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"INIMIGO DA MORAL E BONS COSTUMES": A ATUAÇÃO DA CENSURA

SOBRE A OBRA DE ODAIR JOSÉ (DÉCADA DE 1970)

EDER APARECIDO FERREIRA SEDANO*1

Em 13 de dezembro de 1968 o Marechal, Artur da Costa e Silva, então presidente da


republica, decretou o Ato Institucional Número 5 (AI5), que além de institucionalizar a
prática da tortura como instrumento do Estado, perseguiu e caçou o mandato de diversos
políticos, reprimiu e censurou jornalistas, intelectuais e artistas. Entre os perseguidos, muitos
não sobraram para contar história, sendo covardemente executados pelos órgãos repressivos
militares. Já os sobreviventes trazem marcas indeléveis de violência e tortura ou as memórias
do exilio em outros países, até o momento que puderam retornar com a transição democrática
ao final da década de 1980 (RIDENTI, 2000: 40)
Uma parte expressiva das vitimas de violências causadas pelos órgãos repressores era
ligada aos grupos de esquerda (como a AP, o Polop, a ALN de Mariguela e a VPR de
Lamarca, entre outros), o combate a esses grupos teve inicio já em 1964, quando ocorreu o
Golpe militar, mas se acirrou com a decretação do AI5, devido a adesão à luta armada por
parte de seus componentes. (RIDENTI, 2000: 145-185)
A partir de 1968, inspirados nos ideais de liberdade, nas manifestações da
contracultura e nas lutas populares juvenis (que se espalharam pelo mundo neste período),
somadas às experiências guerrilheiras bem sucedidas na América Latina, como o caso de
Cuba, os grupos de esquerda brasileiros decidiram aliar a teoria a práxis. Resolveram partir
para a luta armada através da guerrilha, o modelo a ser seguido era o cubano, de inspiração
maoísta, que se pautava na insurreição popular do campo para a cidade. (RIDENTI, 2000:
41)
Neste momento, cidadãos brasileiros dotados de consciência politica e coragem
passaram a combater os desmandos dos órgãos repressores, seja através da luta armada no
campo social, seja através do combate intelectual travado no campo cultural. Entre os

* Doutorando do Programa de Pós- Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
bolsista do programa CAPES.
2

“guerrilheiros culturais” muitos foram ligados aos partidos e grupos de esquerda, foram os
casos de Dias Gomes (romancista e dramaturgo), Ferreira Gullar (escritor e poeta),
Gianfrancesco Guarnieri (ator, diretor, dramaturgo), Vianinha (ator, diretor, dramaturgo) e os
músicos Rildo Hora, Sidney Miller, José Carlos Capinam, Gonzaguinha, Paulinho da Viola,
Tom Zé, Jorge Goulart e Nora Ney (todos foram filiados ao PCB durante algum período de
suas carreiras), além dos artistas e músicos que não eram diretamente ligados a partidos e
grupos de esquerda, mas que eram críticos ao governo militar, como Chico Buarque de
Holanda, Gilberto Gil e Caetano Veloso (no caso dos dois últimos, foram ligados ao CPC de
Salvador, mas não militaram em partidos ou grupos políticos).
O destino dos militantes deste período variou, alguns foram brutalmente assassinados,
outros torturados, outros conseguiram se exilar, retornando para o país quando foi iniciada a
reabertura democrática conjugada da Anistia. Entre os artistas, muitos tiveram suas obras
censuradas e proibidas de serem veiculadas, geralmente porque faziam criticas ao governo e à
repressão, como aconteceu com Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré, Milton
Nascimento, Gonzaguinha entre outros. As canções da chamada MPB eram consideradas
“politizadas” e criticas em relação ao contexto político-social, por isso era apreciada por um
publico mais intelectualizado, estudantes universitários ou pessoas com formação superior.
Mas curiosamente, outro tipo de produção musical chamada de “cafona ou brega”, julgada
como despolitizada e acrítica também foi alvo de censura e proibições. Mas neste caso a
perseguição se deu por outro motivo, geralmente por tratarem de temas considerados
inapropriados em relação a moral e aos costumes tradicionais. (ARAUJO, 2015: 54)
Tanto a moralidade, quanto a castidade são pilares fundamentais das religiões cristãs,
tanto do catolicismo quanto do protestantismo em suas diferenciadas vertentes. Nosso país foi
colonizado por portugueses católicos, que junto da conquista territorial tinham como
preocupação difundir o cristianismo e seus valores. Por essa razão, a população brasileira
sempre foi muito ligada aos valores familiares e morais, que acabaram penetrando em nossa
cultura, costumes e em nossa constituição. (VIEIRA, 2005)
A partir da promulgação do AI5, além do âmbito comportamental, os valores morais e
familiares passaram a ser impostos pelo Estado:
3

Por exemplo, em 1972, o ministro das comunicações, Higyno Corsetti, passou a


ditar as normas de programação das TVs, defendendo a proibição de programas
que exaltassem direta ou indiretamente o erotismo, o alcoolismo e as inversões
sexuais. Enquadrado no último item, o costureiro Clodovil foi retirado do júri da
Discoteca do Chacrinha, na TV Globo. O Programa Silvio Santos também enfrentou
barreira semelhante. “Eu tinha um homossexual no júri, e o coronel Erasmo Dias-
acho que foi ele- ligou para mim e falou que eu estava dando mau exemplo. Tirei o
jurado do ar”, afirma o apresentador. (ARAUJO, 2015: 55)

Pode-se afirmar que no período em que vigorou o AI5, sobretudo durante o governo
Médici (1969- 1974), a repressão moral foi tão exercida pelos militares quanto a repressão
politica:
A referência explicita à sexualidade era identificada como um ato de subversão. E
além de programas de TV, diversos filmes, livros, revistas, canções e até obras de
gênios da pintura foram proibidos ou mutilados pela censura. Em 1973, foi
impedido de circular no Brasil um álbum com a reprodução de 347 gravuras
eróticas de Picasso. Como enfatiza o general Antônio Bandeira, que na época
dirigia a Polícia Federal, “a nossa preocupação era moral. Mulher pelada não
podia”. (ARAUJO, 2015: 55)

Ao gravar a canção “Revista Proibida2”, Odair José traz a representação da proibição


aos conteúdos pornográficos, ou que simplesmente expusessem o nu artístico para exibição
midiática durante os governos militares:
Eu comprei uma revista proibida
Uma revista só pra homens
Eu não pensei em nada
Eu só comprei pra ver
Uma revista que falava tanta coisa
Sobre coisas de mulheres
E na primeira página

Eu encontrei você
Eu encontrei você
Eu encontrei você
Eu encontrei você

Uma foto simplesmente toda nua


Deitada a beira da piscina
Seu corpo estava exposto
Pra quem quisesse ver
De repente uma saudade tão antiga

2
Odair José (Comp.). Revista Proibida. LP “Odair José”. Lado 2, Faixa 1. Polydor, 1973.
4

Trouxe de volta o meu passado


Momentos de ternuras
Vividos com você

Momentos com você


Momentos com você
Momentos com você
Momentos com você

Quando você foi embora


Não quis me dizer
Vendo você na revista
Eu começo a entender

Nesta canção, o cantor e compositor Odair José, através de uma narrativa em primeira
pessoa assume o personagem de um homem apaixonado. Ele afirma que tempos depois de ser
abandonado pela mulher amada resolveu comprar uma revista masculina, ele cita essa revista
como uma “revista proibida”, (em alusão a censura) por conter assuntos sobre mulheres, além
de fotos de mulheres nuas. Em uma das fotos da revista encontra nua a mulher amada que o
havia abandonado. Apesar do cunho romântico, a canção “Revista Proibida” evidencia a
questão da repressão moral sobre as artes e a imprensa, que vigorou durante todo o período
de governos militares, sobretudo a partir do AI5 e do governo Médici.
Deve-se ressaltar que grande parte dos músicos categorizados de forma discriminatória
como “bregas ou cafonas3” sofreram com a repressão moral sobre suas obras. Ao tratar de
temas como o sexo livre, prostituição, adultério, divórcio, homossexualidade, alcoolismo,
drogas, entre outros, esses artistas tornaram-se visados e perseguidos pelas autoridades
militares. Entre eles, um dos mais perseguidos, tendo muitas canções (aproximadamente 40) e
discos censurados ou modificados pelos censores foi Odair José. (CAVALCANTI, 2015: 121)
Odair foi classificado por críticos musicais e outros profissionais da imprensa como cantor
brega, termo que rejeita, assim como recusa a denominação de cantor romântico:

3
No Brasil cristalizou-se uma memória musical que privilegia a obra de um grupo de cantores/ compositores
preferido das elites, sendo deixada de lado a obra de artistas populares. No Brasil o termo cafona foi
popularizado pelo jornalista Carlos Imperial, atualmente ele representa um sinônimo do termo “brega”, que
segundo a Enciclopédia da Música Brasileira significa “coisa barata, descuidada e malfeita e a música mais
banal, óbivia, sentimental e rotineira”. (ARAUJO, 2015: 20)
5

O goiano Odair José não gosta, nem admite ser enquadrado na categoria de cantor
brega. Tampouco considera que canções como Uma Vida (Pare de tomar a pílula),
ou Eu vou tirar você deste lugar sejam bregas: “As pessoas não conhecem o Odair
José, que não agrada aos conservadores. Eles vão a um show do Odair José
achando que vão ver uma cópia do Roberto Carlos, ou anunciam que eu sou cantor
brega. Eu sou o pior cantor brega do país, porque o que eu menos faço no show é
aquilo que o cara que vai ver o show de brega quer ver. Eu digo aos contratantes
que não me levem pra esses projetos, porque vão quebrar a cara”. (TELES, 2016)

Para Odair, o termo “brega” é considerado preconceituoso, utilizado na tentativa de


enquadrar em um mesmo estilo, gêneros e artistas diferentes. Em sua opinião, essa
generalização tentava desqualificar e reter o alto número de discos vendidos por estes
músicos. A discriminação também se estendia em relação à falta de criticidade de suas
canções (consideradas despolitizadas e alienantes), mas ao contrário do que era apontado,
além dos temas românticos, os cantores bregas trataram de questões politicas e sociais (leis
trabalhistas, desigualdades, fé, religião...) além de temas considerados imorais
Em suas canções, Odair tratou de várias temáticas que incomodavam as autoridades
militares, por isso passou a ser considerado um “um imoral, um péssimo exemplo para a
juventude”. a DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), vinculada aos órgãos
repressores dos governos militares, fez circular entre as gravadoras do país uma
recomendação para que evitassem gravar as canções de Odair.
Entre as temáticas de que tratava Odair que mais incomodavam os militares estava a
alusão ao sexo. Ele tratou por diversas vezes e de diferentes formas do assunto. Uma dessas
canções foi “Noites de desejo”4, gravada em 1974. Composta inicialmente com o título de “A
primeira noite de um homem”, seu intuito era relatar detalhadamente a primeira relação
sexual de um homem. A canção foi considerada imoral pelos censores, que se justificaram
afirmando que ela incitava a juventude à prática do sexo livre, fora do casamento, sem o
objetivo da formação familiar. Alguns meses depois da proibição, a canção foi liberada sem
cortes. (CAVALCANTI, 2015: 88-89) Odair diverte-se ao afirmar que conseguiu ludibriar os
censores comandados pelo general Golbery (famoso por sua austeridade), apenas trocando
alguns trechos e o título da canção:

4
Odair José (Comp.) Noite de desejos. LP “Lembranças”, Odair José. Lado 1, Faixa 2. Polydor, 1974.
6

Liberada sem cortes – os censores imaginaram tratar-se uma outra ideia – “Noite
de desejos” ocupou a vaga deixada por “A primeira noite de um homem” naquele
mesmo LP de 1974. “Eu enganei o general”, exulta hoje Odair José. E se isto é um
fato, quem mais, na história brasileira, conseguiu enganar o astuto general
Golbery, que na concepção de Glauber Rocha era um “gênio da raça”? (ARAUJO,
2015: 59)

Outra canção gravada por Odair com temática sexual, com o título de “Em qualquer
lugar”5, foi barrada pelos censores no ano de 1973, e ao contrário do que ocorreu com “A
primeira noite de um homem”, ela não foi liberada, mesmo com a ação jurídica da gravadora.
Os censores alegaram que ao descrever relações sexuais realizadas em diversos locais (no
chuveiro, na praça, no carro), ela instigava a prática sexual sem pudor em ambientes públicos.
(CAVALCANTI, 2015: 108)
Outra temática relacionada ao sexo que afrontava os militares por ser considerada
imoral, era a prostituição. Alguns músicos denominados bregas trataram de prostituição em
suas canções, isso se deve, entre outras coisas, à proximidade com o cotidiano da noite (a
maior parte dos cantores bregas iniciou a carreira cantando em boates e prostíbulos). Cabe
lembrar os exemplos de Waldick Soriano (que se apaixonou por uma prostituta de Belém do
Pará) e Nelson Ned (que se envolveu com uma garota de programa e para ela compôs a
canção “Quando eu estiver chorando”). (ASSUNÇÃO; BONFIM, 2011: 7)
Odair tratou da temática da prostituição em seu primeiro grande sucesso, “Vou tirar
você deste lugar”6 no ano de 1972. O disco no qual estava inserida (com o mesmo título,
“Vou tirar você deste lugar”) se manteve entre os mais vendidos do país, chegando a um
milhão de cópias comercializadas. Considerada uma das mais tocadas na história do rádio
brasileiro, na canção homônima, o personagem-narrador diz a uma prostituta pela qual se
apaixonou que irá tirá-la do prostíbulo e assumir uma relação amorosa com ela, mesmo
enfrentando as críticas de familiares e amigos:

Olha...
A primeira vez que eu estive aqui
Foi só para me distrair

5
Odair José (Comp.). Em qualquer lugar. LP “Odair José, Odair José. Lado 2, Faixa 13. Polydor, 1973.
6
Odair José (Comp.). Vou tirar você desse lugar. LP “Vou tirar você desse lugar”. Compacto simples. CBS,
1972.
7

Eu vim em busca do amor


Olha...
Foi então que eu lhe conheci
Naquela noite fria
Em seus braços meus problemas esqueci

Olha...
A segunda vez que eu estive aqui
Já não foi pra distrair
Eu senti saudade de você

Olha...
Eu precisei do seu carinho
Eu me sentia tão sozinho
Que já não podia mais te esquecer

Eu vou tirar você deste lugar


Eu vou levar você pra ficar comigo
E não interessa o que os outros vão pensar (2x)

Eu sei...
Que você tem medo de não dar certo
Pensa que o passado vai estar sempre perto
E que um dia eu possa me arrepender
Eu quero...
Que você não pense em nada triste
Pois quando o amor existe
Não existe tempo pra sofrer

Eu vou tirar você deste lugar


Eu vou levar você pra ficar comigo
E não interessa o que os outros vão pensar7

Com “Vou tirar você deste lugar”, Odair foi primeiro cantor e compositor a tratar de
prostituição de forma explicita. Seguindo o exemplo de Odair, outros artistas passaram a
abordar o assunto desta forma, entre eles pode-se destacar Totó e McDonald (canção “Flor da
noite”), Claudio Fontana (canção “Menina da Noite”), Antonio Carlos e Othon Russo (com
“Mulher de Ninguém”), Sobreira e Da Costa, (canção “Maria Pureza”) e Lindomar Castilho
(canção “Maria Esperança”). (ARAUJO, 2015: 151) A canção “Vou tirar você desse lugar”
conseguiu passar pelos censores em um primeiro momento, tendo sido lançada em compacto
de 1972, depois disto, Odair foi chamado para dar explicações:
“Meu primeiro encontro com a censura foi assim que “Vou tirar você desse lugar”
alcançou enorme sucesso nacional em 1972. Tive que comparecer a um prédio que

7
Odair José (Comp.). Vou tirar você desse lugar. LP “Vou tirar você desse lugar”. Compacto simples. CBS,
1972.
8

ficava próximo aos Arcos da Lapa, no Rio, e ouvir que o refrão da música não era
apropriado para o momento e que as minhas próximas músicas, antes de serem
gravadas , deveriam ser enviadas para uma liberação ou não. Começaram aí as
minhas dificuldades com a censura do governo militar.” (OLIVEIRA, 2020)

Depois desta conversa, o desfecho de “Vou tirar você deste lugar” acabou tomando
outro rumo, ela foi proibida de ser regravada no disco seguinte, como havia sido planejado
pelos produtores, devido ao grande sucesso alcançado.
Mesmo com as inúmeras intimidações dos censores, Odair jamais recuou, ao contrário
disso continuou tratando de temas polêmicos, que incomodavam as autoridades pelo teor
considerado “imoral”. Temas como a defesa do divórcio e a banalização do casamento, em
que estavam pautadas algumas de suas canções, eram os que mais motivavam as ações dos
censores sobre sua obra, vinculando-se aos parâmetros tradicionais do casamento como
instituição de formação da família de fidelidade conjugal e o “amor eterno”. (DEL PRIORI,
2001) Essas representações marcavam o âmbito religioso e jurídico, até o ano de 1977
(quando o Divórcio foi permitido por lei), as pessoas que se separassem através do “desquite”,
não podiam legalmente se casar novamente, mantendo relacionamentos não oficializados pela
justiça. (BERQUÓ, 1998: 410-438)
O casamento não formal, conhecido popularmente como amásio (a prática de morar
junto, sem se casar oficialmente) era criticada e desqualificada socialmente, ela cresceu no
Brasil entre as décadas de 1960 e 1970, sobretudo a partir das mudanças comportamentais
inspiradas em movimentos contraculturais, como o feminista, os hippies entre outros. Como
sujeito do seu tempo, Odair percebeu as mudanças latentes, por isso, algumas de suas canções
apresentavam o cotidiano de casais que já não se amavam e continuavam juntos com medo de
sofrer pressões sociais. Em “Na minha opinião”8, o compositor (Odair), interpreta o
personagem de um homem apaixonado que propunha a mulher amada que se amasiasse com
ele. Para justificar seu pedido, afirmava que muitos cônjuges já não se amavam e
continuavam juntos apenas para manter a aparência.

8
Odair José, Maxine (Comp.) Na minha opinião. LP “Odair”, Odair José. Lado 2, Faixa 12. Polydor, 1975.
9

Em outra canção, voltada para a relativização do casamento legal “Vou morar com
ela” 9, o personagem de um jovem propõe à namorada que se amasiem, para ficarem mais
tempo juntos. Já em 1978, quando o divórcio já havia sido aprovado 10, Odair lançou uma
canção com o título de “O Divórcio”11, que teve de ser trocado para “Agora sou livre”, por
exigência dos censores. Nela o personagem diz à mulher amada, (separada, como ele) que
enfim eles poderiam se casar novamente por vias legais, pois o divórcio já havia sido
aprovado.
Entre as canções do repertório de Odair que causaram maior rejeição entre os
conservadores podem-se citar “Forma de sentir” e “A Viagem”. Em “Forma de Sentir” 12,
gravada em 1978, Odair inseriu a temática da homossexualidade, defendendo abertamente o
relacionamento entre pessoas do mesmo gênero.
Já em “Viagem”13, de 1975, utilizando-se de metáforas, Odair defendeu o uso da
maconha, narrando “a viagem” que a maconha proporcionava, difundindo ideias partilhadas
pelos movimentos de contracultura como o movimento hippie. (CIDREIRA, 2008: 36) A
canção não foi barrada pelos censores por que eles não conseguiram associar o termo
“viagem”, com o uso da cannabis, deve-se ressaltar que além de trazer à tona a difusão do
consumo da droga, Odair também falava de si, pois sabe-se que em seu passado, chegou a
utilizar essa e outras drogas. (CAVALCANTI, 2015: 75)
Famoso pelo seu passado boêmio, o cantor Odair José admite que já usou todos os
tipos de drogas na juventude. “Tudo o que eu podia fazer, eu fazia. Foi uma época
boa, mas percebi que não era o foco. Experimentava tudo o que aparecia: maconha,
cocaína e outras drogas. Também bebia muito. Era jovem e louco. Perdi tempo com
isso, mas me diverti bastante. Se eu não parasse, seria mais um para as estatísticas
de morte de overdose”, disse em entrevista ao “Programa do Jô” desta quinta-feira
(13) [...] (UOL, 2015)

9
Odair José, Rossini Pinto (Comp.) Vou morar com ela. LP “As 14 Mais, Vol. XXV”, Odair José. Lado 2,
Faixa 13. CBS, 1971.
10
A legalização do divórcio no Brasil foi aprovada em 1977 pela câmara dos deputados, antes disto as pessoas
que se separavam só podiam se desquitar e não tinham a possibilidade de se casar de novo via meios legais ou
religiosos, por isso tinham que recorrer a relacionamentos não oficializados como o amasio. (BERQUÓ, 1998:
410-438)
11
Odair José, Maxine (Comp.) Agora sou livre (O Divórcio). LP “Coisas simples”, Odair José. Lado 1, Faixa 6.
RCA Victor, 1978.
12
José Messias, Donizete (Comp.) Forma de sentir. LP “Coisas simples”, Odair José. Lado 2, Faixa 7. RCA
Victor, 1978.
13
Odair José (Comp.) Viagem. LP “Odair”, Odair José. Lado 1, Faixa 3. Polydor, 1975.
10

Durante toda sua carreira, Odair sofreu censuras, criticas e perseguições, mas a maior
delas ocorreu com o lançamento do LP “O Filho de José e Maria”14. Entre outras questões,
esse disco causou o rompimento com a gravadora Phonogram (Polydor), que o acompanhou
boa parte da carreira de sucesso, uma parceria que rendeu recordes de discos vendidos na
década e 1970.
O conflito com a gravadora se deu porque os diretores André Midani e Guilherme
Araújo (pai do cantor Cazuza) não concordaram com as canções que compunham o LP. No
geral as canções criticavam o autoritarismo de setores conservadores da Igreja Católica, a
cobrança do dízimo, o casamento e os padrões de comportamento. Mas o que mais
incomodou a gravadora foram os personagens das canções, que se tratavam de nomes
sagrados do evangelho cristão, tanto para católicos como para protestantes. Os personagens
Jesus15, José e Maria são citados em mais de uma canção do disco, e ao contrário da descrição
religiosa, Odair os caracteriza em condições idênticas aos demais seres humanos, passiveis de
erros e suscetíveis aos prazeres carnais. Na canção “O Filho de José e Maria”16, por exemplo,
Jesus é descrito como um jovem rebelde, com problemas comportamentais ocasionados pela
separação dos pais (representando a condição de muitas famílias na década de 1970), já na
faixa “Nunca Mais17”, o filho de José e Maria (Jesus) é apresentado como homossexual.
Os diretores da Polydor sugeriram a Odair que desistisse da obra e voltasse a gravar
crónicas românticas, evitando assuntos polêmicos que ocasionaram censuras e desgastes com
os militares e membros da Igreja. Odair rejeitou as sugestões, obstinado no projeto rompeu
com a Polydor e em seguida assinou contrato com a gravadora RCA (que aceitou lançar o LP
e promove-lo, com apenas dez músicas das vinte e quatro faixas pretendidas). No mesmo ano

14
LP “O Filho de José e Maria”, Odair José. RCA Victor, 1977.
15
Lembrando que o nome de Jesus não aparece literalmente no disco, ela apenas aparece como “O filho de José
e Maria”.
16
Odair José (Comp.) O Filho de José e Maria. LP “O Filho de José e Maria”, Odair José. Lado 2, Faixa 7.
RCA Victor, 1977.
17
Odair José (Comp.) Nunca mais. LP “O Filho de José e Maria”, Odair José. Lado 1, Faixa 1. RCA Victor,
1977.
11

de 1977, Odair lançou a obra com as canções polêmicas e os arranjos melódicos que queria,
diversos do que estava acostumado, sendo mais próximos do Rock and Roll psicodélico .
Ele promoveu essa obra como Ópera Rock, tocando nas principais casas de espetáculo
do país, mas foi massacrado pelos críticos musicais e pelo público conservador. Foi um
fracasso de vendas e durante um tempo Odair não voltou a alcançar o mesmo sucesso e,
também foi duramente criticado pela Igreja Católica, sendo ameaçado de excomunhão.
Tentando recuperar seu prestigio, Odair voltou a gravar canções canções românticas,
deixando de lado os temas políticos e sua veia contestadora.
Só a partir de 2013, em um show de muito sucesso na Virada Cultural de São Paulo
(CAVALCANTI, 2015: 121) Odair teve sua obra revalorizada, sobretudo por jovens e
intelectuais, que passaram a lhe categorizar como cult (ALVES, 2016, p.11) e reconhecer a
qualidade da obra “O filho de José e Maria”.
É interessante notar que Odair José retoma sua veia contestadora e critica no mesmo
momento em que o Brasil assiste a uma retomada dos ideais conservadores moralistas,
pautados na repressão sexual e de comportamento, assim como no crescimento de
movimentos que favoráveis ao retorno dos governos militares e do AI5. Assistimos a um
retorno dos anseios antidemocráticos e felizmente a um consequente retorno da
combatividade artística, pelo menos por parte de Odair José. Só nos resta saber se o desfecho
será o mesmo, mas isso é assunto para o futuro que está por vir.

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12

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