Você está na página 1de 33

Introdução

Em estudos realizados anteriormente (SOUZA; NEBUBERT; AGUIAR, 2005; SOUZA, 2007), a


hipótese de que há uma percepção diferenciada do tempo entre homens e mulheres foi tratada
com base em informações da Pesquisa de Usos do Tempo de Belo Horizonte 1. Ainda que captar
esta percepção seja algo bastante complexo - visto que está envolta a um alto grau de
subjetividade que carregam a própria noção de tempo e o próprio sentido de percepção - dentro
dos nossos limites e propósitos, foi possível perceber que a dimensão das atividades de trabalho
doméstico e trabalho remunerado permitem uma forma importante para adentrar este campo de
discussão. Em primeiro lugar foi observado que algumas medidas de opinião, se contrastadas
com o registro do tempo de duração das atividades diárias, possibilitaram verificar que, na
verdade, refletem muito do socialmente desejável – sobretudo com relação aos homens. Há uma
grande freqüência de homens que não realizam atividades domésticas e, mesmo quando exercem
este tipo de atividade, devotam às mesmas muito menos tempo em comparação às mulheres.

A principal conclusão do referido artigo foi que a percepção diferenciada do tempo, entre homens
e mulheres, é fortemente marcada pelo antigo ideário patriarcalista dentro do qual predomina
uma concepção binária dos papéis de gênero na sociedade brasileira. Segundo esta concepção, o
papel de provedor do lar é determinado ao homem e o papel de responsável pelos cuidados com o
domicílio e educação dos filhos é determinado à mulher. Neste sentido, ao pensar o seu tempo, o
homem o percebe de forma mais individualizada, já que um maior tempo é despendido com
atividades de trabalho remunerado e muito pouco tempo é dedicado ao espaço doméstico devido
à baixa participação nas tarefas domésticas e mesmo nos cuidados com os filhos. Por outro lado,
a mulher percebe o seu tempo de forma mais inclusiva (ou distributiva), visto que se sujeita a um
maior desdobramento entre o trabalho remunerado e o trabalho doméstico. Em suma, afirmamos
que o tempo para o homem é, normalmente, percebido em função de seu papel dentro do modelo
prevalecente na sociedade contratual que ainda não deu uma resposta ao modelo patriarcal, visto
que permanecem veladas formas patriarcais de dominação (????). Para a mulher, pela sua
inserção gradativa e cada vez mais freqüente no campo de trabalho, simultaneamente à sua

1
Nota sobre financiamento, responsável pela pesquisa, etc. 2001

1
participação mais ativa e constante na administração do domicílio, sua percepção do tempo vai
ser menos individualizada e mais distributiva.

Neste sentido é que se pode afirmar que a mulher, geralmente, demanda menos tempo para si
própria, ao contrário do homem. O presente estudo, por sua vez, tem como objetivo
complementar estes achados ao analisar como as atividades de lazer são também afetadas pela
dimensão de gênero e pela organização (desigual) das atividades de trabalho remunerado e não
remunerado entre homens e mulheres.

Como uma das melhores formas de se produzir conhecimento acerca de um dado fenômeno é a
conjugação de métodos, propõe-se, também, a análise conjugada de informações quantitativas e
qualitativas2 oriundas da Pesquisa de Usos do Tempo de Belo Horizonte (AGUIAR, 2000). Desta
forma é possível abordar o tema em questão tanto no que diz respeito à dimensão do
comportamento (registro das atividades e da duração das mesmas nos diários de usos do tempo)
quanto à dimensão da percepção (discussão nos grupos focais sobre a organização das atividades
de trabalho e lazer entre mulheres e homens). Como um pressuposto importante deste estudo é a
constatação de que a contemporaneidade é marcada pelo conflito de diversas concepções morais
e de valores (tradicionais, modernas e pós-modernas), acredita-se que os dados qualitativos
possibilitam a observação de novas tendências de valores que podem ser verificadas em ambos os
gêneros, as quais, porém, não são passíveis de uma análise mais acurada com base apenas em
dados quantitativos.

Tempo e Gênero

A sociologia do tempo tem em Norbert Elias (1998) o autor fundamental cuja grande
contribuição foi a de pensar a temporalidade sob uma perspectiva que foge às concepções inatas
(apriorísticas). O tempo torna-se uma dimensão fundamental no seu pensamento, em sua reflexão
apresenta uma polêmica que diz respeito à sua natureza. Elias se posiciona frente às perspectivas
racionalistas de Descartes e Kant, além de criticar a visão newtoniana sobre o tempo. Para este
2
Informações geradas com base na realização de três grupos focais entre os meses de novembro e dezembro de 2004.
A realização dos mesmos só foi possível graças ao empenho de Neuma Aguiar e de seus alunos Heloísa
Albuquerque, Rafaela Dias, Marilza Siléia, Homero Nunes e Arnaldo Montalvão, aos quais registramos nossos
agradecimentos.

2
autor, a hipótese difundida, desde Descartes até Kant (e para além destes), de que o tempo se trata
de uma categoria a priori, - a noção de tempo precede a experiência humana e não é passível de
ser aprendida – não pode ser sustentada. Neste sentido aponta que a noção de síntese a priori,
assim como o conceito de experiência, estabelecidos pelos racionalistas, são noções limitadas
visto que o que se levou em consideração foi a experiência do indivíduo e não os instrumentos
intelectuais da humanidade em evolução. Elias argumenta que os seres humanos são dotados de
uma capacidade natural para construir sínteses e relacionar fatos. Entretanto, todos os nexos
específicos que estabelecem, bem como os conceitos correspondentes que utilizam em suas
reflexões, resultam da aprendizagem e da experiência. Uma cadeia sucessiva de gerações
transmite de indivíduo a indivíduo o saber apreendido; não se trata, portanto, de um único
indivíduo, mas de uma sociedade de indivíduos.

Seguindo este princípio, argumentou que, para se perceber o tempo, são necessárias unidades
centralizadoras - os seres humanos. Estas unidades centralizadoras são aptas a elaborar um
quadro mental, no qual sucessivos eventos se encontram interligados, até mesmo as
manifestações que não se sucederam simultaneamente. Entretanto, torna-se fundamental a
existência de uma capacidade de síntese, que se ativa e estrutura por meio da experiência. Esta
capacidade de síntese é humana e caracteriza as formas pelas quais os seres humanos se orientam.
A capacidade de aprender e transmitir experiências a sucessivas gerações é o fundamento básico
das melhoras progressivas dos meios “orientacionais” desenvolvidos pelos seres humanos. Este
meio de orientação é o que se concebe como tempo.

O enfoque de Helga Novotny (1994) sobre o tempo pode ser aproximado ao de Elias, visto que
esta autora busca ressaltar a experiência da temporalidade a partir da coordenação das atividades.
Novotny aponta que nas duas décadas finais do século XIX e nas primeiras décadas do século
XX, as transformações tecnológicas e científicas possibilitaram novas percepções do ponto de
vista espacial e temporal. Isto quer dizer que foram estabelecidas outras condições para se pensar
o tempo a partir de uma dimensão “subjetiva”, relacionada com a posição social do indivíduo.
Novotny estabelece uma idéia de conflito entre o tempo padrão, do relógio e do calendário, e o
tempo subjetivo, expresso de diversas maneiras, conforme as características sociais e as
demandas pessoais de cada indivíduo.

3
Valores tradicionais e pós-modernos: suas influências sobre a percepção do tempo

Neste sentido, podemos identificar duas diferentes formas de perceber o tempo, considerando a
variável de gênero: por um lado, há um tempo distributivo, que se refere àquele onde a ação do
indivíduo incorpora o “outro” (o cônjuge, os filhos, a família, etc). Esta maneira de perceber o
tempo é mais frequentemente encontrada entre mulheres. Por outro lado, há uma maneira de
perceber o tempo como aquela que se refere principalmente a um tempo próprio (o tempo
individualizado, no qual o indivíduo se dedica mais a si mesmo do que aos demais). Esta
concepção de tempo, por sua vez, é mais frequentemente encontrada entre homens.

Seguindo tal raciocínio, tomamos como referência as argumentações de Giddens (1991) acerca da
modernidade e suas conseqüências tardias e os trabalhos de Inglehart, os quais versam sobre a
teoria da modernização (INGLEHART, 1990; 1997). Giddens identifica a modernidade como
algo que se refere ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiu na Europa a
partir do século XVIII com a Revolução Industrial, com influências cada vez mais amplas sobre
outras partes do mundo. Inglehart, por sua vez, ressaltou que a principal deficiência apresentada
pela chamada teoria da modernização provém do fato de esta perspectiva entender a mudança
social de forma linear. Tal preocupação se tornou evidente após a ocorrência de fatos marcantes
na história ao longo do século XX (tais como as duas Grandes Guerras, o surgimento de novos
atores e movimentos sociais, a luta contra regimes autoritários de governo, a derrota dos ideais
socialistas e o fim da maior nação de economia planificada, etc.), o que levou as sociedades a
seguirem uma trajetória diferente daquela traçada pelos acontecimentos que marcaram a era
industrial. Ao se constatar que a mudança social não é linear e que a história não é dirigida por
uma teleologia, verificou-se a descrença em metanarrativas que tentavam, até então, impor um
sentido único ao processo histórico. Aliado a isso, houve um decréscimo na ênfase dada à
racionalidade instrumental como tipo de ação institucional.

Como substitutos aos elementos que perderam relevância, valorizou-se a tolerância à diversidade
cultural, assim como a racionalidade com base valorativa e o surgimento de estilos de vida com
ênfase na qualidade de vida. Tais mudanças, evidentes nas sociedades avançadas, correspondem a
um movimento de troca entre valores materialistas (relacionados às questões de sobrevivência,

4
próprios da era moderna e industrial) e valores pós-materialistas (próprios de sociedades que
atingiram um nível satisfatório de bem-estar social e de distribuição das riquezas produzidas).

Ainda de acordo com Inglehart (1997), existem três escolas principais do pensamento pós-
materialista: (a) aquela que entende a pós-modernidade como rejeição à modernidade (ou ao
movimento de ocidentalização), ou seja, rejeição da racionalidade, da autoridade, da tecnologia e
da ciência; (b) a perspectiva que vê a modernidade como um movimento de revalorização da
tradição; (c) a escola que defende a pós-modernidade como marcada pelo surgimento de novos
valores e estilos de vida com ênfase na qualidade de vida das pessoas e na tolerância à
diversidade cultural.

As idéias defendidas pela segunda e terceira correntes de pensamento pós-moderno nos


interessam particularmente. Pelo fato de a modernidade ter associado à concepção de “novo” a
idéia de “bom”, a tradição perdeu força e influência e o mito do progresso preencheu o vazio que
foi deixado. No que seria a pós-modernidade, o mito do progresso perde sua força mobilizadora,
dando lugar à necessidade de um novo mito legitimador, o que abriu espaço para uma
revalorização seletiva das tradições (principalmente de origem não-ocidental). Além disso, o
aparecimento e difusão de novos valores e estilos de vida, juntamente com o surgimento de um
novo arranjo cultural, é o dado básico para entendermos as mudanças ocorridas na
contemporaneidade.

A diferença, marcada pela forte desigualdade sócio-econômica, é uma das principais


características da sociedade brasileira. Tal fato se torna mais evidente se levarmos em conta os
traços que compõem a população, tais como a hierarquia das ocupações, as barreiras entre o
campo e a cidade, as diferenças de renda, escolaridade e raça, etc. na possibilidade de mobilidade
social (????). Pensamos que se as diferenças infra-estruturais entre estados-nação mais ou menos
avançados levam à diversidade de ênfases valorativas (materialistas e pós-materialistas), há a
possibilidade de esta mesma diversidade estar presente em uma mesma sociedade, quando esta é
fortemente diferenciada e desigual, como é o caso da população brasileira.

Por outro lado, se levarmos em conta a questão de gênero especificamente, podemos perceber
que no âmbito das sociedades ocidentais, a partir dos anos 1960, consideráveis transformações

5
ocorreram no plano social - como a paulatina inserção das mulheres no mercado de trabalho
(GOLDONI, 1997; BRUSCHINI, 2000) - e na dimensão da sexualidade, o que afetou as relações
entre homens e mulheres e, consequentemente, estabeleceu novos padrões de sexualidade
(BOZON, 2004). Tais transformações provocaram, dentre outras coisas, a crise da família
patriarcal (CASTELLS, 1996), as “transformações da intimidade” (GIDDENS, 1992) e as
“reinvenções do vínculo amoroso” (MATOS, 2000). O modelo da família nuclear perde o terreno
da exclusividade sendo substituído por outras formas de relações. Em nossa análise buscamos nos
centrar no modelo do grupo doméstico tradicional, composto pelas figuras do pai, da mãe e dos
filhos.3

Ao apresentar a hipótese de diferenciação da percepção do tempo levamos em consideração o


caráter subjetivo desta percepção que está relacionada com a dimensão de gênero no sentido de
que a representação social da masculinidade e da feminilidade é determinante na organização e
percepção do tempo cotidiano de cada gênero. Para tanto é preciso atentar para os estudos que
levam em conta as representações dos papéis sociais e suas transformações. Talcott Parsons
(????), por exemplo, discutiu a noção de papéis sexuais ao identificar a expectativa no
comportamento de homens e mulheres na instituição familiar, instituição esta considerada pelo
autor como um “sistema social”. De acordo com o enfoque parsoniano, no seio da instituição
familiar as expectativas sociais são construídas a partir dos valores da sociedade. Parsons
identificou duas funções articuladoras e complementares no sistema familiar: a função
instrumental-adaptativa atribuída aos homens, com o seu papel de pai e provedor; e a função
afetiva, exercida pela mãe (AGUIAR, 1996).

A partir desta constatação estabelecemos a hipótese de que o tempo distributivo se trata daquele
tempo que se insere no contexto de expressão dos valores materiais e o tempo próprio se insere
no contexto dos valores pós-materiais, conforme foram definidos por Inglehart (1997). Porém, é
possível identificar, no que se refere ao contexto dos valores pós-materiais, que a tradição pode
permanecer como opção de modo de vida, sobretudo no caso das mulheres que optam pelo

3
Por este mesmo motivo, como componentes dos grupos focais foram selecionadas apenas homens e mulheres
casados e com filhos.

6
modelo de dona de casa. Não é incomum encontrarmos mulheres que possuem um bom padrão
de vida material e se dedicam apenas aos cuidados com a casa e a família.

As desigualdades de gênero no âmbito familiar ainda são permanentes visto que as mulheres se
encontram em desvantagens materiais e de status com relação aos homens. Segundo Goldoni
(1997), a estrutura hierárquica na qual as mulheres situam-se em condições inferiores aos homens
permanecem no contexto brasileiro ainda que consideráveis mudanças estruturais tenham
ocorrido, além da aceleração da participação da mulher na força de trabalho fora da esfera
familiar. Para esta autora, a permanência desta estrutura hierárquica de gênero está fundamentada
na divisão de sexo e discriminação no emprego na esfera do mercado de trabalho e na divisão de
trabalho de sexo, maternidade e reprodução na esfera familiar. Neste sentido, afirma a autora que
“[...] tal como raça ou classe social, gênero seria um sistema de múltiplos níveis de diferenças e
desvantagens, que incluem arranjos sócio econômicos e retém crenças culturais à nível macro e
atitudes adquiridas e identidades à nível individual” (GOLDONI, 1997, p.8).

Trabalho e lazer nos países desenvolvidos

Pesquisas sobre os usos do tempo, realizadas periodicamente em países desenvolvidos, sugerem


que nas últimas décadas ocorreram determinadas mudanças em relação ao tempo total de trabalho
(soma do trabalho remunerado e do não-remunerado), tanto para homens quanto para mulheres.
Esse último grupo, entretanto, continua sendo a maior vítima da jornada dupla e da falta de tempo
para si. Esse quadro é completado com o fato de que as mesmas pesquisas apontam que há um
grande hiato de gênero nas atividades de lazer.

Como dito na introdução, estudos de usos do tempo, realizados recentemente em países


desenvolvidos, sugerem que há uma situação desfavorável para as mulheres, levando-se em conta
o tempo de trabalho remunerado e o tempo despendido com cuidados com a casa e a família. Esta
situação, por sua vez, tem conseqüências desastrosas para a dimensão do lazer. Obviamente, estas
conclusões dependem, dentre outras coisas, das particularidades de cada estudo, mais
especificamente, de como as atividades são classificadas na categoria mais geral de lazer e de
trabalho. Contudo, a exposição a seguir se limita a apresentar os resultados principais dos

7
estudos, utilizando-os apenas para detectar tendências gerais que ocorrem em contextos sociais
diversos.

Juliet Schor (1992), cujo estudo se baseou em informações oriundas de outras fontes além das
pesquisas sobre usos do tempo, afirmou que a sociedade norte-americana se dedicava
exageradamente ao trabalho na segunda metade do século XX. Diferentemente do que ocorreu
nos países da Europa Ocidental, o tempo despendido pelos norte-americanos com esta atividade
não declinou no pós-guerra e ainda teria sofrido um acréscimo. Contrariamente, o estudo de
Robinson e Godbey (1997), elaborado exclusivamente com base em informações oriundas de
pesquisas de usos do tempo sobre a sociedade norte-americana, apontou que teria ocorrido um
aumento do tempo livre entre as pessoas no mesmo período histórico sobre o qual Schor realizara
sua análise.

Seguindo a trilha destas importantes referências, Aguiar e Hurst (2007), utilizando-se de


informações oriundas de pesquisas de usos do tempo realizadas nos EUA entre os anos 1965 e
2003, analisaram as tendências desenvolvidas nestas cinco décadas entre os indivíduos incluídos
na faixa etária entre 21 e 65 anos de idade (excluídos os que eram exclusivamente aposentados).
Como ao longo deste tempo ocorreram importantes mudanças na composição demográfica da
população norte-americana, os autores utilizaram ajustes estatísticos para isolar este efeito e
excluí-lo dos resultados garantindo, assim, com que as tendências detectadas fossem atribuídas
apenas às mudanças na dimensão do comportamento.

Os estudiosos chegaram à conclusão de que tanto homens e mulheres experimentaram, em média,


um grande aumento no tempo de lazer por semana. Esta mudança vem acompanhada de outra,
qual seja, o declínio do tempo dedicado ao trabalho total, que corresponde à soma do trabalho
remunerado e do trabalho não-remunerado. Porém, esse quadro se difere entre homens e
mulheres quando se leva em conta as subcategorias de trabalho separadamente. Enquanto os
homens tiveram seu tempo de lazer inflacionado devido a uma diminuição do tempo dedicado ao
trabalho remunerado, as mulheres vivenciaram um aumento no tempo de lazer concomitante a
um aumento na dedicação ao trabalho remunerado e a uma diminuição no tempo dedicado ao
trabalho doméstico.

8
Jonathan Gershuny e Kimberly Fisher (1999), utilizando informações oriundas de pesquisas de
usos do tempo realizadas no Reino Unido nos anos 1961, 1975, 1985 e 1995, também analisaram
as tendências no pós-guerra entre indivíduos adultos (entre 20 e 60 anos de idade). O aumento da
participação das mulheres no mercado de trabalho no período analisado foi acompanhado por
uma retração das diferenças de gênero em relação ao tempo de trabalho não-remunerado. As
mulheres continuam despendendo mais tempo que os homens nestas atividades, porém, os dados
indicam que o primeiro grupo diminuiu enquanto o segundo aumentou o tempo devotado à
atividade.

Os pesquisadores chegaram à conclusão de que o tempo de lazer para os homens se manteve


relativamente estável, variando apenas em alguns minutos, ao passo em que aumentaram sua
participação no trabalho não-remunerado e diminuíram no trabalho remunerado. Já para as
mulheres houve um aumento no tempo dedicado ao lazer, mas, mesmo assim, elas continuam
dedicando menos tempo que os homens a esta mesma categoria de atividades. A dedicação deste
último grupo ao trabalho não-remunerado diminuiu na medida em que aumentou a dedicação ao
trabalho remunerado.

Em outro estudo, que também utilizou informações de pesquisas de usos do tempo, Fuess (2006)
analisou os resultados de surveys realizados pelo governo do Japão em 1986, 1991, 1996 e 2001.
A análise foi dividida em dois períodos de tempo: os dias de semana (que inclui o sábado) e os
domingos. O objetivo principal seria entender como as condições de vida (idade, gênero e
características individuais na força de trabalho) afetam a experiência do lazer. A conclusão mais
geral, relacionada à dimensão do gênero, sugere que as mulheres dedicam menos tempo que os
homens às atividades de lazer, situação que se intensifica bastante nos dias de domingo.

Fontes das informações

A análise contida neste capítulo tem como base as informações da Pesquisa de Usos do Tempo
realizada em Belo Horizonte/MG em 2001. As informações sobre as atividades realizadas pelos
indivíduos, e o tempo de duração das mesmas, foram divididas em dois períodos de tempo, quais

9
sejam: em dias de semana (segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira) e em dias de fim de
semana (sábado e domingo) e foram registradas pelos indivíduos com oito anos de idade ou mais
em diários de usos do tempo pós e pré-codificados.

Por sua vez, a caracterização demográfica e socioeconômica dos indivíduos foi feita com base em
informações coletadas através de um questionário auto-aplicável. Deste foram utilizadas as
informações que permitiram classificar a atividade remunerada principal que o indivíduo exerce
em um dos cinco estratos ocupacionais utilizados nesta análise. Eles compõem o esquema
elaborado por Pastore e Do Valle Silva (2000) com base no índice de status sócio-econômico
(ISSE), que aqui foi modificado para melhor ajustar-se ao contexto examinado4.

Para os objetivos deste estudo foram utilizadas três categorias amplas de atividades diárias, quais
sejam, trabalho remunerado (tempo despendido em atividades remuneradas de qualquer tipo),
trabalho não-remunerado (cuidados com a casa e a família, incluindo cuidado de crianças) e
lazer (inclui as subcategorias “vida social”, “esportes e atividades ao ar livre”, “hobbies e jogos”,
“uso de meios de comunicação de massa” e “trabalho voluntário”). Foram excluídas, portanto, as
categorias referentes aos cuidados pessoais (comer, dormir, higiene corporal, etc.), atividades
religiosas, deslocamentos entre as atividades diárias e atividades de estudo.

Foram produzidos, também, dados qualitativos através da organização de grupos focais


(MORGAN, 1997). O objetivo principal foi tratar a respeito da percepção de tempo e da
organização das atividades cotidianas sob a perspectiva de gênero. Para tanto, o roteiro enfocou,
principalmente, a organização das atividades de trabalho remunerado, não-remunerado e de lazer.
Foram realizados três grupos de discussão entre os meses de novembro e dezembro de 2004,
sendo que um grupo foi composto somente por homens (6 participantes), outro somente por
mulheres (8 participantes) e um terceiro composto por pessoas dos dois sexos (6 participantes,
sendo 3 homens e 3 mulheres). Os três grupos realizados somaram um total de 20 participantes:
11 mulheres e 9 homens. Todos os participantes apresentaram, como critério de inclusão, a
característica comum de serem casados e de terem filhos.

4
Os referentes empíricos utilizados na elaboração do ISSE são o nível educacional e o nível de rendimento médios
para cada categoria ocupacional. Ele corresponde a uma escala que mede a posição geral no mercado de trabalho ou
o status socioeconômico do indivíduo em determinada ocupação (PASTORE; DO VALLE SILVA, 2000, p.19).

10
Análise dos dados sobre os usos do tempo em Belo Horizonte

Para realizar a proposta de análise foram selecionados da amostra mais ampla os indivíduos
adultos (18 a 65anos de idade) que declararam exercer uma ou mais atividade remunerada. Isso
excluiu do escopo de análise todos os indivíduos que se declararam como exclusivamente
aposentados, estudantes, desempregados ou donas-de-casa.

A TAB. 1 apresenta a proporção de indivíduos adultos, divididos pelas categorias de sexo, que
compõe a amostra analisada neste estudo. Os indivíduos do sexo masculino representam 52% do
total, enquanto que os indivíduos do sexo feminino representam 48%.

TABELA 1
Proporção (%) de indivíduos (18-65 anos) por sexo na amostra
Sexo (%)
Masculino 52

A TAB. 2 apresenta a proporção de indivíduos divididos de acordo com os estratos ocupacionais.


Levando-se em conta todos os indivíduos, o estrato III concentra a maioria deles (37,02%) e o
estrato IV a minoria (5,19%). O estrato IV é o único que apresenta certo equilíbrio na distribuição
de indivíduos por gênero (5,42% de homens e 4,95% de mulheres). Os estratos I e III apresentam
uma maioria de indivíduos do sexo feminino (5,56% e 11,92% a mais de mulheres em cada
estrato, respectivamente) e nos estratos II e V concentra-se uma maioria de indivíduos do sexo
masculino (11,23% e 5,77% a mais de homens em cada estrato, respectivamente).

11
TABELA 2
Proporção (%) de indivíduos (18-65 anos) nos estratos ocupacionais divididos por sexo
Sexo
Estratos Ocupacionais Todos
masculino feminino
(I) Baixo-inferior e Baixo-
superior 22,71 28,27 25,43
(II) Médio-inferior 26,78 15,55 21,28
(III) Médio-médio 31,19 43,11 37,02

As TAB.3 e 4 apresentadas abaixo apresenta as médias de tempo em minutos das atividades de


trabalho remunerado, trabalho não-remunerado e lazer entre os estratos ocupacionais divididos
pelas categorias de sexo. A primeira destas tabelas apresenta informações sobre as atividades
realizadas em dias de semana enquanto que a segunda apresenta informações sobre as mesmas
atividades, porém, realizadas em dias de fim de semana. 5

A TAB. 3 indica que para todos os estratos ocupacionais, excetuando-se o estrato IV, as médias
de tempo de trabalho remunerado em dias de semana são sempre maiores entre os homens do que
entre as mulheres. Essa amplitude ou diferença é maior nos estratos II e V (135 e 139 minutos
em média por dia, respectivamente). A exceção é o estrato IV, para o qual há uma diferença de 17
minutos diários a mais, em média, para as mulheres.

A situação se inverte, sem exceções, quando se leva em conta o trabalho não-remunerado. Esta
atividade apresenta, como era de se esperar, uma intensa participação das mulheres e uma tímida
participação dos homens. A maior diferença recai sobre os estratos I e IV, para os quais as
diferenças entre as médias diárias correspondem a 172 e 178 minutos, respectivamente, a mais de
tempo dedicado à atividade pelas mulheres em relação aos homens. Essa diferença é menor no
estrato III, correspondendo a 66 minutos a mais de tempo dedicado à atividade pelas mulheres.

5
Como alguns poucos indivíduos registraram as atividades nos diários de usos do tempo em apenas um dos períodos
determinados (um dia de semana ou um dia de fim de semana), as TAB.3 e 4 apresentam, entre si, uma ligeira
diferença quantitativa quando comparado com o total de indivíduos participantes da amostra. Porém, a maioria dos
indivíduos registrou informações nos dois períodos de tempo determinados.

12
Em relação à categoria de lazer, os estratos I, III e V apresentam as maiores médias de tempo
para os homens em relação às mulheres, chegando a uma amplitude máxima de 34 minutos de
vantagem para os homens no estrato III. Já para os estratos II e IV foram demonstradas algumas
vantagens, mesmo que modestas, para o grupo das mulheres. A diferença corresponde a 5 e 16
minutos, respectivamente, a mais de tempo de lazer por dia de semana para cada estrato
ocupacional.

TABELA 3
Médias de tempo (min.) de trabalho remunerado, trabalho doméstico e lazer em dias de semana (seg-sex)
dividido por sexo.

Masculino Feminino
Estratos Ocupacionais
Trabalho Trabalho Trabalho Trabalho
Lazer Lazer
Remunerado Doméstico Remunerado Doméstico

(I) Baixo Inferior e Baixo


401 41 192 337 213 161
Superior

(II) Médio-Inferior 468 52 155 333 199 160

(III) Médio-Médio 464 42 183 423 108 149

(IV) Médio-Superior 359 13 122 376 191 138

(V) Alto 559 24 141 420 107 131

(n=289) (n=277)

Fonte: Pesquisa “Múltiplas Temporalidades de Referência: análise dos usos do tempo em Belo Horizonte, Minas
Gerais”, UFMG/CNPq, 2003.

A TAB. 4 demonstra que os homens incluídos nos estratos III, IV e V continuam dedicando-se
mais ao trabalho remunerado do que as mulheres quando se leva em conta os períodos de fim de
semana. Isso não é verdade para os estratos I e II, para os quais o tempo de trabalho remunerado
em média é maior no grupo de mulheres. A maior diferença nesse sentido foi detectada no estrato
II, o qual apresenta uma diferença de 154 minutos a mais para as mulheres em relação aos
homens. Entretanto, os estratos IV e V apresentam também uma grande diferença média de
tempo. Nestes, os homens dedicam 126 e 125 minutos em média a mais do que as mulheres,
respectivamente.

13
Quando se concentra a atenção na categoria de atividades de trabalho não-remunerado em dias de
fim de semana, a situação se mantém a mesma encontrada nos dias de semana. As mulheres,
independentemente do estrato ocupacional, dedicam em média pelo menos uma hora a mais que
os homens, por dia, ao cuidado com a casa e a família. No estrato I, que apresenta a maior
diferença no de fim de semana, as mulheres dedicam, em média, 170 minutos a mais do que os
homens. Essa diferença é menor entre os indivíduos inclusos nos estratos IV e V. Entretanto,
mesmo que a diferença seja menor, as mulheres inclusas nestes estratos dedicam,
respectivamente, 93 e 98 minutos a mais do que os homens à categoria de atividades em questão.

Uma observação das médias das atividades de lazer entre os grupos ocupacionais, com exceção
do estrato II, demonstra a vantagem dos homens traduzida na dedicação muito mais intensa, se
comparado às mulheres, a este tipo de atividade em dias de fim de semana. Os homens dos
estratos I, III, IV e V dedicam, no mínimo, 151 (para o estrato III) minutos a mais do que as
mulheres ao lazer no fim de semana. Essa diferença aumenta nos estratos superiores, chegando a
219 minutos no estrato IV e 223 minutos no estrato V.

TABELA 4
Médias de tempo (min.) de trabalho remunerado, trabalho doméstico e lazer em dias de fim de semana (sab-
dom) dividido por sexo.

Masculino Feminino
Estratos Ocupacionais
Trabalho Trabalho Trabalho Trabalho
Lazer Lazer
Remunerado Doméstico Remunerado Doméstico

(I) Baixo Inferior e Baixo


134 64 417 142 234 277
Superior

(II) Médio-Inferior 163 71 374 317 174 178

(III) Médio-Médio 159 87 363 110 189 328

(IV) Médio-Superior 194 65 323 68 158 321

(V) Alto 171 77 431 46 175 420

  (n=296) (n=279)

Fonte: Pesquisa “Múltiplas Temporalidades de Referência: análise dos usos do tempo em Belo Horizonte, Minas
Gerais”, UFMG/CNPq, 2003.

14
Quando se compara as médias de tempo das TAB. 3 e 4 é possível constatar como a divisão da
semana entre os dias chamados “úteis” e os dias de descanso (o sábado, mesmo sendo um dia de
transição, e o domingo) é bem mais generosa para os homens do que para as mulheres. Quando se
compara as médias de tempo das três categorias de atividades analisadas somente para os
homens, percebe-se uma tendência única. Para todos os estratos ocupacionais que incluem os
homens, sem exceção, o tempo de trabalho remunerado nos fins de semana diminui bastante,
chegando a menos da metade nos estratos I, II, III, V se comparado aos dias de semana.

Quanto ao trabalho não-remunerado, os estratos ocupacionais compostos por homens apresentam


um aumento representativo nos fins de semana no que diz respeito à dedicação a este conjunto de
atividades. Nos estratos superiores o aumento é bem significativo, chegando a aumentar a média
em até quatro vezes no estrato IV. Mesmo assim, essa tendência é incapaz de equiparar a
dedicação a este grupo de atividade entre homens e mulheres em qualquer período de tempo que
se leve em consideração.

Quanto ao lazer, os grupos ocupacionais compostos por homens apresentaram um aumento médio
bem intenso nos fins de semana, inflacionando em mais de duas vezes o tempo despendido com a
atividade nos dias de semana.

Já para os estratos ocupacionais compostos por mulheres, o tempo de trabalho remunerado


diminui bastante nos períodos de fim de semana, com exceção do estrato II, para o qual a
diferença entre as médias dos dias de semana e dos dias de fim de semana é muito pequena
(correspondente a 16 minutos). Quanto ao trabalho não-remunerado, os estratos I e III têm o
tempo médio aumentado nos fins de semana enquanto que os demais (estratos II, IV e V)
experimentam uma retração. Porém, mesmo que haja diferenças para mais e para menos, as
médias de tempo despendido neste tipo de atividade continuam elevadas nos dias de fim de
semana, o que demonstra que a variação do período de referência, para as mulheres, não é tão
marcante quanto o é para os homens.

Quanto ao lazer, os estratos ocupacionais I, III, IV, V compostos por mulheres apresentam um
aumento significativo de tempo médio dedicado à atividade nos fins de semana. Entretanto,

15
mesmo que as mulheres aumentem sua dedicação ao lazer neste período da semana, o aumento é
bem mais modesto do que aquele que ocorre de forma bastante intensa entre os homens.

Interpretação das discussões nos grupos focais

Conforme nossa análise dos grupos focais, um dos aspectos notáveis é o de que com relação às
mulheres participantes destes grupos, ainda que a maior parte trabalhe fora, estas persistem
assumindo o papel de principal responsável pelas atividades da casa e dos cuidados com os
filhos. No discurso dessas mulheres, o seu tempo está sempre muito voltado para o domicílio, o
marido e os filhos. Quando foi perguntado aos participantes (homens e mulheres) em que
situação eles/elas se sentiam na obrigação de exercer as atividades domésticas ou quando não se
sentiam na obrigação de exercê-las, as mulheres se demonstraram, de certo modo, como sendo
mais conformistas, seja nos casos daquelas que não trabalham fora de casa ou mesmo com
relação àquelas que trabalham fora de casa, como pode ser verificado a exemplo de alguns
depoimentos:

Bom, no momento agora, eu me sinto na obrigação de exercer a minha atividade


doméstica, por não estar trabalhando fora. Mas não foi sempre assim. Quando eu
trabalhava, esse serviço era dividido entre nós dois. Eu acho que (...) a gente tem que
pensar na situação, no momento, então, quando os dois trabalhavam fora, nós dividíamos
as tarefas de casa, mas agora, como eu não estou trabalhando, acho que não é nem justo.
Apesar de eu estudar à noite, eu acho que hoje eu me sinto na obrigação de fazer
(participante 7 mulher, 36 anos)

Eu acho que, trabalhando ou não, as atividades domésticas não são só minhas, são de todo
mundo. Seriam só minhas se eu morasse sozinha (...). Agora, infelizmente, eu assumo a
maioria das atividades domésticas (risos). Eu queria que fosse o contrário (participante 10,
mulher, 46 anos)

Eu concordo com o que a (participante 10) fala. É realmente assim. Deveria ser assim
tudo dividido, mas acaba que sobrecarrega mais para a mãe de estar fazendo as coisas,
sabe? È você que dirige sua casa e se você falar “eu não vou fazer”, a coisa não anda,
entendeu, ninguém faz. Então você sente a obrigação de fazer algumas coisas, e a
obrigação de não fazer, eu acho que não existe. Acho que a gente sempre está
trabalhando, você sempre tem que estar fazendo alguma coisa. (...) Na minha casa, por
exemplo, nós temos uma moça que nos ajuda, mas no tempo em que quando minhas filhas
eram pequenas, período em que eu fiquei sem uma ajudante, tinha que ser, era para ser
dividido, e muitas das vezes eu é que fazia mais coisas, trabalhava aqui o dia inteiro e
chegava em casa tinha que fazer a janta, lavar fralda, essas coisas, aí onde que nós

16
brigávamos porque ele não queria ajudar, não concordava em ter que, achar que tinha que
ser dividido as coisas. Aí, “ah não por isso que a gente tem que ter alguém” por que ele
não gosta de fazer coisa de casa. Então assim, eu me vejo na obrigação de estar fazendo as
coisas na minha casa, coisa que a gente tem que fazer e que se eu não faço, vai ficar sem
fazer, porque ninguém quer ajudar, sabe como, “eu não posso, eu não posso e tal” e a
gente acaba que assumindo as coisas (participante 13, mulher, 49 anos).

Eu acho que é meio assim mesmo, a mulher sempre acaba assumindo mais as tarefas de
casa e até na criação dos filhos. Pelos menos lá em casa é assim. Eu sinto como minha
menina pede tudo para mim. (...) “O pai está aqui na frente e você pede para sua mãe!”
(participante 14, mulher, 42 anos)

Teoricamente, quem tem que fazer é quem tem mais tempo livre, [mas] porque é
“homem” ou “mulher”, não. Se tem alguém em casa, eu acho que é mais justo, já que está
em casa, fazer o serviço, do que por exemplo dividir. Se eu estou em casa o dia inteiro -
não é o meu caso -, vou ficar esperando alguém chegar para dividir comigo o trabalho? Eu
não acho justo, não. (...) Agora, nesse ponto de obrigação, por exemplo, lá em casa, eu
brigo, não é dividido igual quando tem que fazer. Eu não assumo sozinha, não. Mas não
consigo dividir igual também não. Mas eu acho que teria que ser igual. Então, sentir
obrigação eu sinto é se eu estou em casa e tem outra pessoa trabalhando, uma das meninas
ou meu marido, não está lá, eu me sinto na obrigação de fazer porque eu estou à toa em
casa, à toa no sentido de não estar fazendo uma atividade no trabalho (...) Se eu tenho um
tempo livre podia pegar um livro e ler (informante 12, mulher, 50 anos).

Percebe-se que os discursos são quase sempre parecidos. Ainda que digam que não tenham a
“obrigação”, propriamente dita, de realizar as atividades domésticas, seja por qual motivo for –
por trabalhar fora, por possuir empregada ou mesmo por poder, eventualmente, contar com a
ajuda do marido – há uma forte tendência das mulheres em se considerarem como responsáveis
pelos cuidados com a casa. Uma participante apontou um dado interessante, que se refere à
diferença do seu senso de organização do domicílio em relação ao de seu marido:

O que eu queria falar é com [relação à] questão de obrigação também, eu acho que às
vezes a gente acaba se sentindo mais sobrecarregada, mesmo tendo prazer, mesmo
gostando de fazer (..). Uma coisa até que eu converso muito com meu esposo, é que eu
acho que a gente tem noções de organização, de manutenção da casa diferentes. Então
uma coisa que para mim está desorganizada, para ele está organizada. Então eu acho que a
gente se cobra mais disso também. Então assim: mesmo que ele me ajude às vezes o que
ele ajuda, para noção de organização, de manutenção do lar, às vezes eu acho que é muito
diferente (informante 11, mulher, 27 anos).

Com esse depoimento a participante reforça o clichê da existência de um senso de organização e


sensibilidade feminina com relação aos cuidados da casa. O espaço doméstico é identificado

17
como um espaço feminino. O sentido de obrigação com as tarefas domésticas é, também, passado
para as filhas pelas próprias mães:

Eu não divido as tarefas mais com meu marido. Mas eu tenho uma filha adolescente, de
treze anos, eu acho que isso faz parte da educação, porque tem que criar nela
responsabilidade. Então, por exemplo, todos os dias a cozinha do almoço é dela. Porque
eu acho que eu tenho que ensinar como mãe. Mas a maioria sou eu mesmo que faço
(informante 7, mulher, 36 anos).

Mas há também o outro lado da moeda:

Tem que mostrar que eles (os jovens) têm que aprender de tudo. Eu tenho em casa três
rapazes. Então eu ensino a fazer tudo. Tenho quem ajuda, mas ela não estando em casa,
cada um estende a sua cama, ajuda a pôr as coisas no lugar, um lava o outro enxuga. Meu
marido também me ajuda em tudo que eu preciso. Então no domingo a gente faz almoço e
ele ajuda na cozinha junto com os meninos. Eu acho que a gente tem que passar isso para
os filhos porque a gente não sabe o dia de amanhã. Então de repente eles não vão precisar
fazer nada, de repente eles têm que ajudar. Eu acho também assim... uma família...um tem
que ajudar ao outro, para ser família e para ensinar aos meninos o que é uma família.
Então, mesmo que a gente tenha condição de ter uma empregada, ter mais facilidade, eu
acho que a gente tem que colocar isso nos meninos. Mesmo que seja homem. Então eu
procuro educar assim porque na minha casa nós éramos quatro mulheres e um homem. O
homem sempre ficou de lado porque meu pai não deixava, não gostava que ele fazia as
coisas, achava ruim, mas a minha mãe colocava. Então como eu só tenho menino eu trato
como se fosse menino e não como se fosse menina, mas assim... que eles têm que fazer
como se eles fossem também arrumar a cama, varrer uma casa, então isso eles colocam no
lugar. (...) Meus meninos são até muito organizados porque eles fazem as coisas deles.
Acho que você tem que passar isso mesmo para os filhos (informante 2, mulher, 46 anos).

Os homens freqüentemente admitiram, em seus depoimentos, que realizam as tarefas domésticas.


Porém, é interessante notar que, nestes casos, normalmente os homens que afirmaram realizar as
atividades domésticas são oriundos de famílias com grande número de filhos:

Eu sinto obrigação em tudo. Eu não tenho nada dentro de casa que não deve ser feito pelo
homem. Eu tive o exemplo em casa, meu pai é um homem de 70 anos, hoje, mas sempre
foi uma pessoa que ajudou a minha mãe. (...) Eu acho que em casa é normal você fazer
tudo. Evidentemente que em alguns [tipos de] trabalho eu não me sinto confortável para
fazer, não sob o ponto de vista de achar qualquer questão, mas mais por não ter
habilidade. Em determinadas coisas eu vou pedir alguém para fazer, ou pagar para alguém
fazer por questão de habilidade. Mas no que diz respeito ao que ela [a esposa] possa fazer

18
e que eu possa, no meu caso não tem diferença nenhuma. Lavar pratos, passar pano no
chão, o que tiver que fazer é natural (informante 16, homem, 41anos).

Eu também venho de uma família grande e ficava impossível, lá em casa, que a coisa
fosse diferente disso, porque nós somos 7 homens e 4 mulheres. Desde cedo minha mãe
fez questão de colocar isso para a gente. Então eu vivia na cozinha com ela, a gente tinha
escala de lavar banheiro, tudo dividido, equalizado, entre todos. Então acabou que isso
ficou incutido na minha formação e na formação de todos os meus irmãos. Hoje em dia
todos fazem, um ou outro com mais ou menos habilidade, mas eu não vejo impedimento
nenhum também de assumir qualquer [coisa], inclusive coisas que aparentemente para
algumas pessoas são completamente fora do contexto masculino: costurar, eu costuro e
faço de tudo porque eu aprendi mesmo... fez parte da minha formação... eu fazia com a
minha mãe e aprendi a fazer... sem problema nenhum (informante 15, homem, 31 anos).

Eu acho que se você tá dentro da sua casa você tem que fazer de tudo mesmo. Eu fui
criado no mesmo caso que eles: em família grande... lá em casa todo mundo faz de tudo...
e esse negócio de costurar, eu faço também... e isso eu faço mais por causa da minha
profissão, eu mexo na área de roupas... então eu faço reparos... eu digo assim, porque
também eu trabalho na confecção... mas voltando à pergunta sobre dentro de casa, é isso
mesmo que ele falou aí, e o que ele falou também... em casa tem que fazer de tudo, de
tudo (informante 20, homem, 53 anos).

Eu sempre fiz desde criança lá em casa, porque nós somos cinco homens e meu pai
faleceu quando eu tinha seis anos. Minha mãe tem uma deficiência no braço que ela
perdeu na fazenda do pai dela (...). E lá em casa nós sempre fomos criados naquele regime
(...) são cinco homens, mas são cinco mulheres. Em casa nós fazemos de tudo, desde
comida, lavar roupas, lavar banheiro, lavar panela. Isso aí é a coisa mais normal. (...)
Nesse ponto eu sou até feminista demais. (participante 1, homem, 44 anos).

Embora os participantes, nos depoimentos supracitados, apontem como sendo uma “coisa
normal” ou “natural” a participação dos homens nas tarefas domésticas, não deixaram de ressaltar
sua história de vida particular – pertencem a famílias numerosas, onde as tarefas são também
maiores e, desta maneira acabam por ter que dividir as funções domésticas. No depoimento do
informante 1, por exemplo, pode-se verificar que se trata de uma situação contingencial: a
ausência do pai, que falecera quando o filho ainda era criança e a deficiência física da mãe. Em
seu discurso há também uma associação das atividades domésticas como função feminina quando
ele diz que, na casa dos seus pais havia cinco filhos homens e completa: “mas são cinco
mulheres” (isso pelo fato de que todos os irmãos exerciam as atividades domésticas) ou quando
afirma: “nesse ponto sou até feminista demais”. Este mesmo participante revelaria posteriormente
que, em seu ponto de vista, a “obrigação” com as tarefas da casa deve ser da mulher:

19
Minha esposa, desde quando ela ganhou menino, nunca trabalhou e resolveu trabalhar
agora depois de 18 anos de casada (...). Eu sempre questionei: “não trabalha não, toma
conta da casa que tá bom”. Sempre batalhei com jeitinho e tudo direitinho ali e sempre
fui levando a vida. E nesse meio tempo sempre ajudei a ela. Quando ela ganhava menino
– ela fez duas cesáreas e cesárea é uma coisa séria, tem que ficar em regime absoluto – eu
que tomava conta da casa, lavava até fralda de menino. E eu falo isso até sem medo, sem
vergonha, nem nada. Para mim isso é uma coisa normal, então para mim esse negócio de
lavar vasilha, lavar roupa, lavar calcinha é a coisa mais normal. Não ligo para isso não.
(...) Hoje ela trabalha, meus dois meninos estão estudando. Meio dia eu tenho que estar
com o almoço pronto. Meus dois meninos chegam e eu estou lá, eles perguntam: “Ô pai e
o rango?”(...) (informante 1, homem, 44 anos).

Há também opiniões contrárias, mais categóricas:

Eu não. Eu não faço não. Só requentar, às vezes. A mulher faz a janta... faz só a janta né?
E no outro dia, não tem tempo de fazer o almoço, ela trabalha, e quando eu estou em casa
eu esquento. Meu menino fica com a sogra, meio dia ele vai para a escolinha, lavar roupa
também não. Já lavei as minhas roupas quando eu era solteiro. Depois que eu casei
abandonei... arrumar casa também não é comigo... (informante 5, homem, 33 anos).

Nos depoimentos de alguns dos participantes homens nota-se, ainda que involuntariamente, uma
certa preocupação em se manter uma postura anti-tradicional, como uma forma de reação a um
novo tempo/contexto. Os depoimentos revelam que os homens já não se preocupam em
evidenciar os seus conflitos e reconhecem o quanto as transformações sociais são significativas
para as relações de gêneros. Depoimentos como os descritos abaixo realçam os conflitos
masculinos e as tentativas de reajustamento a um “novo tempo”, a uma mudança de gerações:

Meu pai tem 75 anos, minha mãe já é falecida e eu tenho irmãos... meu irmão mais velho
tá com quase 50 anos e minha irmã mais nova tem 22... então tem três gerações aí, ou
mais... e eu vejo meu pai, por exemplo, lá em casa, apesar de meu pai não ter essa atitude
de ajudar porque só ele trabalhava e minha mãe ficava como dona de casa... eles casaram
em 1956, então era outra realidade... eu achei interessante isso, porque apesar de lá em
casa o exemplo do meu pai não ter sido esse, de participação, porque ele dava o dinheiro...
o dinheiro era controlado e a minha mãe simplesmente fazia as coisas de casa, ela não
trabalhava... ela nunca deixou que a gente, dentro de casa (...) não aprendesse fazer as
coisas... eu acho isso muito interessante. E o meu pai mesmo, hoje em dia, ele mudou
completamente (...), hoje em dia ele lava roupa, ele tem que fazer comida, entendeu?
Antigamente não, tinha empregada e ele bancava a casa. E chegava em casa era ler jornal
e dormir, mais ou menos isso. Hoje em dia eu acho que mudou bastante... (participante
15, homem, 31 anos).

20
eu tenho mais tempo de casado e eu acho que a coisa melhorou hoje em dia... eu não
aprendi a fazer isso em casa não. Minha mãe nunca trabalhou e meu pai trabalhava, e eu
acho que nem era justo ele trabalhar lá e chegar em casa e ter que fazer alguma coisa,
então a gente aprendeu isso: o pai trabalha fora e a mãe fica dentro de casa e faz todo o
serviço e cuida de tudo. (...) Mas quando eu vim para Belo Horizonte em 1978, eu vim
sozinho para cá e eu tive que aprender a fazer essas coisas na marra. O que a minha mãe
não me ensinou, e poderia ter ensinado, fez muita falta. A gente foi morar em pensão,
alugou quarto, então a gente tinha o fogão da gente, fazia comida e ninguém sabia, e a
gente começou a aprender essas coisas todas, na necessidade mesmo. Eu acredito que fez
falta esse ensino para a gente dentro do lar. Vamos supor, se a minha mãe tivesse pegado
a gente e colocado para lavar um banheiro, ensinado a gente a fazer comida em casa,
então na hora que você saísse não precisa apanhar tanto, sofrer tanto igual a gente sofreu,
comendo aquelas comidas... então eu acho que hoje faz falta... lá em casa hoje a gente faz
isso. Eu trabalho fora, e a minha esposa trabalha também, então a gente chega, divide o
serviço... a gente tem empregada, mas final de semana, a gente não deixa nada para a
empregada na segunda-feira... A gente faz questão de não deixar, poderia deixar [suja] a
louça toda, mas a gente faz questão de não deixar, justamente para ensinar, desde a
nenenzinha de 4 anos até o meu menino de 13 anos... Vamos limpar tudo, arrumar tudo,
deixar tudo prontinho... e eu acho isso fundamental hoje (participante 18, homem, 43
anos).

eu comecei desde pequeno, nós éramos 12 irmãos, morreram 3 (...). Eu fui babá da minha
irmãzinha aos 5 anos... eu ganhava balas para olhar ela e ficava mais alegre... eu
normalmente fazia de tudo, eu trabalhava em uma serraria em Sete Lagoas. O dono lá, o
patrão, lá me escalou logo para poder ir para o mato com eles, serrar toras de madeira,
mas eu não serrava toras, eu ia lá só para cozinhar... fazer comida... às 11 horas eles
voltavam e já estava pronto... eu comecei desde pequeno... lá na serraria eu trabalhava
com 14 anos, e eu parei um pouco os estudos, porque não tinha condições, para poder
trabalhar para a gente poder comprar comida e tudo... e lá em casa agora, fazemos tudo, a
minha esposa trabalha fora, é diarista, então quem chega primeiro já faz a janta,
normalmente o almoço já fica pronto para os meninos. A minha menina arruma a casa
todo dia sozinha, o meu menino também lava vasilhas, limpa os banheiros, é tudo
escalado... às vezes domingo a gente vai à igreja, quando chega alguém vai limpar o
frango, fazer um feijão com arroz e tal... o frango fica por minha conta, ninguém gosta
né? (...) então normalmente eu, modéstia parte, cozinho até... não é igual a minha esposa
não, mas mais ou menos... tem coisa que ela deixa por minha conta... então a gente faz de
tudo, sou pedreiro também, arrumo casa dos outros também, faxina eu faço também... não
tenho escolha de nada não... de tudo eu faço (participante 17, homem, 45 anos).

Lá em casa são cinco irmãs. Então nunca precisei fazer nada em casa. Mas eu sou uma
pessoa que eu gosto de fazer as coisas e aprender coisas novas. Então eu comecei viajar
muito cedo, trabalhava com telefonia, então ficava de cidade em cidade e para sair mais
em conta para mim a gente inventou de cozinhar. Então era sempre eu que cozinhava,
arrumava a casa, os outros eram meio “porquinhos”, mais relaxado mesmo e eu gosto
muito de limpeza (...). Eu trabalho de duas às dez da noite, então se eu estou em casa a toa
a minha esposa mesmo levanta, ela vai lavar a roupa da neném e eu ajudo ela ou enquanto
ela está lavando eu vou olhar o neném, estou trocando... ela vai fazer um almoço e eu

21
estou vigiando a menina. (...) ajudo ela em quase tudo de casa. Só não gosto de passar
roupa, eu não tenho paciência. Mas eu passo também... Cozinhar também tem bom tempo
que eu não cozinho porque ela cozinha muito bem (participante 14, homem, 25 anos)

De acordo com tais depoimentos de alguns dos participantes masculinos dos grupos focais pode-
se notar que, para alguns deles, acatar-se aos valores sociais contemporâneos torna-se, antes de
qualquer coisa, uma questão de bom senso. Trata-se de uma maneira de se sentirem melhor
integrados a uma sociedade que se transformou em relação à sua geração. Isso não significa,
porém, que estão de acordo com tais valores, visto que, não raro, clamam pelos valores
tradicionais como, por exemplo, quando questionados se as mulheres devem ou não trabalhar fora
de casa:

Eu sou machista. Acho que a mulher não deve trabalhar. Eu, se tivesse condição
financeira minha esposa iria ficar 24 horas vendo televisão. Ela não deve trabalhar. Neste
ponto eu sou machista. Hoje nós estamos no século XX (sic), taí 50% para cada lado...
mas mulher que casou tem que tomar conta da família, não tem que trabalhar não. Ela vai
para o cinema, vai fazer o quiser, menos trabalhar. Só que, infelizmente, eu não tenho
condição para isso. Aí ela resolveu trabalhar. Não que eu precise do dinheiro dela, mas
para o uso dela mesma. Um tal de... toda semana fazer a unha, arrumar cabelo (...) eu
corto cabelo de ano em ano e ela corta cabelo toda semana... que é isso?.. vai gostar de
ganhar dinheiro... Mas se eu tivesse condição ela não trabalharia. Mas eu tenho que
ganhar muita grana né? Muito dinheiro mesmo. Teria que ser um “Ronaldinho” [jogador
de futebol] da vida. Infelizmente sou ruim de bola, né? (Informante 1, homem, 44 anos).

No meu caso, a minha esposa trabalha fora também... hoje se ela não quisesse trabalhar
fora e ficar só em casa, ela poderia ficar; o que eu ganho é suficiente, mas eu acho que faz
um bem enorme para ela. Até na estima dela, você vê que ela sai, ela se produz, vai
trabalhar, ela se sente valorizada com isso (...). É necessário que a mulher trabalhe, nem
que seja meio horário, ou que seja o horário integral, acho muito importante para ela
mesmo. Se puder ajudar na renda melhor ainda (Informante 18, homem, 43 anos).

Eu também não esquento não. A minha esposa trabalha e me ajuda muito. Normalmente
eu não tenho condições de ajudar ela em tudo também, e o que ela faz ela faz para ela,
para ajudar em casa também, ajuda os meninos também... e normalmente é bom também
porque a mulher ficar em casa costuma estressar muito... mesmo que fica apertado o
serviço, ao chegar tem que fazer comida ainda... aí sobra só o sábado e o domingo para
lavar a roupa e coisas assim, mas em questão financeira, o “salariozinho” dela ajuda muito
a gente lá em casa (Informante 17, homem, 45 anos)

Você pode ver que, de um modo geral, eu acho o seguinte: se tivesse oportunidade de a
mãe ficar em casa acompanhando o crescimento dos filhos, até uma determinada idade,
seria ideal. A mãe ficar por exemplo com o filho aí até 5 anos de idade... eu acho que seria

22
o ideal... mas isso não acontece, fica meio fora da realidade (...) Mãe é mãe. A mulher é
preceptora, ela tem que criar os filhos, na verdade se ela tem essa oportunidade, se ela
optou por ser mãe, se ela tiver oportunidade de criar os filhos, de ficar junto [com os
filhos] até uma certa idade, isso deve acontecer... (Informante 20, homem, 53 anos).

Isso aí é a recomendação de algumas pessoas que trabalham com educação infantil, que
seria realmente a educação da criança até os 5 anos de idade seria, nos contextos antigos,
era a época que a criança ia para a escola. A partir dos 5 anos, mais ou menos. Hoje em
dia com 7, 8 meses a criança já tá em creche. Mas eles acham que para o desenvolvimento
da criança é que ela ficasse até os 5 anos com a mãe em casa (Informante 15, homem, 31
anos).

Há que se levar em conta a questão do tempo com relação à dedicação aos afazeres domésticos.
Os homens que afirmaram achar “normal” ou “natural” realizarem as atividades de cuidados com
a casa e/ou com os filhos em seu domicílio as realizam dentro de um quadro temporal muito
menor, como podemos constatar a partir de alguns depoimentos que são, em nossa visão,
significativos. A título de exemplo, temos um depoimento sobre o que os informantes disseram
fazer como atividades de lazer:

Durante a semana, normalmente, coisas que eu faço e que eu considero interessante como
uma atividade de lazer, é ver televisão, eu adoro ver televisão (...) e cuidar da minha filha,
nesses momentos de trocar fraldas, dar banho, isso para mim é extremamente prazeroso
(Informante 15, homem, 31 anos).

Conforme o depoimento acima, podemos notar que o informante, ao indicar que trocar fraldas na
filha ou lhe dar banho seja uma atividade de lazer, ele está deixando claro que se trata também de
uma atividade não rotineira, com a qual ele não tem compromisso. Dessa maneira pode-se pensar
que, paradoxalmente, o que pode significar uma atividade desgastante para a mulher – cuidar dos
filhos – dado o seu alto grau de compromisso, para o homem pode significar uma “atividade de
lazer”, visto que é um tempo onde este se sente livre de qualquer outro tipo de obrigação.
Algumas das próprias mulheres confirmam esta dedicação de tempo do pai com os filhos como
muito escassa em relação à dedicação do tempo das mães para com os filhos. Referindo-se a uma
imagem que lhes foi apresentada de um pai abraçado a uma criança, algumas afirmaram:

Isso aí é cinco minutos, sabe? Por mais que ele ame o filho, que ele goste, tenha carinho e
tudo, é cinco, dez minutos ele já... [o filho] chorou, ele está entregando [para a mulher].
(...) E tem aquela responsabilidade assim: eu acho que em toda casa, por exemplo, na hora

23
da educação, de chamar a responsabilidade, vai lá você, que você que é a mãe. Eu acho
que ainda tem esse preconceito. (Informante 7, mulher, 36 anos).

Outra participante completa o comentário anterior:

E esses cinco minutos é se tiver de bem com a mulher. Porque homem, quando não está
de bem com a mulher, ele não olha nem para os filhos. Então assim, esses cinco minutos
são bem restritos (Informante 9, mulher, 34 anos).

É freqüente, nos depoimentos de algumas das mulheres, a reclamação da escassez de tempo que
os homens dedicam à família. Quando foram perguntadas com qual atividade elas acham que os
homens deveriam se preocupar em dedicar mais tempo, muitas foram categóricas e responderam
que deveria ser à família:

Eu gostaria que meu marido dedicasse um tempo dele para família, tipo assim, no diálogo.
Para ver o que está acontecendo, o que uma filha está pensando, o que o outro deixou... O
desejo de cada uma, esse aconchego. Eu acho que... Eu estou falando de mim: o meu
marido é meio que assim (...) ele está interessado nas coisas dele. No momento que ele
está em casa, é no futebol, é a televisão, é o filme e ele não se integra, entendeu? Então eu
acho que eu sinto falta disso (Informante 13, mulher 49 anos).

Eu também concordo com ela. Porque eu acho que os homens têm tempo para tudo (...) eu
acho que ele [o marido] sempre arruma tempo para tentar tudo. Serviço, ele sempre vai
arrumar tempo para serviço. Serviço é a honra, ele tem que ir e fazer. O futebol, se for na
frente da televisão com aquela papagaiada que fica lá, ele sempre arruma tempo. Agora,
quando é criança, ou até mesmo a gente faz uma pergunta, a resposta quase não vem (...)
às vezes nem escuta o que você falou, entendeu? Então, eu acho que esse tempo teria que
estar voltado mais para família... (Informante 9, mulher, 34 anos)

Eu acho que é à família mesmo. Porque eu acho que, ainda, como eu já disse antes, eu
acho que a educação dos filhos ainda fica muito sobre a mulher, né? Ah, tem que
conversar... Eu tenho a minha filha de treze anos: ele já pensa: está paquerando. E meu
marido só chega e fala “olha a Ludmila, se eu ver a Ludmila conversando com um rapaz
na esquina (...) você é que é mãe, você que tem que falar!”. Eu acho que tinha que estar
mais integrado sabe? Então, tinha que ter mais um tempo ali. Apesar que tudo nós
fazemos juntos. Vamos para o shopping juntos, eu, ele e as meninas... A gente está
sempre muito junto, mas o diálogo sempre falta, nesse sentido... (Informante 7, mulher, 36
anos).

Neste sentido, reclamam a falta de dedicação a um tempo próprio:

24
Eu acho que um tempo para gente. Um tempo para você, sabe? Um tempo para você estar
fazendo a coisa que você gosta, viajar sozinha, acho que é legal, sabe? É estar podendo
se... é você com você, estar podendo fazer as suas coisas, as coisas que você gosta, sabe?
(Informante 7, mulher, 49 anos).

Eu estou precisando dar um tempo para mim porque este tempo todo que o meu marido
está desempregado eu anulei, anulei as minhas vontades (...). Com certeza, eu trabalho,
faço uma coisa que eu gosto de fazer, mas eu estou num momento assim, que eu gostaria
de ter mais tempo para mim (Informante 3, mulher, 32 anos).

Eu acho que a gente tinha que ter a capacidade de dimensionar melhor as atividades.
Porque, às vezes, tem dia que a gente precisa de dedicar mais tempo ao trabalho,
realmente. E, aí, acaba que a gente se deixa de lado (...). Então, acho que a gente tinha, na
verdade, não é que ter mais tempo para aquela atividade, mas a gente conseguir, por
exemplo: é trabalho? O trabalho é de tal hora até tal hora? Então, aí acabou o trabalho. Só
que, às vezes, a gente não faz isso. Estuda daquela hora até tal hora? Mas a gente não
consegue fazer isso. Então acaba que o tempo que você tem para o lazer, que a gente
acaba que tem, você não utiliza para o lazer, você utiliza para fazer o trabalho que ficou
faltando ou almoço que você quer adiantar para amanhã... Então, acho que, às vezes, a
gente falta separar as atividades e que na vida prática a gente acaba não conseguindo fazer
isso. Você acaba atropelando uma coisa com a outra e misturando tudo (Informante 11,
mulher, 27 anos).

Os depoimentos descritos, até então, enfatizam algumas atitudes mais comuns no que diz respeito
à relação entre homens e mulheres ressaltando visões que podemos considerar como
tradicionalistas acerca dos papéis de gênero. Entendemos que principalmente nos grupos
familiares que atingiram uma certa estabilidade financeira, tanto homens quanto mulheres têm
mais possibilidade de escolher o modo como vivem. Dentro desses modos de vida pode-se optar
por tendências mais tradicionais, utilizando formas já conhecidas, ou tendências inovadoras que
não se faziam presente em contextos tradicionais. Compreendemos que a mulher que tem a
possibilidade de desfrutar de um tempo próprio revela uma posição inovadora, mas somente na
medida em que atingiu um padrão de vida estável e se desvencilhou de algumas obrigações de
atividades domésticas, como o cuidado com os filhos. Como exemplo de tendência inovadora
podemos citar o depoimento seguinte:

Resolvi dar um tempo em minha vida. Era uma proposta minha de vida mesmo, eu chegar
a uma determinada idade e desacelerar. Estou dando este tempo onde estou abrindo um
tempo para mim. Não um tempo de correr tanto atrás. Já corri muito atrás. Graças a Deus,

25
hoje não tenho tanto que me queixar e posso me dar a esse luxo (Informante 4, mulher, 48
anos).

Por outro lado, temos mulheres que ainda que tenham atingido um padrão de vida estável,
decidem optar em vivenciar modos de vida tradicionais:

Eu gosto de ficar em casa, eu gosto de trabalhar, de fazer as coisas de casa, de cuidar dos
meus filhos e do meu marido (...) Eu gosto de ver a minha casa (...) Se for para eu
arrumar um trabalho que for para atrapalhar a minha vida, eu tenho vinte e dois anos de
casada, eu prefiro... eu digo não. Porque tudo que eu construí eu já tive opção de fazer. Eu
prefiro não. Porque é tudo assim... as coisas são... a gente conseguiu com tanto carinho e é
tanto equilíbrio que, de preferência, eu prefiro deixar do jeito que eu to. Porque eu não sou
infeliz, os filhos estão felizes, o marido está bem (Informante 2, mulher, 46 anos).

Até hoje eu tenho doze anos de casada, eu optei por não trabalhar fora, eu mesmo optei
por isso, para estar cuidando das minhas filhas, para estar mais juntas. Mas agora, né, elas
estão crescidinhas e eu estou pretendendo me ingressar em um ramo de trabalho, não ficar
oito horas trabalhando, um tempo menor e agora eu estou sentindo assim a necessidade e
vejo que está na hora (Informante 8, mulher, 36 anos).

Mas nem sempre o fato de vivenciar modos de vida tradicionais é resultado de uma opção. Há
exemplos de depoimentos de mulheres que vivenciam modos de vidas tradicionais por não terem
outras opções de escolha, como no exemplo que se segue:

Você sabe que hoje, com o passar do tempo - e eu trabalho desde muito nova – eu me
casei, o meu marido está desempregado há alguns anos, deu LER no braço, afastou e eu
nessa trajetória de uns cinco, seis anos, eu parei só para ter neném, em seguida voltei a
trabalhar (...). Eu estou, com licença da palavra, de saco cheio! Saturada, não agüento
mais!... Eu não agüento mais serviço de casa. Porque eu falo “não é fácil trabalhar fora e
conciliar com o serviço de casa” (Informante 3, mulher, 32 anos).

26
Conforme os exemplos acima, podemos identificar a convivência de valores materialistas
(tradicionais) e pós-materialistas. Estes valores pós-materialistas são expressos por formas de
vida inovadoras, mas podem também ser expressos, por opção, através da revalorização de estilos
de vida tradicionais.

Quanto ao outro conjunto de atividades que são alvo deste estudo, as atividades de lazer
representam um importante indicativo de qualidade de vida e de autonomia sobre a organização
do próprio tempo, do ponto de vista individual. O lazer apresenta, prioritariamente, um caráter
liberatório, pois corresponde à liberação de um conjunto de obrigações institucionalizadas
(DUMAZEDIER, 1979). Nesse período de tempo, as pessoas podem executar as atividades de
interesse próprio livremente, sem os constrangimentos que as atividades institucionais impõem.
Além disso, elas apresentam um caráter desinteressado (DUMAZEDIER, 1979), o que significa
que tais atividades não estão ligadas à reprodução da vida, como o são as atividades de cuidados
pessoais e as atividades de trabalho remunerado, ou não têm uma finalidade material ou social,
sendo que a realização da atividade é um fim em si mesmo.

Como as atividades de lazer, portanto, se caracterizam por uma livre escolha individual, foi
suscitada a questão de quais são as pessoas que participam das atividades de lazer entre os
participantes dos grupos focais. Entre os participantes do grupo exclusivo de homens, todos
citaram a família como companhia durante a realização das atividades de lazer. Contudo, os
amigos também foram citados. Já entre as participantes do grupo exclusivo de mulheres foram
citadas atividades que são realizadas de forma individualizada, como a prática de esportes,
atividades realizadas a dois, como ir ao teatro ou dançar com o companheiro, e atividades
realizadas em família, como viajar. Já no grupo misto os participantes tiveram opiniões mais
divergentes: as mulheres foram mais enfáticas ao citarem as atividades de lazer realizadas com a
família. Como exemplo, os seguintes comentários:

...os meus momentos de lazer, se não tiver o meu marido e meu filho, para mim não está
bom. (Informante 3, mulher, 32 anos).

A família é importante, tem que ter momentos de lazer com a família. (Informante 2,
mulher, 46 anos).

27
Os homens, por sua vez, ficaram divididos entre comentários divergentes: um primeiro
citou que o seu tempo é dividido entre a família e os amigos:

...cinqüenta por cento com a família, cinqüenta por cento com os amigos (Informante 1,
homem, 44 anos)

Outro citou a atividade que pratica sem a presença da família:

...uma vez ou outra, ir no barzinho tomar uma aí é só eu, né? A mulher não gosta.
(Informante 5, homem, 33 anos)

E um terceiro que, como as mulheres desse grupo, foi enfático:

Eu saio sempre com a minha família (Informante 6, homem, 25 anos)

No grupo exclusivo dos homens a discussão sobre esta questão foi bem limitada. Mas é
importante observar que mesmo a maioria tendo citado a família como companhia, ao longo do
processo de entrevista foram citadas várias atividades que os mesmos realizam individualmente
ou com amigos. Talvez a pergunta feita de forma direta tenha produzido efeitos sobre as
respostas, levando os indivíduos a fornecerem informações que expressem valores socialmente
desejáveis e que nem sempre correspondem ao comportamento concreto. No caso do grupo
exclusivo de mulheres, apesar destas citarem atividades realizadas individualmente, ao longo das
discussões pode-se perceber que a família exerce forte influência sobre as escolhas. A família é
um fator limitante mais para a mulher do que para o homem no quesito das escolhas individuais.
Não que os homens não sofram tal influência, mas o fato é que estes últimos não se sentem tão
obrigados a levar em conta a família em todos os aspectos de sua vida pessoal.

Em outra questão sobre atividades diárias, entre os participantes do grupo misto, os homens
entenderam que a atividade que a figura masculina deve se preocupar mais é com o trabalho, o
sustento da casa e da família:

Mas a prioridade do homem, principalmente do homem casado, é tratar da família”


(Informante 1, homem, 44 anos).

Eu concordo que é o trabalho, porque é dali que vai sair o alimento. (Informante 6,
homem, 25 anos).

Eles também destacaram que as mulheres deveriam se dedicar mais à casa:

28
Mulher foi feita para fazer rango para nós comer. (Informante 1, homem, 44 anos)

Acho que a prioridade é a casa mesma. Porque se faltar o comível lá a preocupação é


nossa. (Informante 5, homem, 33 anos).

Já as mulheres deste grupo foram unânimes ao defenderem que devem dedicar mais tempo a si
mesmas, já que algumas se sentem oprimidas pelas obrigações familiares:

Gente, quanto tempo tenho me anulado e acho que estou acordando agora. (Informante 3,
mulher, 33 anos).

Como conseqüências, sugerem que os homens deveriam se dedicar ao trabalho, mas


também à família:

Eu acho que o homem dedica pouco tempo, pelo menos a maioria deles, à família
(Informante3, mulher, 32 anos);

...tem que trabalhar, mas também tem que chegar em casa, estar bem quando chegar, não
estar estressado” (Informante 2, mulher, 44 anos).

No grupo exclusivo de mulheres, as participantes afirmaram que o trabalho já é algo próprio da


identidade masculina e que, portanto, o esforço deveria se dar no sentido de se dedicar mais à
família:

Eu gostaria que meu marido dedicasse um tempo dele para a família. (Informante 13,
mulher, 49 anos).

Porque eu acho que os homens têm tempo para tudo! (Informante 9, mulher, 34 anos).

Eu acho que a educação dos filhos ainda fica muito sobre a mulher... (Informante 7,
mulher, 32 anos).

Entre os participantes do grupo exclusivo de homens, no geral, a opinião foi de que tanto o
homem, quanto a mulher, deveriam dedicar mais tempo à família. Para os homens, a preocupação
deveria ser o trabalho em primeiro lugar, mas também a família:

Para mim, é o trabalho! (Informante 18, homem, 43 anos)

29
Preocupo muito com o meu serviço... (Informante 17, homem, 45 anos)

...o que eu gostaria de dedicar mais tempo no dia era para a minha filha e a minha esposa
(Informante 1, homem, 31 anos).

O que se pode concluir desta discussão é que tanto para mulheres quanto para os homens, a
atividade que é socialmente imposta é o trabalho, seja ele remunerado ou não-remunerado. O
conjunto de atividades diárias que compõem o mundo do trabalho é caracterizado pelas
obrigações, pela interdependência entre as ações dos indivíduos e, principalmente, pelo objetivo
de produzir a própria existência. Isso se aplica tanto para um homem ou mulher que é empregado
em uma empresa quanto para uma dona-de-casa que se dedica apenas a casa e à família. Contudo,
é possível perceber que o imaginário social reserva às mulheres uma ligação muito forte com o
espaço doméstico, o que afeta de forma definitiva as escolhas e a experiência do lazer. Elas se
sentem bem mais limitadas, pois diferente da maioria das atividades de trabalho remunerado, as
quais apresentam um tempo de duração que deve ser calculado (já que devem ser revertidas em
capital), as atividades de trabalho não-remunerado, justamente pela ausência deste cálculo,
produzem um efeito menos nítido, contudo, muito intenso ao constranger as escolhas que recaem
sobre o tempo reservado ao lazer.

Conclusão

Ao discutir a percepção do tempo sob a perspectiva de gênero, consideramos as esferas pública e


privada da vida social. Apontamos que com relação a uma escala de valores na vida social
encontramos, no âmbito da vida conjugal, valores tradicionais e valores pós-modernos. Estes
valores são reflexos de uma vida social mais ampla. Os valores tradicionais são típicos de
sociedades que ainda não deram contam de resolver a questão de sobrevivência e qualidade de
vida (valores materiais) e os valores pós-modernos são típicos das sociedades que alcançaram
considerável nível de padrão econômico e social (valores pós-materialistas), segundo Inglehart
(1997). Pensando na sociedade brasileira, cujo nível de estratificação é bastante elevado e o
padrão de vida é consideravelmente desigual, levamos em conta que ainda que encontremos aqui
representações de modos de vida típico de valores pós-modernos, os valores tradicionais
permanecem dominantes. No âmbito doméstico as mulheres permanecem em acentuada
desvantagem hierárquica e esta desvantagem se expande para o âmbito social.

30
Ainda que consideremos o Brasil como um país cujos valores tradicionais são acentuados, não
podemos deixar de levar em conta que novos valores e estilos de vida estão gradativamente
emergindo e, consequentemente, a tolerância à diversidade cultural e a estes novos valores vai
ganhando terreno. As mulheres estão mais conscientes de que um tempo para si (o tempo
próprio) se faz urgente e que novos valores devem ser repensados, mas a tradição mantém a sua
força. O trabalho, remunerado ou doméstico (não remunerado) é a atividade socialmente imposta
que representa a dimensão das obrigações dos homens e mulheres, tanto do ponto de vista de
manutenção da vida, como da interdependência das ações. Neste sentido a dedicação a um tempo
próprio torna-se uma grande barreira para os homens e mulheres. Porém, para as mulheres esta
barreira se faz ainda mais intransponível porque a solidificação dos valores tradicionais no
âmbito público e privado as afetou de forma muito direta, limitando seu poder de decisão e de
escolhas individuais. Dessa maneira, ao pensar o seu tempo, as mulheres têm poucas
oportunidades para pensá-lo de forma mais livre e individualizada sem que possa incorporar em
suas decisões os companheiros e filhos.

A hipótese de um hiato de gênero é corroborada na medida em que as conhecidas desigualdades


de gênero que existem na dedicação ao trabalho remunerado e trabalho não-remunerado somam-
se a outra, a desigualdade com relação ao lazer. Mesmo que no geral se dediquem menos do que
os homens ao trabalho remunerado, as mulheres, devido à intensa dedicação aos cuidados com a
casa e a família, experimentam a famosa “dupla jornada de trabalho”, como ficou conhecido esse
fenômeno. Ele se reflete na vivência do lazer, dimensão na qual as mulheres apresentam grande
desvantagem em relação aos homens. Esta constatação é importante na medida em que o lazer é
um dos indicadores de qualidade de vida.

A chave para a explicação desse fenômeno é o tempo total de trabalho realizado pelas mulheres,
que é superior ao dos homens na maioria das vezes. É fato que todos os indivíduos tendem a
aumentar a dedicação ao trabalho não-remunerado no fim de semana, porém, a diferença de
gênero é tão intensa que não chega a compensar, no caso das mulheres, a menor dedicação ao
trabalho remunerado no mesmo período. Isso tem reflexos diretos sobre a disponibilidade de
tempo, e mesmo de energia, para realizar as atividades lazer.

31
Como dito anteriormente, estudos anteriores (SOUZA, 2007; SOUZA, NEUBERT, AGUIAR,
2005) já haviam detectado que representações tradicionais de modos de vida ainda dominam a
dimensão de gênero no Brasil. Ao comparar-se o registro do comportamento (ou o uso do tempo)
com a percepção que o indivíduo possui sobre ele foi possível constatar que o comportamento
masculino demonstra-se pouco compatível com o ambiente doméstico. Esse fato, aliado a uma
percepção mais individualizada sobre o uso do tempo, por parte do homem, parece fazer da
masculinidade uma identidade social mais compatível com o descanso, o divertimento e,
principalmente, com a liberdade.

Referências Bibliográficas

AGUIAR, Mark; HURST, Erik. Measuring trends in leisure: the allocation of time over five
decades. Quarterly Journal of Economics, v.122, n.3, p.969-1006, 2007.

______. Neuma Figueiredo de. Múltiplas temporalidades de referência: trabalho doméstico e


trabalho remunerado: análise dos usos do tempo em Belo Horizonte, Minas Gerais: um projeto
piloto para zonas metropolitanas brasileiras. (apoio CNPq) Belo Horizonte. 2000.

AGUIAR, Neuma. Grupo Doméstico, Gênero e Idade: análise longitudinal de uma plantação
canavieira. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG. Tese de concurso para professora titular
apresentada ao Departamento de Sociologia e Antropologia, 1996.

BOZON, Michel. Sociologia da Sexualidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

BRUSCHINI, Cristina “Gênero e Trabalho no Brasil: novas conquistas ou persistência da


discriminação? (Brasil, 1985/95)”. In: ROCHA, Maria Isabel Baltar (org.). Trabalho e Gênero:
mudanças, permanências e desafios. CEDEPLAR/UFMG/São Paulo: Ed. 34, 2000.

CASTELLS, 1996.

DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica do lazer. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979.

ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

ELIAS, Norbert; DUNNIG, Eric. El ocio en el espectro del tiempo libre. In: ______. Deporte y
ocio en el processo de la civilización. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992. p. 117-156.

FUESS, Scott M. Leisure time in Japan: how much and for whom? IZA Discussion Paper, no.
2002, March, 2006. Disponível em: < http://ftp.iza.org/dp2002.pdf>. Acesso em: maio de 2010.

32
GERSHUNY, Jonathan. FISHER, Kimberly. Leisure in the U.K. across the 20 th century. ISER
Working Papers, no. 1999-03. Disponível em:
<http://www.iser.essex.ac.uk/publications/working-papers/iser/1999-03.pdf>. Acesso em: maio
de 2010.

GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade, sexualidade, amor e erotismo nas


sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1992.

______. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Ed. UNESP, 1991.

GOLDONI, Ana Maria. “Famílias e Gêneros: Uma proposta para avaliar (des)igualdades”.
Mimeo, 1997.

INGLEHART, Ronald. Modernization and Postmodernization: cultural, economic


and political change in 43 societies. Princeton University Press. 1997.

______. Culture Shift in advanced industrial society. Princeton


University Press. 1990.

MATOS, Marlise Reinvenções do Vínculo Amoroso: cultura e identidade de gênero na


modernidade tardia. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000.

MORGAN, David L. Focus Group As Qualitative Research. CA: Thousand Oaks. 1997.

NOVOTNY, Helga. Time: The modern experience. The modern and postmodern experience.
Oxford and Cambridge: The Polity Press ans Blackwel, 1984.

PASTORE, José; DO VALLE SILVA, Nelson. Mobilidade Social no Brasil. São Paulo: Makron
Books, 2000.

ROBINSON, John; GODBEY, Geoffrey. Time for life: the surprising ways americans use their
time. The Pennsylvania State University Press, 1997.

SCHOR, Juliet. The overworked american: the unexpected decline of leisure. New York: Basic
Books, 1992.

SOUZA, Márcio Ferreira de. A percepção do tempo na vida cotidiana sob a perspectiva de
gênero: o dia-a-dia em Belo Horizonte. 2007. 208 f. Tese (Doutorado em Sociologia) –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2007.

SOUZA, Márcio Ferreira de, NEUBERT, L. F., AGUIAR, Neuma. Um estudo da percepção de
usos do tempo sob a perspectiva de gênero. Sociedade e Cultura. , v.8, p.53 - 69, 2005.

33

Você também pode gostar