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“America First”
Pensando enquadramentos discursivos da
segurança ontológica na era Trump
Bruna B. Soares
Sobre a autora:
Bruna B. Soares é mestranda em Relações Internacionais pelo IRI da PUC Rio, e tem como principais inte-
resses de pesquisa a extrema-direita estadunidense e os estudos crı́ticos de segurança.
Os argumentos e opiniões presentes neste Working Paper, assim como os gráficos, imagens, citações e
referências são de exclusiva responsabilidade dos autores e não representam o pensamento dos editores, do
NUPRI ou da Universidade de São Paulo.
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Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais NUPRI-USP
Resumo
A pesquisa visa conduzir uma exploração acerca do discurso do então presidente estadunidense Donald
Trump durante o primeiro ano de seu mandato, entendendo-o enquanto responsável por aprofundar inse-
guranças ontológicas através de uma narrativa focada em crises e ameaças interna e externamente dadas
à coesão e identidade coletiva daquilo que Trump e seus apoiadores entendiam como “América”, gerando
um processo de securitização (Buzan, Wæver e Wilde 1998). Para tal, proponho o uso conjunto das teorias
de securitização e de segurança ontológica, com enfoque em dois discursos emblemáticos da era Trump,
onde são definidas algumas das principais diretrizes de sua administração em relação ao que ela consi-
derava como as questões mais urgentes daquele momento, com enfoque para o “problema” da migração
(Trump 2018). Ao lidar com temas como a imigração ilegal, argumenta-se que Trump instrumentaliza a
noção de (in)segurança ontológica de seus eleitores através de caracterizações e denúncias reiteradas de
imigrantes enquanto ameaças à suposta ou almejada coesão interna da nação estadunidense. Devido ao
seu apelo direto e frequentemente emotivo à ideia de uma identidade nacional primordial norte-americana,
o imaginário de segurança enunciado por Trump em seus discursos requer necessariamente uma aborda-
gem teórica que contemple a segurança ontológica e, consequentemente, o valor simbólico e afetivo de
reivindicações polı́ticas de extrema-direita na contemporaneidade, cuja notável adesão requer exploração
mais aprofundada.
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ontológica.
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security the better’. Basically, security should be produzem. Entretanto, para o propósito da pes-
seen as negative, as a failure to deal with issues as quisa aqui desenvolvida, o uso de outra aborda-
normal politics. Ideally, politics should be able to gem teórica se faz necessário: na seção que segue,
unfold according to routine procedures without this pretendo contextualizar e sumarizar brevemente
extraordinary elevation of specific ‘threats’ to a pro- a teoria de segurança ontológica em Relações In-
political immediacy (Buzan, Wæver e Wilde 1998, ternacionais, visando pensar como podemos fazer
p. 29). sentido da identidade estadunidense mobilizada
Esse é um ponto importante, na medida em que por Trump, entendida aqui como objeto referente
enfatiza a dimensão polı́tica da securitização e as da securitização. Em outras palavras, a segurança
implicações de elevar um problema a um âmbito ontológica daquilo que Trump e seus apoiadores en-
de deliberação que se encontra além da “polı́tica tendem como “América” é aquilo que se encontra
normal”, ainda que mesmo essa noção também seja sob ameaça no processo de securitização enunci-
problematizada no âmbito dos estudos crı́ticos de ado pelo ex-presidente e, por esse motivo, requer
segurança.2 atenção mais cuidadosa, como veremos a seguir.
Por fim, algo também precisa ser dito acerca
da constituição de ameaças à luz da teoria da
securitização e o que pode vir a ser entendido ou
não como tal. Nesse sentido, tomo a obra Writing Abordagem teórica: Segurança
Security de David Campbell como base, partindo ontológica
do argumento de que o perigo não é uma condição
objetiva, e portanto não existe independentemente O conceito de segurança ontológica tem sua origem
daqueles para quem ele pode vir a se tornar uma na psicanálise de R. D. Laing (1990) e é trazido
ameaça; com isso, o autor enfatiza a importância para a sociologia por Giddens (1991), que reflete o
primordial da dimensão interpretativa existente na contexto de contingência e inconstância da moder-
definição de ameaças, onde a mera existência de nidade e a tensão entre segurança e insegurança on-
um modo alternativo de ser, cuja presença exem- tológicas gerada por ele, onde o papel das rotinas é
plifica que diferentes identidades são possı́veis e, enfatizado na busca dos indivı́duos por estabilidade
assim, desnaturaliza a reivindicação de uma única e previsibilidade tanto em seus cotidianos como em
identidade como a verdadeira identidade, às vezes suas próprias identidades, havendo portanto uma
é suficiente para produzir a compreensão de uma relação intrı́nseca entre ambas essas esferas. Num
ameaça (Campbell 1998, pp. 1–3). Em sua aborda- terceiro momento, esse conceito é trazido para a
gem ao conceito de risco, Campbell esclarece que disciplina de RI num contexto de crı́tica à ideia do
seu argumento: “[It] does not deny that there are Estado como ator racional e como objeto referente
‘real’ dangers in the world: infectious diseases, acci- único da segurança. Assim, essa é uma abordagem
dents, and political violence (among other factors) que desloca o enfoque para indivı́duos, sociedades,
have consequences that can literally be understood grupos humanos, ou mesmo Estados, se propondo
in terms of life and death. But not all risks are a pensar a relação entre segurança e identidade, na
equal, and not all risks are interpreted as dangers. medida em que concebe segurança ontológica en-
[...] Those events or factors which we identify as quanto a segurança de “ser”. Nesse sentido, Mitzen
dangerous therefore come to be ascribed as such (2006) lança luz sobre a utilidade do conceito para
only through an interpretation of their various di- pensar a área de Relações Internacionais: “I argue
mensions of dangerousness. Moreover, that process that physical security is not the only kind of secu-
of interpretation does not depend upon the inci- rity that states seek, and show how this changes
dence of ‘objective’ factors for its veracity.” (Camp- our thinking about the dilemma states face and the
bell 1998, p. 2, ênfase adicionada). tragedy of world politics. Specifically, I propose that
Concluindo, a securititização e seu entendimento states also engage in ontological security-seeking.
acerca do conceito de ameaça oferecem uma ferra- Like the state’s need for physical security, the need
menta viável para a análise de circunstâncias onde for ontological security is extrapolated from the in-
o papel da narrativa é fundamental, como é o caso dividual level. Ontological security refers to the
dos discursos proferidos por Trump e o imaginário need to experience oneself as a whole, continuous
de segurança populista (Löfflmann 2022) que eles person in time — as being rather than constantly
2 Essa é uma observação relevante para o presente trabalho, na medida em que, se por um lado não é o meu objetivo apresentar
uma revisão de literatura do extenso debate acerca da teoria da securitização e suas crı́ticas, por outro, parece importante reiterar que
as teorias escolhidas para esse trabalho de pesquisa, assim como quaisquer outras, não carecem de contestação e debate dentro dos
estudos crı́ticos de segurança. Sobre as crı́ticas à teoria da securitização e sua concepção de uma polı́tica supostamente “normal”, ver
Moffette e Vadasaria (2016) e Howell e Richter-Montpetit (2020).
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changing — in order to realize a sense of agency resta espaço para a dúvida (Eberle 2019, p. 8). Se-
(Giddens, 1991; Laing, 1969: 41–2). Individuals gundo o viés psicanalı́tico lacaniano adotado pelo
need to feel secure in who they are, as identities or autor, esse fechamento oferecido pela fantasia, que
selves.” (Mitzen 2006, p. 342). pressupõe a possibilidade de erradicar ambiguida-
Partindo do pressuposto de que os fins dos in- des e construir certezas é, por si só, problemático,
divı́duos são constitutivos de suas identidades, a argumentando que este visa mascarar a natureza
incerteza gera insegurança para a identidade dos necessariamente incerta e incompleta tanto dos su-
atores em questão. Por esse motivo, os indivı́duos jeitos como da própria realidade ou da forma como
são levados a criar certezas cognitivas e comporta- estes são capazes de entendê-la.3 Então, se por um
mentais através do estabelecimento de rotinas (Mit- lado a abordagem psicanalı́tica acerca das fantasias
zen 2006, p. 342) como forma de lidar com suas não é o enfoque do presente artigo, por outro, ela
ansiedades. Nesse sentido, recordar uma narra- elucida o quanto pensar segurança ontológica en-
tiva reconfortante acerca do “passado” é um recurso quanto ideal universal não é uma opção viável e,
tanto para tornar o presente mais tranquilizador para além disso, pode ser um movimento despo-
como para servir como base ou roteiro para o que litizante quando pensamos identidades necessaria-
deve ser feito no futuro (Steele e Homolar 2019, mente sobrepostas intrinsecamente às relações de
p. 216). Desta forma, é possı́vel notar a interação poder.4
complexa existente entre narrativa e memória no Concluindo essa breve contextualização acerca da
contexto da segurança ontológica: “[...] OST li- base teórica que viso mobilizar, a relação entre
terature has long engaged with questions of how segurança e identidades é entendida aqui como fun-
narratives shape not only the Self, and who gets to damental para uma análise pertinente do contexto
belong, but also the Other and who gets excluded. estadunidense. Parafraseando Buzan, Wæver e de
Narrative, from the perspective of ontological se- Wilde (1998, p. 23), a securitização de migrantes
curity, is seen as sense-making device that allows ou identidades “outras” depende apenas da perspec-
conceptions of stable selfhood to be projected, even tiva que um determinado grupo possui em relação à
protected, across time and space [...].” (Steele e constituição e à manutenção de sua identidade cole-
Homolar 2019, p. 216). tiva. Por esse motivo, uma linguagem, um conjunto
Entretanto, partindo de uma análise que leve em de hábitos e costumes, ou mesmo uma concepção
consideração a dimensão polı́tica das identidades, de pureza étnica são todos elementos que podem
a concepção de um “eu” estável ou completo é um ser colocados ou enunciados em termos de sobre-
ponto que deve ser problematizado. Nesse sentido, vivência. Nesse sentido, o presente trabalho visa
Eberle (2019) enfatiza as problemáticas existentes contribuir para uma dimensão pouco explorada nos
em promover a ideia de segurança ontológica como estudos de segurança ontológica: especificamente, a
ideal, argumentando em favor da necessidade de possibilidade de agentes polı́ticos terem como alvo
resistir à noção de fechamento que o conceito traz a busca de indivı́duos ou grupos por segurança on-
para que possamos analisar os efeitos excludentes e tológica, instrumentalizando essa busca a fim de
opressivos que a segurança ontológica de determi- obter ganhos polı́ticos ao construir, por exemplo,
nados grupos ou indivı́duos pode ter sobre outros narrativas de crise e de ameaças existenciais como
(Eberle 2019, p. 3), levando em consideração o forma de validar suas reivindicações ao poder.
quão imbricadas essas identidades se encontram
com relações de poder e dominação. Avançando
esse movimento de crı́tica e complexificação do
conceito, Eberle parte de uma abordagem psica- Trump, identidades e (in)segurança
nalı́tica para localizar segurança ontológica como
um dos elementos constituintes de uma fantasia, ontológica
entendendo que fantasias são tipos de narrativas
que visam proteger seu público-alvo de ansiedades Nesta seção, viso explorar o imaginário de
através da negação da ambiguidade ou complexi- segurança possibilitado e incentivado por Donald
dade de uma dada situação, alimentando nos in- Trump, bem como o papel fundamental do dis-
divı́duos uma “voracidade por certeza” ao oferecer a curso dentro dele e sua mobilização de grupos e
falsa segurança de uma escolha objetiva entre duas - imagens especı́ficas. Homolar e Scholz (2019) iden-
e apenas duas - opções, colocadas como uma espécie tificam a singularidade da estratégia retórica do
de conflito existencial entre “bem” e “mal” onde não 45º presidente estadunidense, baseada no exagero
dos problemas dos Estados Unidos, na crı́tica ao
3 Para mais acerca da abordagem Lacaniana à segurança ontológica em Relações Internacionais, ver Kinnvall (2018).
4 Ver Rossdale (2015).
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majoritariamente durante o processo de campanha eleitoral para se referir à então elite polı́tica contra a qual ele reitera sua oposição,
usando o termo de forma pejorativa para se referir à sua oponente Hillary Clinton, por exemplo.
6 Ver, por exemplo, Brown (2018; 2019).
7 Em seu artigo “The power of Trump-speak: populist crisis narratives and ontological security”, Homolar e Scholz conduzem uma
análise acerca da retórica de Trump e identificam como um de seus elementos centrais o que os autores chamam de “crisis-talk”, que
consiste num discurso focado em reiterar crises e invocar imagens de derrota, crise e perda generalizada. Pensando nos termos da
teoria da securitização, podemos entender esse recurso retórico como o enquadramento de um objeto referente sob ameaça existencial.
8 Brown também aborda essa temática em “Neoliberalism’s Frankenstein: Authoritarian Freedom in Twenty-First Century ‘Demo-
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Aqui, o próprio entendimento estrangeiros ou imi- the people’.” (Löfflmann 2022, p. 544).
grantes enquanto responsáveis pelo cenário de crise Pensando esse imaginário nos termos da teoria da
interna suposto por Trump já evoca imagens ampla- securitização, é possı́vel localizar a enunciação de
mente difundidas em sua administração da fronteira uma ameaça, personificada principalmente pela fi-
como um local de violação do âmbito interno da gura do imigrante ilegal e secundariamente pela
nação por parte do outro, bem como a promessa do elite polı́tica estadunidense (o establishment), como
ex-presidente de construção de um muro na divisa veremos nas próximas seções ao analisar dire-
com o México. Esse é um ponto profundamente tamente alguns dos discursos de Trump. Aqui,
interessante do discurso Trump, que merece um ar- argumento que essa enunciação, carregada de
tigo por si só, mas que apresento apenas brevemente peso polı́tico e simbólico, visa remover o tema da
aqui como forma de contextualizar a discussão e as migração da esfera do que entendemos como a
imagens e imaginários evocados pelos discursos de polı́tica normal, elevando-o ao âmbito da segurança,
(in)segurança a serem trabalhados nas próximas onde polı́ticas de exceção sujeitas a menor influência
seções. Nesse sentido, Brown (2010) argumenta, democrática podem ser implementadas para lidar
por exemplo, que os muros construı́dos no século com uma ameaça existencial à coesão e segurança
21 não são meramente barreiras fı́sicas, mas per- do que se entende como a verdadeira “América”.9
formances simbólicas que abordam e representam Em outras palavras, entende-se a securitização po-
anseios populares pelo declı́nio do poder soberano pulista como prática discursiva que propaga uma
do Estado. Além disso, os muros também podem polı́tica de medo, urgência e excepcionalidade para
“funcionar” para produzir significado polı́tico e afeto mobilizar “o povo” contra uma elite “perigosa” e
polı́tico (Callahan 2018, p. 458), provocando sen- normalizar essa divisão antagônica do espaço social
timentos de reafirmação e segurança no “dentro”, (Wojczewski 2020, p. 5).
que passa a ser percebido como protegido do “fora” Concluindo, a força do nacionalismo nesse sentido
anárquico e seus perigos, trabalhando assim ao nı́vel vem justamente de sua capacidade de transmitir
da segurança ontológica. unidade, segurança e inclusividade em tempos de
No cerne desse imaginário, alguns elementos fi- crise. Ao transmitir essas crenças, uma ideia de “lar”
cam claros: a presença de um objeto referente en- é produzida enquanto um local onde subjetividades
tendido como “América”, mas que não necessaria- podem ser ancoradas e securitizadas, oferecendo
mente inclui todos os cidadãos dos Estados Unidos proteção e segurança em relação ao estranho, ao
da América, e a presença de ameaças concretas a “outro-abjeto”. Dessa forma, o nacionalismo, agindo
esse objeto. Ao traçar uma linha não ambı́gua en- sobre identidades, é capaz de elevar a segurança on-
tre o “dentro” e o “fora”, esse tipo de narrativa tológica e minimizar ansiedades existenciais (Kinn-
de segurança (re)cria aquilo que determinada co- vall 2004, pp. 762–763). Assim, o imaginário de
munidade imagina ser admirável e desejável, ao segurança (Löfflmann 2022) enunciado por Trump
mesmo tempo em que possibilita que ela reflita so- demonstra uma relação ı́ntima entre nacionalismo,
bre seus medos e concepções de desvio (Homo- discurso, (in)segurança ontológica e securitização.
lar 2021, p. 11). Desta maneira, a narrativa de Com isso em mente, e visando evidenciar a relação
Trump enquanto protetor do povo teve como alvo entre teoria e empiria, as próximas seções são dedi-
um eleitorado branco da classe trabalhadora e sem cadas à análise de dois discursos emblemáticos de
ensino superior no coração dos Estados Unidos, am- Donald Trump, escolhidos por seu enfoque no que
pliando a polarização partidária e a divisão interna o 45º presidente entendia então como as principais
para ganhos polı́ticos (Löfflmann 2022, p. 545). ameaças a serem enfrentadas por sua administração.
Löfflmann (2022) caracteriza isso como um pro-
cesso de criação de um imaginário de segurança
populista com relações profundas com o conceito
de segurança ontológica: “A populist security ima- Discursos: Inaugural Address
ginary produces a reframing of national identity
through affective appeals and narratives that pa- O Inaugural Address é o discurso inaugural da pre-
rochialise the national Self, conflating it with the sidência dos Estados Unidos da América, proferido
ontological insecurities of populist voters, while sig- publicamente após um juramento solene através
nificantly expanding the category of the threatening do qual o novo presidente toma posse do cargo e
Other to include political opponents, the press and se compromete a executar suas atribuições, bem
media, courts and institutions, the national security como preservar, proteger e defender a constituição
establishment, and civil rights groups as ‘enemies of estadunidense. No caso de Trump, o discurso acon-
9 Para uma visão mais detalhada do processo de securitização, ver Buzan, Wæver e Wilde (1998).
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teceu em 20 de Janeiro de 2017, e possui vı́deo média norte americana, que o ex-presidente argu-
e transcrição disponı́veis na base de dados dedi- menta então ter sido distribuı́da ao redor do mundo
cada a discursos presidenciais do Millner Center, (Trump 2017).
organização apartidária afiliada da Universidade Em contraste com esse cenário aterrador, há um
de Virgı́nia, especializada em polı́ticas públicas e chamado claro à ação e a um olhar para o futuro
história polı́tica (Trump 2017). Nesse primeiro dis- onde a “América” (ou o que se entende enquanto
curso de sua administração, a narrativa divisiva que tal) é colocada em primeiro lugar, seguindo o slo-
marcou sua campanha presidencial é reafirmada, gan da campanha de Trump, “America First”. Aqui,
trazendo consigo dois pontos principais a serem alguns pontos são destacados como fundamentais
analisados: (i) a descrição da conjuntura social e para atingir esse futuro seguro e desejável, que seria
polı́tica do paı́s naquele momento como um cenário construı́do exclusivamente para beneficiar trabalha-
de crise, desemprego e insegurança generalizados, dores e famı́lias estadunidenses. Primeiramente,
e (ii) a definição de uma ameaça interna, manifesta temos a colocação “We must protect our borders
na figura do establishment polı́tico estadunidense.10 from the ravages of other countries making our pro-
Começando com um chamado à ação que se de- ducts, stealing our companies, and destroying our
senvolve ao longo de sua fala, o então presidente jobs. Protection will lead to great prosperity and
clama por uma reconstrução do paı́s com o objetivo strength” (Trump 2017), que é uma das poucas
de restaurar a promessa norte-americana para todos menções acerca de uma ameaça externa, que será
(Trump 2017), evocando a imagem de um passado retomada e trazida para o centro da narrativa no
próspero ainda que distante, ao qual o retorno ainda discurso analisado na seção seguinte.
é possı́vel. Assim, se por um lado o passado e o fu- Além disso, vale destacar algumas outras soluções
turo a ser construı́do parecem prósperos, a presente propostas pelo então presidente: “We will follow
conjuntura deixada pela administração Obama é two simple rules: Buy American and Hire Ameri-
colocada em termos catastróficos: “For too long, a can. We will seek friendship and goodwill with the
small group in our nation’s Capital has reaped the nations of the world – but we do so with the unders-
rewards of government while the people have borne tanding that it is the right of all nations to put their
the cost. Washington flourished – but the people own interests first. [...] We will be protected by the
did not share in its wealth. Politicians prospered – great men and women of our military and law en-
but the jobs left, and the factories closed. The es- forcement and, most importantly, we are protected
tablishment protected itself, but not the citizens of by God.” (Trump 2017).
our country. Their victories have not been your vic- Essas colocações importam para uma análise de
tories; their triumphs have not been your triumphs; segurança não apenas pelo que elas propõem por si
and while they celebrated in our nation’s Capital, só, mas pela forma como essas propostas são colo-
there was little to celebrate for struggling families cadas. Em outras palavras, as asserções de Trump
all across our land. That all changes – starting right em seu discurso inaugural são um exemplo claro de
here, and right now, because this moment is your uma narrativa de segurança construı́da sobre uma
moment: it belongs to you.” (Trump 2017). estrutura de enredo carregado emocionalmente, gi-
Retomando o segundo ponto, a crı́tica à elite polı́tica rando em torno da experiência de apreensão do
identificada por Trump é, como citado na seção público ao recebê-la, gerando tensão e ansiedade ao
anterior, um elemento fundamental para a sua sinalizar incertezas e perda de controle (Homolar
reivindicação ao poder, e destaca o apelo emotivo 2021, p. 10), uma estrutura familiar quando lida
de narrativas de segurança que criam percepções em termos de inseguranças ontológicas e a forma
de inimizade e ameaças através de uma estrutura como elas frequentemente são criadas, aprofunda-
dualı́stica (Homolar 2021, p. 2). Desta forma, a das ou incentivadas com fins polı́ticos.
elite polı́tica é responsabilizada por questões ur- Por fim, o discurso é finalizado com convocações à
gentes à população americana e que impediriam união, ao patriotismo e ao orgulho nacional, com a
diretamente o seu retorno à prosperidade. Dentre promessa clara de que a “América” não seria mais
os problemas mais imediados, são citados: o em- ignorada em sua administração, remetendo a uma
pobrecimento da indústria estadunidense, o enfra- identidade coletiva estadunidense como saı́da ou
quecimento do exército, a fragilidade das fronteiras, remédio à crise deixada pelo governo anterior. Aqui,
decaimento da infraestrutura nacional, o desapa- o cenário de crise e a reafirmação da identidade
recimento da fortuna, força e confiança do paı́s, o conversam intimamente entre si: como bem elucida
fechamento de fábricas levando ao desemprego ge- Kinnvall (2004, p. 742), quando sentem ansiedade
neralizado e, por fim, a tomada da riqueza da classe existencial e vulnerabilidade, não é incomum que
10 Para uma abordagem pós-estruturalista focada especificamente na relação com o establishment, ver Wojczewski (2020).
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os indivı́duos busquem reafirmar uma identidade who we are, and show us what we can be.” (Trump
própria que está sob ameaça, e qualquer identidade 2018, ênfase adicionada).
coletiva capaz de prover esse tipo de segurança é Dentre essas figuras destacadas, temos civis, milita-
um polo de atração em potencial. Assim, temos um res, oficiais da guarda costeira, bombeiros, policiais
cenário saturado de emoções onde figuras de desta- do capitólio, pequenos empreendedores, veteranos
que como lı́deres polı́ticos buscam reunir pessoas ao de guerra e demais indivı́duos cujas histórias o ex-
redor de causas simples, como a religião e o nacio- presidente saúda através de um discurso de união e
nalismo. patriotismo onde o paı́s é frequentemente descrito
como uma famı́lia, com heróis comprometidos com
a defesa da esperança, do orgulho e do modo de
vida americano (“American way”) (Trump 2018).
Discursos: State of the Union Ad- Por fim, a referência a valores e ideais comparti-
lhados é retomada quando o então presidente fala
dress sobre a própria criação dos Estados Unidos: “It was
a small cluster of colonies caught between a great
O segundo discurso a ser analisado à luz das te- ocean and a vast wilderness. But it was home to
orias de segurança ontológica e da securitização an incredible people with a revolutionary idea: that
foi proferido em 30 de Janeiro de 2018, pouco they could rule themselves. That they could chart
mais de um ano depois da mensagem inaugural their own destiny. And that, together, they could
de Trump. O State of the Union Address é uma light up the world. That is what our country has
comunicação entre o Presidente e o Congresso em always been about. That is what Americans have
que o chefe do Executivo relata as condições atu- always stood for, always strived for, and always
ais dos Estados Unidos e apresenta propostas para done.” (Trump 2018).
o próximo ano legislativo, delineando a agenda Pensando essas colocações iniciais através das len-
polı́tica de sua administração. Além disso, é co- tes da segurança ontológica, podemos localizar uma
mum que os presidentes utilizem-se do discurso narrativa emocionalmente carregada remetendo a
para aumentar a atenção da mı́dia para questões um passado imaginado através da reconstrução de
especı́ficas de acordo com seus interesses (Shogan sı́mbolos e pontos de referência culturais comuns,
2015). Nessa ocasião, Donald Trump apresenta um que é usada em resposta aos efeitos desestabilizado-
discurso que entrelaça a celebração das conquistas res de mudanças no âmbito global, especialmente
de sua administração e de indivı́duos considera- em termos de mobilidade e migração. Em outras
dos heróis americanos11 com um chamado urgente palavras, é uma narrativa que almeja recuperar um
a uma ameaça distinta da analisada no discurso senso de segurança perdido (Kinnvall 2004, p. 744).
anterior. Se no dia de sua posse o obstáculo prin- Um outro ponto focal do discurso é o plano de re-
cipal a ser superado era o establishment polı́tico forma do sistema de migração estadunidense pro-
estadunidense, agora, após o primeiro ano de sua posto pela administração Trump, descrito como uma
administração, o foco é redirecionado para um ou- reforma crı́tica a ser acordada de maneira bipar-
tro entendimento de ameaça, cujo enquadramento tidária entre Democratas e Republicanos, e que
enquanto tal marcou grande parte de sua campanha é delineada em quatro pilares: (i) o primeiro pi-
à presidência: a imigração. lar envolve oferecer um caminho à cidadania para
Durante grande parte de sua fala, o então presidente mais de um milhão de imigrantes que residiam no
celebra as medidas tomadas por sua administração paı́s ilegalmente desde a infância, contanto que
no último ano e as conquistas da mesma, bem como atendessem a determinados requisitos de traba-
saúda convidados que ele descreve como heróis lho, educação e demonstrassem bom caráter moral;
americanos ao contar suas histórias de superação, (ii) o segundo pilar tem como objetivo o resguardo
alegando que: “Over the last year, we have made da fronteira: “That means building a wall on the
incredible progress and achieved extraordinary suc- Southern border, and it means hiring more heroes
cess. We have faced challenges we expected, and [...] to keep our communities safe. Crucially, our
others we could never have imagined. We have plan closes the terrible loopholes exploited by cri-
shared in the heights of victory and the pains of minals and terrorists to enter our country — and
hardship. We endured floods and fires and storms. it finally ends the dangerous practice of ‘catch and
But through it all, we have seen the beauty of Ame-
rica’s soul, and the steel in America’s spine. Each
test has forged new American heroes to remind us
11 Aqui, a figura do herói frequentemente evocada pelo ex-presidente é elaborada por Homolar (2021), quando a autora se debruça
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de imigração, como uma alternativa a mantê-lo em detenção durante esse processo. Apesar disso, durante a administração Trump,
muitos migrantes permaneceram em centros de detenção, acerca dos quais há relatos incontáveis de violações aos direitos humanos e
condições de vida precárias, incluindo denúncias de assédio ou abuso sexual, tratamento médico inadequado, greves de fome, uso de
confinamento solitário, denúncias do uso de força fı́sica contra os detidos e casos de morte e suicı́dio (ver, por exemplo, Bonfiglio et
al. (2020) e Gomez (2019)).
13 Para uma abordagem mais elaborada teoricamente acerca dessa dicotomia e seu papel produtivo, bem como crı́tica às bases tradi-
cionais e eurocentradas da disciplina de Relações Internacionais e sua falha em confrontar o “problema da diferença”, ver Inayatullah
e Blaney (2004).
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dos através da lente da teoria de securitização, que tológica de seus eleitores, bem como sua sensação
argumenta que o processo de securitização não é de alienação e perda de privilégios, recrutando-os
completo até que uma audiência o aceite como tal, enquanto coletivo com reivindicações e uma identi-
esses dados demonstram o sucesso do movimento dade especı́fica, altamente imbricada com relações
securitizador de Trump para com seu público alvo, de poder que nos levam à necessidade de proble-
cujas inseguranças ontológicas foram representadas matizar a ideia de segurança ontológica como um
em seus discursos como as inseguranças da própria ideal, ainda que, enquanto conceito, ela seja es-
nação (Löfflmann 2022, p. 545). sencial para a análise da era Trump, onde o valor
simbólico e afetivo das reivindicações polı́ticas não
pode ser ignorado.
Conclusão
Concluindo, o presente artigo tenciona contribuir
para uma dimensão pouco explorada dos estudos Referências
de segurança ontológica, considerando a possibi-
lidade de agentes polı́ticos lidarem com situações Bonfiglio, Genna et al. (2020). “The long journey
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reivindicações de liderança (Homolar e Scholz Em: Journal of Travel Medicine 27.7, taaa083.
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existencial devido à alegada negligência do esta- tidemocratic politics in the West. New York: Colum-
blishment polı́tico estadunidense e a polı́ticas de bia University Press.
migração consideradas obsoletas, cuja permissivi- Buzan, Barry, Ole Wæver e Jaap de Wilde (1998).
dade supostamente expunha os cidadãos estaduni- Security: a new framework for analysis. Boulder,
denses a uma série de perigos trazidos pelos imi- Colo: Lynne Rienner Pub.
grantes, como o desemprego, insegurança pública, Callahan, William A. (2018). “The politics of walls:
criminalidade urbana e atentados terroristas, além Barriers, flows, and the sublime”. Em: Review of
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quanto estadunidenses. Campbell, David (1998). Writing security: United
Levando em consideração os dados estatı́sticos re- States foreign policy and the politics of identity.
ferentes à taxa de aprovação do governo Trump Minneapolis: University of Minnesota Press.
durante os primeiros anos de seu mandato, o movi- Dunn, Amina (2020). Trump’s approval ratings so far
mento securitizador realizado pelo ex-presidente é are unusually stable: And deeply partisan. Pew Re-
integralizado, havendo expressiva concordância de search Center. URL: https://pewrsr.ch/2LLo3U4
seu eleitorado em relação às polı́ticas de exceção (acesso em 22/07/2022).
mobilizadas por sua administração, que incluı́ram Eberle, Jakub (2019). “Narrative, desire, ontologi-
uma reforma do sistema de migração estadunidense cal security, transgression: fantasy as a factor in
e, socialmente, refletiram num aprofundamento de international politics”. Em: Journal of Internatio-
sentimentos de divisão e xenofobia, além do ampli- nal Relations and Development 22.1, pp. 243–268.
amento da polarização partidária e divisão interna. Giddens, Anthony (1991). Modernity and self-
Nesse contexto, os medos e ansiedades de grupos es- identity: self and society in the late modern age.
pecı́ficos foram enquadrados como as inseguranças Stanford: Stanford University Press.
ontológicas da própria nação (Löfflmann 2022, p. Gomez, Alan (2019). Deaths in custody. Sexual vio-
3), de forma que essa insegurança pôde ser mane- lence. Hunger strikes. What we uncovered inside ICE
jada visando ganhos polı́ticos através de narrativas facilities across the US. USA Today, 19/12/2019.
carregadas emocionalmente que declaravam uma URL : https : / / www . usatoday . com / in -
situação de crise generalizada no paı́s, com pro- depth / news / nation / 2019 / 12 / 19 / ice -
blemas, culpados, vı́timas e soluções claras. Ao asylum - under - trump - exclusive - look - us -
declarar um contexto dicotômico, o discurso de immigration - detention / 4381404002/ (acesso
Trump apelou para o sentimento de insegurança on- em 20/07/2022).
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Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais NUPRI-USP
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