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Eugène Ionesco
PERSONAGENS
CHUBERT
MADELEINE
O POLICIAL
NICOLAS D’EU
A DAMA
MALLOT COM UM T
CHUBERT: E para as pessoas que moram no térreo, quando abrem suas janelas
de manhã, elas acabam vendo isso e ficando nervosas o dia inteiro.
MADELEINE: Todo o resto já foi tentado. Nada foi dado. Não é talvez a culpa de
alguém.
MADELEINE: O que você deseja, meu pobre amigo? A lei é necessária, sendo
necessária e indispensável, ela é boa, e tudo que é bom é agradável. É de fato
muito agradável obedecer às leis, ser um bom cidadão, cumprir com seu dever,
possuir uma consciência pura!
CHUBERT: Sim, Madeleine. No fundo, é você quem tem razão. A lei tem seu lado
bom.
MADELEINE: Evidentemente.
Chubert se senta.
Silêncio.
CHUBERT: Você, que vai com frequência ao cinema, gosta muito do teatro.
CHUBERT: O que você acha do teatro de hoje em dia? Quais são suas
concepções teatrais?
MADELEINE: De novo seu teatro! Você está obcecado, isso vai virar uma psicose.
CHUBERT: Você acha, de verdade, que podemos fazer algo novo no teatro?
MADELEINE: Vou repetir a você que não há nada de novo debaixo do sol. Mesmo
quando não há sol.
Silêncio.
CHUBERT: Você tem razão. Sim, você tem razão. Todas as peças que já foram
escritas, desde a antiguidade até os dias de hoje, só foram policiais. O teatro
nunca foi mais do que realista e policial. Toda peça é uma investigação feita para
uma conclusão. Existe um enigma que é revelado na última cena. Às vezes antes.
Se procurarmos, encontraremos. Seria melhor revelar desde o início.
MADELEINE: E inconfessáveis…
MADELEINE: De fato.
CHUBERT: Você vê, é o teatro enigmático, o enigma é policial. Isto tem sempre
sido assim.
MADELEINE: Você tem ideias originais. Elas são talvez justas. Você deveria ainda
procurar aconselhamento de pessoas autorizadas.
CHUBERT: Que pessoas?
Silêncio.
Madeleine reacomoda suas meias.
Chubert lê seu jornal.
Ouvem-se batidas numa porta que não é a do cômodo onde Chubert e Madeleine
se encontram. Contudo, Chubert levanta a cabeça.
MADELEINE, sem violência: Não é da nossa conta. Não somos zeladores, meu
amigo. Na sociedade cada um tem sua missão social bem determinada.
POLICIAL, na soleira da porta: Boa noite, Senhor. (Em seguida à Madeleine, que
por sua vez já se levantou e se dirige também em direção à porta.) Boa noite,
Senhora.
CHUBERT: Boa noite, Senhor. (À Madeleine:) É o Policial.
POLICIAL, avançando num passo um pouco tímido: Com licença, Senhora,
Senhor, eu gostaria de pedir uma informação à zeladora, a zeladora não está em
casa…
MADELEINE: Naturalmente.
CHUBERT: A zeladora deve retornar em breve, Senhor. Ela só sai, a princípio, aos
sábados à noite para ir ao baile. Ela tem ido ao baile todo sábado à noite desde
que sua filha se casou. Como hoje é uma noite de terça-feira…
POLICIAL, consultando seu relógio de pulso: Percebo que não tenho mais tempo,
já estou atrasado.
MADELEINE, à parte: Ele tem um relógio de ouro!
CHUBERT, à parte: Ela já percebeu que ele tem um relógio de ouro!
POLICIAL: … enfim, por cinco minutos, pela insistência dos senhores… mas não
poderei… breve…vou embora, se assim o querem, com a condição de que me
deixarão partir posteriormente…
MADELEINE: Fique tranquilo, caro Senhor, não vamos segurá-lo à força… venha
descansar por um instante.
Ele pronunciou esta frase levando seu olhar à Madeleine, e em seguida a Chubert,
fixando-o longamente.
Madeleine os retira.
POLICIAL: Não devemos tratar disto neste momento! (O Policial tira uma foto de
seu bolso, mostrando-a a Chubert: ) Trate de refrescar a memória, veja esta foto, é
o Mallot? (O tom do Policial vai ficando cada vez mais duro; depois de um instante:
) É o Mallot?
CHUBERT, após ter examinado, com muita atenção, a foto por um longo tempo,
descrevendo a figura do homem: É um homem nos seus cinquenta anos…
sim…consigo ver… Ele não se barbeava há dias… Ele trazia no peito uma placa
com o número 58.614… Sim, é isso, 58.614.
CHUBERT: Quando que eu o conheci? (Ele pega sua cabeça com as mãos.) O
que ele me dizia? O que ele me dizia?
POLICIAL: Responda!
POLICIAL, dando batendo na mesa: Você é bem gentil, mas isso não lhe diz
respeito. Ocupe-se de suas coisas. Você me falava de um lugar à beira
mar… (Chubert se cala.) Você está me ouvindo?
MADELEINE, impressionada, numa mistura de medo e admiração pelo gesto e
autoridade do Policial, a Chubert): O senhor está te perguntando se você o ouve?
Responda, vamos!
CHUBERT: Sim, senhor.
CHUBERT: Sim, eu devo tê-lo conhecido neste lugar. Devíamos ser jovens!…
POLICIAL: Você não o vê aqui! Você não vê aqui! Vejamos isso! Mas onde então?
Nos bistrôs? Beberrão! E se diz um homem casado!
CHUBERT: Refletindo bem, suponho que Mallot com um t deve estar lá embaixo,
embaixo…
POLICIAL: Então desça.
MADELEINE, com sua voz melodiosa: embaixo, embaixo, embaixo, embaixo…
MADELEINE: Não é o suficiente, querido, meu amor, não é! (Ela encanta Chubert
de uma maneira lânguida, quase obscena; então ela se ajoelha diante dele,
obrigando-o a dobrar os joelhos.) Não fique com as pernas retas! Atenção, não
deslize! Os degraus estão molhados… (Madeleine está levantada.) Veja bem o
corrimão… Desça… desça…se você me deseja!
CHUBERT: Madeleine!
CHUBERT: Estou caminhando pela lama. Ela está grudando nas minhas solas…
Como meus pés estão pesados! Estou com medo de escorregar.
POLICIAL: Não tenha medo. Desça, elimine os obstáculos, vire à direita, vire à
esquerda.
Virando de costas para a sala, ele pega Madeleine pela mão e, com uma voz de
aparência idosa, fazem de conta que estão correndo e os dois cantam. Suas vozes
estão quebradas, misturadas com soluços.
Chubert retoma sua caminhada e Madeleine volta ao seu estado da cena anterior.
MADELEINE: Força!
POLICIAL: Procure pelo Mallot, Mallot com um t. Você está vendo o Mallot? Você
está vendo o Mallot?… Você se aproxima dele?
MADELEINE: Mallot… Mallo-o-o-o…
CHUBERT, sempre com os olhos fechados: É melhor eu abrir bem meus olhos…
POLICIAL: Ainda não é o suficiente. Não se afunde na lama. Você ainda está
longe do Mallot.
Gemidos de Chubert
POLICIAL: O nariz…
MADELEINE: O nariz…
POLICIAL: Os olhos…
MADELEINE, a Chubert, bem alto: Abaixe ainda mais sua testa, meu amor!…
Desça! (Ao Policial: ) Ele sempre foi meio surdo.
POLICIAL: Ainda se pode ver uma ponta da orelha.
Silêncio. Chubert está de fato muito num lugar bem profundo. Avança com
dificuldade e com os olhos fechados como se estivesse no fundo d’água.
Escuridão. Ouvem-se vozes dos personagems, mas não é possível vê-los neste
momento.
MADELEINE: Oh! Meu pobre querido! Tenho medo por ele. Não voltarei a ouvir
sua voz tão adorada…
POLICIAL, à Madeleine, com dureza: Voltaremos a ouvir sua voz. Não complica a
situação com seus gemidos.
MADELEINE: Ele está em perigo! Ele está em perigo! Não devia ter me sujeitado a
este jogo.
POLICIAL: Ele voltará para ti, Madeleine, teu tesouro, talvez com atraso, mas
voltará com certeza. Ele não terminou de fazer o que vemos. Isso tem a pele dura.
MADELEINE, chorando: Eu não deveria ter feito isso. Me fez mal! Em que estado
deve estar meu pobre querido?
POLICIAL: Cale-se, Madeleine. Você tem medo de que, se está comigo? Estamos
os dois sozinhos, minha linda. Ele a abraça vagamente e depois a solta.
MADELEINE, chorando: O que fizemos! Mas era necessário, não é? Tudo isso é
legal?
POLICIAL: Claro, não tenha medo. Ele voltará a ti. Coragem! Eu também gosto
dele.
MADELEINE: De verdade?
POLICIAL: Ele voltará a nós, por um desvio… Ele reviverá em nós. (Gemidos nos
bastidores) Ouça… Sua respiração.
MADELEINE: Sim, sua respiração adorada.
Suas palavras são abafadas pelos gemidos. Ele sai pela direita enquanto
Madeleine e o Policial retornam pela esquerda. Estes dois últimos se
transformaram em dois personagens diferentes do que atuavam na cena seguinte:
MADELEINE: Você é um infame. Me humilhou, me torturou durante toda uma vida.
Me desfigurou moralmente. Me envelheceu. Me destruiu. Não te aguentarei mais.
MADELEINE: Você vai ficar bem livre, vai se sentir satisfeito! Quer se livrar de
mim, não é? Eu sei! Eu sei!
Chubert reaparece e, de longe, sem dizer uma palavra, como se fosse impotente,
presencia a cena retorcendo as mãos; tudo que se pode ouvir balbuciar é: “Pai,
mãe, pai, mãe…”
O Policial se dirige à Madeleine, a toma pelo braço para impedir que tome o
veneno e, de repente, enquanto a expressão de seu rosto muda, é ele que a força
beber.
Chubert dá um grito. Escuridão. Outra vez luz. Ele está sozinho em cena.
CHUBERT: Tenho oito anos e anoitece. Minha mãe me leva pela mão pela rua
Blomet após o bombardeio. Passamos juntos pelas ruínas. Tenho medo. A mão de
minha mãe treme na minha. As silhuetas surgem entre os destroços das paredes.
Somente seus olhos brilham na sombra.
CHUBERT: Ela diz, tristemente, tristemente: Você ainda verterá muitas lágrimas.
Vou te abandonar, filho meu, meu filhotinho…
MADELEINE: Minha pobre criança, pela noite, na lama, sozinho, meu filhotinho…
CHUBERT: na mesma posição: Ele não quer me olhar… Não quer falar comigo…
VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação), enquanto segue na mesma
atitude: Você nasceu, meu filho, justo no momento quando eu ia dinamitar o
planeta. Foi seu nascimento que o salvou. Você me impediu, pelo menos, de matar
o mundo no meu coração. Me reconciliei com a humanidade, você me ligou
indissoluvelmente à sua história, suas desgraças, seus crimes, suas esperanças,
suas desesperanças. Eu tremia por sorte dele… e pela sua.
CHUBERT, o mesmo, enquanto o policial segue na mesma atitude: Nunca
poderia…
VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação): Sim, apenas você tinha
surgido do nada, me senti desarmado, ofegante, feliz e infeliz, meu coração de
pedra se transformou em uma esponja, em um trapo, senti uma vertigem de um
remorso sem nome ao pensar que não quisera ter tido descendente, e que tivera
tratado de impedir sua vinda ao mundo! Você poderia não ter existido, você
poderia não ter existido! Isto me fez sentir um enorme pânico retrospectivo; um
pesar doloroso, pelas milhares de crianças que poderiam ter nascido e que não
nasceram, pelos inúmeros rostos que nunca serão acariciados, pelas mãozinhas
que nunca serão tomadas pelas mãos de pai algum, pelos lábios que jamais
balbuciarão. Quisera preencher o vazio com a existência. Imaginava todas estas
criaturinhas que não tinham chegado a existir, queria cria-las em minha mente
para poder chorar por elas pelo menos como verdadeiros defuntos.
CHUBERT, o mesmo, enquanto o policial segue na mesma atitude: Se calará para
sempre!
VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação): Porém, ao mesmo tempo, uma
alegria transbordante me invadia, pois você existia, meu querido filho, estrela
tremulante num oceano de trevas, ilha de existência rodeada de nada, você, cuja
existência anulava o nada. Beijava seus olhos chorando e suspirava: “Meu Deus,
Meu Deus!” Eu estava agradecido a Deus, pois se não tivesse existido a criação, si
não tivesse existido a história universal, os séculos e séculos, você não teria
existido, meu filho, que era o resultado da história do mundo. Você não teria
existido se não tivesse havido o desencadeamento sem fim de causas e efeitos, e
entre estes as guerras, todas as revoluções, os dilúvios, as catástrofes sociais,
geológicas, cósmicas, pois tudo isso é o resultado da série de causas universais, e
você, meu filho, também. Agradecia a Deus por toda a miséria e toda a miséria dos
séculos, todas as desgraças, todas as felicidades, as humilhações, os horrores, as
angústias, pela grande tristeza, pelas quais se havia produzido o seu nascimento,
que justificava e redimia, na minha opinião, todos os desastres da História.
Perdoava o mundo por amor a você. Tudo estava salvo porque nada poderia
apagar a existência universal, o fato de seu nascimento. Mesmo quando você não
existir mais, eu me dizia, nada poderá impedir o fato de você ter existido. Você
estava ali, inscrito para sempre nos registros do universo solidamente fixo na
memória eterna de Deus.
CHUBERT, o mesmo, mesma atitude do Policial: Nunca falará, nunca, nunca…
VOZ DO POLICIAL, mudando de tom: E você… quanto mais orgulhoso estava de
você, quando mais te amava, mais você me desprezava, me acusava de todos os
crimes, dos que eu tinha cometido e dos que eu não tinha cometido. Tinha sido
sua mãe, a coitada. Mas quem pode saber o que aconteceu entre nós, se é culpa
dela, se é culpa minha, se é culpa dela, se é culpa minha…
CHUBERT, o mesmo. Mesma atitude do Policial: Não falará mais, é minha culpa, é
minha culpa!
VOZ DO POLICIAL (ou ele mesmo, na encenação): Por mais que você me
renegue, por mais que você tenha vergonha de mim, que insulte minha memória,
não guardo rancor de você. Não posso mais odiar. Eu perdoo, ao meu pesar. Devo
a você mais do que você me deve. Não desejaria que você sofresse, queria que
você não se sentisse culpado. Esqueça isto que você acha que é sua culpa.
CHUBERT: Pai, por que você não fala comigo, por que não quer responder?…
Jamais, ah, jamais voltarei a ouvir sua voz!… Jamais, jamais, jamais! Jamais
poderia..
POLICIAL: Ah! Seus complexos! Não vamos nos aborrecer com isso! Seu pai, sua
mãe, o amor filial! … Isto não é da minha conta, não sou pago para isso. Siga seu
caminho.
CHUBERT: Meu rosto está molhado por meu pranto. Onde está a beleza? Onde
está o bem? Onde está o amor? Eu perdi a memória.
POLICIAL, à Madeleine: Suponho que ele esteja evocando seu passado, querida
amiga.
MADELEINE: Se todos nós evocássemos o nosso, aonde iriamos parar? Todos
nós teríamos coisas a dizer. Nós nos resguardamos bem de fazê-lo. Por modéstia,
por pudor.
CHUBERT: … Outrora… Um grande vento se levanta…
MADELEINE: Compreendo.
O POLICIAL, gritando com Chubert, e voltando aos poucos a ser o Policial, mesmo
que aos poucos, um espectador assustado): Você vê sua sombra negra se
destacar na luz? Ou talvez sua silhueta luminosa destacar-se na escuridão?
CHUBERT: Os fogos são menos claros agora, o palácio menos brilhante, tudo se
ensombrece.
POLICIAL, a Chubert: Diga-nos, pelo menos, o que você está sentindo. Quais são
seus sentimentos? Diga-nos.
MADELEINE, ao Policial: Querido amigo, seria melhor se passássemos o resto da
noite no cabaré.
CHUBERT, seguindo sua representação: …Uma alegria… dor… um
desprendimento… um apaziguamento… Plenitude… Vazio… Uma esperança
desesperada. Sinto-me forte, sinto-me fraco, sinto-me mal, sinto-me bem, porém
sinto-me, sobretudo, sinto-me…
Aplaudem.
A cabeça de Chubert reaparece entre as cortinas do pequeno palco e desparece
novamente.
POLICIAL: Chubert! Chubert! Chubert! Você me ouve bem: tem que encontrar o
Mallot. É questão de vida ou morte. E seu dever. A sorte de toda a humanidade
depende de você. Não é tão difícil, basta que você se lembre. Lembre e tudo vai
se esclarecer novamente. (à Madeleine) Tinha descido demais. Ele tem que voltar
a subir… um pouco… em nossa estima.
MADELEINE, timidamente, ao Policial: De fato, ele se sentia bem.
POLICIAL, a Chubert: Você está aí? Está aí?
CHUBERT: Ouço os mananciais. Asas chocam-se com meu rosto. Tenho o mato
pela cintura. Não há atalhos. Madeleine, dê-me sua mão.
CHUBERT: É muito cedo. As janelas estão fechadas. O lugar está deserto. Uma
fonte, uma estátua. Corro e o eco de meus sapatos…
POLICIAL: Prossiga.
POLICIAL: Suba.
CHUBERT: Uma raposa, o último animal. E uma coruja cega. Não há pássaro.
Não há fontes… Nem rastros… Não há eco. Recorro o horizonte.
POLICIAL: Você está o vendo?
CHUBERT: É o deserto.
POLICIAL: Não pare para enxugar a testa. Você fará isso mais tarde. Mais tarde.
Suba.
MADELEINE: Já! (ao Policial): Acredite em mim, senhor Inspetor Principal, isto não
é surpreendente. Ele não é capaz.
POLICIAL, a Chubert: Preguiçoso!
MADELEINE, ao Policial: Ele sempre tem sido preguiçoso. Nunca chega a nada.
CHUBERT: Não há um canto de sombra. O sol está enorme. Uma fornalha. Eu me
afogo. Eu me frito.
POLICIAL: Ele não deve estar muito distante, veja você, arde.
MADELEINE, muito rápido, ora ao Policial, ora a Chubert: Mais alto… Ele já está
sem fôlego… mais para cima… Não deve se levantar demais por cima de nós.
Será melhor que você desça. Mais para cima. Mais para baixo. Mais para cima.
CHUBERT, continuando sua subida, imóvel: É difícil estar sozinho no mundo! Ah,
se eu tivesse tido um filho!
MADELEINE: Eu preferia ter tido uma filha. Os meninos são tão ingratos!
CHUBERT: Eis aqui, eis aqui. Aqui estou. A plataforma! … Pode-se ver pelo céu,
nenhum rastro de Montbéliard.
CHUBERT: Não há mais cidade, nem bosque, nem valle, nem mar, nem céu.
Estou sozinho.
MADELEINE: Aqui seríamos dois.
CHUBERT: Estou só. Perdi o pé. Não sinto a vertigem… Não tenho mais medo de
morrer.
MADELEINE: Pense em nós. A solidão não é boa. Você não pode nos deixar…
Tenha piedade, piedade! (Ela é uma mendiga). Não tenho pão para dar aos meus
filhos. Tenho quatro filhos. Meu marido está na prisão. Estou deixando o hospital.
Meu bom senhor… bom senhor… (ao Policial): Ele me fez o ver!… É possível me
ouvir agora, Senhor Inspetor Principal?
Para fazer com que Chubert desça, Madeleine e o Policial apresentam a ele todas
as vantagens da vida cotidiana e social. A ação do Policial e de Madeleine é cada
vez mais grotesca, até tornar-se uma espécie de palhaçada.
CHUBERT: É uma manhã de junho. Respiro um ar mais leve que o próprio ar.
Estou mais leve que o ar. O sol se dissolve numa luz maior que o próprio sol.
Passo através de tudo. As formas desapareceram. Subo… Subo… Uma luz que
flui… Subo…
MADELEINE: Ele está escapando! … Eu lhe havia dito, Senhor Inspetor, eu lhe
havia dito. Não quero, não quero. (Falando em direção a Chubert): Leve-me pelo
menos contigo.
POLICIAL, a Chubert: Você não me vai fazer isso… Eh! Eh!… Canalha!
CHUBERT, sem representar, falando a si mesmo: Posso jogar-me… por cima…
Posso pular… um passo… rápido… um…
POLICIAL, em marcha militar: Um, dois. Um, dois… Eu te ensinei a manusear as
armas, você era oficial da companhia… Não vai fazer-se de surdo, você não é um
desertor… Não vai faltar com respeito ao seu ajudante!… A disciplina! (Toca a
corneta.)... A pátria que te viu nascer precisa de ti.
MADELEINE, a Chubert: Vou lutar por ti.
POLICIAL, a Chubert: Você tem a vida, uma carreira diante de ti! Você será rico,
feliz e burro! Você será chefe do Danúbio. Eis aqui sua nomeação. (Ele mostra a
Chubert, que não vê, um papel: O Policial e Madeleine são os que dão agora o
espetáculo).
POLICIAL, a Madeleine: Contato que você não escape, nada está perdido…
MADELEINE, a Chubert, que continua imóvel: Eis aqui ouro, Eis aqui frutas…
POLICIAL: Serviram a ti numa bandeja as cabeças de seus inimigos.
MADELEINE: Papa!
CHUBERT, sem ver nem ouvir os outros: Eu me deslizo pela passarela, muito alto,
posso voar!
Madeleine chora.
MADELEINE: Oh, Senhor Inspetor Principal! Geral????
POLICIAL, à Madeleine: Uma idiota! Sim, uma idiota… idiota… idiota! (Se volta
bruscamente em direção a Chubert) A primavera é bela em nossos vales, o
inverno é suave neles, nunca chove no verão…
MADELEINE, ao Policial, choramingando: Fiz tudo o que pude, Senhor Inspetor
Principal. Fiz tudo o que pude.
POLICIAL, à Madeleine: Tonta! Idiota!
MADELEINE: O senhor tem razão, Senhor Inspetor Principal.
MADELEINE e o POLICIAL, agarrados a Chubert: Não! Não! Não! Não faça isso!
CHUBERT: Banho-me na luz. (Escuridão total em cena). A luz me penetra. Estou
Assombro-me por existir, por existir, por existir…
CHUBERT: Você está aqui, Senhor Inspetor Principal? Como conseguiu entrar em
minhas lembranças?
POLICIAL, a Chubert: Vamos! Levante-se! (Ele lhe puxa pelas orelhas para
levantá-lo). Se não tivesse estado presente… Eu não teria retido… Você é
inconsistente, você é leve demais, não tem memória, você se esquece de tudo,
você o esquece, você esquece o teu dever. Eis aqui seu defeito. Você é pesado
demais, você é muito leve.
POLICIAL: Coma!
POLICIAL: Ordeno que você coma, para que tenha forças, para tapar os buracos
de sua memória!
CHUBERT, que mastiga sem parar: Meu dente quebrou, estou sangrando!
POLICIAL: Mais rápido, vamos! Depressa! Mastigue! Mastigue! Engula!
NICOLAS: O teatro atual, de fato, é ainda prisioneiro de suas velhas formas, ele
não passou além da psicologia de Paul Bourget…
NICOLAS: Constato, no entanto, para sua honra, que o senhor está a par do
assunto.
POLICIAL: Engula!
CHUBERT, com a boca cheia: Estou tentando… Estou… fazendo…o que posso!
Não posso…
NICOLAS, ao Policial, compenetrado por seus esforços de fazer com que Chubert
coma: O senhor já pensou também na realização prática deste teatro novo?
POLICIAL, a Chubert: Pode sim! Você não quer! Todo mundo pode! Tem que
querer, você pode fazer muito bem! (A Nicolas): Desculpe-me, caro senhor. Não
posso falar-lhe neste momento, não tenho o direito, estou no meu horário de
trabalho!
CHUBERT: Deixe-me engolir aos pedacinhos!
POLICIAL: Sim, mas, mais rápido, mais rápido, mais rápido! (A Nicolas):
Voltaremos a discutir este assunto!
CHUBERT, com a boca cheia (está ao nível mental de um bebê de dois anos e
soluça): Ma-ma-ma-de-lei-lei-ne!!!
POLICIAL: Chega de besteira! Cale a boca! Engula! (A Nicolas, que não o ouve
mais, pois está absorvido por suas meditações): Ele tem anorexia. (A Chubert):
Engula!
CHUBERT, ao passar a mão pela testa para enxugar seu suor, tem uma náusea:
Maa-de-leine!
POLICIAL, com a voz estridente: Cuidado! Não vomite, já que isso não servirá de
nada. Farei com que você engula o que vomitar.
CHUBERT, levando as mãos os ouvidos: Isto faz meus ouvidos doerem, Senhor
Inspetor…
POLICIAL, gritando sem parar: …Principal!
CHUBERT, com a boca cheia, as mãos nos ouvidos: …Principal!
POLICIAL: Escute bem o que te digo, Chubert, escute. Tire as mãos das orelhas,
não as tape, senão as taparei eu mesmo, aos tapas… Ele tira as mãos à força.
NICOLAS, que, desde as últimas réplicas, parece seguir a cena com o maior
interesse): Mas… mas… o que vocês fazem aqui?
POLICIAL, a Chubert: Engula! Mastigue! Engula! Mastigue! Engula! Mastigue!
Engula! Mastigue! Engula! Mastigue! Engula!
CHUBERT, com a boca cheia, diz palavras incompreensíveis: E…gl….o
comm…sab…lumnas…ivas….ilhas…
POLICIAL, a Chubert: O que você disse?
CHUBERT, que cospe na mão o que tinha na boca: O que o senhor sabe? Como
são belas as colunas dos templos e os joelhos das moças!
NICOLAS, do seu lugar, ao Policial que continua ocupado de sua tarefa, não o
escuta: Mas o que o senhor faz com esta criança?
POLICIAL, a Chubert: Você diz besteiras ao invés de engolir! À mesa, não se deve
falar! Vejam este moleque! Não tem vergonha! Não tem filhos! Engula tudo!
Rápido.
CHUBERT: Sim, Senhor Inspetor Principal… (Ele volta a colocar na boca o que
havia cuspido na mão e, em seguida, com a boca cheia, encara o Policial): Pronto,
já fiz.
POLICIAL: E isso também. (Ele coloca na boca de Chubert uma outra fatia de
pão). Mastigue! Engula!
CHUBERT, que se esforça penosamente para mastigar e engolir, sem conseguir):
…dêra….érro…
POLICIAL: O quê?
NICOLAS, ao Policial: Ele quer dizer madeira, ferro. Ele não poderá engolir. O
senhor não vê? (À Senhora impassível): Não é, senhora?
POLICIAL, a Chubert: Isto é má vontade dele!
MADELEINE, que entra uma última vez com as xícaras, que coloca sobre a mesa;
ninguém tocará nelas, ninguém prestará atenção: Aqui está o café. É chá!
NICOLAS, ao Policial: Ele está se esforçando, a pobre criança! Esta madeira, este
ferro, tudo está entalado em sua garganta!
MADELEINE, a Nicolas: Se ele quiser se defender, ele poderá fazer isso sozinho!
POLICIAL, a Chubert: Mais rápido, mais rápido, te digo! Engula tudo de uma vez!
Exasperado, o Policial vai em direção a Chubert, abre-lhe a boca, se prepara a lhe
forçar seu pinho em sua garganta; previamente, o Policial terá arregaçado a
manga.
Nicolas, bruscamente, se levanta, se aproxima, em silêncio e com um tom
ameaçador ao Policial, se planta imóvel diante dele)
MADELEINE, pasma: O que está acontecendo?
O Policial solta a cabeça de Chubert, que olha para o palco sem se levantar da
cadeira, nem deixar de mastigar, sem falar; o Policial está estupefato com a
intervenção de Nicolas; com uma voz diferente, tremulante, quase chorosa, ele diz
a Nicolas):
POLICIAL, a Nicolas: Mas, senhor Nicolas d’Eu, não faço senão mais do que
cumprir meu dever. Não estou aqui para perturbá-lo! Devo averiguar onde se
encontra Mallot, com um t só no final. Não há outro método. Não tenho escolha.
Quando ao amigo do senhor, que também se tornará meu amigo, espero, um
dia… (Ele mostra Chubert sentado, engasgado, que olha e mastiga)… Eu o
estimo, sim, de verdade! O senhor também, meu caro Senhor Nicolas d’Eu,
também lhe estimo. Ouvi falar bastante sobre suas obras, sobre o senhor…
MADELEINE, a Nicolas: O senhor te estima, Nicolas.
NICOLAS, ao Policial: O senhor mente!
POLICIAL e MADELEINE: Oh!!
Chubert mastiga e engole, com uma boa vontade heroica. Contempla o palco,
também assustado. Ele parece se sentir culpado; sua boca está cheia demais para
poder intervir.
MADELEINE: Vejamos, vejamos, mas vejamos…
CHUBERT, gritando: Já não tenho mais dores, já engoli tudo! Já engoli tudo!
CHUBERT: Não tenho mais dores, engoli tudo, não tenho mais dores! Ele se
levanta, caminha com alegria pelo tablado, dá pequenos saltos.
MADELEINE, a Nicolas, que parece ser cada vez mais perigoso ao Policial: Você
não vai violar as leis da hospitalidade!
POLICIAL, a Nicolas, defendendo-se: Não quis perturbar seu amigo! Eu lhe juro! É
ele que me fez entrar aqui a força. Eu não queria, eu estava com pressa… Eles
insistiram…Os dois…
MADELEINE, a Nicolas: Ele disse a verdade!
CHUBERT, da mesma forma que anteriormente: Não tenho mais dores, engoli
tudo e posso ir brincar!
NICOLAS, cruel e frio, ao Policial: Corrijam-se. Não é esta razão pela qual tenho
rancor! Isto é dito em tal tom que Chubert interrompe suas brincadeiras. Todo
movimento acaba, os personagens têm seus olhos fixos em Nicolas, árbitro da
situação.
POLICIAL, articulando com dificuldade: Por que então, meu Deus? Eu não lhe fiz
coisa alguma!
CHUBERT: Nicolas, jamais poderia acreditar que você fosse capaz de semelhante
ódio.
POLICIAL: Sim, estou com frio! Ah!!! Ele grita, pois Nicolas dá voltas ao seu redor
a passos lentos, agitando a faca.
MADELEINE: No entanto, os radiadores funcionam muito bem… Nicolas, seja
prudente!
POLICIAL: Socorro!
MADELEINE, sem dar um passo, nem Chubert também: Nicolas, você ficou todo
vermelho! Atenção, cuidado com a apoplexia! Vejamos, Nicolas, você poderia ter
sido seu pai!
Nicolas fere o Policial com sua faca uma vez, que gira sobre si mesmo.
CHUBERT: Tarde demais para impedir.
NICOLAS, ao corpo do Policial: Não. Seu sacrifício não terá sido em vão. (A
Chubert): Você vai me ajudar.
CHUBERT: Ah, não! Não quero mais recomeçar!
MADELEINE, a Chubert: Você não tem coração, é preciso fazer qualquer coisa por
ele, vejam! Ela mostra-lhe o Policial.
CHUBERT, batendo o pé como uma criança triste, choramingando: Não! Não
quero! Não! Não quero!
MADELEINE: Não gosto dos maridos desobedientes! O que querem dizer estes
modos? Você não tem vergonha? (Chubert chora, mas parece resignar-se).
NICOLAS, que se senta no lugar do Policial e dá um pedaço de pão a
Chubert: Vamos! Coma, coma, coma, para tapar os buracos da sua memória!
CHUBERT: Não estou com fome!
CHUBERT, que pega o pão e morde a parte de dentro dele: Isto faz mal!
NICOLAS, com a voz do Policial: Nada de chiliques! Engula! Mastigue! Engula!
Mastigue!
CHUBERT, de boca cheia: Eu também, eu sou uma vítima do dever!
NICOLAS: Eu também.
CORTINA
Setembro de 1952.
NOTAS DO TRADUTOR: