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A Fenomenologia possui grande importância no sistema filosófico de Peirce.

Através dessa
ciência, é possível inventariar e catalogar os tipos de fenômenos percebidos pelos sentidos
na relação do indivíduo com o mundo, em suas experiências de vida. Deste modo, um
pensamento, a percepção de um objeto exterior ao ser senciente, um sonho, um sentimento
de ódio ou amor são fenômenos ou faneron:
[...] por faneron eu entendo o total coletivo de tudo aquilo que está de qualquer modo presente na
mente, sem qualquer consideração se isso corresponde a qualquer coisa real ou não." [pág. 22]

A Fenomenologia não possui, como ciência, o objetivo de descortinar a realidade, de tratar


os fenômenos como objetos de estudo tal qual a Química e a Física, mas sim catalogá-los e
apreender as suas aparências e como esses surgem na mente:
Fique entendido, então, que o que temos a fazer, como estudantes de fenomenologia, é simplesmente
abrir nossos olhos mentais, olhar bem para o fenômeno e dizer quais são as características que nele
nunca estão ausentes, seja este fenômeno algo que a experiência externa força sobre nossa atenção, ou
seja, o mais selvagem dos sonhos ou a mais abstrata e geral das conclusões da ciência [pág. 24].

Outro conceito, intimamente ligado aos fenômenos percebidos pelos sentidos, é o da


experiência. Por experiência, Peirce entende os indivíduos em contato com o mundo e
interpretando-o, estabelecendo teorias e conceitos que condicionam nossa conduta e
interpretação dos fatos assimilados pelos sentidos. Deste modo, o filósofo entende que a
experiência tem o poder de ser o fator corretivo do pensamento, de direcioná-lo, através das
muitas investigações e experiências cotidianas, no sentido correto:
"Antecipa-se, assim, que experiência, tal como conceituada, estatui-se como fator corretivo do
pensamento, e essa característica, reconhecida por Peirce, é um dos pilares de toda a sua Filosofia [...]."
[pág. 23]

Na apreensão dos fenômenos internos e externos, Peirce indica três faculdades ou categorias
que resumem os modos de ser da experiência. Essas faculdades, que se ligam a experiência
cotidiana do indivíduo em sua interação com o mundo, a natureza e nas relações sociais.

A primeira das categorias recebe o nome de primeiridade, pois trata-se do primeiro contato
com algo que surge diante de nós e que é apreendido pelos sentidos sem grandes
interpretações ou conceituações complexas. Trata-se de uma experiência muita mais sentida
do que refletida:
As faculdades que devemos nos esforçar por reunir para este trabalho são três. A primeira e principal é
aquela rara faculdade, a faculdade de ver o que está diante dos olhos, tal como se apresenta sem
qualquer interpretação... Esta é a faculdade do artista que vê, por exemplo, as cores aparentes da
natureza como elas se apresentam [...] [pág. 24].

Essa é a instância mental dos artistas, dos poetas, daqueles que criam algo inspirados pela
criatividade interior. Nessa atmosfera, o indivíduo criador está fora do tempo sensível, do
tempo que devora a tudo que é material. Ele sente e pouco ou nada interpreta.

A segunda categoria ou segundidade é a categoria que expõe à relação do sujeito com algum
fato externo que reage contra ele... é aquele objetivo simples de ir a uma padaria e perceber
que no dia a mesma encontra-se fechada, forçando o sujeito a buscar novos meios de
contornar esse problema surgido inesperadamente. É ainda aquela contrariedade surgida no
trabalho de um companheiro que falta e o obriga a cubri-lo, tendo que dar conta do seu
trabalho e do companheiro que faltou:
Estamos continuamente colidindo com o fato duro. Esperávamos uma coisa ou passivamente a
tomávamos por admissível e tínhamos sua imagem em nossas mentes, mas a experiência força esta ideia
ao chão e nos compele a pensar muito diferentemente [pág. 26].

Nessa relação do sujeito que se defronta com os chamados fatos duros fica clara uma
dualidade entre duas coisas: o próprio sujeito que faz os planos, traça suas metas e
empreende sua caminhada rumo à esses objetivos, de um lado, e as vicissitudes que surgem
no caminho, as dificuldades de um mundo que não se sujeita passivamente a nossa vontade:
Você tem este tipo de consciência de uma maneira pura, com alguma aproximação, quando coloca seu
ombro contra uma porta e tenta forçá-la a se abrir. Você tem um sentimento de resistência e, ao mesmo
tempo, um sentido de esforço. Não pode haver resistência sem esforço; não pode existir esforço sem
resistência. Eles são apenas dois modos de descrever a mesma experiência. É uma dupla consciência
[pág. 26].

É nessa relação de dualidade sujeito-fato bruto que surge a ideia de outro, de alteridade em
relação a algo. Assim, surge uma relação direta, não mediatizada por leis ou terceiros entre o
sujeito e os fatos que se opõe a sua vontade.

Essa oposição dos fatos brutos sobre o sujeito o obriga a buscar novas mediações como
forma de contornar a dificuldade surgida. Essa busca faz com que a inteligência do indivíduo
se desenvolva , o torna mais forte psicologicamente, caso o mesmo encare as dificuldades
com serenidade e perseverança.

Essas experiências de oposição dos fatos sobre os sujeitos são sempre individuais e por mais
que sejam parecidas e repetidas, essa repetição no espaço-tempo, é outra ocorrência, uma
nova individualidade que se opõe aos objetivos do sujeito:
[...] uma reação tem uma individualidade. Ela acontece apenas uma vez. Se ela é repetida, a repetição é
outra ocorrência, não importando quão parecida com a primeira ela possa ser. [Ainda:] uma reação é
alguma coisa que ocorre hic et nunc [...] Ela é um evento individual [...] [pág. 27].

Nessa relação sujeito-fatos duros, o sujeito assume a posição do eu e o mundo a do não eu.
Nessa oposição sem mediações, ou seja, crua e direta percebemo-nos como individualidades
porque nos sentimos em oposição em relação a algo. Ou seja, eu sou porque estou em um
mundo que me obriga a buscar novos caminhos e mediações. O meu ego defronta-se com o
não ego que é mundo e os fatos duros:
O mundo como exterioridade assume, na experiência que está sob a segunda categoria, o caráter de
não-ego pelo seu traço de alteridade revelado de modo não mediato. Essa concepção prenuncia que
Peirce se afasta radicalmente do cartesianismo, uma vez que a existência do ego é dada pela negação
numa experiência imediata, e não através de uma dúvida formulada conceitualmente, solucionável pela
mediação do cogito [...] [pág. 27].

Peirce, desta forma, afasta-se do cartesianismo, no que se refere a percepção do ego, pois
em sua visão, como exposto acima, essa se daria pela relação de oposição entre o sujeito
(ego) com o mundo e seus fatos duros (não ego) e não por uma falsa dúvida: “Não
pretendemos, em filosofia, duvidar a respeito do que não duvidamos em nossos corações”.

Nesse sentido, Peirce coloca a dúvida como uma alteridade, um fato duro que arremete
contra nossas mentes nos forçando pesquisar e nos aprofundar na busca pela verdade:
Entre as formas internas que assume a binaridade estão aquelas das dúvidas que são forçadas sobre
nossas mentes. A própria palavra “dúvida” ou dubito é o frequentativo de duhibeo – i.e., duo habeo,
exibindo, assim, sua binaridade. Se não conflitássemos com a dúvida, não encontraríamos a verdade
[pág. 27/28].

Outro fator que exerce forte influência sobre nós como um outro é o passado. Sob a segunda
categoria, o passado é aquilo que já aconteceu e não pode mais ser alcançado ou modificado,
mas mesmo assim exerce forte influência sobre o presente do sujeito exigindo mediações no
sentido de encarar os fatos construídos nesse período:
Se você se queixar ao Passado que ele está errado e não é razoável, ele se rirá. Ele não confere a menor
importância à Razão. Sua força é força bruta. [Ainda:] [...] o passado contém apenas uma certa coleção
de casos que ocorreram... O passado consiste na soma de faits accomplis [...] o passado realmente age
sobre nós precisamente como um objeto existente o faz. [pág. 28]

Deste modo, sob a segunda categoria o passado assume a condição de outro no mundo
interior da consciência, um não-ego interior.

Diferentemente, na primeira categoria não existe essa condição de dualidade onde os


chamados fatos duros exercem sua influência sobre a consciência exigindo mediações.

Na Primeiridade não existe o outro, não existe alteridade, pois tudo acontece fora do fluxo
do tempo, em total liberdade. Sob essa categoria estão os sentimentos ao se contemplar
uma bela obra de arte, ou ouvir o som relaxante das ondas do mar, ou ainda o vento
acariciando as folhas das árvores:
Entre os fanerons, há certas qualidades de sentimento, tais como a cor de magenta, o odor da rosa, o
som do silvo de um trem, o sabor do quinino, a qualidade da emoção ao se contemplar uma bela
demonstração matemática, a qualidade de sentimento do amor etc. [pág. 30]

A Primeiridade, por ser uma categoria fora do tempo, não se liga nem ao passado e nem ao
futuro, pois é imediata, sem grandes interpretações ou projeções em relação objetivos
futuros. Ela, por ser imediata, liga-se ao presente, o imediatismo da primeira impressão e
sentimento.

O sentimento, presente na primeira categoria, está, ele também, fora do tempo por sua
imediatez. Por esse motivo, por se tratar de algo sentido de forma imediata, não existe nessa
instância análise, interpretação ou reflexão problematizadora:
Interpor qualquer instância analítica na mente para mediar conceitualmente o conteúdo do sentimento
é perdê-lo na sua presentidade, uma vez que a análise envolve comparação com uma experiência
pretérita [...]

Desta forma, o sentimento não é um fato concreto, não existe no espaço-tempo nem no
mundo sensível de forma exterior ao indivíduo. É, a bem da verdade, um estado de
consciência, e como tal existe no interior das consciências humanas:
Um sentimento, então, não é evento, uma ocorrência, um acontecimento, uma vez que um
acontecimento não pode ser o que é, a menos que existisse um tempo em que ele não aconteceu; e,
assim, ele não é em si mesmo tudo o que ele é, mas é relativo a um estado prévio. Um sentimento é um
estado, que assim é em sua totalidade, em todo momento de tempo e na medida em que ele dure [pág.
31].

A primeira categoria é a instância mental e criativa dos poetas, músicos e artistas em geral.
Nesse sentido, a faculdade de olhar sem mediações, sem interpretações profundas é a
faculdade requerida para se experimentar o mundo sem mediações e fora do kronos:
Vá sob a abóbada celeste e olhe para o que está presente tal como aparece aos olhos do artista. O modo
poético aproxima o estado no qual o presente surge como presente [...] O presente é apenas o que é,
sem considerar o ausente, sem relação com o passado e o futuro [...]

A qualidade de sentimento é o verdadeiro representante psíquico da primeira categoria do imediato tal


qual é em sua imediatidade, do presente em sua positiva e direta presentidade [...] A primeira categoria,
então, é Qualidade de Sentimento ou o que quer que seja tal como é, positivamente, e sem relação com
nada mais [pág. 32].

Na primeira categoria, como já exposto, existe uma ruptura no tempo objetivo pela forma
imediata como os sentimentos são apreendidos pela consciência. Mas existe uma tendência
de ruptura do tempo na variedade exterior da natureza, pois essa variedade está também
sob a Primeiridade.

Mas se essa variedade que é exterior a consciência experienciadora, ou seja, está no mundo
e, por esse motivo, é um outro em relação ao sujeito, como se operaria essa ruptura do
tempo objetivo? Segundo Peirce, existiria a necessidade de uma mediação que integre a
ruptura do tempo interno com a ruptura do tempo objetivo exterior:
[...] Na medida mesma em que somos compelidos a pôr em relação a ideia de ruptura de um tempo
interno à consciência com a possibilidade desta ruptura ocorrer, também, ao nível de um tempo
objetivo, estamos promovendo a mediação entre duas ideias, por ligá-las em um conceito geral. Esse
conceito geral surge como um terceiro elemento que não se confunde com aqueles postos em relação. O
elemento mediador assim descrito perfaz a terceira e última classe do universo fenomênico, a terceira
categoria ou Terceiridade. É explícita a conceituação de mediação sob a terceira categoria: "Terceiridade,
no sentido da categoria, é o mesmo que mediação" [pág. 34/35].

A Terceiridade é um elemento mediador e generalizador e, como tal, está intimamente ligado


ao aprendizado e na criação de padrões de comportamento. Nesse sentido, a mediação tem
um caráter cognitivo e está, diferentemente das primeira e segunda categorias, totalmente
integrada ao fluxo do tempo.

O aprendizado e generalização que estão sob o manto da terceira categoria não são
imediatos nem tão pouco ficam presos apenas ao tempo presente, pois como sabemos
aprender algo, sintetizar conceitos e generalizá-los demanda tempo, intenção de aprender
que se operam no passado, presente e futuro.

“Dentro da Filosofia, três grupos de ciências abrangem sua subdivisão, constituídos pela
Fenomenologia, pelas Ciências Normativas e, finalmente, pela Metafísica. Segundo Peirce, a
Fenomenologia é a primeira das ciências positivas da Filosofia, sendo também nomeada por
ele de Faneroscopia ou Doutrina das Categorias. A Faneroscopia, ou Fenomenologia, se
desenhará como uma ciência que se propõe efetuar um inventário das características do
faneron ou fenômeno, dividindo-as em três grandes classes ou categorias, como se verá.” [pág.
21/22]

"Assim, definir a experiência como resultado cognitivo de nossas vidas, ao nível da Filosofia, fá-
la supor capaz de semear conceitos que moldam a conduta humana." [pág. 23]

“Antecipa-se, assim, que experiência, tal como conceituada, estatui-se como fator corretivo do
pensamento, e essa característica, reconhecida por Peirce, é um dos pilares de toda a sua
Filosofia [...].” [pág. 23]

“Como primeira faculdade, Peirce pretende do estudante de Fenomenologia uma capacidade


de ver, possivelmente a mesma que Fernando Pessoa buscou expressar em:

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar

Saber ver quando se vê...,

que requer, segundo o poeta, aprender a desaprender, uma certa forma, talvez, de intoxicação
mediativa que obnubla aspectos primários da experiência.” [pág.24]

“Por conseguinte, a segunda faculdade procura coletar a incidência de determinado aspecto,


para que a terceira possa tomá-lo como geral e pertinente a todo fenômeno.” [pág.25]

“A Fenomenologia, por pretender a formação dos modos de ser de toda experiência ou


categorias, parece não poder submeter-se a outro método que não aquele constituído,
fundamentalmente, pela coleta de elementos de incidência notável e pela posterior
generalização de suas características. As três faculdades requeridas podem, assim, ser
resumidas como ver, atentar para e generalizar, despindo a observação de recursos especiais
de cunho meditativo. A extrema simplicidade destes quesitos prenuncia um dos traços axiais
da Filosofia de Peirce o cotidiano, o imediatamente experienciável, o senso comum assumirão
estatuto de pedra basilar na construção de seu pensamento. Além disso, por fazer da vida o
seu laboratório, cujo instrumental são as três faculdades descritas, a Fenomenologia torna-se
uma ciência muito simples de ser praticada.” [pág.25]

“Parece ser evidente que, desde nossa mais precoce experiência de estar no mundo,
percebemos que o transcurso deste mesmo mundo não se sujeita à nossa vontade e, muitas
vezes, contraria a ideia que dele fazemos.” [pág. 25/26]

“Assim é que no fenômeno surge a ideia de outro, de alter, de alteridade; com ela aparece a
ideia de negação, a partir da ideia elementar de que as coisas não são o que queremos que
sejam, nem, tampouco, são estatuídas pelas nossas concepções. A binaridade presente neste
se opor a traz consigo a ideia de segundo em relação a, constituindo uma experiência direta,
não mediatizada. Parece que algo reage contra nós, fazendo-nos experienciar uma dualidade
bruta, um elemento de conflito que consiste na “ação mútua entre duas coisas, sem considerar
qualquer tipo de terceiro ou meio e, em particular, sem considerar qualquer lei de ação”.
[pág.26]

“Esta experiência de reação envolvendo negação é adjetivada de bruta por Peirce, pois traz de
modo direto a força de um segundo, caracterizado por ser esta coisa e não aquela. A
experiência direta com isto que não é aquilo se dá num recorte do espaço e do tempo,
traçando os contornos deste objeto, que é forçado e reage contra a consciência como algo
individual.” [26/27]

“Esse caráter individual do segundo, que se opõe aqui e agora ao sujeito, conferindo-lhe uma
experiência de dualidade, torna-se para o ego sua negação, ou seja, um não-ego: “Tornamo-
nos conscientes do eu ao nos tornarmos conscientes do não eu”.” [pág. 27]

“O mundo como exterioridade assume, na experiência que está sob a segunda categoria, o
caráter de não-ego pelo seu traço de alteridade revelado de modo não mediato. Essa
concepção prenuncia que Peirce se afasta radicalmente do cartesianismo, uma vez que a
existência do ego é dada pela negação numa experiência imediata, e não através de uma
dúvida formulada conceitualmente, solucionável pela mediação do cogito. Tal procedimento é,
na visão peirciana, uma base instável para a gênese de uma Filosofia; um início caracterizado
por uma falsa dúvida: “Não pretendemos, em filosofia, duvidar a respeito do que não
duvidamos em nossos corações”. [pág. 27]

“Sob a segunda categoria está, também, toda a experiência pretérita sobre a qual não se tem
qualquer poder modificador, isto é, o vivido, como tal, é uma pluralidade de ocorrências, um
aglomerado de fragmentos individuais delimitados como recortes no espaço e no tempo. Por
ser assim, o passado exerce sua compulsão sobre a consciência.” [pág. 28]

“Parece, por conseguinte, ser lícito afirmar que a experiência pretérita tem estatuto de
alteridade para a consciência, assumindo, assim, o papel de um não-ego interno.” [pág.28]

“A única solução para essas questões, a nosso ver, está na consideração do ego como de uma
natureza geral, decorrente indutivamente do aglomerado de particulares que constitui o não-
ego e oposto a ele. Assim, na citação anterior, o passado como ego é passado generalizado e,
portanto, mediatizado numa representação geral que, como tal, assume o estatuto de
resultado cognitivo do viver.” [pág. 28/29]

“[...] a dualidade particular-geral é questão central em toda Filosofia peirciana [...]” [pág. 29]

“A interpretação vivenciada da experiência com o seu entretecimento geral e na sua identidade


com o ego, sugere que Peirce estabelecerá, de um lado, uma identidade entre a ideia de
homem e a ideia de representação geral; de outro lado, a experiência, no seu matiz de
alteridade, configurará o universo da segunda categoria, tornando-se fundamento central para
o pensamento: “A ideia de outro, de não, torna-se o próprio pivô do pensamento. A esse
elemento eu dou o nome de Segundidade”.” [pág. 29]

“A Segundidade traz, no seu bojo, a ideia de segundo em relação a um primeiro. E na ideia de


primeiro configura-se a categoria que Peirce denomina Primeiridade. A própria palavra
primeiro sugere que, sob esta categoria, não há o outro, ou seja, a experiência que a tipifica
não traz consigo a alteridade: “A ideia de Primeiro é predominante nas ideias de novidade,
vida, liberdade. Livre é aquilo que não tem outro atrás de si determinando suas ações [...]”.”
[pág. 29]

“Assim, experienciar o elemento primeiro no fenômeno não se caracteriza por um sentimento


de dualidade forçado contra a consciência. Banidas estão desta categoria as ideias de
compulsão e força [...] Este estado de consciência de experienciar uma mera qualidade, como
uma cor ou um som, caracteriza-se por ser uma experiência imediata em que não há, para essa
mesma consciência, fluxo de tempo. Simples em si mesmo, esse estado de consciência tinge-se
não pelo passado como alteridade nem pelo futuro por meio da intencionalidade de um plano,
que é da natureza do pensamento. Ela é uma consciência que, por ser o que é sem referência a
mais nada, está absolutamente no presente, na sua ruptura com passado e futuro.” [pág. 30]

“Interpor qualquer instância analítica na mente para mediar conceitualmente o conteúdo do


sentimento é perdė-lo na sua presentidade, uma vez que a análise envolve comparação com
uma experiência pretérita [...].” [pág. 31]

“Este representante psíquico da imediatidade faz-nos lembrar que a Fenomenologia perpassa


pelos mundos interior e exterior indiferenciadamente, inventariando a totalidade do que
aparece no faneron e no mais amplo universo da experiência. A ideia de liberdade associada à
primeira categoria provém deste caráter incondicionado do faneron, de ser o que é por si e
para si,numa consciência imediata que rompe com o tempo.” [pág. 32]

“É traço típico da primeira categoria esta variedade que se expressa pela sua liberdade de ser.

Evidencia-se, também, não ser nada mais necessário que abrir os olhos para ver a
extraordinária variedade apresentada pela natureza, nas suas formas e cores selvagemente
distribuídas por todos os cantos.” [pág. 33]

“Dentre os elementos inventariados no mundo das aparências, a variedade da natureza surgirá


como axial para a construção lógica do evolucionismo peirciano. Não será outra a subsunção
deste aspecto do fenômeno que não à primeiridade.” [pág. 33]

“Um ponto interessante a ser observado é que a multiplicidade exterior apresenta um


simultâneo do qual não participa a multiplicidade das qualidades de sentimento, ou seja, cada
uma delas tem a sua presentidade em uma consciência, e sua variedade tem por condição de
possibilidade um inventário posterior, que as reúne numa coleção.” [pág. 34]

“Desenha-se, assim, uma espécie de continuidade entre experiência e pensamento, integrando


este último ao resultado cognitivo do viver. Na medida mesma em que somos compelidos a pôr
em relação a ideia de ruptura de um tempo interno à consciência com a possibilidade desta
ruptura ocorrer, também, ao nível de um tempo objetivo, estamos promovendo a mediação
entre duas ideias, por ligá-las em um conceito geral. Esse conceito geral surge como um
terceiro elemento que não se confunde com aqueles postos em relação. O elemento mediador
assim descrito perfaz a terceira e última classe do universo fenomênico, a terceira categoria ou
Terceiridade.” [pág. 34]

“Parece haver na mente uma tendência à generalização que busca subsumir ao conceito um
número maior de fenômenos, tornando-o, por isso, mais geral. Experienciar a síntese, de outro
lado, traz consigo o sentido de aprendizagem, de detecção de um novo conceito na
consciência, fazendo a mediação ser da natureza da cognição. Esta experiência como terceiro
modo do fenômeno traz, ao contrário das experiências imediatas de primeiro e segundo, um
sentido de fluxo do tempo caracterizado na urdidura do processo de cognição.” [pág. 35]

“Conclui-se, assim, que todo fenômeno cognitivo, como apreensão de um terceiro elemento
mediador, envolve o fluxo de tempo. Embora, fenomenicamente, a consciência sintética seja
temporal, o autor não faz do tempo uma forma de sentido interno, rejeitando, por isso, a
transcendentalidade da síntese. Grande admirador de Kant, Peirce, entretanto, se afasta
radicalmente do kantismo [...].” [pág. 36]
“[...] Da natureza do conceito e do pensamento, o elemento cognitivo deve ser geral e ter o
estatuto de representação [...].” [pág. 36]

“Representação geral, mediação, pensamento, síntese e cognição estão, assim, sob o mesmo
modo de ser fenomênico. Parece ser lícito inferir que o curso temporal da experiência como
resultado cognitivo do viver traduz-se na aquisição da terceiridade, ou seja, de mediações cuja
tessitura diante do mundo, como vimos, se confunde com a própria concepção de ego
instância das generalizações a partir da factualidade individual da segundidade, da pluralidade
experienciada que constitui o não-ego. Parece, também, que a experiência estrutura um vetor
direcionado à terceiridade, na sua força compulsiva de fazer pensar que, expressa em
representações gerais que constituem o pensamento mediativo.” [pág. 37]

“Como elemento de mediação, o pensamento não poderá ser desvinculado do passado e


destituído de intencionalidade para um futuro. No passado encontramos os recortes de espaço
e tempo como condições de possibilidade da factualidade vivida e que, mediados, tornam-se
por generalização a tessitura do ego, que é, como vimos, da natureza do pensamento, da
terceiridade. De outro lado, a cognição deve ter vínculo com o futuro como moldadora da
conduta, da ação, reduzindo a brutalidade do fato à inteligibilidade.” [pág. 37]

“A Fenomenologia evidencia, pois, que a terceiridade parece ter uma extensionalidade no


tempo, traçada pela sua natureza de instância mediadora entre o passado vivido e a ação
futura. Longe está de ser uma proposição metafísica dizer que é pertinente à universalidade da
experiência conformar a ação a algum tipo de plano que possui a natureza do conceito.” [pág.
38]

“Ao observar que a ação humana está em geral prenhe de expectativas engendradas em
experiências bem-sucedidas dentro de regularidades já constatadas no mundo, não estamos
transgredindo as fronteiras do inventariar de aparências. Investigar a realidade da terceiridade,
ou seja, supor que há algo de natureza geral na exterioridade ao qual nosso pensamento se
conforma já não é mais tarefa da Fenomenologia e, sim, da Metafísica.” [pág. 38]

Capítulo II

A Fenomenologia busca estudar e entender os fenômenos que são apreendidos pelos


sentidos, tanto interiores como exteriores. Nessa busca por catalogar o inventário da
experiência descobriu três instâncias dos fenômenos: Primeiridade, Segundidade e
Terceiridade.

Com a Primeiridade estão as experiências dos sentimentos, de caráter interior, e pela


variedade e acaso experimentados no mundo exterior. Sob essa categoria está também toda
a produção artistica como musica, pintura e fotografia. Com a Segundidade estão as
experiências onde ocorre a alteridade em relação ao sujeito. O indivíduo experimenta, ao
buscar realizar seus projetos e objetivos, os chamados fatos duros que opõe obstáculos
exigindo por parte da consciência experienciadora novas mediações como forma de
solucionar os problemas surgidos. Ou seja, existe o sujeito e na realização dos seus
empreendimentos percebe-se que o mundo não se curva diante da nosso vontade. Com a
Terceiridade estão as regularidades do mundo, o aprendizado adquirido no tempo a custa de
estudo e empenho, que acabam por se tornarem generalizações e hábitos.

A Fenomenologia para Peirce é a primeira das ciências. Seu objeto de estudo são as
aparências, os fenômenos observados e sentidos. Não existe dentro da Fenomenologia
peirciana uma intenção de problematizar e produzir grandes interpretações a respeito dos
objetos catalogados, mas única e simplesmente inventariar através das três categorias os
fenômenos.

Por não possuir em seu interior a intenção de produzir grandes interpretações e abstrações a
Fenomenologia prescinde da Lógica e de seus pressupostos. Desta forma e pelo contrário é a
Lógica que busca nos ensinamentos da Fenomenologia apoio:
Esta ciência da Fenomenologia é, na minha visão, a mais primária das ciências positivas. Isto é, ela não é
baseada, no que respeita a seus princípios, sobre qualquer outra ciência positiva. Por ciência positiva
considero uma investigação que procura pelo conhecimento positivo, isto é, por aquele conhecimento
que pode ser expresso em uma proposição categórica. [Ainda:] A Lógica [...] como ciência normativa,
deve-se fundamentar na Fenomenologia.

[...] de fato, os problemas da Lógica não podem ser resolvidos sem que se tire vantagem dos
ensinamentos da Matemática, da Fenomenologia e da Ética [pág. 42].

Como ciência a Fenomenologia está mais próxima da Matemática, pois ambas não
necessitam dos fatos do mundo como forma de criar suas hipóteses e consequências. Ambas
desvinculam-se da realidade e criam seus próprios problemas e em seu interior propõe suas
hipóteses. Assim, para Peirce: “A Fenomenologia que se encontra lexatamente nas fronteiras
da puramente hipotética ciência da matemática, dificilmente faz quaisquer asserções
explícitas”. [pág. 43].

As categorias existentes na Fenomenologia de Peirce não possuem o mesmo significado


existente em filosofias como as de Aristóteles, Kant e Hegel. Para o filósofo estadunidense,
no interior de sua Fenomenologia, as categorias ficam restritas ao estudo das aparências,
enquanto que para Aristóteles, Kant e Hegel elas compõem complexos raciocínios no interior
de suas respectivas lógicas.

Mas e o mundo por trás das aparências apreendidos pela Fenomenologia? Como ele é e
como compreendê-lo? Se desejarmos ir além das aparências e buscar ver e compreender o
mundo.

Para empreender um estudo do mundo existente por trás das aparências faz-se necessário o
uso de outra ciência, a saber, a Metafísica. A Metafísica busca apreender a realidade do
mundo por trás do véu das aparências e para esse fim ela não pode prescindir da Lógica. A
Lógica, no interior da Metafísica, tem a função ordenadora para um raciocínio correto e bem
direcionado e, além disso, possui um caráter ontológico:
A Metafísica consiste nos resultados da aceitação absoluta dos princípios lógicos, não meramente
como regulativamente válidos, mas como verdades do ser. Assim, assume-se que o universo tem uma
explicação cuja função, ao modo de toda explicação lógica, é unificar a variedade observada. Segue-se
que a raiz de todo ser é o Uno; e na medida em que sujeitos diferentes têm um caráter comum, eles
participam de um ser idêntico [pág. 46].

Peirce analisa o porque da Metafísica, uma ciência altamente abstrata, estar em uma
condição tão atrasada. Alguns, em suas palavras, teorizarão que a Metafísica possui como
objeto de estudo e questões que estão além da cognição humana. A Matemática, ciência
acentuadamente mais abstrata do que a Metafísica, no dizer do filósofo, adquiriu um alto
grau de desenvolvimento o que seria uma contradição dos que torcem o nariz para o fato da
Metafísica ser extremamente abstrata. Além desses argumentos, Peirce arremata:
As coisas que qualquer ciência descobre estão além do alcance da observação direta. Não podemos ver
energia, nem a atração gravitacional, nem as moléculas voadoras dos gases, nem o éter luminífero, nem
as florestas da era carbonácea, nem as explosões das células nervosas. Apenas as premissas das
ciências, não suas conclusões, é que são diretamente observadas [pág. 47].

Essa passagem deixa claro que Peirce se afasta do Positivismo de Comte no que concerne a
verificação direta de uma evidência. O filósofo argumenta que essa regra não contava, a
época de Comte, com unanimidade e acentua que seguindo cegamente esse princípio a
ciência História seria impraticável, pois o passado não é visto.

A Metafísica, como conceituada por Peirce, fundamenta-se na experiência e na observação e


o fato de muitos acreditarem que seus objetos de estudo são inacessíveis ocorre pelo fato de
estarmos tão saturados que nossa mente deixa de perceber os dados que estão no mundo
em abundância para serem observados.

A Metafísica, como dito anteriormente, busca descortinar o real, apreendê-lo e compreendê-


lo. Nesse sentido existe o que pensamos do mundo ou de algo existente no mundo, de um
lado, e o próprio mundo e as coisas existentes no mundo, independentes do nosso
pensamento, de outro lado. Deste modo, assim pontua Peirce:
Scotus somou consideravelmente à linguagem da lógica. É de sua invenção a palavra realidade, [e]
realidade é aquele modo de ser em virtude do qual a coisa real é como ela é, sem consideração do que
qualquer mente ou qualquer coleção definida de mentes possam representá-la ser. [Ainda:] Os objetos
são divididos em ficções, sonhos etc., de um lado, e realidades, de outro. Os primeiros são aqueles que
existem apenas porque você, ou eu, ou alguém os imagina; os últimos são aqueles que têm uma
existência independente da sua ou da minha mente, ou da de qualquer número de pessoas. O real é
aquilo que não é o que eventualmente dele pensamos, mas que permanece não afetado pelo que
possamos dele pensar [pág. 49/50].

Deste modo, aquilo que pensamos de algo não possui exterioridade e não gera compulsão
sobre a mente. Por não possuir exterioridade ele não reage sobre a consciência nem produz
fatos duros que exigem mediações. Essa é a representação do mundo dos sonhos e da ficção
que constrói o próprio objeto e faz dele o que quiser em sua representação. Nesse sentido, a
Arte e a Matemática assemelham-se ao mundo onírico e fictício por também criarem suas
representações no interior de si próprias e não necessitarem do mundo exterior no sentido
de representar seus objetos. Deste modo, como forma de não confundir alteridade com a
pretensa alteridade existentes na Arte e na Matemática, o autor diz:
[...] Afirmar que a alteridade, na Arte e na Matemática, possa estar, por exemplo, na dúvida do artista ao
escolher a cor, a forma, ou a nota musical, ou a precisa palavra para o poema e, de outro lado, na
compulsão que um problema exerce sobre a mente do matemático, é destituir a alteridade de seu
caráter lógico, revestindo-a de um traço psicológico [...] [pág. 50].

Assim, para Peirce, realidade envolve Segundidade, ou seja, um segundo agindo sobre a
consciência do indivíduo, que insiste como uma outra coisa que não uma criação da mente
humana. Realidade, nesse modo de pensar, é algo que existe e possui exterioridade
independente da forma como dele pensamos e a verdade que se busca na Metafísica e nas
demais ciências positivas está exatamente em se alcançar e entender o que é esse algo que
existe e possui exterioridade independentemente das representações que dele fazemos.

Mas o que faz com que essa experiência reativa contra a consciência sob a segunda categoria
transforme-se em um modo de ser na realidade do mundo? Qual o caminho ou o meio que
dá um caráter ontológico a essa experiência?Segundo Peirce, esse seria o meio:
Embora em toda experiência direta de reação, um ego, alguma coisa interna, seja um membro do par,
atribuímos, ainda, reações a objetos fora de nós. Quando dizemos que uma coisa “existe”, queremos
significar que ela reage sobre outras coisas. Evidencia-se que estamos transferindo para ela nossa
experiência direta de reação, ao dizermos que uma coisa age sobre outra. Esta é nossa hipótese para
explicar os fenômenos - hipótese na qual, à semelhança das hipóteses de trabalho de uma investigação
científica, podemos crer como não sendo absolutamente verdadeira, mas que é útil por nos tornar aptos
a conceber o que ocorre. [E também em:] E esta noção, de ser tal qual as outras coisas nos moldam, é
algo de tal modo proeminente em nossas vidas que concebemos que as outras coisas também existem
em virtude de suas reações umas contra as outras [pág. 51/52].

Assim, para que algo seja considerado real ele precisa reagir sobre outras coisas e
consciências, ou seja, é de fundamental importância um elemento de alteridade. Mas, a
Matemática como ciência ficaria destituída da condição de verdade? A Matemática, por não
possuir o elemento alteridade, pelo fato de seus objetos serem construídos e
problematizados em seu próprio interior ela constrói a verdade de seus objetos de acordo
com sua própria sintaxe e com o rigor imposto no interior da própria Matemática.

Para as ciências positivas como a Filosofia e a Química suas representações necessitam


adequar-se ao objeto que lhe é exterior, ou seja, ela necessita do objeto como outro que
deve ser observado e estudado.

Para Peirce, real é aquilo que existe, que possui caráter ontológico. Mas, dentro de seu
sistema metafísico, para que algo exista é necessário que preencha quais requisitos? Para o
filósofo para que algo seja considerado como existente é preciso que ele reaja sobre outros
objetos. Reagir significa afetar os sentidos do indivíduo, significa estar sob a lei da gravidade,
sofrer os efeitos físicos decorrentes das leis da natureza. Nesse sentido, a Arte e a
Matemática não produziriam objetos ontologicamente reais, segundo Assad:
[...] Sob a ótica do que foi conceituado como existência, a Arte tem a liberdade de conformar seus
objetos à representação de modo arbitrário e destituído de necessidade com relação à realidade
exterior. O sentimento e o pensamento humanos podem, neste caso, ser o sujeito da experiência,
invertendo, de certo modo, o real sentido do vetor lógico que tipifica a alteridade. Não é outro o âmbito
da questão no que tange à Matemática. Se certos caracteres matemáticos são encontrados na natureza,
como o queria Galileu, tal não faz desta ciência uma ciência da realidade, mas, talvez, apenas, possível
para a realidade. De qualquer modo, supor que relações matemáticas existem é dar outro passo
metafísico, além da fundação da existência como lócus do individual e da alteridade [pág. 54].

Capítulo III

A Filosofia peirciana rejeita a concepção de um mundo unicamente regido por leis. Em sua
interpretação, um mundo unicamente regido por leis traria inconsistência lógicas difíceis de
serem sustentadas, como por exemplo, o fato de existirem pessoas brancas, outras negras,
outras vermelhas, algumas altas, outras baixas, outras ainda com algum tipo de deformidade
física e outras não, demonstraria uma variedade e irregularidade na natureza em
descompasso com leis deterministas e causais como ordenadoras do Universo. Deste modo,
o acaso e a variedade observáveis na Natureza provaram as infinitas possibilidades
existentes em um Universo não completamente regido por leis:
Parece ser evidente que, como "livre pintor das coisas", o acaso é o que, objetivamente, pode ser
subsumido à primeira categoria, pois é de sua natureza ser primeiro. Como um princípio objetivo, ele
subsume a diversidade e variedade da natureza, fazendo com que a segundidade do fato não seja
estritamente regida pela terceiridade da lei; a existência possui, assim, um elemento de espontaneidade,
conferido pela primeiridade do acaso. [pág. 68].
A assimetria existente na Natureza e pouco percebida por nós ocorreria pelo fato de
estarmos tão saturados de informações, cores e generalizações já estabelecidas que pouco
reparamos nos tamanhos diferentes entre duas árvores da mesma espécie, nos rostos quase
nunca idênticos entre pessoas diferentes, no tamanho, peso e forma de frutas da mesma
espécie etc. Para Peirce, essas irregularidades ocorreriam em uma intensidade superior à das
próprias regularidades.

Normalmente, fazemos associações entre dois fatos ocorridos ao mesmo tempo ou 3 ou 5


minutos depois de um outro fato. Fazemos essas associações, mas não atentamos para o fato
que essas relações são em si irregulares:
A natureza não é regular. Nenhuma desordem seria menos ordenada que o arranjo existente. É verdade
que as leis especiais e as regularidades são inumeráveis; mas ninguém reflete sobre as irregularidades
que são infinitamente mais frequentes. Todo fato verdadeiro a respeito de qualquer coisa no universo é
relacionado a qualquer outro fato verdadeiro. Mas a imensa maioria destas relações são fortuitas e
irregulares. Um homem na China comprou uma vaca três dias e cinco minutos após um groenlandês ter
espirrado. Esta circunstância abstrata está conectada com qualquer regularidade que seja? Não são
essas relações infinitamente mais frequentes que aquelas que são regulares? [Ainda:] Sob este ponto de
vista, uniformidade é um fenômeno extremamente excepcional. Mas não prestamos atenção às relações
irregulares, como se não tivessem interesse para nós,' [e] ninguém se surpreende com o fato de que as
árvores numa floresta não formam um padrão regular, ou busca qualquer explicação para tal fato [pág.
69].

Do ponto de vista interior, uma qualidade de sentimento pode ser experienciada de forma
imediata ocasionando uma ruptura no tempo. No caso da multiplicidade das qualidades de
sentimentos, essa variedade já não pode ser experienciada da mesma forma, pois exige
representação e comparação, que só podem ocorrer de forma mediata.

No que se refere ao mundo exterior, de forma diferente, o bombardeio e miscelânea de cores


e formas são apreendidos no simples ato do primeiro olhar, de modo que pode-se
depreender que essa multiplicidade que abarca nossos sentidos é fruto do acaso, acaso esse
que escapa a rígida estrutura das leis da natureza e imprime qualidades nos individuais.

Mas o que seriam qualidades? Uma primeira e ainda incompleta, mas que nos ajuda a
melhor compreendê-las é dizer que qualidades não são materiais e não reagem sobre outras
coisas.

As qualidades não estão confinadas a mente e a meras representações; de outro lado, as


qualidades não são dependentes de que um sujeito ou uma coisa material a possua. Nesse
sentido, no dizer de Peirce, uma qualidade é mera potencialidade abstrata [pág. 71].

Qualidade, além disso, é considerada como uma mônada, ou seja, algo indivisível, não
material e como potência a ligar-se a algo ou algum sujeito. Além disso, ao afirmar que
qualidade é o que é, confere-lhe um elemento de alteridade mesmo que não seja
experienciada como uma alteridade, afinal, suas possibilidades são potenciais.

As qualidades não estão fechadas e presas a mente nem a objetos e sua distribuição é
realizada pelo acaso. Assim, acaso e qualidade são fundamentalmente atributos do mundo
[pág. 72].

Peirce associa às qualidades o aspecto de mônada além de criar , em sua Lógica, as ideias de
díade e tríade, que ligam-se, respectivamente, a primeiridade, segundidade e terceiridade.
Assim, mônada, díade e tríade estão associadas à qualidade, reação e mediação.
Peirce opõe-se à visão de um mundo estritamente causal, pois, como dito anteriormente,
argumenta que alguns fenômenos escapam a determinação das leis. Como forma de reforçar
sua tese, o filósofo diz que a ideia acaso não era estranha aos antigos:
É estranho como muitas pessoas terão uma dificuldade em conceber um elemento sem lei no universo,
e que podem, talvez, ser tentadas a considerar a doutrina da regra perfeita da causalidade como uma
das crenças instintivas originais, como a de que o espaço tem três dimensões. Longe disto, ela é uma
noção, sob o ponto de vista histórico, absolutamente moderna, uma inferência perdida das descobertas
da ciência. Aristóteles frequentemente afirma que algumas coisas são determinadas por causas,
enquanto outras ocorrem por acaso. Lucrécio”, seguindo Demócrito, supõe que seus átomos primordiais
desviam-se de trajetórias retilíneas de modo fortuito, sem qualquer razão para tanto. Para os antigos,
nada havia de estranho em tais noções: elas eram corriqueiras; estranho teria sido considerar que não
havia acaso. Assim, não é necessário supor uma necessidade interna de crença na causalidade perfeita,
se não encontramos quaisquer fatos para sustentá-la [pág. 73].

Deste modo, a ideia de um mundo estritamente regido por leis é uma visão moderna e não
pode ser colocada com um conhecimento instintivo e dado como naturalmente óbvio. De
fato, o mundo visto como uma grande máquina foi a ideia padrão até o início do século XX. O
próprio Einstein entendia o Universo como um grande sistema que precisava ser
compreendido a partir de suas leis irrevogáveis.

O acaso, como ideia e possibilidade, ficou restrito ao campo epistemológico e não associado
ao Universo e a Deus. Peirce, discordando dessa visão, inclui o acaso ao nível ontológico e
arremata dizendo que a crença em um Universo regido deterministicamente por leis é
apenas um postulado e não algo provado através do método científico:
Quando tenho perguntado a pensadores qual a razão que tiveram para crer que todo fato no universo é
precisamente determinado pela lei, a primeira resposta tem usualmente sido que a proposição é uma
“pressuposição” ou postulado do raciocínio científico. Bem, se isto é o melhor que pode ser dito a
respeito do assunto, a crença está condenada. Suponhamo-la “postulada”: tal não a torna verdadeira
nem tampouco fornece o menor motivo racional para conferir-lhe qualquer credencial. É como se
alguém viesse a pedir emprestado dinheiro e, quando solicitada uma garantia, ele replicasse que
“postulou” o empréstimo.

A experiência provaria, através da multiplicidade e variedade observadas na natureza, que a


causalidade como único princípio regulador do Universo não está definitivamente provado.
Os que a postulam, fugindo da observação, se entrincheirariam na transcendentalidade
como único argumento.

A precisão da experiência provaria as irregularidades existentes no mundo e, com isso, o


acaso como fator fundamental na economia do Universo. Assim:
A investigação mais apurada, ao contrário, evolui para a indeterminação do objeto investigado, fazendo-
se sujeito de sua própria representação. A precisão da experiência conduz à descoberta da imprecisão do
mundo [pág. 76].

Os que argumentam contrariamente ao acaso atuando no Universo, dizem que a variedade


observada nos fenômenos é fruto das diversas formas como a lei é aplicada. Peirce,
refutando tal tese, replica dizendo que a complexidade, esse aumento constante da
variedade observadas pelas ciências positivas, não pode ser fruto de uma lei.

Examinando qualquer ciência que lida com objetos no tempo, percebe-se um aumento e
complexidade dos seres, dos Estados, as transformações geológicas no planeta etc. Tudo isso,
na visão de Peirce não pode ser explicado unicamente por leis, mas, sim, por algum princípio
que deve ser ligar a essa crescente complexidade observada:
Destes fatos claros e onipresentes podemos satisfatoriamente inferir, através da lógica mais
irrepreensível, que há, provavelmente, na natureza, algum princípio pelo qual a complexidade e
diversidade das coisas pode ser crescente [...] [pág. 77].

Um mundo regido única e exclusivamente por leis traria uma série de problemas de ordem
lógica. Se tudo o que existe estivesse sob a égide de leis qualquer ação, sentimento e criação
poderia ser previsto e minuciosamente antecipado em seus mínimos detalhes. Assim, antes
de uma pessoa que se enveredaria pelo mundo do crime nascesse, já se saberia a conduta e
os pormenores de sua vida, dando a sociedade as condições de não permitir que esse
indivíduo chegasse a luz da existência. Isso colocaria os indivíduos em papéis determinados
como em um jogo eletrônico onde tudo o que os personagens serão e farão já está
previamente programado. Ou seja, toda possibilidade de espontaneidade e infinitas
possibilidades seria inviável em um mundo regido por leis:
[...] O objetivo do Grande Irmão de Orwell ou do Mundo Admirável de Huxley da consecução de uma
sociedade perfeita seria certamente atingido, não por um processo de intervenção seletiva do Estado,
mas por dela participarem e por opção própria e individual, apenas aqueles cidadãos cujo “programa
previsto de vida” fosse pleno de eventos felizes [pág. 78].

Se existem leis e, ao mesmo tempo, fenômenos que escapam ao jugo dessas mesmas leis,
qual seria, então, a relação entre lei e acaso? Quem ou o que criou as leis? Se for atribuída a
Deus essa obra, quais seriam os seus objetivos? Seria estranho e incoerente Deus ter criado
um mundo que não possui erros e nele lançar seres que a todo momento erram. Deus, ainda,
em um Universo mecanicista, ficaria sem espaço e seria um estranho, pois:
Supomos que aquilo que não examinamos é similar àquilo que examinamos, e que aquelas leis são
absolutas e que todo o universo é uma máquina ilimitada operando através das cegas leis da mecânica.
Esta é uma filosofia que não deixa espaço para um Deus! De fato, não! Ela faz, mesmo da consciência
humana, cuja existência não pode ser negada, uma perfeita inutilidade e um flâneur sem função no
mundo, com nenhuma influência possível sobre qualquer coisa nem mesmo sobre si mesma [pág. 80].

Para Peirce, as leis ainda estão em um processo de evolução, tendo elas surgido em um
período infinitamente distante estão, desde então, em constante evolução, colocando, assim,
o evolucionismo como um dos pilares da filosofia peirciana. Nesse período de nascimento
das leis, nada existia em matéria de leis, colocando nesse ponto a união entre leis e acaso.
Do estado de coisas em total caos e sem leis surgem as leis que dão ordenamento ao mundo,
mas como essas ainda estão em processo evolucionário, segue-se que mesmo agora nem
todos os eventos estão sob sua tutela.

No que concerne ao conhecimento, Peirce considera que não há certeza absoluta em


nenhum campo científico. Existem aquelas ciências com menor probabilidade de erro, mas
mesmo nessas se faz necessário expor os erros prováveis dentro junto a uma tese
apresentada. Assim, o filósofo chama de Falibilismo a doutrina epistemológica e assim
arremata: [...] A infalibilidade em assuntos científicos parece-me irresistivelmente cômica [...]
[pág. 83].

Capítulo IV
O Realismo peirciano estrutura-se no binômio generalidade-alteridade e não fica atado a
uma visão de Universo ditatorialmente causal. O Universo é vibrante e de infinitas
possibilidades para os fatos, as coisas e os seres nele inseridos. Nessa visão da realidade,
Peirce introduz a ideia de evolucionismo e como consequência natural a essa constante
evolução há uma interessante identidade com a aquisição de hábitos típica da terceiridade
que se fundamenta como um predicado de natureza eidética.

Existe no pensamento eidético formulado por Peirce uma conaturalidade entre o


pensamento e o objeto pensado, não existindo, desta forma, uma fronteira separando
interioridade e exterioridade. Assim, tudo aquilo que é passível de ser conhecido é
puramente mental:
De fato, não são os oponentes do professor Karl Pearson, mas ele próprio quem não assimilou
completamente a verdade de que tudo aquilo que possamos de qualquer maneira conhecer é
puramente mental. Tal é contrariado em pequenos detalhes, como quando ele formula sua resposta à
questão sobre se a lei da gravitação regrava o movimento dos planetas antes de Newton ter nascido,
para tratar da circunstância de que a lei da gravitação é uma fórmula que expressa o movimento dos
planetas “em termos de uma concepção puramente mental”. Repetidamente, ao ter provado ser mental
o conteúdo de uma ideia, ele parece pensar que provou ser seu objeto de origem humana [pág. 89].

Deste modo, através da experiência como sujeito do pensamento, quando entramos em


contato com um objeto, refletindo sobre a ideia que fazemos dele o estamos concebendo de
forma eidética.

Entre os nominalistas existe uma tendência de estabelecer uma fronteira muito clara
separando sujeito e objeto. Nessa concepção, aquilo que é pensado sobre um objeto não se
exterioriza para alteridade, buscando metafisicamente a possibilidade de existência do
pensamento.

Na idealidade existente no Realismo peirciano ocorre exatamente o oposto, não existindo


essa fronteira separando a mente que pensa, de um lado, do objeto pensando, de outro. A
realidade, sob esse ponto de vista, apresenta-se como de natureza intelectual e não
unicamente material, de modo que para o filósofo estadunidense não existiria a dualidade
tão proeminente no cartesianismo entre mente e matéria:
A velha noção dualística de mente e matéria, tão proeminente no cartesianismo, como dois tipos de
substância radicalmente diferentes, dificilmente hoje irá encontrar defensores. Rejeitando-a, somos
levados a alguma forma de hilozoísmo, e o caso contrário denominado monismo. Surge, então, a
questão se, de um lado, a lei física e, de outro, a lei psíquica devem ser consideradas:

a) como independentes, constituindo uma doutrina frequentemente chamada monismo, mas que eu
denominaria neutralismo; ou

b) a lei psíquica como derivada e especial, e apenas a lei física como primordial, o que é materialismo; ou

c) a lei física como derivada e especial, e somente a lei psíquica como primordial, o que é idealismo [pág.
91].

Analisando as possibilidades de cada uma das possibilidades de relação entre mente e


matéria Peirce considera que a única teoria inteligível do Universo é a do idealismo objetivo.
Para o filósofo, o idealismo objetivo é a visão de que a mente e a realidade estão interligadas
de uma maneira que transcende a percepção individual. Ele propôs que a mente e o mundo
são interdependentes, e a realidade existe independentemente das nossas percepções, mas
é influenciada pela mente.
Mas quais são os pontos que diferenciam a lei psíquica da lei física? Uma lei física tem poder
absoluto em relação ao que está sob sua tutela. Assim, um determinado movimento ocorrerá
exatamente da forma como postulada pela lei, sem desvios. Já no que concerne a lei
psíquica, não existe nenhum condicionamento exato e absoluto, pois, do contrário, frustraria
a futura criação de hábitos.

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