Você está na página 1de 15

A UE e o terrorismo transnacional: securitizing move e ator normativo, uma contradição nos

termos?

A escola de Copenhaga sobressai pelo seu contributo para nos Estudos de Segurança graças à
inovação teórica e epistemológica aplicada ao fenómeno da segurança com patente europeia.
É relevante o esforço europeu, inicialmente no seio do programa de investigação «Segurança
Europeia» do Copenhaga Peace Research Institute (COPRI), de teorizar sobre a segurança fora
do quadro hegemónico norte-americano, que pensava o fenómeno à luz das teorias das
relações internacionais. O mérito é acrescido se considerarmos que, apesar da sua centralidade
para as relações internacionais, o conceito de segurança foi, durante décadas, acriticamente
utilizado por uma academia pautada por «falta de bibliografia conceptual sobre segurança»
(Buzan 1991, 3-4), Em contrapartida, nos anos 90 generalizou-se o debate sobre à segurança,
do qual resultou uma abordagem ampla do fenómeno, multiplicando-se as vozes em defesa da
descentragem dos eixos estadual (o Estado como objeto e provedor da segurança) e politico-
militar (natureza da ameaça e meios de combate) paradigmáticos do realismo. Neste contexto,
foi clarividente o posicionamento crítico waveriano sobre os críticos do realismo ao alertar para
a necessidade de analisar a segurança como um conceito intersubjetivo, socialmente
construído, e de procurar perceber o porquê, o como e os efeitos do ato discursivo securitário,
ultrapassando desta forma a (então) emergente clivagem entre «tradicionalistas» e
wideners/deepeners. Ainda que crítico dos limites da construção teórica da escola de
Copenhaga, Hoger Stritzel considera que a ideia de securitização é «um dos contributos mais
importantes e controversos para um corpo vibrante de novas teorias da segurança» (Stritzel
2007, 357).

A emergência da teoria da securitização coincide com a explicitação da União Europeia (UE)


como ator de segurança, pelo que, ao poder ser aplicada a outras entidades, para além do
Estado (Buzan, Waever e Wilde 1998, 24), se justifica, volvidas duas décadas, a análise da
evolução do ator europeu à luz da mesma. Apesar de ser um fenómeno único, a UE, pela sua
especificidade e complexidade, tem suscitado uma paleta teórica e concetual diversificada,
ainda que a partir do próprio fenómeno (teorias da integração). Os quadros teóricos mais
amplos, quando aplicados a um fenómeno singular e desafiante, como a UF, suscitam dilemas,
cuja tentativa de superação poderá, por sua vez, contribuir para o aperfeiçoamento teórico.

Na ampla gama de categorizações potenciada pela complexidade do ator europeu encontra-se


a de «potência normativa». O conceito, embora sujeito a múltiplos significados, está
geralmente associado à atuação internacional da União Europeia. Diferentemente, e para
efeitos do presente estudo, optou-se pela seguinte delimitação: considera-se apenas a
dimensão normativa do ator, dissociada da componente de poder, enquanto promotor de
princípios normativos, designadamente «paz, liberdade, democracia, direitos humanos, Estado
de direito, igualdade, solidariedade social, desenvolvimento sustentável e boa governação»
(Manners 2008); não se restringe a aplicabilidade à dimensão externa (ator internacional),
dada a interdependência entre as dimensões interna e externa do ator; entende-se que ator
normativo não é sinónimo de ator civil (não militar). Partindo do alerta de que «os princípios
normativos que proporcionam legitimidade à UE e às suas políticas de segurança externas
estão a ser desafiados na era da Al' Qaeda», sendo por isso necessário que a União respeite a
dimensão normativa nas suas políticas de segurança (v. Manners 2008, 406), o presente
capítulo distancia-se, no entanto, da argumentação de Tan Manners, isente na ênfase sobre a
militarização (Manners 2008, 408). Embora, conforme se demonstrará, após o 11 de setembro
tenha sido declarada a expansão da agenda da (então designada) política europeia de
segurança e defesa (PESD) ao terrorismo e a possibilidade de internalização desta política, os
efeitos perversos do securitizing move da UE não decorrem apenas da tendência ulitarizadora.
Importa sobretudo considerar as dinâmicas associadas à abordagem holística, às lógicas de
nexos securitários e à externalização da «segurança interna» da UE.

O estudo também não pretende responder à pergunta «o que é» a União Europeia (Manners
2002), privilegiando antes «o que diz» e o «o que faz» (Smith 2009). Um segundo limite do
estudo prende-se com o facto de analisar apenas o securitizing move nos termos definidos pela
escola de Copenhaga — «um discurso que assume a forma de apresentar algo como uma
ameaça para um objeto referente» —, não contemplando indicadores relativos à aceitação (ou
não) do speech act pelo público. De notar que «o assunto é securitizado apenas se e quando o
público o aceita como tal» (Buzan, Waever e Wilde 1998, 25).

Em síntese, pretende-se verificar se a linguagem no discurso da UE, especialmente do


Conselho. Europeu e do Conselho da UE, sobre o terrorismo, após o 11 de setembro, é a da
securitização e, em caso afirmativo, se este securitizing move contradiz à natureza normativa
da União. A primeira secção identifica os dilemas da aplicação da teoria da securitização à UE.
Na segunda secção é delineada a evolução da União como um ator de segurança pós-
vestefaliano. À terceira secção analisa o securitizing move da UE em resposta aos ataques
terroristas de 11 de setembro e subsequentes, procurando perceber as suas implicações ao
nível da natureza normativa do ator europeu.

Securitização e ator sui generis: dilemas da aplicação teórica

A União Europeia é um ator singular que, ao desafiar as categorias clássicas (Bretherton e


Vogler 2007), complexifica a tarefa de utilização de certos quadros teóricos. Neste contexto,
Andrew Neal (2009) identifica quatro problemas na aplicação da teoria da securitização à UE
que afetam as diferentes condições do processo securitizador: a extensão restrita do efeito e
do debate público dos atos discursivos da União; a fragmentação e complexidade institucional
da polity europeia; a dificuldade em identificar o público do discurso securitizador e o respetivo
papel legitimador; a discutível capacidade (constitucional, política, legal ou institucional) de
utilização de meios extraordinários. Do estudo sobre a Frontex, o autor conclui que, «embora o
espetáculo da securitização discursiva possa ser facilmente identificado nas instituições da UE,
é muito mais difícil discernir uma relação de causalidade com alterações ou resultados ao nível
das políticas» (Neal 2009, 352).

A aplicação da teoria da securitização, já de si complexa, pelo défice de operacionalização dos


seus conceitos estruturantes, é um desafio acrescido quando se pretende analisar um ator
singular, como é o caso da UE. Não sendo um Estado, a verdade é que não se esgota na
categoria de organização internacional (intergovernamental) nem de organização internacional
«clássica» de segurança, pois, diferentemente da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN), constitui um polity, com múltiplos níveis de decisão, assume competências em ambas
as dimensões da segurança e utiliza instrumentos não securitários em benefício de objetivos de
segurança. Neste contexto, importa refletir sobre alguns dos conceitos da escola de Copenhaga
aplicados à UE.

Quem securitiza? A União Europeia é uma polity complexa que não dispõe de um governo, mas
de formas de governação que combinam múltiplos níveis de decisão e dinâmicas
supraestaduais, interestaduais, transgovernamentais e transnacionais. Acresce que o
«coletivo» não é monolítico. Por um lado, temos as unidades de base, que são os Estados
membros, com a sua incontornável diversidade, sendo que esta transparece com particular
acuidade em domínios de incidência interestadual, como é o caso da segurança. Aplicando os
mecanismos da europeização, constatamos que, nesses domínios, os processos bottom-up e
cross-loading tendem a prevalecer sobre os processos top-down. Por outro lado, temos as
instituições que, apesar de supraestaduais, dispõem de competências diferenciadas, consoante
a área da política pública, para além e não partilharem a mesma perceção dos fenómenos
securitários.

Conscientes destas limitações, optou-se por analisar o discurso securitizador a partir de


documentos emanados pelas instituições com capacidade de decisão política nas quais estão
representados 65 Estados membros: Conselho Europeu e Conselho da EU. O discurso destas
instituições resulta de um consenso construído a 27, representando a voz do coletivo (mínimo
denominador comum). Um estudo mais completo - e fica aqui o repto para investigação futura
— exigirá a análise comparativa do discurso das diferentes instituições, designadamente da
Comissão Europeia e Parlamento Europeu.

O que significa «ameaça existencial»? E para quem? Nos termos do Tratado de Maastricht,
pretendia-se, com a política externa e de segurança comum (PESC), «a salvaguarda dos valores
comuns, dos interesses fundamentais e da independência da União» (artigo J.1) e, com a
cooperação na área da justiça e assuntos internos, a segurança dos povos europeus contra o
«terrorismo, o tráfico ilícito e droga e outras formas graves de criminalidade internacional»
(artigo K.1) num espaço de livre circulação de pessoas. Os documentos oficiais subsequentes
mantêm esta referência ao coletivo europeu, embora se verifique uma diferenciação: na
dimensão externa, o coletivo é a UE, enquanto na dimensão interna o discurso privilegia os
cidadãos (ou povos europeus).

O que significa «medidas extraordinárias»?! A este nível, importa considerar o que é «normal»
para um determinado ator é analisar os efeitos do discurso securitizador em termos de
mudança dessa «normalidade». Se considerarmos a história da UF, à normalidade era a
dessecuritização e a utilização de meios não securitários para a consecução da segurança
europeia assentes em narrativa e prática de pendor normativo.

O processo de construção europeia começou pelo setor económico e só na década de 90 se


estendeu à área da segurança. Às resistências estaduais numa área sensível das soberanias
nacionais explicam que esta, diferentemente da integração económica, se pautasse pela
cooperação interestadual e pelo método intergovernamental de decisão. No domínio
específico da luta antiterrorista, entre novembro de 1993 e setembro de 2001, as instituições
da União, particularmente a Comissão Europeia, motor do interesse comum, primaram pela
omissão. As raras e dispersas iniciativas de pendor declarativo situaram-se no âmbito do então
terceiro pilar, cumprindo a tradição europeia de privilegiar os instrumentos policiais e
judiciários na luta antiterrorista, como comprovado pela Declaração de La Gomera, pela Ação
Comum 96/10/ 610/JATF ou pela criação da Unidade Europol Contraterrorismo.

Da economia à segurança: um ator em construção

Inicialmente restrito à área económica, o processo de construção europeia cobre hoje as


diferentes áreas da política pública, incluindo a segurança. A criação da Comunidade Europeia
do Carvão e do Aço esteve subjacente um objetivo securitário — prevenção de conflitualidade
entre Estados europeus —, embora o projeto europeu tenha privilegiado os meios não
securitários, utilizando a integração económica para reduzir os conflitos políticos entre os
Estados membros (Smith 2004): «a UE garantiu imunidade de segurança não pelo
desenvolvimento de atividades de segurança conjuntas, mas, pelo contrário, fazendo outras
coisas» (Wrever 1998, 92). Tendo sido sucedida no plano interno, consolidando uma
«comunidade de segurança» nos termos definidos por Karl Deutsch (1957), e na extensão
desta a novos Estados membros, através da política de alargamento, pode afirmar-se que a
então Comunidade Económica Europeia, para além de ator económico, consubstanciava já uma
actorness de segurança, ainda que implícita (Brandão 2010). A sua explicitação foi adiada, no
que respeita à dimensão externa, pelo fracasso do projeto da Comunidade Europeia de Defesa
(CED), que transformou a defesa comum em tema tabu, bem como pela garantia das
necessidades de segurança a cargo dos EUA e da OTAN em contexto de guerra fria e, no que
respeita à dimensão interna, pela resistência dos Estados membros em estabelecerem
mecanismos formais de cooperação e, domínio sensível de soberania nacional.

O fim da guerra fria criou a oportunidade para essa explicitação. A alteração da natureza das
ameaças, com a priorização das fontes de insegurança de cariz não militar e transnacional, o
recuo da presença americana no palco europeu, os nexos
segurança/desenvolvimento/conflito/pobreza, a valorização da dimensão branda do poder
(soft power) e a conflitualidade intraestadual na vizinhança da União não só facilitaram como
pressionaram no sentido dessa explicitação.

O Tratado de Maastricht consagrou competências no domínio da segurança, quer externa,


associada à PESC, quer interna, associada à cooperação policial e judiciária em matéria penal
(no âmbito mais amplo da cooperação no domínio da justiça e assuntos internos). A
formalização da cooperação no domínio da segurança obedeceu a traços específicos: natureza
intergovernamental garantida pela criação de dois pilares (segundo e terceiro pilares)
diferenciados, plasmados no Tratado da União Europeia, embora sob um quadro institucional
único; coordenação de políticas nacionais no âmbito de uma União Europeia (e não da
Comunidade Europeia) despojada de personalidade jurídica; reprodução do modelo estadual
de separação entre as dimensões externa (segundo pilar da UE) e interna (terceiro pilar da UE)
da segurança; cooperação abrangendo «todas as questões relativas à segurança na União
Europeia», embora na área da defesa sujeita a definição a prazo.

Apesar da explicitação no início da década de 90, foi necessário esperar pela emergência da
então designada PESD para que o termo «ator de segurança» se generalizasse. A introdução da
cooperação militar, e subsequente implementação de operações no terreno, contribuiu para o
reconhecimento da security actorness por atores estaduais (membros e não membros),
herdeiros do legado realista que valoriza a componente militar e a distinção clássica entre
segurança interna e segurança externa. De notar, todavia, que a evolução da PCSD veio a
confirmar a natureza civilista da União Europeia: a dimensão civil (polícia, Estado de direito,
administração civil, proteção civil) foi inserida pelo Conselho Europeu de Santa Maria da Feira
(2000), realizado sob a presidência portuguesa, a primeira missão europeia foi civil e a maior
parte (72%) das missões no terreno têm sido civis.

Além da formalização da componente militar do ator no âmbito do segundo pilar, o Tratado de


Amesterdão introduziu duas alterações no domínio da segurança: a restrição do terceiro pilar à
cooperação policial e judicial em matéria penal, bem como a possibilidade de externalização
dessa cooperação. Volvida uma década, o Tratado de Lisboa transferiu estas matérias para o
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, eliminou à estrutura em pilares e conferiu
à UE personalidade jurídica.

A par da evolução jurídica e institucional, foi, finalmente, adotada uma definição estratégica
comum. A avaliação comum pauta-se por seis ideias centrais: a complexidade dos desafios à
segurança num contexto de globalização e abertura das fronteiras, que torna próxima a
insegurança longínqua e que acentua a vulnerabilidade da União face à ameaças" percebidas
como dinâmicas diversificadas, interdependentes, menos visíveis e menos previsíveis; o nexo
entre os aspetos externos e internos da segurança; a necessidade de coordenação de
diferentes instrumentos e capacidades, de cooperação e solidariedade entre os Estados
membros, de cooperação internacional e de multilateralismo efetivo para lazer face aos
desafios; a preocupação com atender às causas da insegurança e não apenas aos seus efeitos,
bem como o acento sobre a prevenção e antecipação; à componente normativa (primado do
Estado de direito e da democracia, boa governação, respeito dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais, diálogo, tolerância, transparência e solidariedade); o imperativo de a
UE «assumir a sua parte de responsabilidade na segurança global» (Conselho Europeu 2003, 1)
e na proteção dos cidadãos europeus.

Em suma, a União dotou-se de capacidade política (elaboração e implementação de políticas,


definição de prioridades) e agenda-setting, coesão interna mínima, legitimação interna (do
processo político), jurídica (adoção de normas jurídicas), institucional (instituições comuns com
competências na área e organismos específicos), diplomática (negociação e representação
internacional), humana e material (recursos humanos, materiais e financeiros próprios). Para a
actorness de segurança não apenas concorrem a PESC/PCSD e a cooperação no domínio da
«Segurança interna», mas também outras políticas da União. Tal permite-lhe desempenhar
quatro funções no domínio da segurança (Kirschner e Sperling 2007): prevenção (de conflitos
interestaduais e intraestaduais); assurance (peacebuilding); proteção («segurança interna»);
compulsão (restabelecimento da paz, manutenção da paz, imposição da paz).

Antes da explicitação, a segurança foi a motivação e o resultado de um processo de integração,


ainda que de alcance intramuros e com recurso a meios não securitários. A oportunidade
gerada pelas alterações do pós-guerra fria facilitou a explicitação, potenciando uma ambição
de actorness de alcance global, com recurso a meios securitários, e a abordagem holística da
segurança. Os efeitos desta actorness emergem a vários níveis. Antes de mais, assiste-se à
crescente ascensão da segurança na agenda europeia, passando a ser «uma das principais
prioridades» e um «factor-chave para garantir uma elevada qualidade de vida na sociedade
europeia» (Conselho Europeu 2010a). Em segundo lugar, a abordagem holística favorece o
securitizing move noutros domínios: no ambiente, as alterações climáticas são percebidas
como «um multiplicador de ameaças que agrava tendências, tensões e instabilidade», afetando
a segurança internacional e, por sua vez, à segurança da União (High Representative e
European Commission 2008, 2); na energia, a dependência europeia de importações
provenientes de zonas instáveis, bem como a utilização da energia como instrumento político
por parte de grandes produtores e consumidores, são percebidas como «riscos graves»
(European Commission e High Representative 2006, 1); no desenvolvimento, com a introdução
de cláusulas relativas à segurança nos acordos celebrados com países terceiros; na imigração,
com particular incidência sobre a imigração ilegal. Esta tendência é ainda verificável no
discurso dos nexos: segurança externa/segurança interna; desenvolvimento/segurança,
pobreza/conflito; ambiente/energia/segurança.

A União Europeia face ao terrorismo no pós-11 de setembro

Após o 11 de setembro, e com particular incidência após os ataques em solo europeu, assiste-
se a uma profusão política, legislativa e orgânica que contrasta com a inércia das duas décadas
precedentes no domínio da luta contra o terrorismo. Embora esta tenha estado na origem da
cooperação informal em matéria de justiça e assuntos internos na década de 70, o silêncio
coletivo, apenas interrompido por iniciativas dispersas, predominantemente de natureza
declarativa e/ou não vinculativa, pautou os anos 80 e 90. A ausência de ação coletiva
sistemática é explicada pela conjugação de vários fatores, entre os quais: a priorização da
segunda da integração económica europeia, o mercado interno, que reorientou as
preocupações securitárias para o combate à criminalidade transnacional; a prevalência do
terrorismo de incidência nacional, que, sendo considerado do domínio reservado dos
respetivos Estados, dissuadiu a abordagem comunitária; o excesso de prudência da Comissão
em exercer a capacidade de iniciativa política e legislativa no domínio sensível da «segurança
interna» introduzido pelo Tratado de Maastricht e por ele localizado no terceiro pilar de
natureza intergovernamental.

A resposta à ameaça terrorista não só catalisou a adoção de instrumentos (estagnados)


previstos, designadamente pelo Programa de Tampere (1999), e atualizou/expandiu a aplicação
de instrumentos preexistentes, como também suscitou à criação de novos instrumentos.
Diferentemente do período anterior, constata-se um esforço no sentido de desenvolver uma
abordagem integrada e continuada que configure uma política antiterrorista europeia: «[A]
principal vantagem de ter uma estratégia antiterrorista é o facto de permitir a implementação
equilibrada e coesa da política antiterrorista, em vez de uma resposta provocada pela crise»
(European Union Counter-Terrorism Coordinator 2011, 5). Adicionalmente, é patente a
preocupação com passar de um registo meramente declarativo para a ação coletiva,

Logo após os ataques, o Conselho Europeu extraordinário de setembro de 2001 adotou um


plano de ação de amplo alcance, o qual «constituiu o embrião da política antiterrorista da UE,
estabeleceu um quadro para políticas dispersas e tornou-se um mecanismo de coordenação
interna, fornecendo objetivos, prazos e competências de implementação» (Argomaniz 2009,
154). No plano legislativo, a prioridade foi dada à definição comum de infração terrorista e
harmonização mínima de penas a aplicar, à aprovação do mandado de captura europeu” e ao
congelamento de ativos de grupos terroristas. De referir ainda a aprovação de medidas no
domínio da segurança dos transportes, particularmente da aviação civil, e do combate ao
financiamento do terrorismo, considerado um crime, passando-se a distinguir o
branqueamento de capitais associado ao crime organizado e transações com vista a financiar
organizações terroristas e ataques terroristas.

Considerando a diversidade de experiências nacionais, é significativo o esforço no sentido de


harmonizar a sempre controversa definição de terrorismo. Em rigor, os 27 Estados membros
conseguiram consensualizar o mínimo denominador comum da definição de infração terrorista
e de grupo terrorista. De acordo com a Decisão-Quadro 2002/475/JAL entende-se por «grupo
terrorista» a associação estruturada de duas ou mais pessoas, que se mantém ao longo do
tempo e atua de forma concertada, com objetivo de cometer infrações terroristas» (Conselho
da União Europeia 2002, 4). O n.º 1 do artigo 11 da decisão-quadro estabelecia que os Estados
membros aprovariam, o mais tardar até 31 de dezembro de 2002, as medidas necessárias para
dar cumprimento mesma. A dimensão de soft law é patente nas falhas da transposição da
decisão-quadro: oito anos após o prazo inicial, alguns listados membros não tinham transposto
corretamente os artigos 1, 5.3 e 7 da referida decisão-quadro. No plano orgânico, a resposta
aos ataques expandiu a já complexa arquitetura institucional no domínio da segurança:
instituições como a Comissão e o Conselho foram objeto de ajustamentos internos; organismos
anteriormente estabelecidos (por exemplo, Europol, Academia Europeia de Polícia, Police
Chiefs Task Force) viram reforçadas as suas competências e/ou os seus recursos humanos e
materiais; novos organismos foram criados (como o Eurojust); novos mecanismos de ligação
UE-Estados membros foram estabelecidos (por exemplo, correspondentes nacionais Eurojust).
A profusão orgânica resultou num sistema que integra «demasiados atores, com duplicação de
tarefas que se sobrepõem e uma série de instituições que prosseguem os mesmos objetivos»
e, consequentemente, «o processo para tomada das decisões necessárias torna-se complexo e
pesado» (Casale 2008, 68-69).

No domínio da cooperação policial, foram criados um centro operacional para o intercâmbio e


a coordenação de informações, que passou a produzir documentos de síntese diários, e a
Counterterrorism Task Force (CTTF), operacional a partir de 15 de novembro de 2001. A
decisão relativa à cooperação policial e judiciária na luta contra o terrorismo (2003/48/JAI)
determinou a designação pelos Estados membros de uma unidade nacional responsável por
comunicar à Europol informação relativa a atividade terrorista: dados identificadores da
pessoa, grupo ou entidade; atos de investigação; relação com outros casos relevantes de atos
terroristas; uso de tecnologias de comunicação; detenção de armas de destruição maciça. A
prioritarização da ameaça terrorista influiu o desenvolvimento da Europol a vários níveis:
orgânico; afetação de recursos humanos e materiais; diversificação de serviços e produtos,
apoio (avaliação de ameaça e apoio aos gabinetes de ligação) aos Estados membros aquando
de eventos internacionais

Os ataques terroristas ocorridos em Madrid intensificaram a dinâmica comum. Ainda que


tenham sido avançadas propostas de novas medidas, a concretização da ameaça em solo
europeu imprimiu sobretudo o carácter de urgência à aprovação e implementação de medidas
anteriormente propostas, bem como antecipou a adoção de disposições previstas no Tratado
Constitucional. O Conselho Europeu, reunido em 25 de março de 2004, aprovou a Declaração
sobre a Luta contra o Terrorismo, a qual incluía a Declaração sobre a Solidariedade, que prevê a
mobilização de todos os instrumentos, incluindo os militares, ao dispor dos Estados membros
em caso de ataque terrorista contra um deles. Em termos orgânicos, foi antecipado o
estabelecimento da Frontex, recomendada em 2002 pela Comissão Europeia, na sequência da
Declaração de Laeken, com o objetivo de implementar um sistema integrado de controlo das
fronteiras externas da União. Foi ainda criado o cargo de coordenador da luta antiterrorista,
que passou a coordenar os trabalhos do Conselho em matéria de combate ao terrorismo e a
supervisionar os instrumentos ao dispor da UE, ainda que despojado de poderes reais (Bures
2011).

Em dezembro de 2004, o plano de ação revisto definiu sete objetivos estratégicos: «aprofundar
o consenso internacional e intensificar os esforços internacionais de luta contra o terrorismo;
reduzir o acesso dos terroristas a recursos financeiros e outros recursos económicos; otimizar a
capacidade dos organismos da UE e dos Estados membros para detetar, investigar e perseguir
turistas e prevenir atentados terroristas; proteger a segurança dos transportes internacionais e
assegurar a existência de sistemas eficazes de controlo das fronteiras; reforçar a capacidade
dos Estados membros para fazer face às consequências de um atentado terrorista; enfrentar os
fatores que contribuem para o apoio do terrorismo e o recrutamento para o mesmo; direcionar
ações no âmbito das relações externas da UE para países terceiros prioritários, nos quais exista
a necessidade de reforçar a capacidade de luta antiterrorista ou o empenhamento no combate
ao terrorismo» (Conselho Europeu 2004a, 9). No total, o Plano de Ação e à «Declaração sobre a
Luta contra o Terrorismo» passaram a contemplar a proposta de 57 medidas. Dado o défice de
implementação das decisões por parte dos Estados membros, foi ainda decidido reforçar os
mecanismos de monitorização.

Em resposta aos ataques de Londres, foi adotada a «estratégia antiterrorista da União


Europeia» (Conselho da União Europeia 2005), que reorganizou os objetivos estratégicos em
torno de quatro eixos: prevenção; proteção; perseguição; resposta. O primeiro eixo incide
sobre a prevenção da radicalização e do recrutamento, incluindo a utilização da internet para
esses fins, bem como à prevenção do financiamento do terrorismo. As medidas adotadas no
segundo eixo têm por objetivo a proteção das infraestruturas críticas e das fronteiras externas
da UE, bem como a segurança dos transportes (segurança marítima, segurança da aviação civil)
e da cadeia de abastecimento, a promoção da atividade de T&D no domínio da segurança e a
avaliação conjunta de ameaças. No terceiro eixo prevê-se a investigação e perseguição dos
terroristas, com vista a desarticular as suas atividades (financiamento, planeamento,
recrutamento, comunicações, deslocações, redes de apoio). O quarto eixo visa utilizar os
sistemas de resposta para reduzir as consequências dos ataques terroristas, bem como dar
apoio às vítimas. Para responder de forma eficaz em caso de ataque, tendo em vista a
minimização das consequências do mesmo, a União propõe-se melhorar a cooperação nas
áreas da gestão civil de crises, da prevenção civil e da preparação para situações de
emergência, bem como apoiar as vítimas dos ataques.

O segundo ataque em solo europeu explica a prioridade concedida à prevenção da


radicalização, com a aprovação pelo Conselho, em novembro de 2005, da «estratégia de
combate à radicalização e ao recrutamento para o terrorismo». A estratégia” privilegia três
áreas de ação: «desmantelar as atividades de redes e indivíduos que aliciam pessoas para fins
terroristas; garantir que as opiniões da maioria prevaleçam sobre o extremismo e promover
mais energicamente a segurança, a justiça, a democracia e a criação de oportunidades para
todos» (Council of the European Union 20052, 3). Enquanto na primeira versão a ênfase é
sobre o extremismo inspirado pela Al' Qaeda, na revisão de 2008 é retirada a menção à
mesma. Embora o islamismo radical continue a ser considerado a principal fonte das redes
clandestinas que usam a religião para fins criminosos, a estratégia propõe-se combater todas
as formas de terrorismo.

A iniciativa comum também acelerou a adoção de medidas com vista a melhorar a recolha e o
intercâmbio de informações. Na sequência da declaração do Conselho relativa aos ataques
terroristas em Londres,” que reafirmava a necessidade de aprovar as medidas comuns relativas
à conservação de dados de telecomunicações, foi aprovada a Diretiva 2006/24/CE. Embora
seja reconhecida a vantagem da harmonização das normas nacionais relativas à conservação
de dados, a transposição da diretiva tem tido irregular e esta tem sido alvo de críticas por não
estabelecer garantias suficientes sobre a forma de armazenamento, acesso e utilização dos
dados (Comissão Europeia 2011). Neste domínio foram ainda aprovadas a decisão-quadro
relativa à simplificação do intercâmbio de dados e informações entre as autoridades de
aplicação da lei dos Estados membros e a decisão-quadro relativa à um mandado europeu de
obtenção de provas. Algumas disposições do Acordo de Prim, celebrado em 2005 entre sete
Estados europeus com vista a aprofundar a cooperação policial, designadamente no domínio
do intercâmbio de informações, foram integradas no ordenamento da UE.

As alterações políticas, legislativas e orgânicas demonstram a tendência para uma


europeização da governação do terrorismo (Den Boer 2003). No entanto, esta tem sido no
sentido da coordenação e não da integração (Monar 2008). Nas diferentes dimensões da luta
antiterrorista permanece o protagonismo dos Estados, considerados «os principais
intervenientes neste domínio de ação sensível» (Comissão Europeia 2010a, 2). Embora estes
reconheçam discursivamente os limites da ação nacional na luta contra uma ameaça
transnacional e afirmem a necessidade da ação coletiva, na prática resistem a implementar as
decisões comuns, a transferir competências para a União, a dotar a União dos recursos
humanos: e materiais necessários, a valorizar o multilateral face ao bilateral, o que impede a
institucionalização de uma política supraestadual. Para esta ambivalência concorre não só a
histórica diferenciação de perspetivas nacionais sobre a integração europeia, como a distinta
perceção da ameaça por parte de Estados membros num espaço «ainda fragmentado em
jurisdições, serviços responsáveis pela aplicação da lei e serviços de informações nacionais»
(Bures 2011, 245). Os constrangimentos da atuação europeia não se situam apenas ao nível
estadual: as próprias instituições da EU também demonstram ter, por vezes, dificuldade em
«falar numa só voz», verificando-se um défice de coordenação horizontal (interinstitucional):
«A governação desarticulada e por vezes incoerente das atividades e iniciativas
contraterroristas produz inconsistências e contradições, fragilizando, portanto, os esforços na
luta contra o terrorismo» (Casale 2008, 69).

Terrorismo, securitizing move e ator normativo

O que mudou no pós-11 de setembro? «O Conselho Europeu decidiu que o combate ao


terrorismo passará a ser mais do que nunca um objetivo prioritário da União Europeia»
(Conselho Europeu 2001, 1). O terrorismo passou a ser considerado uma ameaça comum e
priorizado na agenda europeia como «uma das maiores ameaças à nossa subsistência»
(Conselho Europeu 2008, 4). De notar, no entanto, uma evolução da perceção da ameaça
associada à concretização da mesma em solo europeu: de ameaça global externa da Al' Qaeda
contra as «sociedades abertas, democráticas, tolerantes e multiculturais» (Conselho Europeu
2001, 1), tendo por alvo inicial os EUA, à ameaça internalizada (Monar 2008), fomentada pelo
radicalismo no seio da Europa, contra «a nossa segurança, os valores das nossas sociedades
democráticas e os direitos e liberdades dos nossos cidadãos» (Conselho da União Europeia
2005b, 6), em espaço aberto, pelo que particularmente vulnerável, que «é simultaneamente
um alvo e uma base para o terrorismo» (Conselho Europeu 2003, 3). À semelhança de outras
ameaças, e na linha da «estratégia europeia em matéria de segurança», os documentos
sublinham nexos, quer entre as diferentes ameaças (por exemplo, criminalidade organizada,
aquisição de armas de destruição maciça, enfraquecimento do sistema estatal), quer entre as
dimensões interna e externa da ameaça, bem como a natureza dinâmica e diversificada, em
termos de alcance e resultado (Europol 2011), da mesma: a ameaça terrorista permanece
significativa e está a tornar-se mais multifacetada. A radicalização continua a verificar-se
através quer do contato pessoal quer da internet. À composição e a liderança dos grupos
terroristas estão em mudança. Atores solitários com cidadanita europeia estão a envolver-se
em atividades terroristas. Cidadãos nacionais de Estados membros da União Europeia estão a
viajar com destino a zonas de conflito para treino. Alguns juntam-se a grupos e lutam no
Afeganistão e na Somália, outros regressam para viver na Europa [Council of the European
Union 2011, 2].

Volvida uma década, e apesar de os números serem comparativamente menos expressivos,” o


último relatório da Europol reafirma que o «terrorismo continua a constituir uma ameaça grave
para a União Europeia e seus cidadãos [...] A luta contra o terrorismo permanece por isso uma
prioridade para a União Europeia e Europol» (Europol 2011, 4).

A multidimensionalidade da ameaça justificou uma abordagem holística (comprehensive


approach) por parte da UE. Quando se deram os ataques, a estrutura da União ainda obedecia
à lógica dos pilares. Antes do 11 de setembro havia práticas de coordenação interpilares, como
o demonstram as sanções que exigiam uma decisão no quadro do segundo pilar (PESC),
aplicada através de instrumentos do primeiro pilar (política comercial), ou a incorporação, em
1995, da componente de prevenção de conflitos na política de desenvolvimento, com
incidência na análise de conflito, no alerta precoce e na ação rápida, que implicava o concurso
do primeiro e segundo pilares. O Conselho Europeu extraordinário de setembro de 2001
pugnou por uma «abordagem interdisciplinar» que incorporasse todas as políticas da União,
incluindo à PESC e a PESD (Conselho Europeu 2001, 1), consagrando a transpilarização (cross-
pillarisation) no domínio da segurança, isto a coordenação de instrumentos dos então três
pilares da União.

Neste contexto, e alterando a matriz histórica europeia de utilizar os instrumentos policiais e


judiciários na luta contra a ameaça terrorista, foi, pela primeira vez, aberta a possibilidade de
recorrer aos meios, incluindo os militares, da então recém-criada PESD, o que resultou na
expansão de facto da agenda da política, posteriormente consagrada de iure pelo Tratado de
Lisboa, o «quadro conceptual da dimensão PESD da luta contra o terrorismo» identificou
quatro áreas de atuação: prevenção de ataques terroristas, incluindo operações de vigilância
marítima e aérea; proteção do pessoal, do material e dos meios, proteção de alvos-chave civis,
incluindo infraestruturas críticas, na zona das operações e proteção dos cidadãos europeus em
países terceiros; reação e gestão das consequências (tratamento dos efeitos de um atentado
combinando meios militares e civis); apoio a países terceiros na luta antiterrorista. No que
respeita especificamente ao contributo dos meios militares na luta contra o terrorismo, os
documentos oficiais referem: o restabelecimento da ordem em Estados falhados, estabilização
pós-conflito (União Europeia 2004); a prevenção da ameaça terrorista nos territórios dos
Estados membros, proteção das instituições democráticas e das populações civis contra
ataques terroristas, incluindo NRBOQ, assistência a um Estado membro alvo de um ataque
(Conselho Europeu 2004). Além da tendência militarizadora, é de notar a possibilidade de
internalização de uma política de incidência externa.

A internalização de políticas de incidência externa é complementada pela externalização de


políticas internas, o que configura uma das dimensões do nexo segurança externa-interna
anteriormente referido. No que diz respeito à externalização da cooperação no domínio da
«segurança interna», esta começou a desenvolver-se no domínio da luta contra a criminalidade
organizada, bem como no contexto mais amplo da justiça e assuntos internos. Após 11 de
setembro de 2001, a externalização no domínio específico da luta contra o terrorismo
ascendeu na agenda europeia. Neste contexto, foram implementadas as Resoluções 1267 e
1373 das Nações Unidas, sendo a União favorável à adoção de uma convenção global sobre o
terrorismo. No plano bilateral, destaca-se a cooperação transatlântica, considerada «uma parte
essencial para garantir a segurança europeia» (Council of the European Union 2011, 44), que,
pesem embora as divergências designadamente em matéria relativa à proteção de dados,
resultou na celebração de uma série de acordos, entre os quais os acordos sobre o tratamento
de dados de mensagens de pagamentos financeiros e o acordo PNR. De referir a introdução de
cláusulas relativas à luta antiterrorista nos acordos com países terceiros, bem como a inserção
da temática na agenda do diálogo político, nos documentos estratégicos, nos planos de ação e
nos instrumentos financeiros bilaterais e inter-regionais, No âmbito da parceria euro
mediterrânica foi aprovado, em 2005, um Código de Conduta Euro-Mediterrânico em Matéria
de Luta contra o Terrorismo. A «estratégia para as relações externas da justiça e assuntos
internos» (Council of the European Union 2005b) sublinhou a necessidade de reforçar a
cooperação com os países do Norte de África, Médio Oriente, Golfo e Sudeste asiático.
Também a Europol intensificou a cooperação com organizações

internacionais e Estados terceiros, definindo, pela primeira vez, uma «estratégia para a
dimensão externa da Europol (2006-2008)», que contempla dois tipos de acordos com os
parceiros: acordos estratégicos (intercâmbio de informações, exceto dados pessoais); acordos
operacionais (incluindo dados pessoais). Mais recentemente, a União Europeia integrou, como
membro fundador, o Fórum Global contra o Terrorismo e partilhará e com a Turquia a
presidência de um dos grupos de trabalho — Corno de África/Iémen.

A lógica dos nexos securitários (segurança externa-segurança interna, interameaças, segurança-


desenvolvimento) é sublimada pelo «nexo dos nexos». A título de exemplo, é de referir a
«estratégia para o desenvolvimento e a segurança no Sahel», aprovada pelo Conselho da UE
em março de 2011, apontada como um modelo a seguir para outras regiões do mundo (Council
European Union 2011, 46):

Os problemas que o Sahel enfrenta afetam não só as populações locais como também têm um
efeito direto crescente sobre os interesses dos cidadãos europeus.

O Sahel é uma das mais pobres regiões do mundo. Simultaneamente enfrenta os desafios da
pobreza extrema, os efeitos da alteração climática, crises alimentares frequentes, crescimento
demográfico acelerado, governação frágil, corrupção, tensões e por resolver, risco de
extremismo violento e radicalização, tráficos ilícitos e ameaças relacionadas com o terrorismo.

Poucas são as áreas em que a interdependência entre segurança e desenvolvimento seja mais
clara. A fragilidade dos governos tem efeitos sobre a estabilidade da região e a capacidade para
quer a pobreza quer as ameaças à segurança. A pobreza cria instabilidade, a qual pode ter
impacto ao nível de fluxos migratórios descontrolados. A ameaça à segurança criada pela
atividade da Al'Qaeda no Magrebe (AQIM), a qual encontrou no Norte do Mali um santuário,
está centrada em alvos ocidentais, tendo passado da extorsão de dinheiro à destruição da vida,
desencorajando o investimento na região [European Union External Action Service s. d.]

Em suma, o racional securitário herdado da década de 90 foi amplificado após o 11 de


setembro. A segurança «adquiriu um novo caráter urgente» (Conselho da União Europeia
2005c, 1), tendo-se convertido num «fator-chave para garantir uma elevada qualidade de vida
na sociedade europeia e para proteger as nossas infraestruturas críticas através da prevenção e
da luta contra as ameaças comuns» (Conselho Europeu 20104, 11). A resposta à ameaça
traduziu-se não só na criação de novos instrumentos, mas também na adequação de
normativos e organismos previamente existentes. O efeito amplificador estendeu-se ao plano
externo, como é patente, por exemplo, no relacionamento euro-mediterrânico. Apesar de um
dos objetivos da criação da parceria Euromed ser já de natureza securitária — à criação de uma
zona de paz, estabilidade e segurança na vizinhança da União -, a componente da segurança foi
reforçada após 2001. No 10.º aniversário da parceria, a cimeira de Barcelona (2005) adotou a
designada quarta componente cooperativa — «migração, integração social, justiça e
segurança», visando o desenvolvimento de uma «estratégia global e integrada» dos
fenómenos. Uma década depois é reafirmada a interligação entre imigração e terrorismo,
conforme demonstrado pelo último relatório TE-SAT: «[O] atual e futuro fluxos de imigrantes
provenientes do Norte de África poderão ter efeito sobre a segurança da União Europeia. No
meio de um elevado número de imigrantes, poderão facilmente entrar na Europa indivíduos
com objetivos terroristas» (Europol 2011, 7).

A dimensão normativa: discurso versus prática

A dimensão normativa está, desde logo, patente no discurso europeu sobre a ameaça. No que
respeita ao objeto, ela atenta contra os «valores universais em que se funda a União Europeia»
(Conselho da União Europeia 20052): a vida humana, a abertura e a tolerância das sociedades
europeias (Conselho Europeu 2001; Conselho Europeu 2003), «os valores das nossas
sociedades democráticas e os direitos e liberdades dos nossos cidadãos» (Conselho da União
Europeia 2005a, 6). Relativamente às causas, o discurso refere, entre outros fatores, a
globalização, a modernização, a conflitualidade, a má governação, bem como os nexos
problemáticos, sublinhando a complexidade e a dimensão estrutural (root causes) do
fenómeno: «[E)vitar o recurso ao terrorismo, combatendo os fatores ou causas profundas que
podem conduzir à radicalização e ao recrutamento na Europa e no resto do mundo» (Conselho
da União Europeia 2005b, 3). Um terceiro aspeto prende-se com o cuidado da linguagem,
rejeitando «toda e qualquer amálgama entre os grupos de terroristas fanáticos e o mundo
árabe e muçulmano» (Conselho Europeu 2001, 1).

O pendor normativo pauta também o discurso sobre a luta contra a ameaça em três aspetos
fundamentais: «o respeito pelo primado do direito, direitos e liberdades fundamentais»
(Conselho Europeu 2010b, 24), a «observância dos direitos humanos e do direito internacional
(Conselho Europeu 2008) na ação antiterrorista global da União; o combate a «todo e qualquer
desvio de índole nacionalista, racista e xenófoba» (Conselho Europeu 2001, 4) e o
desenvolvimento de «um diálogo intercultural, a fim de favorecer o conhecimento e à
compreensão mútua» (Conselho Europeu 2010b, 24); a promoção do consenso internacional e
das normas internacionais de combate ao terrorismo, em articulação com as Nações Unidas e
com outras instâncias internacionais e regionais, «a integração de todos os países num sistema
mundial equatitativo de segurança, prosperidade e melhor desenvolvimento» (Conselho
Europeu 2001, 3), o esforço para solucionar os conflitos e o apoio à boa governação e à
democracia (Conselho Europeu 2005).

Constatado o normativo declarativo, bem como as particularidades do discurso da União que o


distinguem da narrativa norte-americana — ausência de terminologia belicista, ênfase sobre as
causas profundas do terrorismo, reconhecimento das consequências negativas do uso de certo
tipo de linguagem como potenciador de tensões (Jackson 2007) —, a verdade é que certas
práticas europeias não são consentâneas com o discurso, tal como tem sido evidenciado pelos
casos interpostos no Tribunal de Justiça da UE, com particular incidência nos domínios da
recolha de dados e da luta contra o financiamento do terrorismo, bem como pelas críticas de
académicos, de organizações defensoras dos direitos humanos e do próprio Parlamento
Europeu (Parlamento Europeu 2011).

Num estudo sobre «Ethical justness of counter-terrorism measures», desenvolvido no âmbito


de um projeto financiado pelo sexto programa-quadro de IDT da Comissão Europeia, a autora
conclui que há um défice de legitimidade em medidas caraterizadas pela ambiguidade,
justificado pelo imperativo de flexibilidade em resposta à ameaça e por «estrangulamentos
éticos» , designadamente: «uma definição excessivamente ampla de terrorismo; falta de
proteção da privacidade ao nível das medidas de conservação de dados e da documentação de
viagem; falta de proteção dos direitos humanos nos processos de extradição de Estados
terceiros» (Ginkel 2009, 37). O papel do Parlamento Europeu tem sido importante na proteção
dos direitos e das liberdades fundamentais.

Aquando da revisão da Decisão-Quadro 2002/475/JAL, em 2008, o Parlamento Europeu


introduziu um conjunto de disposições na proposta da Comissão com vista a salvaguardar que
a criminalização dos atos (incitamento público, recrutamento e treino para o terrorismo)
excluísse «qualquer forma de arbitrariedade e de tratamento discriminatório ou racista»,
respeitasse a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e a confidencialidade da
correspondência. Também a proposta de decisão-quadro relativa à proteção dos dados
pessoais, avançada pela Comissão na mesma data, foi objeto de crítica: «O nível de proteção
de dados deste texto é mínimo e revela alguns défices muito importantes. Em alguns casos,
pode-se mesmo perguntar se respeita os níveis estabelecidos pela Convenção do Conselho da
Europa para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de
Caráter Pessoal, especialmente no que diz respeito ao princípio da proporcionalidade,
fundamental para a proteção de dados (Parlamento Europeu 2008).

Na mais recente resolução sobre a política de luta contra o terrorismo da UE, o PE recordou
que a luta antiterrorista europeia deve «cumprir as normas em matéria de necessidade,
eficácia e proporcionalidade, liberdades cívicas, Estado de direito e responsabilidade e
escrutínio democráticos que a União se comprometeu a «salvaguardar», tendo apresentado
várias propostas, designadamente no domínio da monitorização e exploração de dados para
obtenção de perfis, entre as quais: o reforço da proteção das liberdades cívicas, da
transparência e do controlo democrático no contexto das políticas de luta contra o terrorismo,
a melhoria da recolha de dados, a alteração da Decisão-Quadro do Conselho (revista em 2008)
com vista a «reforçar a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais»
(Parlamento Europeu 2011).

A posição crítica do PE também tem sido extensiva às relações externas, com particular
incidência sobre a cooperação com os EUA, que envolve (abordagens diferenciadas sobre)
temas sensíveis, como a proteção de dados pessoais, as listas de pessoas, grupos ou entidades
classificadas como terroristas e as políticas de detenção de suspeitos. No que respeita à
questão dos dados pessoais, destaca-se a posição do Parlamento Europeu sobre o acordo
relativo ao tratamento e à transferência de dados contidos nos registos de identificação dos
passageiros (acordo PNR) celebrado com os EUA. Em 2003, o plenário aprovou o
relatórioBoogerd-Quaak, que considerava a possibilidade de acesso das autoridades norte-
americanas a bases de dados em território europeu equivalente a um «exercício de soberania
dos EUA» nos países europeus, além de que transferiria «para o nível europeu o poder
discricionário dos Estados membros de autorizarem [...] a utilização, para fins de segurança, de
dados originalmente coligidos para fins comerciais». De acordo com Jean-Marie Cavada, à
«palavra-chave aqui é «demasiado» [...] [O] número de dados que os Estados Unidos nos
pedem para transferir é demasiado elevado, o tempo de retenção demasiado longo, o número
de autoridades destinatárias demasiado elevado e os objetivos identificados demasiado
numerosos [...] tudo isto sem as garantias necessárias» (Parlamento Europeu 2095). No início
de 2010, a instituição europeia rejeitou o acordo provisório sobre a transferência de dados
financeiros celebrado entre a União Europeia e os Estados Unidos (acordo SWIFT) por este ser
excessivamente intrusivo ao prever a transferências de dados «em bruto», e não apenas dados
de suspeitos específicos.

Considerações finais

A especialização inicialmente económica da organização internacional europeia é o fracasso do


projeto da Comunidade Europeia de Defesa associados à natureza da ameaça e à garantia das
necessidades de segurança pelos EUA e pela OTAN, durante o período da guerra fria, adiaram a
incorporação formal da área da segurança no processo de construção europeia. As alterações
ocorridas no pós-guerra fria criaram a oportunidade para uma nova etapa, catalisando a
explicitação do ator de segurança europeu. Numa fase inicial, a União Europeia reproduziu o
modelo estadual assente na separação entre segurança externa e «segurança interna»,
reforçada pela estrutura em pilares. A importância da dimensão civil da PESD/PCSD, a
participação crescente da Comissão neste domínio e, sobretudo, a abordagem traspilares
adotada na luta contra o terrorismo internacional após os ataques de 11 de setembro
contribuíram para a abordagem holística da segurança. O discurso europeu tem sido prolixo na
afirmação da interdependência dos problemas de segurança, das «ameaças dinâmicas»
«multiplicador da ameaça», do nexo segurança interna, da externalização das políticas internas
e da internalização externa, da externalização das políticas externas e da internalização de
políticas externas, expandindo a racionalidade securitária a novas áreas, tais como o
desenvolvimento, o ambiente e a energia. Assiste-se assim a uma tendência securitizadora
expansiva que inverte o processo inicial sucedido na criação e no alargamento de uma
comunidade de segurança através de mecanismos dessecuritizadores. Esta tendência foi
intensificada pela luta coletiva contra o terrorismo, conforme demonstrado pela priorização da
ameaça, pelo imperativo de resposta urgente, pela abordagem holística e transpilarizada do
combate, pelo nexo entre a dimensão externa e interna da segurança e pela interconexão de
nexos.

Qual é a consequência deste securitizing move ao nível da dimensão normativa do ator


europeu? A análise do discurso europeu (Conselho Europeu e Conselho da UE) demonstrou a
dimensão normativa na construção da ameaça (contra os valores fundamentais da União) e no
combate à mesma (conforme os direitos e as liberdades fundamentais), confirmando a
compatibilidade retórica entre «mais segurança» e promoção de normas. No entanto, a análise
de algumas práticas (internas e externas) da EU questiona essa retórica.

A tendência securitizadora não foi criada pelo «efeito 11 de setembro», mas este intensificou-a
e expandiu-a, facilitando práticas que fragilizam a natureza normativa do ator europeu. Ainda
que a luta contra o terrorismo continue a ser protagonizada pelos Estados, a UE propõe-se a
ter um papel de dinamização e coordenação do esforço coletivo. Importa que a este nível
funcione também como garante do legado normativo europeu, contrariando derivas
securitárias nacionais.

Em resposta ao desafio proposto pelos editores da presente obra coletiva — «qual o contributo
da escola de Copenhaga?» —, a aplicação do quadro teórico da securitização ao nosso estudo
caso revelou potencialidades e fragilidades do mesmo. Considerando que cada teoria oferece
um filtro para analisar uma realidade complexa (Snyder 2004), pode considerar-se, para efeito
de contraste, o potencial contributo do realismo e do institucionalismo liberal: o primeiro
evidenciaria o papel do Estado (que detém a soberania e os recursos políticos, humanos e
materiais em matéria de segurança), a prevalência das dinâmicas interestaduais (em
detrimento das supraestaduais) e dos interesses nacionais, a projeção das preferências
securitárias nacionais na agenda e nas decisões da UE e o não-ator europeu de segurança (leia-
se militar); o segundo sublinharia a importância da cooperação europeia institucionalizada em
matéria de segurança, num sistema de interdependência complexa, face a desafios securitários
transnacionais, tendo por fonte e alvo atores não estaduais. Os dois quadros teóricos
pensariam o fenómeno securitário europeu como objetivo e a partir das teorias das relações
internacionais. Diferentemente, a teoria da securitização parte da segurança, entendida como
fenómeno intersubjetivo, construído por atores com autoridade, com o contributo acrescido de
analisar os efeitos da narrativa securitária socialmente construída. Estes dois aspetos
(fenómeno intersubjetivo e efeitos da narrativa) são relevantes para a análise de um ator de
segurança em construção, coletivo e não estadual, despojado inicialmente de competências,
organismos e instrumentos no domínio da segurança (ainda que imbuído do racional
securitário na motivação inicial e no resultado). De notar, todavia, que as idiossincrasias do ator
europeu suscitam dificuldades de operacionalização dos critérios da securitização,
designadamente «aceitação pelo público», «medida extraordinária».
A União Europeia, enquanto polity pós-vestefaliana complexa, constitui assim um desafio à
teoria da securitização, evidenciando fragilidades identificadas por diferentes autores,
designadamente a «subteorização de diversos aspetos dos processos de securitização»
(Léonard e Kaunert 2010, 57). Ainda que o presente estudo se tenha restringido ao securitizing
move e à análise do discurso de duas instituições, indiciou a pluralidade de atores
securitizadores (em processos top-down, v. os casos Conselho Europeu e Conselho da UE no
domínio do terrorismo e da Comissão Europeia nos domínios da energia, do ambiente e do
desenvolvimento, e em processos bottom-np, v. os casos de Estados membros em áreas rele-
vantes para as suas preferências nacionais) e de públicos (Estados membros, cidadãos
europeus, Estados terceiros), demonstrativa da inexistência de padrões universais. O caso mais
específico da luta antiterrorista foi escolhido porque, sem consubstanciar uma
metasecuritização (Buzan 2010), ascendeu na agenda internacional (e europeia), tendo os
ataques de 2001 ocorrido num contexto em que a União Europeia, dotada já «acervo»
(legislativo, institucional e recursos) no domínio da segurança, era praticamente omissa na
prevenção do e no combate (coletivos) ao terrorismo, o que facilita a comparabilidade
histórica. O estudo de caso permitiu identificar efeitos do securitizing move que comprometem
a natureza normativa do ator europeu, o que é relevante no plano não apenas académico,
como também ao nível da elaboração e execução das políticas.

Você também pode gostar