Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
UM BEBÊ.
Vou ter o bebê de Gabriel Louw.
Gabriel Louw.
O homem mais perigoso de Joanesburgo.
Oh Deus.
Coloco a mão na minha boca para silenciar um soluço e coloco a outra
sobre a minha barriga, onde nosso filho está crescendo.
Enquanto o táxi me leva cada vez mais longe de meu captor em minha rota
de fuga impulsiva, minha mente gira com mil pensamentos. Como isso
aconteceu? Eu esqueci de tomar meu comprimido? Tenho certeza de que tomei
todos os dias na mesma hora. Até tenho um alarme programado no meu telefone.
Eu errei? Como? Quando? Não tomei nenhum medicamento que pudesse
interferir com o anticoncepcional.
Pela minha vida, não consigo pensar em uma explicação. Minha mente
racional, minha parte em negação, exige que eu encontre provas de
que o teste de gravidez está errado, mas meu instinto sabe
o contrário. O conhecimento bate em
minhas costelas.
Estou grávida.
E sozinha.
Tenho pouco dinheiro, não tenho emprego e estou fugindo
de Gabriel Louw.
Estou com tantos problemas. Agora não é hora de descobrir o
que deu errado. Preciso pensar em como vou continuar viva.
— Para onde vamos, senhora? — O motorista pergunta.
Quando Gabriel descobrir que estou desaparecida, ele irá
atrás do meu irmão. Dou o endereço de Kris ao motorista e
afundo no banco, nauseada de medo.
Ele me olha pelo espelho retrovisor. — Está tudo bem?
Eu abaixo minha mão da minha boca e agarro a maçaneta
da porta. Preciso me agarrar a algo. — Estou bem, obrigada.
Parece uma eternidade antes de chegarmos à clínica. Peço
ao motorista que mantenha o taxímetro funcionando e
contorne os fundos da casa, onde não serei vista de nenhuma
das janelas da clínica. Tento abrir a porta da cozinha, mas
está trancada. Eu bato suavemente.
Por favor, Charlie, rápido.
Por vários batimentos cardíacos dolorosos, nada acontece.
Roendo minha unha, corro de janela em janela até localizar Charlie. Ele
está sentado em sua cama, lendo uma revista em quadrinhos. Eu bato no vidro.
A última coisa que quero é assustá-lo com um soco na janela. Sem reação. Eu
bato com mais força. Não posso me dar ao luxo de atrair a atenção de Kris. Nesse
ínterim, o taxímetro está abrindo um buraco na pequena quantia de dinheiro
que tenho comigo.
Toque, toque.
Finalmente, Charlie ergue os olhos. Quando ele me vê, grita. — Va-Val.
Eu aceno para ele ficar quieto com meu dedo em meus lábios e aponto para
a trava da janela. Em vez de abrir, Charlie salta da cama e sai do quarto.
Não chame por Kris.
Um momento depois, a porta dos fundos se abre e meu irmão sai.
Além do alívio, quero puxar ele para meus braços e dizer que vamos ficar
bem, mas tenho que agir normalmente.
— Surpresa, Charlie, — eu sussurro. — Eu vim buscar você. Estamos
saindo de férias, mas você tem que vir em silêncio.
— Si-silêncio, — ele sussurra de volta, imitando meu gesto anterior com
um dedo em seus lábios.
Não há tempo para entrar na casa e recolher algumas de suas coisas. Eu
tranco para que Kris fique segura lá dentro e jogo a chave através das barras da
janela aberta do banheiro. Enganchando meu braço no de Charlie,
eu o levo para o táxi que está esperando.
Lá dentro, o motorista e Charlie falam
simultaneamente.
— Para onde você quer ir?
— O-Onde estamos i-indo?
Onde estamos indo?
Para onde posso correr e que Gabriel não me
encontrará? Um lugar assim não existe. Se eu quiser manter meu
juízo sobre mim, tenho que ignorar essa noção. Não sou mais
responsável apenas por Charlie e por mim, mas também por uma
terceira vida. Não tenho um plano de ação. Eu belisco a ponte
do meu nariz.
Pense, Valentina. Pense.
— Senhora, para onde? — O motorista repete, mais
impaciente agora.
Não posso pagar uma passagem de avião ou ônibus para
lugar nenhum só para mim, muito menos para duas pessoas. Só
resta uma opção. Aonde quer que vamos, terei que dirigir.
— Senhora? — O homem se vira em seu banco e me
lança um olhar penetrante. — Está tudo bem aí?
— Sim. Estamos indo para Berea.
Ele me olha por baixo de suas sobrancelhas
grossas e diz com uma pitada de descrença. —
Berea. Tem certeza?
— Apenas dirija. Vou te dar instruções.
Ele segura meus olhos por mais um momento antes de se virar para a
frente e sair do meio-fio. Eu exalo de alívio e aperto a mão de Charlie para
tranquilizar ele, feliz por Kris não ter visto a gente. Charlie abaixou sua janela e
está olhando para os prédios que passam zunindo, alheio ao nó de concreto em
meu estômago e ao medo enlouquecedor que bombeia em minhas veias.
Eu envio uma mensagem de texto rápida para Kris para que ela não se
preocupe quando descobrir que Charlie foi embora.
Eu: Charlie e eu temos que sair por um tempo. Desculpe fugir assim, mas
quanto menos você souber melhor. Obrigada por ser sempre ser
minha amiga. Te amo.
A um quarteirão do meu antigo apartamento, o motorista para. — Isso é o
mais longe que eu vou. — Ele aponta para a rua em frente. — Esse é o paraíso
dos sequestradores.
Eu pago a quantia exorbitante e levo Charlie para fora antes que o
motorista possa fazer as perguntas que vejo em seu rosto. No minuto em que
estamos na calçada, ele sai em alta velocidade, feliz por sair daqui.
— Va-Val. — Charlie chuta seus pés quando eu pego seu braço. — Esta é
ca-casa.
— Não mais. — Eu dou a ele um sorriso brilhante. — Este é apenas o
lugar onde nossas férias começam.
Tenho pouco tempo precioso. É questão de horas, minutos
talvez, antes que Gabriel descubra que eu parti e coloque uma
sentença de morte por nossas vidas. Ele rastreará
meu telefone e estará em nosso
encalço mais rápido do que posso
dizer desaparecer, mas se eu quiser que
Charlie me siga sem complicações, tenho que fazê-lo feliz.
Caminhamos um quarteirão até um café de esquina, onde
compro um sorvete King Cone para Charlie. Enquanto ele se senta
na calçada para comer, ligo para Jerry. O número toca e toca e,
finalmente, desconecta sem ir para o correio de voz.
Merda. Jerry é minha única esperança. Tento o número
especial que ele me deu quando ainda estava supostamente
cuidando de Charlie. É um número que só eu e alguns de seus
companheiros do crime temos.
Desta vez, ele atende com um hesitante. — Val?
Não há tempo para rodeios. — Eu preciso de um carro.
— O que?
— Um carro, Jerry. Agora.
— Vai comprar?
— Eu teria chamado um ladrão de carros se quisesse
comprar um carro?
Ele expressa sua recusa humildemente. — Eu não
posso fazer isso. O que está acontecendo? Isso não é
típico de você.
Sempre condenei seus negócios sombrios, mas agora não é o momento
para meus valores morais induzirem à culpa. — Depois do que você fez para nós,
você me deve, maldito seja.
Há desânimo em sua voz. — Val…
— Você quer saber o que Gabriel Louw fez comigo por causa de sua
estupidez ignorante?
— Oh merda. Oh merda. Você está fugindo. — Sua voz treme. — Você está
fugindo do Breaker.
— Se ele me encontrar, estou morta. Charlie também. — E o bebê que
estou carregando. — Por favor, Jerry. Você nos meteu nessa confusão. Me ajude
a sair.
Há um longo silêncio. Quase posso sentir as engrenagens girando em sua
cabeça. Bem quando eu acho que vai desligar, ele diz. — Onde você está?
— Seu lugar.
— Me dê uma hora.
— Trinta minutos.
— Maldição, Val. — Ele respira fundo, como se quisesse se acalmar. —
Espere na lateral do prédio.
— Obrigada. É melhor você aparecer. Quando eu desligar, não poderemos
mais falar neste telefone.
Ele sabe o que quero dizer. Tenho que destruir o telefone se não quiser que
Gabriel me rastreie.
— Eu estarei lá. — A linha fica muda com um clique.
Charlie terminou seu sorvete. Eu o faço
limpar as mãos em um lenço de
papel e jogo a embalagem na lata de
lixo para que eu possa dobrar a esquina e
esmagar o telefone sob meu calcanhar. Há muitas partes
minúsculas para discernir um rastreador, não que eu saiba o que
procurar, então eu acerto tudo de novo, só para ter certeza, e jogo
tudo na lixeira.
— Pronto para nossa aventura? — Eu pego a mão de Charlie. —
Vamos pegar nosso carro.
Nós nos escondemos em uma alcova de onde posso
observar a rua. Felizmente, não cruzamos com nenhum
bandido, mas eles logo vão rastejar para fora de seus buracos
com o pôr do sol. Eu jogo um jogo da velha para distrair Charlie,
usando uma pedra de giz que peguei na estrada para desenhar
linhas na parede de tijolos.
Trinta e cinco minutos depois, uma perua laranja para. A
carroceria está amassada e o metal enferrujado onde a tinta
descascou. Meu queixo cai quando o veículo frágil para ao
nosso lado e Jerry sai.
— Jerry. — Eu jogo meus braços no ar.
— O que? — Ele diz com uma voz exasperada. —
É tudo o que pude fazer em curto prazo.
— Até onde essa coisa vai nos levar?
Ele dá uma tapinha no capô. — Ela é boa. Eu a verifiquei. O motor foi
refeito, é tudo ou nada. — Ele estende a chave para mim. — Troquei a placa dela
também, mas fique longe das estradas principais, só para garantir.
— Obrigada. — Pego a chave de sua mão. — Vamos, Charlie.
Jerry dá uma tapinha nas costas de Charlie enquanto meu irmão dá a volta
no carro. — Como vão as coisas, cara?
Charlie dá a ele um comprimento e um sorriso. Quando ele está com o
cinto de segurança, olho para Jerry pela janela uma última vez antes de arrancar
em direção à rodovia.
O motor faz um barulho engraçado e a carroceria do carro chacoalha, mas
nós avançamos bem e conseguimos passar por Hillbrow sem nenhuma tentativa
de sequestro, cortesia do estado do carro.
Assim que atingimos o N1, meus nervos desgastados finalmente me
atingiram. Minhas mãos começam a tremer no volante. Uma onda de calor
percorre meu corpo, me fazendo começar a suar. Meu estômago está tão
apertado que dói. Eu luto contra a vontade de vomitar. A poluição do verão é
irritadiça e suja, mas abro a janela para encher meus pulmões de ar. Como
sempre, o modo de sobrevivência entra em ação e me entorpece com os medos e
perigos de nossa situação.
Charlie está olhando pela janela, cantarolando uma música. Consigo
ajustar o rádio o suficiente para encontrar uma estação country e
ocidental de que ele goste. Verificando o medidor de gasolina, eu
gemo por dentro. O tanque está quase vazio. No
primeiro posto de gasolina depois de
Midrand, eu encho e uso meu último
dinheiro para comprar alguns suprimentos da
loja Quick, que são principalmente lanches para Charlie. Não me
atrevo a sacar dinheiro no caixa eletrônico com meu cartão. Será
muito fácil rastrear. Eu deveria ter me lembrado de fazer isso antes
de começar.
Meu estômago dobra e se agita quanto mais nos afastamos de
Joanesburgo, a cidade de ouro que é governada por um homem
tão belo e arruinado quanto o próprio lugar, um homem que
nos matará se nos encontrar.
Quando o horizonte de Sandton desaparece do meu
espelho retrovisor, uma noção paralisante de perda e solidão me
atinge. As emoções me desequilibram. O choque me percorre. Eu
sinto falta de Gabriel. Isso me deixa confusa e doente. Devem ser
os hormônios. Sim, não sou eu mesma. Lágrimas não
convidadas ardem em meus olhos. Golpeando-as, forço meu
olhar para a estrada à frente.
Não olhe para trás.
Há apenas Charlie, eu e meu bebê agora.
Nós vamos conseguir. Nós vamos sobreviver.
Não tenho ideia de para onde estou indo até chegarmos à placa que
anuncia a divisão de três vias. Se seguirmos em frente, seguiremos para o norte
em direção a Polokwane. Eu não conheço a área. As únicas opções restantes são
Bloemfontein ou Durban. Durban não está tão longe quanto Bloemfontein e o
clima é menos severo. Sem recursos financeiros, Durban é a melhor opção. Além
disso, posso chegar lá com um tanque de gasolina, onde ficarei sem combustível
no meio do nada, muito antes de atingir Bloemfontein.
O sinal para o N3 aparece. Mudo de faixa e entro no trevo que me leva para
a rodovia e para o leste. Com um movimento rápido do indicador, decido nosso
destino e futuro.
Gabriel
O CARA QUE MATEI esta tarde era a escória, mas hoje a violência deixa
um gosto ruim na minha boca. Tudo que eu quero é ir para casa, para Valentina,
rastejar em seu corpo e derreter em sua cama. As coisas entre nós mudaram.
Não importa o quanto eu minta para mim mesmo, ela não é mais o brinquedo
que roubei de sua vida. Ela é algo, alguém que eu quero o suficiente para quebrar
todas as regras do livro para manter. Ela não é mais minha cativa. Eu sou dela.
Meu vício cresceu com o passar dos meses e se tornou uma
obsessão que me consome. Apesar da frieza dentro de mim, ela
desperta emoções que eu pensava não
ter. Ela me faz sentir coisas que
nunca senti antes, gratidão,
arrependimento, alegria e medo, e mesmo que esses
sentimentos me assustem terrivelmente, eu quero mais.
Quando chego em casa, dispenso Rhett e Quincy e subo
para tomar um banho. Não quero enfrentar minha garota coberto de
sangue. Lavando o fedor dos meus pecados, penso nela e no que
quero fazer com seu corpo. Os pensamentos me deixam
duro. Se eu não estivesse tão impaciente para plantar meu pau
em seu corpo, eu teria me feito gozar primeiro para que
pudesse durar mais, mas minha urgência é palpável. Me seco
rapidamente com a toalha e visto uma calça e uma camisa.
Meu batimento cardíaco acelera enquanto faço meu
caminho para a cozinha. A esta hora, Valentina estará
engomando. Me irrita vê-la trabalhar arduamente, vê-la
trabalhar tanto, mas não será por muito mais tempo. No
minuto em que ela engravidar, tudo vai mudar.
O silêncio me cumprimenta quando entro na
cozinha. Os balcões estão arrumados e limpos. Marie já
encerrou seu dia. Um vazio assustador pressiona o
espaço. Eu não gosto disso. Acelero meu passo,
colocando minha cabeça ao redor do batente da porta da copa, mas não há
ninguém. Uma sensação nauseante se instala em meu corpo. Cada terminação
nervosa formiga. Correndo para os aposentos das empregadas, abro a porta. A
cama de Valentina está feita. Oscar está dormindo em seu travesseiro. Minha
perna dói com a força que apliquei enquanto mancava para o banheiro.
Vazio.
Com uma sensação crescente de pavor, abro os armários. Tudo parece
estar lá. Os cosméticos e sais de banho que comprei estão bem empilhados. De
volta ao quarto dela, faço o mesmo com o armário. As roupas, sapatos, joias,
livros e outras bugigangas que dei para Valentina estão lá. Ainda assim, algo
está errado. Eu sei disso no meu instinto.
Parado ali, absorvendo o frio da noite que desce, as moléculas do meu
corpo ficam vazias e frias. Uma sensação avassaladora de abandono me
preenche. Então o medo me atinge, quente e líquido, reverberando sobre mim
em uma onda. Se Magda fez alguma coisa com Valentina... Se ela a machucou...
Juro por Deus que mato minha mãe.
Fazendo meu caminho pelo corredor até meu escritório, eu pego meu
telefone do bolso e ligo para Rhett.
Ele responde com um alegre. — E aí, chefe?
— No meu escritório. Agora. Traga Quincy.
Desligo e corro pela porta do meu escritório, esperando um exército ou
Magda, mas o que vejo é uma folha de papel branco na minha mesa.
Toda a minha atenção se concentra naquele pedaço de
papel. O instinto me diz que tudo o que acabou de
descarrilar em minha vida está
resumido ali, e por três segundos
inteiros não consigo me mover. Eu fecho meus
olhos, me preparo e dou a volta na minha mesa. Está com a letra
dela. Minha mão treme enquanto eu o levanto para a luz e leio.
Não posso honrar minha promessa. Espero que você me
perdoe.
Maldição, não!
Amasso o papel e passo as mãos pelo cabelo. Tenho
vontade de cair de joelhos, mas de alguma forma continuo de
pé. De todas as coisas que ela poderia ter feito, esta é a última
que eu esperava. Charlie significa muito para ela. Meus
sentimentos são uma confusão de fios elétricos
emaranhados. Estou prestes a entrar em curto-circuito, explodir
e queimar. Eu quero encontrá-la e machucar, fazê-la pagar por
sua traição e pelo que ela está me fazendo passar. Vou
machucar a pele de seu traseiro e arrastá-la de volta. Desta
vez, vou acorrentar ela à minha cama até que entenda o
significado de propriedade.
Rhett e Quincy correm pela porta, me salvando de
meus pensamentos sombrios. Os dois estão cuidadosos
com meu estado.
— O que foi? — Quincy pergunta com cuidado.
Eu abaixo minhas mãos em meus quadris. É difícil para mim falar. Por um
momento, penso em empurrar o papel para eles, mas não quero que
testemunhem a rejeição íntima de Valentina. Eu engulo, inspiro e digo. —
Valentina se foi.
Quincy empalidece. — O que você quer dizer com se foi?
Preciso de cada grama de força que tenho para pronunciar as palavras e,
quando finalmente o faço, minha boca está amarga. — Ela fugiu.
Os olhos de Rhett se arregalam. — Porra, não.
Quincy é o primeiro a recobrar os sentidos. — Ela disse algo? Alguém a viu
sair?
— Ela deixou uma nota. — Como Quincy parece mais no controle do que
Rhett, digo. — Vá para a casa da guarda. Pergunte a eles quando ela saiu e como.
Com o que? Ela foi com uma mala? Puxe a fita. Eu quero saber cada detalhe do
caralho. Nem uma palavra para Magda ou seus guardas. — Uma gota de suor
frio desce pela minha espinha enquanto eu digo isso. Esta é a oportunidade que
Magda esperava.
Quincy saiu do meu escritório em um piscar de olhos. Estou tropeçando
nos meus pensamentos nos pedidos que estou elaborando para Rhett. Rastreie
o telefone dela. Puxe seus registros bancários das últimas seis horas. Avise
nossos informantes. Antes que eu possa expressar qualquer coisa, Rhett dá um
passo à frente. Algo em seu comportamento me faz parar. Seus
ombros estão curvados e suas sobrancelhas franzidas.
— Gabriel... — ele começa.
Isso vai ser ruim.
Ele faz uma pausa e lambe os
lábios. — Há algo que você deveria saber.
Essas palavras me fazem querer matar ele. Ele sabe algo e
me negou isso. Eu fico em silêncio, esperando que ele continue.
— Eu acho... — Ele abaixa a cabeça. — Talvez... não sei ao
certo, mas...
Minha paciência se rompe. — Cuspa isso ou vou abrir um buraco
na sua maldita língua.
Ele respira fundo e me encara. —Valentina me pediu
para comprar um teste de gravidez para ela esta manhã.
Eu cambaleio em estado de choque. — O que? — Eu o
ouvi bem, mas não consigo processar o que me disse. —
Valentina acha que está grávida? — Eu digo mais para mim
mesmo do que para ele.
— Se você pensar sobre isso, ela tem agido meio
emocionalmente, ultimamente.
Eu deixei a observação afundar. Ela passou por muito
com seu acidente e desistiu de seus
estudos. Naturalmente, atribuí sua tristeza a esses
eventos. Agora que Rhett mencionou, Valentina está
mais chorosa do que de costume. Quando a toquei na
noite passada, seus seios estavam maiores e sensíveis, mas eu culpei seu
período pendente pelas mudanças.
Porra.
Há muitos sentimentos me assaltando para dar sentido a qualquer coisa,
orgulho, alegria, medo, raiva louca e delirante. Se Valentina está grávida e fugiu,
só pode ser por um motivo. Sei o quanto as mulheres de minha vida se sentiram
negativas e deprimidas em relação à gravidez planejada. Quanto pior ela deve se
sentir sobre uma inesperada? Ela não quer o bebê e vai se livrar dele.
Mesmo que eu esperasse a reação, estou cheio de raiva e ansiedade de
partir o coração. A raiva não é por ela, mas por mim. Eu poderia ter evitado esse
desastre. Eu deveria ter a trancado. Eu deveria ter percebido quando sua
disposição mudou. Eu poderia ter evitado que ela matasse nosso filho, a criança
que deveria salvá-la.
A dor rasga meu interior quando penso em perder um bebê que ainda não
nasceu, mas não tenho ninguém além de mim mesmo para culpar. Isso é tudo
culpa minha. Troquei suas pílulas anticoncepcionais por placebos. Eu a enganei
da maneira mais desprezível e assumirei total responsabilidade por suas ações.
Não importa se ela não estiver mais grávida, ela ainda é minha e eu a quero de
volta.
— Gabriel? — Rhett deu dois passos para trás e está a uma distância
segura perto da porta.
— Procure em todas as latas de lixo da propriedade. — Há uma
boa chance de Valentina ter levado o teste de gravidez com ela, mas
preciso ter certeza. —Encontre esse teste e traga
para mim.
Estou claro o suficiente em
meu estado de merda para perceber que posso
estar me precipitando. Há uma chance de que ela não esteja
grávida, mas tenho que considerar todas as opções.
Quando ele sai, ligo para a casa da guarda e grito
comandos. Não quero que a notícia vaze para Magda
prematuramente. Eventualmente, ela vai descobrir. Até então, preciso
de todo o tempo que puder ou Valentina estará morta. Eu
insiro os detalhes para ativar o software rastreador instalado
no meu telefone. O rastreador dela está morto, o que só pode
significar que ela destruiu o telefone. Para ter certeza, eu disco
o número dela, mas vai direto para a caixa postal.
No dia em que chutei a porta de Valentina em Berea, dei a
ela meu telefone para ligar para sua amiga, a veterinária para
quem ela trabalha. Salvei o número no meu telefone quando ela
terminou. Rolando até o nome de Kris, eu disco o número com
a mão trêmula.
A voz dela está cansada ao telefone. — Kris,
aqui. Como posso ajudar?
— Gabriel Louw.
Ela fica quieta com a menção do meu nome.
— Valentina está com você?
— Por que ela estaria? — O pânico entra em seu tom. — O que há de
errado?
Eu acredito nela. A reação dela é muito genuína para estar atuando. —
Charlie está aí?
— Você sabe que está.
— Acho melhor você verificar.
— Mesmo se ele não estivesse, eu não te contaria.
— Me ouça e ouça com atenção. Não é hora para jogos. A vida de Valentina
pode estar em jogo.
— Seu filho da puta inútil. Eu vou acabar com você. — Ela continua com
insultos elaborados e coloridos que são interrompidos por muitos latidos.
Presumo que esteja caminhando pela clínica até a casa. — Vou te picar e comê-
lo vivo.
— Kris? — Eu mantenho minha voz calma. — Nós dois nos preocupamos
com Valentina, cada um à sua maneira. Me ajude a ajudar ela.
Ela fica quieta com isso, e por um momento, eu também. É a primeira vez
que confesso para alguém além de mim mesmo que me importo com Valentina.
As palavras me chocam, mas também me libertam. Está exposto. Sem mais me
esconder.
Ela inspira e expira. O ar que sai de sua boca está trêmulo. Seu veredicto
é curto e amável. Tem uma sensação de terrível finalidade. — Ele se
foi.
Jesus.
Eu levanto meu rosto para o
teto e procuro por calma dentro de
mim.
— O que diabos está acontecendo? — Ela grita.
— Existe uma nota?
Eu posso ouvir seus passos estalando pela casa. — Não. Nada.
— Ela está revirando as coisas. Algo bate no chão com um baque. —
Que se foda tudo. Todas as coisas de Charlie estão aqui.
— Fique calma. Eu vou encontrar ela. Me faça um
favor. Ligue para mim neste número se souber de alguma coisa
dela.
— Por que eu vou te dar merda?
— Acredite em mim, agora, sou a única chance dela.
— O triste é que sim.
Eu cortei a ligação assim que Rhett entrou novamente no
meu escritório, um bastão na mão. Ele o estende para mim. —
Achei.
Seus olhos solenes me contam a notícia antes mesmo
de eu pegar a prova. Duas linhas azuis.
O ar deixa meus pulmões. Minha perna fraca
estremece e tenho que agarrar a borda da mesa para
manter o equilíbrio.
Eu tinha razão. Valentina só pode ter partido por um motivo, se livrar de
um bebê que ela não quer. Isso pode simplesmente matá-la se Magda conseguir
o que quer. É exatamente o oposto do que eu pretendia. Meu plano engenhoso e
fodido saiu pela culatra.
Quincy volta correndo. As palavras caem como diarreia verbal de seus
lábios. — Ela saiu a pé há quatro horas. Tudo o que ela tinha com ela era uma
bolsa de mão. Tentei não levantar suspeitas, mas os guardas sabem que algo
está acontecendo. Estou com medo... — Ele para quando seus olhos pousam no
bastão em minha mão. — Porra. É isso que eu acho que é?
— E agora, Gabriel? — Rhett pergunta, sua expressão preocupada. — O
que nós fazemos?
Eu não hesito em minha resposta. — Nós a traremos de volta.
— É melhor você se apressar, — Quincy diz. — Os guardas fizeram
barulho. Agora, Magda já sabe.
Com o bastão com a prova da concepção de Valentina em mãos, marcho
até o escritório de Magda.
Ela se senta atrás de sua mesa, rabiscando em um bloco de notas. —
Valentina fugiu. — Sua expressão é presunçosa. — Nós vamos atrás dela com
tudo o que temos. Uma equipe já está a caminho de seu irmão.
— Pare eles.
Ela joga a caneta na mesa. — Desculpe?
Eu deixo cair a evidência do meu filho na frente dela. Ela leva
um segundo para conectar os pontos. Em seus olhos, eu vejo sua
compreensão. Ambos sabemos que fiz de
propósito e ambos sabemos por quê.
Ela aperta os lábios e se
recosta na cadeira. — Então, é assim que você
consegue o que deseja.
— Chame seus homens.
— Você cometeu um grande erro.
— Essa é a sua opinião, e você sabe que não me importo com
o que você ou qualquer outra pessoa pensa. Valentina vai ser a mãe do
meu filho. De agora em diante, ela é família. Isso quita a dívida
e a mantém segura e a qualquer pessoa remotamente
conectada a ela.
Não digo o que suspeito, que o bebê já pode ter ido
embora. Não importa se eu a trago de volta grávida ou
não. Eventualmente, ela terá meu filho, mesmo que leve anos e
milhares de Rands de tratamentos de fertilidade. Eu não me
importo. Em algum lugar no fundo da minha mente, sei que é
uma mentira. Eu me importo. Eu me importo se ela quer ser
mãe. Mais do que isso, me preocupo se ela
quer meu filho. Infelizmente, quando se trata de vida ou
morte, nem sempre podemos nos dar ao luxo de
escolher ou responder às nossas perguntas. Talvez
seja melhor eu não saber as respostas. Já sei que sou
um monstro e ela me odeia. O que estou fazendo com ela é egoísta, errado e
imoral, mas nunca afirmei ser um bom homem. Eu a queria desde o momento
em que a vi. Ainda quero. Mais do que nunca. Deixá-la ir é a única coisa de que
não sou capaz.
Magda ainda me olha com desprezo. Eu irei tão longe quanto dizer que é
com ódio. Mesmo enquanto fala, ela pega seu telefone e disca um número. —
Seu menino tolo. Isso mostra que os homens nunca são confiáveis. É muito fácil
conduzir eles por seus paus. — Um toque soa em seu telefone, seguido por uma
resposta curta. — Scott, volte. O ataque a Charles foi cancelado. — Ela ouve
uma resposta. — Ainda queremos a garota, mas traga ela ilesa. — Ela corta a
ligação e me encara. — Você percebe que entregou todo o seu poder. Agora, ela
tem poder sobre você. Espero que isso te faça feliz.
Já se passou muito tempo desde que Valentina assumiu o poder sobre
mim, e um homem como eu nunca será feliz. Vou me contentar em estar
contente, e estarei assim quando receber minha preciosa propriedade de volta.
Minha mãe precisa entender uma coisa. — Se um fio de cabelo de sua
cabeça for prejudicado, vou interpretar isso como um ataque pessoal a mim e à
minha família. Não haverá restrição ao conflito.
— Isso nunca pode ter um final feliz.
Não quero ouvir a profecia de minha mãe, porque ela atinge o
conhecimento instintivo dentro de mim com um alvo. — Apenas se certifique de
que seus homens entendam. Ela é minha responsabilidade. Qualquer
coisa que eles encontrarem, qualquer coisa que ouvirem, cheirarem,
souberem ou adivinharem, eu quero saber.
— Você irá. Eu te devo
um foda-se por ficar emaranhado
entre as pernas daquela prostituta e estragar
tudo para a família.
Me aproximo lentamente da mesa, me elevando sobre
Magda. —Cuidado. Você está falando sobre a mãe do meu filho. Este
é o seu último aviso. Insulte ela de novo e não gostará das
consequências.
O sorriso que quebra sua espessa camada de base é
artificial. — Eu adoraria ver como você vai explicar isso para
Carly.
É um golpe baixo. Considerando a possibilidade de
Valentina estar grávida, é algo que pensei. Vou ter que mentir
para minha filha, contando a ela um tom rosado de uma besteira
rosada sobre Valentina e eu nos apaixonando, quando na
realidade nada pode estar mais longe da verdade. Não há como
garantir que Valentina manterá a boca fechada sobre as
circunstâncias de como acabamos na cama. Eu a seduzi, mas
fiz contra sua vontade. Há pouca diferença entre meu tipo
de sedução e força. Pelo que eu sei, ela vai se vingar e
contar a Carly como eu a roubei, chantageei e torturei
por nada além do meu prazer, apenas para que eu
pudesse alimentar meu vício doentio de dar a ela dor e orgasmos. Suas lágrimas
e súplicas me deixam duro, mas seu clímax me faz explodir. A combinação dos
dois, sua dor e prazer é o maior afrodisíaco. Além da parte física, outra coisa
começou a se desenvolver, essas coisas que ela me faz sentir, como a agonia que
está cortando meu estômago agora.
— Eu vou lidar com isso, — eu digo sem rodeios. — Ninguém diz uma
palavra para Carly além de mim.
— Oh, — ela ri, — eu não ia ser voluntária. Vou deixar a tarefa
desagradável para você.
— Bom. Estou feliz por nos entendermos. — Eu ando até a porta e
viro. Meu sorriso é tão frio quanto seus olhos. — Parabéns. Você vai ser avó de
novo.
Eu não espero pela reação dela. Volto para o meu escritório para iniciar
minha própria pesquisa.
Se torna evidente que não tenho nada para continuar. Valentina destruiu
seu telefone em um lugar diferente daquela área esquecida por Deus onde ela
morava, e não mexeu no dinheiro de sua conta. Embora ela não pudesse pagar
uma passagem de avião, iniciei uma busca por viajantes de avião e ônibus. Os
trens que vão além de Pretória não existem, o que me deixa com táxis
particulares, mas nenhum na área de Joanesburgo cruzou as fronteiras da
cidade nas últimas horas. Meus hackers plantam vigia em bancos eletrônicos e
servidores médicos para levantar uma bandeira se os nomes dela e
de Charlie aparecerem em qualquer lugar do sistema. Informo
minha rede de colegas e informantes da polícia
para ficarem atentos e ofereço uma
grande recompensa por qualquer
informação sobre seu paradeiro. Então eu
dirijo para a casa de Kris, que está em estado de choque. Ela me
mostra o texto de Valentina quando eu finalmente a convenço de
que estou apenas tentando manter Valentina segura, e exige saber
por que Valentina fugiu. Não conto a ela sobre o bebê. Por enquanto,
é melhor que apenas Magda, meus guarda-costas e eu saibamos.
Pego Rhett e dirijo para Berea. Batemos na porta de todos
os bares e lojas em um raio de oito quilômetros de sua antiga
casa, mas ninguém sabe de nada. Quando a noite cai, estou
doente. Minha preocupação é tão grande que não consigo nem
a odiar por isso. Eu só a quero de volta. Ela não tem dinheiro e
o mundo é um lugar muito inseguro. Valentina pode estar com
frio, fome ou medo. Ela pode até estar em perigo. Sem dinheiro,
sua única opção é um aborto clandestino, e isso não ocorre sem
riscos à saúde. Me sentindo derrotado, pego o volante e dirijo
para uma casa insuportavelmente vazia.
2
Valentina
DIRIGIR É EXTENUANTE.
Por causa do estado do carro, leva mais tempo para cruzar o país a uma
velocidade mais lenta do que o limite legal. Minhas costas doem e Charlie está
ficando inquieto, mas depois de sete horas as luzes de Durban finalmente
aparecem. Bem a tempo. Estamos quase sem combustível. Não tenho ideia para
onde estou indo. Só estive aqui duas vezes nas férias com meus pais quando
criança.
Uma placa indica a praia. A praia principal será muito perigosa com os
criminosos rondando. Opto por uma em um subúrbio e sigo a estrada até um
estacionamento escuro e vazio. Não podemos ficar aqui à vista de todos. É uma
busca por problemas. Depois de dar a volta no estacionamento uma vez,
encontro um lugar onde posso me esconder sob algumas árvores pendentes. O
esconderijo não é perfeito, mas terá que servir. Eu não posso ir mais um
quilômetro.
Charlie faz muito barulho animado quando percebe que
chegamos ao nosso destino. Tenho que silenciá-lo como fiz em casa
quando nos escondemos da máfia. Sabendo que ele
precisa esticar as pernas após a longa
sessão, destranco as portas e o
ajudo a sair de baixo da densa vegetação
para a noite. O clima tropical é quente e úmido.
De mãos dadas, descemos o íngreme caminho até a
praia. Eu uso minha lanterna para iluminar nosso caminho, me
mantendo vigilante e olhando para o perigo. Você nunca sabe quem
se esconde no escuro.
— Shh, — eu digo. — Não deveríamos estar na praia à
noite. Este é o nosso segredo, certo?
Charlie acena com entusiasmo. — Se-segredo.
Paramos no final do caminho de pedra para contemplar
a paisagem. A lua brilha sobre a água, lançando uma luz sobre
a espuma branca das ondas. Eu levo um segundo para registrar
o ar salgado e o barulho da água enquanto ela se enrola e se
quebra.
— Você se lembra do oceano, Charlie?
— Na-nadar.
— É noite.
Seu tom se torna insistente. — Na-nadar.
— Amanhã, tudo bem? É muito arriscado à noite.
— Na-nadar!
Eu pego seu braço. — Primeiro você precisa dormir para ganhar força.
Solto um suspiro de alívio quando ele me permite conduzi-lo de volta ao
caminho. Perto do topo, escalamos a areia, já molhada do orvalho, para nos
encaminhar pelas dunas. Certa de que o estacionamento ainda está vazio, levo
ele de volta para o carro. Por um segundo, ele congela.
— N-Não.
— Não vamos dirigir mais. Eu prometo.
Ele balança seus cachos. — Na-não.
— Ei, — eu o cutuco com o cotovelo, — esta é a nossa grande aventura.
Estamos acampando.
— Aca–acampando.
— Sim. — Eu pego sua mão e levo de volta para o carro. — Não é
emocionante?
Eu ajeito os assentos e os coloco o melhor que posso, enrolando minha
blusa de lã em um travesseiro para sua cabeça e cobrindo ele com minha
jaqueta. Quando seus roncos suaves enchem o carro, permito que minha
fachada caia. Fingir é exaustivo. Não sei se vamos passar a noite ilesos ou de
onde virá a comida de amanhã, mas me preocupar com o futuro é inútil, então
eu simplesmente me concentro em passar a noite.
A MANHÃ ESTÁ
surpreendentemente fria. Eu tremo
na minha camiseta. Meu corpo dói
por causa da posição desconfortável. Muito cautelosa
com os possíveis perigos, não dormi muito. Charlie se mexe,
boceja e me lança um olhar turvo.
Eu seguro sua bochecha. — Como você dormiu?
Ele não responde, mas não precisa. Os círculos escuros sob seus
olhos dizem tudo.
Nós rastejamos para fora dos arbustos. Pego minha
sacola de toalete do carro e encontro uma torneira de jardim
no topo do caminho para a praia, onde podemos lavar o rosto
e escovar os dentes. Dou a Charlie a escova de dentes que
comprei na Quick e o ajudo com sua aparência. Me vestindo
atrás de uma árvore, coloco meu biquíni por baixo do vestido e
tento não pensar no fato de que Gabriel o comprou para
mim. Charlie terá que nadar de cueca até que eu possa fazer
outro plano.
— Fo-fome.
— Eu também.
Não tendo dinheiro suficiente para comida, deixei Charlie terminar a maçã
de seus lanches e encho sua garrafa de refrigerante vazia com água.
— Pronto para mais aventuras? — Eu protejo meu rosto com a palma da
mão, olhando para a estrada que passa pelas casas até o topo da colina.
Charlie geme, mas segue quando eu começo a andar. Depois de uma hora,
chegamos à primeira pequena área comercial. É um shopping que consiste em
uma mercearia, um restaurante Wimpy, um banco, uma farmácia e uma loja de
bebidas. Paro em todas as lojas para pedir um emprego, mas como era de se
esperar, não havia nada disponível. Com uma taxa de desemprego de mais de
quarenta por cento e eu não tendo qualificações formais ou cartas de
recomendação, tenho zero por cento de chance de conseguir qualquer coisa, sem
mencionar que a lei de ação discriminativa não está a meu favor.
Ao meio-dia, chegamos a outra área residencial e a uma praia. Estou
faminta e Charlie está cansado. Paramos em um quiosque de praia que vende
sorvete e cachorro-quente. Eu conto meus últimos centavos no balcão, mas não
é o suficiente para comprar um sorvete para Charlie.
O homem que espera atrás de nós na fila estala a língua. — Eish1, — diz
ele no dialeto local, — você parece estar com fome, senhorita.
Eu me viro para olhar para ele. Ele tem a pele morena e enrugada, como
as pessoas de cor que são uma mistura de preto e branco.
Ele passa por nós e vai até a frente, vasculha os bolsos e tira uma nota,
que entrega ao vendedor. — Dê a esta senhora e a este homem um rolo
de boerewors2.
Eu fico boquiaberta com ele, piscando para
conter as lágrimas. Pelo estado de
suas roupas e a forma como as solas
de seus sapatos balançam quando ele anda,
ele está pior do que nós.
— Não por favor. — Eu levanto a mão. — É muito gentil,
mas não posso aceitar.
Ele faz um barulho e murmura algo em zulu para o homem
que grelha salsichas de carne na churrasqueira a gás atrás do balcão.
Antes que eu possa protestar novamente, o vendedor
coloca dois boerewors com todas as guarnições em nossas
mãos.
Desvio os olhos, com vergonha de termos roubado uma
refeição deste pobre homem, mas faminta demais para recusa
uma segunda vez. — Obrigada.
— De nada.
Gabriel
JÁ SE PASSARAM TRÊS meses e uma semana desde que Valentina
fugiu. Achei que conhecia a agonia quando Sylvia foi embora, mas nada se
compara a essa tortura. Não saber é o pior. Valentina está viva? Ela está
bem? Quando não estou procurando por ela, passo os dias me concentrando nos
negócios e nos fins de semana passando o tempo com a Carly.
A primeira descoberta vem de Magda. Estou examinando nossas
demonstrações financeiras quando ela entra no meu escritório e joga a foto da
placa de um veículo na minha mesa.
— Foi assim que ela saiu.
Largo tudo para olhar a foto. Pela primeira vez em meses, meu
coração congelado começa a descongelar. Meus
dedos apertam o papel brilhante. —
Como você encontrou isso?
— Eu encontrei Jerry.
Isso me lembra o quão poderosa é a rede de minha
mãe. Estou tentando há meses localizar aquele vira-lata de cabelo
laranja, sem sucesso.
— Onde você o encontrou? Como?
— Isso importa? — Ela se senta na beirada da minha mesa. —
Conexões.
Valentina não mexeu em seu dinheiro, o que deixa
apenas uma explicação. — Ele deu a Valentina um carro
roubado. Placa de carro falsa?
— Exatamente.
— E? — Eu prendo minha respiração.
— Nada até agora, mas eu disse que estamos procurando
um carro com essa descrição. Tenho alguns amigos no
departamento de trânsito.
Desde nossa discussão inicial, Magda se tornou muito
mais cooperativa. Quando ela reconheceu que Valentina
poderia potencialmente ter um filho para mim, ela colocou
todo o seu peso no esforço de rastrear Valentina. Pela
primeira vez na vida, tenho a sensação de que nossa
família, pelo menos minha mãe e eu, estamos juntos. Isso não nos faz gostar um
do outro, mas nossos níveis de tolerância são mais altos.
Apesar da minha preocupação e raiva, admiro Valentina por ficar
escondida por tanto tempo. As chances nunca estiveram a seu favor. Era apenas
uma questão de tempo, e essa hora é agora.
Gabriel
DURANTE TODO O TRAJETO de Durban a Joanesburgo, minhas
entranhas tremem. Quão facilmente eu poderia ter perdido ela. Ela é uma
sobrevivente, uma das mais fortes que conheço, mas até os sobreviventes
acabam ficando sem sorte. Isto é minha culpa. Este é o meu golpe de
traição. Valentina correu para proteger nosso bebê. Ela acreditava que eu não
iria querer isso. Eu não posso culpá-la. De sua perspectiva, eu sou o monstro, e
é verdade. Só um monstro iria sequestrá-la, e treinar para transar com ele e
depois deixar ela grávida sem seu consentimento. Só um monstro acreditaria no
pior dela, esperando que ela corresse para se livrar de nosso filho. Um bom
homem teria visto as coisas como elas são. Valentina não é capaz de machucar
uma criança por nascer, mesmo que essa criança seja de um monstro.
A culpa dilacera minha mente em todo o caminho de casa. Eu me odeio
pelo que sou e pelo que vou fazer, porque não vou contar a ela. Não vou contar
a Valentina por que ela engravidou. Estou muito carente. Eu quero demais uma
pequena parte de seu afeto e aprovação. Por que fazê-la me odiar mais do que já
odeia? Por que tornar isso mais difícil para ela? Será melhor para nós dois
manter a mentira escondida. Ela nunca precisa saber. É isso que digo a mim
mesmo quando estaciono o carro na garagem.
Enquanto ela dormia, liguei para Magda para informá-la sobre o estado da
situação. Também verifiquei com Rhett como Charlie estava. Eles
estavam atrás de mim por uma hora. Eu os instruí a deixar Charlie
dormir na guarita quando chegassem. Foi uma
longa viagem de doze horas de ida e
volta para Durban, mas mal sinto a
tensão. Força sobre-humana me impulsiona
no que diz respeito à minha mulher e meu filho. Uma olhada no
relógio do painel me diz que são três da manhã. A casa está quieta,
todos dormindo. Melhor assim. Quero um tempo a sós com
Valentina antes de enfrentar Magda e o resto da equipe.
Meu pacote precioso se agita quando eu a tiro do carro e
a carrego para dentro, mas pressiono seu rosto contra meu
peito, insistindo que não interrompa o sono. Eu a levo para
cima e a deito na minha cama, tentando não a perturbar muito
quando tiro suas roupas. Depois de me despir, fico sob as
cobertas ao lado dela e a puxo contra o meu peito. Meu corpo se
molda ao dela, cada parte exatamente como eu me lembro, exceto
pela curva suave de seu estômago que pressiona mais
profundamente em minha virilha. O resto dela perdeu
peso. Seus ombros ossudos e braços finos cortam
diretamente minha consciência, e ainda sou perverso o
suficiente para ficar duro. Eu quero possui-la e
reverenciá-la por não a tocar. Com toda a força de
vontade que possuo, eu forço meu pau para baixo. Por
enquanto, sua mente está em um mundo subconsciente, e como o bastardo que
sou, eu seguro seu corpo nu enquanto ela não pode me negar.
Valentina
A VIGÍLIA ME PUXA, mas não estou pronta para abrir os olhos. Ainda
estou no meu casulo, quente e segura, só que agora está mais macio e
confortável. Lentamente, a realidade retorna. Estou em uma cama, em um par
de braços fortes. Nua. Eu levanto minhas pálpebras para encontrar Gabriel me
observando. Imediatamente, fico tensa. Quando ele vai me mandar para a
academia para minha punição? Conforme a rigidez invade meus músculos, seus
olhos ficam duros e seu rosto deformado se transforma em uma máscara fria,
mas ele não afrouxa seu controle.
Sua voz está cortada. — Como você está se sentindo?
Eu coloco meu cabelo atrás da orelha, sem graça com a nossa nudez. Já
se passaram três meses e meu corpo mudou. — Bem, obrigada.
— Fique. — Ele tira o edredom de seu corpo, mas garante que estou
coberta.
Sua bunda dura se contrai e os músculos de suas costas se flexionam
enquanto ele caminha para o banheiro. Um segundo depois, a água
do chuveiro é aberta.
Sem saber o que fazer, olho ao
redor do quarto familiar. O mesmo
equipamento médico de antes ainda
está aqui. Não vou ficar deitada na cama esperando
minha punição nua. Me levanto e vou até o armário para pegar
emprestada uma de suas camisetas para poder chegar ao meu
quarto com minha modéstia intacta, mas quando abro a gaveta de
cima minhas camisetas estão cuidadosamente dobradas na
prateleira. Assim como minhas calcinhas, shorts e
camisolas. Gaveta após gaveta guarda minhas roupas, assim
como roupas novas que eu nunca vi. Eu levanto uma blusa
para ler o rótulo. Tudo está do meu tamanho, ou pelo menos
do meu tamanho antes da gravidez. Perplexa, eu examino o
armário. Meus jeans, vestidos, jaquetas e calças estão
organizados por cores.
— Isso não vai caber agora, — sua voz profunda diz atrás
de mim.
Eu pulo e giro. Gabriel está parado na porta, uma
toalha enrolada em sua cintura e seu peito molhado com
gotas d'água. Instintivamente, cubro meus seios e abaixo
do estômago, um rubor quente percorrendo meu
corpo. Sem olhar para minhas partes nuas, ele pega uma camiseta da prateleira
de cima e a entrega para mim. É uma dele.
— Teremos que fazer algumas compras, — diz ele.
Eu puxo a camiseta sobre a minha cabeça rapidamente. Felizmente, a
bainha chega aos meus joelhos. Eu aponto para os armários. — Eu não entendo.
— Mandei mudar suas coisas.
— Por quê?
Ele tira uma camisa e deixa cair a toalha. Eu tenho que desviar o olhar
quando ele começa a se vestir. — Vamos corrigir a situação das roupas o mais
rápido possível. Peço desculpas por isso.
Mais confusa do que nunca, digo. — Você não poderia saber. Que ainda
estou grávida, quero dizer.
O olhar que ele me dá é estranho. Uma sombra invade seus olhos. Ele
veste uma calça, sem se preocupar com a cueca.
— Como foi que você descobriu? — Eu pergunto com cuidado.
— Rhett estava preocupado com você.
— Ah. — É uma boa maneira de me dizer que Rhett me delatou sem culpar
Rhett.
Me sentindo cada vez mais desconfortável, encontro uma calcinha e visto
uma das calças de moletom de Gabriel com um cós elástico que se ajusta à
minha cintura arredondada. Tenho que dobrar as pernas várias vezes.
— Volte para a cama, — diz ele com uma expressão sombria.
Não aguento mais a tensão. — Gabriel…
Ele se vira para mim. — Valentina?
— Apenas me leve para a
academia e acabe com isso.
Por um segundo, dois segundos, três
segundos ele me encara, então ele atravessa o chão e coloca as
mãos nos meus ombros. — Eu nunca vou te machucar enquanto
você estiver grávida.
O ar deixa meus pulmões em um jorro. Estou aliviada, mas
não segura. —Só depois?
Ele não responde. Apenas aponta para a cama e me faz
voltar para ela.
— Não se mova.
— Charlie?
— Mais tarde.
Ele beija minha testa e sai do quarto. O que
devo fazer? Dormir? Não estou pronta para testar a paciência de
Gabriel, eu fico parada. A porta se abre nem cinco minutos
depois, e Marie entra com uma bandeja. Ela me dá uma
carranca e joga na mesa de cabeceira. Há ovos, bacon,
torradas, feijão cozido e café. O cheiro da comida me deixa
enjoada, mas luto contra isso. Antes que eu possa dizer
obrigada, ela se foi.
Gabriel não me deixa em paz por muito tempo. Quando ele retorna, é com
o Dr. Engelbrecht. Uma carranca percorre suas feições quando ele olha para a
comida intocada, mas não diz nada. O médico faz testes semelhantes aos que fiz
em Durban e anota tudo em seu computador.
— Eu sei que é difícil quando você está se sentindo mal, — diz o médico,
— mas se você não quiser alimentação intravenosa, terá que comer alguma coisa.
— Ela vai tentar, — diz Gabriel.
Assim que o médico sai, Gabriel me lança um olhar penetrante. — Vista o
casaco e os sapatos.
— Onde estamos indo?
Ele tira a jaqueta do gancho, mas não responde.
Não tenho escolha a não ser obedecer e seguir ele até o carro. Antes de
ligar o motor, ele beija a junta do meu polegar amputado e coloca minha mão
em sua coxa. Nós dirigimos em silêncio. Só quando estacionamos do lado de fora
de um prédio de tijolos vermelhos é que me atrevo a interrogar ele novamente.
— Gabriel, o que está acontecendo?
Ele desliga o motor e me encara de frente, seu corpo um bloco de músculos
rígidos que ocupa todo o espaço do seu lado do carro. Apertando seus dedos nos
meus, como se esperasse que eu me afastasse, ele disse em uma voz inabalável.
— Vamos nos casar.
4
Valentina
— O QUE? — Eu chio.
Tento me afastar, mas ele me segura, um aviso silencioso rastejando em
seus olhos.
— Vamos nos casar, — ele repete.
— Agora?
— Aqui, agora, hoje.
Se ele me desse um soco no estômago, não conseguiria tirar meu fôlego
com mais força. — Por quê?
Ele me lança um olhar equilibrado. — Você está grávida do meu bebê.
Estou me sentindo mais histérica a cada momento. — Isso não significa
que você tem que se casar comigo.
Ele me solta, abre a porta e dá a volta no carro para abrir a minha.
Quando não me mexo, ele abaixa a cabeça. — Saia do carro, Valentina.
Agora.
Chutar e gritar não vai me fazer bem. Ele vai me carregar para
dentro do prédio, se for preciso. Minha única
chance de sair dessa é argumentar
com ele.
Eu saio com as pernas trêmulas,
segurando a porta para estabilidade. —Você não precisa se casar
comigo só porque estou grávida.
Ele estreita os olhos. — Você acha que não vou assumir minha
responsabilidade?
— Eu te disse, não espero nada de você.
Ele coloca o nariz a um fio de cabelo do meu. — A ideia
de que estou fazendo isso para te proteger passou pela sua
cabeça?
O soco que ele me deu antes não é nada comparado a
este nocaute.
— Você sabe quantos inimigos eu tenho? — Ele continua
agarrando meus braços. — Você sabe o que eles farão com você
para chegar até mim? A única coisa que torna intocável
qualquer pessoa no negócio é ser família.
Tudo o que ele diz é verdade. Eu sei como o negócio
funciona. Meu filho ainda não nasceu e já tem uma
espada pendurada sobre sua cabeça. O fato de ele
ser filho de Gabriel é o suficiente para colocar nossas
vidas em perigo. Eu entendo o que ele diz, mas casamento não é o que eu
quero. Não é o que Gabriel quer. Assim não. Casamento é por amor.
— Tem de haver outro jeito.
— Este é o único caminho. Você pode fazer isso da maneira mais fácil ou
lutando. O juiz foi comprado. Ele não se importa se você disser sim ou não. Nós
vamos nos casar.
Seus dedos cavam em meu braço enquanto ele me puxa escada acima e
porta adentro. Alguns de seus homens o seguiram de carro e estão guardando a
entrada. Ele não me dá tempo para protestar ou falar até que paramos em frente
a uma porta com uma placa de metal que diz Juiz EL Viljoen.
Eu recuo quando ele avança. Ele se vira com um olhar irritado.
— Gabriel.
— O que?
Corro minhas mãos suadas sobre o casaco justo que não vai mais prender
na minha barriga, para secar as palmas. — Acho que vou ficar doente. — A bile
sobe na minha garganta.
Ele segura meu rosto. Pela primeira vez desde que conheci Gabriel, seus
olhos se enchem de algo como ternura. — Respire fundo. — Ele me dá um beijo
forte e possessivo e me conduz para dentro.
Apenas cinco minutos depois, estamos casados.
Marido e mulher.
A náusea que consegui controlar ferve. Quase não saímos
antes de esvaziar meu estômago em um canteiro de flores. Gabriel
está ao meu lado, seu braço sob meus
ombros. Ele segura meu cabelo
longe do meu rosto e esfrega minhas
costas enquanto vibrações secas destroem
meu corpo. Lágrimas se misturam à minha angústia, sacudindo
meus ombros.
— Está tudo bem, linda. Inspire e expire.
Respiro fundo e tiro um pouco de dignidade do fundo do poço
do meu controle, o suficiente para endireitar minhas costas e suprimir
mais lágrimas.
Gabriel me leva de volta para o carro e aperta meu cinto
de segurança. Em estado de choque, eu fico olhando para o aro
de platina com o diamante flutuante no meu dedo anelar que
combina com o dele, exceto que o dele tem um diamante preto. O
meu se encaixa perfeitamente. De jeito nenhum ele pediu os
anéis esta manhã. Ele já os tinha antes de saímos de casa. O
casamento apressado não foi algo que ele planejou ontem à
noite.
Ele entra e passa o polegar pelo meu queixo. — Se
sentindo melhor?
Eu levanto minha mão esquerda, os dedos
abertos. — Há quanto tempo você está planejando isso?
Sua expressão fica cautelosa. Ele liga o motor e coloca o carro em marcha.
— Desde que encontrei o teste de gravidez.
— Por que você está fazendo isso? Por que desistir de sua vida de solteiro
para me proteger? — Sério, por que ele se importa? — Minha dívida não pode
valer muito para você.
Em vez de responder, ele sai, seus guardas o seguindo. Dirigimos em
silêncio até chegarmos à estrada em direção a Lanseria.
— Onde estamos indo?
Ele segura meu joelho. — Precisamos de um lugar tranquilo para
conversar.
— Charlie...
— Vai ficar bem. Rhett e Quincy estão cuidando dele. Hoje é sobre nós.
Minha preocupação não diminuiu completamente, mas não tenho escolha.
Eu tenho que confiar em Gabriel. Agora que estamos de volta, tenho que avisar
Kris. Eu odeio ter feito ela se preocupar.
— Você se importa se eu ligar para Kris?
Ele pega o telefone do suporte do carro e o entrega para mim.
— Obrigada.
Gabriel tem o número dela salvo em seus contatos. Por que isso não me
surpreende? Ela atende com uma saudação apressada.
— Kris, é a Valentina.
— Val! Onde você está?
— Joanesburgo.
— Você está bem?
— Estou bem. Estamos bem.
— O que aconteceu? Gabriel
encontrou você?
Eu olho para ele, sabendo que ele pode ouvi-la, mas seu
rosto é uma máscara estoica.
— Sim, — eu digo.
— Me diz o que aconteceu. Estou ficando louca.
— Prometo explicar tudo, mas não por telefone.
— Quando posso ver você?
Eu olho para Gabriel.
— Amanhã, — ele diz.
— Amanhã, — eu repito.
— Hoje. Você me deve a porra de uma explicação.
— Você está certa. — Eu esfrego meus olhos. — Mas eu não
posso fazer isso agora. Vai ter que esperar.
— Val...
— Kris, por favor.
Ela deve ter ouvido o desespero em minha voz, porque
depois de um suspiro, ela diz. — Tudo bem. Amanhã e não
um dia depois. Estarei esperando.
— Sinto muito por fazer você se preocupar.
— Estou feliz que você esteja segura. Conversaremos amanhã.
Não sei como vou explicar. Eu tanto temo o julgamento de Kris e anseio
por seu apoio.
Devolvo o telefone a Gabriel e olho pela janela. Estamos indo em direção a
Magaliesburg, passando pelo aeroporto.
— Como você está se sentindo? — Ele pergunta.
— Enjoada.
Eu juro que há uma sugestão de um sorriso malicioso em seu rosto.
— O que é tão engraçado? — Eu estalo.
Há uma contração definitiva em seus lábios desta vez. — É fofo.
— É fofo que eu tenha vontade de vomitar?
— É fofo que você esteja tendo sintomas de gravidez.
Ele coloca a palma da mão na minha barriga, mas a afasta imediatamente,
como se estivesse preocupado que seu toque fosse indesejável. O triste e doentio
é que fico gelada quando seu toque acaba. Só o orgulho me impede de pedir a
ele para me abraçar.
Depois de trinta minutos, a estrada começa a serpentear montanha acima.
Normalmente não fico enjoada, mas a estrada sinuosa não ajuda. Tenho que me
concentrar na minha respiração para não esvaziar meu estômago novamente.
Ele dá uma tapinha no meu joelho. — Quase lá.
Eu fecho meus olhos e inclino minha cabeça contra o encosto de cabeça.
Quando os abro novamente, passamos pelos portões do Monte
Grace. Eu me sento mais reta. Sempre quis vir aqui. Ouvi dizer que
é lindo.
É isso e muito mais. O resort
da montanha está escondido nas
colinas verdejantes, rodeado por uma
floresta. O edifício principal tem paredes de pedra e telhado de
palha. Tudo indica luxo e taxas exorbitantes. Quando
chegamos ao saguão onde vários hóspedes bem-vestidos conversam,
fico constrangida com minhas roupas, mas o braço de Gabriel está
em volta do meu corpo, me protegendo contra seu corpo. Um concierge
corre para a frente e cumprimenta Gabriel pelo nome.
— Seu quarto está pronto, senhor. Gostaria que eu o
acompanhe?
— Nós vamos tomar café da manhã, primeiro. Minha
esposa está grávida e ela precisa comer.
— Claro. O que o senhor deseja?
— Tudo, — diz Gabriel, — e meus homens vão pedir do
menu.
—Sim senhor.
Os guardas de Gabriel o seguem, mas eles mantêm
distância suficiente para nos dar privacidade. Somos
conduzidos a um jardim interno onde uma mesa é posta
com talheres e porcelana fina como papel. Trepadeiras
perenes ornamentam as paredes de vidro que dão uma vista das montanhas e
do vale.
— Não está muito frio? — Gabriel pergunta enquanto pega meu casaco.
Há um toque no ar de outono e o dia está nublado. — Está quente o
suficiente aqui dentro, obrigada.
Ele me ajuda a sentar antes de se sentar na cadeira oposta. Um garçom
chega com café e uma variedade de chás de ervas. Opto por uma infusão de
menta, porque o café não combina com o meu estômago, ultimamente. Mais
garçons depositam travessas de prata cobertas nas mesas que revestem a parede
lateral. Eles levantam as tampas para revelar todo tipo de comida de café da
manhã imaginável. São salsichas, bacon, batatas fritas, ovos, mingaus,
panquecas, cereais, frutas, nozes, croissants, pastéis doces, queijos e uma
variedade de cortes de carnes frias. Os homens de Gabriel não estão sentados
conosco, mas há comida suficiente para alimentar dez vezes o pequeno exército.
— Isso é muito, — eu protesto.
— Eu não sabia o que você poderia engolir. Além disso, não queria perder
tempo examinando um menu. Era mais fácil simplesmente pedir tudo.
— Os guardas podem comer conosco. Pelo menos nem toda a comida será
desperdiçada.
— Os guardas estão bem. — Ele se vira para o chefe dos garçons. —
Empacote tudo o que não comemos e entregue no abrigo para sem-teto.
— Certamente senhor.
Gabriel se vira para mim. — Pronto. Feliz?
— Devemos servir, senhor?
— Vamos dar um jeito,
obrigado.
O pessoal sai discretamente, nos
deixando sozinhos.
— Precisamos colocar um pouco de comida em seu corpo, —
diz ele. — O que você gosta?
— Apenas algumas frutas. — Eu olho para a comida. — Sinto
muito, mas o cheiro de todo o resto me deixa enjoada.
— Nunca se desculpe por como você se sente. — Ele se
levanta e coloca uma seleção de frutas em um prato, que leva
para a mesa. — Laranja? — Ele espetou um pedaço em um
garfo e o levou à minha boca. Pedaço por pedaço, ele me
alimenta até que metade do prato acabe e eu garanto que não
posso comer mais nada. — Você não comeu o suficiente em
Durban. — Sua expressão fica sombria. — Seu estômago
provavelmente encolheu. Teremos que consertar isso.
— É só a gravidez. Você não está com fome?
A maneira como seu olhar me percorre detona faíscas
na minha pele. Ele ainda me quer, e meu corpo não parou
de querer ele. Nem por um segundo. Nem mesmo depois
que ele me intimidou para esse casamento. O velho
condicionamento entra em ação. Minha calcinha fica úmida quando ele pega
minha mão e esfrega o polegar no meu pulso.
Tão rápido quanto ele pegou minha mão, ele a soltou. Um silêncio
desconfortável se segue enquanto ele se serve de um café da manhã inglês
completo e come enquanto eu bebo meu chá.
Ele só fala novamente quando empurra o prato vazio de lado. — Nós
precisamos conversar. Eu sei que você não quer isso, Valentina, mas não há
como voltar. Você me perguntou por que desisti da minha solteirice para te
proteger. Você vai ser a mãe do meu filho. Você e nosso filho são minha
responsabilidade e nunca tive medo de minhas responsabilidades. Você é família
agora. Sua dívida foi apagada. Você nunca mais terá que temer por sua vida ou
pela vida de Charlie novamente. Vamos ser uma família e sei que não será fácil.
Tudo que peço é que você tente. Não vou negar a você nada que esteja ao meu
alcance para dar. Peça e você terá tudo o que seu coração deseja.
Eu engulo no final de seu discurso. — Charlie e eu, não devemos nada
para você?
— Você não tem mais dívidas.
O que ele oferece é nobre, mas tenho que entender se somos iguais. — Você
está dizendo que eu sou livre?
Uma expressão de pedra substitui sua ternura anterior. — Não.
— Então, nada mudou em termos do que devo a você.
Ele se recosta na cadeira, colocando distância entre nós. —
Oh, mas fez. Tudo mudou. — Ele segura meus olhos. — Antes, eram
nove anos. Agora, é para sempre.
A declaração me assusta. Eu
mordo meu lábio para parar de
tremer. Que esperto. Ele mudou o jogo, as
regras e as implicações. O que eu pensei que um anel no meu dedo
significava? Ainda sou um brinquedo. A única diferença é que
desta vez é para toda a vida.
Inclinando sobre a mesa, ele agarra meu queixo, mas não há
nada de terno no gesto. É dominante e brusco. — Será mais fácil para
nós dois se você não deixar sua decepção aparecer tão
facilmente.
Com um movimento de cabeça, eu me liberto. — Por que
deve ser para sempre?
— Você é minha, Valentina. Eu nunca vou deixar você ir.
— Por quê? — Eu sussurro de novo, precisando tanto
entender que faz um buraco na minha alma.
— Eu não preciso de um motivo. Quando te vi pela
primeira vez no Napoli, eu queria você, então a tomei. Agora,
eu decidi ficar com você.
A xícara de chá está tremendo tanto na minha mão
que preciso largar. —E o que eu quero?
— Eu disse que faria tudo ao meu alcance para te
fazer feliz. Nosso tempo juntos não precisa ser
miserável. Isso pode ser bom. Basta aceitar do jeito que está e as coisas serão
mais fáceis para você.
A parte de mim que precisa ser amada se rebela. — Eu ainda sou sua
propriedade.
— Como minha esposa, você será respeitada e protegida.
— Contanto que eu fique.
Sua expressão escurece. — Você fugiu de mim uma vez, mas não vou
deixar você correr duas vezes. Na próxima vez que acontecer, a pessoa que vai
sofrer é Kris. Vou arruinar ela, quebrar tudo o que ela construiu em sua vida e
matá-la. Você entende?
A comida empurra de volta para minha garganta. Parece que uma faca está
se torcendo em meu estômago.
— Eu te fiz uma pergunta, Valentina.
Lágrimas embaçam minha visão. Eu não quero chorar na frente dele. Eu
não quero que ele saiba que tem um efeito sobre mim. Piscando para afastar a
umidade, dou a resposta que ele deseja em uma voz rouca de lágrimas
reprimidas. — Sim.
— Bom. — Empurrando sua cadeira para trás, ele dá a volta para o meu
lado da mesa e envolve seus braços em volta de mim. — Com o tempo, você vai
se acostumar com isso.
Eu não digo nada. Um conhecimento profundo me pressiona. Gabriel é um
homem de palavra. Ele fez o que disse que faria. Ele encontrou um
novo gatinho e, desta vez, não vai deixá-lo ir. Tudo o que posso fazer
é levantar uma barreira protetora ao redor do meu
coração. Para sobreviver a esse novo
arranjo, preciso ser forte, mas as
primeiras rachaduras já estão aparecendo. Ele
vai me quebrar, afinal.
UM HOMEM COMO EU, só pode sonhar pelas palavras que ela pronuncia,
mas elas me tiram de equilíbrio. Eu tropeço para trás, arrancando meu pau
muito rapidamente de sua bunda e a fazendo gemer. Ela congela. Suas costas
não estão mais subindo e descendo com a respiração pesada de antes. Ela
está tão chocada quanto eu. A declaração caiu de sua boca sem premeditação.
Ao contrário do meu tipo normal de mulher, ela não expressou o último
sentimento de afeto para me manipular, porque não há nada para manipular.
Seu destino está selado. O anel em seu dedo é a prova. Ela é minha, para
sempre, mas a espontaneidade das palavras não as torna mais verdadeiras do
que quando Sylvia ou Helga as pronunciavam. Isso é o que eu a treinei para
pensar. Acreditar. Sexo e emoções andam de mãos dadas para as mulheres.
Minha arma com Valentina sempre foi o sexo, e suas palavras confirmaram que
ganhei a guerra. No entanto, em vez de me sentir vitorioso, me sinto um idiota.
Uma aversão fria e sombria enche minhas entranhas.
Cobrindo seu corpo com o meu, cruzo meus braços ao redor dela
e dou a ela a única coisa que pode me fazer sentir melhor, a verdade.
— Você só pensa que me ama porque eu te treinei
assim. — Beijo seu pescoço para
suavizar a horrível verdade.
Finalmente, seu peito se expande
enquanto ela inala. Quando empurra para cima, eu não a
impeço.
Ela se vira em meus braços para me encarar. O orgulho se
choca com o embaraço em seus olhos lindos e grandes. — Você está
certo, — ela levanta o queixo, — porque eu te odeio mais.
Aí está, a verdade nua e crua, despojada de fingimentos
e uma versão embonecada de nosso relacionamento não
convencional quando o sexo é retirado da equação.
Eu seguro seu rosto. — Eu sei, linda.
A parte triste é que sim. Eu sempre soube. No minuto em
que a vi e decidi o que fazer com seu corpo, soube que ela me
odiaria. Eu só não estava preparado para o quanto doeria, e isso
é uma surpresa. Claro, me preocupo com ela como eu nunca me
preocupei com outra mulher, nem mesmo minha ex-mulher,
mas o plano sempre foi de manter a minha posição superior
de poder sobre ela. Os sentimentos não deveriam me
enfraquecer. Como eu poderia prever que essa mulher
pequena me faria sentir tantas coisas diferentes no
curto espaço de meio ano?
Estou invadindo seu espaço, não recuando para que ela possa se mover,
mas ela não está tentando escapar. Ela me encara bravamente com suas
bochechas pálidas e olhos embaçados. Eu reconheço a emoção nessa
expressão. Derrota. É o ponto em que ela percebe o quão completamente a
arruinei. Ela precisa de mim e odeia isso, mas não se esquiva da realidade. Ela
abraça a dor e a assume com o mesmo senso de sobrevivência que lhe permitiu
aceitar minha propriedade, desistir de seu sonho e carregar meu bebê
indesejado.
Em troca de sua vida e corpo, seus sonhos e um amor unilateral e
distorcido, envolvo meus braços em torno dela e dou conforto. Ela não se nega o
pouco que ofereço. Enterra o rosto no meu peito e se inclina contra mim, me
permitindo suportar seu peso. Eu a pego em meus braços e a coloco na água
antes de tirar a roupa e entrar na banheira. Eu a puxo de volta para o meu peito
para que sua cabeça repouse no meu ombro. A água cobre tudo, exceto as
pontas contraídas de seus seios que flutuam como cerejas sedutoras na água
perfumada. Eu coloco sabão na esponja e arrasto sobre seus ombros lisos e as
cristas de seus seios. Eu lavo suavemente entre suas pernas, onde ficará
sensível, e esfrego minhas mãos sobre os músculos tonificados de suas coxas. É
na barriga dela que fico mais tempo, cruzando as mãos em torno do milagre que
se desenvolve em seu ventre.
Estou surpreso que ela me permita tocá-la e pateticamente grato. Não
consegui chegar perto de Sylvia desde o minuto em que ela
engravidou até o dia em que Carly nasceu. Relutante em
interromper o momento, não tenho escolha
quando a água começa a esfriar. Eu
puxo a tampa, a ajudo a sair da
banheira e entrego uma toalha. Nós nos
vestimos em silêncio, ambos perdidos em nossos pensamentos.
Quando olho para ela, meu coração se enche de uma tristeza
intensa e avassaladora. Contra a extensão da janela, ela parece
perdida e incrivelmente negligenciada, uma noiva em minhas roupas
enormes. Frágil, danificada e irreparavelmente quebrada.
— Venha para cama. — É meio-dia, mas quero abraçá-
la.
Ela pisca como se estivesse voltando de algum lugar
distante. Eu não gosto disso. Mesmo os momentos em que ela
se retrai em sua cabeça estão muito distantes para o meu
gosto. Com as montanhas e a natureza selvagem como pano de
fundo, ela é terrivelmente frágil. Pequena e vulnerável. O
aumento de sua cintura me lembra que sua condição delicada
a torna dez vezes mais frágil. Uma sensação avassaladora de
proteção me consome. O medo de que algo aconteça com ela
ou de que eu possa perdê-la me dá uma sensação de
queimação na garganta. O pensamento das mãos de
alguém sobre ela além das minhas vai me deixar de
joelhos.
De repente, preciso saber. Disse a mim mesmo que se pudesse tê-la de
volta, seria o suficiente, que não faria perguntas, mas não sou forte o suficiente
para manter minha intenção.
— Em Durban, você tocou em outro homem?
Ela me lança um olhar assustado. — Não.
— Ninguém?
— O único homem que já me tocou foi você. — Ela parece
desconfortável. — Exceto por aquela vez.
Eu cruzo o chão e beijo seus lábios para a calar. Eu não quero que ela
pense sobre o estupro. Devido a toda a minha energia estar concentrada em
encontrar minha garota fugitiva, não fiz progresso no rastreamento de seus
agressores. Chega desses pensamentos. Levei seu corpo com força, e ela precisa
descansar. Talvez eu precise abraçar ela mais do que ela precisa, mas não
importa. Eu pego sua mão e a puxo para baixo ao meu lado na cama. Totalmente
vestido, coloco meus braços em volta dela e a embalo contra o meu corpo. Ela
relaxa, seus membros se moldando ao redor dos meus como peças de um
quebra-cabeça que se encaixam perfeitamente.
— O que você gostaria de fazer mais tarde? — Eu pergunto, acariciando
seus cabelos.
— Isso é o suficiente, Gabriel.
Eu beijo o topo de sua cabeça. Isso nunca pode ser suficiente. Eu nunca
consigo me fartar dela, e isso me assusta pra caralho.
Tiramos um cochilo de algumas horas, almoçamos tarde e
fazemos uma das caminhadas curtas até a
cachoeira, depois de verificar com o
guia do hotel que a caminhada não é
muito cansativa para minha esposa grávida. O
ar e o exercício fazem bem a nós dois. Eu precisava limpar minha
cabeça da revelação de amor e ódio de Valentina, e ela tem um
brilho em suas bochechas muito pálidas quando voltamos ao pôr do
sol. Não desejando compartilhar ela com outras pessoas, eu
egoisticamente peço que o jantar seja servido em frente à lareira em
nosso quarto. Quando a equipe limpa a louça e atiça o fogo,
jogamos uma partida de Scrabble. Nosso comportamento me
parece estranho. Isso não é algo que eu jamais teria feito com
Sylvia, e certamente não em uma lua de mel, mas não somos
um casal normal comemorando nossos votos recém-feitos.
Mesmo que minha necessidade por Valentina já seja forte
de novo, eu a levo para a cama sem transar com ela. Em seu
estado frágil, estou preocupado em deixá-la cansada, e depois
da maratona desta manhã, esta noite parece muito cedo.
Apesar de não satisfazer meu desejo sexual, estou total e
estranhamente contente em simplesmente dormir ao lado
dela, uma primeira vez para mim.
Quando o sol me acorda com um brilho pálido que
penetra pelas grandes janelas de nosso quarto, não
posso fingir que nosso castelo de vidro no topo da montanha é para sempre por
mais tempo. O conto de fadas da noite passada acabou. É hora de voltar à
realidade e a todos os problemas que nossa nova situação trará, incluindo dar a
notícia a Magda e Carly. Começo com Magda, enviando uma mensagem de texto
para informar a ela que somos casados. Deixe que ela faça o que quiser.
Valentina esta quieta no caminho para casa. A primeira coisa que ela faz
quando chegamos é checar Charlie. Sua preocupação era por nada. Ele está em
seu elemento, jogando cartas com os guardas de folga nos aposentos dos
funcionários. A caminhada até a casa parece uma boa hora para falar sobre
como vamos morar.
— Charlie vai morar conosco de agora em diante.
Ela para de repente e fica boquiaberta.
— Você não está feliz?
— Claro que estou. Eu apenas presumi que ele voltaria para Kris.
— Você é minha esposa. Isso o torna família. Ele pode pegar um dos
quartos lá em cima. Vou mandar alguém buscar suas coisas, hoje. Você pode se
encarregar de redecorar ou o que quer que vocês mulheres façam.
— Obrigada. — Ela aperta meus dedos.
Eu levo a mão dela à minha boca e beijo suas juntas. — Eu não quero que
você faça nada extenuante enquanto estiver grávida. Sem trabalho físico.
— Estou grávida, não doente.
— Não vou correr riscos com a sua saúde.
No meu tom severo, ela permanece quieta.
A consultora de roupas está esperando por
nós em casa com uma seleção de
roupas de gravidez para Valentina
escolher. Achei mais fácil para ela fazer
compras em casa do que se cansar caçando roupas. Não era minha
intenção ficar enquanto ela experimentava alguns dos vestidos,
mas encontro uma alegria tremenda em me sentar no sofá enquanto
ela desfila para mim. Sendo conservadora em seus gastos, eu tenho
que convencê-la a usar mais do que calças com cós ajustáveis e sapatos
fechados. Meus favoritos são os que se ajustam. Eles vão vai
mostrar sua barriga lindamente. Sentado ali e olhando para
ela, meu peito se expande de orgulho. Ela vai me fazer um pai,
um presente precioso que pensei que nunca mais teria.
Sem a consultora, entrego a Valentina as ideias que anotei
para que ela iniciasse um programa de resgate de animais, bem
como um novo telefone. Ela é uma mulher brilhante e
ambiciosa. A última coisa que quero é que ela fique entediada.
Recontratamos nossa antiga empresa de limpeza e um garçom
para as refeições noturnas, e Marie está de volta à
cozinha. Minha esposa não vai sujar as mãos como foi
forçada a fazer quando minha mãe a fez nossa
empregada.
Pensando no diabo, Magda entra na sala enquanto Valentina me diz que
vai subir para trocar de roupa.
— Val. — Magda se aproxima rigidamente. Ela não abraça Valentina ou
beija sua bochecha como fez com Sylvia quando eu a trouxe para casa depois do
nosso casamento, mas faz um esforço para ser educada. — Bem-vinda de volta.
— Ela mexe na barriga de Valentina. — Como você está?
A mão da minha pequena esposa se dobra sobre a barriga de maneira
protetora. — Estou bem, obrigada, Sra. Louw.
— Me chame de Magda. Somos uma família agora.
— Tudo bem, Magda.
Magda passa as mãos no vestido. — Vou ser brutalmente honesta, porque
não há outra maneira de dizer isso. Não estou feliz com a virada dos
acontecimentos, mas seja qual for o nosso passado, seja qual for a sua dívida,
isso ficou para trás. Você é uma Louw, agora, e a família vem em primeiro lugar.
Você terá todos os benefícios que acompanham nosso nome e, em troca, espero
que seja leal. Entendido?
— Sim.
Magda está preocupada que Valentina nos delate para as pessoas erradas
no governo, pessoas que cumprem a lei, ou pior, nossos inimigos.
Passei o braço pela cintura de Valentina. — Ela entende.
— Bom. — Magda olha entre nós. — Eu também não estou feliz com a
maneira como você escapou para se casar. E assim. — Ela aponta
para o traje de Valentina e enruga o nariz. — Sério, Gabriel, que
vergonha você fazer uma dama se casar com você
em tal estado. Deveria ter sido feito
corretamente, em uma igreja, com
convidados e com a exposição pública que meu
filho merece. O melhor que podemos fazer agora é um anúncio no
jornal.
Eu não discuto, porque ela está certa. Que vergonha. Como
qualquer outra mulher, Valentina merecia um lindo vestido branco,
flores, um bolo de três camadas e os nove metros inteiros de véu, mas
eu estava frenético demais para garantir sua segurança. Além
disso, eu queria aquelas algemas invisíveis com ela no segundo
em que ela estivesse de volta na minha cama, onde ela
pertence.
— Bem, então, — Magda dá um aceno de cabeça apertado,
— grite se precisar de alguma coisa.
Quando a presença sufocante de minha mãe se vai, coloco
minhas mãos nos ombros de Valentina e a viro para mim. Seus
músculos afrouxam quando a tensão deixa seu corpo. Magda
a deixa nervosa.
Eu passo o polegar sobre a pele lisa de sua
bochecha. — Eu tenho negócios para cuidar esta tarde,
e não estarei em casa para o jantar. Vou até a casa de
Sylvia para dar a notícia a Carly.
Apreensão enche seus olhos. — Como ela vai reagir?
— Ela vai ficar bem. — Dou-lhe um aperto reconfortante, mesmo que tenha
minhas dúvidas. — Se você for para a casa de Kris, ou qualquer outro lugar, os
guardas irão com você.
Ela não contesta a nova invasão de sua privacidade. Valentina já sabe
quando uma batalha não vale a pena lutar.
Eu a beijo levemente. — Me ligue se precisar de mim ou se não estiver se
sentindo bem.
— Eu vou ficar bem, — diz ela em tom sério.
Eu rio e a beijo novamente. Ela vai ficar. É forte demais para ser outra
coisa.
Valentina
Gabriel
NO CAMINHO PARA Berea ligo para Dorothy Botha. A psiquiatra me
cumprimenta pelo nome quando ela atende.
Eu mergulho direto. — Eu preciso de um conselho. Quando é uma boa
hora para ligar?
— Você pode falar. Eu não estou com um paciente.
— Eu preciso dar notícias importantes para Carly, e estava me
perguntando como fazer isso.
— Que tipo de notícia?
— Eu me casei e minha esposa está grávida.
Segue um silêncio. — Carly sabe sobre seu relacionamento?
— Nós o mantivemos em
segredo. Ela era nossa empregada.
— Eu vejo. — O silêncio se
estende ainda mais. — Carly gosta dela?
—Vamos apenas dizer que ela não a odeia. Depois do que
você disse sobre a insegurança de Carly em perder a mim ou sua
mãe para um novo cônjuge, quero ter certeza de que lidei com
isso corretamente.
— Receio que seja tarde demais. Você agiu mal no minuto
em que decidiu se casar em segredo. Carly não fez parte do
relacionamento que se desenrolava ou dos eventos que levaram
à sua decisão.
— As coisas estavam complicadas. O que você sugere?
— Em uma situação como essa, eu diria que você deve ser
honesto.
— Impossível. Este não é um conto de fadas cor de rosa,
Sra. Botha.
— Se você não pode contar todos os fatos, seja o mais
honesto possível. Diga a Carly por que você a excluiu e seja
franco sobre seus sentimentos. Pode ajudá-la a expressar
o que sente a respeito de sua decisão
precipitada. Espere uma reação negativa e, faça o que
fizer, não fique chateado. O que ela precisa é de amor e compreensão. Dê a ela
tempo para lidar com as notícias e se ajustar, mas deixe claro que sua decisão
não mudará, se for o caso. É importante mostrar estabilidade a ela e assegurar
que seu amor por ela não será afetado.
— Então, eu apenas deixo escapar?
— Não, você usa tato. Dê a ela um aviso para prepará-la, algo como, 'Carly,
você se lembra da Sra. Fulano de Tal?'
— Entendi.
— Boa sorte. Vou conversar com Carly sobre isso durante nossa próxima
sessão.
— Obrigado.
— O prazer é meu. Ah, e parabéns.
Esfrego os músculos doloridos do pescoço quando ela desliga. Como já
disse a mim mesmo tantas vezes nos últimos dias, a culpa é minha.
A primeira coisa na minha agenda é dar uma palavrinha com Jerry. Tenho
procurado por ele desde o roubo no antigo apartamento de Valentina, o
apartamento de solteiro sujo que agora possuo. A barata está se escondendo
desde o dia em que peguei Valentina, mas agora que Magda o encontrou, ele
rastejou para fora dos canos, pensando que estava a salvo de mim. Há coisas
que não combinam e eu quero respostas.
De acordo com minhas instruções, Rhett e Quincy seguem no Mercedes.
Eu precisava de privacidade para a ligação que fiz para a Sra.
Botha. Eles estacionam atrás de mim em frente ao prédio de
Jerry. Os mendigos na calçada reconhecem meu
rosto. Eles se espalham quando eu
saio. Das janelas mais altas, as mães
gritam em xhosa e sotho4 para que seus filhos
corram para dentro.
Scott, o guarda-costas de minha mãe, sai do Mercedes com
meus dois caras. Este não era o plano.
Ele me cumprimenta com um breve aceno de cabeça. —
Senhor Louw.
— Scott, — eu digo, reconhecendo-o e me viro para
Rhett. — Qual é o significado disto?
— Sra. Louw o mandou conosco.
Minha mãe nunca mandou uma babá antes, e ela não
mandou Scott por preocupação maternal com meu bem-
estar. Já estive em situações muito mais perigosas do que
essa. Em todo caso, estamos aqui e não quero perder tempo.
— Quincy, fique com os carros, — eu instruo. Podemos
ser temidos, mas algum idiota burro ou adolescente drogado
pode enfiar na cabeça no roubo de veículos ou pneus.
— Sim chefe. — Ele pega sua arma, se certificando
de que está visível.
5 Guarda mato é a
designação de uma peça que circunda o gatilho
de uma arma de fogo, protegendo-o de
contaminações externas, e o usuário de um
disparo acidental.
6
Gabriel
Gabriel
MEUS HOMENS ME informam do desentendimento de
minha esposa com Agatha Murray. É acidental, ou eu teria
encontrado uma ligação para ou do número de Agatha no
telefone de Valentina. Sim, sou um canalha. Verifico as
ligações de minha esposa, mas é tanto para a proteção
dela quanto para minha paz de espírito. Nosso negócio é perigoso. Mesmo que a
maioria dos homens siga as regras e apenas um idiota maluco encostaria o dedo
em minha esposa, sempre há os loucos que cruzariam a linha. Além disso, ela
ainda é uma esposa forçada, que mantenho sob controle pelo prazer e das
ameaças, e prefiro ser prudente quando um membro da família mafiosa como
Agatha entra de repente no palco.
Não querendo levantar o assunto na frente de Magda, procuro Valentina
depois do café da manhã. Ela sai do quarto de Charlie com um cesto de roupa
suja. Que diabos? A coisa é tão grande que bloqueia sua visão. Ela quase bate
em mim. A colisão só é evitada porque a agarro pela cintura.
A preocupação faz minha voz parecer zangada. — O que você está fazendo?
Ela pisca. Seus olhos grandes e inocentes estão arregalados. —
Lavanderia.
Pego a cesta de suas mãos. — Você não deve carregar coisas pesadas. —
Esqueça isso. — Você não deveria lavar a roupa.
Um doce sorriso flerta com seus lábios. Eles são cheios e rosa, e beijáveis.
— Não há nada de errado com minhas mãos.
— Eu não me importo. Temos um serviço para isso.
— Não seja difícil.
— Você não viu difícil, ainda. — Eu coloco a cesta de lado, enredo minha
mão em seu cabelo e a arrasto para mim. — Eu posso mostrar a você, mas vai
custar suas lágrimas e prazer.
Esses lábios macios se abrem. Ela geme. Uma ondulação
suave corre pela pele delicada de sua garganta
enquanto ela engole. Quando eu
puxo sua cabeça mais para trás para
olhar nas piscinas escuras de seus olhos, ela
afunda contra mim, seu corpo quente e flexível. Suas pupilas
dilatam um pouco e seu olhar se torna lascivo.
Minhas palavras a excitaram. Eu, não há palavra para definir
o que sou. Combustão, talvez. Explodindo. Preso entre nossos
corpos, meu pau pulsa contra seu estômago, mostrando como ela me
afeta. O que eu quero é arrancar suas roupas e transar com
ela bem aqui contra a parede. Posso ficar louco se não o fizer.
Arrastando meus lábios sobre sua garganta, eu beijo um
caminho até sua mandíbula. — Você gostaria disso,
linda? Você quer um pouco de dor com o seu prazer?
Sua respiração fica presa. — Sim.
Eu roço o lóbulo de sua orelha com meus dentes. — Por
quê?
— Porque é bom.
O sádico em mim ruge. Eu quero bater nela, chicoteá-
la, usar o cinto nela, mas não enquanto ela estiver
grávida. A confirmação de que ela quer isso é o
suficiente. Soltando seu cabelo, pego seu rosto entre as
palmas das mãos e aperto nossas bocas juntas. Minha
língua atravessa seus lábios sem esperar que ela abra. Ela geme, e eu engulo
cada som. Minha mão se move sob seu vestido, encontrando o elástico de sua
calcinha. Meus dedos estão a um fio de cabelo de penetrar em sua boceta quando
alguém limpa a garganta atrás de mim.
Porra. Agora não. Eu deixei os lábios de Valentina irem com um som
próximo a um rosnado, bloqueando seu corpo com o meu até que eu abaixei seu
vestido para proteger seu pudor.
Magda passa por nós com uma carranca. — Você tem um quarto, pelo
amor de Deus.
Aquilo foi um balde de água fria no nosso momento. As bochechas de
Valentina queimam como lâmpadas. Ela desvia os olhos e puxa uma mecha de
cabelo atrás da orelha.
— Temos uma reunião em dez minutos, — Magda chama do final do
corredor.
Pegando a mão de minha esposa, eu entrelaço nossos dedos. — Chega de
lavanderia ou trabalho doméstico.
— Lavar roupa não é um trabalho árduo.
Meu tom não deixa espaço para discussão. — Sem lavar roupa.
Ela consente com um bufar.
— Meus homens me disseram que você encontrou Agatha Murray ontem.
— Oh. — Sua testa franze, como se a lembrança fosse desagradável. —
Sim.
— Você parece chateada. O que ela disse para você?
— Não foi nada.
— Valentina, não minta para
mim.
— Nada importante, de qualquer
maneira.
— É para mim.
Seus ombros caem. — Você é impossível.
Eu pego sua outra mão e puxo seu corpo contra o meu. —
Tenho uma videoconferência em cinco minutos. Comece a falar.
Um suspiro move seus seios contra meu peito. — Ela
disse que os portugueses ameaçaram a família de Lambert com
uma guerra se eles me acolhessem. Aparentemente, ele foi
subornado para não se casar comigo.
Cada músculo do meu corpo fica tenso. O que diabos eu
faço com a informação? É como suspeitei. Lambert não deu as
costas para sua noiva prometida porque ele não a queria. Ele foi
forçado. A questão é por quê.
O beijo que coloco em seus lábios é gentil. É minha
maneira de recompensar sua honestidade. — Seja uma boa
menina hoje. Te vejo no almoço. — Eu aperto suas mãos e
a liberto.
— Gabriel?
Eu sorrio como um adolescente. Deus, adoro quando ela diz meu nome,
principalmente com aquela pontinha de timidez, como se estivesse prestes a me
pedir alguma coisa e achasse que vou recusar. Se ela apenas souber que
arrancaria minhas bolas por ela.
— Valentina? — Eu deixei o nome dela rolar na minha língua.
— Não estarei aqui para almoçar hoje.
— Onde você vai?
— Vou ver a Kris. Com todas as extensões do consultório... — Ela torce as
mãos.
— O que é isso?
— Ela quer que eu trabalhe com ela novamente.
Kris fez o que eu pedi a ela. Isso vai ser bom para minha garota. Ela não é
do tipo que fica em casa. — Você quer?
— Gostaria disso.
— Bom.
Seu rosto se ilumina. Tudo brilha de seus olhos ao rubor feliz em suas
bochechas. — Mesmo?
— Mesmo. Fique segura.
Seu olhar fica sério. — Você também.
Meu pau se enfurece em protesto enquanto me afasto dela. Terminei.
Acabado. Chicoteado. Não há mais como me afastar dela. Nunca. Eu não posso
existir sem esse pedaço de mulher.
Valentina
DIRIGIR PARA CASA PASSA em uma névoa. Não consigo lembrar se parei
em algum semáforo. Só consigo pensar que Jerry está morto por minha causa,
e meu marido o matou. Sim, Jerry foi um canalha que me colocou nessa situação
terrível, mas isso não significa que ele merecia morrer.
Coloco o desenho favorito de Charlie em seu quarto e corro para o
escritório de Gabriel, sem me importar se meu rosto está manchado de lágrimas
ou se meu rímel está escorrendo. Gabriel levanta os olhos quando abro a porta.
O sorriso congela em seu rosto quando ele me observa. Ele fica de pé, o vacilo
sempre presente revelando a tensão que a ação coloca em sua perna.
— Como você pode? — Eu choro.
— Valentina. — Sua voz é áspera, autoritária. — Se acalme.
— Não me diga para me acalmar. Você matou Jerry!
Uma mistura de simpatia e pesar suaviza suas feições. — Quem te contou?
— Está no noticiário. — A última coisa que quero é implicar Kris.
Contornando sua mesa, ele pega meus ombros. — Eu deveria
ter contado para você, mas eu não queria te chatear.
— Por quê? Foi porque ele me
deu um carro?
— Não é o que você pensa.
Eu bato minhas palmas em seu peito. — Seu filho
da puta.
Ele segura meus pulsos. — Se acalme, por favor, ou serei
forçado a te amarrar.
Com isso, eu paro. Gabriel nunca faz ameaças inúteis.
— Você vai ficar quieta se eu te deixar ir? — Ele parece
genuinamente preocupado. — Todos esses gritos e choro
não podem ser bons para o bebê.
Eu quero odiar ele, mas não posso. Nem mesmo quando
acho que ele atirou em Jerry. Meus ombros caem.
— Você vai ouvir? — Ele pergunta.
— Sim.
— Calmamente, — ele insiste.
Eu não tenho escolha a não ser concordar. —
Calmamente.
Ele me solta lentamente, me testando. Quando eu
não me movo, ele passa os polegares nas minhas
bochechas, enxugando as lágrimas. — Foi Scott quem
atirou em Jerry.
— O guarda-costas de Magda?
— Sim.
— Por quê?
Ele respira fundo e o segura por um momento.
— Me diga, — eu insisto. — A verdade.
— Ele ajudou você a correr, e não deveria. Ela tinha que fazer dele um
exemplo.
Há dúvida na maneira como ele fala as palavras. Tenho a sensação de que
ele não acredita em si mesmo. — Você estava lá?
— Sim, — ele diz gravemente.
Empurrando suas mãos, eu cubro meu rosto. — Oh, meu Deus, Gabriel. É
minha culpa. Ele morreu por minha causa. Por que você não parou Scott?
— Ele não me deu chance. Valentina, olhe para mim. — Ele agarra meus
braços e afasta minhas mãos do meu rosto. — Jerry não era nenhum santo. Ele
colocou Charlie nessa confusão.
Minha aparência é cortante. — Você quer dizer que ele me escravizou.
Seus olhos de geleira ficam duros e seu aperto aumenta a ponto de doer. —
Você não entende o significado da palavra escravo. Eu fiz de você uma princesa,
mas se você quiser ser tratada como uma escrava, isso pode ser arranjado.
De todas as verdades duras e frias, esta é a mais profunda, porque é mais
uma afirmação do que Kris vive me dizendo. Gabriel não me ama. Eu sou um
objeto. Ele pode me transformar de princesa em escrava conforme
seu humor muda.
A dor em meu coração me faz atacar ele com
raiva. — O que eu quero não
importa, de qualquer maneira. Você
vai fazer comigo o que quiser.
— O que você é para mim está inteiramente em suas
mãos. Você pode viver com conforto e ser querida ou ser
acorrentada em meu porão e dormir em uma gaiola.
— Mas eu nunca poderei sair.
— Não, você nunca pode sair.
— Então eu não sou nada além de sua prisioneira.
— Essa é uma maneira de ver. A outra maneira de ver as
coisas é que você é minha esposa.
Soluços saem do meu peito e chegam aos meus
lábios. Eu estava indo tão bem no faz de contas até algumas
horas atrás. Como pode doer tanto? Por que eu não escutei
Kris? Por que me tornei vulnerável? Agora é tarde demais. Eu me
apaixonei por ele, e dói para caralho que ele não sente o mesmo
por mim.
—E u não entendo. — Eu envolvo meus braços em volta
de mim e dou um passo para trás. — Por que eu? Por que
você está fazendo isso comigo?
Ele elimina o espaço entre nós com um passo
fácil. — Eu já te disse, não preciso de um motivo.
— Te odeio! — Eu acentuo a declaração com um punho em seu peito.
Suas palavras são ternas, compassivas. — Já estabelecemos isso.
Não tenho mais forças para lutar sozinha. Eu não posso lutar contra ele e
eu. Ele fez eu me apaixonar por ele sabendo que nunca me amará de volta. Como
pode um homem ser tão cruel?
— Por favor, Gabriel, se você sente alguma coisa por mim, qualquer coisa,
me liberte. — É minha única esperança de salvar o que resta do meu coração.
Ele envolve seus braços em volta de mim e me puxa para perto, com
cuidado, como se eu tivesse asas de papel de arroz. O abraço é o que ele oferece.
Esta é a sua resposta. Ele não vai me libertar. O que recebo em troca de amor é
um abraço de consolação.
— Eu te odeio, — eu digo, soluçando em seus braços, me odiando mais
porque eu não consigo nem mesmo dizer as palavras malditas.
Ele beija o topo da minha cabeça. — Estou com você, querida.
O homem que inflige a dor é o homem que oferece o bálsamo, me segurando
contra o calor de seu corpo e sussurrando palavras suaves em meu ouvido.
Gabriel é uma constante que nunca muda. Ele cuida de mim agora como faz
depois de me chicotear com o cinto ou a palma da mão. Seu comportamento
quando me machuca emocionalmente é o mesmo de quando ele me tortura
fisicamente. Não tenho forças para não aceitar este ramo de oliveira que ele
oferece. Não tenho forças para não cair nele. Como sempre, ele está lá para me
pegar e carregar através de sua crueldade. Enquanto ele me levanta
em seus braços e se move em direção às escadas, eu já lamento
minha rendição.
Gabriel
Valentina
Gabriel
MINHA VISÃO SE DESFAZ nas bordas. Quem é essa garota má? Carly
sempre foi difícil, mas esse desrespeito cruza uma nova linha. O chá espirra nas
bordas quando bato o copo na mesa. Em dois passos estou ao lado de Carly,
puxando-a pelo braço. Ela me olha assustada, sua atitude arrogante se
esvaindo. Magda larga seu livro e se senta.
— Papai!
Carly protesta enquanto eu a arrasto pelas portas deslizantes de volta para
a casa. É hora de nós dois termos uma conversa. Não como a conversa que
tivemos no carro. Uma conversa séria.
A primeira sala disponível é a sala de leitura. Eu a empurro para dentro e
estou prestes a bater à porta quando Valentina entra correndo.
— Agora não, — eu rosno. — Isso é entre Carly e eu.
Sua mão macia no meu braço me faz parar, e é o olhar em seus olhos que
me faz vacilar. Não consigo resistir a esse apelo de olhos arregalados.
— Apenas cinco minutos, — ela diz.
Educar Carly nos bons modos é minha responsabilidade, mas
também é direito de Valentina se defender. Com muita
dificuldade, saio da sala, mas não
consigo me mover além da porta
onde paro para escutar sem vergonha.
— Você está chateada, — diz Valentina.
— Claro que estou.
— Compreendo. Deve ser difícil lidar com as notícias sobre
o bebê. Foi um choque para mim também.
— Você só engravidou para prender meu pai.
— Foi um acidente que nenhum de nós planejou.
Há lágrimas na voz de Carly. — Há quanto tempo você
está dormindo com ele?
— Isso é privado, — responde Valentina gentilmente, —
e não é da sua conta.
— Você o seduziu?
— Não.
— Então o que?
— Não entendo sua pergunta.
— Ele disse que você não pediu por isso. — Há um longo
silêncio antes de Carly falar novamente. — Ele... forçou
você?
Meu coração para de bater. Valentina me
odeia. Ela não tem motivo para proteger minha filha
da verdade nua e crua. Sim, eu a forcei. Eu a fiz implorar primeiro, mas não dei
escolha. Na verdade, não.
O tremor na voz de Valentina é tão diminuto, se eu não a conhecesse tão
bem como eu conheço, teria perdido. — Por que você perguntaria isso?
— Aconteceu com amigos da minha mãe. A empregada está grávida do filho
do marido e disse que não teve escolha porque ele a forçou.
A voz de Valentina é firme e tranquilizadora. — Isso não aconteceu
conosco.
— Ele não... estuprou você?
— Absolutamente não. Por favor, não pense em seu pai dessa maneira.
— Então, você não é uma vítima.
— Não, eu não sou.
— Se você não é uma vítima, não posso sentir pena de você.
— Não estou pedindo que sinta pena de mim. Estou pedindo que você
tente, por nós nos entendermos.
— Por quê? Por que eu deveria? Eu nem gosto de você. Você é de classe
baixa e pobre.
— Justo. Então tente pelo bem do seu pai.
— Não estou fazendo nada por ele. Ele não falou comigo antes de se casar
com você para ver como eu me sentiria, então por que devo considerar seus
sentimentos?
— Ele te ama, Carly. Não o afaste. Se colocarmos um pouco
de esforço nisso, todos podemos nos dar bem.
— Me dê um, um bom motivo para eu me
dar bem com você?
— Você vai ter um irmãozinho
ou irmãzinha. Isso não conta para nada?
Carly fica quieta. Por vários segundos, nem uma delas
fala. Finalmente, Carly diz com a voz quebrada. — Sempre quis
um irmão ou irmã, mas não de você.
— Não podemos mudar quem sou eu, mas tenho certeza de
que este bebê vai adorar ter uma irmã mais velha.
Carly funga. — Você acha?
— Eu acho. Eu esperava que você me ajudasse com
algumas compras de bebê.
— Esses sapatos minúsculos e pijamas de orelha de
coelho fofos?
Valentina ri. — E um ursinho de pelúcia. Todo bebê precisa
de um ursinho.
— Oh, meu Deus, eu sei exatamente para onde ir. A irmã
mais velha de Tammy teve um bebê no mês passado. Você
deveria ver os vestidos bonitos para bebês e as bandanas
combinando que compramos para ela. Posso ajudar com o
quarto?
— Sim, você pode.
— Não a pintura, entretanto. Ah, e não vou trocar fraldas.
— Sem tinta. Sem fraldas. Entendi.
Carly balbucia animadamente sobre talco para bebês, celulares e
cobertores.
Pela primeira vez em meses, ouço Carly rir. Eu inclino minha cabeça
contra a parede e engulo em seco. Não mereço o encobrimento de Valentina, mas
aceito assim mesmo.
Valentina
Gabriel
O MÊS QUE SE segue é o mais feliz da minha vida. Tive
contratempos com Carly, mas nosso relacionamento nunca foi
melhor. Ela visita todo fim de semana. Valentina sugeriu que ela
escolhesse um quarto e o decorasse ela mesma, o que Carly
apreciou. Comemoramos seu décimo sétimo aniversário com
um almoço tranquilo em casa, e depois ela fez compras
para bebês com Valentina. Embora nunca veja Valentina
pelos meus olhos, elas estão se dando bem,
principalmente devido aos esforços de Valentina, pelos quais sou eternamente
grato.
Os negócios estão calmos, para variar. Magda finalmente aceitou minha
decisão de me mudar e, desta vez, não estamos batendo cabeças. A distância é
o que precisávamos. É melhor não vivermos sob o mesmo teto. Quincy e Rhett
adoram minha esposa, e apenas sua atenção devotada a mim e a mim sozinho
me faz engolir meu ciúme. Instalamos uma porta entre nosso quarto e o berçário,
e Valentina comprou a tinta. Verde claro. Tenho certeza de que é só para irritar
Magda, mas estou dentro.
No que diz respeito ao mundo, somos recém-casados. Inferno, no que me
diz respeito, isso é o mais normal possível. Não consigo manter minhas mãos
longe dela, e ela precisa dos meus avanços invasivos. Posso amá-la muito ou
segurá-la em meus braços assistindo a um filme. Não importa se estamos
nadando com Charlie ou limpando a mesa após as refeições, adoro cada minuto
com ela. Eu amo a maneira como sua barriga incha com a vida que criamos.
Cada vez que olho para ela, tenho esse medo terrível de que não seja real, de que
seja bom demais para durar. Como uma pessoa influenciada, flutuo na nuvem
que criei, cego para qualquer coisa, exceto para o prazer de minha esposa e
minha própria euforia.
Em uma daquelas manhãs quentes e ensolaradas de inverno pelas quais
Highveld é famosa, estamos relaxando à beira da piscina coberta. Estou com as
pernas de Valentina no colo, massageando seus pés. Ela geme
enquanto eu trabalho em seus pontos de pressão. Eu roubo olhares
para seu corpo de biquíni. Com sua barriga de seis
meses, ela parece um pináculo de
força e vulnerabilidade. Charlie
descobriu o amor pela água. Ele é um nadador
forte. Mesmo assim, eu mantenho um olho sobre ele quando ele
está fazendo voltas do superficial para o fundo da piscina. Mais
tarde, vou buscar Carly para o fim de semana. Temos um churrasco
planejado. Somos apenas nós, Rhett e Quincy, e algumas amigas de
Carly. Depois, o plano é relaxar com alguns filmes. Estou ansioso pela
tarde. O tempo discreto e familiar é exatamente o que eu
preciso. Oscar pula da minha toalha enquanto meu telefone
vibra.
Eu verifico a tela. Sylvia. Carly deve estar atrasada,
como sempre. Eu aperto o botão para responder e encontro um
ruído tão estranho e bizarro que minha mente se recusa
a identificar. Eu me sento, todos os músculos ficando tensos.
— Sylvia?
Uma série de palavras incoerentes misturadas com
soluços histéricos se seguem. Afasto os pés de Valentina e fico
de pé, minha única consciência é a dor aguda que atinge
meu quadril e a dormência que se instala em meu
coração.
— Sylvia, respire fundo e me diga o que está acontecendo.
Seus soluços ficam mais distantes. Ouço um ruído de arranhar antes de
outra voz entrar na linha.
— Senhor Louw?
— Quem é você? O que está acontecendo?
— Eu sou um paramédico, senhor. A Senhora Louw não está em condições
de falar agora. Temos que pedir que você venha à Clínica Garden.
— O que aconteceu? Quem está ferido?
— É sua filha, senhor. — Há uma pausa curta e assustadora, e então as
palavras que não consigo enfrentar. — Sinto muitíssimo.
10
Gabriel
TÃO JOVEM.
Seu rosto parece angelical. Pacífica.
O médico puxa o lençol para cobri-la. — Nós tomamos providências para
que ela seja transportada para o necrotério. — Ele me entrega uma bolsa de
hospital com os pertences dela. — Sinto muito pela sua perda.
Eu aceno sem desviar meus olhos da forma sob o lençol.
— Quando você estiver pronto, — ele diz.
A porta se fecha com um clique
agradável. Por fim, estou sozinho
com minha garota. Eu movo o lençol
de lado para pegar a mão dela. Sua pele está
fria quando pressiono meus lábios nela.
— Sinto muito por ter falhado com você, Carly.
Minha voz falha. Lágrimas escaldantes queimam meu rosto e
escorrem pelo meu pescoço até a gola da minha camisa. Por dentro,
sou polpa. Um hematoma espesso. É apenas meu condicionamento
que me permite construir uma parede estoica do lado de
fora. Já tirei muitas vidas, mas nunca perdi uma. Meu pai,
sim, mas isso era diferente. Não éramos próximos. Nunca fui
cortado, exposto e deixado vulnerável. Sou uma concha vazia
de fraqueza, presa fácil para qualquer inimigo, e desafio todos
eles a me enfrentar, me tirar e acabar com essa miséria da qual
sou o único culpado.
Eu falhei.
Onde é que eu me enganei? Fui muito duro com
ela? Muito suave? Por que eu não vi isso chegando? Passei
muito pouco tempo com ela? Eu estava muito
egocêntrico? Foi meu estilo de vida? Ela descobriu
o que eu faço para viver? Eu deveria ter recusado
quando ela disse que estava voltando para a mãe. Eu
nunca deveria ter a levado para casa no dia em que ela confrontou Valentina
antes mesmo de começarmos o churrasco. Eu deveria ter insistido para que ela
ficasse. Eu deveria ter forçado-a a falar. Eu deveria ter sido mais paciente. Eu
deveria ter levado ela para casa comigo depois do susto das drogas. Eu não
deveria ter ignorado meu instinto. Eu não deveria ter vivido em minha bolha
ignorante de felicidade egoísta.
Arrependimentos, arrependimentos.
Alguém, Deus, qualquer pessoa, por favor, me diga onde eu errei. Eu quero
rasgar o céu em dois e gritar com a vida por explicações, mas tudo que faço é me
ajoelhar e pressionar minha testa na mão morta de minha filha. Eu oro para
saber. Eu preciso saber, mas nunca haverá uma resposta. Sem compreensão.
Sem absolvição. Sem perdão. Apenas suposições e culpa. Apenas ‘devia ter’ e ‘e
se.’
Quando eles vêm busca-la, encontro Magda esperando no corredor. O
exterior que ela se esforça tanto para manter racha, e suas acusações não ditas
aparecem nas fendas.
— François levou Sylvia para casa, — diz ela. — O médico deu a ela um
tranquilizante.
— Eu vou cuidar dos preparativos para o funeral.
— É melhor você cuidar. Duvido que Sylvia consiga.
— Posso te dar uma carona?
— Scott vai me levar. — Ela hesita. — Você vai ficar bem?
— Sua voz falha na última palavra.
Por um breve momento, ela me puxa para
ela, me envolvendo em seu abraço. É
a primeira vez que minha mãe me
abraça. Parece estranho, e depois de um
segundo ela se afasta. As rachaduras em seu verniz se abrem
completamente. Lágrimas escorrem por suas bochechas,
escorrendo rímel preto por sua base.
— Eu nunca vou perdoá-la pelo que ela fez a esta família.
Demoro um segundo para entender de quem ela está falando. É
mais fácil transferir a culpa, mas nem mesmo Magda pode ser
tão cega.
— Não é obra de Valentina.
— É o bebê, — ela sussurra, — e tudo o mais.
Largando tudo o mais no meu colo, ela me deixa com
aquele fardo pesado e vai embora. Ela está certa, é claro. Sempre
estraguei tudo na minha vida. Meus relacionamentos. Minha
filha. Valentina. Eu deveria estar sob aquele lençol branco.
Sou eu que não mereço viver. Embora, ironicamente, aqui
estou.
Estacionando na garagem de casa, fico sentado em
silêncio por um longo tempo. A vida foi sugada
de mim. Estou entorpecido. Não posso chorar, reclamar
ou delirar. Eu não consigo dormir ou comer. Não
consigo trabalhar ou pensar. Acima de tudo, não consigo me enfrentar. Me sento
no meu carro, porque simplesmente não tenho força de vontade para fazer mais
nada.
A porta que liga a casa se abre e a luz acende. Valentina está parada em
uma piscina de brilho da lâmpada que brilha através do tecido fino de sua
camisola. Isso lança um holofote sobre a redondeza de seu corpo, as mentiras e
erros que plantei em sua barriga.
— Gabriel.
Meu nome é um soluço. Ela deve ter ouvido de Scott ou alguém da equipe
de Magda teria chamado Quincy. Ela não se aproxima nem fala. Ela espera que
eu dê o primeiro passo, para ver o que preciso.
Me preparando, eu forço meu corpo a obedecer e sair do meu carro. Seus
braços me alcançando são demais. Eu não mereço sua simpatia ou conforto. Eu
fiz isso com ela. Eu fiz isso com Carly. Eu sou a destruição. Eu sou um monstro.
Um olhar de dor se infiltra em seus olhos quando evito seu abraço.
— Está tarde, — eu digo, de costas para ela. — Durma um pouco.
Enquanto eu me afasto, seu sussurro suave chega às minhas costas.
— Sinto muito, Gabriel.
Eu continuo caminhando. É o que ela quer. É melhor para ela.
Levo um cobertor e um travesseiro para o meu escritório. Não há chance
de dormir, mas preciso fingir que sou rotineiro, como preciso do uísque que
sirvo. Eu bebo o licor forte e sirvo outro, depois outro. Sozinho, caio
de joelhos e choro no travesseiro, lamentando a vida que criei e
destruí.
Em algum momento, devo ter
desmaiado, porque acordo com uma
dor de cabeça do inferno e minha garganta
pegando fogo. São cinco da manhã. Silenciosamente, eu caminho
pela casa grande, indo de cômodo em cômodo de nada e de
vazio, até ter feito a ronda completa e estar de volta ao meu
escritório. A bolsa do hospital está em minha mesa como um
santuário, um lembrete que nunca me deixará ir.
Minhas mãos tremem quando chego dentro. É como
enfiar o braço em uma caixa cheia de cobras. Não sei o que vou
tirar ou como isso vai me envenenar com mais auto culpa e
tristeza, mas não consigo me conter. Eu removo uma regata
branca e shorts azuis. Roupa interior selada em saco
plástico. Seu par de sandálias favorito. Um som cru deixa minha
garganta. As roupas são familiares, mas estranhas. Não estando
em seu corpo, elas se parecem com as de outra pessoa, e o
sentimento de afastamento me assusta. Eu quero guardar
cada memória, não perder uma única fibra de emoção
intangível ou a vida inteira de rolos de filme impressos em
minha cabeça. Seu primeiro dente, seu primeiro
sorriso, seu primeiro passo. Deus, isso dói. Corta e
corta até eu não ser nada além de carne picada até o osso.
Eu caio na minha cadeira, lutando contra o colarinho da minha camisa e
puxando o botão que me estrangula. Eu sinto muito. Eu sinto muito, porra. Me
perdoe, Carly. Eu nunca vou me perdoar. Minhas mãos se fecham em punhos.
Eu os bato na mesa com tanta força que meus dedos sangram. Eu a quero de
volta. Eu quero voltar no tempo. Uma raiva latente queima meu corpo,
sacudindo meus músculos. Cada grama dessa fúria espessa e negra é dirigida a
mim mesmo. Como eu poderia não saber? Como eu não vi?
Demoro várias respirações profundas antes de me acalmar um pouco. Eu
tenho que me comportar racionalmente. Para o bem de todos, mas para meu
próprio bem. Tenho que usar a máscara e seguir em frente.
Minha atenção volta para o saco de papel. Virando de cabeça para baixo,
dou uma sacudida, ansiando por mais. Alguma coisa. Qualquer coisa. Um
envelope lacrado cai com um estrondo. Dentro há algo volumoso. Eu corro meus
dedos sobre as saliências do papel. Parece uma corrente. Eu tiro a vedação e
deixo que o objeto deslize para fora. É o pingente de borboleta de platina de
Carly, aquele que eu dei a ela em seu aniversário de dezessete anos. Pegando a
corrente, eu a seguro contra a luz. Ele está pendurado em meus dedos, a
borboleta voando como um pêndulo da esquerda para a direita, da direita para
a esquerda.
— Voe livre, princesa. — Eu pressiono as asas de prata em meus lábios. —
Adeus.
Adeus. É aqui que faço as pazes, encontro a minha
aceitação. Será um longo caminho para a cura e,
honestamente, não sei se
conseguirei. Segurando o pingente
sobre o pote de lembranças, deixei a corrente
correr pelos meus dedos, permitindo que escorregasse das minhas
mãos, elo por elo. Ele cai com um tilintar em cima das
lembranças. É aqui que ele pertence, com todas as outras vidas que
tirei. Eu torço minhas mãos, entrelaçando meus dedos até doer.
Esta foi a última vez.
O último.
Eu cansei de matar.
Valentina
Gabriel
Valentina
Gabriel
Valentina
— EU TENHO UM MENINO,
Eu murmuro.
Eu sou pai.
Rhett, Quincy e eu olhamos para o médico. Nenhum de nós fala.
Esperamos no pior silêncio da minha vida.
O obstetra me dá um sorriso cansado. — Sua esposa conseguiu.
A terra tomba sob meus pés. Tenho que agarrar a cadeira para me manter
em pé.
Ela vive.
Um menino.
Obrigada, obrigada.
Estou em conflito e em carne viva, sabendo do sacrifício que pagarei por
sua vida, mas minha alegria supera em muito o tormento de desistir de meu
filho e da mulher que amo.
— Ele nasceu às três e trinta e seis, — continua o médico. —
Um quilo e cem gramas. Trinta e nove centímetros.
Minha voz está grave. — Como eles estão?
— Ambos estão indo
bem. Você pode ver sua esposa em
uma hora, quando ela acordar. Seu bebê foi
colocado em uma incubadora. Uma enfermeira irá te levar para ver
ele.
— Ele tem apenas 29 semanas. Que complicações podem ser
esperadas?
— Qualquer coisa, mas, estatisticamente, as taxas de
sobrevivência para sua idade estão acima de noventa por cento
e a deficiência, menos de dez.
Eu engulo o nó na minha garganta. — Obrigado.
Ele dá um tapinha nas minhas costas. — Espere aqui. E
parabéns.
Rhett está ao meu lado no minuto em que o médico sai,
agarrando meus braços como se sentisse
minha fraqueza física. — Parabéns, Gabriel.
Um sorriso transforma o rosto de Quincy em uma
máscara boba. — Você tem um filho. — Ele me puxa para um
abraço e dá um tapa nas minhas costas. —Bom trabalho.
— Ela está viva, — eu digo, ainda precisando me
convencer. — Ela vai ficar bem.
Há uma nota de orgulho na voz de Rhett. — Ela é uma boa lutadora.
— Ela é forte, — Quincy concorda.
Eles esperam comigo até que a enfermeira volte para me levar ao meu
filho. Eu paro na frente da incubadora que nos separa. Por enquanto, isso é o
mais perto que posso chegar dele. Ele tem adesivos no peito minúsculo, um tubo
no nariz e uma intravenosa na perna. Droga, ele é pequeno, se afogando na
fralda branca. Tão frágil. Tão perfeito.
Eu coloco minha palma no vidro. — Connor. — Eu anseio por tocá-lo, por
segurá-lo contra meu peito e sentir seu coração bater em seu pequeno peito
corajoso. — Você conseguiu. Você vai crescer grande e forte. Um bom homem.
— Com uma mãe como a dele, ele não terá escolha.
Lágrimas grandes e sem vergonha correm pela minha barba até meu
sorriso. São lágrimas de felicidade. Lágrimas atormentadas, lágrimas de boas-
vindas e lágrimas de despedida.
Ele se parece comigo, pelo menos o eu antes das minhas cicatrizes, mas
ele tem os lábios carnudos de Valentina. Não sei por quanto tempo fico assim,
absorvendo suas feições enquanto ele dorme como só os inocentes podem, mas
meu quadril está doendo por causa da longa espera quando uma enfermeira toca
meu braço.
— Você gostaria de ver sua esposa? — Ela pergunta com uma voz alegre. —
Ela está acordada.
Eu gostaria de ver minha esposa? Que tipo de pergunta é
essa? Não me preocupo em responder. Eu nem tenho flores ou
um brinquedo de pelúcia. Sem balões ou
diamantes. Apenas mentiras,
engano e liberdade.
A enfermeira para em frente a uma porta
da maternidade. — Aqui está. Ela sofreu perda de sangue e ainda
está fraca, mas você pode ficar o tempo que quiser. Não se aplica
horário de visita. Não canse ela, entretanto.
Isso faz parte da vantagem de uma clínica e quarto
privados. Eu me preparo e abro a porta. Valentina está rodeada por
lençóis brancos. Seus olhos estão fechados e seus lábios
entreabertos. Sua respiração está regular, mas sua pele reflete
a cor dos lençóis. Meu intestino vira do avesso. É difícil vê-la
assim.
Eu faço meu caminho em silêncio, tentando não a
perturbar, mas seus cílios levantam quando chego à beira da
cama. Por três batidas de coração, ela me encara, seus olhos
suaves inundados de emoções. Porra, esse olhar me
perturba. A expressão distorcida e atormentada envolve meu
peito e expele o ar dos meus pulmões. A única lágrima que
desliza de seu olho e escorre por sua bochecha é uma
estaca em meu coração que deixa um buraco
que nunca pode cicatrizar.
Pego seus dedos e aperto. Quero subir na cama e a abraçar contra mim,
mas não quero perturbar sua ferida e machucá-la. Em vez disso, vou me
contentar em me sentar na borda.
Eu afago o cabelo de sua testa e traço meus polegares sobre a pele frágil
sob seus olhos. — Como você está se sentindo?
— Você o viu? — Ela resmunga.
— Ele é perfeito, Valentina. Tão perfeito.
Ela solta uma lufada de ar que faz seus ombros afundarem de volta no
colchão.
— Descanse. — Eu beijo seus lábios rachados. — Eu estarei bem aqui.
Suas pálpebras se fecham e sua respiração muda. Em um segundo, eu a
perco para o sono. É o anestésico ainda em seu sistema. Incapaz de me afastar,
me deito ao lado de seu corpo e cuidadosamente a puxo para mim. Eu a observo
até que um novo turno de equipe entra em serviço e uma enfermeira aparece
pela porta.
— O médico vai examinar ela, agora, se você quiser ir para casa e tomar
um banho, — ela oferece de forma brusca. — Talvez você queira comer algo
também. Vai precisar de força para sustentar sua linda e jovem esposa e aquele
seu lindo filho.
Arrastando a mão sobre minha barba, eu olho para baixo para minha
camisa amarrotada e terno. Devo estar uma bagunça. Minha boca está com um
gosto horrível e minha garganta dói. A fome não passou pela minha
cabeça, mas me sinto instável quando me levanto. Estou relutante
em deixa-la, mas saio do caminho dos
funcionários para que possam
cuidar da preciosa criatura na cama
branca.
No meu caminho para fora, eu verifico Connor. Depois de
lavar e aquecer minhas mãos, eu as coloco em suas costas. Ele é
tão pequeno que minha palma envolve toda a parte superior de
seu corpo. Carinho, orgulho, instinto protetor e amor machucam
meu peito.
Eu passo no meu primeiro teste de troca de fraldas, e
quando coloco Connor como a enfermeira me mostra, ele
segura meu polegar com o punho, seu aperto
surpreendentemente forte. Fisicamente dói quando tenho que
soltar seus dedos minúsculos.
Eu coloquei meu dedo em seu coração. — Eu te amo filho.
Não são permitidos telefones celulares na maternidade. Lá
fora, quando ligo meu telefone pela primeira vez novamente, há
dez chamadas perdidas de Kris. Droga. Em meu
pânico, esqueci completamente de informar a ela sobre o
status dos eventos.
Quincy se senta em uma cadeira contra a parede
quando entro na área da recepção. Ele pula de pé
quando me vê. — Como eles estão?
O sorriso que corta meu rosto é uma corda amarrada a um balão de hélio.
Eu vou flutuar até as nuvens. — Bem. Ela está cansada. Ele é perfeito. —
Observo seu cabelo despenteado e sua sombra de barba de cinco horas. — O que
você ainda está fazendo aqui?
— Não iria embora sem você. Rhett foi para casa para verificar Charlie. Kris
estava ficando louca. Ela pirou quando não conseguiu falar com você, então
Rhett contou a novidade. Espero que você não se importe.
— Obrigado. — Quero dizer isso como nunca antes. Não sei o que teria
feito sem esses dois homens. E Kris.
— De nada. Você parece uma merda. Eu vou te levar para casa.
São quase seis da manhã. Um novo dia amanheceu. Os raios de sol batem
nos peitoris das janelas como os ponteiros de um relógio, marcando meu tempo
que está se esgotando. Parece que passei dez mil noites aqui, e cada passo que
dou em direção à luz do sol é mais pesado do que o anterior. Cada quilômetro
que coloco entre nós é um quilômetro mais perto de nunca. Eu engulo o
conhecimento do que tenho que fazer, colocando de lado para lidar mais tarde,
sozinho. Por enquanto, precisamos celebrar a vida.
Em casa, um animado Charlie e Kris me encontram na porta.
Kris me abraça, com lágrimas escorrendo pelo rosto. — Parabéns. Eu
estava ficando louca. Me conte tudo. Eu fiz o café da manhã.
Ela nos leva até a mesa perto da cozinha e me faz contar tudo o que
aconteceu sobre ovos, bacon e torradas. Eu apenas me concentro
nos aspectos médicos e faço uma descrição longa e detalhada de
Connor, deixando de fora a parte de como isso vai
se desenrolar. Quando eles fazem
ooh e aah, eu começo a entrar em
ação. Kris não pode se dar ao luxo de fechar o
consultório durante o dia e, sabendo como ela dormiu pouco na
noite passada, me ofereço para chamar uma veterinária
temporária por meio da agência de empregos, mas ela teimosamente
se recusa. Ainda temos que falar sobre a licença-maternidade de
Valentina e como isso afetará o consultório de Kris, mas deixo isso em
segundo plano por enquanto. A prioridade é que Valentina e
Connor descansem e fiquem fortes.
Me sentindo melhor depois de um banho e de vestir um
terno limpo, ligo para Michael e o informo. Tenho cinco dias de
licença paternidade, mas vou passar pelo escritório esta tarde
para resolver algumas pontas soltas.
Cinco dias para dizer adeus. Isso é o que eu me dou. Eu não
vou ficar pensando nisso. Ainda não. Há um monte de coisas
para fazer em cinco dias. O berçário não está pronto. Exceto
por algumas roupas e uma caixa de fraldas, não chegamos a
fazer as compras do bebê. Valentina precisa de um berço,
carrinho de bebê, bebê conforto, cadeirinha, bomba
para tirar leite e vários outros dispositivos necessários
para bebês. Depois de fazer algumas compras, quero
passar pela clínica novamente. Ansioso por continuar com as tarefas domésticas
para poder voltar para as duas pessoas de quem mais gosto no mundo, tiro um
pouco do dinheiro que guardei para as compras do bebê no cofre do meu
escritório. Estou prestes a sair da sala quando meu laptop aberto chama minha
atenção. Sempre o mantenho fechado quando não estou usando. É uma questão
de segurança saber com que facilidade um hacker pode acessar a webcam e
estudar o que está acontecendo em nossa casa. Cada cabelo do meu corpo se
eriça. Alguém bisbilhotou. Há informações no computador que podem me
implicar em crimes e assassinatos. Deliberadamente, não apaguei as evidências
de apropriação indébita e suborno que fizemos para o negócio de Magda. Você
nunca sabe quando pode precisar, como chantagear em uma situação terrível
em que sua vida está ameaçada.
Andando com cuidado ao redor da escrivaninha, examino a mesa em busca
de sinais de distúrbio, mas todos os papéis e arquivos estão no lugar,
meticulosamente limpos e arrumados, exatamente como os deixei. Apertei um
botão aleatório para reiniciar a tela. Uma pasta que não conheço aparece. O
nome faz meu coração disparar. Quase tenho uma parada cardíaca quando o
abro e leio os nomes dos arquivos.
Porra. Merda. Não.
Meus olhos caem sobre o pen drive preto com o logotipo Louw Unlimited
inserido na unidade flash USB.
Magda.
Magda disse a Valentina. Disse a ela o que eu fiz. De acordo
com os arquivos olhando para mim, ela fez mais
do que isso. Ela deu a Valentina a
porra da prova. Jogando a pilha de
notas na mesa, eu aperto e abro minhas mãos.
Faço isso várias vezes para me impedir de bater em alguma
coisa. Valentina sabia. Ela teve nosso bebê sabendo o que eu fiz
com ela. Magda não tinha o direito. Por quê? Nunca quis que
Valentina sofresse a terrível verdade. Droga! Eu coloco minha raiva
na cadeira, chutando-a até que uma dor aguda sobe pela minha
perna e atinge meu quadril.
O que Magda mostrou a Valentina? Uma gravação da
minha conversa com o médico? Abro o arquivo com a mão
trêmula. Assim como eu pensei, um arquivo de áudio da minha
ligação para Engelbrecht é aberto. Escuto todo o discurso
horrível, ouvindo o que Valentina ouviu, tentando imaginar o que
ela sentiu, o que ela pensou. Eu meio que adivinhei qual era o
conteúdo desse arquivo antes mesmo de clicar nele, mas não
tenho ideia do que a chamada pasta Evidência contém. Que
outra prova existe do meu engano?
Um mau pressentimento repousa na boca do meu
estômago. Isso parece pesado. Sujo. De repente, estou
impaciente. Na minha pressa para abrir o arquivo, clico
errado e preciso abrir novamente. O que abre é um
videoclipe. Uma imagem borrada preenche a tela. Parece um filme caseiro de
baixa qualidade. À medida que as imagens se desdobram, um pavor gelado
enche minhas veias. O medo se transforma em lava fervente e derretida. A raiva
explode em todos os vasos sanguíneos do meu corpo. A raiva me faz
tremer. Meus órgãos tremem ao testemunhar uma versão mais jovem de
Valentina em seu pior pesadelo. Recordo o arrepio incontrolável de seu corpo
quando ela se ajoelhou diante de mim e me contou seu segredo. Eu sinto sua
dor e vejo sua humilhação quando seis homens adultos causaram esses
sentimentos para o prazer deles. Eu quero matar eles, como nunca quis
matar. Eu quero fazê-los sofrerem mil vezes mais. Quero decepar seus membros
e jogar eles aos pés de Valentina. Vou arrastar eles por pedras e espinhos até
que não tenham mais um centímetro de pele em seus corpos. Eu fervo em minha
fúria, me forçando a assistir cada segundo cruel, desejando que cada segundo
seja o último de sua tortura. É horrível de se ver e pura agonia de testemunhar,
mas eu continuo, porque o vídeo contém algo que eu tenho procurado por quase
um ano, as identidades dos agressores de Valentina.
Em algum lugar no fundo da minha mente, um aviso aparece. Algo é
familiar, mas não consigo identificar. Quando um dos filhos da puta fala de novo,
a névoa se desfaz da minha mente. Eu conheço essa voz. Barney. Ele era... oh
porra. Não. Um dos camaradas do meu pai. Um por um, seus rostos feios
aparecem na tela. Toda a maldita equipe. Se meu pai encobriu o crime deles, se
jogou terra sobre o ato desprezível, ele não é melhor do que
eles. Então a câmera se vira e eu olho nos olhos do homem que
estuprou Valentina, o homem que me deu a vida.
Doce mãe de Jesus. Chocado e
enjoado, caio na cadeira, olhando
para a tela preta. Vários fatos perfuram minha
mente como flechas em chamas. Um, meu pai estuprou Valentina
enquanto seus amigos a seguravam. Meu próprio maldito
pai. Dois, Magda sabia. Ela sabia do estupro e nunca me contou.
Terceiro, isso tem a ver com o motivo pelo qual Magda queria
Valentina morta. A dívida era apenas uma cortina de fumaça. E quarto,
o que Valentina viu nesta pasta desencadeou um choque
grande o suficiente para colocar ela em trabalho de parto e
arriscar a vida dela e do meu bebê.
Partículas de carvão queimado vagam na frente da
minha visão. Lentamente, com determinação, fico de pé. Tranco
o pen drive no cofre e pego minhas chaves. Magda trabalha em
Brixton hoje. A viagem até lá demora muito. É meio da manhã
quando estaciono em frente ao escritório de empréstimos.
Apenas o Mercedes está fora, o que significa que Scott é meu
único obstáculo antes de eu chegar a Magda.
Eu bato minhas mãos nas portas de vidro e as
empurro abertas. Scott, que está sentado atrás da
recepção, se levanta de um salto, pegando sua
arma. Antes que ele possa agarrar a haste que está
presa no coldre de quadril, eu planto um chute em seu estômago e um punho
em sua mandíbula. Ele cai para trás, seu corpo se conectando com a parede. Eu
uso o impulso para segurar seu cabelo e jogar ele de cara no chão. Com um
joelho nas costas, eu contenho seus pulsos e tiro a pistola de seu coldre. Tiro a
trava de segurança, engatilho a arma e empurro contra sua têmpora.
Ele para de lutar, sabendo que está praticamente morto. — Que porra é
essa, cara?
— Onde está Magda?
Ele grunhe quando eu empurro seu braço. — No escritório.
— Quem está com ela?
— Ela está sozinha.
Ela geralmente está. O escritório é à prova de som. Ela não vai me ouvir
áspero com Scott, a menos que passe pela porta.
— Por que ela foi para minha casa, ontem?
— Eu não sei. — Ele pragueja e choraminga de dor. — Você está quebrando
meu braço.
— Essa é a ideia, — eu rosno. — Onde Magda conseguiu a fita?
— Que fita? — Ele vira a cabeça para o lado e engole o ar pela boca. — Ah,
porra, isso dói.
— Aquela que ela deixou na minha casa. Ontem.
— Não sei do que você está falando.
Eu empurro com mais força, convidando mais palavrões, desta
vez misturado com ranho e lágrimas.
— Uma fita velha. Filme caseiro.
— Porra. Pare.
Ele se contorce como um
verme. Eu soltei um centímetro, dando espaço
a ele para respirar e falar.
Ele ofega e assobia. — Eu cavei uma fita de vídeo no
cemitério.
— Qual?
— Rosettenville.
— Qual túmulo?
— Haynes, Charles.
Eu empurro de novo, convidando a um uivo. — Ele não
está morto. Se você mentir para mim, seu filho da puta...
— É a cova dele, — ele grita, — para quando ele morrer.
— Quando? — Eu acentuo minha urgência colocando força
em seu cotovelo. — Quando você desenterrou?
— Ah, porra! Pelo amor de Deus. — O ar sopra por entre
seus dentes quando eu o solto. — Ontem.
— Como você sabia que estava lá?
— Charlie.
— Ele te contou?
— Ele disse ao médico.
— Quem, Christopher?
— Simmm.
Esse bastardo. É por isso que Magda insistiu na hipnoterapia. Ela
precisava encontrar uma fita que estava procurando. Algumas peças se
encaixam, mas ainda há um grande buraco escuro no meio da imagem.
— Por que ela deu a fita para minha esposa?
— Eu não sei! Eu nem sei o que está na fita.
Cheguei ao meu limite com Scott. Ele não sabe mais. Agarrando a arma
pelo cano, eu bato a haste com força em sua cabeça, nocauteando-o. Por
precaução, pego as braçadeiras que Magda mantém com várias outras
ferramentas de tortura na gaveta de baixo e amarro suas mãos e pés. Eu coloquei
uma placa de fechado e tranquei a porta da frente antes de ir para o escritório
para obter minhas respostas.
Magda salta da cadeira e dá a volta na mesa, chamando Scott antes que a
porta se feche atrás de mim.
Eu avanço sobre ela. — Ele não pode te ajudar.
Seus olhos deslizam para a arma em minha mão. — Seja razoável, Gabriel.
— Como você estava quando deu a fita para Valentina?
Ela empalidece com a cor da madeira caiada, a superfície de sua pele é
irregular e áspera. — Ela mostrou para você?
O meu lado diabólico quer brincar com ela. Um coelho e uma raposa. —
Você estava esperando que ela não fizesse?
Ela levanta as palmas das mãos. — Tudo que eu queria era
que ela fosse embora. Eu só queria meu filho de volta.
Minha voz fica mais alta com cada sílaba. —
Você pensou que ela fugiria sabendo
que meu maldito pai a estuprou.
— Sim, pensei que isso a afastaria. Você
não tem sido o mesmo desde que ela entrou em sua vida. Ela está
destruindo você, assim como destruiu seu pai.
— Ela o destruiu? — Cada um dos meus membros está
tremendo. — Ele foi o único que tirou sua inocência, sua juventude,
Deus, Magda, bateram nela até um centímetro de sua vida e ela o
destruiu?
Seus olhos estão ampliados por trás dos óculos. — Ela o
seduziu!
— Ela tinha treze anos, porra, — eu solto.
— Eu vi o jeito que ele olhou para ela, mesmo quando ela
era tão jovem. Você sabe como é isso? É a maneira como ela
anda, com a bunda balançando e os seios empurrados para
fora. É o que ela usa, aquelas saias curtas e blusas justas. —
Ela aponta o dedo para meu peito. — Ela fez isso com ele e ela
está fazendo isso com você.
Não posso acreditar no que estou ouvindo. — Há
quanto tempo você sabe?
Ela desvia o olhar.
— Você vai me dizer, — eu digo. — Hoje é o dia em que esclarecemos tudo.
— Você não deveria descobrir, não assim.
Não. Nem Valentina. Deus, não assim. — Mas descobri então, comece a
falar.
Ela me encara lentamente. — O que você vai fazer com a fita?
Ela precisa entender como estou falando sério. Vou assustar ela e fazê-la
falar e, se isso não funcionar, juro por Deus que torturarei minha própria mãe. —
Irá para as autoridades, as quais você não possui.
Ela treme desde a bainha do vestido até a linha do cabelo perfeitamente
penteado. — Isso vai nos destruir.
— Já estamos destruídos. Acabou, Magda. Terminamos. O negócio
acabou.
Seu pomo de adão balança enquanto ela engole. — Não faça isso, Gabriel.
— Por que não? Meu pai é um estuprador. Minha mãe é uma criminosa e
eu sou um assassino.
— Nós fazemos o que devemos para sobreviver.
— Não justifique nossos pecados, porra.
— Você diz isso porque está sob o feitiço dela, assim como seu pai.
— Não, Magda. Estou apaixonado por ela. Eu a amo como nunca amei
uma mulher. Eu irei para o inferno por ela, e não vou piscar para mandar você
para a prisão pelo que você sabia e encobriu, então comece a falar.
Por cinco segundos inteiros ela me encara. Quando eu acho
que ela não vai responder, ela diz. — Seu pai pensou que ele a tinha
matado. Ele disse que ninguém precisava saber,
então disse a Barney para destruir a
fita. Só que, Barney nunca o fez. Ele
se agarrou a ela, como moeda de troca, talvez
para chantagear seu pai mais tarde, quem sabe? Valentina
sobreviveu. Soubemos disso quando ela já estava se recuperando
bem, porque Marvin e Julietta ficaram calados. Seu pai...
— Pare de chamar ele de meu pai. — Não suporto ser parente
dele.
— Owen tinha certeza de que Val sabia seus nomes. Ele
arranjou um golpe para matar toda a família.
Palavras feias estão na ponta da minha língua, mas eu
as afasto para que ela possa terminar esse pesadelo de uma
história.
— Antes que o golpe pudesse acontecer, — ela continua, —
Barney acabou morto. Abatido em seu próprio jardim. Então
Marvin fez uma visita a Owen e disse que tinha a fita. Comprou
do Barney. Ele nos deu uma cópia impressa que mostrava
claramente a sua... — ela se conteve. — mostrava o rosto de
Owen como prova. Ele disse que a fita estava escondida e,
se tocássemos em sua família, ela iria para a polícia. Na
época, quando Owen dirigia a empresa, não tínhamos
muitos contatos na força. A polícia estava esperando
um motivo para prender Owen. Mesmo uma multa por excesso de velocidade
teria servido. Não tínhamos escolha a não ser cancelar o golpe.
Agora entendo por que Magda trabalhou tão diligentemente para comprar
sua passagem pela força policial. Havia um método em sua loucura de ter tantos
deles no bolso.
— Qual foi o retorno? — Marvin queria vingança e compensação pelo que
foi feito a sua filha.
Ela me lança um olhar longo e triste. — Você.
Eu tropeço um passo, todo o peso do meu corpo pressionando minha perna
meio aleijada. — O que?
— O acordo era que você se casaria com a arruinada Valentina, e Owen
daria metade dos negócios para Marvin.
Eu luto para assimilar a informação, mas faz sentido. Marvin não só
receberia um upgrade em termos de pretendente para sua filha, mas também
uma bela vingança, não que dinheiro algum pudesse compensar o que eles
fizeram.
Eu forço a pergunta dos meus lábios secos. — O que aconteceu?
— Owen não se permitiria ser chantageado. Charles tinha quinze anos e
era um fator perigoso a ser considerado. Ele era protetor com sua irmã. Eu disse
a Owen que Charles nunca deixaria isso passar. Ele iria esperar a hora certa e
se vingar. Não tendo escolha, Owen concordou com as exigências de Marvin, mas
no minuto em que Marvin saiu, Owen chamou seus rapazes e disse-
lhes que encontrassem a fita e matassem os Haynes. Em vez de um
acerto, deveria parecer um acidente.
— O carro que saiu da ponte...
— Nossos homens cortaram os
cabos do freio.
— Julietta?
— O assalto a banco foi encenado. Ela era o verdadeiro alvo.
— Por que Owen deixou as crianças viverem?
— Owen falou com Val no funeral de Marvin. Estava claro que
ela não o reconheceu. Ela não colocou dois e dois juntos. Você viu pela
fita... — Ela desvia o olhar novamente, incapaz de encontrar
meus olhos. — Você viu pela fita que ela nunca abriu os olhos
e Charles não era mais ele mesmo.
— Por que correr o risco?
— Owen queria aquela fita, e Lambert Roos nos disse que
Marvin a deu para Charlie esconder. Charlie era o único que
sabia onde estava. Tentamos falar com ele após o acidente, mas
Charlie não conseguia se lembrar. Ele não sabia do que
estávamos falando. Ele estava totalmente incoerente. Um
vegetal completo.
— A máfia expulsou os garotos Haynes e Lambert
rejeitou Valentina. Owen ordenou que fizessem isso,
não foi? Foi porque Valentina estava prometida a mim?
— Eu não tinha nenhuma intenção de trazer aquela mulher sob nosso teto.
Você acha que eu queria um lembrete constante olhando para o rosto dela todos
os dias?
— Então por que dizer a Lambert para romper o noivado?
— Owen não queria que eles tivessem a proteção da máfia portuguesa. Se
a verdade fosse revelada, seria uma guerra entre nós e eles. — Seus olhos se
tornam planos e brilhantes como moedas de prata. — Ninguém foi autorizado a
acolher ela, mas ninguém foi autorizado a tocar nela ou a seu irmão,
também. Ele disse que era só até encontrar a fita, mas eu sabia que era por um
motivo diferente.
— Que razão?
— Ele ficou obcecado por ela.
— Por que você diria isso?
Ela abre a primeira gaveta de sua mesa. Pegando um álbum de recortes,
ela o joga na minha direção. Eu caminho até a borda com mais desgraça do que
curiosidade em meu coração, mas nós chegamos muito longe para não tirar a
tampa e deixar todos os vermes saírem. Abrindo as páginas, cambaleio em
estado de choque enquanto olho para uma foto após a outra de Valentina, todas
tiradas de longe. Eu chego só à terceira página antes de meu intestino se revirar
e a bile subir pela minha garganta. Isso explica como Valentina sobreviveu,
relativamente ilesa em Berea.
Magda abre os dedos e pousa as pontas na mesa. —
Continuamos procurando, procurando em todos os
lugares. Viramos a casa deles de cabeça para
baixo e varremos todos os cantos da
oficina de Marvin, mas a fita nunca
apareceu. Mesmo assim, Owen continuou
atrasando sua morte, usando aquela maldita fita como desculpa.
— Quando Owen morreu, você ordenou que Charlie e
Valentina morressem para evitar que eles falassem e se vingasse de
Valentina por seu ciúme injustificado. A dívida era apenas uma
desculpa para que nenhum dedo da família mafiosa pudesse ser
apontado para você.
— Sim. Paguei a Jerry para levar Charlie ao Napoli.
— É por isso que você fez Scott atirar em Jerry. Sem
testemunhas.
— Sim.
— A invasão do apartamento de Valentina?
— Tínhamos revistado o apartamento antes, mas quando
soube que ela estava vendendo, tive que ter certeza de que a fita
não estava lá.
Então me apaixonei por Valentina, não apenas
honrando sem saber a promessa de Owen de casar seu
único filho com a garota que ele estuprou, mas também
tornando o maior pesadelo de Magda realidade,
arrastando as memórias do crime hediondo de meu pai até sua porta. Que
grande reviravolta irônica nos eventos.
Sua voz treme. — Eu disse para você não se apaixonar por ela. Eu implorei.
Estou morto por dentro para as pessoas que me conceberam e criaram.
Minha família não existe mais.
— Seu plano brilhante para hipnotizar Charlie funcionou.
— Sim. Ele disse a Christopher onde a fita estava escondida.
— E então você pensou que poderia matar Valentina mostrando a ela em
detalhes brutais o que o pai de seu marido fez com ela?
— Eu nunca mataria a mãe do meu neto. Eu só esperava que ela deixasse
você.
— Bem, você quase a matou.
— Quase? — Ela pergunta em voz baixa, muito inadequada para Magda.
— Valentina entrou em trabalho de parto ontem devido ao choque. Ela não
só quase perdeu meu bebê, mas também quase morreu.
Alegria brilha em seus olhos. É breve, durando apenas uma fração de
segundo, mas não perco. Ela ficaria feliz se Valentina estivesse morta, talvez até
aliviada se meu filho também estivesse morto. Isso, eu não posso perdoar. Não
me importo que ela atirou em mim e me transformou em um assassino. Eu
gostava de ser temido. Não vou mentir. O que não vou aceitar é uma ameaça ao
meu filho e à mulher que amo, a mulher que esta família prejudicou em todos
os sentidos. Tiramos sua virgindade, seus pais, seu irmão, sua casa,
seu dinheiro, seu noivo e sua proteção. Nós a brutalizamos,
desfiguramos seu corpo, destruímos seus
estudos, seus sonhos e sua vida. Eu
forcei meu filho em seu corpo, e
agora ela sabe. Ela conhece a horrível verdade.
Magda interrompe minha linha de pensamento. — O que
você vai fazer, Gabriel?
— Corrigir isso.
— Eu vejo. — Seu corpo alto e reto se curva. Ela parece
cinquenta anos mais velha. — É a isso que se trata, então.
— Isso nunca deveria ter começado. — Owen nunca
deveria ter encostado um dedo em Valentina.
Seu olhar está desolado enquanto procura o meu. — E
agora?
— Está nas mãos da Valentina. É a decisão dela se quiser
fazer uma acusação ou enviar a fita aos judeus.
Ela franze os lábios, como se estivesse pensando
profundamente. Depois de um tempo, ela perguntou baixinho.
— Menino ou menina?
— É um menino. O nome dele é Connor.
— Connor. Você o manteve na família. Isso é
bom. Gabriel... — Ela hesita. — Há algo que você
precisa saber sobre a morte de Carly. Não acho que o
bebê foi a razão do suicídio dela.
— Do que você está falando?
— Sylvia e Carly vieram almoçar um dia antes de ela falecer. Elas tiveram
uma discussão sobre Carly ir a uma festa com seus amigos. Sylvia não a deixou
ir. Ela disse que depois do que aconteceu com as drogas não podia confiar em
Carly. Carly estava sendo dramática, acusando Sylvia de arruinar sua vida. Ela
disse que preferia estar morta e, se estivesse, Sylvia lamentaria. Não acho que
ela pretendia uma overdose de comprimidos para dormir de Sylvia. Eu acredito
que foi mais uma acrobacia de sua parte em busca de atenção que deu
terrivelmente errado.
Não preciso perguntar por que ela não me contou antes. Ela queria que eu
me sentisse culpado por ficar com Valentina. Era uma questão de, 'veja, eu disse
a você.' Mesmo assim, alguns dos pesos caem dos meus ombros.
— Obrigado por me dizer.
Ela concorda.
Eu olho para ela uma última vez, porque quando eu sair daqui nunca mais
quero colocar os olhos nela novamente.
— Adeus, Magda.
Ela não responde. Ela ainda está balançando a cabeça, balançando a
cabeça para cima e para baixo, quando eu saio de seu escritório sem me
preocupar em fechar a porta. Eu não chego até a recepção quando o tiro é
disparado.
16
Gabriel
Valentina
POR DENTRO ESTOU cortada em
pedaços. Minha alma está
quebrada. Não sobrou nada da
mulher que eu fui ou da que poderia ter sido. Eu
ainda sou um vulcão queimado, cinzas e preto, mas onde aquela
queimação foi alimentada por medo e raiva quando Gabriel
quebrou minha porta pela primeira vez, agora é o resultado de uma
tristeza inconsolável. A cratera que costumava ser meu coração está
borbulhando com emoções de perda, vergonha, engano e
inutilidade. Perdi tanto de mim mesma que não sei se sobrou
o suficiente para me levantar das brasas frias da destruição. O
pai de Gabriel tirou algo de mim que eu deveria guardar para
o homem que um dia amaria. Ele pegou mais do que minha
inocência. Ele tirou minha habilidade de ter um relacionamento
normal com um jovem normal. Talvez seja por isso que eu me
apaixonei por Gabriel. Talvez eu só possa ter relacionamentos
doentios, desiguais e nada normais com homens mais velhos
e distorcidos. Owen Louw tirou minha alegria pelo resto da
vida e, em vez disso, me deu pesadelos e vergonha. Por
causa de um momento no tempo em que ele pegou algo
que não deveria ter desejado, perdi meu futuro e meus
pais. Perdi meu lindo Charles para um menino na casca
de um homem. Por causa do crime de Owen, nos tornamos párias que viviam na
pobreza com a crueldade de pessoas como Tiny. Quando chegasse a hora,
teríamos pagado o preço final, nossas vidas.
Então havia Gabriel. Por causa dele, Charlie e eu não morremos no dia em
que ele veio por nós. Eu gostaria de acreditar que havia mais do que luxúria.
Uma pequena parte de mim gosta de pensar que foi o cerne de algo maior, algo
mais profundo. Tenho que acreditar que ele sente mais do que uma atração
física ou mesmo uma obsessão doentia, porque a semente de prazer e dor que
ele plantou em mim germinou para um apego e cuidado inegáveis. O frágil caule
de afeto que cresceu em meu coração a partir dos segredos podres de nosso
passado cresceu tão espesso e robusto quanto uma árvore. Essa árvore pode ter
brotado nas camadas fermentadoras do engano, mas esse mesmo composto fez
os galhos crescerem altos e fortes. Os vícios que Gabriel me deu estão tecidos
como hera ao redor daquele tronco. Estão enxertados com a planta e as raízes.
Eles são parte de quem eu sou. No centro de tudo está uma emoção abrangente.
Amor.
Apesar de tudo, amo Gabriel. Vai levar tempo para perdoar e lidar com
meu passado, e muito esforço para voltar a confiar nele novamente, mas há
positivo no negativo. Se não fosse por aquele dia fatal de treze de fevereiro, eu
estaria casada com Lambert Roos, vivendo uma vida sem amor em uma casa
decadente no Sul de Joanesburgo com cinco ou seis filhos, passando batom
vermelho para passar o dia. Se Magda não tivesse orquestrado a
dívida de Charlie no Napoli, eu não teria caminhado naquela noite
em que pus os olhos em Gabriel. Se Gabriel não
tivesse que me matar, ele não teria
me salvado. Sempre vou lamentar
meus pais e o que aconteceu com
Charlie. Minhas cicatrizes nunca desaparecerão completamente,
mas meu passado não tem que ditar quem eu me tornarei. Eu
escolho não ser uma vítima. Owen pode ter quebrado meu corpo e
arruinado minha juventude, mas não vou dar a ele meu espírito.
Gabriel me quebrou, e me fez inteira novamente. Ele me ensinou
o significado do amor e me deu um lindo bebê que leva esse
amor a um nível totalmente diferente. Quando ele me tirou de
Berea, ele não me deu escolha, e eu flutuei na absolvição
inocente que ele ofereceu por muito tempo. Prisioneira de
Gabriel ou não, é hora de se posicionar. Naquela época, fiz uma
promessa relutante de pagar a dívida por nove anos. Agora farei
minhas promessas de boa vontade. Eu nunca iria querer um
assassino como pai para Connor, mas Gabriel trabalha para
Michael, agora. Não há mais nada entre nós. Eu escolho
amor. É meu para ter e segurar, e darei meu melhor tiro até
que a morte nos separe.
Gabriel
OS PRÓXIMOS DIAS passam como um borrão. Entre pintar o quarto do
bebê e organizar o funeral de Magda, fico com Valentina e Connor com a maior
frequência e duração possível. Quincy, Rhett e eu temos as coisas do bebê
coberto, ou pelo menos acho que sim. Não tenho ideia se as um bilhão de coisas
que compramos remotamente cobrem tudo, porque eu não tinha estado
envolvido nos preparativos para Carly. Isso foi cuidado por uma enfermeira e
decoradora de interiores. Preparar um quarto para Connor me dá imenso prazer.
Instalei uma babá eletrônica com webcam para que Valentina pudesse ver ele de
qualquer lugar da casa. Coloquei barreiras no topo e na base das escadas, capas
protetoras em todos os cantos das mesas e balcões e fechaduras de bebê nos
armários com produtos de limpeza e perigosos. Fiz uma cobertura com chave na
banheira de hidromassagem, coloco grades na frente de todas as janelas do
andar de cima e instalo um alarme e uma cerca ao redor da piscina. Certo que
a casa é segura para criança, eu retiro todas as plantas venenosas no jardim,
bem como encubro o viveiro. Li na internet que uma criança pode se afogar em
até dois centímetros de água. Eu levo Charlie para visitar Valentina e Connor e
o elogio por ser um bom tio. Rhett e Quincy estão mais no hospital do que em
casa, ansiosos para experimentar todas as engenhocas que compraram e
desapontados quando disseram que teriam de esperar até que Connor pudesse
manter a temperatura corporal e ganhar peso suficiente.
O funeral de Magda é um dia antes de Valentina voltar para
casa. Arrumei assim de propósito, não
querendo que ela fizesse parte do
evento. Magda não merece seus
desejos de despedida, e duvido que Valentina queira
dar a ela. O serviço é privado, apenas para a família, o que
significa apenas eu. Não é que eu não queira que seus amigos e
colegas de trabalho prestem homenagem. Eu simplesmente não
posso enfrentar os tubarões que circulam as águas, esperando
ansiosamente por pedaços de isca sobre como vou lidar com as
promoções, novos compromissos, compensações e
subornos. Parece adequado que seja eu a testemunhar o
momento de fraqueza de Magda, quando seu caixão é colocado
ao solo. Mesmo na morte, ela ocupa seu lugar de direito ao lado
de meu pai, do jeito que ela comprou os lotes anos atrás. O velho
cemitério em Emmarentia está cheio agora, sem mais espaço para
uma alma. Meu corpo não vai descansar aqui, e isso também
parece adequado. Disse adeus antes de ela morrer. Cortei
minhas amarras aquele dia no Napoli.
No final da tarde, o advogado de Magda lê seu
testamento. Não é surpresa que ela tenha adicionado uma
cláusula. Ainda sou seu único herdeiro, mas a riqueza
só pode ser legada ou redistribuída em caso de minha
morte. Sempre meticulosa, Magda garantiu que eu não pudesse dar um centavo
a Valentina ou ao meu único filho sobrevivente. O ódio de Magda pela garota que
arruinamos se estende além da vida, até o túmulo. Valentina não pode pôr um
dedo na fortuna da família Louw, nem mesmo como minha legítima esposa, já
que nos casamos sem a comunhão de bens. Não até eu estar morto. O que
representa um problema se eu quiser dar a ela a liberdade que prometi pela vida
dela. De jeito nenhum vou mandá-la e meu filho para o mundo sem um tostão.
Acho que vou ter que morrer.
17
Valentina
MERDA EU VOU para o inferno e volto. Como pude desistir tão facilmente?
Tocar em Valentina era totalmente errado. Eu deveria ter mantido distância.
Esbarrar nela estragou tudo. Não sou arrogante o suficiente para acreditar que
ela está atraída por mim ou pelo meu novo rosto. Ela meramente agiu no instinto
que eu treinei nela. Valentina precisa de dor com seu prazer. Domínio na cama.
Ela é atraída pelo sádico, o monstro. Sentir o que sou por baixo do verniz polido
de um homem foi o que a trouxe até minha porta. Esse é quem eu sou. Eu não
posso mudar isso mais do que um gato pode se transformar em um cachorro.
Depois que ela saiu, eu ando de um lado para o outro. O leve cheiro de
framboesa contrai meu peito, me lembrando do que estou perdendo, e que estarei
completamente sozinho pelo resto da minha vida. Que assim seja. Eu não quero
mais ninguém. Meu objetivo é proteger ela e meu filho. É o bastante. Vou me
sentir melhor quando puder compensar as dificuldades financeiras que ela
sofreu após minha morte. Assim que houver lucro suficiente da minha empresa,
investirei anonimamente em sua empresa inteligente. Meu coração
se enche de orgulho. Sempre soube que ela sobreviveria,
e o fato de ela estar fazendo um
trabalho tão bom sem mim me enche
de uma pontada triste de
ciúme. Nenhum homem quer ser dispensável, trocado,
substituível. Tudo o que eu sempre quis foi cuidar dela e veja
aonde isso nos levou. É melhor que eu fique longe dela, mesmo
que cada célula do meu corpo se aproxime dela com uma força quase
impossível de resistir. Troquei sua vida pela liberdade. Tenho que
manter esse juramento quando me sinto fraco. Que é sempre.
Claro, estou tentado a aproveitar a oportunidade de ouro
que ela me apresentou, de reivindica-la como um homem
diferente, mas isso será apenas mais uma mentira, outra
manipulação, e não vou seguir esse caminho com ela novamente.
Nunca. Repito o mantra, esperando que ele afunde e que meu
pau acabe entendendo a mensagem. Apenas estar perto dela me
deixa duro. Porra, pensar nela faz o trabalho. Eu aperto e abro
meus dedos, lutando contra uma vontade repentina de ir atrás
dela e jogar a verdade a seus pés, me ajoelhar e implorar a ela
que me perdoe e me aceite de volta. Deus, eu sou um
bastardo egoísta. Não, não vou destruir meu disfarce e sua
nova vida, conquistada com tanto esforço, para o
inferno. Só há uma cura para domar meu desejo
incontrolável. Visto minha calça de moletom e uma camiseta e me puno com um
treino exaustivo na academia. Com cada peso que levanto, tento expulsar a
memória de seu gosto, seus sons e como ela se sentia sob minhas mãos, mas é
inútil. Quanto mais eu empurro, mais ela penetra na minha pele.
Depois de um banho, comecei a fazer o que venho adiando desde que voltei
para Joanesburgo. Compro um buquê de rosas brancas e dirijo até o cemitério.
Visitar o túmulo de Carly me faz em pedaços. Eu estava com medo de vir aqui,
e agora que toda a força da perda rasga a dor remendada de novo, eu caio de
joelhos na lama e choro sobre a pedra de minha linda garota que eu não pude
salvar. Gritos brutos saem do meu peito. Pela primeira vez depois de sua morte,
eu os deixei sair. A emoção violenta está longe de ser curada. Estou
simplesmente levantando a tampa da dor latente que carrego dentro de mim.
Isso também sempre fará parte de mim, como perder Valentina e Connor. Eu
aceito. É o que mereço, ser um homem infeliz com o rosto inteiro e a alma
quebrada. Seco o rosto na manga, beijo meus dedos e os pressiono na pedra fria.
— Eu te amo, Carly.
Não vou falhar com Connor nem que seja a última coisa que fizer. Ele
nunca me conhecerá, mas também não conhecerá a necessidade. Ninguém vai
colocar um dedo nele enquanto eu viver. Permitindo que a resolução me desse
forças, me levanto e volto para minha casa, que parece mais vazia e fria do que
nunca, agora que Valentina a marcou com sua presença.
Gabriel
A MULHER NUA em meus braços não é um livro aberto para ler. Acabei de
dizer que sou seu marido morto, mas sua linguagem corporal não me diz nada.
Posso lidar com um tapa, um insulto, culpa e raiva, mas não com o
olhar sério e plano que ela me lança. Isso me deixa indefeso, porque
não sei quais palavras ela precisa a
seguir. Eu a acalmo? Peço
desculpas? Imploro? Explico?
Meu intestino dá um nó quando ela não
responde por vários segundos. Ela não pode me perdoar. O engano
é muito profundo. Seu estado sem emoção só pode significar que
ela finalmente superou o Gabriel. Ele não importa. Talvez nunca
tenha importado. Apenas um idiota arrogante teria uma esperança
diferente. Eu ainda devo a verdade a ela, então é isso que eu
dou, desde o dia em que descobri as evidências de seu estupro
e terminando com minha cirurgia plástica.
Ela não interrompe nenhuma vez. Ela escuta em
silêncio enquanto eu confesso, sua atenção é aguda e
focada. Quando chego ao fim do meu monólogo culpado, ela
finalmente se agita. Meus nervos em frangalhos e meu coração
sangrando, eu a vejo se levantar e caminhar até onde sua bolsa
está no chão. Ela vai reunir suas roupas, se vestir e sair. Eu
nunca vou ver ela e Connor novamente, e não posso culpa-
la. Fiz pior com ela do que os inimigos cujos ossos
quebrei. Tudo o que posso fazer é beber nas linhas suaves
de seu corpo perfeito. Um doloroso flashback dela
pendurada em uma corda com a calcinha nos tornozelos
perfura minha mente. Ela ainda tem aquelas mesmas lindas linhas em S, como
o tema etéreo em um retrato de um pintor.
Pegando algo de sua bolsa, ela se vira e me observa do jeito que me
escutou, com concentração silenciosa. Enquanto ela caminha para mim, a força
que a torna a mulher mais notável que conheço aparece. Cada passo é
acompanhado de confiança. Ela está me julgando? Vai me condenar? Vou
aceitar tudo o que conseguir, seja ódio ou aceitação, mas não espero
perdão. Minha única esperança é que não nos separemos de forma
horrenda. Nada para manchar este último momento perfeito. Uma parte de mim
deseja que ela se afaste assim, sem dizer nada, enquanto outra parte grita para
saber o que ela sente, o que pensa.
Ela para perto de mim, perto demais. — Estou esperando há muito tempo
que você me diga isso, Gabriel.
Ela diz meu nome suavemente, propositalmente.
Meu coração começa a bater furiosamente, o sangue jorrando em minhas
veias, queimando minha pele. — Você sabia?
— Desde o primeiro momento.
Se ela sabia, por que permitiu que as coisas fossem tão longe? Por que ela
não me matou, me machucou ou pediu a um dos meus ex-guarda-costas para
cuidar de mim? Onde está sua vingança? Meus olhos caem para o objeto que ela
segura em seu punho. Seja o que for, ela esperou pela minha confissão antes de
entregar para mim. Pode ser condenação ou absolvição, mas
suspeito da primeira.
Eu não deveria tocá-la, não depois do que
admiti, mas não posso evitar.
Minhas mãos são atraídas para a
curva de seus quadris. Eu a seguro e a
puxo entre minhas pernas, olhando para seus enormes olhos
castanhos, com medo do que vou encontrar lá, mas não há raiva,
culpa ou mágoa. Apenas algo lindo que não mereço. Eu deveria
implorar, suplicar, explicar mais, tentar colocar a confusão de
sentimentos que se retorcem e desmoronam em meu coração em frases,
mas a única palavra que posso forçar do vazio em meu peito é.
— Como?
— Eu não preciso de um rosto para te conhecer.
A esperança floresce dentro de mim, mas eu a
reprimo. — Por que você não disse nada?
— Só há uma coisa que quero dizer e não poderia fazer isso
até que você fosse honesto comigo.
O que ela pode dizer depois de tudo que eu disse, depois
de tudo que minha família fez com ela? Seu olhar é suave e
cheio de algo que faz meu coração disparar. Nunca quero
esquecer a aparência dela, agora mesmo, porque pela
primeira vez na minha vida alguém me encara com amor
e lealdade. Ela vai lutar por mim como ninguém jamais
fez.
Seus lábios se abrem como um sopro de pena. — Eu te amo, Gabriel.
Meu mundo e minha existência lamentável entram em colapso, todas as
defesas que enterrei na parede da minha vida desmoronam ao meu redor.
Arrependimento, alegria, esperança, descrença na minha incrível e milagrosa
sorte de que esta incrível criatura feminina possa me amar derrama de mim, se
condensando em grandes e vergonhosas lágrimas que correm pelo meu rosto.
Ela se inclina contra mim, pressionando nossas peles juntas. — Eu tentei
te dizer, muito tempo antes de você ir embora, mas você não quis ouvir. Agora,
com apenas a verdade entre nós, você tem que acreditar em mim.
Eu pressiono meu rosto em seu estômago, segurando-a como se ela fosse
minha salvação. — Amo você, Valentina. Com tudo que sou. Deus sabe, eu
tentei parar, te libertar, mas não consigo.
Para onde vamos daqui? Como podemos juntar as peças e construir uma
nova vida como uma família?
Ela responde à pergunta quando abre a mão e estende a palma para mim.
— Gregor Malan, você quer se casar comigo?
A minha aliança de casamento de platina forma um círculo perfeito e
brilhante em sua pele. Eu fico olhando para ela em descrença, lutando para
digerir suas palavras.
— Onde…? — Eu olho do anel para o rosto dela.
— A polícia encontrou nos escombros.
Ela se agarrou a isso. Ela nunca parou de lutar por mim. Um
amor avassalador e maior do que a vida cai sobre mim. — Você
suspeitou?
— Eu sabia que você não
estava morto. Nunca parei de
procurar.
Eu cruzo meus braços ao redor dela. Sou um homem que
está se afogando e ela é meu mar. — Não me deixe ir. Eu prometo
que nunca vou deixar você de novo.
Seus lábios se inclinam em um sorriso fraco. — Isso é um sim?
Os fardos do meu passado são retirados de meus ombros. Pela
primeira vez na vida, me sinto verdadeiramente
feliz. Leve. Soltei minha gatinha e ela voltou para mim.
— Sim. — Eu sufoco sua barriga com beijos. — Sim, sim,
porra.
— Me dê sua mão, — ela ordena.
Quando estendo minha mão esquerda, ela empurra o anel
que simboliza nossa união ao longo da vida sobre meu dedo
anelar, onde ele pertence. O ajuste é perfeito. Somos perfeitos,
como sempre soube que seríamos. Ela é minha vida, meu
amor, minha redenção. Não é minha propriedade, mas minha
esposa. Não por nove anos, mas para sempre.
EPÍLOGO
Gabriel