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"America First": Pensando enquadramentos


discursivos da segurança ontológica na era Trump
Soares, Bruna B.

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Arbeitspapier / working paper

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Soares, B. B. (2022). "America First": Pensando enquadramentos discursivos da segurança ontológica na era Trump.
(NUPRI Working Paper, 16). São Paulo: Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São
Paulo (NUPRI). https://nbn-resolving.org/urn:nbn:de:0168-ssoar-81843-2

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NUPRI Working Paper
WP 16 julho 2022

“America First”
Pensando enquadramentos discursivos da
segurança ontológica na era Trump

Bruna B. Soares

Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais


Universidade de São Paulo, Brasil
NUPRI-USP
Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais NUPRI-USP

Sobre a autora:
Bruna B. Soares é mestranda em Relações Internacionais pelo IRI da PUC Rio, e tem como principais inte-
resses de pesquisa a extrema-direita estadunidense e os estudos crı́ticos de segurança.

Editor: Daniel Oppermann

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Resumo
A pesquisa visa conduzir uma exploração acerca do discurso do então presidente estadunidense Donald
Trump durante o primeiro ano de seu mandato, entendendo-o enquanto responsável por aprofundar inse-
guranças ontológicas através de uma narrativa focada em crises e ameaças interna e externamente dadas
à coesão e identidade coletiva daquilo que Trump e seus apoiadores entendiam como “América”, gerando
um processo de securitização (Buzan, Wæver e Wilde 1998). Para tal, proponho o uso conjunto das teorias
de securitização e de segurança ontológica, com enfoque em dois discursos emblemáticos da era Trump,
onde são definidas algumas das principais diretrizes de sua administração em relação ao que ela consi-
derava como as questões mais urgentes daquele momento, com enfoque para o “problema” da migração
(Trump 2018). Ao lidar com temas como a imigração ilegal, argumenta-se que Trump instrumentaliza a
noção de (in)segurança ontológica de seus eleitores através de caracterizações e denúncias reiteradas de
imigrantes enquanto ameaças à suposta ou almejada coesão interna da nação estadunidense. Devido ao
seu apelo direto e frequentemente emotivo à ideia de uma identidade nacional primordial norte-americana,
o imaginário de segurança enunciado por Trump em seus discursos requer necessariamente uma aborda-
gem teórica que contemple a segurança ontológica e, consequentemente, o valor simbólico e afetivo de
reivindicações polı́ticas de extrema-direita na contemporaneidade, cuja notável adesão requer exploração
mais aprofundada.

Palavras-chave: Securitização, discurso, segurança ontológica, Trump, EUA

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Introdução interest as a sign that refers to something more real;


the utterance itself is the act. By saying it, something
O presente artigo visa lançar luz sobre o caráter is done (as in betting, giving a promise, naming a
do discurso do então presidente estadunidense ship). By uttering ‘security’, a state-representative
Donald Trump durante o inı́cio de seu mandato, moves a particular development into a specific area,
entendendo-o como responsável por aprofundar and thereby claims a special right to use whatever
inseguranças ontológicas através de uma narrativa means are necessary to block it.” (Wæver 1995, p.
focada em crises (“crisis-talk”1 ) e ameaças interna 45, ênfase adicionada).
e externamente dadas à coesão e identidade co- Aqui, “utterance” se refere ao ato de fala em questão,
letiva daquilo que Trump e seus apoiadores en- ao ato de enunciar determinada situação em termos
tendem como “América”, gerando um processo de de segurança e o peso polı́tico, simbólico e mesmo
securitização. Para tal, proponho o uso conjunto das material que essa enunciação é capaz de mobilizar.
teorias de securitização e de segurança ontológica, Assim, temos segurança como prática autorrefe-
com enfoque em dois discursos emblemáticos da rencial onde, através da prática ou enunciação, um
era Trump: o Inaugural Address (20 de Janeiro de assunto torna-se questão de segurança, não necessa-
2017) e o State of the Union Address (30 de Janeiro riamente porque uma ameaça existencial realmente
de 2018) onde são definidas algumas das principais existe, mas porque a questão foi colocada como
diretrizes de sua administração em relação ao que tal. Através desse movimento, um tema é remo-
ela considerava então como as questões mais urgen- vido da polı́tica e levado a um âmbito além dela,
tes daquele momento, dentre as quais apresenta-se como uma versão extrema de politização (Buzan,
o “problema” da migração (Trump 2018), enqua- Wæver e Wilde 1998, pp. 23–24), onde decisões
drado pelo ex-presidente como principal ameaça sobre o assunto estão sujeitas a menos deliberação
ao ethos estadunidense. Desta forma, viso analisar democrática e polı́ticas de exceção podem ser ado-
ambos os discursos à luz das abordagens teóricas tadas como forma de lidar urgentemente com uma
escolhidas e descrever quais são os elementos prin- ameaça existencial ao objeto referente.
cipais do processo de securitização enunciado por Isso nos leva a outro ponto importante para a
Trump, que tem como objeto referente a segurança formulação e instrumentalização da teoria: a
ontológica daquilo que o ex-presidente entendia en- questão do objeto referente. Se em teorias clássicas
quanto “América” e seus respectivos valores, direitos como o realismo polı́tico o objeto referente da
e liberdades. segurança é necessariamente o Estado, o processo
de alargamento do campo lança luz sobre outras
possibilidades, e a teoria da securitização permite
que outros objetos passı́veis de ameaça sejam le-
vados em consideração. Sumarizando, a teoria
Abordagem teórica: Securitização então concebe que, para que haja um processo
de securitização, é preciso que tenhamos alguns
Seguindo um contexto de alargamento dos estudos componentes claros: ameaças existenciais, ação
de segurança internacional, a teoria da securitização emergencial e efeitos nas relações entre as unida-
emerge nos anos 90, tendo como principal obra o des através da quebra das regras (Buzan, Wæver
livro “Security: A New Framework for Analysis”, por e Wilde 1998, p. 26). Além disso, é importante
Buzan, Waever e de Wilde. Se nas abordagens tradi- compreender que o processo de securitização não é
cionais à segurança, o conceito de ameaça era tido completo até que uma audiência o aceite como tal,
como objetivo e externamente definido em relação endossando o enquadramento discursivo através do
ao Estado nacional, a abordagem da Escola de Co- qual se localiza uma ameaça existencial a um objeto
penhague desloca esse entendimento ao descrever referente que requer medidas de exceção para sua
securitização como ato de fala, utilizando-se da te- defesa urgente.
oria da linguagem para falar sobre a construção e Sobre as implicações desse processo, os autores ar-
a manipulação de ameaças. Desta forma, podemos gumentam ainda que: “National security should not
considerar a securitização enquanto processo essen- be idealized. It works to silence opposition and has
cialmente intersubjetivo e determinado pelos atores given power holders many opportunities to exploit
em questão, e não enquanto algo dado objetiva- ‘threats’ for domestic purposes, to claim a right to
mente (Buzan, Wæver e Wilde 1998, pp. 30–31). handle something with less democratic control and
Como bem sintetiza Waever em “Securitization and constraint. Our belief, therefore, is not ‘the more
Desecuritization”, “[i]n this usage, security is not of
1 Ver Homolar e Scholz (2019) ou Homolar (2021) para um olhar atento à retórica singular de Trump através das lentes da segurança

ontológica.

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security the better’. Basically, security should be produzem. Entretanto, para o propósito da pes-
seen as negative, as a failure to deal with issues as quisa aqui desenvolvida, o uso de outra aborda-
normal politics. Ideally, politics should be able to gem teórica se faz necessário: na seção que segue,
unfold according to routine procedures without this pretendo contextualizar e sumarizar brevemente
extraordinary elevation of specific ‘threats’ to a pro- a teoria de segurança ontológica em Relações In-
political immediacy (Buzan, Wæver e Wilde 1998, ternacionais, visando pensar como podemos fazer
p. 29). sentido da identidade estadunidense mobilizada
Esse é um ponto importante, na medida em que por Trump, entendida aqui como objeto referente
enfatiza a dimensão polı́tica da securitização e as da securitização. Em outras palavras, a segurança
implicações de elevar um problema a um âmbito ontológica daquilo que Trump e seus apoiadores en-
de deliberação que se encontra além da “polı́tica tendem como “América” é aquilo que se encontra
normal”, ainda que mesmo essa noção também seja sob ameaça no processo de securitização enunci-
problematizada no âmbito dos estudos crı́ticos de ado pelo ex-presidente e, por esse motivo, requer
segurança.2 atenção mais cuidadosa, como veremos a seguir.
Por fim, algo também precisa ser dito acerca
da constituição de ameaças à luz da teoria da
securitização e o que pode vir a ser entendido ou
não como tal. Nesse sentido, tomo a obra Writing Abordagem teórica: Segurança
Security de David Campbell como base, partindo ontológica
do argumento de que o perigo não é uma condição
objetiva, e portanto não existe independentemente O conceito de segurança ontológica tem sua origem
daqueles para quem ele pode vir a se tornar uma na psicanálise de R. D. Laing (1990) e é trazido
ameaça; com isso, o autor enfatiza a importância para a sociologia por Giddens (1991), que reflete o
primordial da dimensão interpretativa existente na contexto de contingência e inconstância da moder-
definição de ameaças, onde a mera existência de nidade e a tensão entre segurança e insegurança on-
um modo alternativo de ser, cuja presença exem- tológicas gerada por ele, onde o papel das rotinas é
plifica que diferentes identidades são possı́veis e, enfatizado na busca dos indivı́duos por estabilidade
assim, desnaturaliza a reivindicação de uma única e previsibilidade tanto em seus cotidianos como em
identidade como a verdadeira identidade, às vezes suas próprias identidades, havendo portanto uma
é suficiente para produzir a compreensão de uma relação intrı́nseca entre ambas essas esferas. Num
ameaça (Campbell 1998, pp. 1–3). Em sua aborda- terceiro momento, esse conceito é trazido para a
gem ao conceito de risco, Campbell esclarece que disciplina de RI num contexto de crı́tica à ideia do
seu argumento: “[It] does not deny that there are Estado como ator racional e como objeto referente
‘real’ dangers in the world: infectious diseases, acci- único da segurança. Assim, essa é uma abordagem
dents, and political violence (among other factors) que desloca o enfoque para indivı́duos, sociedades,
have consequences that can literally be understood grupos humanos, ou mesmo Estados, se propondo
in terms of life and death. But not all risks are a pensar a relação entre segurança e identidade, na
equal, and not all risks are interpreted as dangers. medida em que concebe segurança ontológica en-
[...] Those events or factors which we identify as quanto a segurança de “ser”. Nesse sentido, Mitzen
dangerous therefore come to be ascribed as such (2006) lança luz sobre a utilidade do conceito para
only through an interpretation of their various di- pensar a área de Relações Internacionais: “I argue
mensions of dangerousness. Moreover, that process that physical security is not the only kind of secu-
of interpretation does not depend upon the inci- rity that states seek, and show how this changes
dence of ‘objective’ factors for its veracity.” (Camp- our thinking about the dilemma states face and the
bell 1998, p. 2, ênfase adicionada). tragedy of world politics. Specifically, I propose that
Concluindo, a securititização e seu entendimento states also engage in ontological security-seeking.
acerca do conceito de ameaça oferecem uma ferra- Like the state’s need for physical security, the need
menta viável para a análise de circunstâncias onde for ontological security is extrapolated from the in-
o papel da narrativa é fundamental, como é o caso dividual level. Ontological security refers to the
dos discursos proferidos por Trump e o imaginário need to experience oneself as a whole, continuous
de segurança populista (Löfflmann 2022) que eles person in time — as being rather than constantly
2 Essa é uma observação relevante para o presente trabalho, na medida em que, se por um lado não é o meu objetivo apresentar

uma revisão de literatura do extenso debate acerca da teoria da securitização e suas crı́ticas, por outro, parece importante reiterar que
as teorias escolhidas para esse trabalho de pesquisa, assim como quaisquer outras, não carecem de contestação e debate dentro dos
estudos crı́ticos de segurança. Sobre as crı́ticas à teoria da securitização e sua concepção de uma polı́tica supostamente “normal”, ver
Moffette e Vadasaria (2016) e Howell e Richter-Montpetit (2020).

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changing — in order to realize a sense of agency resta espaço para a dúvida (Eberle 2019, p. 8). Se-
(Giddens, 1991; Laing, 1969: 41–2). Individuals gundo o viés psicanalı́tico lacaniano adotado pelo
need to feel secure in who they are, as identities or autor, esse fechamento oferecido pela fantasia, que
selves.” (Mitzen 2006, p. 342). pressupõe a possibilidade de erradicar ambiguida-
Partindo do pressuposto de que os fins dos in- des e construir certezas é, por si só, problemático,
divı́duos são constitutivos de suas identidades, a argumentando que este visa mascarar a natureza
incerteza gera insegurança para a identidade dos necessariamente incerta e incompleta tanto dos su-
atores em questão. Por esse motivo, os indivı́duos jeitos como da própria realidade ou da forma como
são levados a criar certezas cognitivas e comporta- estes são capazes de entendê-la.3 Então, se por um
mentais através do estabelecimento de rotinas (Mit- lado a abordagem psicanalı́tica acerca das fantasias
zen 2006, p. 342) como forma de lidar com suas não é o enfoque do presente artigo, por outro, ela
ansiedades. Nesse sentido, recordar uma narra- elucida o quanto pensar segurança ontológica en-
tiva reconfortante acerca do “passado” é um recurso quanto ideal universal não é uma opção viável e,
tanto para tornar o presente mais tranquilizador para além disso, pode ser um movimento despo-
como para servir como base ou roteiro para o que litizante quando pensamos identidades necessaria-
deve ser feito no futuro (Steele e Homolar 2019, mente sobrepostas intrinsecamente às relações de
p. 216). Desta forma, é possı́vel notar a interação poder.4
complexa existente entre narrativa e memória no Concluindo essa breve contextualização acerca da
contexto da segurança ontológica: “[...] OST li- base teórica que viso mobilizar, a relação entre
terature has long engaged with questions of how segurança e identidades é entendida aqui como fun-
narratives shape not only the Self, and who gets to damental para uma análise pertinente do contexto
belong, but also the Other and who gets excluded. estadunidense. Parafraseando Buzan, Wæver e de
Narrative, from the perspective of ontological se- Wilde (1998, p. 23), a securitização de migrantes
curity, is seen as sense-making device that allows ou identidades “outras” depende apenas da perspec-
conceptions of stable selfhood to be projected, even tiva que um determinado grupo possui em relação à
protected, across time and space [...].” (Steele e constituição e à manutenção de sua identidade cole-
Homolar 2019, p. 216). tiva. Por esse motivo, uma linguagem, um conjunto
Entretanto, partindo de uma análise que leve em de hábitos e costumes, ou mesmo uma concepção
consideração a dimensão polı́tica das identidades, de pureza étnica são todos elementos que podem
a concepção de um “eu” estável ou completo é um ser colocados ou enunciados em termos de sobre-
ponto que deve ser problematizado. Nesse sentido, vivência. Nesse sentido, o presente trabalho visa
Eberle (2019) enfatiza as problemáticas existentes contribuir para uma dimensão pouco explorada nos
em promover a ideia de segurança ontológica como estudos de segurança ontológica: especificamente, a
ideal, argumentando em favor da necessidade de possibilidade de agentes polı́ticos terem como alvo
resistir à noção de fechamento que o conceito traz a busca de indivı́duos ou grupos por segurança on-
para que possamos analisar os efeitos excludentes e tológica, instrumentalizando essa busca a fim de
opressivos que a segurança ontológica de determi- obter ganhos polı́ticos ao construir, por exemplo,
nados grupos ou indivı́duos pode ter sobre outros narrativas de crise e de ameaças existenciais como
(Eberle 2019, p. 3), levando em consideração o forma de validar suas reivindicações ao poder.
quão imbricadas essas identidades se encontram
com relações de poder e dominação. Avançando
esse movimento de crı́tica e complexificação do
conceito, Eberle parte de uma abordagem psica- Trump, identidades e (in)segurança
nalı́tica para localizar segurança ontológica como
um dos elementos constituintes de uma fantasia, ontológica
entendendo que fantasias são tipos de narrativas
que visam proteger seu público-alvo de ansiedades Nesta seção, viso explorar o imaginário de
através da negação da ambiguidade ou complexi- segurança possibilitado e incentivado por Donald
dade de uma dada situação, alimentando nos in- Trump, bem como o papel fundamental do dis-
divı́duos uma “voracidade por certeza” ao oferecer a curso dentro dele e sua mobilização de grupos e
falsa segurança de uma escolha objetiva entre duas - imagens especı́ficas. Homolar e Scholz (2019) iden-
e apenas duas - opções, colocadas como uma espécie tificam a singularidade da estratégia retórica do
de conflito existencial entre “bem” e “mal” onde não 45º presidente estadunidense, baseada no exagero
dos problemas dos Estados Unidos, na crı́tica ao
3 Para mais acerca da abordagem Lacaniana à segurança ontológica em Relações Internacionais, ver Kinnvall (2018).
4 Ver Rossdale (2015).

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“estabelecimento”5 e a divisão entre as esferas in- enquadradas e mobilizadas de maneira singular


terna e externa numa dicotomia familiar de “nós” através de sua narrativa.7
contra “eles”, compondo uma espécie de polı́tica Nesse sentido, Homolar e Scholz (2019) argumen-
de reafirmação supostamente capaz de oferecer tam que, ao construir um aparato retórico em
segurança, tanto fı́sica e material como ontológica, torno da exacerbação de rancores existentes e a
em tempos de crise: “At the heart of ‘Trump-speak’ is enfatização de uma perspectiva de ruptura e der-
a politics of reassurance, which relies upon a three- rota, Trump gerou insegurança ontológica, que se
fold rhetorical strategy: it tells audiences what is manifesta através de sensações de perda e desejo de
wrong with the current state of affairs; it identifies pertencimento. A noção de rancores pré-existentes
the political agents that are responsible for putting é igualmente importante, pois remete a um contexto
individuals and the country in a state of loss and estadunidense atravessado por questões de racismo
crisis; and it offers an abstract pathway through e xenofobia onde, se por um lado esses posiciona-
which people can restore past greatness by opting mentos são mobilizados e mesmo incentivados por
for a high-risk outsider candidate. For many Trump Trump, eles também o precedem. Brown (2019, p.
voters, rational arguments or detailed policy propo- 13) coloca, por exemplo, que o novo populismo de
sals pale in comparison with the emotive pull and extrema direita age justamente sobre a ferida do pri-
self-affirmation of an us-versus-them crisis narrative vilégio destronado daqueles beneficiados pela bran-
[...]. In short, ‘Trump-speak’ relies on creating the quitude, pela cristandade, masculinidade e heteros-
very ontological insecurity that it promises to eradi- sexualidade, invocando a imagem de um passado
cate for political gain.” (Homolar e Scholz 2019, p. mı́tico marcado pela prevalência desses privilégios
360, ênfase adicionada). e um anseio pelo retorno a esse momento, indepen-
Aqui, o argumento acerca da criação de insegurança dente do quão questionável seja a sua existência.8
ontológica como estratégia polı́tica é de particular Novamente, esse é um ponto onde abordagens à
relevância. Isso porque, se por um lado a noção de segurança que pressupõem atores racionais e calcu-
uma crise do (ou dentro do) neoliberalismo6 é um listas necessariamente falham em explicar contextos
ponto importante para entendermos inseguranças onde o valor simbólico e afetivo das reivindicações
materiais que acometem indivı́duos de maneira polı́ticas superam sua praticabilidade ou sua pre-
geral, essa insegurança não se traduz necessaria- cisão histórica.
mente em insegurança ontológica. Esse movimento, Quanto ao papel da retórica sobre essas ansieda-
dentro do contexto estadunidense, é explicado por des pré-existentes, uma linguagem divisiva que de-
Löfflmann (2022): “[...] the analytical framework marca fronteiras e inimigos de maneira clara são
of a populist security imaginary reveals how the ferramentas importantes para a construção do ima-
ontological reassurance of voters and their rheto- ginário almejado por Trump: “To conjure a picture
rical validation has elevated the working class and of American ‘carnage’, Donald Trump relied upon a
non-college-educated core constituencies of Donald language of division. His presidential campaign spe-
Trump in the American heartland to the status of eches constructed vivid images of who gets to be-
sole relevant representatives of ‘real America’ and long and who gets to be excluded, of who is strong
American democracy. The fears and anxieties preva- and who is weak and of who is a winner and who is
lent among these constituencies about foreign eco- a loser. The ‘others’ that Trump consistently framed
nomic competition, violent crime, mass migration, both as responsible for America’s state of crisis and
terrorism, cultural displacement, and political mar- as diametrically opposed to Trump himself and the
ginalisation, were thereby framed as the ontological American people consist of two sets of social actors:
insecurities of the nation itself [...].” (Löfflmann (1) the weak, self-serving and detached ‘establish-
2022, p. 545). ment’; and (2) foreigners who either flow into the
Assim, se por um lado existem ansiedades que an- country or lead countries that want to exploit the
tecedem o imaginário de segurança especı́fico in- US for economic and security reasons.” (Homolar e
vocado por Trump, entende-se aqui que estas são Scholz 2019, p. 351).
5 Apesar do termo “establishment” ter sentidos variados em contextos distintos, aqui entendo a palavra como usada por Trump

majoritariamente durante o processo de campanha eleitoral para se referir à então elite polı́tica contra a qual ele reitera sua oposição,
usando o termo de forma pejorativa para se referir à sua oponente Hillary Clinton, por exemplo.
6 Ver, por exemplo, Brown (2018; 2019).
7 Em seu artigo “The power of Trump-speak: populist crisis narratives and ontological security”, Homolar e Scholz conduzem uma

análise acerca da retórica de Trump e identificam como um de seus elementos centrais o que os autores chamam de “crisis-talk”, que
consiste num discurso focado em reiterar crises e invocar imagens de derrota, crise e perda generalizada. Pensando nos termos da
teoria da securitização, podemos entender esse recurso retórico como o enquadramento de um objeto referente sob ameaça existencial.
8 Brown também aborda essa temática em “Neoliberalism’s Frankenstein: Authoritarian Freedom in Twenty-First Century ‘Demo-

cracies’ (Brown 2018).

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Aqui, o próprio entendimento estrangeiros ou imi- the people’.” (Löfflmann 2022, p. 544).
grantes enquanto responsáveis pelo cenário de crise Pensando esse imaginário nos termos da teoria da
interna suposto por Trump já evoca imagens ampla- securitização, é possı́vel localizar a enunciação de
mente difundidas em sua administração da fronteira uma ameaça, personificada principalmente pela fi-
como um local de violação do âmbito interno da gura do imigrante ilegal e secundariamente pela
nação por parte do outro, bem como a promessa do elite polı́tica estadunidense (o establishment), como
ex-presidente de construção de um muro na divisa veremos nas próximas seções ao analisar dire-
com o México. Esse é um ponto profundamente tamente alguns dos discursos de Trump. Aqui,
interessante do discurso Trump, que merece um ar- argumento que essa enunciação, carregada de
tigo por si só, mas que apresento apenas brevemente peso polı́tico e simbólico, visa remover o tema da
aqui como forma de contextualizar a discussão e as migração da esfera do que entendemos como a
imagens e imaginários evocados pelos discursos de polı́tica normal, elevando-o ao âmbito da segurança,
(in)segurança a serem trabalhados nas próximas onde polı́ticas de exceção sujeitas a menor influência
seções. Nesse sentido, Brown (2010) argumenta, democrática podem ser implementadas para lidar
por exemplo, que os muros construı́dos no século com uma ameaça existencial à coesão e segurança
21 não são meramente barreiras fı́sicas, mas per- do que se entende como a verdadeira “América”.9
formances simbólicas que abordam e representam Em outras palavras, entende-se a securitização po-
anseios populares pelo declı́nio do poder soberano pulista como prática discursiva que propaga uma
do Estado. Além disso, os muros também podem polı́tica de medo, urgência e excepcionalidade para
“funcionar” para produzir significado polı́tico e afeto mobilizar “o povo” contra uma elite “perigosa” e
polı́tico (Callahan 2018, p. 458), provocando sen- normalizar essa divisão antagônica do espaço social
timentos de reafirmação e segurança no “dentro”, (Wojczewski 2020, p. 5).
que passa a ser percebido como protegido do “fora” Concluindo, a força do nacionalismo nesse sentido
anárquico e seus perigos, trabalhando assim ao nı́vel vem justamente de sua capacidade de transmitir
da segurança ontológica. unidade, segurança e inclusividade em tempos de
No cerne desse imaginário, alguns elementos fi- crise. Ao transmitir essas crenças, uma ideia de “lar”
cam claros: a presença de um objeto referente en- é produzida enquanto um local onde subjetividades
tendido como “América”, mas que não necessaria- podem ser ancoradas e securitizadas, oferecendo
mente inclui todos os cidadãos dos Estados Unidos proteção e segurança em relação ao estranho, ao
da América, e a presença de ameaças concretas a “outro-abjeto”. Dessa forma, o nacionalismo, agindo
esse objeto. Ao traçar uma linha não ambı́gua en- sobre identidades, é capaz de elevar a segurança on-
tre o “dentro” e o “fora”, esse tipo de narrativa tológica e minimizar ansiedades existenciais (Kinn-
de segurança (re)cria aquilo que determinada co- vall 2004, pp. 762–763). Assim, o imaginário de
munidade imagina ser admirável e desejável, ao segurança (Löfflmann 2022) enunciado por Trump
mesmo tempo em que possibilita que ela reflita so- demonstra uma relação ı́ntima entre nacionalismo,
bre seus medos e concepções de desvio (Homo- discurso, (in)segurança ontológica e securitização.
lar 2021, p. 11). Desta maneira, a narrativa de Com isso em mente, e visando evidenciar a relação
Trump enquanto protetor do povo teve como alvo entre teoria e empiria, as próximas seções são dedi-
um eleitorado branco da classe trabalhadora e sem cadas à análise de dois discursos emblemáticos de
ensino superior no coração dos Estados Unidos, am- Donald Trump, escolhidos por seu enfoque no que
pliando a polarização partidária e a divisão interna o 45º presidente entendia então como as principais
para ganhos polı́ticos (Löfflmann 2022, p. 545). ameaças a serem enfrentadas por sua administração.
Löfflmann (2022) caracteriza isso como um pro-
cesso de criação de um imaginário de segurança
populista com relações profundas com o conceito
de segurança ontológica: “A populist security ima- Discursos: Inaugural Address
ginary produces a reframing of national identity
through affective appeals and narratives that pa- O Inaugural Address é o discurso inaugural da pre-
rochialise the national Self, conflating it with the sidência dos Estados Unidos da América, proferido
ontological insecurities of populist voters, while sig- publicamente após um juramento solene através
nificantly expanding the category of the threatening do qual o novo presidente toma posse do cargo e
Other to include political opponents, the press and se compromete a executar suas atribuições, bem
media, courts and institutions, the national security como preservar, proteger e defender a constituição
establishment, and civil rights groups as ‘enemies of estadunidense. No caso de Trump, o discurso acon-
9 Para uma visão mais detalhada do processo de securitização, ver Buzan, Wæver e Wilde (1998).

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teceu em 20 de Janeiro de 2017, e possui vı́deo média norte americana, que o ex-presidente argu-
e transcrição disponı́veis na base de dados dedi- menta então ter sido distribuı́da ao redor do mundo
cada a discursos presidenciais do Millner Center, (Trump 2017).
organização apartidária afiliada da Universidade Em contraste com esse cenário aterrador, há um
de Virgı́nia, especializada em polı́ticas públicas e chamado claro à ação e a um olhar para o futuro
história polı́tica (Trump 2017). Nesse primeiro dis- onde a “América” (ou o que se entende enquanto
curso de sua administração, a narrativa divisiva que tal) é colocada em primeiro lugar, seguindo o slo-
marcou sua campanha presidencial é reafirmada, gan da campanha de Trump, “America First”. Aqui,
trazendo consigo dois pontos principais a serem alguns pontos são destacados como fundamentais
analisados: (i) a descrição da conjuntura social e para atingir esse futuro seguro e desejável, que seria
polı́tica do paı́s naquele momento como um cenário construı́do exclusivamente para beneficiar trabalha-
de crise, desemprego e insegurança generalizados, dores e famı́lias estadunidenses. Primeiramente,
e (ii) a definição de uma ameaça interna, manifesta temos a colocação “We must protect our borders
na figura do establishment polı́tico estadunidense.10 from the ravages of other countries making our pro-
Começando com um chamado à ação que se de- ducts, stealing our companies, and destroying our
senvolve ao longo de sua fala, o então presidente jobs. Protection will lead to great prosperity and
clama por uma reconstrução do paı́s com o objetivo strength” (Trump 2017), que é uma das poucas
de restaurar a promessa norte-americana para todos menções acerca de uma ameaça externa, que será
(Trump 2017), evocando a imagem de um passado retomada e trazida para o centro da narrativa no
próspero ainda que distante, ao qual o retorno ainda discurso analisado na seção seguinte.
é possı́vel. Assim, se por um lado o passado e o fu- Além disso, vale destacar algumas outras soluções
turo a ser construı́do parecem prósperos, a presente propostas pelo então presidente: “We will follow
conjuntura deixada pela administração Obama é two simple rules: Buy American and Hire Ameri-
colocada em termos catastróficos: “For too long, a can. We will seek friendship and goodwill with the
small group in our nation’s Capital has reaped the nations of the world – but we do so with the unders-
rewards of government while the people have borne tanding that it is the right of all nations to put their
the cost. Washington flourished – but the people own interests first. [...] We will be protected by the
did not share in its wealth. Politicians prospered – great men and women of our military and law en-
but the jobs left, and the factories closed. The es- forcement and, most importantly, we are protected
tablishment protected itself, but not the citizens of by God.” (Trump 2017).
our country. Their victories have not been your vic- Essas colocações importam para uma análise de
tories; their triumphs have not been your triumphs; segurança não apenas pelo que elas propõem por si
and while they celebrated in our nation’s Capital, só, mas pela forma como essas propostas são colo-
there was little to celebrate for struggling families cadas. Em outras palavras, as asserções de Trump
all across our land. That all changes – starting right em seu discurso inaugural são um exemplo claro de
here, and right now, because this moment is your uma narrativa de segurança construı́da sobre uma
moment: it belongs to you.” (Trump 2017). estrutura de enredo carregado emocionalmente, gi-
Retomando o segundo ponto, a crı́tica à elite polı́tica rando em torno da experiência de apreensão do
identificada por Trump é, como citado na seção público ao recebê-la, gerando tensão e ansiedade ao
anterior, um elemento fundamental para a sua sinalizar incertezas e perda de controle (Homolar
reivindicação ao poder, e destaca o apelo emotivo 2021, p. 10), uma estrutura familiar quando lida
de narrativas de segurança que criam percepções em termos de inseguranças ontológicas e a forma
de inimizade e ameaças através de uma estrutura como elas frequentemente são criadas, aprofunda-
dualı́stica (Homolar 2021, p. 2). Desta forma, a das ou incentivadas com fins polı́ticos.
elite polı́tica é responsabilizada por questões ur- Por fim, o discurso é finalizado com convocações à
gentes à população americana e que impediriam união, ao patriotismo e ao orgulho nacional, com a
diretamente o seu retorno à prosperidade. Dentre promessa clara de que a “América” não seria mais
os problemas mais imediados, são citados: o em- ignorada em sua administração, remetendo a uma
pobrecimento da indústria estadunidense, o enfra- identidade coletiva estadunidense como saı́da ou
quecimento do exército, a fragilidade das fronteiras, remédio à crise deixada pelo governo anterior. Aqui,
decaimento da infraestrutura nacional, o desapa- o cenário de crise e a reafirmação da identidade
recimento da fortuna, força e confiança do paı́s, o conversam intimamente entre si: como bem elucida
fechamento de fábricas levando ao desemprego ge- Kinnvall (2004, p. 742), quando sentem ansiedade
neralizado e, por fim, a tomada da riqueza da classe existencial e vulnerabilidade, não é incomum que
10 Para uma abordagem pós-estruturalista focada especificamente na relação com o establishment, ver Wojczewski (2020).

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os indivı́duos busquem reafirmar uma identidade who we are, and show us what we can be.” (Trump
própria que está sob ameaça, e qualquer identidade 2018, ênfase adicionada).
coletiva capaz de prover esse tipo de segurança é Dentre essas figuras destacadas, temos civis, milita-
um polo de atração em potencial. Assim, temos um res, oficiais da guarda costeira, bombeiros, policiais
cenário saturado de emoções onde figuras de desta- do capitólio, pequenos empreendedores, veteranos
que como lı́deres polı́ticos buscam reunir pessoas ao de guerra e demais indivı́duos cujas histórias o ex-
redor de causas simples, como a religião e o nacio- presidente saúda através de um discurso de união e
nalismo. patriotismo onde o paı́s é frequentemente descrito
como uma famı́lia, com heróis comprometidos com
a defesa da esperança, do orgulho e do modo de
vida americano (“American way”) (Trump 2018).
Discursos: State of the Union Ad- Por fim, a referência a valores e ideais comparti-
lhados é retomada quando o então presidente fala
dress sobre a própria criação dos Estados Unidos: “It was
a small cluster of colonies caught between a great
O segundo discurso a ser analisado à luz das te- ocean and a vast wilderness. But it was home to
orias de segurança ontológica e da securitização an incredible people with a revolutionary idea: that
foi proferido em 30 de Janeiro de 2018, pouco they could rule themselves. That they could chart
mais de um ano depois da mensagem inaugural their own destiny. And that, together, they could
de Trump. O State of the Union Address é uma light up the world. That is what our country has
comunicação entre o Presidente e o Congresso em always been about. That is what Americans have
que o chefe do Executivo relata as condições atu- always stood for, always strived for, and always
ais dos Estados Unidos e apresenta propostas para done.” (Trump 2018).
o próximo ano legislativo, delineando a agenda Pensando essas colocações iniciais através das len-
polı́tica de sua administração. Além disso, é co- tes da segurança ontológica, podemos localizar uma
mum que os presidentes utilizem-se do discurso narrativa emocionalmente carregada remetendo a
para aumentar a atenção da mı́dia para questões um passado imaginado através da reconstrução de
especı́ficas de acordo com seus interesses (Shogan sı́mbolos e pontos de referência culturais comuns,
2015). Nessa ocasião, Donald Trump apresenta um que é usada em resposta aos efeitos desestabilizado-
discurso que entrelaça a celebração das conquistas res de mudanças no âmbito global, especialmente
de sua administração e de indivı́duos considera- em termos de mobilidade e migração. Em outras
dos heróis americanos11 com um chamado urgente palavras, é uma narrativa que almeja recuperar um
a uma ameaça distinta da analisada no discurso senso de segurança perdido (Kinnvall 2004, p. 744).
anterior. Se no dia de sua posse o obstáculo prin- Um outro ponto focal do discurso é o plano de re-
cipal a ser superado era o establishment polı́tico forma do sistema de migração estadunidense pro-
estadunidense, agora, após o primeiro ano de sua posto pela administração Trump, descrito como uma
administração, o foco é redirecionado para um ou- reforma crı́tica a ser acordada de maneira bipar-
tro entendimento de ameaça, cujo enquadramento tidária entre Democratas e Republicanos, e que
enquanto tal marcou grande parte de sua campanha é delineada em quatro pilares: (i) o primeiro pi-
à presidência: a imigração. lar envolve oferecer um caminho à cidadania para
Durante grande parte de sua fala, o então presidente mais de um milhão de imigrantes que residiam no
celebra as medidas tomadas por sua administração paı́s ilegalmente desde a infância, contanto que
no último ano e as conquistas da mesma, bem como atendessem a determinados requisitos de traba-
saúda convidados que ele descreve como heróis lho, educação e demonstrassem bom caráter moral;
americanos ao contar suas histórias de superação, (ii) o segundo pilar tem como objetivo o resguardo
alegando que: “Over the last year, we have made da fronteira: “That means building a wall on the
incredible progress and achieved extraordinary suc- Southern border, and it means hiring more heroes
cess. We have faced challenges we expected, and [...] to keep our communities safe. Crucially, our
others we could never have imagined. We have plan closes the terrible loopholes exploited by cri-
shared in the heights of victory and the pains of minals and terrorists to enter our country — and
hardship. We endured floods and fires and storms. it finally ends the dangerous practice of ‘catch and
But through it all, we have seen the beauty of Ame-
rica’s soul, and the steel in America’s spine. Each
test has forged new American heroes to remind us
11 Aqui, a figura do herói frequentemente evocada pelo ex-presidente é elaborada por Homolar (2021), quando a autora se debruça

novamente sobre o aparato discursivo Trumpista.

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release’.”12 (Trump 2018). tomias. A identidade nacional aqui mobilizada, em


Aqui, a proposta da construção de um muro na outras palavras, depende e reitera essas dicotomias,
fronteira com o México, muito presente durante a de forma que a imagem de linhas claramente demar-
campanha de Trump, é retomada como uma solução cadas entre esferas e indivı́duos distintos prevalece
para o terrorismo e a criminalidade, traçando assim como uma ambição normativa da vida polı́tica mo-
uma relação direta entre migração e insegurança derna (Walker 2006, p. 57), isso por que como
pública. Em seguida, o próximo pilar (iii) propõe bem argumenta Walker (1993), a distinção tradi-
avançar em direção a um sistema de imigração ba- cional entre dentro e fora em Relações Internacio-
seado em mérito, visando admitir a entrada apenas nais marca a separação entre a polı́tica doméstica
para “pessoas qualificadas, que desejam trabalhar, e a internacional não apenas territorialmente, mas
que contribuirão com nossa sociedade e que amarão também socialmente. Desta forma, o “dentro” vem
e respeitarão nosso paı́s” (Trump 2018, tradução a representar segurança, coesão e soberania, en-
livre). quanto o “fora” carrega um imaginário repleto de
Por fim, o último pilar (iv) visa o fim do fenômeno sı́mbolos de anarquia e violência.
da migração em cadeia (“chain migration”): “Un- Em grande parte da retórica de Trump, estrangei-
der the current broken system, a single immigrant ros são descritos como os lı́deres “fortes” de paı́ses
can bring in virtually unlimited numbers of distant que ajudaram a empurrar os Estados Unidos para
relatives. Under our plan, we focus on the immedi- o declı́nio econômico ou como indivı́duos “ruins”
ate family by limiting sponsorships to spouses and que fluem para o paı́s, ameaçando os empregos e a
minor children. This vital reform is necessary, not segurança fı́sica dos americanos (Homolar e Scholz
just for our economy, but for our security, and our 2019, p. 352). Assim, na narrativa construı́da por
future. In recent weeks, two terrorist attacks in Trump acerca de uma “América” em crise, os es-
New York were made possible by the visa lottery trangeiros que cruzam a fronteira servem como cul-
and chain migration. In the age of terrorism, these pados por trás da deterioração econômica do paı́s,
programs present risks we can no longer afford.” bem como a perda de segurança individual e coesão
(Trump 2018, ênfase adicionada). social de seus cidadãos, alimentando ansiedades
Esse é um ponto particularmente ilustrativo do entre seu público sobre a ideia de diferença (Ho-
caráter securitizador do discurso de Trump acerca molar e Scholz 2019, p. 352-353). Através desse
da imigração, baseado na utilização de termos como enquadramento, o “outro” estrangeiro associado
“segurança”, “terrorismo” e “risco” para descrever a à criminalidade urbana e ao terrorismo é enten-
imigração ilegal não apenas como uma questão a dido como uma ameaça a ser combatida através de
ser resolvida, mas como uma ameaça existencial a polı́ticas de exceção, que podem incluir um leque
ser combatida, com ligação direta ao terrorismo e de práticas desde à reforma do sistema migratório
à insegurança pública. Segundo Kinnvall (2004, p. do paı́s à construção de um muro de mais de 3 mil
755), o processo onde o outro é transformado em quilômetros na fronteira sul do paı́s.
inimigo pode ser caracterizado como uma tentativa Em outras palavras, o imigrante é enunciado em ter-
de securitizar a subjetividade em tempos de incer- mos de segurança como uma ameaça à segurança
teza. Dentro desse processo, o “eu” e o “outro”13 fı́sica e ontológica da “América” de Trump de ma-
passam a ser vistos como corpos essencializados, neira tão crı́tica que requer uma reforma com-
reduzidos a determinadas caracterı́sticas culturais pleta no sistema de migração estadunidense. Ao
que, apesar de fabricadas, passam a ser vistas como apelar para sentimentos de ansiedade econômica,
atributos naturais e unificados de cada grupo. alienação cultural, insegurança pessoal, ressenti-
Nesse sentido, é interessante pensar os processos mento nativista e xenofobia, Trump foi capaz de
discursivos através dos quais a suposta identidade manter um nı́vel de apoio de mais de 40% do
da nação estadunidense continua a ser reificada e eleitorado estadunidense por sua agenda polı́tica
reiterada através de promessas de completude e ho- “America First”, mantendo nı́veis de aprovação de
mogeneidade ou, em outras palavras, de segurança, mais de 80% dos eleitores republicanos durante a
ontológica ou não, baseando-se fortemente em dico- maior parte de sua presidência (Dunn 2020). Li-
12 “Catch and release” se refere à prática de liberar um migrante para a comunidade enquanto ele aguarda as audiências no tribunal

de imigração, como uma alternativa a mantê-lo em detenção durante esse processo. Apesar disso, durante a administração Trump,
muitos migrantes permaneceram em centros de detenção, acerca dos quais há relatos incontáveis de violações aos direitos humanos e
condições de vida precárias, incluindo denúncias de assédio ou abuso sexual, tratamento médico inadequado, greves de fome, uso de
confinamento solitário, denúncias do uso de força fı́sica contra os detidos e casos de morte e suicı́dio (ver, por exemplo, Bonfiglio et
al. (2020) e Gomez (2019)).
13 Para uma abordagem mais elaborada teoricamente acerca dessa dicotomia e seu papel produtivo, bem como crı́tica às bases tradi-

cionais e eurocentradas da disciplina de Relações Internacionais e sua falha em confrontar o “problema da diferença”, ver Inayatullah
e Blaney (2004).

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dos através da lente da teoria de securitização, que tológica de seus eleitores, bem como sua sensação
argumenta que o processo de securitização não é de alienação e perda de privilégios, recrutando-os
completo até que uma audiência o aceite como tal, enquanto coletivo com reivindicações e uma identi-
esses dados demonstram o sucesso do movimento dade especı́fica, altamente imbricada com relações
securitizador de Trump para com seu público alvo, de poder que nos levam à necessidade de proble-
cujas inseguranças ontológicas foram representadas matizar a ideia de segurança ontológica como um
em seus discursos como as inseguranças da própria ideal, ainda que, enquanto conceito, ela seja es-
nação (Löfflmann 2022, p. 545). sencial para a análise da era Trump, onde o valor
simbólico e afetivo das reivindicações polı́ticas não
pode ser ignorado.

Conclusão
Concluindo, o presente artigo tenciona contribuir
para uma dimensão pouco explorada dos estudos Referências
de segurança ontológica, considerando a possibi-
lidade de agentes polı́ticos lidarem com situações Bonfiglio, Genna et al. (2020). “The long journey
de crise, supostas ou não, visando legitimar suas inside immigration detention centres in the USA”.
reivindicações de liderança (Homolar e Scholz Em: Journal of Travel Medicine 27.7, taaa083.
2019, p. 357), utilizando-se da dimensão inter- Brown, Wendy (2010). Walled states, waning sove-
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