele é primo da Amanda. Ele
foi nosso doador nas duas ocasiões.
Luiza absorveu aquela informação, ela passou para outras fotos da
garota, cada vez se encantando mais. Depois vieram as fotos do garoto,
Luiza sorriu, esse estava sempre em seus sonhos e em muitos
flashbacks. Duda falou um pouco do filho mais velho.
— Essa é nossa pimentinha – disse Duda, rindo. – Minha mãe
sempre dizia que um dia eu teria um filho que iria me fazer passar por
tudo que a fiz passar.
— Ela é tão levada assim?
Duda abriu um sorriso lindo, e, pela segunda vez naquele dia,
Luiza se perdeu nas particularidades daquela mulher. A morena falava
animada sobre os filhos, seus olhos brilhavam o tempo todo.
— Eles sabem sobre mim? – perguntou a gaúcha.
— Ainda não contei. Malu não tinha nascido quando pensamos que
você tinha morrido, a Vic era pequena, o problema é o João. – Seu tom
de voz mudou. – João é uma criança linda, mas é muito sensível, já
passou por algumas coisas no passado…
— Não quero saber do passado. – A loira apressou-se a dizer.
Duda comprimiu os lábios para segurar as palavras que ameaçavam
sair. Ela não conseguia entender essa resistência de não querer saber
sobre si, mas não poderia insistir, só de não ser expulsa daquele quarto
era algo gigante.
— Eu não lembro deles, mas gostaria de conhecê-los.
Duda sorriu.
— Podemos fazer acontecer, mas preciso conversar com o João
antes, explicar sua condição.
— Obrigada, Maria Eduarda.
Num ato corajoso, Duda aproximou-se da esposa e a abraçou. Para
sua surpresa, Luiza se permitiu abraçar. O perfume, a maciez daqueles
cabelos sem ondas, o calor daqueles braços gerou uma sensação
diferente na garota sem memória. Duda encerrou o abraço e depositou
um beijo na bochecha da outra.
— Preciso ir. Hoje foi apenas um susto. Já assinei sua alta. Sua mãe
e a Bella estão lá fora – disse, com um leve sorriso. – Até mais, Isa.
Duda saiu do quarto e, assim que fechou a porta, conseguiu
respirar. A morena deu saltos de alegria, quase não conseguiu acreditar
no que aconteceu. Heloísa e Isabela lhe olharam confusas. Duda estava
muito feliz, aquele pequeno contato significava muito.
— O que foi, guria? – perguntou Isabella.
Duda sorriu e contou toda sua interação com a loira.
— No sábado, quando ela chegou, viu algumas fotografias dos
guris, também mostrei um vídeo de vocês, acho que isso mexeu
bastante com ela.
— Ela pediu para conhecer as crianças, mas tenho medo. Não
quero causar sofrimento ao João, Luiza já o rejeitou antes.
— Não acho que vá acontecer agora.
A conversa foi interrompida com a chegada da advogada, ela
estava acompanhada pela Camila.
— Ela está bem? – perguntou Raissa.
— Está – disse Maria Eduarda.
— Eu vou vê-la – disse Raissa, se afastando.
— Ela se preocupa com ela – falou Duda. – Como competir com
essa mulher?
Heloísa sorriu para ela. Aproximou-se da garota e cochichou em
seu ouvido.
— Você e a Raissa são mais parecidas do que imaginam.
Duda lançou um olhar confuso. Não via semelhança alguma com a
advogada. A mulher mais velha não lhe deu explicações, despediu-se e
caminhou até o quarto da filha.
Duda caminhou até a sala de descanso, por sorte encontrou suas
amigas jogadas no sofá.
— Eu a perdi – disse ao entrar.
Amanda e Mariane a olharam.
— Algum paciente? – perguntou a psiquiatra.
Duda relatou às amigas tudo que aconteceu há poucos minutos.
— O que sabemos sobre a Raissa? – falou Amanda. – Ela é filha
única. Tem pais amorosos, não teve a felicidade de ter irmãos. Tem uma
boa coleção de amigos, adora… – Amanda relatou todas as
peculiaridades que a esposa colheu de sua nova cunhada.
— E daí?
— Não vem ninguém à memória com esse perfil? – perguntou a
cardiologista, mas Duda continuou olhando com cara de paisagem.
Mariane olhou para as duas e revirou os olhos. Em seguida,
disparou:
— Raissa se parece com você Duda – disse a ruiva. – Não
fisicamente. Desde que voltamos de Natal, essa mulher virou centro de
investigação. Sua e da Camila. Se ela soubesse o quanto sua
privacidade foi vasculhada – criticou a ruiva.
— Precisava saber quem era a mulher que roubou a minha esposa –
disparou a neurologista. – Mas, o que quer dizer com isso, de ela se
parecer comigo? Desembucha, o mundo abstrato da psicologia e
psiquiatria não é minha praia – replicou, agitada.
Mariane revirou os olhos novamente, mas acabou emitindo sua
opinião, embora superficial sobre a questão.
— Nem somos parecidas assim – negava Maria Eduarda.
— Não estou dizendo que é, mas é um tanto estranho conhecer uma
pessoa com um perfil tão parecido ao seu. Raissa parece ter uma
personalidade leve.
— Amiga, minha sogrinha não diria isso do nada, e vou contar uma
fofoca. Ela procurou um psicólogo para ajudar a entender a situação da
filha. Luiza já deixou claro que não quer saber absolutamente nada do
passado. Heloísa não vai perder a oportunidade de construir uma
relação do zero com a filha – disse Amanda.
— Como sabe disso?
— Sou casada com uma agente do FBI disfarçada de advogada –
respondeu aos risos.
— Luiza absorveu a família da Raissa como sua. Minha suposição
é que o que a impede de querer saber sobre sua história, talvez esteja no
fato de ela ter medo de perder o que tem. Pelo que você me contou,
Luiza teve uma vida de privação afetiva. Foi abusada por anos, cortou
laços com a mãe, tinha problemas de confiança e autoestima muito
abalada. Luiza se sentia tão mutilada que por anos de sua vida esteve
sob as vestes da Vanessa (a prostituta).
— Faz sentido – concordou a neurologista, reflexiva.
— Imagine que certo dia você acorde e não lembra de tudo aquilo
que lhe causou dor. Se não há dor, não há o vazio da perda. Perda do
amor e respeito materno e paterno. A questão de Luiza nada tem a ver
com vocês (casal e a família que construíram). Tem a ver com o
relacionamento familiar dela com os pais. – Continuou Mariane em sua
explanação. – Claro que aqui são apenas apontamentos superficiais.
— Mas ela conseguiu superar. Perdoou a mãe, aceitou o filho –
argumentou Duda. – Construímos uma família juntas, como ela não
pode querer lembrar de nós, nem dos nossos filhos? – falou
inconformada.
Mariane lhe olhou com solidariedade, ela sabia que no terreno das
emoções era tudo mais cru.
— Há dores que não se curam, Duda. Elas apenas deixam de
sangrar – disse Mariane com tristeza.
Duda ficou pensativa. O que sua amiga dizia fazia muito sentido.
Pelo que percebeu, Luiza encontrou no Rio Grande do Norte o que
nunca teve enquanto foi uma Lafaiete.
— Mesmo que a Luiza recupere a memória, ela nunca mais será a
Luiza com quem você se casou – afirmou a psiquiatra.
— O que eu faço? – perguntou, perdida e angustiada.
— É, amiga, hora de se preparar para a luta – disse Amanda.
— Conquistá-la de novo? – perguntou.
— A verdade é que você nunca a conquistou – respondeu Amanda
com sinceridade. Recebendo um olhar feio da melhor amiga. – O
romance de vocês nasceu de uma de ação e reação. Cheios de idas e
vindas, até a partida da Luiza, você ofereceu um amor igual às ladeiras
de Olinda – continuou, sincera.
— Você quer dizer que eu não a amo? Que ofereci um amor de
altos e baixos? – rebateu, furiosa.
— Luiza agarrou a sua segunda chance, Maria Eduarda. Mariane
tem razão. Se não há lembrança, não há dor. E você também a
machucou centenas de vezes – concluiu Amanda.
— Essa recusa de não querer conhecer sua história, talvez, seja
uma autodefesa. Seu instinto primitivo de preservação – se meteu
Mariane. A psiquiatra achava o caso da médica sem memória muito
interessante. – O que é natural, dado o seu histórico de traumas.
— Resumindo? – perguntou Maria Eduarda, com seu intelecto
dando pirueta.
— Se a quer de volta, a palavra não é “reconquiste”, e sim a
“CONQUISTE”, porque a sua esposa morreu há três anos.
Duda sentiu o impacto das palavras da sua melhor amiga. Amanda
se levantou e voltou ao seu trabalho. Mariane se levantou para sair
também, já tinha acabado seu intervalo.
— Mari – chamou. – Você acha…
— Amanda tem razão. Porém, você tem uma coisa a seu favor –
disse a psiquiatra. – Se Luiza viu suas singularidades nessa Raissa,
significa que o que viu em você continua vivo dentro dela. Você precisa
começar a enxergar a Luiza de hoje. – Mariane aproximou-se da amiga
e pegou delicadamente sua mão para apertar em sinal de apoio. – Não
deveria estar falando isso, porque ela não é minha paciente e, volto a
repetir, é uma impressão pessoal diante de tudo que acompanho. Mas
traumas como os que a Luiza sofreu no passado são memórias de
longuíssima duração e que não se apagam com o tempo. O acidente a
levou a uma amnésia dissociativa, como você sabe. – Mariane observou
a amiga para ver se estava acompanhando o raciocínio. – Contudo,
existem as memórias subcorticais que ficam no corpo e aparecem como
sensações estranhas.
— Eu não entendo de psicologia – reclamou Maria Eduarda. – Eu
entendo de massa encefálica e tudo que está por fora, não o que está por
dentro do cérebro. Isso tudo é abstrato para mim, Mari.
— Se Luiza não quiser lembrar do seu passado, ela não vai lembrar
– falou a psiquiatra. – Luiza está repelindo qualquer estímulo
desencadeador que possa trazer sua memória à luz. Sabe por quê? –
Duda meneou negativamente a cabeça. – Porque seu inconsciente sabe
que qualquer mínima coisa, por mais insignificante que pareça, pode
reativar, e isso a faria sentir como no momento do trauma.
— Se tem lembrança, a dor – concluiu Duda com tristeza.
— Tudo indica que Luiza encontrou uma forma de preencher as
lacunas afetivas do seu passado. Acho que você terá que fazer o que
Amanda disse. Se a quer de volta, a conquiste
— Mas ela está tão diferente – disse, desanimada.
— Claro que está. Ela não carrega um passado doloroso nas costas.
Essa não é aquela que você conheceu na faculdade de medicina. É uma
nova oportunidade, Duda. Para as duas conhecerem outras nuances de
vocês mesmas.
◆◆◆
CAPÍTULO 43
Preciso de uma chance

— Olá, bom dia! Gostaria de falar com a Dra. Raissa Fernandes.


— A senhora tem hora marcada? – perguntou a secretária.
— Não, mas diga que é a Maria Eduarda Lins.
A secretária sorriu e pegou o telefone discando para um ramal,
enquanto Duda esperava ansiosa.
Duda passou a noite em claro. A conversa que tivera com Mariane
a fizera refletir não apenas o momento atual, mas em tudo que
aconteceu desde que seu caminho se cruzou com aquela doce prostituta
anos atrás. Seu momento de reflexão também a fez pensar no amor que
sentia pela esposa. Duda a amava, disso não duvidava, porém a morena
percebeu que sua melhor amiga tinha razão. Apesar de todo amor
avassalador que sentia, durante os oito anos que viveu com Luiza,
Maria Eduarda sempre lhe ofereceu um amor literalmente igual às
ladeiras de Olinda. Cheios de altos e baixos. E ter consciência disso
doeu. Doeu porque Duda percebeu que foi sua possessividade que
levou sua mulher a dirigir apressadamente tarde da noite, embaixo de
uma forte chuva. Acidentes acontecem, é bem verdade, mas alguns são
possíveis de evitar.
— Ela irá recebê-la assim que terminar uma reunião – avisou a
secretária.
— Não tem problema.
Duda se acomodou em um dos sofás da sala de espera. Não daria
expediente naquele dia. Foi ali para uma conversa que poderia mudar
sua vida. Amava Luiza e, ao sair de casa, fez uma promessa, uma
promessa que sabia que seria um desafio cumprir, mas, se ela ganhasse
sua segunda chance, daria o melhor de si.
Alguns metros dali, Raissa tentava finalizar a reunião que tinha
convocado naquela manhã. Era seu segundo dia de trabalho, ainda
estava se situando com os processos e precisava conhecer os trabalhos
dos seus subordinados, porém sua secretária informou a presença da
médica. Raissa perdeu o foco do que estava fazendo. Ficou intrigada. O
que Maria Eduarda faz aqui?, se perguntava. Sem querer deixar a
médica esperando, ela finalizou a reunião e voltou à sua sala.
Duda sentia uma palpitação angustiante. A secretária veio até a si e
informou que Raissa iria recebê-la. Com passos vacilantes, a médica
acompanhou a secretária até a sala da advogada. Após uma leve batida,
escutaram o “entre”. Carla abriu a porta e fez menção para que Maria
Eduarda entrasse.
— Obrigada, Carla – agradeceu Raissa. A secretária apenas
assentiu e saiu, fechando a porta atrás de si.
Raissa saiu atrás da sua mesa e caminhou até a Duda. Duda não
pôde deixar de olhá-la dos pés à cabeça. Sentiu-se desanimada. Raissa
em sua saia lápis cor chumbo, blusa de seda branca muito em ensacada,
salto agulha, cabelos brilhantes, rosto perfeito, esbanjava beleza e
elegância, porém era sua simpatia e simplicidade que mais cativava as
pessoas, e Maria Eduarda soube disso depois daquele encontro.
— Confesso que estou surpresa com sua visita – disse a advogada,
oferecendo um aperto de mão e um beijo em cada lado do rosto. Duda
correspondeu à saudação, pois viu a espontaneidade do ato. – Tudo
bem?
— Desculpe aparecer assim sem avisar, mas precisava muito
conversar com você e não queria adiar mais nem um minuto.
— Tudo bem. Vamos nos sentar. É algo sobre a Luiza? Ela me
contou sobre vocês ontem.
Duda suspirou, aquela simples frase mostrou o quanto a loira era
conectada à morena, a ponto de contar tudo. Raissa indicou o pequeno
sofá de dois lugares, pois sabia que a visita da médica provavelmente
era para tratar de algo pessoal. Sentando lado a lado, aquela visita não
parecia tão impessoal.
— Então… – iniciou Duda.
A conversa foi longa e bastante desconfortável para Raissa. Mesmo
assim, ela tratou de escutar tudo que a jovem a sua frente falava. Duda
abriu seu coração sem hesitação. Raissa não conseguiu suprimir a
surpresa sobre o passado da namorada. Assim, como não conseguiu
evitar se comover ao saber dos infortúnios que ambas passaram para
poder ficarem juntas.
— Raissa, não vim aqui para me vitimizar. Vim aqui porque o que
aconteceu ontem me deu esperança. Eu amo a Luiza, mas, acima do que
sinto, quero vê-la bem. Compreendo os laços que construiu com você e
com sua família e fico realmente feliz por ela. Ela encontrou no seu pai
um pai que nunca teve. Encontrou na sua mãe uma mãe que ela só está
tendo a oportunidade agora de ter. – A voz de Duda começou a
embargar, porque é difícil admitir para si mesmo que, embora sinta o
sentimento, não se sabe amar. Dizem que cada um ama da sua forma, é
verdade, porém, não é vergonha admitir que às vezes não sabemos
amar. Duda percebeu que seu ciúme, seu querer controlar, sua
possessividade não eram atos de amor, de cuidado. Não tinha nada de
bonito no amor que fere, que controla, que sufoca. E foi exatamente
esse amor que Maria Eduarda ofereceu a Luiza. Sempre com a desculpa
de que a amava. – Ela encontrou em você um amor que eu não soube
dar. Mas eu a amo e quero ter minha segunda chance também. Quero
oferecer o amor que ela realmente merece. Então quero lhe fazer apenas
uma pergunta. Você a ama? – perguntou Maria Eduarda, numa frase
curta, direta e profunda.
Raissa se remexeu no estofado. Duda a olhava diretamente em suas
íris verdes. A verdade era que a morena não sabia o que responder, pois
sentia amor pela Luiza, mas não da forma que ela merecia, e cada dia
isso ficava mais claro. Desde que descobriram a família da gaúcha, tudo
mudou dentro delas. Delas, sim, porque Raissa sabia que algo tinha
mudado dentro de Luiza também. Teve a certeza ontem, quando as duas
estavam sob as cobertas, e a loira contou sobre o que tinha conversado
sobre a médica. Mas não foi o conteúdo da conversa que intrigou a
advogada, foi a forma que Luiza falava da Duda, o tom de voz usado, o
brilho nos olhos, o rascunho do sorriso quando falou do cheiro e dos
cabelos da médica.
Raissa sabia que havia uma muralha em seu coração, que apesar de
toda convivência, Luiza não conseguiu ultrapassá-la, agora, ali, diante
daquela garota que nem mesmo a dor da morte abalou seu sentimento
pela esposa, a advogada soube exatamente porque não se permitiu amar
a garota sem memória que havia levado para sua casa e percebeu
também que não era apenas seu coração que estava envolto de uma
muralha, Luiza não a pertencia.
— A amo sim – respondeu –, mas não da forma que ela merece.
Duda soltou o ar claramente aliviada. Foi automático o sorriso doce
que se formou em seus lábios. Raissa, mesmo com os olhos marejados,
acabou sorrindo de volta. Por algum motivo, gostou da Duda.
— Preciso que a deixe – simplesmente pediu a médica.
— Sinto muito, Duda, mas não posso fazer isso.
— Por que não?
— Porque ela está num momento de fragilidade, são muitas coisas
para processar. Imagine um rompimento?
— Como terei uma chance, se você ainda estiver com ela? –
disparou, frustrada. – Ela sente algo muito forte por você, Raissa –
admitiu Duda. – Até então, eu era a única – confessou Duda. – Se ela
não te amasse, ela nunca teria se entregado a você. Luiza só se
entregaria a alguém por amor.
Raissa sentiu tanta ternura pela moça a sua frente. Era um
sentimento confuso, estranho, novo e feliz. Era para ser egoísta, Luiza
era sua. Era mesmo? Não, não era, e aquela simples frase sacramentou
o que a morena já desconfiava. Luiza nunca se entregou. Contrariando
o esperado, Raissa sorriu. Sim, sorriu. Sorriu feliz pela loira que amava.
— Nunca aconteceu. – Foi a vez de ela confessar. – Foi intenso
desde a primeira vez. Eu nunca tinha encontrado uma pessoa tão certa
de onde tocar, e no que fazer. Luiza foi minha primeira experiência com
mulheres. E posso dizer que foi uma maravilhosa porta de entrada.
— Não quero ouvir o quanto minha mulher é boa de cama –
rebateu a morena, nitidamente enciumada.
— Não seja boba. Nem deveria estar contando isso – replicou,
divertida, se sentindo confortável para compartilhar aquilo com a Maria
Eduarda, porque percebeu que aquilo seria importante para ela. – Luiza
nunca me deixou tocá-la. Eu estranhei no início, tentei inúmeras vezes,
porque queria proporcionar o que me proporcionava, mas ela sempre
invertia o jogo. Sempre dominava, e acabei me acostumando. – Duda
continuou com a cara emburrada. Doeu ouvir aquilo. – Ela nunca se
entregou, Maria Eduarda. Talvez, de forma inconsciente, ela queria se
manter fiel a você.
Os olhos de Duda se iluminaram, seu coração se aqueceu de um
jeito que levou lágrimas aos olhos. Esperançosa, ela concluiu que
aquilo significava algo. Significava que Luiza se guardou, apesar de
não lembrar do passado, sua Luiza se guardou.
— Agora mais do que nunca preciso que a deixe.
Raissa levantou-se do sofá e começou a caminhar de um lado para
o outro agitada. Foi uma hora de intensas emoções.
— Eu não posso – disse a advogada. – Luiza me ama, não quero
magoá-la.
— Vai magoá-la ainda mais lhe oferecendo um amor raso –
disparou a morena.
Raissa soltou o ar com força. Voltou a se sentar no sofá.
— Eu gosto dela, Duda. Temos algo tão legal.
Duda se levantou.
— Então não serei empecilho – disse tristemente. – Só lhe peço que
a faça feliz, a preencha a ponto de não deixar nem uma fresta. A faça
feliz – repetiu.
— Se o amor de vocês for tão forte como todos dizem que é, vou
me sentir a mulher mais feliz do mundo por ter sido a bússola da Luiza
– disse Raissa, também se levantando. Duda a olhou com os olhos
esperançosos e expectantes. – Só vou te pedir uma coisa, deixe essa
Luiza que morreu lá trás. Existe uma mulher incrível no presente. Vou
abrir o caminho, Duda, não por mim, nem por você, mas pela Luiza Eu
fui sua bússola, espero que você seja seu mapa.
Duda não fazia ideia do que a morena queria dizer com aquela
frase, mas seu coração se encheu de esperança, pois teria sua chance. Se
Raissa apontou a direção de casa para a loira, Duda mostraria os
arredores.

◆◆◆
CAPÍTULO 44
Rompimento

Raissa chegou em casa e encontrou mãe e filha entretidas na


cozinha. Elas conversavam e riam enquanto cozinhavam. Foi uma cena
linda de se ver. Cada dia elas pareciam mais conectadas uma à outra.
— Está com fome? – perguntou a loira, sorridente.
— Não muito. Como foi o dia de vocês? – perguntou a morena com
naturalidade. Sentando na banqueta da ilha da cozinha.
Luiza falou animada como havia sido seu dia. A visita aos três
apartamentos pela manhã, a ida ao ateliê da mãe e o almoço com o
Lucas e sua prima Isabella. A loira contou que tinha adorado o rapaz e
que ele a fazia lembrar-se do Danilo e que queria muito que Raissa o
conhecesse. Luiza parecia muito animada, pouco a pouco, as pessoas do
seu passado eram introduzidas em sua vida. Após a gaúcha encerrar, a
morena direcionou seu olhar para a outra mulher presente, que
acompanhava a tagarelice da filha com um sorriso bobo nos lábios.
— E o seu? – perguntou suavemente. Heloísa franziu o cenho.
Raissa sorriu e perguntou: – Dia ruim?
— Não, não. Foi ótimo – disse, desconcertada, não estava
acostumada a ouvir alguém perguntar sobre seu dia.
As três ficaram conversando amenidades, jantaram e arriscaram em
algumas taças de vinho. Conversaram mais um pouco. Depois se
recolheram.
— Está tudo bem? – perguntou Luiza quando já estavam prontas
para dormir.
Raissa soltou o ar com força. Puxou a loira para perto de si, era
hora daquela conversa.
— Prometemos uma à outra de sempre sermos honestas – iniciou.
— Vai terminar comigo, não é? – perguntou a loira, afastando-se
dos braços da morena.
Luiza sentou-se na cama, seus olhos escuros buscaram as
azeitonas. Raissa também sentou-se, não tinha forma menos dolorosa
de terminar um relacionamento. Ao longo do ano que passaram juntas,
criou-se um sentimento muito forte entre elas, poderia não ser um amor
avassalador, mas era algo forte o suficiente para mantê-las unidas e
felizes. Ao menos, até aquele presente momento.
— Vou dar uma chance ao seu coração. Eu te amo, Rê.
— Não quero chance nenhuma, quero você, o que temos – rebateu,
nervosa. – Não é possível que você tenha deixado de gostar de mim da
noite para o dia.
— Eu não deixei de gostar de você, mas você sabe que algo
mudou, não sabe? – perguntou suavemente.
Luiza sentiu um badalo no peito, forte e dolorido. A sensação de
perda começou a pairar no seu peito e a possibilidade de perder
qualquer coisa da sua vida presente lhe causava pânico.
— É por causa dela, não é? Pelo que disse ontem?
— Eu te amo, de verdade – disse Raissa com sinceridade. – O amor
que construímos juntas é muito diferente do tradicional, eu sei o que
você sente por mim. Mas…
— Mas? – indagou Luiza com a voz estrangulada. Risco de água
começou a descer pelos seus olhos.
— Você precisa saber exatamente o que sente por ela.
— Eu nem lembro dela – rebateu.
— Existe um vocês, Isa. Um vocês que não dá pra ignorar. Nem
vou citar seus filhos.
— Não termina comigo – pediu.
Raissa deixou as lágrimas virem. Beijou carinhosamente a loira que
pela primeira vez não ditou o ritmo, beijaram-se com vagar, pois era um
beijo de despedida. O fogo não foi despertado, pois ele foi abrandado,
abrandado por outro sentimento. Raissa encerrou o beijo e sorriu.
Apesar de ambas estarem com o coração partido, elas sorriram uma
para outra. Um sorriso doce e verdadeiro.
— Vamos descobrir outras formas de nos amar – sugeriu a
advogada, deitando na cama e puxando Luiza para seu peito.
— Você acabou de me dar um pé na bunda e ainda me puxa para
você. – Fingiu-se de brava, ainda fungando devido ao choro. Em
resposta, ganhou aquele sorriso lindo e travesso.
— Não precisamos de mais drama. Sua vida superou a criatividade
do João Emanuel Carneiro[16] – rebateu, divertida, atenuando a tensão
gerada pelo rompimento. – Nós amamos, Luiza, isso ninguém vai
mudar. Fomos o porto seguro uma da outra em momentos delicados de
nossa vida. Fui a sua bússola e te trouxe para casa. E por algum motivo,
você deve estar sendo a minha, por ter me trazido para cá. Estou com
medo, e você também. Todavia, isso não nos limitará porque sempre
teremos isso aqui. – Raissa a apertou em seus braços.
Era justamente isso que cativava ainda mais a gaúcha. A leveza
daquela mulher. Elas se gostavam, se amavam e sentiam aquele
rompimento, mas não fariam drama. Raissa foi a primeira a adormecer.
Luiza se levantou e saiu do quarto. Pela primeira vez na sua vida,
buscou o colo da sua mãe. Heloísa estranhou as batidas na porta,
levantou-se para abri-la e, ao fazê-lo, encontrou sua menina com os
olhos vermelhos, a loira não hesitou em buscar seu abraço.
— Ela terminou comigo, mãe. Tá doendo tanto – disse chorosa.
E Heloísa teve a oportunidade que lhe foi tirada no passado. Ela
abriu os braços e recebeu a filha, para acalentar no seu primeiro coração
partido. Primeiro, sim, pois, lembre-se, a outra já não existe mais.
Alguns dias depois.
A separação foi inevitável. Sua permanência na casa de Heloísa
durou apenas o tempo da advogada conseguir alugar seu apartamento.
Com a ajuda da ex-sogra, a morena conseguiu um imóvel mobiliado
situado na zona sul da cidade. Não era tão perto do seu trabalho, mas
era perto da praia, o que era mais atraente para Raissa. Luiza tentou
lidar com aquela perda sem drama, doía, doía muito, às vezes tinha
explosão de raiva e culpava a médica por aquele rompimento, mas
quando se acalmava, não conseguia ignorar as sensações que tinha
quando estava na presença da moça de cabelos sem onda.

◆◆◆
CAPÍTULO 45
O universo

— Me arrependi, sabia? – falou Raissa, enquanto almoçava com


Camila e a Duda.
Encontrar a médica tornou-se frequente para advogada, já que a
morena era um grude danado com sua cunhada Camila.
— Nem venha, Raissa, Luiza é minha mulher.
— Deus sabe o quanto estou me segurando para procurá-la e pedir
que me perdoe – provocou, Raissa achava a maior graça da ciumeira da
Duda.
Uma onda de pavor tomou conta de Maria Eduarda, que parou de
comer no mesmo instante e encarou os olhos da advogada, que
continuou a cutucar.
— Já tem duas semanas que me separei e não vi nenhuma
movimentação sua – disparou.
— Não quero parecer insensível – rebateu. – Vocês acabaram de
terminar. Ontem ela esteve no hospital para uma consulta e me pareceu
abatida.
Raissa se entristeceu. Nos últimos dias andou evitando a loira. Não
porque não queria vê-la, mas porque apesar do sorriso no rosto que
tentava manter, realmente estava sentindo aquela separação. Seu único
conforto veio da certeza de que estava fazendo o certo. Sua tristeza
momentânea não passou despercebida pelos presentes na mesa.
— Eu vou fazê-la feliz – disse Duda docemente, ao perceber a
tristeza naqueles olhos verdes. Quanto mais conhecia aquela mulher,
mas Duda entendia o motivo de Luiza ter se apaixonado por ela. Raissa
era uma garota muito bacana.
— Se não fizer, eu a roubo pra mim – ameaçou.
Dias depois daquele almoço com as amigas, o universo resolveu
dar uma ajudinha para a neurologista. Duda movia um mundo dentro de
si para não forçar uma aproximação com a esposa. Resolveu aceitar
definitivamente que SUA Luiza morreu naquele trágico acidente,
porém, em meio à dor, algo bom aconteceu, o universo resolveu lhe dar
alguém em troca. O universo lhe apresentou uma moça sem memória
que Maria Eduarda gostaria muito de conhecer.

Naquela manhã, Luiza tinha uma consulta com seu neurologista.


Fazia dias que não tinha episódios (flashes), e a necessidade da cirurgia
ainda persistia, mas havia resistência da loira em se submeter a ela. Sua
mãe se ofereceu para acompanhá-la ao hospital, mas a loira queria
começar a fazer as coisas sozinha. Luiza sabia dirigir, então ela pegou a
chave do carro que sua mãe deixou à sua disposição, embora não
tivesse carteira, pois, diante da sua volta dos mortos, as questões
jurídicas do seu retorno estavam a cargo da sua irmã Camila, que fazia
questão de resolver os imbróglios da situação. Mesmo que já tivesse
morado naquela cidade, ali era tudo novo para ela. Assim, Luiza sabia
que teria que fazer igual fez em Natal, teria que se construir novamente
do zero, e ter independência era o primeiro passo. Ela pegou sua bolsa e
rumou para o hospital, o caminho já tinha decorado. Dirigir naquela
cidade era algo muito simples, só o trânsito era mais intenso naquela
hora da manhã.
Luiza ignorou sempre os olhares curiosos que recebia quando
chegava ao hospital e foi direto para o consultório do seu médico. Ele a
examinou, passou algumas medicações, reforçou a importância da
cirurgia e, depois de mais de uma hora, a loira foi liberada.
Era estranha e prazerosa a sensação de estar num ambiente
hospitalar. A loira descobriu que a tal Luiza Lafaiete era médica e, pelo
que soube, amava sua profissão, contudo Luiza Fernandes Lafaiete
gostava da sensação de estar ali, mas não sentia nenhum resquício de
saudade ou nem mesmo uma mera curiosidade pela sua antiga
profissão. A loira caminhou entre os corredores, aspirando o cheiro
característico do lugar, observando o movimento. Quando viu, seus
olhos pousaram em duas figuras. A moça dos cabelos sem onda
conversava animadamente com uma senhora negra, de meia-idade, que
usava um jaleco branco. Ao contrário das outras vezes que se cruzaram,
Maria Eduarda estava diferente, toda despojada. Trajava uma jardineira
jeans curta com detalhes em rasgos, contrastando com a peça clara, uma
blusa preta de manga comprida, sob os pés havia uma alpargata em
salto médio. Seus cabelos estavam presos num coque desajeitado. A
imagem era de uma linda menina-mulher.
Duda se despedia da pediatra do seu filho quando se sentiu
observada. Ao olhar para os lados, deparou-se com a loira que olhava
para ela sem piscar. Apesar da surpresa, a preocupação emergiu no
mesmo instante ao olhar para o garoto que estava encostado na parede
mexendo no celular.
Luiza, saindo do impacto estranho que teve ao ver a médica,
caminhou em sua direção sem hesitar. A pediatra despediu-se do garoto
e voltou à sua sala. Nesse instante, um par de olhos azuis se
arregalaram ao reconhecer a mulher que caminhava até eles.
Instintivamente, João desencostou da parede e agarrou-se ao braço da
mãe. O coração do pequeno sambava no peito. A morena já tinha
contado ao filho mais velho e para a do meio sobre sua mãe Luiza, a
psicóloga ajudou no processo, porém ainda não havia ocorrido o
encontro entre eles. Dessa vez, era Duda que tinha resistência. A
médica tinha preocupações com os filhos. Luiza parou rente aos dois,
seus olhos desceram para o menino. Ele era mais lindo que nas fotos. A
loira foi tomada por uma emoção explosiva. Seus olhos se encheram de
lágrimas e o riso bobo tomou seus lábios.
— Oi, guri – disse Luiza.
Duda não conseguiu ter uma reação. Luiza sorria e chorava o
tempo todo. João, por sua vez, foi afrouxando o braço da mãe. Duda
queria ter o dom de ler mentes para saber o que seu filho estava
pensando. O menino piscou algumas vezes e finalmente soltou o braço
da morena. Luiza não conseguia tirar os olhos do garoto. Sim, todos
tinham razão, João se parecia com ela.
— Oi – finalmente disse o garoto. – Mamãe disse que a senhora
perdeu a memória, que não se lembra de ninguém – falou com a voz
trêmula.
— Mas eu me lembro de você – respondeu, sorrindo. – Você está
sempre nos meus sonhos. Não me lembro de detalhes ao seu respeito,
mas me lembro da sua figura. – Luiza explicou ainda muito
emocionada.
O menino abriu um largo sorriso ao ouvir que sua mãe lembrava de
si.
— Ele está doente? – Numa atitude inusitada, a loira ajoelhou-se e
começou a examinar o menino, fazendo a morena rir e o menino
contestar. O instinto materno lá no fundo de Luiza emergiu com
rapidez.
— Já estou bem, mãe! – contestava o garoto, ao ser apalpado pela
mãe.
Duda delicadamente ajoelhou-se também e puxou o rosto da loira
para que a fitasse.
— Ele está bem – disse, sorrindo. – O trouxe apenas para uma
consulta de rotina, ele andou resfriado, mas está bem.
Com isso, as duas se levantaram. Duda continuava a sorrir. Ver
aquela reação na loira era algo muito positivo, sinal de que não havia
rejeição no coração dessa nova Luiza. A gaúcha ficou desconcertada
depois que a adrenalina do momento passou. João também estava
desconcertado, queria abraçar a mãe, sentia muita falta da loira, porém
sentia-se envergonhado. Ele inocentemente puxou Duda para um canto
e sussurrou algo em seu ouvido. Luiza olhou com curiosidade, mais
uma vez se viu olhando para aquela mulher de cima a baixo. Duda tinha
uma beleza inocente, e, vendo-a assim tão despojada, seus olhos se
sentiam atraídos pela moça do cabelo sem onda de um jeito que a loira
não conseguia e nem parecia querer disfarçar. Não era aquela atração
relâmpago, era curiosidade, os olhos negros eram atraídos de forma
curiosa. Quando os dois pararam de cochichar, Maria Eduarda se voltou
para a loira.
— Estamos indo almoçar, lá no shopping, aceita nos fazer
companhia? – perguntou a médica despretensiosamente.
Luiza sorriu, sabia que o convite era do filho. Os pequenos olhos
azuis lhe olhavam com expectativas.
— Claro, mas será que posso te dar um abraço, guri?
A pergunta surpreendeu não só o garoto, como Maria Eduarda
também. A primeira coisa que notou de diferente era que aquela moça
sem memória era espontânea. Os azuis se encheram de água. Tímido,
aproximou-se da mãe. Luiza o acolheu em seus braços e dentro de si
algo explodiu. Era um sentimento que ela nem se daria ao trabalho de
tentar entender. João a apertava contra seu corpo. Luiza voltou a chorar
e a sorrir ao mesmo tempo. Seus lábios depositaram muitos beijos no
topo daquela cabeleira amarela. A cena era tão linda que Maria Eduarda
se emocionou também. Após aquele momento, os três seguiram para o
shopping. Duda pediu para Luiza ir com eles no carro, depois ela
pediria para o motorista deixar o carro dela na casa da sogra. João
estava animado, pois sua mãe foi com ele no banco detrás. O contato
era tímido ainda, visto que, para loira, o menino era ainda
desconhecido, apesar da explosão de sentimentos que sua presença
despertava. Já para ele, era sua mãe que estava morta. Ainda era
confuso. Duda ria e observava tudo pelo retrovisor. A fresta só
aumentava.
O almoço não poderia ter sido mais agradável, não demorou muito
para João se soltar. O menino falava desenfreado, contanto sobre sua
vida, seus amigos, suas irmãs, ele estava tão agitado que Duda
preocupou-se. Teve medo de que desse um troço no garoto. Luiza
sentiu um pouco de dor de cabeça, era muita informação e emoção de
uma só vez.
— Está se sentindo bem? – perguntou a médica, quando o filho
resolveu ir no Game Station[17], deixando as duas sozinhas.
Luiza olhou para a mão pousada sobre a sua, seus olhos foram
subindo até chegar naquele rosto. Luiza viu as bochechas da morena
ficarem rosadas, e não era pelo blush.
— Um pouco de dor de cabeça.
Duda logo se preocupou, mas a loira conseguiu acalmá-la. Quando
elas entraram na sobremesa, a loira teve uma crise de riso, daquelas de
doer a barriga. A morena ficou confusa e perguntou o motivo, mas a
loira ria ainda mais e acabou fazendo a morena rir também.
— Se está rindo da minha cara, preciso ao menos saber o motivo –
retrucou, forçando uma cara emburrada, mas falhando miseravelmente.
— Seu sorvete de chocolate com calda de morango – explicou a
loira.
Duda revirou os olhos e disparou:
— Você sempre implicou com minha combinação, não sabe o que
está perdendo – disse, enchendo a colher de sorvete com calda e
levando a boca.
Luiza acompanhou o gesto com um sorriso. Viu no rosto de Duda a
mesma satisfação que via no rosto da advogada.
— Essa combinação é a preferida da Raissa, mas eu implicava
tanto que ela acabou trocando pelo de pavê. Por algum motivo, nunca a
deixava tomar essa combinação.
Maria Eduarda sentiu uma vibração de excitação em seu coração e
soube que tinha que mantê-la sob controle, ela não ficou nem um pouco
incomodada em ser comparada com a advogada, muito pelo contrário,
saber que Luiza se atentou àquela sua peculiaridade, tanto que
implicava se outra pessoa o fizesse, aquecia o seu coração.
— Essa Raissa sabe o que é bom – disse, sorrindo.
Luiza sorriu de volta. A morena não queria deixar o assunto morrer,
fez perguntas sobre como era a vida da loira em Natal. A loira, por sua
vez, viu que aquele interesse era genuíno. Desde que chegaram ali,
Maria Eduarda a deixou bastante à vontade, não fizera nenhuma
menção sobre o passado, dessa forma se sentiu confortável para contar
um pouco sobre sua história. Então Luiza não foi nada superficial. As
duas saíram do restaurante e se dirigiram a um Starbucks Coffee que
ficava em frente ao centro recreativo onde o filho estava.
— E o guri? – perguntou, ao chegar ao café indicado pela morena.
— Enviei uma mensagem pra ele dizendo que estamos aqui. Não se
preocupe – disse docemente. – Vamos ficar nessa mesa aqui fora,
porque assim que ele sair, ele nos verá – sugeriu Duda.
Luiza assentiu, e as duas se acomodaram numa mesa externa. Uma
atendente se aproximou, e ambas pediram um café. Era uma situação
muito engraçada para Maria Eduarda. Apesar de ter compartilhado
vários momentos com a esposa, Duda não lembrava de nenhum
momento como aquele. Algo tão singelo, porém extremamente
agradável.
— Do que tanto ri? – perguntou Luiza, ao ver o riso bobo no rosto
da mulher à sua frente.
— Nunca fizemos isso – disse timidamente.
Luiza franziu o cenho confusa.
— Nunca tomamos um café antes? – perguntou a loira.
Duda meneou a cabeça em sinal de negação.
— Nunca fui fã de café – disse, rindo. – Na verdade, sempre gostei
de coisas mais agitadas, bares, boates, festas, essas coisas. Você vivia
implicando comigo, dizia que eu tinha um motorzinho nos pés.
Luiza achou engraçada aquela informação, o que significava que
aquela garota era seu oposto. Com isso, instintivamente se perguntou o
que elas teriam em comum.
— Mas nunca é tarde para apreciar algo novo – apressou-se a dizer,
Duda. – Me fala sobre sua vida em Natal. – Voltou a pedir. Duda não
queria perder a ponta do novelo que havia surgido, além do mais, queria
conhecer um pouco mais daquela Luiza.
As duas pareciam ter esquecido da hora, fazia mais de três horas
que estavam na companhia uma da outra. Duda agradeceu ao céu, pois
naquele dia as filhas ficariam com o pai, o universo estava tanto ao
favor delas que no dia anterior Lucas lhe ligou pedindo para ficar com
as filhas naquela quinta-feira, já que seus pais estavam na cidade, e os
avós queriam paparicar os netos. Desta forma, não precisava se
preocupar com as horas.
A loira sorriu e, sem hesitar, começou a falar, não uma narração
superficial sobre sua vida. Por algum motivo, Luiza sentiu-se muito
confortável em contar sobre si. Iniciando de uma forma cheia de
detalhes e impressões íntimas de sentimentos e sensações de algumas
situações que viveu ao acordar um ano depois do coma. Foi estranho,
mas parecia natural para si. Naquela conversa, Duda conheceu um
pouco mais a moça sem memória. Entendeu o seu apego pela advogada
e sua família. Viu que sua amiga Mariane foi bastante assertiva em sua
opinião. Ali, Maria Eduarda teve certeza de que aquela mulher à sua
frente não era mais sua esposa, contudo Duda sorriu, sorriu para si
mesma, ela não era mais sua esposa, mas era a mulher que gostaria de
conhecer. Você é uma pessoa muito interessante, Luiza Fernandes
Lafaiete, disse em pensamento, pois a morena sabia que a loira fazia
questão de manter o sobrenome de sua família adotiva.
— O que sente mais falta? – perguntou, enquanto bebericava seu
café.
— Além dos tios, acho que da minha rotina – respondeu, saudosa.
– Lá eu tinha meu emprego e tinha a operação trevo. Isso me faz muita
falta, sabe?! – A loira soltou o ar com força.
Duda sorriu com ternura. Os olhos da loira brilhavam quando
falava dos pais adotivos, do seu trabalho como assistente da professora
de música e principalmente do projeto social em que estava envolvida.
Animada, Duda encontrou a primeira coisa em comum com a mulher à
sua frente. Isso porque o luto a fez rever sua posição no mundo. As
coisas que realmente eram importantes, e também o ressignificar a sua
vida, porque o buraco deixado pelo luto era profundo demais para ser
preenchido apenas por seu cotidiano. Duda buscou mais, precisou de
mais. Por sorte, ela encontrou. Encontrou no: “Centro Comunitário Os
Tons do Amor” apresentado por sua sogra, que era voluntária de lá. Foi
naquele trabalho que Duda passou a ver o outro com mais humanidade
e ressignificou sua vida.
— Acho que em uma coisa posso ajudar – disse a morena,
recebendo o olhar curioso da outra. – Mas isso nos levará a um outro
encontro.
Luiza arqueou uma sobrancelha, o gesto arrancou uma risada da
médica, risada essa que soou muito familiar, tão familiar que fez o
coração da gaúcha acelerar de um jeito abrupto.
— Não sabia que estávamos num encontro – replicou a loira.
O modo tímido emergiu instantaneamente, o rosto da morena
corou. Ela começou a gaguejar, Luiza lhe olhava com uma carranca
insondável, a loira achou uma graça aquele nervosismo inocente.
— Um encontro a três – disparou Duda, apontando para o garoto
que vinha em direção à mesa.
João veio sorridente, abraçou Duda por trás lhe dando um beijo na
bochecha e gerando uma pontada de inveja na outra mãe. Pelo pouco
que percebeu, o pequeno rapaz era muito afetuoso.
— Demorei muito? – Ele perguntou.
— Não, filhote – respondeu Duda.
— Posso pedir uma torta? – perguntou o garoto.
— Só se for de chocolate com recheio de morango – respondeu
Maria Eduarda prontamente.
O menino abriu um sorriso cúmplice e deu alguns socos no ar de
tanta animação, deixando claro que aquela combinação foi passada de
mãe para filho. Luiza sorriu e fingiu revirar os olhos, gerando uma
risada dos dois.
— Quer que eu peça uma de limão para a senhora? – perguntou
João diretamente para a loira.
Luiza olhou confusa para a outra, a médica sorriu e exauriu sua
confusão.
— Torta de limão costumava ser a sua preferida – esclareceu.
João continuou olhando para ela com expectativa.
— Não lembro se já comi alguma – disse, tímida. Era verdade, a
loira não lembrava de ter comido tal torta desde que acordara. – Mas
seria uma ótima oportunidade de descobrir se ainda é a minha preferida
– disse, gentil.
— Não seja por isso. Pede lá e traz duas fatias da de chocolate com
morango, vai que dessa vez a gente a traz para nossa seita – brincou
Maria Eduarda.
O menino ficou animado e correu até o balcão, fez o pedido e
voltou à mesa. Ele sentou-se entre as duas mulheres. O silêncio
confortável os envolveu permitindo um momento de contemplação
entre eles. Luiza não cansava de olhar para o filho. Pela idade, percebeu
que tivera filho cedo, visto que descobriu que tinha 32 anos, e o guri,
11. Algumas perguntas a respeito de seu nascimento e paternidade
começaram a se formar em sua cabeça, mas, por algum motivo, elas
eram repelidas antes mesmo de se materializarem em seus lábios. Dessa
forma, a loira só focou em um ponto, aquele garoto era seu filho com a
mulher à sua frente. E pareceu gostar disso, os dois pareciam bem
cúmplices.
Os pratos foram trazidos, e Duda num gesto espontâneo disparou:
— Ei, espera! – pediu a morena, ela pegou um pedaço de torta e
levou o garfo à boca da loira. Luiza sentiu um novo badalo no peito,
seus olhos fitaram as duas amêndoas à sua frente. – Não pode se
contaminar com a gostosura da sua torta – falou, divertida.
Luiza aceitou o pedaço de torta que lhe foi oferecido, ela o
apreciou calmamente, deixando o contraste do chocolate com a acidez e
o sabor do morango se misturar. De fato, era uma delícia, a loira ficou
curiosa em saber o porquê de não apreciar a combinação, mas, ao final
da degustação, descobriu, ela tinha certeza de que era apenas uma
divertida implicância, visto que dois pares de olhos a observavam com
muita expectativa.
— Não é tão ruim – gracejou.
— AHHHHHHH, mamãe Isa! – esperneou o garoto contrariado
arrancando uma risada da mãe gaúcha.
— Mesmo sem memória, você adora ser do contra, né?! – E foi
espontâneo, Duda lhe fez uma careta e lhe deu língua num gesto
infantil.
E o momento dissipou-se com uma sucessão de flashbacks. Luiza
levou a mão à têmpora e foi acometida pelo velho filme em alta
velocidade sobre sua retina. Assim, aquele casual encontro chegou ao
fim. Luiza passou mal, e Maria Eduarda a levou para casa.

◆◆◆
CAPÍTULO 46
A ponta do novelo

— Obrigada – agradeceu a loira desafivelando o cinto de


segurança, que dessa vez estava no banco carona.
— As dores passaram mesmo? – perguntou Duda ainda
preocupada.
— Sempre que o filme passa as dores cessam.
— O dia foi cheio de informações, era esperado que você pudesse
ter algum gatilho. Tenta descansar.
Luiza assentiu com a cabeça, os três desceram do veículo para se
despedir. João ainda tinha os olhos vermelhos, ver sua mãe grunhindo
de dor foi assustador, por sorte o episódio não foi tão intenso. Durou
menos de dois minutos, mas foi o suficiente para assustá-lo. A loira
aproximou-se do filho, de repente tudo ficou estranho entre eles.
— Eu moro com sua avó, espero te ver outras vezes, guri – disse
Luiza, com a voz estrangulada. A loira sentia o peito oprimido. –
Desculpa pelo susto de ainda há pouco, mas estou bem.
O menino apenas rascunhou um sorriso, mas nada falou. Ele
apenas deu um tchau com a mão e entrou no carro. Luiza sentiu seus
olhos marejarem, era uma sensação nova que estava vivendo. Duda
aproximou-se de mansinho e tocou delicadamente em seu rosto,
puxando-o pelo queixo e fazendo-a fitá-la. O pequeno gesto gerou uma
corrente elétrica entre elas, contudo ambas preferiram ignorar.
— Ele está apenas um pouco assustado, não o leve a mal – disse a
médica suavemente, justificando a atitude indiferente do garoto.
— Eu o assustei – replicou a outra com a voz embargada. – Nem
sempre consigo controlar.
— Luiza, não se culpe. Tente descansar. Você precisa aceitar se
submeter à cirurgia, ela pode diminuir a pressão no seu córtex evitando
os episódios, por consequente as dores repentinas.
— O interesse de vocês é empurrar minhas lembranças goela
abaixo, isso sim – acusou. De repente, Luiza foi tomada por uma
irritação. Suas defesas se levantaram instantaneamente.
Maria Eduarda crispou os lábios, várias respostas chegaram até a
ponta da sua língua, mas ela as manteve abafadas. Mais uma vez
naquele dia, Duda lembrou-se do que sua amiga falou: “Sem
lembrança, sem dor”. Suavizando a voz ao máximo que conseguiu, a
morena disse:
— A cirurgia não é para trazer suas memórias de volta, até porque
as chances de isso acontecer são baixas, mas ela pode aliviar a pressão e
evitar os episódios. Lembre-se de que esses episódios podem gerar uma
carga maior do que seu cérebro pode suportar. Já te perdemos uma vez,
Luiza, não faça seus filhos a perderem de novo – pediu a médica.
O pedido não tinha tom de cobrança. Luiza arrependeu-se da
rispidez com que falou, porém foi mais forte que ela. As amêndoas lhe
olharam com ternura, ela voltou a se aproximar ficando perto demais.
— Venho te buscar na quinta-feira pela manhã – disse agora com
um sorriso no rosto. – Mas confirmo antes.
— Para quê? – perguntou, curiosa.
— Eu disse que numa coisa posso te ajudar, então preciso alinhar
com algumas pessoas. Se der tudo certo, te levo lá.
— Vai fazer suspense, guria?
Duda apenas sorriu, corajosamente levou seus lábios à bochecha da
mulher, que ao sentir o toque prendeu o ar. Seu corpo inteiro formigou.
Duda então se afastou segundos depois e caminhou até a porta do carro.
Ofereceu um tchau com a mão e entrou no veículo. Luiza deu alguns
passos para trás e viu o carro se afastando.

Duda sorriu com o prospecto de uma oportunidade de


aproximação. Parecia que as suas últimas horas vividas haviam sido um
sonho. Seu peito explodia de alegria. Sim, ela tinha passado todo final
da manhã e a tarde inteira na companhia de Luiza, não sua esposa, isso
ficou muito claro para sua mente e seu coração, mas na companhia de
uma Luiza que gostaria muito de conhecer. Pois essa adorava Café,
tanto a estrutura aconchegante do ambiente, quanto a bebida. Isso era
novidade para Maria Eduarda, que não lembrava de uma única vez ter
ido a uma simples cafeteria com a esposa. Sem falar que na cabeça da
Duda só existia o café com leite e o tradicional, contudo foi um belo
momento de contemplação àqueles olhos negros que passearam pelo
cardápio e se animaram ao pedi Café Mocha com direito a chantilly e
calda de chocolate, segundo a mesma, era o seu preferido. Aquela loira
também era dona de uma voz doce e apaixonante, que nem mesmo a
perda de memória suprimiu seu intenso sotaque gaúcho, Duda nunca
vira Luiza tão falante, pois, mesmo nos momentos tranquilos e felizes,
ela não perdia seu jeito comedido. A loira também tinha um jeito
especial de sorrir, observou a neurologista. Seu sorriso era sutil e meio
misterioso, daquele que geralmente vem acompanhado de uma
olhadinha meio de lado. E aí fica aquele joguinho de olhar para a
pessoa e virar o rosto quando ela olha para você. Isso acontecia o tempo
inteiro. Era algo bem natural.
Observar tudo aquilo enquanto a escutava contar sobre sua vida
presente fez Maria Eduarda refletir sobre si mesma e sobre os oito anos
que passaram juntas. Fez se questionar como, apesar de todo amor que
sentia, nunca tinha reparado naquelas pequenas peculiaridades. Agora
foi a vez de Amanda ter razão, o romance de vocês foi fruto de uma
ação e reação. Mas essa constatação não intimidou a morena, pelo
contrário a motivou, porque Duda encontrou a ponta do novelo e ela
iria puxá-lo até ele se dissolver e se tornar uma linha reta.
— Está tudo bem, filho? – perguntou, interrompendo o fluxo dos
seus pensamentos.
João permanecia calado no banco carona. Duda tentou puxar
assunto, pois sabia que, apesar dos momentos de descontração,
encontrar a mãe assim, tão de repente, deveria ter mexido demais com
ele.
— Você entende que a ausência de lembrança não é culpa dela, não
entende? – perguntou delicadamente.
— Mas ela voltou e prefere morar com a vovó. Como vai se
lembrar da gente morando longe de mim e das minhas irmãs? –
questionou o menino, cerrando os punhos e trincando os dentes.
Duda sentiu seu coração bater contra seu peito como se estivesse
tentando romper os ossos do tórax. Os olhos do seu filho estavam rasos
d’água e o rosto vermelho. João Gabriel estava com raiva de Luiza,
como se a loira o tivesse rejeitado.
— Ei, nada disso – pediu a mãe. – Filho, olha pra mim. – João não
olhou. Velhos sentimentos adormecidos emergiram do seu pequeno
coração. Duda foi obrigada a prestar atenção no trânsito. Era início de
horário de pico. Ao chegar em casa, o menino desceu do veículo.
Ignorando os chamados da mãe, correu para seu quarto, trancando-se.
Maria Eduarda soltou o ar com força, esperaria ele se acalmar para
ter uma conversa. Enquanto isso, pegou seu telefone e discou para um
número, sua ligação foi atendida segundos depois.
— Oi, Rafaela, tudo bem?
— Dra. Duda, tudo sim – respondeu, simpática.
— Então, liguei porque queria conversar com você, estou querendo
levar uma pessoa para conhecer o centro...

◆◆◆
CAPÍTULO 47
Cabelo sem onda

Alguns dias depois.


— É estranho estar nós duas aqui jogadas no sofá, enquanto você
está se empanturrando de sorvete e eu falando sobre a Maria Eduarda –
retrucou Luiza.
Raissa afastou-se da loira e sorriu. Já fazia quase três semanas que
elas não se viam, a morena queria dar espaço para ambas processassem
a separação. No entanto, apesar da distância física, elas ainda
mantinham contato por telefone. Raissa ouviu com felicidade, quando a
loira ligou dias atrás para contar que havia passado o dia com a médica
e que tinha conhecido seu filho mais velho. Luiza recebeu muito
incentivo da advogada para se dar uma oportunidade. Não que
esperasse que o sentimento fosse brotar do nada, até porque a loira não
acreditava nesses amores instantâneos. Contudo, não poderia negar para
si mesmo que gostou da companhia da moça do cabelo sem onda e
conhecer seu filho dispensava palavras.
Desde aquele encontro, as duas passaram a trocar curtas ligações e
mensagens no WhatsApp ao longo da semana. Devido à uma
emergência no trabalho da médica, o encontro que teriam na quinta-
feira foi adiado para segunda-feira. A iniciativa do contato tinha partido
da gaúcha, que ligou para Maria Eduarda com a desculpa de pedir o
número de telefone do filho mais velho. Ela poderia ter pedido a sua
mãe, porém, por algum motivo, Luiza queria ouvir a voz da moça do
cabelo sem onda.
Raissa desencostou seu corpo do corpo da amiga. Sim, elas eram
amigas agora, mas mantinham a mesma intimidade respeitosa de antes.
Em seguida, ela buscou os olhos escuros da loira.
— Não tem nada de estranho, você estava com saudade de mim, eu
de você, e aqui estamos: esparramadas no sofá, assistindo não sei o que
na televisão, conversando, roxas de saudades de dois velhos rabugentos
que estão a quilômetros de distância, e o melhor, agora finalmente
posso apreciar meu sorvete de chocolate com minha calda de morango
sem implicância – disse toda, marota.
Não teve como não sorrir, Luiza adorava demais o jeito que Raissa
lidava com as coisas, era tão simples e sem dramas.
— Vocês se parecem, ela é muito fã dessa combinação – replicou a
loira, com um sorriso bobo, se permitindo meter a colher no pote de
sorvete que estava cheio de calda e pedaços de morango.
— Olha aí, descobri o motivo da sua implicância, meu sorvete te
remete a ela – disse a morena de boca cheia. – Você tem um padrão,
sabia? Sua mãe fica sempre me apontando algo em comum que tenho
com a Duda. Estou quase acreditando que tenho uma sósia, nem posso
dizer que cheguei primeiro, porque até a idade é a mesma – falou com
uma falsa indignação.
Luiza lhe olhou curiosa. Raissa só então percebeu que falara
demais. Seu rosto corou.
— Você tem visto a minha mãe? – perguntou a loira, séria e
curiosa, pois não sabia de tal detalhe.
Suas azeitonas tiveram dificuldade para encarar os negros à sua
frente. Como dizer à loira que sim, ultimamente tem falado bastante
com Heloísa. Não que estivesse fazendo alguma coisa errada, não era
isso. Era só que a mulher, bem, aquela mulher era uma companhia
agradável demais. Outra noite, Raissa e Camila tinham saído tarde do
escritório e resolveram jantar. Camila acabou ligando para mãe e
pedindo para encontrá-las no restaurante, que ficava próximo da casa da
artista plástica. Heloísa, por sua vez, apareceu poucos minutos depois.
A noite não poderia ter sido mais agradável, Camila teve que ir embora
após o jantar, mas as duas permaneceram por mais um tempo. Era
engraçado como as coisas fluíam entre elas. Raissa ainda não conhecia
a cidade, a mais velha não via mal algum apresentar alguns lugares a
mais jovem, até porque considerava a companhia da ex-nora muito
agradável, Raissa com seu jeito tão extrovertido tinha o hábito de lhe
roubar sorrisos.
— Sim, vez ou outra eu perturbo sua mãe – disse, displicente. – Vai
ficar com ciúmes, dona Luiza Lafaiete? – provocou a morena, numa
tentativa de amenizar sua própria tensão.
— Devo? – questionou a loira.
Raissa voltou a encher a boca de sorvete, como se quisesse fugir de
uma resposta. Luiza acabou não insistindo, agora foi sua vez de sentir
uma dualidade no peito. Ela continuava amando Raissa, adorava estar
assim com ela, tão juntas, tão cúmplices. Elas tinham uma sintonia
perfeita, mas talvez fosse exatamente isso, elas eram perfeitas demais
para estarem juntas como um casal. E pela primeira vez, Luiza teve
curiosidade em saber como era seu relacionamento com a Duda. O
pouco que já conhecia dela, viu que ambas eram muito diferentes. Duda
parecia uma alma agitada, julgou pelo que viu em suas redes sociais.
Não eram postagens novas, a maioria de três anos atrás, provavelmente
antes da sua suposta viuvez. Porém, eram postagem de festas, viagens,
eventos sociais. Havia também muitas fotos delas juntas e com os
filhos. Sempre as duas muito sorridentes, agarradas. Foi estranho para a
loira se ver naquelas fotos, era como se fosse ela, mas não era ela.
Apesar de toda felicidade registrada naquelas imagens, era como se
aquela felicidade fosse irreal ou incompleta. Seja como for, Luiza
sentiu uma nova vontade, um novo querer, uma nova motivação: ela
queria fazer novos registros, o seu verdadeiro registro. E novamente
lembrou-se da moça do cabelo sem onda, do seu sorriso, dos seus
gestos delicados, da sua agitação, dos seus olhos amêndoas.
— O que foi? – perguntou Raissa, ao ver a loira dispersa.
— Estava pensando na Maria Eduarda.
Raissa abriu um sorriso malicioso, a loira lhe deu um leve tapa de
repreensão, mas não adiantou.
— Minha sósia é uma gata, mesmo – disse Raissa, provocativa. – É
bastante simpática, inteligente… – fingiu suspirar enquanto disparava
diversos elogios a Maria Eduarda por implicância.
— Para... – interrompeu a loira.
— Oxe! Não dá pra negar o óbvio.
— Já virou amiga dela?
— Não diria amiga, mas tenho me tornado amiga da Camila – disse
com sinceridade. – Sua irmã é uma graça, trabalhar com ela tem sido
uma experiência e tanto, gosto da sua impetuosidade e sua sagacidade.
Ficando tão próxima dela, por tabela, acabo ficando muito próxima da
Duda e dos seus antigos amigos. Eles me lembram da trupe que ficou
em Natal.
Luiza sorriu, lembrava mesmo.
— Raissa, você tem que se controlar, não pode arreganhar os
dentes pra todo mundo, fazendo amizade com gato, cachorro, papagaio
e periquito – replicou a loira, arrancando uma gargalhada da advogada.
– Sim, ela é bonita, mas não é isso que… – Pareceu não encontrar a
palavra certa.
— Te atrai – concluiu a morena. Ficou muito nítido que Maria
Eduarda tinha razão, ela só precisava de uma chance e, pelo que Raissa
estava percebendo, a médica estava aproveitando bem. – Não precisa de
tato comigo, Rê – disse com ternura, Raissa ainda gostava de chamar a
loira pelo seu antigo apelido. – O que vivemos, vivemos. Agora o verbo
é outro, quero ter liberdade de contar meus sentimentos pra você sem
reservas, assim como quero que conte os seus.
Luiza sorriu, talvez a outra Luiza tivesse outros melhores amigos,
como a Isabella, Lucas, Amanda. No entanto, essa Luiza tinha só tinha
uma melhor amiga, e ela estava ali com suas azeitonas brilhando
porque estava feliz, feliz pelo que estava ouvindo, feliz pelo que Luiza
começava a sentir.
— Sim. Acho que estou atraída por ela. Ainda soa estranho. Uma
pequena necessidade de ouvir sua voz, trocar mensagens, vê-la tem se
feito presente. Ela manda fotos das crianças, manda memes engraçados.
Então, quando o silêncio começa a querer se impor, sou eu que a
procuro, Ray. Ontem eu fiquei muito brava porque tinha mandado uma
mensagem de boa tarde, e ela só veio me responder quase cinco horas
depois. Ela disse que teve uma cirurgia de emergência, pediu mil
desculpas, mandou selfies dela no hospital.
Raissa não conseguiu controlar o riso, ela não conhecia esse lado
pegajoso da loira. Quando as duas eram um casal, era muito de boa.
Depois seu riso se apagou de imediato quando lembrou-se de algo
muito parecido que sentiu poucos dias atrás. Dessa vez, foi a advogada
que teve um gatilho disparado. Estou muito ferrada, disse em
pensamento.
— É um começo – disse a morena, desanuviando seu pensamento
que gerou um pequeno inverno no seu estômago.
— Eu lembro sempre dos cabelos dela – confessou a loira. – Nos
meus flashbacks, eu nunca lembrava do seu rosto, mas sempre via seus
cabelos, negros, compridos e sem nenhuma onda. Eles são do mesmo
jeito.
E ali elas ficaram naquela tarde de sábado, as duas tinham
combinado de passarem o fim de semana juntas, ambas estavam muito
carentes uma da outra.
◆◆◆
CAPÍTULO 48
Voluntariado

Duda mal tinha conseguido dormir naquela noite. Depois de uma


semana, iria voltar a ver Luiza. Outra pessoa que estava muito ansiosa
era o pequeno João Gabriel. Depois daquele encontro, Duda voltou a
conversar com o jovem e pacientemente explicou a situação da sua mãe
Luiza. Era difícil para o garoto entender a complexidade do caso,
contudo seus fantasmas da rejeição voltaram a ser aprisionados no
recôndito de sua mente, pois, depois daquele dia, Luiza demonstrou o
quanto queria não apenas conhecê-lo, mas participar da sua vida. Os
dois se encontraram na manhã seguinte na casa da sua avó, ali selaram
um acordo entre mãe e filho.
— Eu não posso lembrar de nada do passado, mas podemos
construir algo novo. Algo nosso – sugeriu a loira dias atrás, após uma
conversa sincera com o filho. – Eu te adoro de paixão, guri, não preciso
de lembranças antigas para ter certeza disso. Quero ser sua mãe da
mesma forma que quero ser a mãe das suas irmãs. Ainda não as
conheço, mas sei, tenho absoluta certeza de que vou amá-las também.
As palavras da gaúcha espantaram à vassourada os medos do
pequeno rapaz, assim ele a abraçou com todo amor que sentia.
— Eu também te adoro de paixão, mamãe Isa.
Desde então os dois não apenas se falavam ao telefone, como se
viam todos os dias. João fazia questão de passar a tarde na casa da avó,
ali Luiza teve a oportunidade de conhecer um pouco seu filho. Ela tinha
muita vontade de conhecer as meninas, porém percebeu o quanto Duda
era uma mãe cuidadosa, queria sentir confiança antes de trazê-la para a
vida das filhas, até porque as meninas ainda não tinham o mesmo
discernimento que o irmão mais velho. Luiza, ao invés de se sentir um
tanto irritada em ser privada disso, achou uma atitude louvável da
morena, só mostrava o quanto aquelas crianças eram importantes para
ela.
— A senhora acha que a mãe vai gostar? – perguntou João, agitado,
antes de entrar no carro para ir ao colégio. – Eu já conversei com a
Malu para ela se comportar, mas a senhora sabe como ela é.
Duda sorriu da preocupação genuína do filho, ele tinha conversado
com as duas irmãs na noite anterior, pediu que elas se comportassem,
pois irão conhecer a outra mãe que, segundo ele, havia se acidentado,
por isso passou tanto tempo longe deles. Duda achou linda a postura do
filho, de querer montar um ambiente agradável para receber a loira.
Apesar da explicação do garoto, as meninas não lhe deram atenção, Vic
tinha poucas lembranças da mãe, e Malu, nenhuma. Mesmo assim,
Maria Eduarda reforçou a conversa com a filha do meio. Foi confuso
para ela, mas Vitória era muito sensível e pareceu gostar de saber que
teria outra mãe.
— Tenho certeza que ela vai adorar nossa casa e vai sobreviver à
pequena Malu – disse a morena aos risos. – Agora vá, pois você tem
prova no primeiro horário. Nos encontramos no almoço.
João não pareceu tão convencido. Sua irmã mais nova costumava
deixar os adultos de cabelos em pé. Ele tinha medo de que a falta de
comportamento de algum dos três afastasse Luiza. O menino tinha esse
problema de aceitação, embora tivesse no passado feito
acompanhamento psicológico, ainda era muito forte nele se tratando da
sua mãe Luiza.
Duda olhou para as duas meninas sentadas em suas cadeiras,
entretidas com suas bonecas, e depois para o pequeno rapazinho, em
seguida deu um suspiro abobalhada. Duda amava profundamente
aquelas crianças. Depois de muita procrastinação convidou a ex-mulher
para conhecer sua família em sua totalidade, mas isso não foi uma
decisão da noite para o dia. No decorrer dos dias, a morena sentia mais
confiança nos sentimentos da outra em relação às crianças.
— Vai, filho. No almoço, nos encontraremos.
O menino finalmente assentiu e entrou no carro, a morena
despediu-se dos filhos e finalmente o motorista junto com a babá
puderam sair.
Agora a morena tinha outra missão para aquela manhã. Ela
caminhou até seu veículo e dirigiu até a casa da sogra. Por sorte o
percurso não era tão distante. Ao contrário de outrora, Maria Eduarda
manteve todo aquele progresso com a esposa, ou melhor ex-esposa, em
segredo. Não queria pressão nem gerar altas expectativas. As únicas
pessoas que sabiam eram, claro, sua mãe, que não escondeu o orgulho
de ver tamanho amadurecimento daquela jovem que costumava ser tão
inconsequente, e Heloísa, pois, a artista plástica era a peça fundamental
para o que pretendia naquela manhã. Além do mais, Duda estava
vivendo algo novo, algo que não tivera a oportunidade de viver no
passado. Aquilo que começa com a troca de pequenos sorrisos. Tímidos
olhares. Conversas bobas e despretensiosas. E estava bom assim,
naquele ritmo. Sua esperança era renovada a cada mensagem que
recebia durante seu dia. A ligação no final da noite. Duda falava mais,
porque sua bagagem era maior, mas isso não encurtava a conversa, pelo
contrário, a cada descoberta que faziam uma da outra, elas se sentiam
mais instigadas a se conhecerem.
Em menos de vinte minutos, a médica estacionou em frente ao
condomínio. Assim que desceu do carro, avistou a loira parada na
portaria do prédio. Luiza, ao vê-la, abriu um largo sorriso. Duda, por
sua vez, sorriu de volta.
— Oi! – cumprimentou Maria Eduarda, dando um beijo em cada
lado da bochecha da loira e a abraçando delicadamente.
Luiza sentiu o coração acelerar. Essa sensação estava se tornando
frequente, não apenas com o contato físico, sentia também quando
trocavam mensagens ou se falavam ao telefone.
— Vamos – chamou.
— Aonde vamos?
— Vamos ao meu segundo local de trabalho – disse a morena com
animação. – Confesso que é o melhor de todos, o que faz valer cada ano
que passei aturando aquele bando de velhos chatos na faculdade de
medicina.
— Vamos ao hospital? – perguntou, curiosa, se acomodando no
banco carona.
— Melhor que isso. – Sem querer mais suspense, a médica contou
sobre seu trabalho voluntário.
O percurso durou menos de quarenta minutos. O carro foi
estacionado em frente a um casarão de muros coloridos. Centro Os Tons
do Amor era o que tinha escrito dentro de um coração em forma de
quebra-cabeça de todas as cores, quer dizer, não era de todas as cores,
era das cores que simboliza o autismo.
— Te trouxe para conhecer um pouco daqui, acho que vai gostar.
Tu tinha dito que a família da Raissa era envolvida com ações sociais, e
que esse trabalho também a cativou. Bem, aqui não lidamos com
pessoas em condições de rua, mas lidamos com pessoas que também
precisam de um pouco de atenção. Sua mãe é uma das principais
madrinhas do projeto.
— Minha mãe? – Luiza pareceu surpresa, ela não sabia que sua
mãe também era engajada em projetos sociais, isso lhe deu uma
animação maior e um sentimento de orgulho. Cada dia que convivia
com Heloísa, mais seus laços se unificavam.
— Sim, conheci o centro através dela, você vai entender o porquê.
Vem!
Duda a pegou pela mão e a levou para o interior do centro. A loira
olhava com curiosidade para o ambiente. O casarão lembrava o
conservatório onde trabalhava na capital do Rio Grande do Norte, a
diferença era que havia cores para todos os lados e desenhos grafitados
nas paredes. Maria Eduarda a conduziu por um longo corredor até
chegarem a uma porta onde, em letras coloridas, estava escrito
DIREÇÃO. A morena sorriu e em seguida deu três batidas
consecutivas. Ela não esperou o “entre”, Duda girou a maçaneta, abriu e
entrou.
— Chegamos – anunciou a morena. – Entra, Isa. – Puxou Luiza
para a sala.
Luiza entrou no ambiente e, para sua surpresa, lá estava sua mãe
acompanhada de duas mulheres. Opa!, pensou a loira ao ver um rosto
familiar.
— Oi, filha. Estávamos esperando por você! – disse Heloísa,
sorridente.
Luiza olhou confusa para mãe e para Maria Eduarda, que só fazia
sorrir.
— Mãe, o que faz aqui? – perguntou. – Você... – disse ao olhar para
Leandra que estava ao lado de Rafaela. – Você é a Leandra Oliveira,
não é?
— Você a conhece? – foi Duda quem perguntou.
— Eu sabia que seus olhos me lembravam alguém – disse Leandra
ao fitar os olhos escuros da visitante. – Viu, amor! – disse agora para
sua esposa.
Rafaela se aproximou e escrutinou o rosto da Luiza.
— Meu Deus, como o mundo pode ser tão pequeno. – Foi a vez da
ruiva falar. Ela tinha acompanhado a esposa naquela exposição.
Leandra tinha ficado muito impressionada com a amiga do curador da
galeria, por algum motivo seus olhos lembravam a sua principal
patrocinadora. Ela passou a noite inteira repetindo isso para a esposa,
dizendo que aquela jovem lhe lembrava a Heloísa.
— Você pode explicar de onde se conhecem? – Foi a vez de
Heloísa perguntar.
Leandra tomou a vez e relatou o curioso episódio durante sua
passagem pela cidade de Natal. Maria Eduarda e Heloísa ficaram
estarrecidas com aquela coincidência do destino.
— Vocês nunca tinham visto a Isa? – perguntou Maria Eduarda a
Leandra e a Rafaela.
— Não – responderam em uníssono. — Conheci Leandra através
de Erica, sua empresária, há uns seis anos atrás. Foi logo quando vim
morar na cidade. Tinha ido a algumas de suas exposições e me tornei fã
do seu trabalho. Como sabe, tenho uma grande paixão pelo meio. Como
também trabalho com artes plásticas, não faltou oportunidades para
trabalharmos juntas. A parceria perdurou, e uma amizade nasceu –
explicou a gaúcha mais velha. – Você sempre esteve tão ocupada em
sua residência, que quando tinha evento, você nunca conseguia ir, filha.
Então, nunca tive a oportunidade de apresentá-la às meninas.
O rumo daquela conversa começou a incomodar a loira que pediu
para voltar ao momento presente. Notando a tensão que pairou no ar,
Duda tomou a dianteira, até porque passado era algo terminantemente
proibido de se mencionar.
— Bem, vamos começar de novo. Isa, te trouxe aqui para conhecer
um pouco do centro. Achei que poderia gostar – disse Maria Eduarda. –
Essas aqui são as idealizadoras do projeto. Leandra, que você já
conhece, e essa é a Rafaela, esposa da Leandra.
As anfitriãs cumprimentaram a loira simpaticamente, depois a
convidaram para sentar. Depois de acomodadas, Rafaela resolveu
contar um pouco sobre o projeto social desenvolvido ali. Luiza olhou
para a garota que estava sentada ao lado da sua mãe e sentiu uma
emoção diferente. Não era apenas alegria, era algo que ainda não sabia
nomear. Duda a pegou numa singela conversa, percebeu nas entrelinhas
a importância que trabalhos como aquele passaram a ter na sua vida
presente. Luiza se sentia útil, se sentia cooperante. A morena viu a
ponta do novelo e a puxou.
Após uma explanação geral, Rafaela perguntou se a visitante queria
conhecer o centro em sua atividade prática. A loira levantou-se
prontamente. Sim, ela queria.
— Infelizmente não poderei acompanhar vocês no tour – disse
Leandra. – Tenho alguns compromissos – justificou. – Luiza, desejo
que seja tocada pelas cores do amor – desejou Leandra com
sinceridade.
A loira lhe respondeu com um sorriso sincero. Leandra se foi, e as
demais iniciaram o tour.

Algum tempo depois.


Rafaela apresentou cada pedacinho daquele lugar. Durante a visita,
teve oportunidade de conhecer funcionários, voluntários e
principalmente aqueles seres (crianças autistas) de tanta luz. A loira se
sentiu tocada no coração, foi impossível evitar que seus olhos se
transbordassem e a lembrança daquele senhorzinho pretinho e sua
esposa. Se cada um plantasse uma mudinha, o mundo seria mais
florido, meu Girassol, diria senhor João, seu amado pai do coração.
Agora as quatro mulheres estavam sentadas numa pequena
arquibancada assistindo um pouco da aula de educação física
ministrada pela nora de Rafaela.
— O diferente não é tão diferente quando passa a ser compreendido
– disse Duda, olhando para as crianças no centro do salão. Júlia e mais
dois voluntários ajudavam as crianças a trabalhar sua coordenação
motora e a capacidade comunicativa, através de algumas atividades
esportivas. – Gostou? – perguntou a morena. A loira sentiu-se
emocionada. Com dificuldade de verbalizar, apenas assentiu com a
cabeça. – Fico feliz, mas essa não é a parte boa. – Maria Eduarda
buscou os olhos da moça sentada ao seu lado. Seu semblante mudou. –
Eu demorei muito para perceber que isso – abriu os braços, como se
mencionasse o tudo – também é nossa responsabilidade, e nem sempre
tudo se resolve com um cheque. Quando te perdi, fui obrigada a me
ressignificar, por mim e pelos nossos filhos. Apesar de vivermos em
uma classe privilegiada, eu e você…
— Éramos meras assinantes de cheques – deduziu Luiza com
tristeza.
— Exatamente. Você não foi a única que morreu há três anos. – Os
olhos amêndoas marejaram, mas Duda continuou. – Tem um ditado que
diz: Quando Deus nos tira algo, ele nos dá outro em troca. Bem – sorriu
fraco –, eu sofri muito ao te perder. Demorei muito para aceitar que
você tinha partido. Mas, há poucas semanas, eu conheci uma moça sem
memória. – Sorriu de um jeito que derreteu a loira. – Ela tem ocupado
meus pensamentos, sabe?! E veja que legal, temos um querer em
comum…
— Queremos dividir o pouco que temos – concluiu a loira, sorrindo
de volta. O dividir era mais que algumas notas de dinheiro. Assim,
Luiza repetiu as palavras do seu pai do coração: – Se cada um plantasse
uma mudinha, num futuro breve o mundo seria mais florido. – Houve
um pequeno silêncio entre elas. – Gostaria que conhecesse meu pai,
Duda, acho que ele iria gostar de você – disse Luiza com naturalidade.
Heloísa, que estava a três bancos acima ao lado de Rafaela, sentiu o
peito se preencher de felicidade ao ouvir a filha dizer aquela curta frase,
pois sabia o quanto o amor daquele homem e daquela mulher que
conheceu em Natal eram importantes para sua filha, e isso não abria
espaço para ciúmes de sua parte, só aumentava sua gratidão.
— Vou aguardar o seu convite – rebateu a morena sorridente. –
Mas, você pensou mesmo que iria escapar, srta. Fernandes Lafaiete –
disse a morena adotando um tom divertido. – Já fique sabendo que sou
um grude da gota serena com os meus amigos. Isso significa que não
iria embarcar nisso sozinha. Arrastei todos para cá – disse, arrancando
uma risada das mais velhas, que assistiam à interação das duas.
— Apesar da outra Luiza ser médica, eu não pratico a medicina –
disse a loira.
— Bem, filha, o centro já tem médicos demais – se intrometeu
Heloísa, rindo.
— Tem até arquiteto – completou Rafaela, ao se referir a um dos
amigos da médica.
Duda não esperou que outras perguntas surgissem, levantou-se e
chamou a todos. Era hora de mostrar a cereja do bolo. Luiza não
entendeu nada. Ela foi arrastada até uma sala que tinha sido preparada
dias antes na maior correria, mas, graças à boa vontade de todos os
envolvidos, conseguiram deixá-la pronta, só restava saber se a estrela
coadjuvante iria aceitar o desafio de atuar com as estrelas principais (as
crianças).
— Luiza – disse Rafaela –, como mãe de uma portadora de
espectro autista, sempre escutei muito que minha filha não gosta de
música. Há um preconceito muito forte nisso, porém existe uma
diferença entre sensibilidade ao barulho e a ouvir música. Sofia nos
esclareceu que a música tende a apresentar uma capacidade intacta para
percepção de melodias simples e um desempenho superior a indivíduos
com desenvolvimento típico para processar elementos locais melódicos.
A musicoterapia direcionada ao autismo mostrou grandes benefícios na
melhoria da capacidade de resposta interpessoal. Esses resultados
foram observados mediante o desenvolvimento das áreas relacionadas
à linguagem e comunicação, aumento da atenção compartilhada e
estimulação das respostas de neurônios-espelho[18] – explicava
Rafaela, conforme explicou a psicoterapeuta do centro, numa reunião
dias antes, para ver a possibilidade de trazer som àqueles pingos de
cores (crianças).
Luiza sentiu seu coração retumbar, começou a entender o motivo
daquele convite. Tentando controlar a euforia que começou a sentir, se
permitiu assistir o desdobramento daquela conversa.
— Bem, recentemente recebemos uma bonita doação de uma de
nossas madrinhas – continuou a ruiva, sem conter o riso ao olhar para a
médica, entregando tudo. – Mas infelizmente não encontramos alguém
disposto a aceitar o desafio de ensinar música àqueles ditos, diferentes.
O coração da loira explodiu de algo que a preencheu. Rafaela abriu
a sala, e a loira pôde ver o grande astro da sala. Era um piano de cauda
todo branco. As quatro mulheres entraram no ambiente. Não era uma
sala grande, as paredes eram brancas, mas havia diversos desenhos de
personagens infantis, sempre com instrumentos musicais na mão, tudo
bastante colorido. Pelo cheiro de tinta ainda presente no ar, não foi
difícil deduzir que a sala foi montada recentemente. O piso era de um
porcelanato branco espelhado, no entanto uma parte estava coberta com
tapete emborrachado colorido. Um janelão que trazia luz natural ao
ambiente. Luiza chegou perto daquele instrumento que por algum
motivo a puxava para ele. Ela se perguntou naquele instante se a
medicina lhe causava a mesma paixão.
— Todos os seus irmãos aprenderam a tocar, mas você... Você
sempre foi minha pequena pianista – disse Heloísa com emoção.
— Tocamos juntas – convidou a gaúcha mais nova sem cerimônia.
Heloísa lhe sorriu, era a primeira vez depois de muitas décadas que
faria algo tão delas. Sim, porque aquela paixão Luiza herdou da mãe,
que amava a arte como um todo, embora a música tivesse um lugar
especial em seu coração. Sem esconder a emoção que ambas sentiam,
elas sentaram sobre a banqueta daquele lindo instrumento. Ambas
passaram os dedos levemente sobre o teclado, como se tivessem o
cumprimentando. Rafaela e Duda apenas observam. Então, foi Heloísa
que puxou as primeiras notas. A gaúcha mais nova sorriu, e numa
sintonia perfeita iniciaram a música Prelúdio em Dó Maior – Bach.
A música preenche todo ambiente, as duas mulheres fecharam os
olhos, enquanto seus dedos dedilhavam pelo teclado do piano. Foi
assim que vieram sequências de outras músicas. De: Vivaldi, Chopin,
entre outros. Para finalizar a pequena apresentação, Heloísa concedeu
as honras, e Luiza iniciou Winter – Vivaldi. Roubando um rasgado
sorriso da mãe. Quando encerrou, vieram calorosos aplausos dos
presentes da sala.
— Será que vocês estão precisando de uma professora de música?
– perguntou a loira, eufórica.
E veio uma gargalhada geral. Mas logo a gaúcha tomou
consciência da responsabilidade, não seria o tipo de crianças e
adolescentes que estava acostumada. Eram crianças especiais em
diversas nuances. Luiza percebeu que para assumir tal responsabilidade
teria que mergulhar fundo naquele mundo de cores, para aprender a
melhor forma que poderia ajudar, se doar. Serei capaz?, perguntou-se.
Então ela buscou aquela mulher, cujos olhos e gosto eram tão
semelhantes aos seus. Luiza sentiu-se uma criança, uma criança que
queria muito fazer algo, algo que ainda não tinha capacidade de fazer
sozinha, seus olhos buscaram os dela, que pareceu ler seus
pensamentos. As lágrimas que Heloísa tinha acabado de suprimir
flutuavam ao longo das bordas dos seus olhos, ela esperou, precisava
ouvir, precisava sentir sua filha precisando dela. E Luiza precisou. Sem
vergonha de pedir, falou:
— Podemos fazer juntas, mãe? Posso ser sua assistente, ajudo no
que for preciso.
A loira lhe olhava com os olhos expectantes. Sua mãe suspirou.
— Ensinamos juntas – respondeu a gaúcha.
Luiza sorriu, e a mãe sorriu de volta. Rafaela e Maria Eduarda se
entreolharam, elas conheciam a história das duas. E, assim, como diria
o senhor João, pequenas flores já começam a crescer naquele jardim
antes inabitado que existia no coração daquelas duas gaúchas.

◆◆◆
CAPÍTULO 49
Janta comigo?

Luiza não tinha palavras para descrever suas emoções. Ela e Maria
Eduarda saíram do centro comunitário pouco depois das onze da
manhã, pois ainda teriam que cruzar a cidade para chegar em casa antes
que as crianças chegassem da escola. A loira agradeceu o silêncio que
se instaurou, precisava se preparar para o segundo round do seu dia.
Aquele a deixava apreensiva, pois, finalmente, iria conhecer suas filhas.
— Você realmente uniu o útil ao agradável. Além do mais,
trabalhar com minha mãe, por algum motivo, torna isso ainda mais
especial para mim. Obrigada, Maria Eduarda – agradeceu com
sinceridade.
Duda, que tinha sua atenção para o trânsito, desviou rapidamente
para encará-la. Ela queria dizer o quanto estava animada por Luiza ter
gostado, afinal, sua intenção foi a melhor possível, contudo se limitou a
sorrir. Naquele dia na cafeteria, quando a loira contou sobre seu
trabalho, seus olhos brilharam de um jeito que nem mesmo a medicina
os fazia brilhar. Por algum motivo, o universo, ao devolvê-la para este
mundo louco, a devolveu com um novo amor profissional. Isso ficou
muito evidente para Maria Eduarda, e, ignorando totalmente a
racionalidade, o universo resolveu trabalhá-las (Duda e Isa) de forma
diferente dessa vez. Ambas morreram naquele suposto acidente
rodoviário e ambas renasceram, com a diferença apenas no espaço
físico. Contudo, elas precisavam de algo em comum, precisavam da
ponta do novelo, e olha só, Duda e Luiza se ressignificaram justamente
em um trabalho sem retorno financeiro, onde entenderam que o pouco,
com muitos outros poucos, se transforma em muito.
— Não me agradeça. – Finalmente disse a morena. – Você terá
muito trabalho pela frente, inclusive, arraste a sua doutora também.
Camila é a única advogada que conheço, porém mais advogados
voluntários cairiam bem – sugeriu na maior cara de pau. – Você não
imagina a dificuldade que essas pessoas têm para conseguir um mero
benefício social – contou Duda com indignação na voz.
— Vou falar com ela, sim. Tenho certeza que Raissa vai querer
conhecer o projeto.
Depois de quase quarenta minutos, Duda entrou numa área de
condomínio fechado. As casas eram cada uma maior que a outra, a
morena percorreu alguns metros até chegar em frente a um impotente
casarão.
— Chegamos! – informou a motorista.
As portas foram destravadas, e as duas desceram do veículo. A
loira olhou um pouco impressionada para a casa a sua frente.
— Sua casa é muito bonita, porém parece grande demais – disse a
loira, olhando para a fachada, fazendo a morena rir.
— Também acho – concordou, subindo a escadaria que levava à
entrada principal, sendo acompanhada pela visitante. – Morávamos em
Boa Viagem, porém nos mudamos depois que eu engravidei da Vitória.
Como o plano era termos três filhos, achamos que seria melhor
trocarmos o apartamento por uma casa, assim teríamos mais espaço.
Você passou quase seis meses reformando essa casa. Escolheu e
decorou cada peça dessa propriedade. Eu nunca tive paciência para isso
– explicou.
Embora todos os empregados tivessem sido avisados, foi
impossível a loira não receber os olhares impressionados deles. Maria
Eduarda iria iniciar um tour pela propriedade quando três crianças
entraram abruptamente correndo, e duas delas gritaram ao mesmo
tempo o famoso:
— Mamãe!
Foi uma cena linda de se ver. Duda soltou a mão da gaúcha,
agachou-se e abriu os braços para receber as meninas que pularam em
cima dela sem demora, porém a morena parecia acostumada com
aquela recepção, pois conseguiu se manter firme. Luiza permaneceu
quieta, apenas observando.
— Oi, mãe! – A loira se assustou ao ver seu pequeno príncipe a
abraçando com carinho. – Você veio, você veio – disse, denotando toda
sua alegria.
Luiza desviou os olhos das meninas e correspondeu ao abraço do
filho.
— Foi o combinado, não foi?! – disparou a loira, abraçando-o mais
forte e beijando sua cabeleira amarela.
Duda se reergueu. João tomou a dianteira e fez a apresentação das
irmãs antes da mãe Duda.
— Mãe, essa aqui é a Vitória, minha irmã do meio. – Apontou para
a garotinha de mais ou menos 1,10 m.
Luiza, por sua vez, olhou para a garotinha dos cabelos escuros e
sorriu.
— Oi, Vitória. Sabia que você é uma guria muito linda? – disse
docemente.
Vitória, envergonhada, se embrenhou atrás das pernas da sua outra
mãe. Ela era a mais tímida dos três.
— Filha, diz “olá” para a mamãe Luiza – pediu a morena
docemente.
— Oi, quem é você? – Foi a vozinha do outro lado quem
perguntou.
Luiza desviou da pequena miniatura da Maria Eduarda para a sua
pequena miniatura dos cabelos amarelos que não chegava nem a um
metro de altura. Maria Luiza, vulgo, Malu, sem hesitação, ficou bem na
frente da loira.
— Você deve ser a Malu – disse a loira. – Oi, Malu. Eu sou a
Luiza.
Tomando coragem por estar ao lado da irmã, Vitória voltou para
posição anterior, assim ficando lado a lado da pequena Malu e de frente
para a desconhecida. Luiza não sabia como agir diante da emoção
estranha e gostosa que estava sentindo ao conhecer as filhas.
— Mamãe Duda disse que você também é nossa mamãe. –
Finalmente a loira pôde ouvir a vozinha da sua filha do meio.
— Claro que é, mas ela não lembra – disparou João, revirando os
olhos, pois, em sua cabeça, as irmãs tinham compreendido a conversa
que tiveram na noite anterior sobre a sua mãe que perdeu a memória.
— Filho, suas irmãs não entendem – replicou Duda, sorrindo. –
Vamos para o sofá – sugeriu. Assim, os cinco se dirigiram à sala de
estar.
Luiza literalmente não sabia como se comportar, as meninas a
olhavam com curiosidade. Duda voltou a apresentar as filhas.
— Elas são lindas – disse a loira com um sorriso bobo no rosto. –
A Vic parece com você.
— Ufaaaaaaaaaaaaaa! – disparou a médica de um jeito engraçado,
dando pulinho no ar e fazendo uma dancinha engraçada. As meninas se
empolgaram e espelharam a atitude da mãe Duda e dançaram também,
mesmo sem saber o motivo. Luiza riu diante da cena. Ao final da
coreografia, a médica explicou: – Não aguento ouvir que ela é a cara do
pai – fingiu-se de brava, voltando a se sentar no sofá.
Luiza riu, Maria Eduarda tinha um jeito muito moleca. A loira
voltou a olhar para a garotinha do sorriso banguelo. De fato, a menina
carregava fortes traços do pai, porém a gaúcha só conseguia enxergar a
morena na filha. As meninas foram levadas por suas respectivas babás
para que tomassem um banho antes do almoço, João, a contragosto,
também fez o mesmo. Pouco tempo depois, os três retornaram à
companhia dos adultos. Malu e Vic trataram logo de arrastar suas
bonecas favoritas para mostrar à visita. Luiza tentou demonstrar
interesse enquanto estava tendo aquele primeiro contato com as
meninas.
O almoço foi servido, e os cincos se acomodaram à mesa. Maria
Eduarda tentava sufocar a explosão de alegria em seu peito, por noites a
fio chorou achando que nunca viveria um momento como aquele. A
mesa de jantar, ao contrário do tradicional retangular, era redonda, o
que permite mais proximidade aos ocupantes. Luiza sorria o tempo todo
enquanto escutava os filhos tagarelarem, normalmente a Vitória era a
mais tímida, mas, quando estava na companhia da irmã mais nova,
soltava a língua.
Chamar atenção é natural para crianças quando estão diante de
pessoas estranhas, e os filhos do casal não eram diferentes. Por mais
que João já tivesse mais contato com a mãe Luiza, no início daquela
tarde, ele parecia ter a mesma idade das irmãs, brigando por qualquer
besteira e tentando a todo custo ter a atenção da loira só para ele. Findo
o almoço, foram servidas quatro pequenas taças da famosa combinação
sorvete de chocolate com calda de morango. O UHUUUUU foi quase
coletivo. Arrancando uma gargalhada alta da visitante. Era muita
quentura (carinho, amor, ternura ou qualquer adjetivo que se encaixe)
para o pobre coração.
— Pelo visto, sou voto vencido aqui – disparou a loira, tentando
lançar um olhar conspiratório, porém não conseguiu mantê-lo por muito
tempo. Aquelas quatros carinhas de total satisfação eram fofinhas
demais.
— Ainda é tempo de entrar na seita da família Lins, Srta.
Fernandes Lafaiete – disparou Maria Eduarda de boca cheia.
— Mãe, é muito gostoso – disse João, se espelhando na mãe e
falando de boca cheia.
As meninas, mesmo sem entender o que diziam, cada uma a seu
modo fez a mesma coisa. Luiza finalmente se rendeu àquelas doces
criaturas. De um jeito espontâneo, empurrou sua taça de sorvete de
creme sem calda para o lado e meteu sua colher na taça da morena.
Duda riu e puxou a cadeira para mais perto. O momento foi terno, as
duas mulheres mais velhas não conseguiram evitar a troca de olhares.
Não houve nenhuma tentativa de flerte, pelo contrário, as coisas
seguiam ao ritmo de um riacho tranquilo. Após a sobremesa, elas se
reuniram no jardim. As meninas corriam de lá para cá, mostrando seus
brinquedos, enquanto o garoto João brincava com seus cachorros de
estimação. Certo momento, Luiza sentiu as pontadas na cabeça, foi
automático. Estar exatamente naquela casa foi gatilho suficiente para
que inúmeros flashbacks viessem à luz, porém, dessa vez, foi
arremessada sobre ela diversos momentos, momentos compartilhados
com a moça do cabelo sem onda.
— Você está bem? – perguntou a morena. No momento que Luiza
começou a passar mal, ela a levou para um canto afastado, não queria
assustar os filhos que estavam brincando com os cachorros da casa.
— Estou. Só alguns flashbacks, mas nada muito claro – disse.
Duda assentiu, e elas voltaram para a área de descanso no jardim.
As horas voaram. Quando deram por si, a noite já tinha caído.
— Preciso ir – disse a loira com um verdadeiro pesar.
Tudo que Maria Eduarda queria era prolongar aquele dia, porém
achou melhor não brincar com a sorte. Luiza viveu muitas emoções
num só dia, ela precisava de espaço para absorver tudo. Por diversas
vezes, a médica viu aqueles olhos escuros marejados diante das
crianças. O contato ainda era tímido, visto que as meninas ainda
estavam conhecendo-a naquele dia, mas pareceu muito significativo.
Como Vitória era maiorzinha e Duda tinha explicado algumas vezes
sobre a existência da outra mãe e seu irmão a lembrava o tempo todo,
chamar Luiza de mamãe foi natural, e mais natural ainda foi a pequena
Malu se espelhar nos irmãos e chamá-la também de mãe. Luiza ainda
precisava se adaptar, mas escutar essa pequena palavra lhe gerava um
sentimento terno em seu peito.
— Tudo bem, vamos te levar.
Luiza pensou em contestar, pois percebeu que morava apenas a
algumas quadras de distância, mas Duda insistiu.
— Ei! Que tal levarmos a mamãe Isa na casa da vovó Helô?! –
sugeriu Maria Eduarda.
E a alegria foi geral, as crianças estavam todas suadas e
descabeladas de tanto brincarem, Luiza guardou aquela linda imagem
em um lugar especial da sua mente. Seus filhos pareciam crianças
felizes. Duda estava fazendo um rabo de cavalo nas madeixas negras da
filha do meio. Malu chegou perto da loira e deu saltinhos num pedido
velado para que a pegasse nos braços. Ela realmente era uma
pimentinha, fazia os irmãos de gato e sapato. Luiza abaixou-se para
pegá-la no colo.
— Coloca essa porquinha no chão, Isa – disparou Duda.
— Porquinha não, mamãe, Malu não é a Peppa[19] – contestou a
pequenina.
Duda deu uma gargalhada gostosa.
— Acho que vou querer essa Peppa pra mim, Du… – provocou a
loira.
Os olhos da morena brilharam ao ouvir o apelido que Luiza
costumava chamá-la. O sorriso se alargou em seu rosto. Tudo que
Maria Eduarda queria era abraçá-la até a loira reclamar do aperto.
— Pode levar, dou de graça e ainda pago uma gorda pensão –
replicou a médica com humor.
— Até parece, guria – replicou a loira. – Você tem cara de quem é
extremamente ciumenta.
— Malu não é a Peppa – gritou a pequena, brava.
— Filho, pega a chave do carro de vocês, por favor – pediu.
João correu para dentro da casa enquanto os outros foram até a
garagem. O menino apareceu pouco tempo depois e entregou a chave à
mãe. Duda destravou as portas e ajudou Vitória a se acomodar em sua
elevação de assento que ficava no banco do meio. Malu pulou dos
braços da loira sentando-se em sua cadeirinha, enquanto João
acomodou-se na outra janela. Duda abriu a porta para a loira e depois
contornou o carro e se acomodou atrás do volante. O carro foi ligado, e
a morena os conduziu até a casa da ex, quase novamente, sogra. À
medida que o carro avançava, mais uma vontade crescia no peito da
gaúcha. Ela olhava para trás o tempo todo e, em seguida, olhava para a
moça de cabelos sem onda. Os suspiros eram inevitáveis. Quando o
carro estacionou em frente ao condomínio, era hora da despedida. Luiza
se rendeu à vontade gritante de permanecer na companhia daqueles.
— Não quer subir? Mamãe vai adorar ver as crianças – disse,
embora por dentro estivesse implorando para que a morena aceitasse.
Duda pareceu hesitar. Também precisava processar o
acontecimento do dia. Só ela sabia a guerra de titãs que era para domar
a impetuosidade do seu amor. No entanto, ela queria realmente fazer
diferente, oferecer um amor diferente. Aquela Luiza à sua frente era
interessante demais para assustá-la com sua possessividade. Os
castanhos estavam prontos para recusar, quando a loira tocou em suas
mãos.
— Sobe rapidinho – pediu de um jeito tão dengoso e espontâneo
que foi impossível não aceitar.
As crianças foram soltas e já correram pela recepção do prédio,
elas eram conhecidas ali. Luiza, animada, pegou na mão da morena e
puxou para dentro do condomínio. O grupo pegou o elevador e subiram
para o apartamento. Heloísa tinha acabado de chegar quando viu sua
casa sendo invadida pelos netos. Entre beijos, abraços, euforia, Duda e
os filhos ficaram para jantar.
— Enquanto a vovó pede as pizzas, hora de tomar banho, seus
porquinhos – ordenou Maria Eduarda. – João, já para o banho e sem
retrucar. – E vocês duas porquinhas, vamos tomar banho.
Heloísa mantinha um quarto na casa para os netos, já que era muito
comum eles vez ou outra passarem o dia ou até mesmo fim de semana
com ela. Então era possível encontrar roupas e objetos pessoais dos
pequenos ali.
— Malu não é a Peppa – voltou a contestar a pequena.
— Malu é a Peppa, sim – implicou. – Uma porquinha muito fedida.
A menina já fazia cara de choro, quando Luiza a pegou no colo e a
rodopiou no ar. O gesto espontâneo lhe deu uma sensação de déjà vu.
Ao colocá-la no chão, Vitória lhe olhava com expectativa. A loira
sorriu, embora com um pouco mais de dificuldade, ela fez o mesmo,
arrancando gritinhos da filha.
— Elas podem tomar banho no meu quarto, me deixa te ajudar –
pediu a loira.
As meninas pularam cada uma em uma mãe como umas
verdadeiras macaquinhas. As risadas delas era uma doçura. O banho foi
a maior algazarra. Luiza se deliciava com aquele momento tão singelo,
mas, para si, tão cheio de algo.
— Meu Deus! Essa guria não para! – disparou Luiza, terminando
de vestir a filha mais nova. – A Vic é um docinho, mas acaba se
corrompendo pela Malu.
Duda achava a maior graça cada gesto surpreso da loira, ela
percebeu que essa Luiza não tinha muito contato com crianças.
— Prontinho – disse a morena, liberando a Vic que correu no
encalço da irmã. – Para que academia quando se tem três filhos
jorrando energia?! – disparou.
— Deve ser bem puxado para você, não é? – perguntou.
Duda deu um suspiro. Sim, era bastante puxado para ela ser mãe
solo, mas ela se esforçava.
— Vale a pena, era o que sempre sonhei…
Maria Eduarda parecia ainda mais linda aos olhos da loirinha. Seus
cabelos estavam num coque todo desajeitado no alto da cabeça e seu
rosto estava suado devido à guerra do banho das duas sapequinhas.
Duda tinha a pele cor de oliva e traços delicados. Luiza acompanhava
quase que hipnotizada a movimentação daqueles lábios carnudos. A
morena sentiu-se observada. Seu coração acelerou ao ver que as orbes
negra fixaram em sua boca. Uma onda de nervosismo tomou conta da
morena, que acabou falando a primeira coisa que veio a sua mente.
— Você está me olhando com seu olhar de tarada, Isa – revela e ri,
nervosa.
Aquele adjetivo parecia familiar e fez a loira rir sem mostrar os
dentes. Sem querer pensar muito, fez o que lhe deu muita, muita, mais
muita vontade. Luiza findou a distância a ponto de seus narizes roçarem
um no outro e a respiração se misturar. Seus nervos estavam como fios
elétricos, e um poço de ansiedade se formou em seu estômago. Sem
pedir permissão, Luiza a beijou. Movida por sua curiosidade
desenfreada em provar daqueles lábios, a loira conduziu um beijo
lânguido, arrancando suspiros da morena, que correspondeu com
entusiasmo. Contudo, ao se afastarem em busca de ar, a morena
retrucou.
— Assim não gosto – reclamou com a voz entrecortada. – Você
nunca aprende, Luiza. Eu gosto assim…
Luiza não teve tempo para pensar, seus lábios foram tomados pela
moça do cabelo sem onda. Duda a puxou para si, segurando uma mão
em cada lado da bochecha. Ao contrário do beijo anterior, esse era
ditado pela morena, que inclinou a cabeça levemente para o lado para
se encaixar melhor. Seus lábios se moveram devagar. Primeiro
querendo sentir a textura daqueles outros que por anos lhe
proporcionaram os mais deliciosos prazeres. Sugou o inferior, subiu
para o superior, voltou para o inferior, onde alternava entre sugadas e
leves mordidas. Luiza choramingou quando seu corpo começou a sentir
uma vibração diferente, diante daquela singela provocação.
Instintivamente a puxou para perto de si. Duda sorriu em seus lábios,
sorriu com seu coração, sorriu com o seu mais puro sentimento. Então,
proporcionou o que a loira tanto queria, invadiu sua boca com sua
língua, buscou a língua da outra, provando-a como sempre fizera no
passado, sem fobia. Duda a beijava com a alma, isso fica muito claro no
seu ritmo, na sua condução. Algo voltou a explodir no peito da loira.
Não! Não era o beijo caloroso e intenso que costumava trocar com
Raissa, era diferente, tinha um sabor embriagante que fazia seu corpo
vibrar, seu estômago congelar, seu baixo ventre aquecer, sua intimidade
escorrer. Duda acelerou a intensidade à medida que os apertões da outra
ficavam mais brutos. Faltava-lhes ar, mas era difícil descolar, e, quando
aconteceu, demorou tão poucos segundos para as bocas se unirem de
novo que elas nem chegavam a abrir os olhos. Luiza queria continuar
beijando-a, não, na verdade, ela queria continuar sendo beijada, porque
o beijo daquela garota era sem igual. Duda percebeu seu desejo ao
sentir a outra pacientemente esperá-la, e a morena não tardou, a beijou
novamente, na mesma proporção e com o mesmo sentimento. Mas o
famoso ditado de “o que é bom dura pouco” se fez presente, pois o
barato foi cortado quando duas crianças a puxaram, cada uma para um
lado.
— Beijo na boca, eca! – gritou Vitória, fazendo careta, sendo
repetida pela irmã.
As mães, apesar do calor, da emoção e da surpresa de terem sido
interrompidas abruptamente pelas filhas, olharam uma para a outra e
gargalharam. A gargalhada teve o efeito do bocejo, contagia todos que
estiverem presentes. A pequena Malu e a pequena Vitória não
entenderam nada, mas gargalharam juntas. Luiza e Duda trocaram um
olhar travesso uma para a outra e, num gesto espontâneo, cada uma
pegou uma das meninas e deu um ataque de cócegas. As duas gritavam
de tanto rir, depois as mães trocaram de filhas e houve mais uma leva
de cócegas.
— Mamãe, para – imploravam as pequenas.
As duas mais velhas finalmente deram uma trégua, e, ao se
afastarem, as pequenas trataram logo de fugir, para não sofrer novos
ataques.
— Acho que me apaixonei pelas minhas filhas à primeira vista –
disse Luiza, tentando se recompor e cheia de sinceridade.
— Acho que houve muita recíproca hoje – afirmou Duda.
Duda voltou a prender seus cabelos num coque apertado no alto da
cabeça. Luiza acompanhou o gesto, o filho colocou a cabeça para
dentro do quarto para avisar que as pizzas já tinham chegado e que a
avó estava chamando-as, mas, antes de sair, Luiza disparou:
— Janta comigo no sábado? – O convite veio assim, de supetão.
Duda sentiu o coração chegar na boca, seus olhos se arregalaram.
Estava mesmo sendo convidada para jantar? Porque a morena pareceu
duvidar. Luiza a puxou pela cintura e buscou aqueles olhos castanhos
tão bonitos.
— Há algumas semanas perdi minha namorada e, ainda por cima,
descobri que fui viúva sem saber – disse, sorrindo. – Minha vida tinha
tudo para estar triste e solitária, contudo, ouvi de um alguém que:
quando Deus nos tira algo, ele nos dá outro em troca. Engraçado,
porque certa manhã esbarrei com uma linda morena no hospital onde
faço tratamento. Ela me convidou para um almoço que se estendeu para
um café, tive uma tarde deliciosa. Desde então, ela tem ocupado
bastante meus pensamentos. Estou com muita vontade de conhecê-la
melhor, você acha que tenho alguma chance? Ela é uma médica muito
ocupada, ainda faz trabalho voluntário, tem três filhos e quatro
cachorros. Ela parece ser incrível – disse, sincera.
Duda sentiu suas bochechas corarem, mas foi inevitável não abrir
um sorriso luminoso.
— Ela parece um bom partido, hein! – brincou a médica.
Luiza deu um beijo suave em seus lábios e repetiu o convite.
— Janta comigo, Du?
— Janto, mas sábado está muito longe, pode ser amanhã?
A pergunta arrancou uma gargalhada da loira.
— Amanhã, será ótimo. Te pego às 20h, pode ser? – perguntou
Maria Eduarda.
— Pode, sim.
Com os corações sob um ritmo diferente, Duda e Luiza retornaram
à sala, onde encontraram os filhos e Heloísa.

◆◆◆
CAPÍTULO 50
Ristorante Italiano Família Lins

— Você não está me ajudando – reclamou Luiza. A loira estava


agitada, seu jantar teve que ser remarcado duas vezes, devido a alguns
imprevistos profissionais da médica. Mas finalmente iria acontecer
naquela sexta-feira.
Raissa estava jogada em sua cama, deitada por cima de diversos
vestidos. Era divertido ver a amiga tão agitada assim. Luiza tinha
contado sobre toda a aproximação com a Maria Eduarda, inclusive
sobre os beijos trocados e a emoção sentida. Raissa, por sua vez, a
enchia de incentivo, era notório que Luiza estava se apaixonando pela
ex-esposa, o que enchia o coração da advogada de felicidade, pois só
confirmava que havia feito o certo.
— O que você tem? – perguntou a loira, observando a morena
deitada olhando para o teto.
— Não precisamos de drama, não é? – perguntou, elevando o corpo
e encarando a loira. Raissa tinha algo para contar.
Luiza estreitou os olhos. Ela sentia que algo também estava
acontecendo com sua amiga, porém estava esperando a morena tomar
iniciativa.
— Não. Não precisamos de drama – confirmou a loira.
— Quero conversar com você, mas não hoje, deixa eu alinhar as
coisas primeiro. Tornar palpável.
— Alguém? – perguntou, curiosa.
A morena sorriu sem mostrar os dentes. Luiza não precisou de
resposta. Foi interessante o que sentiu, pois a loira sentiu animação pela
Raissa. A advogada foi sua bússola apontando a direção de casa, e a
gaúcha ficaria muito feliz se tivesse sido em contrapartida seu mapa.
Delimitando o espaço entre ela e um outro alguém.
— Dora tem razão. Uma vez na lagoa, cada mulher interessante se
torna uma sapa em potencial – disse com humor. Luiza deu uma risada,
lembrou-se de Dora, a loira sentia muita saudade dos seus amigos
natalenses, mas, apesar da distância física, ela mantinha contato
constante com todos. Afinal, eles foram as primeiras pessoas que a
ajudaram a escrever as primeiras linhas da sua nova história. – Esse
vestido ficou ótimo. – Voltou ao dilema da loira, a morena conversaria
com ela, mas no momento oportuno, agora o foco era a afobação de
Luiza para o esperando jantar com a neurologista.
— Você acha mesmo? – perguntou, animada, também tinha gostado
dele. Luiza trajava um modelo Boho sem manga, na cor azul-marinho
com delicadas estampas de borboleta, em detalhe gola sweetheart que
delineava seu colo, zíper em abertura lateral e bainha com fenda na
coxa. Era simples, elegante e casual.
— Sim, ele te deixa toda menininha – zombou a morena.
— Não quero parecer menina, Ray – contestou, abrindo um sorriso
sem vergonha.
— Sei... Quer ser a loira fatal – provocou. – Você está linda, Rê.
Luiza, insegura, deu várias voltinhas diante do espelho. Tinha
adorado o vestido, mas, por algum motivo interno, ela tinha
necessidade de estar perfeita para aquela noite.
— Sabe para onde ela vai te levar? – perguntou Raissa.
— Não. Me sinto uma idiota por estar tão nervosa, é apenas um
jantar – retrucou, sentando-se ao lado da amiga.
— Não é apenas um jantar – replicou Raissa, carinhosa. – Você vai
a um encontro com uma mulher linda, que está se infiltrando aqui. –
Apontou para o peito da mulher. – Nada de drama e curta o momento.
— Não parece tudo muito rápido demais?
— Ei, desencana com essa coisa de tempo. Viva o que sente
vontade de viver, sem medo e sem reservas, Isa.
— Obrigada – agradeceu com sinceridade.

Enquanto isso, não muito longe dali.


Maria Eduarda sentia-se ansiosa, afinal aquele era o seu primeiro
encontro com a Luiza. A verdade era que Duda mais uma vez foi
surpreendida com as pequenas lacunas existentes na sua história de
amor com a loira. Elas nunca tiveram um encontro, e perceber aquilo
lhe doeu. Uma dor fina, daquela causada pela culpa. Culpa por ter
deixado que seu romance fosse atropelado pelas ações e reações
cotidianas. Não que elas não tivessem tido momentos bons, a questão
não era essa, Luiza e Maria Eduarda foram felizes, muito felizes juntas,
elas só deixaram de se deleitar com as pequenas fagulhas de alegria que
constroem uma verdadeira relação de amor.
— A senhora está muito bonita, mamãe – disse João, sentado na
cama.
— Você acha, gatão? – perguntou, insegura.
— Mãe Isa vai se derreter toda – disse o garoto.
Duda olhou para o filho e abriu um sorrisão, sua torcida era de
encher seu coração de alegria. A morena teve muitos imprevistos
naquela semana, o que fez o jantar que era para ter acontecido quatro
dias atrás fosse remarcado. Assim, a morena pôde pensar num lugar
especial para levar a loira. Luiza não sabia, mas aquele seria o
verdadeiro primeiro encontro delas. Desta forma, a médica queria
impressionar, contudo Maria Eduarda teve a sensibilidade de não apelar
para o tradicional, sua nova história precisava de algo singular, por isso
ela faria o possível para que aquele encontro fosse o primeiro registro
feliz delas, como casal.
A morena encheu seus pulmões de ar e seus olhos perscrutaram
cada detalhe do seu look. Após aprovado, virou-se para o filho.
— Se der certo, nas férias vamos para Noronha e te deixo fazer o
tal mergulho de batismo. – João deu muitos pulos de alegria, o pequeno
era louco para fazer mergulho, não qualquer mergulho, ele queria
mergulhar igual ao que viu no documentário sobre os animais marinhos
no arquipélago de Fernando de Noronha. – Porém – disse a morena,
abrindo um sorriso cínico –, vai precisar convencer a sua outra mãe. –
Sorriu, debochada, e deu uma piscadinha para o garoto. – Sabe como é,
né?! Duas mães, tem que haver dois SIM.
João bufou no mesmo instante, foram três anos de afastamento,
mas ele lembrava bem que Luiza costumava ser mais rígida que a
morena. Convencê-la era sempre mais difícil. Se valendo disso, Duda
acabou oferecendo aquele agrado para o filho, em troca da sua ajuda
para que aquela noite fosse perfeita. Aquele jantar teria um preço muito
alto, mas o que confortava Duda era que sabia que Luiza nunca iria
deixar o pequeno príncipe do casal nadar num mar com tubarões. Maria
Eduarda não seria a mãe que iria pronunciar o NÃO. A morena riu do
próprio pensamento travesso, despediu-se dos filhos, passou as últimas
orientações aos empregados e saiu de casa, o relógio marcava 15
minutos para às 20h.
Luiza foi avisada que a morena já havia chegado, despediu-se da
mãe e de Raissa e desceu. Era muito engraçado, pois suas pernas
tinham pouca força, seu estômago foi povoado por estranhos seres
voantes e seu coração aprendeu rápido as batidas dos tambores de
maracatu. Era uma combinação que ela, desde que abrira os olhos, não
havia experimentado, ao menos não nessa intensidade. Quando o
elevador abriu no térreo, seus olhos varreram toda a recepção do prédio,
mas não havia ninguém. Segurando a sua bolsa com força, caminhou
para fora e lá estava ela, próxima à porta do carona. Luiza parou por
alguns instantes, seus olhos voltaram a varrer, só que dessa vez, um
certo alguém. Duda estava linda em um conjunto de jaqueta e saia
xadrez de tweed, em coloração branco com preto. A saia chegava à
metade de suas coxas, aliás, Duda tinha umas pernas lindas, torneadas,
e suas panturrilhas eram povoadas por inúmeras borboletas. Sob os pés,
havia uma sandália preta meia pata de salto fino. Sob a jaqueta, ela
estava apenas com um cropped liso em coloração preto, que deixava
quase um palmo do seu belíssimo abdômen cor de oliva à mostra. Já
seus cabelos estavam soltos, assim como Luiza lembrava. A loira tinha
uma verdadeira fixação pelos cabelos sem onda da moça à sua frente.
No rosto, uma maquiagem mais escurecida, cuja intenção era realçar a
beleza dos seus olhos. Por fim, os lábios pintados de vermelho.
A loira suspirou, daqueles suspiros bem altos, tão altos que Duda
ao ouvi-lo deu uma risadinha. A morena também olhou para loira de
cima a baixo. Luiza estava linda. As duas se cumprimentaram de um
jeito tímido.
— É nossa primeira vez – disse Duda sem rodeio. Luiza franziu o
cenho. – É muito engraçado, Luiza, vivemos muitas coisas juntas, mas
não vivemos nada parecido com o que estamos vivendo agora. E apesar
de termos sido casadas e construído uma família, nunca tivemos um
encontro. NUNQUINHA – afirmou nitidamente nervosa.
Luiza fitou os olhos castanhos com muita surpresa. Sem saber o
que dizer, apenas sorriu, enquanto seu coração deu saltinhos de alegria
com aquela novidade.
— Vamos – chamou a morena, abrindo a porta do carro.
— Você é uma caixinha de surpresa, Maria Eduarda. Não lembro
da nossa outra versão, nem faço questão de lembrar, porque cada
momento que passo com você, sinto que essa versão é muito melhor.
— Quintuplão de vezes melhor – concordou a morena com
sinceridade. – Nem sei se essa palavra existe, mas nossa nova versão é
melhor.
Duda fechou a porta e contornou o veículo para assumir o volante.
Ao entrar, colocou o cinto e em seguida virou-se para sua enamorada.
— Você se parece com minha falecida esposa, não só fisicamente,
como também a personalidade, pensei em usar essa coincidência a meu
favor – disse, travessa, arrancando um sorriso da interlocutora. – Mas
seria muito feio da minha parte, afinal, quero descobrir muitas
primeiras vezes com você. Então toda noite foi pensado para VOCÊ.
Luiza sentiu-se emocionada, ela entendeu perfeitamente o que a
morena quis dizer e, achando ainda pouco o que já sentia, a loira
transbordou um pouco mais daquele sentimento que ainda não era
capaz de nomear. Duda endireitou-se no banco e ligou o veículo. Luiza,
apesar da curiosidade de saber o que lhe aguardava, não fizera
perguntas. Para sua surpresa, a Duda estava pegando um caminho
familiar, o carro contornou a praça de casa forte e pegou a Avenida 17
de Agosto. Ela dirigiu em linha reta até o limite do Poço da Panela, em
seguida pegou a direita e depois a esquerda. Entraram no condomínio
onde a médica residia. Maria Eduarda lhe olhava de soslaio e sorria o
tempo todo. A morena entrou em sua garagem e estacionou.
— Então, espero que goste de comida italiana, o Ristorante
Italiano Família Lins oferece uma das melhores massas italiana da
cidade – disse Duda segurando para não dar uma gargalhada. – Espera
– pediu. A morena apressou-se para sair e abrir a porta para a outra
descer.
Luiza achou graça da gentileza. De braços dados com a anfitriã, a
loira foi conduzida para o interior do suposto restaurante. Passaram
pelo vestíbulo, sala de estar, até então, Luiza não vira nada de diferente
da vez que esteve ali. A morena conduziu até a sacada que dava para o
jardim, lá uma bonita mesa estava posta. Num gesto galante, a médica
puxou a cadeira para a outra sentar e depois se acomodou. Luiza não
sabia o que falar, foi acometida por um bolo na garganta. Seus olhos
pousaram naquela bonita mesa, enquanto discretamente a morena
pegou seu telefone e manuseou rapidamente, em seguida depositou o
aparelho sobre a mesa e tentou engatar uma conversa.
— Então, como ficou a questão do seu trabalho no centro? O
pessoal ficou muito animado. Mariane estava explicando o benefício
que as aulas de música podem trazer a nossos pingos de cores – falava
Maria Eduarda, animada, mas antes que a loira pudesse responder, o
casal foi surpreendido pelo maitrê da noite.
— Boa noite, senhoritas! Sejam bem-vindas ao Ristorante Italiano
Família Lins – cumprimentou o pequeno rapaz.
Os olhos escuros se arregalaram surpresos ao visualizar um
pequeno rapazinho de smoking, com direito a gravata borboleta,
cabelos no gel penteados para o lado, sapatos lustrosos e carranca séria.
Ele trazia consigo o cardápio.
— Boa noite! – cumprimentou Duda, toda derretida com a imagem
do filho.
Luiza simplesmente não conseguiu pronunciar uma única palavra.
João, por sua vez, manteve a seriedade do que lhe foi proposto no papel
de garçom daquela noite. Educadamente, entregou a cada uma o
suposto cardápio e saiu em seguida, dando privacidade para o casal.
Luiza, em gesto ainda automático, desceu a vista para o papel, e seu
coração se derreteu por completo. Seus olhos marejaram no mesmo
instante. No topo do papel cartolina em letras de forma, escrita em
caneta preta, constava o nome daquele inusitado restaurante. Um pouco
abaixo, havia um emaranhado de figuras e cores, as figuras eram tão
desajeitadas que a loira teve certeza de que eram artes de suas filhas.
Havia uma tentativa de um prato de massa, a julgar pelas lombrigas
grossas enroladas com direito a olhinhos e cílios. Um traçado horizontal
levava o desenho até a outra extremidade do papel, onde estava escrito
numa letra mais bonitinha e legível “Spaghetti ao molho da casa”.
Abaixo havia outros desenhos sobre um suposto prato, porém a loira
não soube identificar, mas novamente o traçado a levou ao nome
“Bruschetta”. E as coisas só melhoraram, mais abaixo eram:
BEBIDAS: inúmeros desenhos de copos coloridos, com traçados que
levavam ao desenho da fruta correspondente, ao invés do nome.
— Du... – tentou falar a loira, mas a morena não deixou, fez sinal
para o maitrê que apareceu de imediato.
— Pois não, senhoritas, o que vão querer beber? – perguntou João.
O peito da Maria Eduarda se enchia de orgulho, ela e os filhos
tinham passado a semana treinando aquela noite. Por mais que quisesse
ter um encontro romântico com a loira, seu coração insistia em fazer no
coletivo. Ao ver aqueles olhos escuros molhados, teve a certeza de que
fizera um golaço.
— O que sugere, maitrê? – devolveu a loira, finalmente saindo do
estupor de suas emoções e entrando no clima do jantar.
Duda deu um sorrisinho moleca e uma piscadinha para o filho, que
sorriu animado.
— Sugiro um verdadeiro suco natural da uva – disse o pequeno
maitrê. – E para a entrada... – Fez uma pausa. O pequeno esqueceu o
nome no prato, seus olhos azuis ficaram alarmados. Maria Eduarda
pareceu entender o apagão que surgiu no filho e soprou algo em seu
ouvido. Luiza segurou o riso. O menino voltou a sua postura inabalável
de garçom chique e falou: — Para a entrada, sugiro uma Bruschetta. É
um antepasto italiano, feito à base de pão, que é tostado em grelha com
azeite e depois esfregado com alho.
Duda virou-se para sua acompanhante e perguntou:
— O que acha, Srta. Lafaiete?
— Parece muito bom – respondeu com simpatia, travando uma
batalha interna contra o riso e a vontade de puxar o garoto e enchê-lo de
beijos, de tão fofo que estava. Essa vontade era de ambas.
O menino assentiu e de forma silenciosa afastou-se da mesa.
— Lindão esse maitrê, né?! – brincou Maria Eduarda.
— Você existe mesmo? – perguntou a loira, buscando a mão da
outra sobre a mesa. Duda lhe sorriu tímida, sentia-se feliz, porque a
loira estava gostando do momento, já que queria muito que aquela noite
fosse especial em todas as nuances.
— Existo, sim. – Duda puxou sua cadeira para mais perto da loira e
levou sua mão aos seus lábios, dando um beijo terno na mão da gaúcha.
O garoto voltou com duas caixinhas de suco de morango, com a
imagem dos Minions gravadas na embalagem, sobre uma bandeja de
prata. O rosto do menino estava vermelho, num sinal evidente de
aborrecimento. Ele se aproximou da morena e sussurrou algo em seu
ouvido, mas não baixo o suficiente para que a outra acompanhante não
ouvisse.
— Me desculpa, mãe, a garrafa estava em cima da ilha para ficar na
temperatura adequada, mas aí, a pestinha da Malu subiu e tomou tudo.
Ela adora suco de uva, a senhora sabe. Não deixou nenhuma gotinha e
ainda reclamou dizendo, eca, tá azedo. Vic nem brigou com ela –
explicava com a voz raivosa e triste ao mesmo tempo.
Duda mordeu o lábio inferior para evitar que o riso escapulisse. Ela
conhecia o quanto o filho era metódico e extremamente cuidadoso com
o que se propunha a fazer, nisso ele era muito parecido com a mãe
Luiza. A loira virou o rosto para evitar o riso também. Duda sussurrou
algo novamente no ouvido do menino, encorajando-o a manter a
postura e lidar com aquele imprevisto. Ela ainda afirmou que tudo
estava sendo perfeito e que isso não iria estragar a noite.
— Tenho certeza que eu e a Luiza vamos apreciar este delicioso
suco de morango – falou, tentando manter a seriedade.
O menino respirou aliviado e serviu as mulheres.
— Vou buscar os canudinhos, a Vic tem a mania de arrancar para
fazer microfones para as bonecas dela.
O menino saiu correndo, permitindo que finalmente as mulheres
explodissem numa gargalhada.
— Como pode ver, Luiza, até nos restaurantes mais gabaritados,
imprevistos acontecem – disparou Maria Eduarda.
As duas cessaram o riso assim que o menino voltou para trazer os
canudinhos, como também a entrada. Animado, ele colocou os
canudinhos em cada lado do suco e uma bandeja ao centro da mesa. As
duas mulheres fitaram aquilo que deveria ser uma deliciosa bruschetta.
Duda engoliu o riso novamente, pois já poderia adivinhar o que tinha
acontecido. Com a voz suave e um sorriso singelo, perguntou:
— Isso não era pra ser uma bruschetta?
As supostas clientes estavam diante de diversos pedaços de
torradas com uma camada generosa de ketchup e com pedaços de
salsichas em cima.
— Mãe! – reclamou o garoto.
— Já sei, problemas na cozinha – disse, solidária. – Foi a Chef ou a
Sous-chef? – perguntou Maria Eduarda, querendo parecer displicente.
— Vitória tem um buraco negro no estômago, a senhora sabe que a
chefe não pode ver comida dando sopa – retrucou o menino,
emburrado.
— Entendi, mas essa bruschetta parece bastante interessante –
interpelou a loira, finalmente conseguindo parar de rir. A mulher daria
de tudo para ver os integrantes daquele desastrado restaurante em ação
na cozinha. – Tenho certeza que deve estar uma delícia.
O rosto do menino se iluminou, afinal, foi ele quem teve que
arrumar os desastres que suas irmãs estavam causando.
— Inclusive, após o jantar gostaria de conhecer e agradecer as
chefs da noite – gracejou Luiza, enchendo a bolha de alegria do filho.
Ele ainda no personagem assentiu e saiu. – Guria, você quer mesmo
fazer eu me apaixonar, não é?
— Pensei que já tinha feito com meu sorriso, não? – brincou.
As duas tiveram alguns minutos de uma gostosa contemplação, não
trocaram palavras, apenas se olhavam e sorriam. Então, mais uma vez
as duas foram interrompidas, agora era com gritos vindo de dentro da
casa, as duas não entendiam bem, só ouviam a voz do menino brigando
por causa de algo, e duas vozinhas rebatendo à altura.
— Acho que ocorreu um novo problema na cozinha – disse a
morena, levantando-se antes que os filhos derrubassem a casa. – Me dá
licença, volto rapidinho.
Os empregados haviam sido dispensados naquela noite, depois de
tudo pronto, pois Duda só queria a presença dos filhos naquela casa. A
morena pediu licença e caminhou para a cozinha, Luiza não perderia a
oportunidade de ver o que suas filhas aprontaram. Quando chegaram ao
cômodo, depararam-se com João gritando com as irmãs.
— Vocês estragaram tudo, tudo – berrava o garoto, furioso e com
os olhos rasos d’água.
As meninas, assim que avistaram a mãe Maria Eduarda, correram
tentando se defender.
Luiza, alheia à confusão que se formou pelos irmãos, só conseguia
avistar as duas figurinhas infantis completamente trajadas em um dólmã
branco com rosa, com direito a nome gravado no tecido e a figura de
uma linda bonequinha e toque blanche sobre as cabeças.
— Veja, mamãe, o que elas fizeram. – João continuava a gritar,
enquanto Maria Eduarda tentava acalmá-lo.
Luiza olhou para a bancada onde estava todo o jantar encomendado
no restaurante da mãe da médica. Ainda havia uma sinalização da
ordem que eram para serem servidos os pratos, conforme a médica
tinha combinado com os filhos. Contudo, a noite já começou
desmantelada, com a garrafa de suco de uva vazia e copos abandonados
pela metade. Saco de torrada aberta, junto com a salsicha e o ketchup
adornavam também o ambiente, mas a estrela do jantar, ou, ao menos o
que era para ser, o espaguete estava espalhado por tudo que era lugar.
Uma verdadeira lambança. Não foi difícil saber, a julgar pelos dólmãs e
as bocas estarem todas sujas com o molho de tomate que a Chef e a
Sous-chef resolveram verificar a qualidade da comida antes de serem
servidas para as ilustres clientes.
A cena era digna de um filme de comédia. As duas pequenas
miniaturas das mulheres estavam paradas lado a lado, com suas
carinhas desconfiadas e olhos travessos. Duda tinha se agachado diante
das meninas e lhes deu uma bronca, o que foi difícil, pois as meninas
contra-argumentavam o tempo todo.
Luiza olhou para aquelas quatro figuras e teve a certeza de que não
existe outro lugar no mundo que queria estar senão ali, exatamente no
meio daquela confusão. Aquela observação durou poucos segundos,
mas dentro da loira foi em velocidade mínima.
— Mamãe Isa – gritaram as meninas, correndo para a loira e
pulando em cima dela.
Luiza repetiu a forma que Duda recebia as garotas, agachou e abriu
os braços para recebê-las. Beijos eram distribuídos por tudo que era
lugar. A gaúcha estava extremamente emocionada. Sem se importar se
era pouco ou muito tempo, levantou-se e sem titubear e deixou que
aquilo que não sabia nomear escapasse da sua boca.
— Foi a melhor noite da minha vida – disse, puxando João para
perto e finalmente abraçando-o e cobrindo-o de beijos. As meninas
enciumadas a atacaram também. – Eu adoro vocês de paixão. EU
ADORO VOCÊS DE PAIXÃO – falou com toda a sinceridade que
sentia.
Duda deixou que as lágrimas chegassem aos seus olhos, Luiza
falou com seus negros mergulhados em seus castanhos, a morena teve
certeza de que estava incluída naquele “vocês”.
— Diante do imprevisto ocorrido na cozinha desse gabaritado
restaurante, acho que vamos ter que improvisar – disse Maria Eduarda,
explodindo de alegria. – Hambúrguer ou pizza?
Em uníssono veio o PIZZA. Animado, João pegou o celular da mãe
para fazer os pedidos. Luiza e Duda limparam as meninas, depois todos
se acomodaram na sala de tevê, os pedidos não demoraram a chegar. E
lá estavam os cinco, se empanturrando de pizza com refrigerante, vendo
o filme Liga dos Superpets.
— Quero ficar – disse Luiza sem rodeios.
Duda congelou o pedaço de pizza que estava indo em direção a sua
boca, pareceu não acreditar no que ouviu. Devolveu o pedaço à caixa e
virou o rosto para encarar a loira. Luiza, ainda mantendo a certeza que
carregava naquela noite, repetiu pausadamente.
— Quero ficar. Não importa se esse é nosso primeiro encontro e se
ainda estamos nos conhecendo. Eu não quero voltar para casa da minha
mãe, quero ficar aqui, quero viver com eles e quero conhecer você.
Usando as suas mesmas palavras: quero descobrir muitas primeiras
vezes com você, Maria Eduarda. – Aquele pedido tinha um delicioso
tom de exigência.
— É possível amar no primeiro encontro? – perguntou a morena.
Luiza levou sua mão até a nuca e embrenhou seus dedos nos
cabelos escuros.
— Vamos descobrir juntas – respondeu, levando seus lábios aos da
outra. Duda sorriu e a beijou, a beijou justamente do jeito que fazia sua
loira se desmanchar.
— Eca!!! – disparou uma pequena do cabelo sem onda.
— Eca!!! – se espelhou a pimentinha dos cabelos amarelos.
— Mães, por favor, não se beijem aqui. Não quero ver isso. – Foi a
vez do pequeno rapaz se manifestar.
As mães se afastaram e gargalharam. Em seguida foram atacadas
por três criaturinhas apaixonantes.
◆◆◆
CAPÍTULO 51
Uma nova primeira vez

O jantar realmente foi inesquecível. Após horas desfrutando


daquele momento em família, as mulheres finalmente puderam ter um
momento sozinhas.
— Capotaram – anunciou Duda, ao retornar para a sala de tevê. –
Me espera aqui que vou buscar algo pra gente – pediu.
Duda correu até a cozinha, pegou duas taças no armário e, em
seguida, abriu a sua antes não utilizada adega. A morena não conhecia
nada sobre vinhos, então acabou aceitando todas as sugestões do
vendedor, que aproveitou sua leiguice para empurrar os vinhos mais
caros da loja. Dentre os seis títulos que compunham sua pequena adega,
a morena pegou um Château Pape Clément Pessac, abriu a garrafa e,
em seguida, voltou para a sala.
Luiza a recebeu com um sorriso meigo. A morena acomodou as
duas taças na pequena mesa ao lado do braço do sofá e as preencheu
com o líquido carmesim.
— Não tenho o menor paladar para vinhos, mas espero ter dado
sorte na escolha – disse Maria Eduarda, oferecendo uma taça à loira.
— Bem, vamos descobrir se também tenho – respondeu a outra,
aceitando a bebida.
Luiza acompanhou toda a movimentação da morena, pois Duda
parecia mais nervosa do que tentava ocultar, tanto que acabou se
acomodando longe demais para o gosto da sua acompanhante. A loira,
por sua vez, escorregou para mais próximo, invadindo o espaço pessoal
da médica. O silêncio se instalou entre as duas, mas não era um silêncio
desagradável. Luiza levou a taça aos lábios sorvendo o líquido num
pequeno gole. Foi um gesto simples, porém repleto de uma
sensualidade genuína. A loira notou os olhos castanhos fitando a sua
pessoa.
— Não vai provar? – perguntou suavemente, sorrindo, sem mostrar
os dentes.
Duda piscou de um jeito engraçado e levou sua vista à bebida que
segurava. O olhar da mulher à sua frente era intenso demais, o que a
deixou tímida.
— Minhas memórias gustativas afirmam que esse é um ótimo
vinho – disse a loira, voltando a sorrir.
Duda se animou. Mais um ponto positivo para aquela noite. A
morena abriu um largo sorriso e deu um gole generoso na bebida,
porém se arrependeu no mesmo instante que o líquido se espalhou por
sua boca. A careta fez a loira explodir numa gargalhada. Duda franziu o
nariz e colocou a língua para fora num gesto espontâneo de desgosto.
— Definitivamente, prefiro cerveja ou destilado – falou,
devolvendo a taça à mesa. – Não gosto de vinho – decretou. – Não
importa o quanto digam que essa bebida é divina. – Ela se esticou,
pegou o copo abandonado, no qual havia um pouco de refrigerante
quente e sem gás, e tomou sem titubear, numa tentativa de camuflar o
gosto acentuado da bebida alcoólica.
Aquele foi um gesto tão genuíno que a loira não conseguia
controlar o riso. Duda literalmente era uma criatura fofa demais. Era
uma mistura de menina e mulher que de alguma forma atraía a loira de
um jeito cativante.
— Não tenho o paladar cheio de frescura como o seu – disparou a
morena, emburrada, cruzando os braços sobre os seios. – Dá para parar
de rir da minha cara? – exigiu.
Luiza devolveu sua taça à mesa e puxou delicadamente o queixo da
morena para que a fitasse. Duda percebeu o quanto seus rostos estavam
próximos.
— Guria, você é muito fofa, sabia? – disse, cessando o riso e a
puxando para si.
Maria Eduarda ainda tentou manter a cara emburrada, contudo a
morena sentiu suas falecidas borboletas ressuscitarem em seu
estômago. Com Luiza não foi diferente, pois ela começou a sentir um
pequeno nó se formar no estômago. Maria Eduarda levou sua destra até
a nuca da loira, fazendo um carinho suave, enquanto iniciava um beijo
de esquimó. Tudo começou com um selinho demorado, com as
respirações se misturando e os corações frevando. Luiza entreabriu os
lábios, no entanto, apesar da vontade de puxar a médica para um beijo
luxurioso, suas vontades mais ternas imploravam pelo beijo que parecia
que só aquela mulher sabia dar. Parecendo adivinhar sua vontade, Duda
começou sugando o lábio inferior, depois o superior vagarosamente.
Como sentia falta da maciez daqueles lábios. Luiza por sua vez gemeu
em sua boca e a entreabriu convidando-a a entrar. A língua de Duda a
invadiu explorando-a de todas as formas. Assim, o beijo ficava mais
exigente.
— Preciso te sentir, Du… – sussurrou a gaúcha, puxando-a cada
vez mais para perto.
Duda sorriu entre o beijo e afastou-se, em seguida livrou-se do
casaco que ainda trajava. A imagem fez Luiza engoli em seco, já que na
parte de cima, a morena só trajava um curto cropped, o que deixava a
pele oliva do seu abdômen exposta, mas ela não teve muito tempo para
apreciar a imagem, pois Duda subiu sua saia até a cintura e sentou-se
em seu colo, colocando uma perna de cada lado. O contato entre as
peles fizera ambas gemer. Luiza deslizou suas mãos pelas coxas
expostas, fazendo a morena estremecer.
— Senti tanto a sua falta, Isa – sussurrou Duda. – Não importa
quantas versões teremos, porque a minha sempre vai procurar a sua.
Você é o amor da minha vida.
Aqueles dizeres fizeram um pensamento se sobressair do fundo do
seu âmago. Luiza afastou-se um pouco e buscou as orbes castanha que
naquele momento estavam mais escuros do que o habitual.
— Du… Eu não quero mais prolongar um querer – falou, sem nem
mesmo sabendo o motivo pelo qual de repente passou a chamá-la por
aquele apelido, que em seu interior parecia tão íntimo. – Não quero
pensar a respeito… Só quero ficar.
— Então fica. – Duda levou seus lábios aos lábios da outra. –
Apenas fique comigo, conosco! Apenas fique, Luiza.
— Eu fico, Du… Eu fico. Eu quero ser sua, de novo…
Duda sorriu, e daquele jeitinho envolvente e vagaroso, que faz o
calor chegar aos poucos, a cada mordida nos lábios, sugada na língua,
ela voltou a beijá-la. Ora beijo mais intenso, ora mais calmo. Apesar do
seu instinto sempre ser mais ativo, Luiza, naquele momento, sentiu a
gostosa necessidade de se entregar. A verdade era essa, a cada toque
que recebia, a cada mordida, a cada troca de olhares, a gaúcha tinha
uma única vontade, de se entregar e descobrir quais formas aquela
mulher poderia tocá-la.
— Eu quero ser sua – repetiu ao se afastar. Seus lábios estavam
inchando, sua respiração ofegante e seus olhos brilhavam de um jeito
muito peculiar.
Maria Eduarda reconheceu aquele brilho, sua Luiza estava ali, em
outra versão, mas estava ali, foi impossível para Maria Eduarda não
lembrar da confissão da advogada quando tivera “a conversa”. Luiza
nunca havia se entregado a Raissa, mas queria ser sua, como sempre foi
e, se dependesse da médica, sempre seria. A morena levantou-se,
ajeitou sua saia e estendeu a mão.
— Vem – chamou.
Duda a conduziu para o lugar que por muitos anos foi o ninho de
amor de ambas. Era um quarto espaçoso, porém de uma simplicidade
ímpar. A loira permanecia quieta e aguardando as ações da morena.
Duda sentia-se nervosa, ela não sabia como começar. Notando a timidez
da garota, a loira resolveu ajudar, aproximou-se e a tocou
delicadamente no rosto, fazendo um carinho terno.
— Não precisamos… – sussurrou.
Duda a puxou pela cintura e deu um sorriso safado. Ainda sorrindo,
levou seus lábios aos da outra.
— Sim, precisamos – falou entre lábios. – Estou em jejum há mais
de três anos, dona Luiza. Você foi a primeira e a única.
Luiza sorriu de volta, embora fisicamente fosse controverso, sentia-
se da mesma forma. Duda a empurrou até a cama e a fez sentar na
borda do colchão. Pegou seu telefone e emparelhou com o aparelho
acústico do quarto. A morena sabia exatamente como amaria aquela
mulher. A voz da cantora Vanessa da Mata tomou conta do ambiente. À
meia-luz, a médica se despiu diante dos olhos da garota que, pela
segunda vez numa mesma vida, roubou seu coração.
Uma onda familiar de emoções tomou conta de Luiza. Aquele
velho sentimento de déjà vu pairou sobre si. Porém, ela não sabia que,
ao contrário de outrora, não seria Luiza a proporcionar uma primeira
vez. Duda livrou-se de suas roupas, deixando sobre o corpo apenas as
peças íntimas, em seguida, fez Luiza se levantar e delicadamente tirou o
seu vestido. Luiza não se considerava tímida, ao menos não no que
tange sexo, contudo, por algum motivo, sentia-se naquele momento. Os
olhos castanhos percorreram cada centímetro do seu corpo, Luiza
estava ainda mais bela. De forma inconsciente, a morena suspirou
audivelmente e mordeu seu lábio inferior de um jeito que fez o corpo da
loira reagir. Duda aproximou-se devagar e a puxou pela cintura, unindo
seus corpos. As duas experimentaram aquela velha sensação de uma
corrente elétrica atravessando-as. Maria Eduarda fez uma linha
imaginária vertical da pelve subindo pelo centro das costas até a nuca
da gaúcha. O gesto fez a loira se arrepiar e instintivamente fecha os
olhos.
— Vamos fazer dessa a nossa nova primeira vez – declarou a
médica com a voz carregada de bons sentimentos.
Dito isso, Duda a puxou para um beijo e a conduziu para o centro
da cama. Sentir o encaixe dos corpos e o sexo roçar um na coxa da
outra fizeram ambas gemer simultaneamente. Luiza implorava por mais
contato, se esfregava na coxa da Duda e a puxava mais para si. Suas
unhas deixavam marcas verticais vermelhas e uniformes nas costas da
Maria Eduarda. Apesar do tsunami entre suas pernas, Duda permanecia
em toques delicados. Ela queria oferecer o que sua amada tanto queria,
entretanto não perderia a oportunidade de reproduzir uma cópia fiel da
primeira vez delas no passado, que foi perdido por travessura do
destino. Entre beijos, gemidos, apertos aqui e acolá e rastros de desejos
em sua coxa, finalmente chegou o momento que Duda esperava. Ela
afastou-se um pouco. O peito da loira subia e descia com brusquidão,
seu centro doía de vontades. Ela olhou para a morena um tanto confusa.
Como pode ser, gostar de alguém, e esse alguém não ser seu (…).
Duda cantou sob a voz da cantora. Sua voz estava trêmula e seus olhos
ganharam um brilho extra, eles estavam sob uma fina cortina de água.
Delicadamente, ela tateou o rosto da mulher à sua frente.
Luiza ficou paralisada, entorpecida. Uma rápida lembrança de tal
momento passou pela sua cabeça como um vento forte, mas, assim
como o vento, não ficou.
Fico desejando, nós, gastando o mar (…). Foi a vez de buscar seu
cheiro roçando o nariz na pele frágil do seu pescoço.
A cada estrofe, Duda realizava uma nova redescoberta. Maria
Eduarda desceu sua boca para o pescoço, beijando-o e mordiscando-o,
enquanto suas mãos massageavam os seios da loira que já estavam
intumescidos. Luiza arfava. Apesar do seu centro clamar por alívio
imediato, seu ser vibrava pela forma como estava sendo tocada. Duda
tomou seus seios, primeiro delicadamente contornando-os com a ponta
da língua, depois os tomou com mais vontade, causando gemidos nada
discretos.
— Du, me faz sua, me faz sua.
Duda elevou o corpo e buscou aqueles olhos negros que haviam a
apresentado ao amor. Sim, a faria sua. Ela voltou a beijá-la, sempre
daquele jeito calmo, onde as línguas dançavam uma valsa lenta. Às
vezes aumentava o ritmo só para dar aquela acelerada no tesão, em
seguida voltava a diminuir num castigo gostoso. Enquanto suas bocas
seguiam esses ritmos, seus dedos escorregaram pela fenda molhada,
fazendo sua parceira gemer e cravar suas unhas em suas costas. Maria
Eduarda começou a fazer movimentos circulares no ponto mais
sensível, depois descia até o caminho de sua perdição, ameaçava entrar,
mas só o contornava e intensificava aquela gostosa masturbação. Os
lábios desviaram daquela boca rosada para o maxilar em lambidas e
mordidas, eles foram escorregando pelo vale dos seios, umbigo e
ventre. Luiza fechou os olhos com força, e suas mãos agarraram os
lençóis. Ela gozaria antes mesmo do gran finale.
— Olha para sua abelhinha – pediu Duda, se referindo a um antigo
apelido dado pela loira nos momentos íntimos.
Os olhos escuros se abriram com dificuldade, Duda estava
posicionada entre suas pernas, ali, ela não parecia nada com uma
menina inocente. Um sorriso safado se formou em seu rosto, enquanto
deslizava dois dedos para dentro da loira, arrancando um gemido alto.
— Há tanto melzinho aqui, não dá pra desperdiçar, fui ensinada a
sugar até a última gota – provocou.
Luiza elevou o tronco, se apoiando nos antebraços e seu corpo foi à
loucura. Duda a tomou com a boca, sugando seu sexo com força, depois
iniciando sua exploração com a língua. Ela mantinha-se dentro da loira,
porém não se movia. Duda conhecia aquele corpo como ninguém, sabia
provocá-la, torturá-la, sabia como amá-la. Luiza desatou a gemer e falar
palavras sujas que ela nem imaginava que seria capaz. A língua da
médica brincava com seu ponto mais sensível, sempre que seu corpo
ameaçava explodir, a morena tardava o momento. Luiza rebolava ao
mesmo tempo que implorava para que a outra se movesse. Duda
afastou-se rapidamente, escalou seu corpo sem sair de dentro dela.
— Hoje, você vai ser MINHA, porque, Luiza, eu fui sua primeira e
serei a sua única – disse de um jeito possessivo, mas que fez a loira
vibrar de alegria e certeza.
Voltando a tomar seus lábios, Duda finalmente começou a se
mover, iniciando um vai vem forte ritmado. Devido ao esbanjamento de
lubrificação, aumentou a quantidade de dedos.
— Du… eu vou…
— Goza pra mim, minha gostosa! – sussurrou em seu ouvido.
E Luiza gozou gostosa e demoradamente nas mãos daquela mulher
que parecia conhecer tão bem o prazer do seu corpo. Maria Eduarda
esperou que seu corpo se acalmasse para só então sair de dentro dela.
Quando isso aconteceu, saboreou dedo a dedo o prazer da outra. O
gesto fez a loira gemer e a puxar para cima de si. Ela queria tomá-la
também, mas Luiza sentia seu corpo fraco, o orgasmo que sentira foi
arrebatador. O rosto de Duda reluzia em felicidade. Luiza era sua,
unicamente sua, pensava feliz.
— Não acha que tem peças demais sobre seu corpo? – questionou a
loira ainda ofegante, tentando tomar a liderança. Suas mãos foram
diretamente para o fecho do sutiã. Seus olhos cintilavam em luxúria ao
visualizar os mamilos cor de oliva. – Você é tão linda – sussurrou.
Luiza não teve a mesma paciência que a Duda, pois foi movida por
uma necessidade quase primitiva de possuir aquela garota que tão fácil
alcançou seu coração. Num gesto rápido, Luiza moveu-se para cima e
escorregou para o meio de suas pernas. A loira roçou o nariz no tecido
molhado da calcinha rendada. Duda estava extremamente excitada, não
se faria de difícil. Seus olhos se fecharam e abriu as pernas oferecendo
total acesso à sua intimidade. Luiza gastou alguns segundos em
contemplação, massageando o sexo da outra sobre o tecido. Duda
emitiu um gemido rouco e instintivamente suas mãos massageavam os
próprios seios. Sem mais delongas, a loira arrancou a calcinha e a
tomou com a boca com volúpia. O gosto de Duda se espalhava por sua
boca fazendo seu próprio centro voltar a pulsar descontroladamente. Os
gemidos ecoavam pelo quarto, devido a seu grau de excitação e ao jeito
gostoso que estava sendo chupada. Duda não ia conseguir durar muito
tempo. Suas mãos seguraram a cabeça da loira entre suas pernas, e ela
elevou mais o quadril para cima enquanto se desmanchava na boca da
loira. Após sugá-la até a última gota, Luiza escalou aquele corpo
distribuindo beijos pelo abdômen, seios, colo, até finalmente os negros
penetrarem nos castanhos apaixonados. Duda tinha a face vermelha e
respirava com dificuldade.
— Você é uma delícia – sussurrou. Luiza a puxou para um beijo e
sua mão escorregou para dentro da Duda.
A morena cravou os dentes no ombro da loira, fazia tanto tempo
que não era invadida. Apesar da lubrificação pós-gozo, Maria Eduarda
sentiu incômodo com a penetração. Percebendo sua tensão, Luiza se
moveu devagar até que ela se acostumasse em tê-la ali. Quando a
morena finalmente relaxou, o ato passou a ser prazeroso. Luiza entrava
e saía de dentro daquele sexo tão apertado. Os gemidos da Duda eram
seu guia, a loira se movia cada vez mais rápido buscando um ponto
específico, até que seus dedos se moveram mais para direita e a reação
do corpo de Duda foi deleite para loira, que aumentou a estocada. Duda
sentia seu corpo inteiro em erupção, ela movia o quadril contra os
dedos da outra enquanto seus seios eram tomados com força, era
estímulo demais para Maria Eduarda, que em dado momento sentiu sua
alma saindo do seu corpo, enquanto seu baixo ventre explodia num
prazer indescritível. Luiza viveu algo novo, quando Duda se derramou
sobre seus dedos, a loira tomou sua boca e gemeu enquanto seu próprio
líquido escorria em suas pernas. Ao perceber que Luiza estava gozando
também, Duda a invadiu com brusquidão a preenchendo por completo,
fazendo a loira morde com força seu lábio inferior e desabar sobre seu
corpo. Seus corpos demoraram alguns minutos para se acalmarem.
— Eu nunca senti nada parecido – confessou Luiza, deitando ao
lado da morena.
Duda deu uma risadinha travessa.
— Essa foi literalmente sua primeira vez – contou a morena,
depositando a cabeça no ombro da loira. – Você nunca tinha gozado
assim. Só em me tomar.
Luiza sentiu seu coração acelerar, gostou do que ouviu. Duda
demonstrou em cada ato o quanto a conhecia. Seus negros buscaram os
castanhos, a cada minuto que passava diante deles, mais vontade tinha
de mergulhar naquelas orbes marrons.
— Eu me apaixonei por você – verbalizou sem medo, porque isso
era uma certeza cristalina para Luiza.
— Acho que também me apaixonei por você – respondeu Duda.
Luiza sorriu, e Duda sorriu de volta. A loira puxou para si e
depositou um beijo no topo da sua cabeça. Ambas estavam felizes, e
Luiza sentiu uma plenitude em seu ser.
— Eu estou muito apaixonada por você – repetiu mais alto. – Santo
Deus! Eu estou muito apaixonada por você, guria!
Duda riu feliz, se aconchegando ainda mais naqueles braços, até
que ambas se entregaram ao sono.

◆◆◆
CAPÍTULO 52
Quando tudo se encaixa

Uma breve passagem de tempo.


Depois da entrega, duas coisas foram sacramentadas na vida de
Duda e Luiza.
Maria Eduarda sepultou definitivamente sua antiga esposa. Se
libertou do velho e se abriu para o novo, porque aquela nova versão era
quinhões de vezes melhor.
Já em Luiza, o sentimento de pertencimento se expandiu e a
titularidade, que antes cabia exclusivamente aos Fernandes, passou a
dividir com os Lafaiete e os Lins, porque foi exatamente esse
sentimento que pipocou em seu peito ao ser acordada naquela manhã de
sábado com as batidas abruptas na porta do quarto, seguidas por
risadas, berros infantis e emparelhada a latidos caninos. Aquela foi a
melhor sinfonia que a loira já ouvira em toda sua vida. O sorriso que
surgiu em seu rosto naquele amanhecer foi daqueles de orelha a orelha,
principalmente quando sentiu aquele corpo grudado ao seu. Sim, Luiza
tinha certeza de que era ali que queria estar. Que tenhamos muitas
primeiras vezes, Du..., disse a loira, depositando um beijo terno na
cabeleira escura da morena. Desde então, ela não desgrudou daquela
família. Naquela mesma manhã foi em comitiva, ou seja, com a médica
e os filhos, buscar suas coisas na casa de Heloísa, pois se mudaria
naquele mesmo dia, não iria procrastinar nem mais um segundo sua
chance de felicidade.
Pouco tempo depois, Luiza finalmente enfrentou o medo do
desconhecido. Antes de assumir o compromisso no Centro
Comunitário, ela precisava buscar por sua saúde. Conviver com Duda e
as crianças era o mesmo que viver com uma arma apontada para sua
cabeça, pois os gatilhos eram constantes, embora não fosse nada muito
diferente do que já sofria, mesmo assim, não menos perigoso. A nitidez
do seu passado permanecia sob um manto escuro, e algo dentro de si
lutava para que se mantivesse assim. No entanto, os problemas gerados
por seus episódios poderiam lhe tirar o que hoje a fazia sorrir, e Luiza
não queria perder nada da sua atual vida. Com isso, três meses desde
que chegara para morar ali, ela finalmente foi submetida à cirurgia
indicada pelo seu neurocirurgião.
O sentimento de medo, apreensão e esperança pairou no coração de
todos que esperavam fora do bloco cirúrgico, mas, como na maioria dos
romances contemporâneos, tudo acabou dando certo. Quer dizer…
No dia seguinte à cirurgia, ao despertar, Luiza sentiu-se
desnorteada. Seus olhos tentaram se acostumar à claridade do quarto.
Suas mãos foram para as ataduras em sua cabeça. Ela fechou os olhos
brevemente e inspirou profundamente. Lembrou-se de tudo que ocorreu
no dia anterior, foi um pouco mais além, retrocedeu até onde sua mente
deixou e, ao chegar no ponto final, abriu os olhos, e a água chegou
rapidamente a eles.
— Você acordou – disse Raissa que acabava de despertar.
Luiza sentou-se na cama, e seus olhos visualizaram as três pessoas
presentes. Duda dormia na poltrona ao lado da sua cama, Heloísa
ressonava toda troncha no sofá que dividia com Raissa.
— Ei, o que foi? – perguntou a advogada, preocupada, ao ver os
olhos da loira marejados.
— Eu não lembro – murmurou com a voz estrangulada. Raissa
apressou-se para consolá-la.
Luiza buscou aqueles braços que desde que renasceu foi sua
morada. Raissa podia jurar que a loira estava mal porque não recuperou
a memória. Duda e Heloísa acabaram acordando com o choro de Luiza,
pois era um choro alto e contínuo. Raissa a apertava cada vez mais forte
contra seu corpo. A loira demorou para se acalmar. Para Luiza, era mais
fácil escapar dos fantasmas do seu passado, desde que fosse capaz de
controlar a frequência da assombração deles. O resgate da memória lhe
tiraria esse controle, e abrir os olhos novamente e perceber que
continuava vendo o vazio foi uma alegria imensurável, eis o motivo de
suas lágrimas. Ela não sabia por que, nem buscaria explicação, sua
alegria não seria externada, seria guardada apenas para si. Apesar dos
esforços e de toda mobilização intelectual para aquele emblemático
caso de amnésia, o doutor Dantas e sua equipe conseguiram curar suas
dores, mas não devolveram a luz ao seu passado.
— Eu sinto muito – disse a loira a todos, pois sabia que no fundo,
eles tinham esperança de que ela fosse resgatar suas antigas memórias.
— Para mim, o jeito que tá não poderia estar melhor – disse
Heloísa com sinceridade.
— Pra mim também – disse a morena dos cabelos sem onda.
Luiza sentiu seu coração se encher de amor. Sim, estava bem
melhor, com memória ou sem memória, cada um daqueles
conquistaram um lugarzinho especial em seu peito e criaram muitas
novas e bonitas lembranças.
Nem precisa citar como ficou a relação da loira com os Fernandes.
Assim como a loira tinha um pai e uma segunda mãe, ela também tinha
uma irmã porque, apesar da história que viveram juntas, era exatamente
esse amor fraterno que uma sentia pela outra. João e Thaís ganharam
uma nova nora e três netos lindos. Duda e os filhos foram muito bem
acolhidos pelos pais adotivos da sua atual namorada, quer dizer... a
ideia era fazer o pedido de casamento da forma certa, não numa fila de
supermercado, como outrora. Ao menos era isso que Maria Eduarda
queria. A neurologista esperaria a mulher se recuperar da cirurgia,
organizar sua vida profissional, para depois bolar algo romântico para
fazer o pedido. Duda só não contava que a loira fosse tomar a dianteira.
Depois de todo pré-operatório, quando já estava no bloco cirúrgico
prestes a iniciar o procedimento, Luiza pediu atenção a todos, elevou o
corpo e fez o pedido, simples, assim. Nada de jantar à luz de velas, nada
de flores ou romantismo, ao menos o romantismo tradicional. A loira
pareceu maquiar a situação do passado, porém não foi menos
emocionante.
— Responde, guria! – exclamou a loira, nervosa.
Duda estava estupefata, um enfermeiro entregou uma caixinha
vermelha à loira, que a abriu. Os olhos da morena encheram-se de
lágrimas, porque não era um anel de noivado, eram suas antigas
alianças. Alianças que num momento de dor e raiva, Maria Eduarda
jogou para longe. Não sabia ela, que seu filho havia vasculhado o
quarto e recolhido as joias. Ele as guardou no seu esconderijo secreto.
Para ele, era uma lembrança da mãe que havia perdido. Quando Luiza
voltou para casa, João contou o ocorrido e, com felicidade nos olhos, as
devolveu para ela.
Duda tinha se arrependido horas depois. Quando se acalmou, ao
voltar do trabalho, procurou por elas no seu quarto inteiro, vasculhando
cada metro quadrado do ambiente, mas nunca as encontrou, e a morena
se culpou por muito tempo por ter perdido algo tão delas. E agora
estavam ali, diante dos seus olhos.
— Quero ser a senhora Fernandes Lafaiete Lins – disse a loira. –
Quero continuar sendo sua enquanto eu respirar, Du. Aceita se casar
comigo?
— Aceita logo, doutora Lins, e cai fora daqui – disse seu chefe com
ar de riso.
Com lágrimas descendo pelo rosto e voz embargada, Duda disse o
sim. Aplausos, beijos e novas promessas.
— Te amo, Isa, até daqui a pouco.
— Te adoro de paixão, Du. Me espera, que já, já, eu volto para nós.
Maria Eduarda saiu do bloco, por motivos óbvios não participaria
da cirurgia. Ao invés de assistir da galeria de observação, a morena
preferiu esperar com os familiares. Quando chegou à sala de espera,
todos olharam para ela com expectativa. Foi assim que teve certeza de
que eles sabiam que a loira faria o pedido daquele jeito tão tosco, mas
não menos apaixonante.
— Tenho uma cunhada? – perguntou Raissa, sorrindo.
Duda correu até ela e a abraçou fortemente, deixou que suas
lágrimas molhassem o ombro da nova amiga.
— Obrigada, obrigada por tê-la trazido pra mim, por ter nos dado
essa chance. Você tem uma cunhada – disse, chorando e rindo ao
mesmo tempo.
Raissa afastou-se, estava feliz. Feliz pelo amor que começava a
rascunhar naquele casal.
— Bem-vinda à família Fernandes – brincou a advogada. Suas
azeitonas discretamente buscaram outro par de olhos na sala, eles eram
de um negro brilhante. – Luiza também me trouxe para cá, também me
apontou uma linda direção – disse com o coração batendo de um jeito
muito, muito, mais muito diferente.
Outro alguém escutou aquelas palavras e sentiu batidas fortes no
peito, seus olhos se desviaram dos verdes-oliva que ganhou o hábito de
capturá-la, e, como sempre, ela fugia, mas não por muito tempo.
◆◆◆
EPÍLOGO
Elucidando o passado

Quatro anos antes, na cidade de Natal-RN.


— Aonde você vai, menina? – perguntou a doutora Andréia ao ver
Luiza com sua mala.
— Pra casa, estava ligando justamente para avisá-la que não vou
esperar por vocês, tô voltando hoje mesmo pra Recife.
— Mas por quê? Você já viu a chuva lá fora?
— Eu sei, mas prometi a Duda que assim que acabasse o
congresso, voltaria pra casa. Ela está me esperando.
— Luiza, Maria Eduarda pode esperar por mais algumas horas,
dirigir a essa hora da noite e nessa chuva é muito perigoso, as estradas
são horríveis, você mesma viu.
— Eu sei, mas sou cautelosa, estou morrendo de saudade dos meus
guris e da minha esposa. Bem, vou indo.
— Luiza! – tentou persuadi-la a ficar, mas não obteve sucesso.
Apesar do mau tempo, a cardiologista encarou a chuva e rumou
para casa. A chuva não dava trégua, Luiza dirigia com uma cautela
redobrada. Seus pensamentos estavam na pequena miniatura de homem
que provavelmente estava socado na sua cama, na filhota e na sua
morena bravinha, cujo humor estava cada vez pior devido aos
hormônios da gravidez. Apesar de ter tido uma semana exaustiva, a
loira conseguiu tirar um bom aproveitamento de tudo que aprendeu
naquele congresso. Duas horas se passaram, e ela se esforçava para
enxergar alguma coisa à sua frente. Até que algo lhe chamou a atenção,
Luiza acendeu a luz interna do carro e visualizou um feixe de luz no
meio da pista ao longe. À medida que foi se aproximando, ela
conseguiu ver uma mulher pulando e sacudindo os braços no meio
daquele temporal. Apesar dos seus instintos a mandarem ignorá-la,
Luiza diminuiu a velocidade. Quando finalmente ficou a poucos metros
da mulher, seus olhos visualizaram o que parecia um acidente. Havia
uma motocicleta tombada para o lado, alguém deitado no chão e a
mulher saltando e sacudindo os braços, no que parecia um pedido de
socorro. A médica deixou a precaução de lado. Sem pensar no perigo e
movida pelo seu instinto de salva vidas, Luiza, sem pestanejar, encostou
o veículo e desceu do carro.
— Ô Deus! Um acidente – falava a desconhecida. – Por favor, nos
ajude, caímos de moto, tem muito sangue. – A mulher parecia chorar.
Luiza, num gesto inocente, correu até o homem caído. Quando se
agachou para ajudá-la, ela foi surpreendida. O homem levantou-se
abruptamente com uma arma em punho. A loira demorou alguns
segundos para perceber que aquele acidente, na verdade, era encenado.
A ação foi rápida, a mulher foi logo arrancando as joias que adornavam
a orelha da loira, sua aliança e relógio.
— Aliança fina, hein – debochou a assaltante, colocando no seu
próprio dedo. – E esse colar aí?
E aquela doce prostituta cometeu seu erro fatal. Luiza tentou
impedir que a mulher arrancasse o cordão do seu pescoço, pois aquela
joia tinha um valor inestimado para a médica.
— Não!! – gritou a loira, tentando manter a joia em seu pescoço.
Sem hesitar, a assaltante que também estava armada, apertou o
gatilho. A princípio Luiza não percebeu que fora atingida, ela apenas
sentiu uns zumbidos muito altos, como abelhas dentro do ouvido.
Depois de uma pressão, como se algo tivesse empurrado com muita
força o local onde o projétil entrou, cambaleou para o lado e sua visão
foi ficando turva.
— Vamos! – gritou o homem para sua parceira de crime.
A assaltante deu um puxão no cordão, depois os dois correram para
o veículo da médica.
Luiza sentiu uma ardência e começou a tatear o próprio corpo.
Apesar da escuridão, ela viu o sangue. O sangramento se intensificou, e
a loira foi perdendo as força nas pernas, até que quando mesmo
esperou... O clarão.
O carro foi roubado unicamente para ser usado numa fuga em outra
ação dos assaltantes. Poucas horas depois, o casal assaltou um posto de
gasolina, só que a ação dessa vez não foi um sucesso. Houve uma
perseguição policial, o condutor perdeu o controle e o carro caiu numa
ribanceira, incendiando logo em seguida. Quando a polícia rodoviária
chegou ao local, encontrou dois corpos. Por ironia do destino, a mulher
estava tão queimada que estava irreconhecível.
— Encontramos isso no local. – O policial mostrou os pertences
encontrados, mas, para o pai de Maria Eduarda, bastou ver aquela joia
para ter certeza de que era sua nora ali.
Antony reconheceu o cordão, pois era herança de sua família. Duda
havia herdado da avó que tanto a amava, ela nunca o tirava do pescoço,
porém, quando fez um ano de casada, a morena queria presentear a
esposa com algo de real importância para ela, então lhe entregou a
correntinha. O empresário não aguentou ver o corpo deitado numa
maca no necrotério. A aliança e a corrente eram provas irrefutáveis para
ele. Querendo atenuar a dor que sua filha iria sentir, ele usou de toda
sua influência para que aquilo acabasse o mais rápido possível. O corpo
foi transferido para Recife, e o assunto, encerrado. E todos choraram a
dor de um engano.
FIM.
EPÍLOGO 2
O que você não está me contando?

— Por Deus, Rafaela! Para de colocar mais lenha na fogueira –


disparou Heloísa, nervosa.
Sua amiga Rafaela não cansava de rir do nervosismo da amiga.
— Qual é o problema? É tão absurdo assim jantar com uma
mulher? – questionou a empresária.
— Não se trata de absurdo, se trata da pessoa em questão.
— Lá vem você com essa coisa de idade – rebateu Rafaela.
Heloísa sentou-se diante da amiga. Ambas estavam no Centro
Comunitário resolvendo a questão das aulas de música para as crianças,
não era algo tão simples, por mais boa vontade que as gaúchas
pudessem ter, elas precisavam de capacitação acima de tudo,
compreender os diversos tons do autismo. Agora, já 100% recuperada,
Luiza estava com todo gás. Ela mergulhou fundo naquele trabalho,
enquanto ela e sua mãe estavam se capacitando para ministrar as aulas.
Luiza literalmente pediu um emprego a Leandra e Rafaela, as duas não
viram problema algum em empregá-la, afinal, trabalho não faltava.
Enquanto não dava suas aulas, a loira ajudava na administração do
centro.
— Tenho cinquenta e um anos, por Deus! Essa guria tem idade
para ser minha filha – argumentava a gaúcha.
— Mas não é! – contrapôs.
Rafaela entendia o conflito da amiga, Heloísa era uma mulher
ainda presa às convenções sociais na qual foi criada. Além da questão
da idade, a mulher vivia seu conflito de se ver encantada por uma
jovem mulher, que ainda por cima era a ex da sua filha.
— É só um jantar – disse a empresária suavemente.
— E se não for? Raissa é impetuosa às vezes. Me deixa
desconcertada sempre que olha pra mim com aqueles olhos – suspirou.
Heloísa simplesmente adorava a cor dos olhos da advogada. Eles
pareciam duas azeitonas, sem falar que seu olhar lembrava aquelas
crianças curiosas, sempre atenta a qualquer movimento que a mais
velha reproduzia. Rafaela não conseguiu abafar o riso ao notar a cara de
boba da amiga. – Rafaela! – brigou Heloísa, se sentindo uma
adolescente idiota.
— Ela está interessada em você, não adianta tapar o sol com a
peneira, e sinto muito, minha amiga, mas você parece interessada
também.
— Claro que não! – exasperou.
— Então qual o motivo de não aceitar o jantar? Vocês já fizeram
isso antes – relembrou a ruiva.
A artista plástica ficou pensativa, de fato, não seria a primeira vez
que iriam jantar juntas. Heloísa gostava da companhia da morena.
Raissa era sempre muito simpática, agradável e bastante inteligente, o
que as permitia conversarem sobre os mais diversos assuntos. Era
engraçado, porque assunto nunca faltava para elas.
— Por Deus! Raissa é uma garota ainda – disse em tom de
repreensão.
— E eu acho que você está com medo dessa garota – implicou
Rafaela. A ruiva estreitou os olhos. – O que não está contando,
Heloísa?
A gaúcha soltou o ar com força, a mulher sentia vontade de
conversar, viver tudo aquilo estava a sufocando, então ela acabou
falando.
— Ontem... – iniciou. – Ontem Raissa me ligou…
Era tarde de domingo quando Heloísa recebeu uma ligação da
Raissa. Aquilo não era algo incomum, as duas estavam sempre de papo
pelo telefone ou pelo WhatsApp. Raissa a convidou para dar uma volta
naquela tarde e não lhe deu espaço para a negativa. As duas se
encontraram numa livraria que ficava no coração da cidade. Além da
livraria, o ambiente oferecia um café convidativo. Raissa chegou ao
local toda sorridente. Heloísa, ao vê-la, sentiu uma comichão no corpo.
Era estranho o que aquela garota lhe provocava. Ao invés de ficarem no
café, a mais nova sugeriu que perambulassem pelo bairro, e foi
exatamente o que fizeram, caminharam lado a lado entre ruas de
paralelepípedos e prédios históricos.
Foi uma tarde extremamente agradável. A gaúcha suspirou ao
lembrar, inclusive do final daquela noite, quando elas encerraram
tomando um drink no deck do Cais Rooftop Lounge. As duas estavam
entre risos e conversas bobas quando alguém se aproximou da mais
velha e a cumprimentou de uma forma muito calorosa, calorosa demais,
a ponto de roubar o sorriso da advogada, que franziu sua testa e
emburrou a cara. O homem, mesmo sem ser convidado, acabou
sentando um pouco com as mulheres. Ronaldo era um homem
agradável, se não fosse o fato de parecer interessado pela artista
plástica.
— Desculpe, não imaginava que fosse encontrar o Ronaldo aqui –
disse a mais velha, sem graça, quando o amigo foi embora. – Acho
melhor ir, já está tarde – anunciou.
— Claro! Te deixo em casa.
— Não precisa, estou de carro.
A morena nada disse. As duas caminharam lado a lado até o
estacionamento, que fica por trás do Paço Alfândega. Raissa
acompanhou a mulher até seu carro. Heloísa sentia-se nervosa.
— Obrigada pela tarde, Raissa – disse a mais velha.
— Heloísa, me senti incomodada com o seu amigo, o que só
confirma o que já desconfiava – disse Raissa, dando passos à frente.
Heloísa engoliu em seco.
— E o que você desconfiava? – perguntou, insegura, embora
pudesse ver na íris verde a resposta. Então, pela primeira vez em sua
vida, Heloísa parou para perscrutar o rosto de uma mulher com
interesse nada fraterno. O formato das sobrancelhas, o tipo de nariz, o
contorno da boca, e foi ali que se deteve. Nos lábios cheios da
advogada.
Raissa acompanhou aqueles olhos escuros e aproximou-se devagar.
Estava insegura também, mas Luiza havia aberto seu armário, e aquela
mulher, aquela mulher, aquela mulher a puxava como um imã.
— Heloísa, amanhã a gente joga a culpa no drink que tomávamos e
no ciúme que senti – sussurrou Raissa com o rosto próximo demais.
— Amanhã eu jogo a culpa...
A mais velha fechou os olhos, os narizes se roçaram, e Raissa a
puxou para um beijo, quente, envolvente. A morena imprensou a outra
contra o carro, suas mãos subiram para a nuca, enquanto Heloísa sentia-
se em meio a um incêndio. Elas se beijaram com vontade e desejo. O
beijo terminou com um longo selinho, elas se afastaram e as orbes
verdes foram as primeiras a se abrirem. As respirações estavam
entrecortadas, Heloísa pareceu cair em si e abriu os olhos, assustada.
Seu coração bateu descompassado. Raissa afastou-se para lhe dar
espaço. Em seguida abriu um bonito sorriso.
— Amanhã, amanhã a gente culpa os drinks – disse, divertida, não
queria que a magia do beijo fosse quebrada pelo arrependimento.
— Nem álcool tinha – murmurou a gaúcha.
— Não importa, a culpa é do drink – rebateu, puxando a outra
novamente para um beijo.
Heloísa tentou, mas não conseguiu evitar o tsunami do seu corpo.
O beijo de Raissa era tão gostoso, envolvente, excitante, ela fez um
esforço tremendo para empurrá-la. As duas suspiraram ao mesmo
tempo. Raissa viu a oportunidade certa para encerrar a noite, pois
queria manter a magia do acontecimento.
— Culpa o drink. Boa noite, Heloísa! E obrigada pelo beijo mais
delicioso que já provei – disse com uma sinceridade e divertidamente,
depois roubou mais outro beijo devidamente correspondido, então
virou-se e se foi. Heloísa levou as mãos aos lábios e acabou sorrindo
também.
De volta à sala da direção, a morena terminou de relatar o
acontecido à amiga. Rafaela gargalhou alto.
— Foi culpa do drink – retrucou em sua defesa.
— Um drink sem álcool – ironizou.
— Ela foi namorada da minha filha – disse por fim, temerosa.
Rafaela entendeu o anseio da amiga, afinal, era uma situação muito
delicada.
— Luiza parece muito feliz com a Duda.
— Não exclui o fato de ela até poucos meses atrás ser namorada da
minha filha. Rafaela, Raissa é uma mulher linda, inteligente, com um
ritmo de vida totalmente diferente do meu. Não vou alimentar nada. O
que aconteceu não era pra ter acontecido. – Deu por encerrado o
assunto. – Vou aceitar ir ao jantar, só para dizer isso pessoalmente a ela
– falou, decidida.
Rafaela sorriu, sorriu diante da ingenuidade da amiga. A ruiva
poderia até ver onde iria dar essa história.

Bem, isso é assunto para outra história. Nos esbarramos por aí. ;-D
[1] Piloto de F1, brasileiro.
[2] Banda inglesa de heavy metal.
[3] Pessoa sem documentação.
[4] Por David Spiegel , MD, Stanford University School of Medicine.
[5] Cantora brasileira de MPB.
[6] Atriz norte-americana.
[7] Ecocardiograma pré-operatório.
[8] Louca da vida.
[9] Pressão arterial.
[10] Atriz brasileira.
[11] Bobeira.
[12] A arte da Guerra – Sun Tzu.
[13] Ator brasileiro.
[14] 6.am: a hora mais curta – Tessa Reis
[15] Repreensão, chamar à atenção, levar uma bronca.
[16] Um dos maiores novelistas brasileiros.
[17] Fliperama.
[18] http://cienciasecognicao.org
[19] Peppa Pig, o personagem de uma porquinha.
Sobre o autor
MICABRITO

Recifense, amante das letras e apaixonada pelas cores. Sempre fui uma
leitora voraz. Gosto de pensar que o livro é uma verdadeira caixa de
Pandora. Ao abri-lo, nunca sabemos que emoção emergirá. Foi em 2009 que
criei coragem para sair do anonimato. Usei uma comunidade de leitores do
falecido Orkut para publicar meu primeiro romance entre mulheres. O
conhecido “a minha doce prostituta”. Desde então, fui autora de diversos
romances. Os amigos mais próximos, costumam dizer, que sou uma autora
do cotidiano, pois, gosto de pegar a realidade de alguém e lhe dar novas
cores. Afinal, assim como as cores, as palavras se misturam, se confundem e
se transformam.
Livros deste autor
A MINHA DOCE PROSTITUTA
- LIVRO 1
Luiza é uma jovem prostituta que trocou sua fria cidade natal (Porto Alegre),
pela capital pernambucana para um novo recomeço. Viu em Recife, uma
oportunidade para resgatar seus sonhos e se livrar dos fantasmas do passado.
Tudo ia bem até que numa reviravolta do destino seu caminho se cruza com
Amanda, uma patricinha que se acha dona do mundo e estava acostumada a
ter tudo que queria. Movida pela raiva, a patricinha buscou o serviço da
acompanhante para um duplo trabalho. Para Luiza, aquilo era apenas um
trabalho, ou seja, bastava levar uma garota para a cama. O serviço era
simples e os ganhos atraentes, o que não previa, era que aquele simples
trabalho iria lhe trazer um emaranhado de sentimentos e novas descobertas.

ACIDENTE DO DESTINO
Larissa é uma promotora de justiça bem-sucedida e reconhecida em sua
profissão. Dedicada e muito talentosa, conseguiu levar aos bancos dos réus
um dos maiores traficantes do país em um julgamento que repercutiu em
rede nacional. Com o traficante preso e a justiça feita, o caso foi encerrado.
Bom, não exatamente. Mal sabia a promotora que o resultado daquele
trabalho ocasionaria uma reviravolta em sua vida. Agora a vida de Larissa
corre perigo e seu coração também. Acidente do Destino fará você descobrir
que um pequeno acidente pode transformar a sua vida.

FALSAS VERDADES, DOCE LOUCURA


Tudo parecia tranquilo no Hospital Psiquiátrico Renascer. Os pacientes cada
vez mais loucos e Giovanna cada dia mais atolada de trabalho e Mariane
sempre esmiuçando a mente dos seus intrigantes pacientes. Duas amigas, um
amor, dois enredo e várias incertezas. Embora as amigas compartilhassem
uma vida juntas, Giovanna não via chance alguma com a psiquiatra. Afinal,
repetia para si mesmo: “ela é areia demais para meu carrinho de mão”. Já a
psiquiatra, não conseguia ter olhos, senão, para a moça do administrativo.
Suspirava a cada sorriso lançado pela Giovanna. Mas o amor é apenas para
os corajosos.
Vitória chega ao Hospital Renascer trazendo mais que uma doce melodia. A
cantora chega para bagunçar com a vida daquelas que tinham dificuldade de
sair da sua zona de conforto. Como será que a tão lógica psiquiatra vai lidar
com essa famosa concorrente ao coração da sua doce monguinha? E
Giovanna, como lidará com essas duas mulheres que tanto se parecem e se
diferem?
Com um enredo bem planejado e com um final surpreendente. Onde a
escrita é voltada mais para as descrições e para os detalhes. Convido você a
ficar atento(a), pois esse é o segredo para desvendar a história por trás da
história em Falsas Verdades, Doce Loucura.

OS TONS DO AMOR - LIVRO 1


Dizem que a vida é uma caixinha de surpresas. No entanto, em OS TONS
DO AMOR!, você descobrirá que a vida vai além disso. Na verdade, ela está
mais para uma aquarela. Em dado momento tudo pode estar colorido, em
cores alegres e vibrantes. Em outro, essas cores esmaecem, e tudo pode se
tornar opaco e sem vida. Assim é a vida, cheia de cores e tonalidades que
mudam dependendo dos acontecimentos/sentimentos envolvidos.
Leandra é uma detenta que cumpre pena de 26 anos por homicídio. Uma
verdadeira leoa e líder da ALA NORTE. Sob as sombras do seu passado, só
conhecia duas cores: o preto e o cinza. Foram tantos anos sob a perspectiva
desses tons tão frios, que havia esquecido que, mesmo nos tons escuros,
ainda é possível ver a beleza das cores. Ainda bem que, assim como as
cores, é a vida, nada é permanente. Belo dia, chega uma nova presa à sua
cela. Antônia era uma sonhadora sem tamanho. Pouco a pouco, vai
quebrando as defesas daquela dura detenta. Ali, naquele mundo preto e
branco, nasce uma verdadeira amizade. A Tônia chega à vida daquela
presidiária trazendo uma aquarela e indicando que pode haver algo
multicolorido atrás desses muros de aço e concreto.
É assim, trilhando esse caminho proporcionado pela melhor amiga, que
Leandra vai perceber que há um arco-íris à sua espera. Basta que aceite e
abrace sua segunda chance para ser feliz.
E você? Está pronto(a) para ver as cores da vida, do amor, da amizade e da
família neste livro repleto de sentimentos e reviravoltas?

OS TONS DO AMOR - LIVRO 2


Tudo parecia ter sido um sonho. Júlia ainda custava acreditar em como o
destino estava conduzindo sua vida. Ela que sempre teve uma vida tranquila.
Amigos leais. O trabalho que sempre sonhara. Tudo seguindo o fluxo de um
rio tranquilo. No budismo temos a crença de que: “Nada é fixo, nada é
permanente, a dor existe e o sofrimento é opcional”. Em outros tempos, Júlia
duvidaria dessas sábias palavras, mas a personal trainer ver sua vida virar de
ponta a cabeça quando seu caminho se cruza com a intrigante Sofia. A
morena dos olhos fujões e que carrega consigo um silêncio carregado de
palavras não ditas. Um encontro que parecia ser a mais bela obra do destino,
mas que lhe traz mais que sentimentos avassaladores e tonalidades ainda
desconhecidas, para a personal trainer. Será que a Júlia está preparada para
embarcar nesse arco-íris de sentimentos proporcionado por aquele curioso
encontro?
Já Sofia, é a filha mais velha de Leandra e Rafaela. Aquela antes pequena,
está embarcando na fase adulta. Portadora de um grau brando de autismo,
desde pequena encontrou nas cores a melhor forma de expressar seus
sentimentos. Para ela, a vida tinha que seguir um rito. Um esbarrão lhe leva
a uma aquarela de novas descobertas. Resta saber, como Sofia reagirá,
quando pela primeira vez em sua vida, não ter um rito a seguir?

OS TONS DO AMOR, LIVRO 2, traz mais que a materialização do amor


em seus mais diversos tons. Traz consigo também, as diferenças dele, a
resiliência e a escolha. Às vezes, para amar é preciso sair do rito.

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