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Anais

Encontro de
FENOMENOLOGIAS
do Vale do São Francisco
II Ciclo de Debates sobre Pesquisa
e Fenomenologia

30 de Maio a 01 de Junho de 2019


Petrolina - PE

Dimensões ampliadas da Psicologia Fenomenológica:


fazer crítico e social da prática e da pesquisa
Anais do Encontro de Fenomenologias e
II Ciclo de Debates sobre Fenomenologia e Pesquisa

Erika Höfling Epiphanio


Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Clara Maria Miranda de Sousa
Sonha Maria Coelho de Aquino

(Organizadores)

REALIZAÇÃO

Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Infâncias e Educação Infantil


Anais do Encontro de Fenomenologias e
II Ciclo de Debates sobre Fenomenologia e Pesquisa

Concepção da Obra

Comissão Científica do Fenovale 2019

Capa /Ilustração /Diagramação

Emanoela Souza Lima

Preparação /Revisão

Organizadores

Fenovale (1.: 2019: Petrolina, PE).


A532 Anais do I Encontro de Fenomenologias do Vale do São Francisco e II
Ciclo de debates sobre Fenomenologias e Pesquisa / Organizador: Erika
Hofling Epiphanio et al. [Recurso eletrônico].– Petrolina: UNIVASF, 2019.
205 p.: il.

ISBN: 978-85-5322-080-9

1. Fenomenologia - Encontro. 2. Fenomenologia - Educação - Saúde. 3.


Psicologia. 4. Prática - pesquisa. I. Ribeiro, Marcelo Silva de Souza. II.
Sousa, Clara Maria Miranda de. III. Aquino, Sonha Maria Coelho de. IV.
Título. V. Universidade Federal do Vale do São Francisco.
CDD 142.7

Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Integrado de Bibliotecas da UNIVASF.


Bibliotecário: Fabio Oliveira Lima CRB-4/2097.
S UMÁRIO

Apresentação...........................................................................................................p. 5
Informações Gerais................................................................................................. p. 6
Comissão Organizadora...........................................................................................p. 7
Convidados/as......................................................................................................... p. 8
Programação..........................................................................................................p. 11
Mesa de Diálogos - Fenomenologia e Educação: um olhar sobre a infância.............. p. 14
1. Infâncias em contexto de desenvolvimento: uma perspectiva fenomenológica e
fenomenologia e educação...................................................................................p. 14
2. Gestalt-terapia com crianças e o método fenomenológico de intervenção............p. 18
3. Sentido de «Ser-Edupolítico» na escola contemporânea.....................................p. 24
Palestra Mágna - Olhares fenomenológicos sobre o humano.....................................p. 29
Mesa de Diálogos - O olhar da Fenomenologia para a Saúde Mental.........................p. 33
1. Saúde Mental é saúde vivida na coexistência.................................................... p. 33
Mesa de Diálogos - Discutindo a escuta na perspectiva fenomenológica.................... p. 38
1. Escuta(dor): conhece(dor) e cuida(dor) de si e do outro..................................... p. 38
2. Da centralidade da escuta na Psicologia à escuta suspensiva..............................p. 43

Ateliê Reflexivo - Fenomenologia e Psicologia do Esporte........................................p. 47


Ateliê Reflexivo - Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos.......................... p. 54
Ateliê Reflexivo - Gênero, Corpo e Sociedade.......................................................... p. 60
Ateliê Reflexivo - Plantão Psicológico na contemporaneidade: o cuidador para além
do instituído............................................................................................................p. 64
Dialog(Ações)........................................................................................................ p. 67

1. Eixo: Clínica Fenomenológica......................................................................... p. 67


2. Eixo: Fenomenologia em Contextos Sociais.................................................... p. 136
3. Eixo: Fenomenologia e Educação................................................................... p. 170
A presentação
O I Encontro de Fenomenologias e II Ciclo de Debates sobre Fenomenologia e
Pesquisa tiveram como objetivo construir um espaço científico de discussões com relevância
social, profissional e acadêmica, a partir do compartilhamento e integração de conhecimentos
oriundos da perspectiva fenomenológica, mas de um modo interdisciplinar. Dessa forma, o
evento contou com a participação de profissionais e pesquisadores de diversas áreas e
instituições, os quais estiveram em interação, contribuindo também para o fortalecimento das
parceiras institucionais.
É nesse sentido que o evento, além da programação oficial, proporcionou networks
entre os participantes. Cita-se ainda, a importante articulação entre membros de GTS da
ANPPEP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia) que tem a
fenomenologia como alicerce teórico, os quais participaram do evento, bem como entre
profissionais e pesquisadores de outras regiões nacionais, USP (Universidade de São Paulo),
UNICAP (Universidade Católica de Pernambuco), UPE (Universidade de Pernambuco),
PUCCAMP (Pontifícia Universidade Católica de Campinas), Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e Universidade do Ceará (UFC).
Em uma perspectiva interdisciplinar, entre Educação, Saúde, Ciências Sociais,
Educação Física, Comunicação Social, o evento promoveu um espaço de discussão de temas
decorrentes das áreas de formação, bem como a socialização dos resultados das pesquisas e
experiências profissionais dos participantes e convidados. Foram cerca de 200 inscritos entre
estudantes de graduação e pós-graduação, docentes e demais profissionais, constando ainda
com 22 convidados e 25 apresentações de trabalhos.
O tema do evento “Dimensões ampliadas da Psicologia Fenomenológica: fazer crítico
e social da prática e da pesquisa” pautou a importância do fortalecimento da construção de
uma prática contextualizada e fundamentada na ciência, bem como projetos e ações a partir do
agir ético e compromisso social do fazer fenomenológico para com os povos e comunidades
brasileiros, nordestinos e sertanejos.

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I nformações Gerais

Período de realização:
30 de maio a 01 de junho de 2019

Local do evento:
Auditório da Biblioteca, UNIVASF - Campus Centro, Petrolina-PE

Realização:
Laboratório de Estudos e Práticas Transdisciplinares em Saúde e Educação (Letrans)
Núcleo de Estudos e Práticas sobre Infâncias e Educação Infantil (NUPIE)
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Fenomenologia, Esporte e Educação (NEPFEE)

Instituições Financiadoras:
Universidade Federal do Vale do São Francisco- UNIVASF
Conselho Federal de Psicologia – CFP

Apoio:
Centro de Estudos e Práticas em Psicologia- CEPPSI
Colegiado Acadêmico de Psicologia/ UNIVASF
SE & PQ
Laboratório de Pesquisa e Estudos sobre o Cuidado em Educação e Saúde-
LAPECES/UFPE
Universidade Federal de Pernambuco- UFPE
Universidade de Pernambuco – UPE
Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas de Desenvolvimento do Semiárido-
PPGDiDeS
Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade- LabFeno
Tema:
DIMENSÕES AMPLIADAS DA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA: fazer crítico
e social da prática e da pesquisa

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C omissão Organizadora

Comunicação:

Erika Hofling Epiphanio // Coordenadora Geral e Coordenadora Comunicação


Camila Ferraz Jucá Menezes
Emanoela Souza Lima
Eralina de Lima Ferreira
Leonardo Rodrigues Vitor
Melina de Carvalho Pereira
Roseana Pacheco Reis Batista

Bem-Estar, Cultura e Arte:

Sílvia Raquel Santos de Morais // Coordenadora


Emiliane Silva Santana
Hanna Amando Matias
Ilana Pereira Bandeira Avaliadores:
Jermyson Guimarães de Souza
Jhonanthan de Oliveira Ramalho Adriano Furtado Holanda
Kaline Pereira Ramos de Oliveira Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
Keisy Roberta Vieira de Araújo Silva Clara Maria Miranda de Sousa
Mariana Pereira Coutinho Darlindo Ferreira de Lima
Mylena Coelho da Luz Erika Höfling Epiphanio
Tatiana Lima Bernardo da Silva Luciana Duccini
Thaís Soares Gregório Marcelo Silva de Souza Ribeiro
Priscila de Lima Souza Melina de Carvalho Pereira
Sinara Pereira da Silva Rafael Auler de Almeida Prado
Shirley Macêdo Vieira de Melo
Científica: Suely Emília de Barros Santos
Thabata Telles
Marcelo Silva de Souza Ribeiro // Coordenador
Darlindo Ferreira de Lima // Coordenador
Clara Maria Miranda de Sousa
João Paulo dos Santos Leite
Ketlen Ariany da Silva Xavier
Shirley Macêdo Vieira de Melo
Sonha Maria Coelho de Aquino
Thalita Suyane Costa Silva

Logística:

Thâmara Agnes da SIlva Santos // Coordenadora


Ana Jamile Braga Maia
Ana Lícia Pessoa Nunes
Milena Vitor Gama Duarte
Sílvio Gabriel Linhares Guimarães
Tainá de Menezes Cunha

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C onvidados/as

Mauro Martins Amatuzzi


Doutorado em Educação pela UNICAMP
Professor aposentado do Instituto de Psicologia da USP
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/4753420822745799

Adriano Furtado Holanda (UFPR)


Doutorado em Psicologia pela PUC-Campinas
Professor associado e orientador de mestrado da Universidade Federal do Paraná
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/7344227427939366

Erika Hofling Epiphanio (UNIVASF)


Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP
Professora adjunta do Colegiado de Psicologia da UNIVASF
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/2880566719726362

Melina de Carvalho Pereira (UNIVASF)


Mestre em Psicologia pela UFPE
Psicóloga da Universidade Federal do Vale do São Francisco
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/2115315209315943

Cristiano Roque Antunes Barreira (USP)


Doutorado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto –
USP.
Professor Associado (RDIDP) da USP, na Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão
Preto e professor orientador no Programa de Pós-graduação em Psicologia/ FFCLRP – USP.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/0950284422406923

Vera Engler Cury (PUC)


Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP
Professora titular da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós – Graduação em
Psicologia da PUC-Campinas.
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC-
Campinas.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/3414308343809480

Sílvia Raquel Santos de Morais (UNIVASF)


Doutora em Psicologia da Saúde pela Universidade Federal do Espírito Santo
Professora adjunta da UNIVASF
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/1031144647468094

Shirley Macêdo Vieira de Melo (UNIVASF)


Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco
Professora adjunta do Colegiado de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Dinâmicas de Desenvolvimento do Semi-Árido (PPGDiDes) e da
Residência Multiprofissional em Saúde Mental da UNIVASF.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/7611625574364052

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Marcelo Silva de Souza Ribeiro (UNIVASF)
Pós-doutorando pela UFBA, Departamento de Educação.
Doutorado em Ciências da Educação - Université du Québec à Chicoutimi / Université du
Québec à Montréal.
Professor adjunto do Colegiado de Psicologia e do Mestrado em Psicologia da UNIVASF e
professor programa de Mestrado em Formação Docente da Universidade de Pernambuco –
UPE, Campus Petrolina.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/8566377803271737

Alexandre Henrique dos Reis (UNIVASF)


Doutorado em Educação em Ciências pela UFRGS
Professor adjunto do colegiado de Ciências Sociais e dos programas de mestrado em extensão
rural e mestrado em sociologia da UNIVASF.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/7614676730797099

Bárbara Eleonora Bezerra Cabral (UNIVASF)


Doutorado em Psicologia pela UFES
Professora adjunta do Colegiado de Psicologia e Coordenadora da Residência
Multiprofissional de Saúde Mental da UNIVASF.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/9533986415922808

Darlindo Ferreira de Lima (UFPE)


Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo
Professor Adjunto da UFPE
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/1949266361470037

Maria Theodora Gazzi Mendes (UNIVASF)


Mestranda em Psicologia no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNIVASF
Psicóloga, especialista em Psicomotricidade
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/9553810872594336

Ana Maria de Santana (UPE)


Estágio Pós-doutoral na Universidade Federal de Pernambuco.
Doutora em Psicologia Clínica pela UNICAP
Professora Adjunta do Curso de Psicologia da UPE com atuação na Graduação,
Especialização, Residência em Saúde Mental/UPE e no Mestrado de Saúde Mental/UPE.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/0535411679998122

Suely Emilia de Barros Santos (UPE)


Doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco
Professora adjunta da UPE, atuando na Graduação do Curso de Psicologia e na Residência
Multiprofissional e Especialização em Saúde Mental.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/9587785855933174

Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto (UNICAP)


Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP
Professora adjunta da Universidade Católica de Pernambuco, atuando na graduação e Pós-
graduação.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/4818189523805466

9
Léo Barbosa Nepomuceno (UFC)
Pós Doutorando em Saúde Coletiva pela UFC
Doutor em Saúde Coletiva pela UFC
Professor Adjunto do Instituto de Educação Física e Esportes da UFC
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/0130874944686138

Marcelo de Maio Nascimento (UNIVASF)


Doutorado em Ciências do Esporte pela Escola Superior de Educação Física da cidade de
Colónia/Alemanha.
Professor adjunto do Colegiado de Educação Física da UNIVASF
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/6669741656943141

Marta Aparecida Magalhães de Sousa (CBF)


Especialista em Gestalt-Terapia e Psicologia do Esporte pelo Instituto Sedes Sapientiae e em
Psicologia Escolar, orientação educacional e vocacional pelo Instituito Pieron
Psicóloga do esporte da arbitragem da CBF

João José de Santana Borges (UNEB)


Doutor em Ciências Sociais pela UFBA
Professor adjunto do curso de Jornalismo e Multimeios do Departamento de Ciências
Humanas no campus III da UNEB e professor permanente do Programa de Pós-graduação
Mestrado em Educação Cultura e Territórios Semiáridos.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/0492589392111343

Sílvio Guimarães
Psicanalista clínico
Membro da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS).
Membro da International Association for Suicide Prevention (IASP).
Membro do grupo Suicidologia no Vale.

Clara Maria Miranda de Sousa


Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e
Interdisciplinaridade pela UPE
Graduanda do curso de Psicologia na UNIVASF
Professora da Rede Estadual da Bahia no município de Juazeiro/BA.
Curriculum lattes: http://lattes.cnpq.br/3441502407189103

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P rogramação
30 de maio de 2019, quinta- feira

Manhã
07:30h às 08:30h: Credenciamento.
08:30h às 09:00h: Mesa de abertura - com autoridades.
09:00h às 10:30h: Mesa de Diálogo(s) 1: Fenomenologia e Educação: Um olhar sobre a infância.
Palestrantes: Prof. Dr. Marcelo Ribeiro, Me. Melina Pereira e Me. Clara Maria Miranda de Sousa.
Mediadora: Mestranda Maria Theodora Gazzi Mendes.
10:30h às 10:45h - Intervalo
10:45h às 12:15h: Mesa de Diálogo(s) 2: Formação em Psicologia e Atuação em Instituições
Públicas.
Palestrantes: Prof. Dr. Darlindo Ferreira de Lima.
Fenomenologia e pesquisa na formação em psicologia: Profa. Dra. Carmem Barreto e Profa. Dra.
Bárbara Cabral.
Mediador: Prof. Dr. Alexandre Barreto.

Tarde
12:15h às 14h: intervalo para almoço.
14:00 às 16:00h: Mesa de Diálogo(s) 3: Corpo e Movimento: compreensões fenomenológicas.
Palestrantes: Prof. Dr. Leo Nepomuceno, Prof. Dr. Marcelo de Maio e Prof. Dr. João José Borges.
Mediadora: Profa. Dra. Erika Epiphanio.
16:00h às 16:30h: Café com prosa (Intervalo com lanche, atividade musical ou cultural)
16:30h às 18h: Mesa de Diálogo(s) 4: O olhar da Fenomenologia para a saúde mental.
Palestrantes: Profa. Dra. Sílvia Morais, Suely Emília, e Profa. Dra. Vera Cury.
Mediadora: Profa. Dra. Bárbara Cabral.

Noite
18h às 19h: Palestra Magna "Olhares Fenomenológicos sobre o humano".
Profº. Drº. Mauro Amatuzzi
19h às 21h: Atividade cultural, lançamento de livros, momentos de vendas e autógrafo com os
autores.

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31 de maio de 2019, sexta-feira

Manhã
08:30h às 10:00h: Mesa de Diálogo(s) 5: A construção do conhecimento pela Fenomenologia.
Palestrantes: Prof. Dr. Adriano Holanda
O conhecimento como construção compartilhada de sentido: Profa. Dra. Shirley Macêdo e Profa. Dra.
Ana Santana.
Mediadora: Profa. Dra. Luciana Duccini.
10:00h às 10:15h - Intervalo
10:15h às 12:00h: Mesa de Diálogo(s) 6: Discutindo a escuta na perspectiva fenomenológica.
Palestrantes: Prof. Dr. Mauro Amatuzzi, Prof. Dr. Cristiano Roque.
A escuta como processo de subjetivar-se psicólogo: Profa. Dra. Shirley Macedo
Mediadora: Profa. Dra Erika Hofling Epiphanio

Tarde
12h às 14h: Intervalo para almoço.
14h às 15:30h: Dialog(ações): Apresentação de trabalhos.
15:30h às 16:00h: Café com prosa (Intervalo com lanche, atividade musical ou cultural).
16h às 17:30h: Ateliês Reflexivos

Ateliê 1 Ateliê 2 Ateliê 3 Ateliê 4 Ateliê 5


Fenomenologia e Fenomenologia, Gênero, corpo e Suicídio na Plantão Psicológico
Psicologia do Saúde e Processos sociedade perspectiva da na
Esporte Psicológicos Fenomenologia contemporaneidade
Facilitadoras:
Facilitadores/as: Facilitadores: Profa. Dra. Paula Facilitadores: Facilitadores:
Profa. Dra. Erika Prof. Dr. Adriano Galrão e Profa. Prof. Dr. Prof. Dr. Darlindo
Hofling Epiphanio, Holanda e Profa. Roberta Mélo. Alexandre Reis e Ferreira de Lima e
psicóloga Marta Dra. Shirley Silvio Guimarães Profa. Dra. Silvia
Magalhães. Macedo Raquel Santos de
Prof. Dr. Cristiano Morais
Roque Barreira e
Prof. Dr. Leo
Nepomuceno.

17:45h às 18h: Intervalo.


18:00h às 18:30h: Apresentação cultural.
18:30h às 19:30h: Conferência Magna: "Pesquisa e extensão: diálogos necessários"
Conferencista: Profa. Dra. Vera Cury

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1º de junho de 2019, sábado

Manhã
08:00h às 10:00h: Mesa de Diálogo(s) 7: Gestalt-terapia e sua aplicação em diversos contextos:
educação, clínica e esporte.
Palestrantes: Me. Melina Pereira, Prof. Dr. Marcelo Ribeiro e psicóloga Marta Magalhães (CBF).
Mediadora: Profa. Dra. Erika Epiphanio.
10h às 12h: Mesa filosófica e Mesa clínica.
>> Encerramento e atividade cultural.

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Encontro de TEMA
FENOMENOLOGIAS Dimensões ampliadas da Psicologia Fenomenológica: 30 de Maio a 01 de Junho de 2019
do Vale do São Francisco Auditório da Biblioteca - UNIVASF - Petrolina /PE
II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

Mesa de Diálogo(s) 1
FENOMENOLOGIA E EDUCAÇÃO: UM OLHAR SOBRE A INFÂNCIA

INFÂNCIAS EM CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO: UMA PERSPECTIVA

FENOMENOLÓGICA E FENOMENOLOGIA E EDUCAÇÃO

Marcelo Silva de Souza Ribeiro, mribeiro27@gmail.com, Professor Colegiado Psicologia


Universidade Federal Vale do São Francisco

À GUISA DE APRESENTAÇÃO
Este resumo visa estabelecer uma síntese de dois momentos do Encontro e que
abordam as temáticas “Infâncias em contexto de desenvolvimento (numa perspectiva
fenomenológica)” e “Fenomenologia e Educação”. Embora sejam temas que demandam
gravidades próprias, as pontes entre eles são variadas e profícuas.
Antes, contudo, de apresentar as linhas gerais sobre essas duas temáticas, considero
importante deter um pouco sobre essa ideia de “ponte”, inclusive para situar melhor meu
posicionamento no campo da fenomenologia. Daí, sinto-me puxado a falar, mesmo que
brevemente, sobre minha itinerância formativa. Assim, quando ainda estudante de graduação,
iniciei grupos de estudos e, posteriormente, formação na Abordagem Centrada na Pessoa
(ACP), também conhecida como abordagem rogeriana, e na Gestalt-Terapia (GT). Não
poderia deixar de citar aqui algumas pessoas que foram (e são) marcantes no meu processo
formativo, como Lenise Cajueiro, Afonso Henrique Lisboa da Fonseca e Lika Queiroz.
Dessas duas abordagens tive algumas importantes aprendizagens, existenciais diria, que foram
as descobertas que: não precisamos “ser isso e aquilo”, mas muitas vezes podemos ser “isso e
aquilo”; as próprias ACP e GT se constituíram via a tecelagem de múltiplas fontes; a
experiência, enquanto vivência de consciência, é matriz da existencialidade; e o diálogo, ou
melhor, a relação dialógica, é desdobradora de alteridades.
Essas aprendizagens profundas tinham (e tem) reverberações na minha história de vida
como um todo à medida que uma parte da minha infância e adolescência foi marcada por
variadas influências, inclusive díspares e mesmo contraditórias. Além disso, as agruras
vividas colaboraram para um entendimento da vida como extraordinários encontros com o
outro.
De alguma forma essas “marcas”, sejam relativas ao meu desenvolvimento
profissional ou as minhas histórias de vida (ambas se entrelaçam, de modo que a distinção
feita aqui é mero recurso didático) ganharam ressonâncias nas duas temáticas, a infância e a
educação. Sobre a primeira, vejo-me eternamente infantil por acreditar (um acreditar mais
vivencial que intelectual) na extraordinária capacidade da criança viver o momento presente e
tomar isso como fonte peculiar de sabedoria. Quanto a educação, parece que foi muito mais

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Encontro de TEMA
FENOMENOLOGIAS Dimensões ampliadas da Psicologia Fenomenológica: 30 de Maio a 01 de Junho de 2019
do Vale do São Francisco Auditório da Biblioteca - UNIVASF - Petrolina /PE
II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

pelos encantos dos processos formativos, das utopias que cercam essa área e o engajamento
sempre presente nas ações emancipatórias que visam as superações de exclusões (sobre isso
tenho tensionada diálogos entre as perspectivas fenomenológicas e histórico cultural).
Uma vez situada a ideia de “ponte” e o quanto isso tem a ver, inclusive, com o meu
modo de me posicionar em relação a fenomenologia (embora tenha plena consciência do lugar
incomum que ocupo, sobretudo na universidade), proponho tocar alguns pontos relativos a
questão das “Infâncias em contexto de desenvolvimento: uma perspectiva fenomenológica” e
depois a “Fenomenologia e Educação”. Em seguida, apreenderei alguns outros pontos
comuns, as chamadas “pontes”.

INFÂNCIAS EM CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO: UMA PERSPECTIVA


FENOMENOLÓGICA

Tradicionalmente, a criança tem sido tratada como em ser em vias de ser, ou melhor,
tem sido abordada como um ser que ainda não o é (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008). Isto,
inclusive, tem sido a retórica de uma boa parte da Psicologia. Talvez uma das primeiras coisas
a considerar é ter a criança como um ser de valor em si. A criança não está em um estágio do
desenvolvimento inferior, ela está numa condição diferente e é justamente essa diferença que
precisa ser considerada. Isso, me parece, a fenomenologia vem a contribuir.
A partir daí, de considerar o valor em si da criança, vem a questão de pensar os
processos cognitivos, por exemplo, atenção, memória e percepção como portando
particularidades e não como processos inferiores aos do adulto. Sobre isso há o interessante
trabalho de Virgínia Kastrup (1999; 2000), que poderia ser até considerado como uma
Psicologia Cognitiva Fenomenológica, na esteira da velha Escola da Gestalt, justamente
porque se propõe a compreender esses processos a partir da perspectiva ou do jeito irredutível
da criança ser no mundo.
Por sua vez, isso abre para uma série de possibilidades no pensar os processos
metodológicos e desenvolver pesquisas tendo a criança como foco no que diz respeito a sua
forma de ver o mundo, mas também de ouvir o que as crianças sabem e têm a dizer
(CORSARO, 2011; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008).
Por fim, e de modo mais específico sobre os contextos de desenvolvimento, os
trabalhos de Bronfenbrenner (1996) tem possibilitado inspirações. Apesar de não ser um
pesquisador que trabalhe numa perspectiva eminentemente fenomenológica, há indeléveis
contribuições dessa abordagem em seus trabalhos. Um ponto alto é a importância que
Bronfenbrenner vai dar às relações face a face e ao modo como as crianças vão viver a
experiência dos contextos de desenvolvimento. Novamente aí encontra-se a valorização da
perspectiva da criança, considerando o que é importante ou não para ela e o que ela é, ao
reproduzir a realidade, capaz de interpretar, como diria Corsaro (2011).
Em suma, esses pontos aqui elencados tem inspirado os trabalhos que desenvolvemos no
âmbito do Núcleo de Estudos e Práticas sobre Infâncias e Educação Infantil (NUPIE), uma
vez que valorizamos a perspectiva da criança no que diz respeito às suas experiências e

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Encontro de TEMA
FENOMENOLOGIAS Dimensões ampliadas da Psicologia Fenomenológica: 30 de Maio a 01 de Junho de 2019
do Vale do São Francisco Auditório da Biblioteca - UNIVASF - Petrolina /PE
II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

singularidades no modo de apreender o mundo, e também na compreensão de que é um ser


potente ao interpretar e, consequentemente, produzir realidades.

FENOMENOLOGIA E EDUCAÇÃO

Essa relação entre fenomenologia e educação é uma outra ponta que tem sido bastante
cara para mim, sobretudo no que concerne as relações que envolvem professores e estudantes,
os processos formativos e aquilo que estamos chamando de Metodologia Viva (MT). A
fenomenologia tem sido um importante baluarte para um tipo de educação que defende a
formação do ser e integral.
Rogers (1985; 2001), sem dúvidas, traz legados explícitos sobre esse diálogo entre
educação e a fenomenologia, principalmente quando pensa nas condições facilitadoras para os
processos de ensino e aprendizagem, e mesmo das aprendizagens significativas. É claro que
Rogers não reduzia os processos educativos à aprendizagem, crítica feita por alguns teóricos
da educação (BIESTA, 2017). De modo geral é possível dizer que esse encontro entre
fenomenologia e educação é clássico porque tem a ver com a própria busca do ser, do que se é
e do estar sendo (GALEFFI, 2001). Assim, é possível dizer que desse encontro há
potencializações das experiências como fundamentais para os processos formativos, de modo
que se exige sensibilidade para com as relações interpessoais e a maneira de se estar na
relação com um outro. Uma palavra cara é o diálogo e isso remete a outra fonte importante
para pensar esse encontro, que é a relação dialógica compreendida por Buber (1982; 2001).
Curiosamente há uma boa interlocução da fenomenologia com o pensamento de Paulo Freire
(1997; 1998) e, de modo particular, com a filosofia dialógica do Buber. Então não é por
menos que Paulo Freire fale tanto de uma educação dialógica.
Sobre o sentido de Metodologia Viva (RIBEIRO, 2018a; 2018b) é possível dizer, en
passant, que é um posicionamento de valorização do processo formativo, do encontro
dialógico entre professor e estudante e das experiências como principiadoras dos
desdobramentos educativos. A MV não é um acento no método, na técnica, mas entende o
método como um meio que deve ser vivido, tal como aquela ideia do caminho que se faz ao
caminhar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBRE A PONTE.

Um desdobramento, diria até prático, sobre a MT, tem sido nossos trabalhos sobre a
questão do autocuidado e docência (SOUSA; RIBEIRO; SANTOS, 2018), tendo
repercussões, sobretudo, na formação docente da educação infantil, onde a questão do cuidar
(além do educar) é um pilar essencial. Eis aqui uma “ponte” que une as duas temáticas
anunciadas no início deste resumo. O “cuidar”, ou melhor, o modo que a qualidade das
relações envolvendo educador-educador, educador-educando e educando-educando é também
da dimensão do cuidado e tem repercussões profundas, mas de modo especial na educação
infantil.

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Encontro de TEMA
FENOMENOLOGIAS Dimensões ampliadas da Psicologia Fenomenológica: 30 de Maio a 01 de Junho de 2019
do Vale do São Francisco Auditório da Biblioteca - UNIVASF - Petrolina /PE
II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

Novamente tenho encontrando nessa “ponte” aquelas caras aprendizagens à medida


que o cuidar nas relações implica a integração de dimensões que são, muitas vezes alienadas,
que valoriza a experiência vivida dos acontecimentos e que tem o diálogo como principio
norteador de estar no mundo e conosco e com os outros.

REFERÊNCIAS

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem. Educação democrática para um futuro humano.
Belo Horizonte, Autêntica, 2017.

BRONFENBRENNER, Urie. A Ecologia do desenvolvimento humano: experimentos


naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

BUBER, Martin. Do diálogo ao dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982.

BUBER, Martin. Eu e tu. São Paulo: Centauro, 2001.

CORSARO, William. A. Sociologia na Infância. Porto Alegre, Rio Grande do Sul: Artmed,
2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessaìrios aÌ praìtica educativa. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1997.

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KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo. Uma introdução do tempo e do coletivo


no estudo da cognição. São Paulo: Papirus, 1999.

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Porto Editora, 2008.

RIBEIRO, Marcelo Silva de Souza. Metodologia viva e escola como espaço de vida: políticas
de sentido e significado. In: IX Colóquio Internacional de Filosofia e Educação na UERJ,
2018, Rio de Janeiro. IX Colóquio Internacional de Filosofia e Educação, 2018b. V. 1.

RIBEIRO, Marcelo Silva de Souza. Performance minimalista e a metodologia viva na


educação online: experiências em linguagem audiovisual. Especialização em Produção de
Mídias para Educação Online. Universidade Federal da Bahia, UFBA, 2018a.

ROGERS, Carl R. Liberdade de aprender em nossa década. Porto Alegre: Artes Médicas,
1985.

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SOUSA, Clara M. M.; RIBEIRO, Marcelo S. de S. ; SANTOS, Tamires L. S. . Experiências


de autocuidado nos processos formativos: uma análise fenomenológica hermenêutica. Linhas
Críticas (online), v. 24, p. 255-277, 2018.
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GESTALT-TERAPIA COM CRIANÇAS E O MÉTODO FENOMENOLÓGICO DE


INTERVENÇÃO

Melina de Carvalho Pereira. E-mail: melinamcp@gmail.com


Mestre em Psicologia; Psicóloga do CEPPSI/UNIVASF

Palavras-chave: Gestalt-terapia. Psicoterapia infantil.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo apresentar a prática clínica da gestalt-terapia com
crianças. A partir de perspectivas epistemológicas de Fenomenologia, Existencialismo,
Humanismo, e influências como Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo e Holismo, é
possível costurar e integrar a perspectiva da terapia gestáltica. Nessa abordagem, intenta-se
construir uma relação terapêutica que permita ao cliente viver sua experiência pessoal no
aqui-e-agora, considerando que a forma como percebe o mundo é carregada de subjetividade e
apenas encontra sentido no seu próprio existir. Na relação terapeuta-cliente, uma
intersubjetividade será continuamente construída. A partir de uma vivência relacional que se
constrói a cada momento e não pode ser predeterminada, a Gestalt-terapia tem como objetivo
facilitar o contato do cliente com ele mesmo. (RODRIGUES, 2000).
No contexto da psicoterapia, durante a vivência do cliente, o gestalt-terapeuta tem o
papel de acompanhá-lo em sua experiência individual, respeitando escolhas e sentidos
realçados por aquele. A partir da experimentação do mundo que é conhecido pelo próprio
cliente, aos poucos é possível expandir as fronteiras da consciência, ampliando o campo
perceptual. Nesse processo, a abordagem gestáltica defende a possibilidade de chegar ao que
antes era inacessível, imperceptível para o cliente.
Para tal, é importante iniciar de onde se está, percebendo o momento presente.
Awareness, termo sem tradução específica para o português, pode significar uma forma de
experienciar, dar-se conta. É o processo de estar em contato vigilante com o evento mais
importante do campo indivíduo/ambiente, com total apoio sensoriomotor, emocional,
cognitivo e energético. “a awareness é sempre acompanhada de formação de gestalt […] a
awareness é, em si, a integração de um problema” (YONTEF, 1998, p. 215). Envolve não só
o entendimento intelectual, mas todo o ser organismicamente – corpo e mente de maneira
holística – no intuito de atualizar e perceber o campo experiencial, além de compreender o
que faz o sujeito não estar awareness, consciente de si e do seu ambiente.
Jacobs (1997) defende que a ênfase da Gestalt-terapia na awareness é possível a partir
de uma relação de aceitação, possibilitando um ‘voltar-se para’ o corpo inteiro. A autora

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enfatiza que o contato, a awareness e o diálogo estão intimamente ligados, tornando-se


aspectos compatíveis de um todo único para essa abordagem. Esta afirmação pode ser
compreendida pela aproximação da Gestalt-terapia com uma perspectiva humanista
existencial no que se refere à postura dialógica do terapeuta, pois acredita que o homem se
constitui nas relações com os outros.
Sendo assim, a Gestalt-terapia tende a focalizar o processo de experienciar ou na
maneira como o cliente está experienciando, acompanhando-o e permanecendo onde ele
estiver, por meio da atitude fenomenológica. Esta se refere à necessidade de o terapeuta
“suspender” seus próprios conceitos e valores. A atitude dialógica compreende a existência de
cada cliente participando da descoberta de seu próprio caminho sem defini-lo. Como pondera
Jacobs (1997, p. 85) “imaginar a realidade” do cliente, acompanhando-o e permanecendo
disponível para o contato numa atitude dialógica. Atitude conhecida como redução
fenomenológica, envolve a necessidade de compreender existencialmente a realidade do
cliente, como ser de singularidade, sem nenhum a priori.
Nas palavras de Rodrigues (2000, p.180-181) conclui-se o papel do gestalt-terapeuta
em seu fazer clínico fundamentado por essa abordagem:
[…] a GT (gestalt-terapia) se propoe a ‘ficar’, não a ir. A GT não ‘nos leva’, mas expõe o ‘como nos
deixamos ser levados quando saímos do aqui-e-agora’. Ao invés de mostrar
novos horizontes, a GT vai questionar o que você faz para se impedir de ver
os horizontes que lhe são possíveis de ver agora. […] focalizaremos não a
razão, por que algo é engavetado, esquecido, reprimido, recalcado, etc. e sim
como é tal ‘engavetamento’ em pleno uso, exposto em sua franca atividade e
compreendendo a qual necessidade atende…

Ao ponderar a visão holística do homem reconhecida pela Gestalt-terapia, assinala-se a


relevância a ser considerada pelo terapeuta quanto a outros aspectos para além da fala,
preocupando-se em observar postura, respiração, olhar, voz, microgestos etc. Inclusive
porque, considerando a ênfase no aqui-e-agora para a Gestalt-terapia, a finalidade da clínica
parece ser melhor contemplada integrando a vivência corporal, uma vez que a fala é mais
facilmente transposta para uma situação no passado (falar sobre algo que já ocorreu, por
exemplo).
Ginger e Ginger (1995) relatam, inclusive, a possibilidade de o terapeuta facilitar a
tomada de consciência (awareness) do cliente em relação ao seu corpo como forma de
expressão, ainda que involuntariamente. Intervenções como “o que você está sentindo
agora?” ou “eu proponho que você se levante e dê alguns passos...” facilitam entrar em
contato com o que está emergindo no aqui-e-agora, tanto no nível de sensorialidade receptiva
como de atividade motora do organismo. Mais além, os autores revelam ainda que o gestalt-
terapeuta pode ainda sugerir que o cliente “amplifique o que sente ou seu sintoma para melhor
percebê-lo, ‘dar-lhe a palavra’ de certa forma, e isso antes mesmo de interrogar sobre seu
significado” (1995, p. 162).
Assim como o ser humano saudável permite a fluidez na hierarquização das
necessidades, a circulação fluida das emoções revela a capacidade de autorregulação do

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organismo na medida em que desobstrui os canais para evitar tanto o excesso quanto a
escassez dos sentimentos, como expõem os autores acima referidos. Pelo princípio Figura-
Fundo da Psicologia da Gestalt, interpretado por Perls para uma abordagem clínica do
fenômeno, o indivíduo hierarquiza suas necessidades de forma a atender aquelas mais
emergentes no aqui-agora. (ARAUJO, 2007). A necessidade dominante é ressaltada pelo
indivíduo como uma figura diante de todas as necessidades presentes no campo. Sendo assim,
busca-se um funcionamento saudável, “aquele que flui criativamente de uma formação figural
à outra, enquanto funcionamento não saudável é caracterizado por entraves e cristalizações,
que impedem a fluidez do processo de contato criador consigo mesmo, os outros e o mundo”.
(D´ACRI; LIMA; ORGLER, 2007, p. 123).
Na visão da Gestalt-terapia, assim como o ser humano é autorregulado e deve ser visto
em sua totalidade, a família também. Os membros dela se influenciam mutuamente e não é
possível considerar uma modificação em uma das partes sem que se altere também o todo. Na
busca pelo equilíbrio do sistema, pode-se fazer necessário o uso de ajustamentos criativos, o
que pode caracterizar um ou mais membros como bode expiatório na família. A criança ou
qualquer outro membro pode ‘adoecer’, desenvolver um sintoma, para manter em
funcionamento a dinâmica familiar. Assim, “A doença é resultante de um distúrbio em um
dado campo, que provoca uma ruptura na unidade harmoniosa criança-outro-ambiente”
(ANTONY, 2012, p. 33).
A partir do ano de 1980, Vilolet Oaklander iniciou maiores registros sobre a prática
clínica com crianças e a partir da junção disto com a herança de Perls e colaboradores iniciou-
se a formação do olhar da Gestalt-terapia sobre a criança e as peculiaridades necessárias para
seu atendimento clínico.
Mais tarde, Antony (2012, p.25) ressalta que “a criança é um todo, mas também uma
parte que pertence ao todo – a família – que está inserida em um outro todo – a sociedade,
escola – compondo uma rede de conexões interminável”. Segundo ela, só se pode
compreender a criança dentro de campo, naquele momento e na sua época de vida. Assim, é
preciso procurar entender quais são e como são os ambientes e as relações daquela criança
para que assim, e só assim se possa compreender o seu funcionamento, interação e
comunicação.
Na busca por compreender o contexto familiar, o gestalt-terapeuta traz como
questionamentos o lugar ocupado na dinâmica e a função desempenhada por cada integrante
do grupo. É importante compreender como a família se configura a fim de facilitar essa
compreensão para os próprios membros, contribuindo para que eles resolvam o conflito entre,
por um lado, conseguir diferenciação e, por outro, coesão entre os membros. Em outras
palavras, buscar a compreensão da família sobre estar em algum dos seguintes pólos:
confluência – onde não há espaço para a singularidade e a fronteira entre os membros é pouco
perceptível – ou se, no outro extremo, os elementos são isolados sem dar/receber apoio
mútuo.
Como ressalta Aguiar (2015), é preciso estar atento para não intervir no sintoma sem
que a família tenha suporte para se sustentar com a modificação dele, pois se ela a utiliza
mesmo que gerando sofrimento para seus membros, é porque se faz necessário naquele

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momento. Desta forma, importante é buscar junto à família, através de sessões conjuntas ou
momentos de orientação com os pais, novas possibilidades de ajustamentos criativos.
A criança – na maior parte das vezes, a figura, o elemento que se destaca no fundo –
chega ao contexto clínico porque algo está incomodando, geralmente por queixa familiar,
embora por algumas vezes o encaminhamento seja feito pela escola ou ainda por outros
espaços de convivência. Conforme ressalta Aguiar (2015), torna-se fundamental tentar
compreender o que nos é solicitado, pois é comum que o pedido seja referente a um aspecto
específico do contexto com a pretensão de que este seja transformado sem que isso altere a
dinâmica familiar. Um exemplo claro é quando se solicita que o espaço terapêutico possibilite
a não reprovação de uma criança ao fim do ano escolar, sem que os membros se envolvam em
outras questões.
Muitas vezes, a solicitação é em função de uma satisfação dos pais, amenizando o
incômodo deles e não necessariamente em relação ao que é saudável para a criança. Não se
pode assumir como objetivo terapêutico situações como esta e a família tem, então, o direito
de conhecer quais as possibilidades e limitações do processo psicoterápico de forma a decidir
se dará continuidade, responsabilizando-se pelo processo.
Outro aspecto bastante presente no atendimento clínico infantil é a instituição escolar.
Esta também desempenha um papel autorregulador importante no desenvolvimento infantil e
pode estar diretamente relacionada com ajustamentos criativos desenvolvidos pela criança.
Por isso, é comum também em atendimento infantil haver algumas visitas à escola. Listados
por Aguiar (2015), os propósitos delas seriam: 1) informar-se sobre a criança e seu
comportamento de maneira ampla no espaço escolar; 2) observar se existem determinadas
práticas na escola que podem estar contribuindo para a perpetuação de algum comportamento
pouco satisfatório da criança; e 3) orientações e intervenções específicas com profissionais do
contexto que tenham influência direta com a criança. Sendo assim, diante de uma criança que
está imersa em um campo fenomenológico, será fundamental envolver os contextos para
melhor compreensão da dinâmica psíquica daquela criança.
Percebe-se que toda a compreensão aqui traçada sobre a criança não poderia ser
realizada sem a compreensão bem relacionada com a epistemologia e os conceitos
fundamentais da abordagem. Sendo assim, torna-se imprescindível utilizar como método de
trabalho uma perspectiva alinhada à epistemologia da abordagem: o método fenomenológico.
Este se utiliza da intervenção descritiva em forma de afirmações ou perguntas para promover
a awareness do cliente, opondo-se à linguagem interpretativa ou prescritiva. Sendo assim, ao
acompanhar a criança, o psicoterapeuta gestáltico atuará descrevendo o que ela faz, o que
aparece como fenômeno, podendo por vezes propor experimentos com o objetivo de ampliar a
awareness, ajudando-a a elaborar e identificar ou integrar aspectos de si e do mundo. Vale
ressaltar que a criança continua sendo o centro da terapia e as intervenções devem ocorrer no
aqui-e-agora da sessão, não sendo planejadas previamente. Os experimentos podem então
ajudar a criança a descobrir algo sobre si mesma ou sobre o mundo que até então estavam
interrompidas; são convites para que a criança descreva sua experiência no aqui-e-agora. Em
se tratando do público infantil, a linguagem lúdica é predominante durante as intervenções.

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Considerando a particularidade de atendimentos com crianças e os pressupostos


epistemológicos da Gestalt-terapia, o uso de recursos lúdicos como parte do processo
terapêutico deve acompanhar o interesse do cliente. O terapeuta precisa ter a facilidade em
acompanhar a criança em sua brincadeira, sem dirigi-la, mas colocando-se disponível para
acompanhar o cliente. Não faz sentido com o olhar fenomenológico o terapeuta decidir qual
brincadeira ou recurso devem ser explorados. Está claro que o profissional pode propor algo,
mas sempre a serviço da demanda da criança, permanecendo esta como responsável pela
direção do processo terapêutico. Como diz Luciana Aguiar (2015, p. 159) “brincar com a
criança não é tornar-se criança no espaço terapêutico”. De fato, várias crianças tem a
necessidade de dirigir a brincadeira, determinando em pormenores como o terapeuta deve agir
durante o momento lúdico, sendo muitas vezes o papel terapêutico experimentar a proposta tal
qual a criança decide.
O uso de recursos lúdicos, por se aproximar da linguagem mais própria da criança,
será muito útil, no entanto, mais importante que os recursos lúdicos ou o espaço disponível, é
a capacidade de invenção, imaginação e criatividade do psicoterapeuta. As intervenções, mas
também as compreensões sobre o cliente, na maior parte das vezes, acontecem em um
contexto lúdico. Aguiar (2015) menciona observar maior flexibilidade com o processo
terapêutico infantil quando a criança deixa de investir sempre em uma mesma brincadeira ou
objeto e passar a explorar outros elementos – outras formas de contato com as suas fronteiras
com o mundo - e aponta esta característica como significativa mudança para sua relação com
o ambiente.
Mais ainda: considerando as próprias possibilidades de se fazer presente do terapeuta,
aprendendo a lidar com os sentimentos que eram despertados, não podendo negá-los, mas
considerá-los como parte integrante da relação, ainda que precisassem ser trabalhados em
outro momento. Estar presente genuinamente naquela situação, construindo a relação sem
vislumbrar um fechamento idealizado pelo terapeuta, possibilita respeitar a existência e
própria responsabilidade do cliente por ela.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, L. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. Campinas: Summus, 2015.

ANTONY, S. Cuidando de crianças:Teoria e Arte. Curitiba: Jurua, 2012.

ARAUJO, Maria Gercileni Campos de. Figura e fundo. In: D´ACRI, Gladys; LIMA, Patrícia;
ORGLER; Sheila. Dicionário de Gestalt-terapia: Gestaltês. São Paulo: Summus, 2007. p.
112-114.

D’ACRI, G, LIMA, P, ORGLER, S (org). Dicionário de Gestalt-terapia: “Gestaltês”. São


Paulo: Summus, 2007.

GINGER, Serge; GINGER, Anne. Gestalt: uma terapia de contato. Trad. Sonia de Souza
Rangel. 4. ed. São Paulo: Summus, 1995.

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JACOBS, Lynne. O diálogo na teoria e na Gestalt-terapia. In: HYCNER, Richard; JACOBS,


Lynne. Relação e Cura em Gestalt-terapia. Trad. Elisa Plass e Marcia Portella. São Paulo:
Summus, 1997. cap 3, p. 67-94.

RODRIGUES, Hugo Elidio. Introdução à Gestalt-terapia: conversando sobre os


fundamentos da abordagem gestáltica. Petrópolis: Vozes, 2000.

YONTEF, Gary M. Processo, diálogo e awareness. Trad. Eli Stern. 2. ed. São Paulo:
Summus, 1998.

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SENTIDO DE “SER-EDUPOLÍTICO” NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA

Clara Maria Miranda de Sousa,


Professora da Rede Estadual da Bahia, Pedagoga (UPE), Mestra em Educação (UPE) e
Graduanda em Psicologia (UNIVASF)
claradassis@gmail.com

Palavras-chave/Descritores: Educação; Política; Fenomenologia; Cuidado; Formação.

Em minha trajetória de vida, fui fortemente marcada pelo que a educação pública pode
me proporcionar. Posso até dizer que ela me transformou. E me dá tantos motivos para lutar
com que seja de qualidade, levando esperança a tantos outros. A escola tem sentido de existir,
existindo ela traz novas expressões para ultrapassar as dificuldades sociais.
Sou a primeira da família a conseguir concluir o ensino superior. Começo sinalizando
esse aspecto, porque talvez tenham muitos que compartilham dessa mesma experiência. Ao
longo de toda a minha jornada estudantil entre ensino fundamental, ensino médio, primeira
graduação, mestrado e agora segunda graduação ocupei o público. Depois como profissional,
sempre lutei por estar nos espaços públicos. Porque acredito na força desses lugares
transformarem vidas, assim como a minha.
Experimentei na pele a experiência dos momentos em que a escola tanto me lançou para
o mundo, quanto com alguns profissionais ao olharem para as salas lotadas diziam que dali não
sairia ninguém que alcançasse ao tão sonhado terceiro grau. Isso porque na cidade interiorana
do Ceará onde eu morava adentrar uma universidade requeria tanto mudanças para outras
cidades, quanto recursos financeiros e disposição para estudar além do que a sala de aula
oferecia.
Assim, o lugar privilegiado na escola para mim, eram as aulas de história, em que a
professora levava ao pensamento crítico e político diante da realidade vigente da época. E boa
parte de algumas aulas, me refugiava na biblioteca da escola, já que a internet era para poucos.
Minha posição então diante da realidade da educação perpassa pela própria experiência de ser
e fazer transformação na educação pública.
O que é que tudo isso tem haver com fenomenologia e educação? Tem muito haver,
porque falo de vida, de realidade e de experiência. Trago, pois Bondía (2017) quando diz que a
experiência se mostra como o que tem sentido ao que somos e que nos acontece. Por isso, o
fenomenólogo educacional está permanentemente percebendo o que se passa em si, o que
permanece e o que mobilizou. A experiência nos indica outras possibilidades de transformação
seja de si ou do espaço em que está. Sendo que tal transformação não acontece sozinha, ela se
dá conjuntamente com os outros (FREIRE, 2015).

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Para Heidegger (2005) o ser se compreende a partir de si mesmo. A educação é um


dos espaços em que cada ser poderá compreender a si mesmo, necessitando de formação e
abertura para adentrar a realidade nua e cria dos fenômenos contemporâneos que vem
alterando o modo de como a escola se presentifica na vida de cada pessoa.
Assim, qual o sentido de existir a escola?
O cenário que estamos rodeados nos suscita a pensar e repensar o cenário educacional
em que estamos envolvidos. Momentos de tensão, de descrença, de desânimo. Mas tudo é
possível com a possibilidade de compreender a partir do diálogo que propicia a perspectiva do
“ser-edupolítico”. Trago a junção de educação e política, porque o ser se constitui dentro do
mundo como mesmo indica Heidegger (2005) em sua obra Ser e Tempo ao explicitar sobre a
questão do ser, enquanto ser-no-mundo. Na complementaridade da ideia de unificar o pensar
político me vislumbra a obra do patrono da educação brasileira Paulo Freire (2015) em que
trata a educação enquanto ação política.
Estamos em torno de uma época em que todas as pessoas apontam o dedo para a
escola como a causadora de todos os malefícios da sociedade e mais ainda para o professor.
Trago especialmente os milhares de professores da educação básica, que passam horas a fio
em sala de aula, além de nos momentos extraclasses aonde planejam as atividades, tendo
baixa remuneração, dificuldades com o espaço físico, além de ter que passar muito mais do
tempo de aula mediando conflitos.
Nas últimas décadas podemos observar que, cada vez mais, as escolas vêm assumindo
a tarefa de educar, já que, considerando que os pais (pai e mãe) não têm “tempo” para educar
seus filhos, pois estão fora de casa, trabalhando, cada vez mais, as famílias solicitam das
escolas este posicionamento. Nesta esteira, se por um lado, a rede pública pretende formar
trabalhadores/empregados, a rede particular, por outro, busca formar vestibulandos. Assim, é
possível identificarmos que há maneiras diferentes entre a rede pública e a particular na
articulação educacional. É até de se compreender, mas a educação deve levar a cada pessoa a
ser humano, a olhar para o outro sem excluí-lo, favorecendo oportunidades para que todos
possam ocupar os mesmos lugares sem diferenciá-lo ou discriminá-lo.
Podemos então, sonhar uma escola que vivencie a construção de “ser-edupolítico”?
Ao refletir sobre essa afirmativa, remeto-me a ideia de “cuidado”. É o “cuidado” que mostra
significados a vida e a existência humana. Conforme Heidegger (2005), ser-no-mundo é pois,
ser cuidador.
Assim, tão fundamental quanto ensinar o pensamento do mundo das coisas, é nos
preocuparmos em formar os alunos para o cuidado de sua própria existência. Parece que,
atualmente, o viver foi compreendido como um problema a ser resolvido, um simulado que
espera solução. Desse modo, aprendemos rápido que quando um problema acaba, logo outro
aparece. Cuidar de ser leva-nos a acreditar que tudo é possível, tentando e errando, mas se
esperançando que a transformação acontecerá (FREIRE, 2015).
O mundo contemporâneo se mostra nas salas de aula, seja a nível dos excessos, como
a dimensão de um currículo recheado de disciplinas, como de projetos sem sentido. O aluno
em muito momentos não tem voz, é somente mais um consumidor, muitas vezes inconscientes
do que um grande sistema tem a lhe oferecer, a manipulação. Quando a escola se abre para a

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possibilidade de mudanças, vivencia nela o cuidado. Ao invés de possuir coisas, a valorização


se dá nas relações, estimulando para que o lugar de questionamento, da dúvida e do resgate do
ser, seja meio favorável para a resistência do que aprisiona e enfraquece a sua humanidade.
A partir dos estudos realizados nos últimos anos, tenho indicado que a maneira de
levar a prática do cuidado é a formação. Temos em muitos lugares, a formação sem qualidade,
tendo professores com práticas inadequadas, consequentemente se multiplicando alunos com
formação básica precária. A saída desse ciclo vicioso será sempre pensar que o caminho
formativo pode ser virtuoso. A formação que valorize as práticas e propicie espaços de escuta
entre os professores das várias modalidades de ensino (SOUSA, 2018).
Mediante isso, nossas apostas ao longo desses poucos anos foi pensar e praticar a
formação de professores de maneira vivencial-experiencial, iniciando por nós mesmos, com a
reflexão de que só podemos dar ao outro o que temos. Através dos projetos iniciados pela
pesquisa desenvolvida ainda no mestrado, intitulada: Cuidado em Educação: os sentidos da
experiência em uma Pesquisa-Formação com Professoras da Educação Infantil e do projeto
Cuidando do Mestre da Primeira Infância, vimos que tudo é possível no trabalho colaborativo
(SOUSA, 2018; SOUSA; RIBEIRO; SANTOS, 2018).
A Pesquisa-Formação desenvolvida com professoras da Educação Infantil teve como
intuito a formação em cuidado, permeando o autocuidado, cuidado com o outro, com o mundo
e com a prática pedagógica. Obtivemos bons resultados e até os dias atuais ainda repercute no
espaço educacional da escola municipal de Juazeiro – BA, onde desenvolvemos esse trabalho
(SOUSA, 2018). O projeto Cuidando do Mestre da Primeira Infância, foi articulado em
parceria com a secretaria de educação de Petrolina-PE, em que um grupo de estudantes
vivenciou a articulação do cuidado de acordo com a realidade da escola em que o projeto foi
experimentado. Para tanto, os estudantes passaram pelo processo formativo em cuidado,
conhecendo, refletindo e praticando em si mesmos modos diferentes de cuidar (SOUSA;
RIBEIRO; SANTOS, 2018). De todo modo, buscou-se cuidar, olhando os espaços e tempos
suscitados pela realidade.
Compartilho neste espaço um breve escrito como síntese da discussão:

É a hora...
Um dia me disseram que nada podíamos fazer para mudar a sociedade.
Mas eu teimosamente desacreditei nesta crença.
E fui encontrando outros que junto a mim acreditam
Que tudo é possível.
Com a força da luta,
De mãos dadas,
Na intensidade de dialogar
E construir novos caminhos.

Esta construção começa dentro de nós


Com as palpitações e inquietudes de viver
Sendo-no-mundo-com-os-outros

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Sabendo que ora temos que ir


Ora nos (re)fazer, na peleja de equilibrar
As nossas vontades e sonhos
Em prol do bem comum

Pois não nos libertamos sozinhos.


A luta se dá de maneira coletiva.
Eu me constituo e me torno pela contribuição do outro.
Assim todos geramos uma atuação de ser-edupolítico.
Pensando que podemos (trans)formar muitas realidades.
Pelas nossas escolhas
Pelo o que amamos
Pelo que cuidamos.

Esta é a hora de juntos afirmarmos que tudo é possível.


(Re)tomar caminhos.
(Re)fazer pensamentos.
Para que crianças, jovens, adultos e idosos,
Se sintam verdadeiramente com direitos garantidos.
Construindo um lugar que todos se cuidem,
Se afetem e não permitam que a destruição seja a opção
Da vida que ainda fumega em nós.

Uma escola, enquanto lugar “edupolítico” é aquela que carrega o sentimento de


responsabilidade e de dever agir frente ao outro. Conforme isso, o caminho para favorecer
uma escola viva e de qualidade é cuidar, possibilitando afetações que tragam sentido de
existir, resistindo às intempéries cotidianas dentro e fora do cenário educacional.

REFERÊNCIAS

BONDÍA, Jorge Larossa. Tremores: escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51. ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2015.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. 15 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

SOUSA, Clara Maria Miranda. Cuidado em educação: os sentidos da experiência no


contexto de pesquisa formação com professoras da educação infantil. 2018. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Formação de Professores e
Práticas Interdisciplinares, Universidade de Pernambuco, Petrolina - PE.

SOUSA, Clara M. M.; RIBEIRO, Marcelo S. de S. ; SANTOS, Tamires L. S. . Experiência de


autocuidado nos processos formativos: uma análise fenomenológica hermenêutica. Linhas
Críticas (online), v. 24, p. 255-277, 2018.

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e Fenomenologia

Palestra Mágna

OLHARES FENOMENOLÓGICOS SOBRE O HUMANO

Mauro Martins Amatuzzi

Na época de meu doutorado, nós, alunos, nos perguntávamos muito, sem conseguir
uma resposta satisfatória, o que era a Filosofia da Educação. Quero refletir rapidamente sobre
isso para depois examinar a questão da Fenomenologia aplicada à Psicologia, principalmente
em seu enfoque clínico.
Filosofia da Educação é um modo de se pensar educação que facilite o exercício dessa
atividade. Temos aí alguns componentes: modo de pensar, atividade de educar, facilitação de
processos.
Quando penso educação posso fazer isso visando, por exemplo, a simples
incorporação de conteúdos por parte dos aprendizes. O problema então seria: Como devo
conduzir a relação educativa para que esses conteúdos sejam assimilados o mais rapidamente
possível, e sem modificações? O modo de pensar que responde a esse problema prático, ainda
não é Filosofia. Não leva em conta o contexto e nem traz uma visão crítica dessa visão de
educação. Também não se pergunta quais as consequências disso para a sociedade e para o
desenvolvimento humano pessoal. Para que fosse Filosofia, seria necessário que não estivesse
tão imediatamente preocupado com a eficácia, mas antes questionasse os objetivos implícitos
na proposta; seria necessário também que considerasse com maior recuo o contexto em que se
insere a atividade educativa nos seus vários graus de abrangência. Filosofar a educação é um
pensar que vai às raízes dessa atividade, para poder melhor enxergar suas implicações, e
assim poder lidar melhor com ela. Filosofar é um modo de se afastar para enxergar melhor e
de forma contextualizada.
Fenomenologia é um modo filosófico de pensar. Num primeiro momento esse modo
se caracteriza por levar em conta as subjetividades envolvidas. Ao contrário da ciência, a
Fenomenologia não lida com fatos, mas sim com acontecimentos. Os fatos são considerados
na abstração do “em si”. O acontecimento é considerado na concretude de seu impacto sobre
os sujeitos. Isso quer dizer que a Fenomenologia trabalha com significados. O significado
reúne sujeito e objeto num todo. O acontecimento é o fato inseparavelmente unido ao
significado que ele tem para um ou mais sujeitos. A Fenomenologia lida não com o universo
em si, mas com o que ele significa, nos seus diversos níveis de impacto sobre o ser humano.
Uma Geologia fenomenológica estudaria as diversas rochas naquilo que cada uma delas “diz”
ao ser humano que com elas lida. Uma Zoologia fenomenológica marítima estudaria cada
espécie de peixe a partir da experiência dos pescadores. Em suma, a Fenomenologia pensa a

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experiência humana, e é através disso que constrói um mundo. Ela é um modo de se afastar do
objeto a tal ponto que inclua o próprio pensador no que ela está considerando.
Cada coisa que se destaca de um fundo tem um significado para nós, aparece, chama a
atenção. Perguntar que significado é esse equivale a perguntar que sentido tem essa coisa. O
sentido não é a causa, não é o “de onde veio”. É o “para onde vai”; é o “o que essa coisa me
diz”. Os acontecimentos “falam”, repetia Martin Buber. Os fatos têm causa, mas eles são
mudos. São mudos porque foram calados por nossa abstração que tirou deles um pedaço.
A pergunta pelo sentido emerge dentro de nós com naturalidade. A ausência de
sentido é muitas vezes sentida como um sofrimento atroz. “Por que continuo a fazer isso se
não me faz mais sentido?”. Muitas vezes sentimos que o sentido não existe objetivamente
falando. Ele precisa ser inventado subjetivamente. Temos necessidade de um sentido. Então
inventamos um. Mas outras vezes o sentido inventado não nos satisfaz. Nesses momentos
sentimos que o sentido precisa ser descoberto. Toda e qualquer invenção, no lugar da
descoberta, nos frustra. Precisamos de um sentido descoberto. Ou ele está lá, ou é uma
mentira. Este é o sentido fenomenológico. Estamos aqui diante de um tipo original de
objetividade.
Uma vez colocada e vivenciada a questão do sentido fenomenológico, ela se alarga.
Passamos dos sentidos particulares para os sentidos mais gerais. Passamos do sentido de uma
aula, para o sentido de uma disciplina no curriculum, depois para o sentido de se trabalhar
como docente-pesquisador, depois para o sentido de Universidade numa sociedade.
Alargando sempre mais, vamos bater no sentido de vida e no sentido que faz o mundo.
Primeiro, de minha vida, depois da vida no planeta, até chegar no sentido do planeta e até do
universo.
Seria isso um beco sem saída? A pergunta pelos sentidos mais gerais não tem resposta
científica, simplesmente porque a ciência lida com fatos e não com acontecimentos. Mas a
pergunta em si não para de gritar dentro de nós, principalmente quando estamos diante de
acontecimentos trágicos que nos falam pessoalmente. Qual o sentido da pergunta persistir se
ela não tem resposta? Que vazio é esse? Esse vazio pode ser investigado, apalpado, “medido”
fenomenologicamente falando. Ou pode ser ativamente ignorado, e a pergunta que o suporta,
calada. Mas isso provavelmente terá um preço psicológico (Viktor Frankl).
Sentir o vazio de sentido gera uma busca existencial de preenchimento. Mas quando
não sabemos de que é esse vazio, e o sentimos simplesmente como nosso inexorável vazio
sem possibilidade de preenchimento, então ele pode gerar o desespero.
Que nome poderíamos dar a esse lugar que em nós é preenchido por esse vazio prenhe
de uma busca? Na linguagem mística, esse lugar era chamado de alma (Dicionário de
Mística). E seu despertar vem a ser a experiência de tornar-se humano. Essa “hominização”
pessoal, que acontece durante a vida de muitos de nós, é apenas o reflexo de outra
hominização que ocorreu há milhões de anos: a hominização da espécie (Teilhard de
Chardin).
Esses dois passos iniciais do “tornar-se pessoa” (Carl Rogers), o despertar e a busca,
foram descritos na tradição mística desde há muito tempo, muito antes de existir Psicologia
como ciência independente.

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Mas o que é a tradição mística? Eu diria que é a transmissão de experiências vividas, de


mestre a discípulo, desde tempos imemoriais, que vai constituindo um todo de saberes que
cresce com o passar do tempo e com o acontecer das experiências. Faustino Teixeira é um dos
estudiosos dessa tradição. O que tem de característico desses saberes é que eles são
experimentais: foram testados não num laboratório, mas com a vida, e só depois disso
transmitidos e interpretados. E como eles incluem a vivência, a subjetividade, também se
expressam em uma linguagem própria, muito diferente da linguagem científica acadêmica
(Erich Fromm, Merleau-Ponty, Wittgenstein).
Um outro autor que tentou sistematizar os passos do desenvolvimento pessoal descritos
por essa tradição, foi Jean-Yves Leloup. Inspirando-me nele, tento mostrar aqui esses passos
em sua relação com a psicologia do desenvolvimento pessoal e dos processos terapêuticos (ver
Mauro Amatuzzi, Por uma Psicologia Humana).
Uma etapa prévia poderia ser denominada de insatisfação difusa. É o sentido vago de
que está faltando alguma coisa, de que “eu não estou bem”, de que “eu não estou em casa”.
A grande reviravolta é o despertar, também chamado de experiência numinosa. Ocorre
quando a pessoa se descobre como sujeito, polarizado por algo ou alguém que não é o si mesmo.
É o início de um caminho novo.
Desse despertar decorre uma busca de experiências novas, chamada de metanoia, uma
palavra grega que significa mudança de rumo.
Essa busca traz muitas satisfações: são as consolações que vão acontecendo no caminho.
Mas a isso se segue uma decepção geral: essas consolações são relativas. É a fase
chamada de deserto. São as dúvidas, as angústias.
O auge dessas angustiantes dúvidas é a plena conscientização do vazio: a noite do
espírito.
Do fundo do poço a pessoa renasce. É a fase de transformação-união. Uma vida nova
que surge das cinzas.
A pessoa está pronta para o convívio social: ela pode até passar despercebida na
multidão, mas está por dentro transfigurada. É o que os budistas chamam de volta à praça do
mercado.
Termino minha apresentação comentando um pouco mais essas etapas.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS PARA APROFUNDAR

AMATUZZI, Mauro Martins. Por uma Psicologia Humana. 4ª ed. Alínea: Campinas, SP,
2014.

AMATUZZI, Mauro Martins. O resgate da Fala Autêntica. 2ª ed. rev. e ampliada. Alínea:
Campinas, SP, 2016.

BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. Perspectiva: São Paulo, SP, 1982.

FRANKL, Victor. Psicoterapia para todos. Vozes: Petrópolis, RJ, 2018.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

TEILHARD CHARDIN, Pierre. O fenômeno humano. Cultrix: São Paulo, SP, 1955.

ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa. Martins Fontes: São Paulo, SP, 2009.

LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do Ser. Vozes: Petrópolis: RJ, 1996.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Vozes & São Francisco: Petrópolis, RJ


& Bragança Paulista, SP, 2004.

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Mesa de Diálogo(s) 4
O OLHAR DA FENOMENOLOGIA PARA A SAÚDE MENTAL

SAÚDE MENTAL É SAÚDE VIVIDA NA COEXISTÊNCIA

Suely Emília de Barros Santos, suely.emilia@upe.br,


Doutora em Psicologia Clínica
Universidade de Pernambuco

Inquietações Iniciais:

Nesse momento de desmonte das Políticas Públicas referentes a Saúde Mental,


confesso que sinto grande dificuldade em construir este texto. Sou tomada por um misto
de sensações que, inclusive, me fez protelar a escrita. Mas... dificuldades estão aí para
lidarmos com elas e assim, inicio esta escrita em forma de narrativa contando um pouco
sobre algumas andanças que fiz e que me levaram a refletir sobre a saúde mental,
afastando-me de uma discussão teorética explicativa.
Pra começo de conversa, uma questão se põe de pé: que problema a gente
escolhe como problema de saúde mental? Inquieta com a possibilidade de escolher
caminhar por uma discussão a partir do tão conhecido binômio saúde-doença, mesmo
compreendendo a saúde e a doença como manifestações dos modos de ser-no-mundo-
com-outros (HEIDEGGER, 2009) que demandam cuidado, ou mesmo inquieta de
enveredar pela história da loucura, apesar de comungar do pensamento de que “[...] a
história da loucura nada mais é do que a história de um sistema de poder sobre os quais
está fundamentada a organização de nossa sociedade (MOREIRA, 2017, p. 170), revelo
a minha inclinação em pensar a saúde mental a partir de uma reflexão sobre o
sofrimento, sobre o desassossego contemporâneo que se vive no cotidiano.
Tomando a ideia de Basaglia (1979) ao enfatizar que a narrativa do paciente é
fundamental para a construção do conhecimento, passo então a narrar histórias vividas
participando de eventos científicos e de ações extensionistas que me possibilitarão tecer
compreensões acerca do olhar da fenomenologia existencial para a saúde mental,
acompanhando os pressupostos como indicativos formais que me guiarão como pontos
de iluminação para os fenômenos que aqui serão desvelados e comunicados.

Lembrando dos “causos” contados e das frases faladas

A partir de uma releitura dos meus diários de bordo, passo a refletir acerca da saúde
mental. Começo me apropriando que são nos espaços coletivamente habitados,
compreendidos como “[...] um contexto no qual os habitantes/clientes vivem e
convivem cotidianamente, sendo corresponsáveis pelo espaço que habita com-outros –
um espaço marcado por um pertencer coletivo, no qual se compartilha a experiência de

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pertencimento” (SANTOS, 2016, p. 20), onde se encontram situações que demandam


uma ação clínica no viver cotidiano voltada à saúde, e uma prática psicológica na rua,
temáticas contemporâneas debatidas pela referida autora.
Esse pensamento encontra ressonância na proposta do Ministério da Saúde: “[...]
na realidade do dia a dia do território [...] é necessário refletir sobre o que já se realiza
cotidianamente e o que o território tem a oferecer como recurso aos profissionais de
Saúde” (BRASIL, 2013, p.22), e me leva a olhar para experiências tecidas ao percorrer
contextos rurais em diálogos com os povos da terra.
Em um evento que participei na Escola Nacional Florestan Fernandes, em
Guararema/SP - I ERA- Encontro da Rede de Articulação: Psicologia, Povos Indígenas,
Quilombolas, de Terreiro, Tradicionais e em Luta por Território, ouvi uma mulher
quilombola dizer: “Todo dia eu saio da minha casa e visto esta pele para a guerra”.
Impactada com essa frase fui me apropriando da intensidade dessa experiência e vendo
vividamente que o Brasil foi constituído pela luta do povo tradicional/originário e do povo
do campo, e que a questão da diferença no Brasil está atravessada pela questão da
desigualdade. Diante dessa ideia lembro de Morato (2018, p. 189) ao afirmar que a saúde
“Refere-se ao direito de ser quem se é, pois, o ser saudável revela a diferença entre o
conceito e a experiência vivida”. Vestir-se cotidianamente com sua própria pele para a
guerra do viver cotidiano por ser negra, quilombola me faz compreender que “[...] o
direito de ser na saúde é ter ‘cuidado’ com as diferenças [...] respeitando as relações de
etnia, gênero e raça – que são portadoras não somente de deficiências ou patologias, mas
de necessidades específicas” (p. 191, aspas da autora).
Compreendendo que etimologicamente o necessário pode ser compreendido como
o clamor por habitar, essa citação me faz recordar uma outra frase que escutei de um
homem quilombola na Comunidade Quilombola do Castainho em Garanhuns/PE, durante
as ações no Programa de Extensão Universitária “Um Pé de Saúde”: “Saúde é viver nessa
terra, é plantar, é ter reconhecimento do nosso território”. Penso que essa é uma outra pele
que se veste para ir à guerra do viver cotidiano por ser diferente. Esse modo de existir
enramado e encharfundado na terra em que vive, planta, luta... me remete a compreensão
de que o “[...] habitar não diz respeito ao fato de possuir ou de localizar-se em uma
moradia, mas ao modo como o homem constrói o mundo que o circunda, na condição
fundamental do ser-o-aí como ser-no-mundo” (SANTOS, 2016, p. 202).
Essa luta tatuada nas peles dos quilombolas e nos seus espaços coletivamente
habitados, espaços de con-vivência atravessada pela experiência de pertencimento,
começa a ser vista por mim como uma experiência de sofrimento cotidiano que conclama
uma reflexão sobre a existência, pois é a mostração de como os horizontes históricos,
culturais experienciados pelos humanos na coexistência se manifestam no seu modo de
ser-no-mundo.
Tomo o sofrimento a partir da etimologia da palavra páthos: “[...] o padecer que
se enuncia como lei da condição mortal. [...] o que se sofre, o sofrimento, mas também a
experiência que, para os humanos, se adquire somente na dor.” (LORAUX, 1992, p.27).
Nas palavras de Feijoo (2017, p.22), dor e sofrimento são “tonalidades afetivas
existenciais”, mas que tem modulações próprias. Sendo a dor própria da existência, o
humano sofre porque vive a dor.

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No Projeto de Extensão Universitária “transVERgente”, realizado em


Sertânia/PE, com camponeses afetados pela transposição do rio São Francisco, escuto
algumas frases que me deixam impactadas, como: “A fauna aqui tá prestando mais que a
gente. Vinte carros pra fauna e nenhum pra gente. Tudo pra pegar ‘coroco’, calango...”;
“Ômi, traga logo um leão pra comê nós tudo!”; “Nos tornamos os ribeirinhos do São
Francisco artificial”. Escuto, ainda, narrativas sobre a chegada do governo em suas terras
de forma bruta, o uso da força sem pedir licença, o impacto ambiental, a perda de animais
e consequentemente perdas econômicas – a roça, a moradia; o arrombamento de
barragens; os óbitos de crianças entre 8, 10 anos por afogamento no canal; a atitude dos
atingidos de ficarem “retrancados”; as indenizações irrisórias, as casas rachadas... Essas
narrativas vão sinalizando a presença do sofrimento. É tudo muito estranho e uma
pergunta ressoa: por onde anda a vida produtiva desse povo? Com essa questão
reverberando, passo a olhar a saúde mental como espaço de pro-dução da vida. Pro-dução,
não no sentido de um produto, um resultado, mas de desvelamento, do que pode se
manifestar na própria ação de viver (HEIDEGGER, 2001).
Nessa reflexão me deparo com o depoimento de um camponês que conta a
decepção numa reunião em que foi comunicado que a empresa que fornecia carro pipa
para eles vai parar/sair, e que agora eles precisarão criar uma associação para terem água
do carro pipa, mas cada um terá que pagar uma taxa. Conta que tinham água do rio
Moxotó, poços com água mineral, cisternas. Hoje, só a água do carro pipa. Acabaram
com tudo. Não adianta mais cavar poço, pois não terá água. Conta que destruíram sua
casa. Ele chegou e as máquinas já passavam derrubando sua casa com seus pertences,
sem lhe avisarem. Quase enlouquece. Caiu no chão com a dor da destruição da sua casa,
da sua árvore pitombeira e, daí em diante, passou a ser hipertenso. Vejo dor, sofrimento.
Sinto a existência em choque. Lembro de Basaglia (1979, p. 29) quando diz:
E podemos mudar, transformar o mundo, através da nossa especialidade, através
da miséria dos nossos pacientes, que são uma parte da miséria do mundo. Quando
dizemos não ao manicômio, estamos dizendo não a miséria do mundo, e nos
unimos a todas as pessoas que no mundo lutam por uma situação de emancipação.
Nesse momento, nós não somos mais uma sociedade de psicodrama, nem uma
comunidade da criança, nem uma sociedade de psiquiatria social. Somos pessoas
unidas que lutam pela liberdade real do mundo.
A população do campo, os povos da terra me provocam a pensar que ainda temos
o desafio de darmos muitos “nãos”. Há ainda uma soberania tirânica que massacra, que
fere, que aprisiona peles existenciais que saem dia a dia para a luta de ofício. Há ainda
muito a se lutar para não haver “nenhum passo atrás”.

O que cabe a nós, profissionais de saúde mental?

O sofrimento, geralmente, nasce de um acontecimento no cotidiano que nos


coloca diante de uma “encruzilhada”, por nos lançar, simultaneamente, na quebra da
estabilidade de uma realidade conhecida e no chamamento à criação de novo sentido.
O sofrimento, a dor da dor, é justamente aquilo que cabe ao profissional de saúde
“[...] acompanhar, de modo que o homem, afinal, saiba que a dor é inevitável; a luta insana
na tentativa de escapar da dor é sofrimento [...]” (FEIJOO, 2017, p.30).

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Não trabalhamos na tentativa vã de evitar, eliminar ou curar a crise, o sofrimento


- experiências próprias do ser humano. Nas palavras de Feijoo (2017, p.10) “[...]
precisamos apreender o sentido da dor e do sofrimento”, ou seja, "trabalhar a questão do
sentido dos sofrimentos existenciais contemporâneos" (SANTOS; SÁ, 2013, p.56), que
se constituem no chão batido do viver cotidiano.
Em situações de sofrimento no viver cotidiano a prática em saúde mental está
atrelada a uma demanda própria de um contexto, de uma sociedade que solicita ser
acolhida em seus sofrimentos. Além disso, requer a participação de uma rede
multiprofissional, bem como aponta para repensar uma práxis comprometida com a
realidade social, ética, estética, educativa e política, numa interface com questões
referentes a diversos aspectos do existir humano, pois saúde mental é saúde vivida na
coexistência.

Referências:
BASAGLIA, Franco. A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o
otimismo da prática – Conferências no Brasil. 2. ed. São Paulo: ed Brasil em
Debates, 1979.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de


Atenção Básica. Saúde mental, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.
Cadernos de Atenção Básica, n. 34. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

FEIJOO, Ana Maria L. C. de. Dor, Sofrimento e Desespero: do Homem Grego ao


Homem Moderno. In: Feijoo. Ana Maria L. C. de (Org.). Interpretações
Fenomenológico-Existenciais para o Sofrimento Psíquico na Atualidade. (pp.7-32).
2.ed ver. Rio de Janeiro: IFEN, 2017.

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Heidegger, Martin. Ensaios e


conferências. (pp.11-38). 8.ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011.

HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon. 2.ed. revista. Petrópolis/RJ: Vozes;


Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2009.

LORAUX, Nicole A Tragédia Grega. In: NOVAES, Adauto. (org.). Ética. (pp. 17-34).
São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

MORATO, Henriette T. P. Reflexões acerca da saúde: implicações para o desassossego


humano contemporâneo. In: DUTRA, Elza (Org.). O Desassossego Humano na
Contemporaneidade. (pp. 167-197). Rio de Janeiro: Via Verita.

MOREIRA, Maria Inês B. (2017). Protagonismo de usuários de serviços de saúde


mental e familiares nas ações de pesquisa, extensão e ensino-aprendizagem em saúde.
In: CABRAL, Bárbara Eleonora; BARRETO, Carmem Lúcia B. T.; KOVÁCS, Maria
Júlia; SCHMIDT, Maria Luísa, S. (Orgs.). Prática Psicológica em Instituições:
clínica, saúde e educação. (pp. 167-181). Curitiba: CRV, 2017.

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SANTOS, Danielle de G. S.; SÁ, Roberto N. A existência como “cuidado”: elaborações


fenomenológicas sobre a psicoterapia na contemporaneidade. Revista da Abordagem
Gestaltica – Phenomenological Studies, XIX(1), pp.53-59, 2013. Recuperado em 15 de
abril de 2018, de <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v19n1/v19n1a07.pdf>.

SANTOS, Suely Emilia de B.“Olha!... Arru(A)ção!?...” A Ação Clínica no Viver


Cotidiano: Conversação com a Fenomenologia Existencial. Tese (Doutorado em
Psicologia Clínica) - Universidade Catoìlica de Pernambuco, 2016.

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DISCUTINDO A ESCUTA NA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA

ESCUTA(DOR): CONHECE(DOR) E CUIDA(DOR) DE SI E DO OUTRO

Shirley Macêdo. E-mail: mvm.shirley@gmail.com. Docente do Colegiado de Psicologia, da


Residência Multiprofissional em Saúde Mental e do Mestrado Profissional em Dinâmicas de
Desenvolvimento do Semiárido da Universidade Federal do Vale do São Francisco
(UNIVASF). Membro do GT ANPEPP: Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos.

Palavras-chave/Descritores: Escuta; Fenomenologia; Cuidado; Formação do Psicólogo;


Pesquisa Fenomenológica.

INTRODUÇÃO

Esse texto visa uma exposição de pensamentos, sentimentos, ações e modos de estar
junto com estudantes universitários produzindo sentido e conhecimentos sobre a o processo de
formação do Psicólogo como escuta(dor) e cuida(dor) de si e do outro. É um texto que busca
integrar duas temáticas gerais das mesas das quais participo no Encontro de Fenomenologias
do Vale do São Francisco, quais sejam: “Discutindo a escuta na perspectiva fenomenológica”
e “A construção do conhecimento pela fenomenologia”.
Nos últimos quase 20 anos, tenho me ocupado da tentativa de praticar a escuta como
profissional de Psicologia, em grupos de supervisão de estágio, em contexto de oficinas com
estudantes de Psicologia e/ou na produção de conhecimento a partir da experiência como
orientadora de Iniciação Científica e de projetos de extensão cujo mote é a ajuda na caminhada
de tornar-se psicólogo, sempre pautada na disponibilidade para o ecoar da Escuta, que considero
um dispositivo essencial ao fazer psicológico.
Parto do princípio de que a escuta clínica na prática psicológica não se caracteriza como
uma escuta comum, mas como um ouvir diferenciado que pode levar a novas produções de
sentido, pois quem escuta e quem fala se abrem à experiência alteritária e produzem novos
significados que favorecem novos modos de sentir, pensar e agir (DOURADO; MACÊDO;
LIMA, 2016; MACÊDO; SOUZA; LIMA, 2018).
Nesse sentido, minha participação nas referidas mesas está sendo guiada pela
experiência de (co)labor(ação) na formação graduada de estudantes de Psicologia, na qual tento,
com o meu trabalho, facilitar processos para que os mesmos consigam ser escuta(dores) e
conhece(dores) de si para enveredarem pelo caminho de abrirem-se à disponibilidade de se
tornarem escuta(dores) e conhece(dores) do outro no percurso profissional como cuida(dores)
de quem lhes demanda ajuda.

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DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO “SOBRE” À ESCUTA COMO PRODUÇÃO


DE SENTIDO

Quando li, há muitos anos atrás, e ainda bem depois de suas publicações, as obras de
Mauro Amatuzzi, sobre o resgate da fala autêntica (1989) e o que seria realmente ouvir
(1990), compreendi o que tanto já tinha escutado falar sobre que o fazer do psicólogo precisa
ir além das palavras e que enquanto não ouvirmos a palavra primeira, o sentido, não teremos
ouvido ainda. E isso só foi possível porque comecei a me identificar com um modo de
produção de conhecimento, a partir de um referencial filosófico, que me permitia produzir
sentido sobre pensar, sentir e agir como psicóloga.
Eu, quando estudante de Psicologia, passei a ser deficiente auditiva, e, mesmo
conseguindo aprender os conhecimentos que me eram transmitidos, me deparava,
constantemente, com profundas inquietações sobre como poderia ser profissional de escuta
sem ouvir. No entanto, ao iniciar prática psicológica como estagiária, vez ou outra me via
remoendo diante das pessoas com uma famosa frase de Carl Rogers: “quando percebem que
foram profundamente ouvidas, as pessoas quase sempre ficam com os olhos marejados”. Pois
é... Eu via o marejar, e via que estava ouvindo, mesmo tendo apenas 30% de audição do
ouvido esquerdo e quase nada no direito. Passei a entender, contudo, que meus olhos eram
meus ouvidos. Mas meu coração também era. Minha atenção superando os sentidos físicos
também. E minha disponibilidade para estar ali, mais anda... Então, eu fui me desligando dos
meus ouvidos, nada efetivos, deixando minha insegurança e meus conhecimentos acadêmicos
falarem menos alto, e fui me centrando na relação com o outro, numa Escuta profundamente
intuitiva e produtora de sentido.
Foi nesse paradoxal contexto de saber sobre as teorias X não poder ouvir X poder
escutar, que fui logrando êxito na profissão, e me encantando pelo tema Escuta, como algo
que nos impele a um desafio, lança-nos numa nova ordem existencial, abre-nos para o mundo.
A Escuta clínica é a Escuta de um dizer e não de um mero falar. Escutar é um processo de
estar aberto, estar antenado, estar ligado, mas não apenas a conhecimentos e saberes, e sim a
ouvires e dizeres.
Esse processo não se passa dentro de nós como se fôssemos um instrumento de coleta e
interpretação de dados que estão fora. Ele só é possível de ser efetivo na relação, na ação
(con)junta: estamos cá, nós dois, três, quatro ou vários, juntos com, juntando palavras,
silêncios, conhecimentos científicos e mundanos, verborreias, falatório, expressões, choros,
suspiros, sopros, enfim, (entre)cruzando linguagens para saber-mais-com a fim de produzir-
conhecimento-sobre, a partir da escuta produtora de sentido.
Em contrapartida, antes de nos abrirmos para o outro, precisamos nos abrir para dentro,
num encontrarmo-nos constante com o outro e conosco, nesse vai-e-vem que é a produção de
sentido pelo viés da fenomenologia, ou das fenomenologias. Assim, posso dizer, remetendo-
me a Amatuzzi (2008, 2009), que o foco de qualquer abordagem fenomenológica em
Psicologia é o Sentido. Estamos diante de um problema de sentido. E a escuta é aquilo que, na
nossa condição de conhece(dor) Psi, conhece(dor) de nós mesmos, conhece(dor) do mundo,
nos faz produzir sentido na relação de cuida(dor) com outros (as): sentido que faça sentido

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para ele(s) / ela(s), sentido que faça sentido para mim, sentido que faça sentido para nós, ali,
prenhes de dizeres, saberes e (re)descobertas.

A ESCUTA COMO BASE PARA A PRODUÇÃO DO CONHE(SER)-SE E DO


CUIDAR DE SI

Como dispositivo de cuidado (LIMA, 2005), a Escuta não é algo que possa ser ensinado
por um ato pedagógico de transmissão de conteúdos, visando-se a aprendizagem de uma
técnica (HECKERT, 2007). Escutar envolve um processo, que se desenvolve na
experimentação do caminhar pela formação como psicólogo. Eu arriscaria dizer, e estou me
preparando para lançar isto como conhecimento que adveio de uma produção de sentido
diante das experiências que vivi nesses longos anos de atuação como docente em cursos de
Psicologia, que a escuta é um modo de subjetivar-se psicólogo.
Chego a pensar e sentir assim porque nas inúmeras oficinas de Escuta que promovemos
desde 2005 e nas pesquisas que realizamos com estudantes que narraram suas experiências de
ter participado delas (DOURADO; QUIRINO; LIMA; MACÊDO, 2016; MACÊDO;
SOUZA; LIMA, 2018), os co(labor)a(dores) revelavam como aprenderam nesses contextos a:
a) diferenciar a escuta clínica da escuta comum;
b) reconhecer que apenas na prática do escutar se desenvolve a Escuta, porque ela não é
algo que possa ser aprendido em sala de aula;
c) reconhecer a importância de se ouvir e se deixar afetar num processo de escutar;
d) atentar que a própria experiência de escutar só é possível a partir de uma abertura
inicial para se despir de qualquer conhecimento engessado;
e) perceber que na prática da escuta há um chamamento para a responsabilidade de
desenvolver uma escuta qualificada;
f) compreender que há a necessidade de apropriação do autoconhecimento em prol de se
encontrar novos modos de ser para estar diante do outro;
g) compreender que estar preparado para escutar o outro está relacionado à necessidade
de escutar a si mesmo.
Em supervisão de estágio, também é possível perceber como os estudantes mudam em
seus modos de sentir, pensar e agir, diante de si, do outro e do mundo (DOURADO; LIMA;
MACÊDO, 2016), principalmente quando aprendem a escutar-se a si mesmos e a se
diferenciar de seus clientes, como possibilidade de se tornarem escuta(dores) e cuida(dores)
mais efetivos. Certamente que os pilares da clínica em Psicologia são essenciais nesse cuidar
de si para cuidar do outro: supervisão, estudo e processo pessoal. Portanto, o processo de
tornar-se psicólogo envolve mudanças em modos de escutar, porquanto é um processo de
subjetivar-se por um escutar diferenciado, num movimento pendular de ir e vir, na cadência
rítmica de tocar a dor do outro que toca sua própria dor, e do qual não se pode ser
conhece(dor) sem antes saber de si e ser cuida(dor) de si mesmo.

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O ESCUTA(DOR) É UM CUIDA(DOR)

Recordo-me, aqui, de um artigo publicado por Rocha (2012), no qual me deparei com
as expressões escuta(dor) e cuida(dor), quando o autor se referia a um dos maiores desafios de
um psicólogo na contemporaneidade: “levar o sujeito que nos procura, dominado pelo excesso
da dor, a inventar uma nova maneira de ser, a partir das experiências vividas nas situações que
marcam a trajetória de seu existir no mundo” (p.63).
Reconhecendo esse desafio, tenho me lançado nas ações de cuidado a partir de
pesquisas e intervenções com o método da hermenêutica colaborativa (MACÊDO, 2015;
SOUZA; MACÊDO, 2018). O método, que tem suas bases epistemológicas em Merleau-
Ponty e Gádamer, e se respalda em preceitos teóricos de Carl Rogers, é compreendido como
um processo conjunto de interpretação e construção de alternativas, pautado no confronto de
tradições, que viabilizam o encontro intersubjetivo e a retomada da consciência histórica,
favorecendo aos sujeitos envolvidos poderem construir novos projetos para enfrentarem e
ressignificarem o sofrimento. Em outras palavras, em psicologia humanista-fenomenológica,
psicólogo e clientes, pesquisador e colaboradores de pesquisa, se lançam numa interpretação
conjunta de conhecimento, pautada na intersubjetividade, e, através do diálogo, buscam
ressignificar o vivido, produzir sentido e construir estratégias para enfrentar uma determinada
realidade social.
Nesse processo, o psicólogo ou pesquisador é um cuida(dor) que enfrenta impasses ao
compartilhar significados com os participantes, devido sua condição mundana, num dizer
merleau-pontyano, ser a viga mestra do diálogo. Para isso, precisa escutar sua experiência do
mundo, cuidando de suas dores, sem se abster delas, a fim de mergulhar no mundo da
experiência compartilhada no momento do encontro, para produzir novos sentidos.
Certamente que nesse contexto, onde a conversação gadameriana torna-se necessária, ser
conhece(dor) de si é uma prerrogativa para ser conhece(dor) do mundo, do outro e da relação
que se estabelece junto com ele nesse mesmo mundo, tão nosso, tão tácito, tão rico de sentido.
E, caminhando pelas entrelinhas do falar, do calar e do dizer, o escuta(dor) conhece(dor) vai
tornando-se cuida(dor) de si e do outro.

REFERÊNCIAS

AMATUZZI, M.M. O resgate da fala autêntica. Filosofia da psicoterapia e da educação.


Campinas, SP: Papirus, 1989.

AMATUZZI, M.M. O que é ouvir. Estudos de Psicologia, v. 2, agosto-dezembro, 1990.

AMATUZZI, M.M. Por uma psicologia humana. Campinas, SP: Alínea, 2008.

AMATUZZI, M.M. Psicologia fenomenológica: uma aproximação teórica humanista Estudos


de Psicologia, v. 26, n.1, pp. 93-100, janeiro-março, 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v26n1/a10v26n1.pdf>. Acesso em: 06 mar. 2018.

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DOURADO, A.M.; MACÊDO, S.; LIMA, D.F. Experienciando a escuta clínica no estágio
em Psicologia: um estudo fenomenológico In ESPÍNDULA, D.; SAMPAIO, A. Pesquisa e
prática em psicologia no sertão. Brasília: Instituto Walden, p. 471-495, 2016.

DOURADO, A.M.; QUIRINO, C.A.; LIMA, M.B.A.; MACÊDO, S. Experiências de


estudantes de psicologia em oficinas de desenvolvimento da escuta. Revista da Abordagem
Gestáltica, v. 22, n. 2, pp. 209-218, 2016. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v22n2/v22n2a13.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2018.

HECKERT, A.L.C. Escuta como cuidado: o que se passa nos processos de formação e de
escuta? In PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de. (Orgs.). Razões públicas para a
integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: ABRASCO/CEPESC,
2007. Disponível em
<https://www.academia.edu/9591543/Escuta_como_cuidado_o_que_se_passa_nos_processos
_de_forma%C3%A7%C3%A3o_e_de_escuta > Acesso em: 12 mar. 2018.

LIMA, D. Algumas considerações sobre a escuta na abordagem fenomenológico-existencial,


2005. Disponível em:
http://portalamazonia.globo.com/plantaopsicologico/algumasconsideracoesescuta.pdf Acesso
em: 03 mai. 2016.

MACÊDO, S. Clínica humanista-fenomenológica do trabalho: a construção de uma ação


diferenciada diante do sofrimento no e por causa do trabalho. Curitiba: Juruá, 2015.

MACÊDO, S.; SOUZA, G.W.; LIMA, M.B.A. (2018). Oficina de desenvolvimento da escuta:
prática clínica na formação em psicologia. Revista da Abordagem Gestáltica, v. 24, n. 2,
p.123-133, 2018. http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.1

ROCHA, Z.J.B. Violência contemporânea, novas formas de subjetivação e de sofrimento


psíquico: desafios clínicos. ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, Brasília, v.30, n.2,
p. 55-66, 2012. Disponível em:
<http://www.spbsb.org.br/site/images/Novo_Alter/2012_2/05Zeferino.pdf>. Acesso em: 10
ago. 2018.

SOUZA, G.W.; MACÊDO, S. Grupo interventivo com genitores (as) de crianças vítimas de
violência sexual. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 24, n. 3, p. 265-274, dez.
2018. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
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g=pt&nrm=iso>. Acesso em 09 set. 2018. http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n3.1.

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DA CENTRALIDADE DA ESCUTA NA PSICOLOGIA À ESCUTA SUSPENSIVA1

Cristiano Roque Antunes Barreira2


Universidade de São Paulo
crisroba@usp.br

Uma rápida variação imaginária é suficiente para a constatação da centralidade da


escuta para a Psicologia, seja como ciência seja como profissão. No entanto, usualmente sua
problematização conceitual deixa a desejar, restando em apreensões vagas mesmo se
evocativas de uma presença do psicólogo que contemple e atente à subjetividade. Aqui, sua
tematização ocorre no recorte da condição da reciprocidade interpessoal. A Fenomenologia é
acionada para a análise de diferentes aspectos essenciais da escuta, bem como para apontar a
influência em sua tematização de resultados previamente conquistados em análises do gênero,
como a evidenciação do fenômeno empático (ALES BELLO, 2014) e a emergência da fala
originária (AMATUZZI, 2011). Diferentemente da audição, como a função de um órgão,
escutar não é um fenômeno apenas sensorial, mas também psicológico e operativo,
simultaneamente passivo e ativo. Em seu primeiro polo, o passivo, atua a base material
sensível, hilética (HUSSERL, 2011), em que a tonalidade afetiva se manifesta pre-
reflexivamente. Para haver compreensão desse registro, todavia, presume-se uma articulação
noética (HUSSERL, 2011) – pertinente ao sentido – pela qual se desenvolve e aprofunda o
comparecimento primário da corporeidade por meio de objetivações verbais. Mais do que
operação subjetiva, estruturando-se num encontro, a escuta envolve a expressividade de
alguém, en-volvimento que a faz atividade co-operativa, da ordem da intersubjetividade,
produzindo conhecimentos objetivos (BARREIRA, 2018, 2017). Logo, a centralidade da
escuta enquanto operação intersubjetiva para a Psicologia a situa como condição de
possibilidade dessa área do conhecimento como ciência e profissão. Na Psicologia, nada é
mais elementar e mais sofisticado do que a escuta. Por isso, qualificá-la é necessário.
Tanto modalidades naturais da escuta e a escuta suspensiva são abordadas a partir de
exemplos em relações profissionais de ajuda, pontuando-se escutas médica e psicológicas. Na
primeira, pode-se escantear a subjetividade, triando-se exclusivamente o que traga dados
objetivos para estabelecer relações entre sintomas, cronologia etc. que se prestem ao
fechamento do diagnóstico, prognóstico e prescrição. Pautado em uma perspectiva
organicista, a operatividade médica assim orientada é a de uma escuta científico natural. Já

1
Apoio FAPESP (processo No 2012-227290).

2
Professor Associado e Diretor (2017-2021) da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo (EEFERP-USP). Orientador credenciado junto ao programa de Pós-Graduação em
psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte, ABRAPESP (gestão 2017-2019).

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uma escuta psicológico natural, é a que toma a fala e a subjetividade a partir de enquadres
conceituais em que o significado é decodificado pelo que subjaz à narrativa com base em uma
teoria do funcionamento psíquico já presumida. As primeiras influências da fenomenologia
nas práticas clínicas já se insurgiam contra os reducionismos e a objetivação das experiências
correspondentes às escutas naturalizadas (CALLIERI, 1993). A estratificação complexa
constitutiva da unidade da pessoa, segundo uma antropologia fenomenológica, é
desconsiderada em favor de uma apreensão fragmentada que ou privilegia o corpo ou seus
processos psicológicos.
As rigorosas análises do fenômeno empático empreendidas por Edith Stein (ALES
BELLO, 2014; STEIN, 1998) e especialmente apresentadas no contexto brasileiro pela
filósofa italiana Angela Ales Bello, possibilitaram que, no campo da Psicologia, se renovasse
a atenção às operações intersubjetivas e aos alcances experienciais da escuta, o que engendrou
a concepção de escuta suspensiva (BARREIRA & RANIERI, 2013). Duas interpretações
recorrentes sobre a empatia são afastadas pela explicitação de Stein (1998). Na primeira, a
experiência do outro é assumida como interpretação do eu e, no limite, como projeção do eu.
Ainda que não levada ao extremo, essa interpretação entende que a experiência do outro não
pode ser captada com fidelidade, afinal ela sempre comparece a um eu enviesada pela
perspectiva deste mesmo eu que a capta. Na segunda interpretação, o eu pode se colocar no
lugar do outro, experimentando, no limite, uma fusão pela qual o mundo é apreendido
segundo o ponto de vista alheio. Mesmo sem ir ao limite da fusão, a ideia de um
deslocamento de si mesmo para junto do outro diminui, anula ou mesmo descarta a
perspectiva do eu face ao outro, resguardando-se menos quanto aos riscos de enviesamentos.
Sem recair em interpretações similares, Edith Stein (1998) demonstra como a especificidade
da empatia consiste em captar a experiência alheia como experiência de um outro eu (alter
ego). Sua definição de empatia demarca contemporaneamente a possibilidade e o limite da
empatia acessar a experiência vivida por um outro; possibilidade negada pela primeira
interpretação que vê no que o outro vive sempre o efeito da projeção de um eu, limite negado
pela segunda, que vê o apagamento do eu em favor de sua fusão subordinada ao lugar do
outro eu. Portanto, a posição de Stein mantém o tensionamento entre limite e possibilidade
designando a experiência alheia como o alvo da empatia que tem na compreensão do que é
vivido pelo outro seu sucesso mais íntegro.
A escuta suspensiva ocorre em um duplo movimento de desnaturalização, o de quem
escuta e o de quem fala. Há um processo dinâmico de suspensão de teorias e saberes prévios a
respeito do que é ouvido e acerca do funcionamento subjetivo de quem fala. Essa dinâmica
dá-se como processo ativo pelo qual nem conhecimento prévio nem teorias que informam
quem escuta desaparecem, mas em que são invalidados, temporária e metodicamente, para
permitir uma compreensão não interpretativa da fala ouvida. Simultaneamente, age-se para
que também a fala proceda a uma des-objetivação, exprimindo experiências vividas e não
explicações, saberes, juízos prontos do sujeito da palavra acerca daquilo que ele vivenciou e
vivencia. Sua reorientação é promovida por perguntas do protagonista da escuta que visam
acionar um processo intersubjetivo de modificação da atitude de quem fala. A fala explicativa,
objetiva, ajuizadora corresponde ao posicionamento na atitude natural, ou, na perspectiva de

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Amatuzzi (2001), à fala segunda. Conduzir o diálogo de modo a favorecer quem fala a
se orientar pela própria experiência, procurando conta-la como se passou e expressar o que
vivenciou, equivale a um reposicionamento do sujeito na atitude personalista (HUSSERL,
2011). A suspensão da fala segunda modifica a relação experiencial entre sujeito e fala, esta
se originando numa busca de formulação de seu sentido. Mais originária, a fala primeira não
acontece em cima de outras falas prévias, mas ganha corpo enquanto vem sendo produzida,
oriunda de um silêncio próprio a esse vir à tona que deve ser acolhido em favor de se dar
espaço à produção do sentido (AMATUZZI, 2001). Sob premissas da fenomenologia clássica,
já a orientação de quem escuta é empático-psicológica, suspendendo o próprio
posicionamento pessoal em favor da permeabilidade à experiência e do acompanhamento de
quem fala operando para a compreensão de seu sentido (BARREIRA, 2018, 2017;
BARREIRA & RANIERI, 2013). Ao apreender o sentido da experiência alheia, quem escuta
faz conexões e articulações que passam por um esforço deliberado de abertura, subtração e
retenção de sentidos, antecipação e autocontenção. Compreender significa acompanhar o
encadeamento motivacional e sua explicitação racional depende do esclarecimento dos
sentidos dos elementos vivenciais que constituem o encadeamento, o que é favorecido por
descrições experienciais conforme vivenciadas globalmente. Uma dupla abertura – a de quem
fala à sua própria experiência e a de quem escuta à experiência alheia – significa que ambos
não se ocupem em pensamentos que sejam abstratos, explicativos ou excessivos a ponto de
concorrerem e evadirem a atenção ao sentido experiencial protagonizado. Articulações
abstratas, conexões e devaneios, podem se tornar obstáculos psicológicos. Esforços de
subtração de pensamentos, especialmente daqueles interpretativos e naturalizadores, se
justificam em oposição ao fechamento ocasionado pela presença de obstáculos psicológicos.
A totalidade da escuta psicológica só se compreende levando-se em conta a
perspectiva teórica que a orienta e o enquadre em que ocorre, a exemplo de uma escuta
psicoterapêutica, a de um plantão psicológico ou um enquadre investigativo. Todavia, é
equivocado considerar que apenas o domínio teórico e prático de uma abordagem somada à
correta instalação em certo enquadre cubram, suficientemente, o fenômeno cuja cunhagem
conceitual vem sendo desenvolvida como escuta suspensiva. O enfoque fenomenológico da
escuta psicológica preza pelo exame de como esses pré-requisitos agem experiencialmente no
processo de interlocução. Investigações empíricas sobre o quê e como se suspende são
fundamentais para se avançar uma linha de pesquisa que tenha a escuta como seu tema
nuclear. Portanto, sua conceituação e seu aperfeiçoamento gradativo, apoiando-se em
investigações empíricas, são os principais alvos para a escuta suspensiva articular de modo
promissor a fenomenologia e a psicologia. Embora seja componente estrutural para a
Psicologia, a centralidade da escuta é negligenciada em suas bases epistemológicas. A
problematização fenomenológica conceituada como escuta suspensiva procura suprir essa
lacuna, atentando aos diferentes tipos de escutas psicológicas e às diversas nuances de
suspensões que ainda estão por serem descritas.

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REFERÊNCIAS

ALES BELLO, A. Edith Stein: a paixão pela verdade. Tradução: J.J. Queiroz. Curitiba:
Juruá, 2014.

AMATUZZI, M. M. Por uma psicologia humana. Campinas: Alínea, 2001.

BARREIRA, C. R. A. Análise fenomenológica aplicada à Psicologia: recursos operacionais


para pesquisa empírica. In: M. Mahfoud; J. Savian Filho. Diálogos com Edith Stein. Filosofia,
Psicologia e Educação. São Paulo: Paulus, Cap. 12, p. 317-368, 2017.

BARREIRA, C.R.A. Escuta Suspensiva. In: M. A. KALINKE & M.A.V. BICUDO, V.S.
KLUTH (Orgs.). In: V SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS
QUALITATIVOS: PESQUISA QUALITATIVA NA EDUCAÇÃO E NA CIÊNCIA EM
DEBATE, 2018, Foz do Iguaçu. Anais [...],Foz do Iguaçu: UNIOESTE, 2018, p. 1-12,
Disponível em: https://sepq.org.br/eventos/vsipeq/documentos/26960325803/10. Acesso em:
20 de mar. de 2019

BARREIRA, C. R. A.; RANIERI, L. P. Aplicação de contribuições de Edith Stein à


sistematização de pesquisa fenomenológica em psicologia: a entrevista como fonte de acesso
às vivências. In: MAHFOUD, M. ; MASSIMI, M. (Orgs.). Edith Stein e a Psicologia: Teoria
e Pesquisa. Belo Horizonte: ArteSã, p.449-466, 2013.

CALLIERI, B. Percorsi di uno psiquiatra. Roma: Ed. Universitarie Romane, 1993.

HUSSERL, E. Idee per una fenomenologia pura e per una filosofia fenomenologica,
Volume II, Libro secondo : Ricerche fenomenologiche sopra la costituzione, Libro terzo : La
fenomenologia e i fondamenti delle scienze. Tradução: E. Filippini. Torino: Einaudi, 2011.
(Original de 1913-23, publicação póstuma de 1952). Título original: Ideen zu einer reinen
Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie II: Phänomenologische
Untersuchungen zur Konstitution, III: Die Phänomenologie Und Die Fundamente der
Wissenschaften.

STEIN, E. Il problema dell’empatia. 2. ed. Tradução: E. Costantini, E. Schulze Costantini.


Roma: Studium, 1998. (Original publicado em 1917). Título original: Zum Problem der
Einfühlung.

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Ateliê Reflexivo

FENOMENOLOGIA E PSICOLOGIA DO ESPORTE

Erika Hofling Epiphanio - Universidade Federal do Vale do São Francisco


Cristiano Roque Antunes Barreira – Universidade de São Paulo
Leo Barbosa Nepomuceno- Universidade Federal do Ceará
Marta Magalhaes- Psicóloga da CBP- arbitragem

Pensar a Psicologia do Esporte na perspectiva da Fenomenologia desafia ao


alinhamento de um olhar sobre fenômenos humanos inspirados em filósofos da
fenomenologia, costurando com um fazer psicológico de base fenomenológica.
O objetivo deste trabalho é o de apresentar este olhar da Fenomenologia aos
fenômenos esportivos, tanto em um viés de compreensão, quanto da prática do psicólogo do
esporte. Para isto, neste trabalho apresentaremos brevemente aspectos relacionados à
investigação de fenômenos esportivos desenvolvidos por métodos fenomenológicos, assim
como ofereceremos algumas contribuições de processos interventivos em Psicologia do
Esporte, que partem de abordagens alicerçadas na Fenomenologia.

Palavras chaves: Psicologia do Esporte, Pesquisa Fenomenológica e Intervenção psicológica.

CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO: FENOMENOLOGIA E ESPORTE

A perspectiva fenomenológica é multifacetada e inspirou diferentes abordagens e


teorizações em Psicologia. Um retorno à sua base filosófica, todavia, coloca quem a aplica
numa postura de constante alerta para evitar as naturalizações inerentes à aplicação de
conhecimentos prontos. Ainda que isso não signifique negar nem desprezar o conhecimento já
sabido – o que seria uma contradição – esse alerta age marcando uma atitude investigativa e
aberta que não dá por certas e determinadas as questões psicológicas com as quais se atua.
Trata-se de colocar em prática o que as raízes da palavra designam: uma reflexão (logos)
sobre o que aparece (phainomenon). A transposição das prerrogativas filosóficas da
fenomenologia para a psicologia é um tema controverso que gera debates intensos. Uma
particularidade da psicologia fenomenológica (assumida amplamente aqui como as
abordagens fundadas nesta perspectiva) com a qual a filosofia fenomenológica não lida
diretamente, é o fato de que suas pesquisas e intervenções, isto é, sua suspensão, sua abertura
e suas reduções, se dão no relacionamento interpessoal. O que o filósofo faz a sós, o psicólogo
faz em ato com o outro, o que modifica tanto suas iniciativas quanto suas perspectivas.
Essencialmente, o psicólogo nunca perde de vista nem deixa de agir na relação intersubjetiva.
Portanto, pode-se nomear aquilo que o psicólogo faz nesse encontro como escuta suspensiva
(Barreira, 2018, 2017), conceito que designa operações subjetivas e intersubjetivas que

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seguem prerrogativas fenomenológicas. A primeira delas é a atitude de suspensão da validade


efetiva dos saberes prévios, começo pelo qual a postura fenomenológica empreende esforços
de abertura ao que se mostra. Como muitas coisas se mostram ao mesmo tempo e em sínteses,
isto é, muitas coisas se mostram misturadas, segue-se uma operação de redução
fenomenológica. Na prática, trata-se de apreender manifestações (“objetos”) que comparecem
como mais significativas e relevantes para alguém (“sujeito”), procurando captar-lhes o
sentido a partir da experiências vividas por seu protagonista. No esporte, a escuta suspensiva
é aplicada como modo de se aproximar dos fenômenos vividos de maneira determinante na
prática das modalidades por seus protagonistas, sem esquecer, todavia, que tudo o que
circunda esses protagonistas, mesmo não sendo diretamente relacionado à prática, pode ter
ressonâncias no modo de exercê-la.
A pesquisa de base fenomenológica sobre o fenômeno esportivo tem se desenvolvido
a partir de várias perspectivas teóricas que buscam compreender os sentidos e significados da
experiência esportiva vivida nos diversos espaços sociais em que prática se realiza. A
multiplicidade da experiência e a singularidade que permeia as diversas formas de vivência
nas práticas corporais e esportivas são focos importantes do enfoque fenomenológico.
O fazer da pesquisa, assim, orienta-se pelas estratégias metodológicas que viabilizam o
diálogo entre pesquisador e participantes (atletas e praticantes), buscando a compreensão e
interpretação das experiências singulares e genuínas que se efetivam nos contextos das
práticas corporais e esportivas.

Investigações e produção de conhecimento psicológico de orientação fenomenológica,


portanto, tornam-se exemplares para evocar suspensões de naturalizações típicas sobre dado
campo da realidade, facilitando a abertura à dimensão intencional da experiência. Pode-se,
assim, estudar fenomenologicamente aquilo que motiva as pessoas a praticar, o que elas
pensam da prática, como se sentem praticando, qual o significado de praticar etc. Descrições
nesse nível são importantes, por exemplo, para se definir estratégias de intervenção no campo
esportivo. Diferentemente do que se pode supor, todavia, nem sempre aquilo que atua
decisivamente é patente para o esportista (nem para o psicólogo), isto é, nem sempre o
esportista se dá conta com facilidade nem consegue traduzir em fala o que importa no que se
passa com ele. Um aprofundamento junto às experiências vividas, isto é, às experiências em
primeira mão, permite acessar as estruturas intencionais e pré-reflexivas dos fenômenos
esportivos. A perspectiva fenomenológica possibilita o exame da esfera pré-reflexiva,
dimensão tácita da experiência que, por agir implicitamente, pode corresponder a conteúdos
latentes ou apenas obscuros cuja influência na ação esportiva pode afetar seu desempenho. A
seguir dois exemplos de caminhos investigativos de fenômenos esportivos. Alguns exemplos
de fenômenos esportivos investigados com método fenomenológico serão apresentados a
seguir.
As análises fenomenológicas das lutas e das artes marciais (BARREIRA, 2017b,
2013) têm possibilitado a formulação de uma Teoria do Combate Corporal em que as
vivências estruturais de diferentes modos de combater – a luta, a briga e o duelo, notadamente
– possibilitam diferenciar e intervir quando tendências psíquicas se inclinam à violência e

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junto a concepções que, eventualmente, predisponham praticantes a recorrer à violência como


modo de solucionar conflitos (BARREIRA, 2017c). Ao tematizar concepções, a perspectiva
da arqueologia fenomenológica usada no exame do combate corporal não perde de vista a
dimensão cultural inerente a cada arte marcial e aos contextos das modalidades esportivas de
combate.
As experiências de surfar também têm sido foco de pesquisas (CRISTOFOLLI;
MORAES; TELLES, 2019; NEPOMUCENO, 2018; 2017). Temos percebido que a prática de
atividades físicas/práticas corporais na natureza coloca em evidência, dentro de um conjunto
de discussões epistemológicas e perspectivas hermenêuticas, a produção de saberes ligados à
experiência ou vivência de “entrar em contato” com elementos da natureza. A presença no
mar e o diálogo com as ondas é algo que permeia a subjetividade e a construção identitária
dos(as) surfistas (NEPOMUCENO, 2017). Ao pesquisar a experiência de surfar,
reconhecemos que há uma rica produção de saberes ligados à prática corporal/esportiva do
surfe, permitindo o reconhecimento diversidades, regularidades e singularidades. No que diz
respeito à relação com o mar e as ondas, à apropriação da cultura do surfe e ao apuro técnico e
estético exigido por essa prática corporal, essa modalidade revela uma singela riqueza, um
instigante conjunto de possibilidades de ser. A depender dos modos de apropriação de cada
surfista, percebemos modas, produções sociais, coletivas e compartilhadas. Muitas vezes, os
comportamentos são arregimentados pelo mercado e a mercantilização da modalidade, para
consolidar padrões de estilos de vida e de consumo permeados pela busca de experiências de
excitação prazerosa e transcendência (NEPOMUCENO, 2018). No entanto, em cada história
relatada é possível captar singularidades da experiência de surfar, nos permitindo colocar em
prática a interpretação sobre modos de surfar e de se desenvolver como surfista, incorporando
estilos de vida em que a prática corporal/esportiva ocupa um lugar permeado pelo afeto e por
relações sociais significativas.

INTERVENÇÕES PSICOLÓGICAS NO ESPORTE EM UM OLHAR


FENOMENOLÓGICO

Abordagens fenomenológicas têm se mostrado perspectivas bastante coerentes e


eficientes para se trabalhar no esporte. Como concepção de homem, as diferentes abordagens
o consideram como uma unidade complexa e subjetiva, sem haver separação entre mente e
corpo. Com isto podemos pensar que em todas as dimensões do esporte, seja no esporte de
alto rendimento, no esporte voltado à educação e ainda à saúde, quando compreendidas e
trabalhadas de forma ampla, onde se considera todas as esferas humanas (corpo, mente,
afetos, aspectos sociais, espirituais), ampliam-se as possibilidades de desenvolvimento
humano.
Conceitos oriundos de análises fenomenológicas para compreensão do homem
preconizam que temos que pensar em sua contextualização, a exemplo das ideias de Ser-no-
mundo e Ser-com-outros, alertando que esta compreensão deve considerar o mundo em que se
vive e as relações que configuram a situação em que a pessoa se insere. Assim, no trabalho
com a Psicologia do Esporte torna-se necessário compreender o meio esportivo e as relações
que são peculiares a este.

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Embora a Psicologia do esporte se aplique a todas as dimensões do esporte, neste


trabalho será enfatizada esta prática no esporte de alto rendimento.
A Psicologia do esporte, quando aplicada ao esporte de alto rendimento trabalha
usualmente no desenvolvimento das chamadas habilidades psíquicas que levam a uma
melhoria do desempenho esportivo, seja pensando no esporte individual ou coletivo.
Para tal, o primeiro ponto a ser destacado é que, como dito anteriormente, para intervir neste
meio (mundo), o psicólogo precisa conhecê-lo, tendo uma compreensão aprofundada do todo
que compõe a prática em que este ser-atleta, ou ser-técnico, ser-árbitros estão inseridos. Isto
leva a um movimento do psicólogo rumo ao ambiente esportivo (quadras, pistas, piscinas,
campos, entre outros), para que este sinta o clima do treinamento esportivo, das competições e
conheça as regras e habilidades necessárias para o bom desempenho destes atletas. Também é
necessário compreender as relações deste meio, entre as quais a relação treinadores-atletas
merece destaque, pois fala de um ponto central do trabalho do psicólogo do esporte que, para
desenvolver um trabalho eficiente em uma equipe esportiva, ou com um atleta
individualmente, faz trabalhos de intervenção em favor de comunicações mais eficientes e
harmoniosas entre estas partes. Também há de se considerar as relações entre atletas de uma
mesma equipe e entre seus rivais, outro ponto central no trabalho do Psicólogo do esporte,
principalmente ao considerar modalidades esportivas coletivas em que o resultado depende do
funcionamento das relações do grupo, que envolve cooperação na busca de objetivos comuns
(a vitória, por exemplo), sem deixar de considerar que há competitividade dentro dos grupos
por uma melhor posição na equipe, um aspecto relacional que não deve ser negligenciado, já
que pode atuar na esfera motivacional, interferindo eventualmente como um fator
desestabilizador do grupo. Uma equipe precisa ter boas comunicações e harmonia em suas
relações para atingirem bons resultados.
No contexto específico do futebol, dentre os diversos personagens envolvidos numa
partida, muito se questiona a respeito da preparação de atletas e equipes, em especial quando
seu desempenho se apresenta abaixo da expectativa ou, em poucos casos, quando o sucesso é
repetido de modo tão consistente. Do mesmo modo, o árbitro de futebol é questionado e seu
desempenho avaliado, mas sua preparação não é debatida ou incentivada. Cobram-se
performance e perfeição desta categoria esportiva, e pouco sabemos a respeito de suas
necessidades ou condições para demonstrar tão alto desempenho. O árbitro deve ter uma
preparação técnica para interpretar todos os lances de um jogo, uma preparação física que
permite que ele esteja próximo onde se desenvolve as jogadas, uma preparação psicológica
que saiba transitar por um nível de ansiedade ideal, perceber as ações e as intenções do atleta,
além de uma motivação para estar em constante aperfeiçoamento técnico, psíquico e físico, ou
seja, em busca de integração, e decisão.
Contudo, para compreendermos essa preparação e a atuação do árbitro, é importante
identificarmos o contexto de sua inserção e atual apresentação no futebol mundial e brasileiro.
Este trabalho corresponde ao emprego da concepção de Pilar Mental, nome dado à atuação do
Psicólogo do Esporte, trabalho que vem sido desenvolvido no sentido de contribuir com à
promoção de saúde e otimização no desempenho. Esclarecemos assim, que corresponde ao
Pilar Mental todos os aspectos relativos à Preparação Psicológica do Árbitro, desde questões

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relativas à cognição, concentração e tomada de decisão até aspectos relativos à auto regulação
emocional como o controle de ansiedade e o desenvolvimento de resiliência como habilidade
necessária ao controle de estresse envolvido na atuação deste profissional. A atuação da
Psicologia do Esporte junto à Comissão de Arbitragem da CBF teve e tem um processo de
construção e reconstrução ao longo dos anos, e das necessidades do momento. A construção
desse trabalho psicológico com os árbitros de futebol foi iniciada em fevereiro 2004 no Safesp
(Sindicato dos Árbitros de Futebol do Estado de São Paulo). De 2005 a 2006 avançou para
outros Estados Brasileiros, onde eventuais trabalhos como Palestras, Atendimentos
individuais ou em grupo, Mini Cursos, acompanhamento em pré-temporadas, avaliação física,
entre outras necessidades do momento, foram realizados junto à Confederação Brasileira de
Futebol. Ao longo do tempo e das construções, diferentes experiências e exigências ao
trabalho de Preparação Psicológica foram realizadas. Dentro do contexto crescente, percebeu-
se a necessidade de seguir com o Trabalho Psicológico e com a construção sendo editada a
cada temporada deste 2007 até a presente data.

Alguns aspectos merecem destaque do Trabalho Psicológico com árbitros:

Conhecer e compreender a realidade do Ser-árbitro


Conhecer e compreender a relação entre este o seus dirigentes e equipe.
Conhecer e compreender a realidade do treinamento destes. Em caso de lesões,
compreender a lesão e suas várias manifestações.
Compreender as experiências vividas no contexto da arbitragem:
Através da relação dialógica partimos para o relato de experiência – o
que pode ampliar a tomada de consciência do ocorrido, e pode nos
revelar a essência do acontecido.

Em algumas ocasiões o árbitro está detido no erro, não tem abertura


e/ou não consegue dialogar sobre o assunto, então, utilizamos alguns
manejos tais como: música, treino com bip, filme, desenho, leitura e
reescrita, dramatização, análises de vídeos do lance em questão, assistir
o jogo e se colocar no papel de supervisor da partida, entre outros: essas
ferramentas são utilizadas com objetivo de alcançar a subjetividade do
cliente.

Para concluir, é importante destacar que mesmo nos esportes do alto rendimento, onde
a melhora do desempenho o que se almeja, é necessário que o psicólogo desenvolva suas
intervenções promovendo melhorias nas qualidades relacionais dos atletas, seja com os
demais membros de sua equipe e seus rivais, seja consigo mesmo, pois a psicologia não pode
perder o compromisso ético com o bem estar humano. Quando pensamos no clima esportivo
de alto rendimento, é comum atletas, treinadores e árbitros serem tratados como máquinas de
desempenho, muitas vezes desconsiderando a condição humana dos mesmos, o que demanda
que, ao trabalhar neste ambiente, o Psicólogo cuide amplamente das pessoas em suas esferas
existenciais.

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BIBLIOGRAFIAS INDICADAS

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KLUTH (Orgs.). In: V SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISAS E ESTUDOS
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Disponível em: https://sepq.org.br/eventos/vsipeq/documentos/26960325803/10. Acesso em:
20 de mar. de 2019

BARREIRA, C. R. A. Análise fenomenológica aplicada à Psicologia: recursos operacionais


para pesquisa empírica. In: M. Mahfoud; J. Savian Filho. Diálogos com Edith Stein. Filosofia,
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CRISTOFOLLI, N.; MORAES, M. A. B.; TELLES, T.C.B. A experiência vivida de surfar: um


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ZINKER. J. A Busca da elegância em Psicoterapia. São Paulo: Summus, 2001

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Ateliê Reflexivo

FENOMENOLOGIA, SAÚDE E PROCESSOS PSICOLÓGICOS

Adriano Furtado Holanda


aholanda@yahoo.com / www.labfeno.com.br
Docente do Programa de Pós-Graduação e Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Paraná (UFPR), Bolsista PQ2/CNPQ. Coordenador do Laboratório de
Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno/UFPR) e do Grupo de Trabalho “Fenomenologia,
Saúde e Processos Psicológicos” da ANPEPP. Editor da revista “Phenomenological
Studies/Revista da Abordagem Gestáltica” e Presidente da Associação Brasileira de
Psicologia Fenomenológica (ABRAPFE)

Shirley Macêdo
mvm.shirley@gmail.com
Docente do Colegiado de Psicologia, da Residência Multiprofissional em Saúde Mental e do
Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas de Desenvolvimento do Semiárido (PPGDiDes)
da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Membro do Laboratório de
Estudos e Práticas Transdisciplinares em Saúde e Educação (LETRANS) e do Laboratório de
Carreiras e Desenvolvimento de Competências (LCDC). Membro do GT ANPEPP:
Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos. Membro da Associação Brasileira de
Psicologia Fenomenológica (ABRAPFE)

Palavras-chave/Descritores: Processos Psicológicos; Saúde; Fenomenologia.

INTRODUÇÃO

Qual o lugar e o papel da Psicologia? A tradição coloca-a como “ciência”, mas


naturaliza seu “fazer”, sem que questionamentos sejam postos na direção de uma clarificação
desse seu lugar. Ao longo do tempo, parece que cada vez mais deixamos de lado perguntas
fundantes (HOLANDA, 2019) – aquelas que posicionam o sujeito diante de sua realidade
empírica, e o intimam à reflexão; papel, aliás, determinante da Filosofia – dentre elas: qual o
“objeto” da Psicologia? Como se constrói o conhecimento psicológico? Ou, simplesmente, “O
que é Psicologia?”. É com uma pergunta desta natureza que Georges Canguilhem, em 1956,
nos coloca a posição da questão: com que lida a Psicologia? (CANGUILHEM, 2012). E é
ainda mais surpreendente termos que reconhecer o quanto que a construção do edifício
psicológico foi se afastando de suas questões fundantes.
Husserl e a tradição fenomenológica sabiam da necessidade de se estruturar uma
discussão aprofundada nesta direção. Este sempre foi o projeto husserliano, o de construir
uma “ciência rigorosa” (HUSSERL, 1965, 1985); e, em torno dessa premissa, uma série de
temas e autores se debruçaram sobre questões psicológicas, como o fizeram, notadamente,
Edith Stein (HOLANDA, GOTO, COSTA, 2017).

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Ao longo de sua história, a Psicologia foi se dividindo em torno de supostos “objetos”


autônomos e independentes – como o comportamento, o inconsciente, e tantos outros –, muitos
deles reconhecíveis apenas a partir de metateorias construídas por seus propositores e adeptos.
Foi assim que se construíram as diversas “teorias” ou “abordagens” psicológicas; estas todas
igualmente independentes da pergunta central ou de um objeto passível de ser reconhecível por
esta diversidade.
Durante um certo tempo, a ciência psicológica privilegiou o que se convencionou
chamar de “processos psicológicos” – sem, contudo, deixar de enfatizar aspectos pragmáticos,
como os tradicionalmente associados a fazeres objetivos, como a avaliação psicológica ou a
terapia –, normalmente associados a “funções mentais”, como sensação, percepção, atenção,
memória, emoção, pensamento, linguagem, motivação e aprendizagem. Estas, seriam
constitutivas e qualificativas do humano, teriam interferência de constituições biológicas do
sujeito, mas só se constituiriam na relação deste com seu mundo circundante. Portanto,
poderíamos dizer que esses processos seriam estados mentais subjetivos que desempenham um
papel central nos modos de sentir, pensar e agir humanos.
Ora, sendo a Fenomenologia uma ciência da consciência e da constituição do humano
nas suas múltiplas relações com o mundo e seus objetos, esta se coloca na condição de
possibilidade de interlocução com qualquer outra ciência que venha a ter o sujeito humano por
objeto.

DE HUSSERL A GADAMER: O SENTIDO DA EXPERIÊNCIA COMO FUNDANTE


DOS PROCESSOS PSICOLÓGICOS

Iniciaremos nossas reflexões com Husserl (1859-1938), considerando aquele que


construiu as bases para a fenomenologia como modelo de cientificidade de compreensão do
psiquismo humano e para quem os elementos da consciência são fundantes desse psiquismo.
Necessariamente, estamos considerando, para tanto, o rigor empírico da psicologia
fenomenológica inaugurada por Husserl como possibilidade de alicerçar uma leitura dos
processos psicológicos básicos na relação com os processos saúde-doença, já que essa
psicologia permite resgatar a subjetividade como fonte originária da vida humana e a sua
correlação com o mundo-da-vida, o Lebenswelt (GOTO, 2008; GOTO, HOLANDA, COSTA,
2018).
Partindo da Fenomenologia Descritiva de Franz Brentano, Husserl irá nos propor uma
psicologia pura, apriorística, profundamente ocupada do “cuidado com o pensar” (âmbito da
filosofia) para apropriação de um “cuidado com o fazer” (âmbito da ciência). Para ele, a
intencionalidade é a peculiaridade da experiência de ser consciente de alguma coisa. Desta feita,
é preciso compreender como se desdobram os processos psicológicos básicos na sua relação
intrínseca com a intencionalidade da consciência, matéria primeira das reflexões husserlianas,
para realizar proposições com vistas à saúde psicológica no contexto do sentido compartilhado
da experiência de uns com os outros no mundo da vida.
Para Husserl, a experiência tem um lugar específico entre a lógica e a Psicologia (HUSSERL,
1990, 2007, 2011, 2012, 2013). Os dados sensíveis servem de suporte para a intencionalidade
da consciência, e, deste modo, a experiência está no princípio de todo e

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qualquer conhecimento, já que corresponde a uma vivência originária, a um vivido


intencional que formula um sentido. No entanto, a experiência não prescinde dos dados
sensíveis sobre os quais os atos intencionais da consciência irão atuar no próprio vivido. No
fluxo do vivido em geral, os dados sensíveis “servem de ‘suporte’ para a intenção da
consciência que, por sua vez, anima o vivido de significações” (TOURINHO, 2013, p.36).
Dessa perspectiva, temos que a consciência porta o cogito. Portanto, antes do sentir, do
pensar, do falar e do dizer, temos a experiência que se dá no contato da consciência com o
mundo e desse mundo extrai e produz um sentido. Dito de outra forma: o sentido está na base
de todo e qualquer processo psicológico.
Essas ideias se tornam mais claras na fenomenologia de Merleau-Ponty (1908-1961),
para o qual o foco não era a intencionalidade da consciência, mas a percepção que funda o
corpo vivido, pensado, sentido. Nesse novo olhar, a consciência é corporificada, encarnada no
mundo da vida. Portanto, trata-se de uma consciência que percebe e produz sentido, no campo
da intersubjetividade.
Merleau-Ponty nos permite compreender o sentido das situações intersubjetivas que se
dão naquilo que Husserl denominou por Lebenswelt, ou o mundo da vida (HUSSERL, 2012),
onde se compartilha sentidos e significados, já que ninguém pode ter consciência de si no
mundo sem ter consciência de outros e sem compartilhar com esses dos significados
percebidos, vividos e pensados (MACÊDO, 2015). Assim, ele concebe a intersubjetividade
como constituída a partir da experiência de compartilhamento da realidade (COELHO;
FIGUEIREDO, 2004), referindo-se ao ser humano como encarnado, corporificado nas
situações históricas (existe em um tempo, em um espaço e em um lugar específicos) e que
atribui significados às coisas de um mundo compartilhado com outros sujeitos (MATTHEWS,
2011).
Segundo seus postulados, a experiência intersubjetiva se dá nesse “mundo
circundante” de conexões múltiplas, e se expressa pela linguagem, adquirida pela consciência
de ser encarnada nesse mundo com outros: “porque estamos no mundo, estamos condenados
ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história”
(MERLEAU-PONTY, 1945/2006, p. 18). Temos, aqui, novamente, uma visada sobre o
sentido como fundante das experiências humanas. Mas é com Gadamer (2003) que
compreenderemos como a experiência de relações humanas pode se dar pela linguagem e
produzir novos sentidos, visto que este filósofo nos dirá que os homens estão no mundo
envolvidos com suas tradições. A tradição é o ambiente cultural onde o homem está
incrustado e, por ela, conecta passado, presente e futuro, adquirindo um horizonte, que é sua
perspectiva de mundo (LAWN, 2007).
Gadamer nomeia esse encontro de tradições como Fusão de Horizontes, que pode ser
experienciada no diálogo produtor de sentido. Já que o homem tem o privilégio de ter plena
consciência da historicidade, ele possui senso histórico, é dotado de consciência histórica, que
lhe permite refletir com relação a tudo que lhe é transmitido pela tradição, sendo capaz de
compreender o fenômeno histórico em sua singularidade e, a partir daí, orientar sua
compreensão do mundo (GADAMER, 1996/2006). E será no diálogo, dimensão constituinte e

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constituidora do homem, que o entendimento do mundo se dará, possibilitando novas


produções de sentido.
Temos, diante dessas pressuposições fenomenológicas, uma compreensão de como o
sentido da experiência é fundante de variados processos psicológicos. Portanto, ele está,
também, na base dos processos de saúde-doença.

PROCESSOS DE SAÚDE-DOENÇA COMO ESTADOS MENTAIS E O CUIDADO


PROMOTOR DE NOVOS SENTIDOS NA CONTEMPORANEIDADE

Para uma efetiva compreensão dos processos saúde-doença, do ponto de vista


fenomenológico, precisamos tematizar a Saúde a partir de uma preocupação com
O humano, com a subjetividade e suas necessárias interlocuções; como uma
preocupação com o sofrer e com o sofrente – com o sofrimento em seu sentido lato,
que contempla sociabilidade, contemporaneidade, singularidade e diversidade, que
busca compreender os modos atuais de subjetivação, as sedimentações numa época
da técnica e da virtualidade, a historicidade e a temporalidade –, com o cuidado e
com o cuidar, incluindo um necessário olhar que atravessa o saber psicológico – e
não apenas se reduza a ele –, na demanda por articulações com as demais
contribuições da ciência e da filosofia (HOLANDA; GOTO, 2018, p. 12).

A hermenêutica contemporânea – capitaneada por Gadamer e Ricouer, e herdeira da


Fenomenologia husserliana – nos traz à luz uma série de questões sobre saúde e doença, que
precisam ser absorvidas a partir dos processos básicos (HOLANDA, 2014). E é nesta direção
que nasce a proposta de resgatar – do esquecimento na pulverização dos saberes psi
(HOLANDA, 2019) – os “processos psicológicos básicos”, como elementos característicos e
fundantes da constituição do humano.
Assim que, coerente com a máxima fenomenológica do “cuidado com o pensar”, e no
esteio das leituras e releituras de importantes protagonistas como Husserl, Heidegger,
Merleau-Ponty e Gadamer, buscamos articular, nesse ateliê reflexivo, múltiplas fontes do
pensar filosófico com a multiplicidade do pensar psicológico.

REFERÊNCIAS

CANGUILHEM, G. O Que é a Psicologia? In Georges Canguilhem, Estudos de História e


de Filosofia das Ciências (pp. 401-418). Rio de Janeiro: GEn/Forense-Universitária, 2012
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e Fenomenologia

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Acesso em: 21 fev. 2019.

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Ateliê Reflexivo

GÊNERO, CORPO E SOCIEDADE

Paula da Luz Galrão, Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia
Professora de Sociologia do Colegiado de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Vale do São Francisco

Palavras-Chave: Gênero; sexualidade; corpo; performatividade.

O objetivo deste Ateliê Reflexivo é entender os modos como o corpo vivido a partir
das identidades de gênero reafirmam as normas regulatórias por meio da performatividade
a serviço da heterossexualidade compulsória. A intenção final é mostrar como, por meio da
reflexão e debates sobre os modos como a materialidade dos corpos refletem os discursos
de poder (“Bio poder”), identidades de gênero podem e têm subvertidos às normas relativas
ao binarismo de gênero, refletindo vivências que fogem à heterossexualidade compulsória e
o par dicotômico homem/mulher, trazendo possibilidades de vidas e corpos que por meio
das suas performances cotidianas se tornam políticos e críticos.
Para a compreensão desta proposta é preciso entender os modos como o gênero tem
sido problematizado, principalmente pelas teóricas feministas do século XX e XXI. É
importante atentarmos para os momentos políticos vividos pelas feministas que
problematizam as questões relativas a equidade social, assim como o contexto social
vividos pelas mesmas, para entendermos como chegamos, no atual momento, aos debates
sobre as críticas ao corpo como materialização das normas de gênero e da
heterossexualidade compulsória. Para tanto, se nos atermos às problematizações levantadas
pelas feministas europeias e estado unidenses, precisamos, antes de tudo, considerar os
contextos sociais nos quais estas estavam inseridas. Assim, diante de um seara política e
social que asseverava propostas de universalismo de direitos e promulgava máximas de
liberdade e igualdade, é possível compreendermos as lutas e debates em prol da visibilidade
das mulheres enquanto sujeitas de direito, frente à um grupo extremamente restrito – a
saber homens brancos, ocidentais, proprietários e heterossexuais – que até então eram os
que possuíam o privilégio dos direitos humanos e de cidadania.
Na primeira metade do século XX, depois que a maior parte das mulheres ocidentais
havia angariado os direitos ao voto, educação e uma mínima inserção no mercado de trabalho,
feministas intelectualizadas iniciaram uma pauta de extrema importância não apenas para uma
área que surgia neste momento, os Estudos de Gênero, mas para toda a Teoria Social. O início
das problematizações acerca dos condicionantes sociais que influenciavam comportamentos
de homens e mulheres alavancou as grandes críticas sobre a naturalização dos
comportamentos sociais, o que foi de grande valia para promoção e aquisição de direitos

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específicos para as mulheres, frentes aos Estados nacionais, em prol da equidade de gênero.
O argumento central das feministas deste período era que os comportamentos de homens e
mulheres eram guiados por uma construção social pautada em normas de gênero (para isso
que este termo foi cunhado neste período).
Estas críticas, apesar de extremamente profícuas, contribuíram para homogeneizar a
categoria “mulher”, uma vez que pautava seus argumentos na ideia de construção social das
identidades de gênero. Ou seja, ao elevar as diferenças entre homens e mulheres (pautada
em categorias sociais), não problematizou aquilo que diferia homens e mulheres, o seu
sexo, contribuindo, assim para uma não problematização desta categoria. O Gênero seria
uma categoria mutável socialmente e se assentava na categoria “sexo” que, por ser fundada
na biologia “natural” dos corpos, possuía o caráter de imutabilidade.
Apesar de atualmente a Teoria Social, que se debruça para as questões relativas às
identidades de gênero e sexuais, já terem superado as questões relativas a imutabilidade do
sexo, por meio das problematizações sobre o modo como a categoria “natureza” é fundada
por meio de discursos de poder que alocam uma esfera do mundo fora da inteligibilidade do
mundo cultural, as vivências em vários espaços sociais ainda se dão à margem destas
críticas. Tanto dentro como fora da academia, pessoas ainda vivem, e moldam suas relações
sociais, pautadas em pares dicotômicos, que ao fim e ao cabo refletem a grande dicotomia
“natureza x cultura”, que reafirmam a existência de uma parte do munda fora da
inteligibilidade cultural (reflexiva ou pré-reflexiva). Este princípio, que molda a maior parte
das vivências ocidentais, confere um invisibilidade extremamente daninha às propostas
críticas protagonizadas pelas teóricas feministas e pelas que se embasam na Teoria Queer,
dentre outras, uma vez que supõe uma esfera do mundo social apartado das relações de
poder que o molda.
Segundo pressuposto das teóricas da Desconstrução Social todas as categorias
sociais, que servem de lastro para nossas vivências, são históricas, logo culturais. Nenhuma
delas se coloca na esfera denominada natureza, que, pelo lugar que ocupa a partir das
significações a ela atribuída, se mostra muito mais como um não-lugar no tempo e espaço,
do que como outra esfera de vida. A problematização da categoria “natureza” como de
origem também social se mostra de fundamental importância para esta crítica, uma vez que
sem ela toda a crítica de gênero se mostra ineficaz por se assentar em uma categoria
imutável (sexo), que homegeiniza a pluralidade das mulheres do mundo por meio de
características pautadas em uma biologia supostamente natural. O que fez a teoria da
desconstrução, alimentada fundamentalmente pela noção de bio poder foucaultiana que
problematiza os modos como a inteligibilidade dos corpos é fundada em discursos de
poder, protagonizado principalmente pelo saber médico, foi afirmar que as concepções
sobre sexo, natureza, corpo e o que o caracteriza também são culturais e eivadas de relação
de poder.
Pensar o corpo como materialização de normas sociais rompe com o par dicotômico
sexo/gênero, que, para além das consequências políticas que se refletem nas desigualdades de
gênero, também reafirmam concepções de mundo pautadas em uma ideias de corpo

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vazio preenchido por um entendimento cultural que o move. Tal visão maniqueísta e
teleológica tem sido superada por aquela, que considero valer a pena problematizar, que se
assenta na ideia de corpo/sexo/sexualidade/gênero/cultura como um todo inteligível por
todos os membros de um grupo cultural.
O corpo reitera as normas sociais por meio de performatividades que, segundo
Butler, é vista como uma “prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz o
efeito que ele nomeia” (BUTLER, 1999). Ou seja, as normas que regulam os
comportamentos sexuais trabalham de forma performativa para construir a diferença sexual
a servido do imperativo sexual. Essas performances que materializam e qualificam corpos
produz fenômenos que regulam e constrangem comportamentos. Essa vivencias
performativas criam um universo de inteligibilidade cultural que, ao passo que afirmam a
norma, criam, também, todo um exterior que a legitima. Isso quer dizer que as
performances regulatórias possibilitam identificações sexuadas ao passo que deslegitimam
todas as outras que não afirmam as normas. A produção das normas regulatórias configura
um domínio de seres “abjetos”, que não participam do domínio dos sujeitos legítimos.
...o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma
força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um
exterior abjeto que está, afinal, “dentro” do sujeito, como seu próprio e
fundante repúdio (BUTLER, 1999)

A produção de abjetos, assim, constitui o domínio dos sujeitos autorizados, mas


também funciona como a zona de pressão que em momentos, atualmente mais visíveis e
frequentes, tem surgido para denunciar a suposta legitimidade natural dos constructos
sociais e as relações de poder a eles inerentes. A crítica social, tornada performances
subalternas, têm servido de base para deslegitimar as naturalizações das relações sociais
pautadas no gênero e sexualidade e também para dar visibilidade aos modos como grandes
construtores de verdades, detentores do poder simbólico por excelência, legitimam seu
poder por meio da fundação de domínios que estão fora do mundo. Digo fora do mundo
por não haver possibilidade (nem filosófica nem factível) de um mundo para nós que não
seja cultural.
A construção desta possibilidade (a existência de dois mundos, natural e cultural), a
sua crítica pela teoria da desconstrução e performances de gênero, e a visibilidade e
problematização de performatividades abjetas serão os princípios balizadores deste Ateliê
Reflexivo.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Fundamentos Contingentes: feminismo e a questão do pós-


modernismo. In: Cadernos Pagu, n. 11, 1998

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO,
G. L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica. Pp.:
151-172, 1999.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
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HITA, Maria Gabriela. “Igualdade, Identidade e Diferença(s): Feminismo na Reinvenção


dos Sujeitos”. In: ALMEIDA, Heloisa Buarque de, et. al. (orgs) Gênero em Matizes. São
Paulo: EDUSF, 2002.

LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: Ensaios sobre Sexualidade e Teoria


Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MARIANO, Silvana Aparecida. “O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo”. In:


Revistas estudos feministas, v. 13, n. 3, p. 483-505, setembro-dezembro/2005.

NICHOLSON, Linda. “Interpretando o Gênero”. In: Revista Estudos Feministas. Vol. 8,


n. 2, p. 9-41, 2000.

RICH, Adrienne. “Heterossexualidade Compulsória e existência Lésbica” [Tradução de


Carlos Guilherme do Valle do original: RICH, Adrienne, Compulsory Hetrosexuality and
Lesbian Existence. In: GELP, Barbara C. e GELP, Albert. Adrienne Rich’s Poetry and
Prose. New York/London: WW. Norton & Company, 1993.
WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. LOURO, G. O Corpo Educado – pedagogias da
sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

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Ateliê Reflexivo

PLANTÃO PSICOLÓGICO NA CONTEMPORANEIDADE: O


CUIDADO PARA ALÉM DO INSTITUÍDO

Sílvia Raquel Santos de Morais, silviamorays@yahoo.com.br.


Professora adjunta da UNIVASF.
Darlindo Ferreira de Lima, darlindo.ferreira@gmail.com,
Professor Adjunto do CAV/UFPE

Palavras-chave/Descritores: Plantão Psicológico; Fenomenologia Existencial; Cuidado.

INTRODUÇÃO

O plantão corresponde a uma modalidade de atenção psicológica que surge na


contemporaneidade como proposta de escuta qualificada para demandas de sofrimento do
humano emergentes e urgentes. No Brasil, surgiu inicialmente no âmbito do serviço de
Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) como alternativa de atendimento em
situações de emergência e como forma de lidar com as longas filas de espera em clínicas-
escola de Psicologia.
Por muito tempo, o fazer clínico do psicólogo esteve atrelada às noções de
continuidade, setting terapêutico, classificações diagnósticas e ajustamento de conduta. Com o
desenvolvimento de novas formas de compreender este saber, a prática clínica se ampliou
para além dos consultórios, estendendo-se a instituições educacionais, sanitárias, jurídicas e
assistenciais. Tal alcance reflete não somente a expansão de mercado profissional, mas
também, um processo de democratização da psicologia nos diferentes meios; norteando-se
sobretudo a partir da necessidade da população frente às experiências de sofrimento na
contemporaneidade. Inicialmente o plantão esteve ligado às instituições educativas e hoje,
constitui-se principalmente, como modo de ser/estar cuidado presente em diferentes contextos
sociais. Cuidado voltado para situações de crise do homem no cotidiano (Castro, Carvalho,
Morais e Pereira, 2016).
Vale ressaltar que o plantão psicológico difere de modalidades como a triagem e a
psicoterapia, visto que propõe a escuta no momento em que o sofrimento acontece, emerge,
ecoa e reverbera para as pessoas envolvidas diretamente ou indiretamente em situações
limítrofes, a exemplo: de crises, desastres, emergências, acidentes, perdas, violações de
direitos, violência, dentre outros eventos que surgem na historicidade do tempo e afetam
experiência humana.

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Assim, o plantão psicológico se constitui como uma modalidade de atenção clínica


voltada para atender demandas emergenciais de sofrimento psíquico no momento em que ele
ocorre, de modo que o demandante (aquele que sofre) é acolhido em caráter emergencial e
sem obrigatoriedade de retorno. Rompe-se com isso, a ideia de continuidade tão valorizada
pela clínica psicológica ao longo dos tempos. O que está em jogo não é mais o número de
encontros e as nuances do enquadre clínico, mas o modo de se encontrar pautado pelo modo
de ser cuidado ao outro e junto-com o outro. (BARRETO, 2009).

Diante disso, o objetivo desse ateliê reflexivo co-construir narrativas a partir do


compartilhamento de experiências de plantão em diferentes serviços e tematizar acerca do
plantão como modalidade de atenção psicológica, mas também, como modo de ser cuidado na
vida cotidiana repleta de situações limítrofes que nos afetam, trazem sofrimento e clamam por
sentidos.

MÉTODOS

Trata-se de uma proposta de ateliê reflexivo que será desenvolvido em formato de


oficina na qual realizaremos uma discussão sobre os modos de constituição do plantão
psicológico ao longo dos últimos anos no Brasil, com uso de exposição dialogada e ilustração
de experiências práticas em diferentes serviços que utilizaram o plantão como modalidade de
atenção clínica.
O ateliê ocorrerá a partir de três momentos: no primeiro, os participantes serão
convidados a revisitar o percurso histórico do plantão através de imagens e socialização entre
os presentes; No segundo momento, os propositores apresentarão narrativas e casos do
plantão psicológico realizado em diferentes contextos e instituições para debate. No terceiro e
último momento, será proposto a reconstrução da compreensão dos participantes sobre
plantão a partir das provocações e discussões construídas no encontro. Esta etapa propõe a
possibilidade de conhecer, reconstruir e consolidar as percepções e noções que todos
possuíam ao iniciar a atividade. Portanto, o ateliê em questão, propõe refletir sobre os modos
de se saber-fazer plantão, problematizando a sua consolidação no campo da clínica
psicológica contemporânea a partir de uma inspiração fenomenológica existencial. Para tanto,
as experiências narradas dos proponentes serão revisitadas como forma de tematizar
compreensões sobre a prática psicológica e a historicidade dos demandantes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O plantão não se constitui como uma mera modalidade de atendimento psicológico


instituída na contemporaneidade, mas é uma forma se ser cuidado pautada por escuta não
moralizante. Constitui-se como “momento de pausa” que acolhe/aguarda os diversos modos-
de-ser-com, inclusive do sofrimento em seu acontecer. E isso ultrapassa a configuração de
uma proposta de atendimento instituído, pois requer, antes de tudo, uma atitude plantão, um
modo de ser e de estar para além do que é instituído/esperado nos espaços institucionais onde
a vida acontece.

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Com isso, espera-se que o ateliê reflexivo proposto se apresente como uma oportunidade
de promover encontros, socializar experiências, co-construir compreensões/conhecimentos a
partir do processo de apropriação da prática psicológica dos participantes e de tematizações que
envolvam o cuidado como norteador da ação clínica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O plantão não se apresenta apenas como modalidade de atenção psicológica, mas


também, como modo de ser cuidado em diversos cenários nos quais estamos inseridos como
psicólogos que acompanham o sofrimento humano em diferentes contextos, instituições e
espaços instituintes. Plantão não é apenas uma proposta de escuta em instituições, mas
sobretudo, o modo como nos inclinamos para acolher aquele que sofre no momento em que nos
anuncia sua dor e compartilha o que lhe perpassa a experiência. Ademais, o plantão apresenta
repercussões para quem o realiza e contribui sobremaneira para a formação clínica (GOMES;
CABRAL; MORAIS; LIMA, 2017).
O plantão acontece como um modo de cuidado que se aproxima da vida cotidiana desde
o momento em que a abertura ao encontro do vivido se apresenta e voltamos nossa atenção e
disponibilidade no intuito de acolher, recolher, questionar, pontuar, investigar, aguardar com
serenidade e possibilitar que o anunciado, se desvele. A atitude que questiona o estar-sendo das
coisas no mundo e com o mundo em seus desdobramentos de possibilidades na vida cotidiana
para além de espaço físico é algo presente no modo de cuidado engendrado pelo e no plantão.
Por fim, o cuidado é uma tarefa do plantonista para além do que é instituído nos serviços de
psicologia, assim, defendemos que o plantão não é apenas uma modalidade de atenção
psicológica, mas é também um modo de ser cuidado por onde passamos, convivemos e atuamos.

REFERÊNCIAS

BARRETO, C. L. B. T. Modalidades de Prática Psicológica Clínica: Atenção psicológica e


atitude Fenomenológica Hermenêutica. In: IX Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em
Instituições. Recife. IX Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituições -
Atenção Psicológica: fundamentação, pesquisa e prática. Recife: FASA – UNICAP, 2009.

GOMES, N.A. S.C; CABRAL, B.E; MORAIS, S.R.S; LIMA, D.F. Repercussões da
experiência de fazer plantão psicológico para a formação em psicologia in CABRAL, B.E;
BARRETO, C.L.T; KOVÁCS, M.J; SCHMIDT, M.L.S. (ORGS) Prática psicológica em
instituições. Clínica, saúde e educação. Curitiba, CRV, 2017.

MORAIS, S.R.S; MACIEL, T.S.C; ANJOS, W.M.C; PEREIRA, M.A.T. Plantão psicológico
no sertão nordestino: reflexões a partir de uma experiência de pesquisa e extensão in
BARRETO, C.L.T; CABRAL, B.E; KOVÁCS, M.J; SCHMIDT, M.L.S. (Orgs) Práticas
psicológicas em instituições: clínica, saúde e educação. Curitiba: CRV, 2017.

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DIALOG(AÇÕES)
resumos apresentados a partir do Eixo Temático

Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

AFET(AÇÕES) EM PRÁTICAS CLÍNICAS FENOMENOLÓGICAS COM


RECURSOS ARTÍSTICOS

Queila Andrade Haine Campos. E-mail: queilahaine7@gmail.com.


Estudante de graduação em Psicologia - UNIVASF
Emily Ribeiro da Silva. E-mail: emily.psi.univasf@gmail.com.
Estudante de Pós Graduação em Psicologia - UNIVASF
Gisele Cerqueira Santos. E-mail: giselesantos.cerqueira@gmail.com.
Estudante de graduação em Psicologia - UNIVASF
Melina de Carvalho Pereira. E-mail: melina.mcp@gmail.com. Mestre em Psicologia,
Psicóloga do Centro de Estudos e Práticas em Psicologia- CEPPSI/UNIVASF
Shirley Macêdo. E-mail: mvm.shirley@gmail.com. Docente do Colegiado de Psicologia, da
Residência Multiprofissional em Saúde Mental e do Programa de Pós-Graduação em
Dinâmicas de Desenvolvimento do Semiárido da UNIVASF

Palavras-chave: Grupos terapêuticos; Artes; Fenomenologia; Clínica.

INTRODUÇÃO
O uso da arte como expressão de subjetividade pelo homem é longínquo, evidenciado
em práticas como dança, canto e produção de pinturas. Ciornai (2004) ressalta que estas
atividades ajudam os sujeitos a elaborar, organizar, dar significado e sentido ao mundo. Sendo
assim, psicólogos vêm utilizando produções artísticas como vias de expressão da
subjetividade em práticas clínicas para a promoção da saúde (LIMA et al, 2013; BARROCO;
SUPERTI, 2014), visto que a linguagem simbólica é capaz de transmitir sentimentos e
emoções que o discurso lógico/dialético muitas vezes não consegue exprimir.
Segundo Reis (2014), o uso da arte na prática do psicólogo contribui para que o cliente
consiga entrar em contato com suas questões através de um viés criativo, podendo, assim,
reconfigurá-las em novos sentidos. Desse modo, recursos artísticos potencializam produções

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de sentido em processos terapêuticos, pois, ao utilizar estes dispositivos, o usuário tem a


possibilidade de vislumbrar, com maior apropriação, suas demandas de sofrimento,
assumindo o lugar de protagonista sobre seu cuidado. Ainda sobre isso, Ciornai (2004) aponta
que o uso de recursos artísticos em atendimentos psicológicos pode ser potente no processo
terapêutico, por viabilizar espontaneidade e maior contato do sujeito com seus modos de
subjetivação.
Tal compreensão se alinha às perspectivas fenomenológicas em Psicologia, que
buscam compreender o fenômeno que surge no aqui-e-agora, descrevendo a experiência tal
como é vivida pelo sujeito, que a presentifica e a ressignifica. Prioriza-se o contato com
sentimentos, pensamentos e ações que não podem ser apenas racionalizados.
Descrever coisas simples que se atualizam a cada momento, o óbvio para o cliente, é o
ponto de partida para compreendê-lo fenomenologicamente falando. Sokolowski (2004)
destaca o modo como “as coisas” se manifestam (como o fenômeno que emerge) e a
habilidade de o sujeito permitir que as coisas apareçam. A ideia é uma busca pela
autodescoberta do sujeito como ser-no-mundo a partir da forma pela qual ele percebe os
fenômenos à sua volta. Isto porque o autor não acredita em uma verdade a priori, mas sim em
diferentes maneiras de perceber e sentir determinado fenômeno. Em adição, autores como
Rodrigues (2009), por exemplo, argumentam que o sujeito, aos poucos, vai se
conscientizando da sua maneira própria de perceber as coisas, de lidar com as dificuldades,
reconhecendo a si mesmo e responsabilizando-se pelo que deseja fazer com as novas
descobertas.
Diante disto, o presente relato de experiência visa discutir e problematizar, a partir de
uma compreensão fenomenológica, o manejo clínico de recursos artísticos como vias de
expressividades em práticas clínicas fenomenológicas promovidas por estudantes de
Psicologia, assim como as afetações possibilitadas pelas produções de sentido nos
participantes de processos grupais. Demonstra-se que, independente dos variados vieses de
perspectivas fenomenológicas em Psicologia, são os usuários que dão sentido às experiências
vividas e às produções elaboradas durante uma prática clínica.

MÉTODOS

O presente relato de experiência advém de uma atividade vivencial da prática


psicológica, mais especificamente das atividades desenvolvidas em projetos de extensão que
ocorrem, desde 2016, no Centro de Estudos e Práticas em Psicologia (CEPPSI), serviço escola
da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Coordenados e supervisionados
por uma docente e uma psicóloga, ambas pertencentes ao quadro efetivo da Univasf, os
projetos vêm sendo financiados pelo Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX),
da própria universidade. Também participam do projeto estudantes de Psicologia cursando
entre o 4º e o 8º períodos, que são responsáveis por formar e facilitar processos psicológicos
com usuários do CEPPSI, realizando encontros em grupo e individuais, com o objetivo de
promover saúde por meio de mudanças em modos de subjetivação. Vale ressaltar que em seu
percurso, o público alvo do projeto e, consequentemente, sua formatação foram se

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modificando. No entanto, em todas as versões, houve a presença marcante de recursos


artísticos nas atividades desenvolvidas junto a clientes do serviço escola.
Nas práticas desenvolvidas individualmente e em grupo, os estudantes de Psicologia
acompanham usuários em duplas, utilizando os mais diversos recursos, como: material
reciclável, argila, tintas, telas, pincéis, hidrocores. As atividades desenvolvidas são teatro,
práticas corporais, pintura, desenho, música, dança, produção de poesias, contação de
histórias, esculturas e montagens. Os estudantes de Psicologia registram suas experiências em
diários de bordo e esses registros servem como recurso potente tanto para dar vazão às
afet(ações) vivenciadas nos atendimentos quanto para os encontros de supervisão.
Os atendimentos individuais duram cerca de 50 minutos e os encontros grupais em
torno de duas horas, a cada semana. As atividades são planejadas considerando a demanda
identificada e os recursos artísticos são utilizados em todos os atendimentos. Destaca-se que,
ao final dos encontros, cada estudante registra, individualmente, suas impressões e afetações
durante a facilitação do grupo ou acompanhamento individual. Isso serve como fonte para
discussão dos casos em contexto de supervisão. Além disso, a leitura de artigos científicos é
estimulada pelas supervisoras como finalidade de uma maior apropriação da práxis
psicológica.
Neste relato, focam-se os acompanhamentos grupais, já que a potência do
compartilhamento de experiências é algo que se sobressai nas afetações dos envolvidos nos
processos. Ao longo das três versões do projeto de extensão, foram formados 15 grupos com
diferentes faixas etárias, desde a clientela infantil perpassando por adolescentes, adultos, até o
atendimento a idosos, nos quais foram utilizados a Arte como via de expressão dos modos de
pensar, sentir e agir desses sujeitos. Em comum, as atividades tinham como proposta
expressar sentidos individuais de cada usuário, e, a partir das produções, também foi possível
apreender o sentido grupal.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Os recursos artísticos, nos seus mais variados modos, foram utilizados durante a
realização das propostas de intervenção do projeto e estes acabaram propiciando produção e
ressignificação de sentidos tanto nos usuários como nas facilitadoras dos encontros,
estudantes de Psicologia. Quanto a isso, é importante considerar que a inserção em um
processo grupal evoca nos participantes a ampliação do olhar acerca de si mesmo e das
construções realizadas durante os encontros, e mesmo que a arte seja um recurso de múltiplas
interpretações, numa atividade de compartilhamento de experiências de sujeitos que
vivenciam uma mesma realidade social, os sentidos das experiências se intercruzam e há uma
produção coletiva de sentido.
A princípio, a construção de músicas e/ou poesias teve o propósito de compreender os
estados psíquicos dos usuários. A contação de histórias pelos participantes objetivava a
presentificação das experiências vividas e o alargamento de compreensões sobre si a partir de
alegorias contidas nas histórias. O uso de argila nos encontros teve o objetivo de expressar
sentidos das experiências, possibilitando, assim, uma reorganização interior de suas demandas
de sofrimento. A atividade da Árvore da Vida permitiu um olhar para o usuário de maneira

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integral. Nessa proposta, foi possível explorar diversos momentos da historicidade: infância,
adolescência e vida adulta. Além disso, viabilizou uma compreensão de como o cliente
percebia o mundo e enxergava a si mesmo. A atividade sobre o Corpo a partir de recortes
onde cada subgrupo fazia partes de um corpo, trazia a proposta de uma construção coletiva
que servia de alavanca para discussões e reflexões sobre integralidade.
Na atividade nomeada de Oficinas de música/poesia, os usuários traziam
contribuições para a construção do poema que seria transformado em música partindo das
suas vivências. Com isso, cada pessoa, por vezes apresentando uma demanda semelhante,
relatava algo que contemplava o outro, levando todos a uma reflexão compartilhada. Destaca-
se que nos grupos em que tal recurso foi utilizado, os participantes apresentavam como
demanda ansiedade, angústia, habilidade sociais fragilizadas e sobrecarga. Os usuários
comumente relataram sentimentos de ansiedade no início do encontro e, ao final, apontavam
que saíam mais tranquilos, isso pode indicar que os recursos artísticos utilizados foram
efetivos no processo. As oficinas de música, como atividade interventiva, atuavam como
recurso de expressão de cada sujeito, uma vez que eles ressaltaram que se sentiam menos
ansiosos ao participarem da proposta e compartilharem com o grupo, o qual gerava um certo
“alívio”.
Na construção individual de uma árvore, os participantes conseguiram traçar paralelos
dos desenhos construídos naquele momento com sua história de vida e a forma de se
relacionar com os outros. A partir de questionamentos realizados acerca dos elementos, pelo
grupo ou pelos facilitadores, os sujeitos construíram sentidos e elaboraram novas percepções a
partir das trocas com os demais (intersubjetividade). E justamente por não ter sentido único, a
arte propicia sentidos que vão em direção às singularidades dos sujeitos.
A partir da condução dos encontros, fica evidente que a atividade artística funciona
como um dispositivo facilitador para que o indivíduo perceba significados que seriam difíceis
de serem acessados apenas pela via da linguagem verbal. Logo, é importante considerar,
ainda, que o psicólogo não tem como acessar o sujeito como um todo, mas só tem acesso
àquilo que ele apresenta por meio da fala, da produção artística e do comportamento corporal
(CIORNAI, 2004). Pode-se perceber, ao longo dos encontros, a importância do engajamento
dos sujeitos, uma vez que este favorecia que eles fossem afetados. Sendo a afetação um
processo vivenciado no grupo, ela revelou-se importante e significativa para transformações
nos modos de sentir, pensar e agir desses sujeitos (LERSCH, 1971).
Quando levados para a supervisão, as produções do grupo despertavam outras
sensações nos supervisionandos e nas supervisoras, reforçando que inferências dos
mediadores podem limitar - caso não estejam aptos para intervir adequadamente - o processo
da produção e ressignificação de sentidos pelo sujeito. Dessa forma, é importante não
externalizar no grupo de usuários as impressões que porventura façam sentido para os/as
facilitadores/as a fim de não tolher a produção de sentido dos clientes.
Ainda nesta perspectiva, a aproximação dos facilitadores quando o público por
exemplo enquanto classe de estudantes, também é um grande desafio, que foi percebido por
meio da realização da atividade que envolveu a confecção de um corpo. Na produção grupal,
foram perceptíveis os contrastes nas partes do corpo, apesar dos comandos terem sido os

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mesmos. No espaço de supervisão, para além da beleza estética do desenho, atentou-se


também para a cabeça grande e “transbordando”, o que provocou incômodo e angústia entre
as facilitadoras que também são universitárias e acabaram se identificando com as angústias e
sobrecarga psíquica vivenciadas pelos usuários.
A representação desses sofrimentos também ocorreu por meio da contação de
histórias mediante o livro “A Cidade dos Carregadores de Pedras”, na qual a produção
artística final (construção de algo a partir das pedras) remeteu à concepção de novos
significados compartilhados pelo grupo. Reafirmando que gestos são significativos e
atualizam experiências vividas em novas significações, isto é, “para poder exprimi-los, em
última análise o corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que eles nos significa”.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 267).
Os momentos de supervisão permitiam a revisitação das práticas, reflexão sobre o
processo formativo do estudante de Psicologia, a construção desses profissionais e estudantes,
propiciando uma abertura para a análise contínua do percurso percorrido, validando que a
relação com o outro propicia uma abertura para o mundo, e ao perceber essas limitações,
abrem-se possibilidades para que o sujeito se singularize.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, é importante ressaltar o processo de supervisão como essencial


para momentos de discussão conjunta sobre os conteúdos para que estes não sejam vistos a
partir da perspectiva individual de cada facilitador ou supervisor, o que poderia influenciar
nos processos grupais dos usuários. Evidencia-se, também, o quanto a prática clínica com
recursos artísticos pode contribuir com a formação do estudante de Psicologia, pois permite
lidar com a imprevisibilidade, em consonância com aquilo que o usuário aponta como
fenômeno no aqui-e-agora. É preciso que o futuro profissional da Psicologia mantenha uma
postura de flexibilidade e abertura frente às expressões dos usuários, sendo apenas facilitador,
daquilo que surge, que emerge, visto que a arte não possui um sentido único.

REFERÊNCIAS

BARROCO, S. M. S.; SUPERTI, T. Vigotski e o estudo da psicologia da arte:


contribuições para o desenvolvimento humano. Psicol. e socied. [online]. Paraná, v. 26, n.
1, p. 22-31, 2014. Disponível em: www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/04.pdf

CIORNAI, S. Percursos em arteterapia: arteterapia gestáltica, arte em psicoterapia,


supervisão em arteterapia. 2º ed. São Paulo: Summus, 2004.

LERSCH, P. La estructura de la personalidad. 8ª ed. Barcelona, Scientia, 1971.


(Traducción de la edición en alemán de 1966).

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LIMA, M. C. P. et al. Arte e mediação terapêutica: sobre um dispositivo com adolescentes


na clínica-escola. Revista Mal-Estar e Subjetividade [online], vol.13, n.3-4, 2013, pp. 775-
796. ISSN 1518-6148.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

REIS, A. C. dos. Arteterapia: a arte como instrumento de trabalho do psicólogo. Psicol. cienc.
prof. [online]. Brasília, v..34, n.1, p.142-157, 2014. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932014000100011

RODRIGUES, H. E. Introdução à Gestalt-terapia: conversando sobre os fundamentos da


abordagem gestáltica. Petrópolis: Vozes, 2000.

SOKOLOWSKI, R. Introdução à fenomenologia. Trad. de Alfredo de Oliveira Moraes. São


Paulo: Loyola, 2004.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Pesquisa

“A ALEGRIA DEIXA VOCÊ MAIS JOVEM”: REFLEXÕES SOBRE A


EXPERIÊNCIA DE SAÚDE-ADOECIMENTO-CUIDADO

Anne Crystie da Silva Miranda – E-mail: annecrystie@hotmail.com


(Mestranda em Psicologia/UNIVASF e especializanda em Saúde Coletiva/UFBA)
Barbara Eleonora Bezerra Cabral – E-mail: barbaraebcabral@gmail.com
(Docente do Colegiado de Psicologia/UNIVASF)

Palavras-chave/Descritores: Felicidade. Promoção da saúde. Saúde Mental. Acontecimentos


que mudam a vida. Narrativas Pessoais.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho reúne parte dos achados de uma pesquisa qualitativa compreensiva
que pretendeu conhecer como pessoas que atravessaram uma experiência de adoecimento
psíquico compreendem a vivência da alegria em suas histórias, ansiando discutir como tais
compreensões podem reverberar no cuidado em Saúde Mental na perspectiva da Atenção
Psicossocial. Pesquisas no campo têm aumentado, contudo, privilegiam o tratamento em
detrimento da prevenção e promoção da saúde. Com a Reforma Psiquiátrica e o movimento de
desinstitucionalização, vias de reinvenção da terapêutica têm sido operadas.
Aclamada pelos poetas em suas odes à “boa vida”, desde o princípio, a alegria é uma
vivência cobiçada pela humanidade. Estudar a alegria, tomando-a como vivência de expansão
de possibilidades e afirmação da vida, pôs em questão suas possíveis relações com modos
qualitativamente outros de fazer a vida andar e, em um viés fenomenológico-existencial,
acredita-se que refletir sobre a vivência da alegria diante da experiência de adoecimento
psíquico pode repercutir na transformação da práxis do cuidado, ressignificando a atuação
profissional.
De difícil definição, muitos filósofos consideram a alegria uma paixão da alma, capaz de
levar qualquer mortal ao céu e ao inferno (MATRACA; WIMMER; ARAÚJO-JORGE, 2011).
Experimentar a alegria, portanto, é experimentar a maior das motivações, a força do viver
criativo, e a existência em sua forma pura. Paradoxalmente, contudo, com o advento da
modernidade e o triunfo da razão (influenciado fortemente pelo pensamento cartesiano), a
cultura ocidental restringe a abrangência da alegria, enxergando-a com desconfiança, visto que
afasta o homem da retidão controlada.
Na “ética da alegria” espinosana (SPINOZA, 2007 apud KUPERMANN; SOUZA, 2010),
ancorada na beatitude e na já mencionada liberdade, à medida que a tristeza responde pela
diminuição da ação, a alegria é a ampliação da potência do agir e das ligações do ser com
outros seres e com o mundo. Em vez de implicar a abolição da tristeza, contudo, a alegria

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significa vencer o medo, pois sentir tristeza, inevitavelmente, faz parte da existência. A
alegria e a tristeza, por assim dizer, são 2 (dois) polos fundamentais das paixões humanas.
Para além da aparente oposição, encontram-se e até se misturam.
O pensamento de Espinosa indica que a paixão triste enfraquece e permite a
passividade, diferentemente da paixão alegre, que potencializa a capacidade de agir e ser
(MATRACA; WIMMER; ARAÚJO-JORGE, 2011). Encontra-se uma relação possível disso
em Lambert (1999), quando diz que tristeza e infelicidade enfraquecem as defesas do corpo,
deixando as pessoas predispostas ao adoecimento. Isso porque as vivências emocionais
consideradas negativas são facilmente somatizadas sob forma de bloqueios, tensões e
doenças. Sem dúvida, há tristeza em sentir limitação no estado de vitalidade, no estado de
excitação prazerosa (que faz o sangue circular, o corpo vibrar e a excitação propagar-se), o
qual é base física para a vivência da alegria (LOWEN, 1995).
Pensadores de orientação fenomenológico-existencial, conectados com o caráter
experiencial do adoecimento psíquico, conceituam-no como perda da liberdade existencial,
constrangimento do ser, estreitamento das possibilidades de vir-a-ser (DALGALARRONDO,
2008). Dessa forma, ter saúde mental está vinculado às possibilidades de transitar com graus
distintos de liberdade sobre o mundo e sobre o próprio destino. Martins (1981 apud
DALGALARRONDO, 2008) afirma, por exemplo, que a saúde mental é a chance de dispor
de “senso de realidade, senso de humor e de um sentido poético perante a vida”, atributos que
permitiriam elaborar os sofrimentos e enfrentar as limitações inerentes à condição humana.
Ao longo dos anos, o paradigma biomédico não só contribuiu para a medicalização da
vida como distanciou os profissionais da saúde da compreensão da promoção da alegria como
um modo de cuidar (MATRACA; WIMMER; ARAÚJO-JORGE, 2011). Partindo da
preocupação com essa crítica, esta pesquisa se propôs (e propõe) a reivindicar a construção de
tecnologias sociais criadoras de encantos, encontros, alegrias... saúde! Foi com a intenção de
provocar o desenvolvimento de práxis que dialogue com a população na direção de gerar
“paixões alegres”, como diria Espinosa, que se dedicou a conhecer como pessoas que
atravessaram uma experiência de adoecimento psíquico compreendem a vivência da alegria
em suas histórias.
Algumas compreensões que alcançam o cotidiano da assistência em saúde têm
sinalizado que há uma potência inventiva abrigada na alegria, o que também levou à aposta na
necessidade de refletir sobre este fenômeno, a fim de, quem sabe, nesta etapa, desvelar
sentidos que contribuam com as práticas em saúde contemporâneas, em especial, as práticas
em Saúde Mental na perspectiva da Atenção Psicossocial. Defende-se, no entanto, que
conhecer narrativas acerca da alegria, elaboradas por pessoas que já se submeteram a um
cuidado especializado em Saúde Mental na perspectiva da Atenção Psicossocial, pode
contribuir com a transvaloração das práticas em saúde, questionando a função e a atuação dos
agentes sociais e terapêuticos envolvidos com elas.

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MÉTODO

Escolher um método de inspiração fenomenológica se mostrou o mais congruente,


visto que se pretendeu, por meio da pesquisa, conhecer a experiência do outro, a qual, quando
contada, não se restringe a dar a conhecer os fatos e acontecimentos de uma vida, “significa,
além de tudo, uma forma de existir com-o-outro; significa com-partilhar o seu ser-com-o-
outro.” (DUTRA, 2002, p. 377). Tomando essa noção de experiência a partir da
Fenomenologia, dentre várias articulações possíveis, optou-se pelo pensamento de Benjamin
(1994) como âncora, valendo-se da proposição que ele tece sobre narração e experiência.
Onocko-Campos et al. (2013) destacam a relevância atual e promissora dessas
articulações metodológicas que se comprometem com as experiências intransferíveis,
narradas em primeira pessoa, sinalizando a necessidade de “traducibilidade” delas para o
campo das políticas e práticas, a fim de contribuir para formar serviços mais porosos e
plásticos às demandas das pessoas. O ato de narrar afirma a possibilidade de intercambiar
experiências, retomando rasgos do passado que, clareando o presente, redesenham um futuro.
Portanto, mais do que (re)conhecer experiências por meio de narrativas inacabadas,
entrecortadas, desordenadas, compartilhar estes depoimentos pode conferir caráter de
experiência ao vivido, levando à reinvenção do presente (ONOCKO-CAMPOS et al., 2013).
Recorrendo, portanto, à colheita de depoimentos como método, no quesito
interlocutores da pesquisa, considerando que o cuidado especializado em Saúde Mental está
conectado à experiência de adoecimento, contou-se com a colaboração de 6 (seis)
interlocutores: 4 (quatro) mulheres e 2 (dois) homens, entre 21 (vinte um) e 50 (cinquenta)
anos, todos em plena posse de seus direitos civis e que já haviam se submetido ao cuidado
especializado mencionado.
Optando-se por não atrelar os convites à pesquisa a qualquer instituição específica de
Saúde Mental, na perspectiva de reduzir o viés ideológico institucional, tais interlocutores
foram convidados a partir de indicações na rede de conhecidos da pesquisadora. Mais
especificamente: 1 (um) dos interlocutores fazia acompanhamento periódico em ambulatório
de Psiquiatria; 1 (um) apresentava histórico de acompanhamento em ambulatório de
Psiquiatria e, no momento, tinha o CAPS I como retaguarda; 3 (três) estavam em
acompanhamento em CAPS II e 1 (um) era assistido por CAPS Álcool e outras Drogas III
(CAPS AD III).
Quanto ao cenário de pesquisa, cabe destacar que o diálogo entre pesquisadora e
interlocutor(a) aconteceu em local sugerido pelos próprios interlocutores, o que somou 2
(dois) momentos em residências destes e 4 (quatro) momentos em espaço físico de CAPS.
Todos os critérios éticos foram assegurados. No dia e horário pactuados para o encontro de
colheita, os interlocutores tomaram melhor conhecimento do funcionamento do instrumento e,
em seguida, foram provocados a tecer uma narrativa por meio da seguinte pergunta: “Como
você compreende a experiência da alegria a partir da sua história de vida?”.
Além da questão provocadora central, outras questões foram acrescentadas ao diálogo
entre pesquisadora/ouvinte e interlocutor(a)/narrador(a), conforme o desenrolar das narrativas,

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Word”) e literalizados. Por questões éticas, foram atribuídos nomes fictícios aos
interlocutores, inspirados naqueles que parecem melhor expressar o enigma da vida: os poetas
e as poetisas. Assim, como interlocutores, tem-se: Adélia, Cecília, Clarice, Fernando, Hilda e
Mário.
Com base na leitura e reflexão exaustivas dos depoimentos, buscando uma
compreensão do sentido comunicado, ao mesmo tempo em que se assume que outros sentidos
possivelmente estavam sendo produzidos na interlocução entre pesquisadora e narrativas, os
resultados colhidos foram analisados também com o suporte do pensamento de Benjamin
(1994). Dessa maneira, em contato com o material transcrito, foram realçados excertos que
sinalizavam direções possíveis para compreensão da(s) vivência(s) da alegria, os quais,
posteriormente, em função de seus entrecruzamentos, arranjaram-se didaticamente em 5
(cinco) dimensões interdependentes. A seguir, uma dessas dimensões será apresentada.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Alegria pra cantar a batucada
As morenas vão sambar
Quem samba tem alegria
Minha gente era triste, amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer
Salve o prazer, salve o prazer
Da tristeza não quero saber
A tristeza me faz padecer
Vou deixar a cruel nostalgia
Vou fazer batucada de noite e de dia
Vou sambar
Esperando a felicidade
Para ver se eu vou melhorar
Vou cantando, fingindo alegria
Para a humanidade
Não me ver chorar
(Alegria, de Assis Valente, interpretada por Vanessa da Mata)

Refletir a respeito da vivência da alegria diante da experiência de saúde-adoecimento-


cuidado talvez tenha sido o objetivo-âncora do estudo. É de interesse global a tecitura de
compreensões acerca do processo saúde-adoecimento que subsidiem a invenção de modos de
cuidar e de promover saúde cada vez mais efetivos, que respondam à real necessidade das
pessoas, em suas formas singulares de vivê-lo. “Hoje, eu tenho um motivo, eu acordo todo dia
com um motivo pra estar feliz: eu tô com saúde” (Clarice). Os resultados e reflexões indicam
uma relação íntima entre as experiências que envolvem sentir alegria e as que suscitam a
sensação de saúde. Nas palavras de Mário: “Quando a gente tem saúde, a gente se torna
alegre, né? Um sentimento bom, porque você está se sentindo bem, porque você tá com
saúde, tá se sentindo feliz”.

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Para além de “um estado de completo bem-estar” (OMS, 2001, p. 2), expressão que
ainda gera incertezas quanto ao seu significado, “eu acho que se você tiver tranquilidade...
sentimento de amor, de paz, define saúde” (Hilda). Com essa opinião, Hilda confirma um dos
debates mais quentes, que é o de que descrever saúde como ausência de doença é insuficiente,
além de tautológico. É pertinente, então, retomar Canguilhem (2012) em sua defesa de que é
impossível restringir o conceito de saúde a uma noção científica que o isole da perspectiva de
quem vive a experiência, ou seja, da vivência subjetiva.
“Eu tenho a impressão de que o estresse envelhece e a alegria deixa você mais jovem.
Eu acho que a bendita da alegria ainda pode ajudar você na saúde, a esquecer um pouco das
coisas” (Clarice). A crença de que a vivência da alegria promove saúde, portanto, como o
sentido/direção/horizonte, aparece como algo transversal nos depoimentos colhidos. Clarice
enfatiza que “um dos melhores remédios pra depressão seria a alegria, a distração, um
momento de você esquecer, de tirar, talvez, até um pouco de medo do dia a dia”, o que
encontra ressonância em Kupermann e Souza (2010), que definem alegria como aliada
terapêutica. De certo modo, isso validaria a aposta de Ayres (2009) no “projeto de felicidade”,
uma metáfora da “boa vida”, como referência ao processo de cuidado.
“A partir do momento que eu não tive saúde pra trabalhar, pra continuar crescendo,
subindo minha escada, no momento que aconteceu d’eu me entristecer, eu me sentir doente,
me sentir desanimada, eu precisei de uma pessoa pra cuidar de mim” (Cecília). A partir do
momento que o sofrimento, condição também inerente à vida, limita a liberdade de vir-a-ser
ou devir, o adoecimento se instala e “a pessoa se sente derrotada, como se tivesse pra baixo,
porque nada tá andando, sempre atrasado” (Mário). O sentido que se destaca nas narrativas
aponta que a tristeza que “faz padecer” marca, de maneira indesejada, uma experiência
desencorajadora do crescimento e aliada da sensação de fracasso, dissimulando as metas e
esticando os prazos do “projeto de felicidade” que convém a cada um.
“Eu não tenho a felicidade em um momento sequer. Então, eu estou aqui em busca de
um tratamento para que eu possa exercer isso” (Fernando). Entretanto, será que os modos de
cuidado ofertados, nas trilhas de suas (re)invenções diárias, têm aprendido a valorizar as
experiências de alegria, de felicidade, outrora negligenciadas, como produção de vida e de
saúde? A crítica de Almeida (2009) à história triste da clínica, que colocou a alegria à margem
do cuidado, leva a refletir que os modos contemporâneos têm avançado, porém parecem
subjugar a potência terapêutica do riso, da energia alegre que reverbera entre os corpos, além
de subutilizar os bons resultados que eles mesmos conseguem produzir, não se desprendendo
por inteiro das raízes da “seriedade na clínica”, como se a oportunidade de viver a alegria não
fosse algo extremamente sério.
“Eu acho que pessoas que já passaram por trauma na infância, que são dependentes
de remédios controlados, de assistência psiquiátrica, de psicólogos, normalmente, não têm
‘uma alegria’. São pequenos momentos que temos assim” (Hilda). Nos debates mais amplos
do campo da Saúde Mental na perspectiva da Atenção Psicossocial, a valorização de
princípios como o de empoderamento é propagada. Essa não se qualificaria como uma via
fértil para a discussão, junto às pessoas que demandam cuidado da referida área (quer
especializada ou não), sobre as potencialidades, a vontade de potência (NIETZSCHE, 2009

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apud KUPERMANN; SOUZA, 2010), destacando que os limites pessoais encontrados não
necessariamente atribuem às pessoas que atravessam uma experiência de adoecimento
psíquico menos chances de viver a alegria?! Como melhor inventar “a batucada pra deixar de
padecer”?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não seria mais sensato, na trilha da produção de saberes e práxis, olhar prioritariamente
para a saúde e o bem-estar e para experiências que os afirmem, como a de alegria, em vez de
escanteá-los? Como tecnologia de cuidado capaz de transvalorar práticas, revolucionando não
só os serviços, como também as pessoas que neles circulam, é a alegria que necessita entrar
“na moda”, sem que isto implique na negação da condição de sofrimento. A disponibilidade
de nossas trocas pessoais e profissionais tem sido suficientes para que, vivendo os efeitos da
alegria, defendamos a sua potência terapêutica?
Não só há “seriedade na alegria” como também há seriedade na produção de
conhecimento, científico, focada na experiência subjetiva, que se implica com as
coletividades sem anular as singularidades. Uma reflexão preciosa, talhada na experiência de
realização desta pesquisa, é de que ela mesma se configurou como uma experiência de
conexão entre a vivência da alegria e a promoção da saúde, na relação com os interlocutores.
Assim, “avaliando os efeitos que a tristeza e a alegria têm sobre a nossa vida, é fácil perceber
que é bem melhor ser alegre do que triste” (LAMBERT, 1999, p. 27).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, B. V. Genealogias da alegria. Psicologia em Revista (Belo Horizonte), v. 15, n.


2, p. 97-113, ago., 2009. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v15n2/v15n2a07.pdf>. Acesso em: 26 out. 2016.

AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. 1. ed. Rio de


Janeiro: CEPESC - IMS/UERJ - ABRASCO, 2009. 282 p. (Clássicos para Integralidade em
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BENJAMIN, W. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e


técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
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CANGHUILHEM, G. O normal e o patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2012. 277 p. (Campo teórico)

DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2. ed. Porto


Alegre: Artmed, 2008.

DUTRA, E. A narrativa como uma técnica de pesquisa fenomenológica. Estud. Psicol.


(Natal), Natal, v. 7, n. 2, p. 371-378, jul./dez. 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/epsic/v7n2/a18v07n2.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2014.

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e Fenomenologia

KUPERMANN, D.; SOUZA, R. Alegria. São Paulo: Duetto, 2010. 80 p. (Emoções. Mente e
cérebro; v. 1)

LAMBERT, E. A terapia do riso: A cura pela alegria. São Paulo: Pensamento, 1999. 80 p.

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conceito que introduz alegria para a promoção da saúde apoiando-se no diálogo, no riso, na
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2001 – Saúde mental: Nova Concepção, Nova Esperança. Genebra, 2001. Disponível em:
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ONOCKO-CAMPOS, R. T. et al. Narrativas no estudo das práticas em saúde mental:


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Relato de Experiência

COMPREENSÕES ACERCA DO USO DAS VERSÕES DE SENTIDO EM UM


GRUPO TERAPÊUTICO

Thâmara Agnes da Silva Santos. E-mail: thamaraagnesss@gmail.com. Estudante de


Graduação em Psicologia - UNIVASF.
Milena Vitor Gama Duarte. E-mail: milenavgduarte@gmail.com. Psicóloga Residente em
Saúde Mental - COREMU/UNIVASF.
Erika Hofling Epiphanio. E-mail: erikapsicoesporte@yahoo.com.br. Docente do Colegiado
Acadêmico de Psicologia.
Palavras-chave/Descritores: Versão de Sentido. Grupo terapêutico. Experiência.

EXPLORANDO OS SENTIDOS

De partida, escolhemos o Centro de Estudos e Práticas em Psicologia (CEPPSI) como


campo de Estágio Profissionalizante da graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Vale do São Francisco (UNIVASF), que fica localizada no sertão pernambucano. O CEPPSI
trata-se de um serviço escola que corresponde a um espaço de integração entre teoria e
prática, buscando oferecer aos discentes aproximações sistemáticas e supervisionadas nos
diversos campos de atuação profissional, em conformidade com a Lei nº 4.119/62, que
regulamenta os princípios da formação do(a) psicólogo(a) (CPSI/UNIVASF, 2010). A partir
das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabeleceu-
se a necessidade de instalação de serviços escolas que favorecessem o desenvolvimento das
competências profissionais, qualificando o(a) futuro(a) psicólogo(a) para a atuação de
maneira congruente às demandas da comunidade em que está inserido (BOECKEL, 2010).
Esse campo nos provocou interesse, pois nos possibilitaria ofertar atendimento
psicoterapêutico, promover cuidado e compreender os fenômenos humanos, com base na
psicologia humanista e existencial. Ao adentrarmos ao campo, surgiu a possibilidade da
construção e manejo de um grupo terapêutico. A busca por atendimento psicológico tem
aumentado consideravelmente, de modo que, o modelo tradicional de psicoterapia individual
não tem dado conta de responder a demanda e a psicoterapia grupal tem se destacado como
alternativa (SOUZA, 2011).
Na psicoterapia de grupo, o vínculo é realizado pela interação entre terapeuta e
clientes, assim como, entre os próprios clientes, já que o grupo e sua matriz interativa são
instrumentos empregados para a obtenção da mudança, sendo, o terapeuta, também membro
do grupo (BECHELLI; SANTOS, 2005). Em trabalhos com grupos, de acordo com Bechelli

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(2005 apud MOLITERNO et al., 2012), a atuação do psicólogo caracteriza-se em manter o


foco na fala do grupo, mediar conflitos e assegurar o cumprimento das regras estabelecidas,
além de facilitar a tomada de decisão sobre os medos e ansiedades que possam surgir na
dinâmica grupal. Essa modalidade de atendimento também viabiliza a elaboração psicossocial
de seus participantes, criando vínculos e diminuindo a resistência das relações interpessoais,
através do estímulo à expressividade dos mesmos, o que auxilia no rompimento de modelos
individualizantes e biologizantes (MOLITERNO et al., 2012).
Alves (2013) pontua que o manejo grupal de psicólogos(as) que se pautam na
perspectiva da abordagem fenomenológica compreende que o grupo não deve ser previamente
definido ou limitado. O manejo fenomenológico em grupos apreende o que aparece na
relação, voltando-se para o sentido das experiências e das relações estabelecidas no grupo.
Neste seguimento, para auxiliar a apreensão de sentidos fizemos uso da ferramenta Versão de
Sentido (VS), que se refere a um relato livre que “consiste numa fala expressiva da
experiência imediata de seu autor, diante de um encontro recém-terminado” (AMATUZZI,
2008). Considerando esse quadro, este relato de experiência se propõe a apresentar os efeitos
da utilização da referida ferramenta nas intervenções realizadas, que tiveram como objetivo,
conectar os membros do grupo como os sentidos construídos na experiência.

O PERCURSO TRILHADO NA EXPERIÊNCIA

O grupo terapêutico aconteceu nas dependências do CEPPSI e os encontros ocorreram


semanalmente, entre os meses de Julho de 2018 a Fevereiro de 2019, com um total de 27
sessões. A constituição inicial do grupo se deu a partir do contato com pessoas que estavam
compondo a fila de espera do serviço escola. Foram contatadas por telefone dez participantes,
do sexo masculino e feminino. Posteriormente, foi realizado o primeiro encontro e
apresentamos a proposta às quatro participantes presentes, porém, ao longo dos encontros
outras participantes foram encaminhadas pelo dispositivo. Ao todo, participaram dos
encontros 10 mulheres, com demandas diversas, contudo, no decorrer do processo, 7 mulheres
frequentaram de modo constante. Todas as participantes eram adultas, numa faixa etária entre
22 e 62 anos de idade.
As sessões tiveram duração de duas horas. Inicialmente, pactuamos com as integrantes
um contrato terapêutico que considerava as normas do serviço, questões relacionadas ao sigilo
e as relações grupais. De modo geral, o espaço era disponibilizado para que as participantes
trouxessem como estavam se sentindo e compartilhassem sobre a sua semana, a partir do que
surgia, nós pontuávamos sobre os sentidos das experiências, das relações do grupo e quando
achávamos necessário, sugeríamos a realização de alguma dinâmica. Ao final de cada
encontro as mulheres produziam suas versões de sentido e compartilhavam com o grupo. É
importante ressaltar que após a finalização dos encontros as facilitadoras do grupo também
produziam VS.s que foram utilizadas como recurso compreensivo nas supervisões desta
prática.

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Para fins de contextualização, trazemos que as temáticas mais recorrentes dos encontros
foram: relacionamentos afetivos, conflitos familiares, dificuldade de se posicionar, sofrimento
no e por causa do trabalho e comunicação não assertiva.

COSTURANDO SENTIDOS EM TORNO DO QUE FOI VIVIDO

O manejo dos processos grupais possibilita intersecções entre as histórias de vida de


cada participante, permitindo que cada um tenha a oportunidade de ofertar apoio ao outro. A
psicoterapia em grupo permite que a experiência mundana se desvele de um modo
indeterminado e que abarque a singularidade da vivência de cada participante e de cada
psicoterapeuta, configurando um significado que é do grupo (CORREIA; MOREIRA, 2016).
Amatuzzi (2008) aponta que uma VS é uma versão do sentido do encontro e nesta
perspectiva que ela deve ser analisada. Apesar do sentido ser um conceito de apreensão
incerta, o que importa é refletir sobre o que cada encontro possibilitou. De maneira geral, as
versões de sentidos produzidas trouxera a ideia de que o grupo proporcionou o
compartilhamento de histórias de vida e de angústias. Além de momentos de aprendizagem,
referentes às reflexões propostas nos encontros, que desvelam possibilidades de lidar com as
agruras da existência e apontar caminhos para uma mudança de atitude. Isto pode ser
observado no seguinte fragmento de uma das integrantes: “Decidi focar nas coisas boas e
assim concluir minhas metas diárias. Dia de realizar mudanças e ter atitudes positivas”
(Margarida, na sessão 29 de outubro de 2018). Jasmin, no encontro datado de 29 de
novembro de 2018, colocou-se escrevendo que “sempre aprendemos umas com as outras”.
Também foi recorrente o aparecimento do agradecimento pelo espaço de escuta e da
importância do grupo para a vida das usuárias, a exemplo do depoimento de Girassol, em 11
de fevereiro de 2019, “só tenho a agradecer. Obrigada por fazer refletir”. E do relato de
Lírio, na sessão de 11 de fevereiro de 2019 “Agradecer por tudo o que vem mudando em mim.
Agradecer ao grupo pelos compartilhamentos vivenciados”.
A ferramenta revelou, ainda, que os diálogos construídos nos encontros levaram a
um reconhecimento de si na fala da outra, promovido através do vínculo grupal, como pode
ser exemplificado pelo seguinte trecho: “Como sempre, muito bom ouvir os relatos de cada
uma e perceber as semelhanças entre nós e, por outro lado, ver como reagimos de maneiras
diferentes a determinadas situações” (Orquídea, no encontro de 19 de novembro de 2018).
De acordo com Correia e Moreira (2016), quando pessoas estão juntas com a mesma intenção
de crescimento, em um espaço sem julgamentos, as histórias naturalmente se entrelaçam.
Além disso, a terapia grupal viabiliza que os modos de ser dos integrantes se manifestam e
que as reflexões e compreensões destes modos repercutem na vida cotidiana (ALVES, 2013),
o que é possível visualizar nesta fala “Bom ver os progressos que estamos fazendo a partir do
que é trabalhado nesse espaço. Ver que não sou só eu que sinto as melhoras, mas que as
outras também estão sentindo” (Orquídea, em 10 de dezembro de 2018).

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Não é apenas uma instrução que garante que a pessoa esteja pronta para escrever uma
VS, mas, a partir do hábito, vai se aprendendo a fazer. É recorrente que se comece escrevendo
de modo neutro ou relatando de maneira lógica o que ocorreu no encontro e com o passar do
tempo a pessoa vai se apropriando de escrever a experiência imediata (AMATUZZI, 2008).
Tomando como base uma análise cronológica, foi possível perceber diferenças nas escritas das
versões de sentido entre o início do processo terapêutico e a finalização dos encontros do grupo,
pois a maior parte das usuárias começaram os relatos de modo generalizado, fazendo uma
descrição do que ocorreu na sessão, mas, com o tempo, foram se apropriando dos seus processos
pessoais e grupais, escrevendo sobre suas afetações em primeira pessoa. Como é possível
visualizar, de modo comparativo, nos seguintes fragmentos de relatos da participante Orquídea,
datados de 30 de julho de 2018 e 11 de fevereiro de 2019, respectivamente: “Diálogo. Perceber
que as pessoas também podem sentir e viver as coisas como você vive e sente” e “Foi muito
positivo ver como eu evoluí e como hoje eu tenho mais facilidade para falar como eu me sinto”.
No último encontro como o grupo foi realizada a leitura de todas as Versões de Sentido
produzidas durante o processo, como forma de oferecer às usuárias um feedback da experiência
vivida. As usuárias (que receberam nomes fictícios neste relato) receberam as versões de
sentido e pedimos que cada uma lesse e expressasse como se sentiu ao ler as VS.s, o que
identificou e como foi o processo para cada uma. Desta forma foi possível tecer algumas
compreensões sobre o sentido do que foi vivido durante os encontros do grupo terapêutico. As
participantes pontuaram que gostaram de ler as versões de sentido e apontaram a percepção
sobre o crescimento pessoal e a importância de estarem em grupo, agradecendo pelo espaço de
reflexão.

DO QUE FOI POSSÍVEL CONCLUIR

As compreensões tecidas apontaram a potência do uso das versões de sentido como uma
importante ferramenta de acesso à elaboração dos sentidos dos processos pessoais e grupais.
Para nós, ficou evidente que, a partir das possibilidades que a psicoterapia em grupo pode
sinalizar, o uso das VSs permitiu a oportunidade de atribuir novos sentidos à experiência, por
meio do contato consciente com o sentido dos encontros e com o que foi apreendido acerca da
vivência imediata, em um processo que não pretendeu categorizar o escrito como certo ou
errado, mas buscar captar os significados individuais da experiência.
No que diz respeito a nossa experiência de produzir VS como instrumento facilitador da
supervisão, concluímos que foi uma ferramenta muito potente para elaboração das nossas
vivências enquanto terapeutas em formação. A partir da escrita, pudemos nos perceber durante
a condução dos encontros, refletir sobre a prática e perceber nossas evoluções. De acordo com
Boris (2008), o uso da VS como recurso para supervisão possibilita que o (a) terapeuta iniciante
lide melhor com seus conflitos e dilemas, permite que supere a dificuldade de detalhar os relatos
em supervisão e focalize no que foi mais significativo durante o encontro terapêutico.

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REFERÊNCIAS

ALVES, P. E. R. O método fenomenológico na condução de grupos terapêuticos. Revista da


SBPH, 2013.

AMATUZZI, M. M. Versão de sentido. In AMATUZZI, M. M. Por uma psicologia humana.


Campinas, SP: Alínea, 2008.

BECHELLI, L.P.C.; SANTOS, M.A. O terapeuta na psicoterapia de grupo. Rev. Latino-


americana de Enfermagem, 2005.

BOECKEL, M.G. O papel do serviço-escola na consolidação do projeto pedagógico do curso


de Psicologia. Brasília: Psicologia Ensino e Formação, 2010.

BORIS, G. D. J. B. Versões de sentido: um instrumento fenomenológico-existencial para a


supervisão de psicoterapeutas iniciantes. Psicologia Clínica, 2008.

CORREIA, K.C.R.; MOREIRA, V. A experiência vivida por psicoterapeutas e clientes em


psicoterapia de grupo na clínica humanista-fenomenológica: uma pesquisa fenomenológica.
Revista Psicologia USP, 2016.

CPSI. Projeto Pedagógico do Curso de Psicologia. Petrolina: UNIVASF, 2010.

MOLITERNO, I.M. et al. A atuação do psicólogo com grupos terapêuticos. Maceió:


Cadernos de Graduação - Ciências Biológicas e da Saúde, 2012.

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Relato de Experiência

O EU ANESTESIADO: UM OLHAR FENOMENOLÓGICO SOBRE A


MEDICALIZAÇÃO DA VIDA

Kaline Pereira Ramos de Oliveira, kaline.psi@hotmail.com, Graduanda de Psicologia –


UNIVASF
Sílvia Raquel Santos de Morais, silviamorays@yahoo.com.br, Docente do Colegiado de
Psicologia – UNIVASF

Palavras-chave/Descritores: psicologia clínica; fenomenologia existencial; sofrimento;


medicalização.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa tecer reflexões a partir da experiência de atendimento de casos


clínicos, que perpassam a temática da medicalização da vida, durante o estágio
profissionalizante no Centro de Estudos e Práticas em Psicologia (CEPPSI) da Universidade
Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), localizado em Petrolina-PE. Trata-se de um
relato de experiência embasado no recorte de um caso clínico em atendimento na modalidade
de psicoterapia individual, o qual encontra-se em andamento com base nos pressupostos da
Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger e de duas contribuições para a clínica
psicológica.
A psicoterapia ocorre pelo discurso daquele que fala, pela via poiesis, que possibilita
compreensões que passam pelo ocultamento até chegar ao desocultamento. É uma busca
constante pela verdade alétheia como possibilidade de desvelar o que abarca o sofrimento
humano. (COLPO, 2013) Segundo Critelli (1996) a Fenomenologia é uma forma de reflexão
sobre o modo de ser-no-mundo e se estabeleceu ao longo dos anos como corrente filosófica e
método, ao contrapor o cientificismo e a Metafísica em meados do século XIX. Nessa
perspectiva, Martin Heidegger propôs uma retomada da questão do ser, buscando o sentido da
existência. Ele denominou o modo de ser do homem como Dasein (ser-aí), buscando colocar
em evidência o modo como essa questão se apresenta. Braga e Farinha (2017) apontam que o
processo de retomar as experiências e interrogar pelo sentido que elas têm, permite que o
sujeito amplie a liberdade em relação às significações no mundo, abrindo um novo caminho
de possibilidades de reformular o próprio mundo.
Do ponto de vista ontológico, habitamos um mundo que é inóspito, sem seguranças nem
garantias, que não consegue nos acolher, levando-nos a uma sensação de desamparo e “ser-
no-mundo com os outros é habitar esta e nesta inospitalidade” (CRITELLI, 1996, p. 17).
Segundo Braga e Farinha (2017) ao nos apropriarmos de nosso direcionamento existencial,
assumimos a possibilidade de nos tornarmos protagonistas e coautores de nossa história,

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constatando assim, a dimensão da autenticidade, onde o ser-autêntico pressupõe um ser-aí


aberto às possibilidades da existência. A obra Heideggeriana fala a respeito dos modos de
existir do homem, da forma como ele se relaciona com os entes no mundo. No modo
inautêntico ou impróprio, o homem se encontra preso às coisas e aos outros, não realizando
suas possibilidades e não se permitindo refletir acerca de si mesmo, do seu modo de viver.
No modo autêntico ou próprio, o homem vai voltando sua atenção mais para si, não
mais para os outros, se lançando como possibilidade de ser-no-mundo. Diante disso, a
psicoterapia em uma perspectiva fenomenológica existencial busca resgatar o que há de mais
verdadeiro na existência humana a partir de sua historicidade. E isso diz respeito à
singularidade, à liberdade que cada indivíduo tem de ser si próprio. Leva-se em consideração
que a existência não é apenas uma característica entre outras, o foco não consiste em explicar
os fenômenos humanos, mas em compreendê-los.
Atualmente, na cultura, cada vez mais estão se tornando escassos os espaços para
vivenciar e elaborar as reverberações decorrentes do sofrimento humano. Na lógica vigente,
seja nas relações de ser-no-mundo e de ser-com-os-outros, o que se percebe são imperativos
imediatistas, no lugar da compreensão do sofrer, o discurso versa sobre a pressa, a falta de
tempo para olhar para si. Diante disso, o fenômeno da medicalização da vida surge como
tentativa de anestesiar aquilo que se apresenta como insuportável, imponderável, desmedido,
estranho e que perpassa todas as dimensões do vivido. A fim de lançar um olhar
contextualizado a respeito da temática mencionada, tomamos por base a autora Dantas (2009)
que discute sobre o papel que o uso do medicamento ocupa na contemporaneidade. Ela o
localiza como objeto da tecnologia, e ressalta como os discursos e saberes provenientes desse,
parecem alimentar o imaginário social, isto é, passam a influenciar na compreensão que as
pessoas têm das substâncias psicotrópicas, vistas, muitas vezes, como salvadoras de uma
condição da qual se vive.
Além disso, a noção de experiência humana tem sido compreendida a partir da ótica
tecnicista, pois a reduz a uma gama de sistemas neurais. Sendo assim, a suposta “cura”
advinda da visão que se tem das medicações é uma forma de comprovar que a subjetividade é
entendida como peça de uma engrenagem e por essa razão precisa ser consertada e ajustada
para voltar a sua funcionalidade. Na busca pelo padrão de “normalidade”, o recurso utilizado
vem sendo o uso indiscriminado de medicamentos, pois em uma sociedade que impõe a
necessidade de felicidade permanente, o processo de medicalização se apresenta como rápido
e extremamente eficaz para abolir o que não se quer sentir cotidianamente, insegurança,
tristeza, medo e angústia. (DANTAS, 2009)
Diante disso, o trabalho se debruça sobre o relato de experiência das autoras, na busca
por compreender como se dá a existência frente à utilização indiscriminada de medicamento,
tecendo horizontes compreensivos sobre o lugar que isso ocupa nos modos de ser e de estar
no mundo do homem contemporâneo. E de um modo mais específico, buscou-se compreender
como ocorre o processo de apropriação, no espaço de psicoterapia individual, de um usuário
jovem que faz uso descontínuo de medicamentos há mais de 10 anos. Sendo assim, a escrita
do trabalho justifica-se pela relevância, dentro do espaço formativo, de tematizar questões
pertinentes ao saber-fazer psicológico, possibilitando um olhar mais aprofundado para tal

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fenômeno, podendo contribuir também para o saber-fazer de psicólogas(os) que estão


iniciando nessa prática e que desenvolvem a escuta clínica a partir do referencial supracitado.

MÉTODOS

Trata-se de um relato de experiência realizado a partir de recortes de um caso clínico


atendido durante estágio profissionalizante no CEPPSI/UNIVASF. O relato tem enfoque em
um caso clínico atendido na modalidade de psicoterapia individual. Vale ressaltar que o relato
de experiência consiste em descrever, compreender e discutir o saber-fazer psicológico
engendrado na prática clínica de escuta, sob a inspiração da fenomenologia existencial
Heideggeriana.
Para realização desse relato, alguns procedimentos prévios ocorreram. O caso teve
início a partir de contato telefônico com o usuário, para averiguar interesse por atendimento
psicológico, foi possível através da ficha de pré-cadastro do serviço. Os atendimentos dentro
dessa modalidade datam do período de 26/11/2018 até 15/03/2019. Até o momento ocorreram
10 sessões com duração de 50 minutos cada, e se desenvolvem a partir das queixas e
demandas apresentadas pelo cliente em cada sessão, a exemplo da relação com uso
descontinuado do medicamento, baixa autoestima, relacionamento amoroso, depressão,
insegurança, bullying na infância, conflitos familiares, laços sociais fragilizados, aspectos
relacionados à aprendizagem, ideação suicida.
Os procedimentos utilizados para o acompanhamento do cliente, e que servem como
base para a escrita deste resumo, foram compreensões tecidas em 15 encontros de supervisão
que ocorreram até o presente momento, registros de diário de bordo da estagiária, registros
dos atendimentos no serviço, além de leituras de artigos científicos. Durante as sessões foram
realizadas escutas acolhedoras, com intervenções reflexivas, e de contraste, considerando a
relação entre terapeuta-cliente que se desenvolve a partir de construção de sentidos frente às
demandas apresentadas. Além disso, foram propostas atividades reflexivas, aqui denominadas
de technés, como via de convocar o outro a apropriação de si, orientações acerca do uso
indiscriminado dos medicamentos, encaminhamento formal para profissional da psiquiatria,
informações sobre o Centro de Valorização à Vida (CVV), e ainda, encaminhamento para o
Centro de informações de medicamentos (CIM/UNIVASF).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O primeiro encontro com o usuário ocorreu como fruto de um desencontro, o mesmo


se confundiu em relação ao dia do atendimento, comparecendo ao serviço em horário
diferente do marcado. Diante disso, sob orientação da supervisora o atendimento foi
remarcado. Esse primeiro contato, foi marcado pela imprevisibilidade e frustrações mediante
as expectativas da estagiária sobre o atendimento. Mesmo sabendo que a falta, o atraso, o
esquecimento, entre outros aspectos, podem ocorrer no contexto clínico, a situação
mencionada provocou uma série de antecipações e fantasias por parte da estagiária. Isso se

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estendeu, sobretudo, quando, no decorrer dos encontros o teor em uma das sessões, apontou
para a possiblidade iminente de um ato suicida. Por muitas vezes, a insegurança bateu à porta,
quando o cliente faltava sem justificar e não se conseguia estabelecer contato telefônico com
ele, o que fizeram surgir inquietações e medo por não saber o motivo do não comparecimento
no serviço. Estar na posição de terapeuta não nos isenta das afetações, pois também somos
humanos, mas é preciso observar o caminho da serenidade e flexibilidade na práxis
psicológica.
Heidegger discorre sobre a importância do pensamento meditativo, o qual tem
relevância na clínica. Em contrapartida, também aponta para o pressuposto do pensamento
calculante baseado na antecipação e representação de um querer. A postura de serenidade
contrapõe a lógica vigente tecnicista, de um suposto “controle” acerca das coisas e das
pessoas. (SARAMAGO, 2008) Essas questões, se apresentam como um desafio na formação
profissional e por compreendermos sua importância no processo terapêutico, aponta-se que é
preciso que a(o) terapeuta esteja em constante revisitação de si para que não recaia em a
prioris, podendo assim, perder de vista o humano que se desvela. A supervisão semanal
atrelada ao estudo teórico, serviram como sustento, acolhimento, confronto e aprendizagem,
sendo um espaço no qual foi possível exercitar a postura de serenidade e também de expressar
os medos, desafios e limitações no atendimento.
Ao longo das sessões, muitas demandas foram apresentadas pelo cliente como sentidos
a respeito do seu sofrimento, baixa autoestima, relacionamento afetivo conflituoso, depressão,
insegurança, bullying na infância, conflitos familiares, laços sociais fragilizados, aspectos
relacionados à aprendizagem, ideação suicida e apresentação de laudo psiquiátrico de
hiperatividade e desatenção. Foi perceptível, através dos relatos, que a forma indiscriminada
de se relacionar com os medicamentos, se apresenta como a possibilidade mais valorizada
pelo cliente, formando um ciclo de dependência ao longos dos anos. O medicamento é
compreendido como um recurso mágico, que ao ser utilizado, independente da quantidade e
do tempo de uso, surge como tentativa de anestesiar àquilo que se apresenta como
insuportável, não pensado, descartado.
Diante os relatos do usuário, o mesmo ressaltou que faz uso das substâncias
psicotrópicas para “ser mais sociável nas relações” dentro e fora do setting terapêutico. Sendo
assim, além dos acolhimentos, das intervenções de cunho reflexivo e de contraste, adotou-se
condutas de ordem psicoeducativa, sendo uma maneira que se apresenta muito efetiva para
auxiliar as pessoas, pois as ensinam a se ajudarem, auxiliando no percurso de conscientização
e autonomia no processo terapêutico (AUTHIER, 1977 apud LEMOS; ONDERE NETO,
2017). Nessas intervenções, salientou-se a importância de um acompanhamento psiquiátrico
efetivo, para avaliar as possíveis interações medicamentosas e reações adversas. Além disso, o
cliente foi orientado sobre o risco ao se utilizar concomitante aos medicamentos outras
substâncias psicoativas.
As orientações prestadas ao cliente quanto ao uso abusivo dos medicamentos se
repetiram, o que nos fez questionar: “uma pessoa anestesiada entra em um processo
terapêutico”?, “até que ponto o usuário tem se apropriado de si e das reflexões feitas nas
sessões?”, “o que os lapsos de memória, observados desde a primeira sessão poderiam

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desvelar sobre o caso? Sobre o quê não se pode lembrar ou a respeito de quê, se quer
esquecer?” Tais indagações estão sendo construídas no processo terapêutico do cliente,
buscando auxiliá-lo na presentificação de questões tratadas nas sessões, uma vez que,
percebemos dificuldade em lembrar as datas e horários marcados, das temáticas discutidas nas
sessões anteriores e até mesmo da realização das atividades requeridas, utilizamos technés,
que possibilitam o processo de desvelamento. A technée entendida aqui no sentido
etimológico de inventividade, que significa um “deixar vir à presença”, e refere-se ao
conhecimento que se dá pela compreensão decorrente do ato de produzir. É buscar o conhecer
como via de reconhecimento e de saber. (DE FEIJOO, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que a experiência de atendimento em questão se mostrou bastante


desafiadora, despertando insegurança, medo, exigindo um debruçar-se a respeito de temáticas
poucas estudadas durante a graduação, a exemplo da temática de suicídio, bem como, do
conhecimento aprofundado sobre os medicamentos e a compreensão que isso ocupa na vida
das pessoas atualmente. Ao passo que se mostrou como um desafio, também contribuiu de
forma significativa no processo formativo da estagiária, auxiliando no desenvolvimento de
habilidades de comunicação com outros saberes, de flexibilidade e de inventividade. Foi
perceptível que o fazer clínico se dá na relação, sendo assim, as afetações diante o caso
viabilizaram não somente o processo de apropriação do cliente, mas também a apropriação e o
reconhecimento do lugar de uma futura psicóloga.

REFERÊNCIAS

BRAGA, T.B.M; FARINHA, M.G. Heidegger: em busca de sentido para a existência humana
In: Revista da Abordagem Gestáltica - XXIII(1): 65-73, jan-abri, 2017.

COLPO, M. O. O método fenomenológico de investigação e as práticas clínicas em


Psicologia. Psic. Rev. São Paulo, volume 22, n.1, 101-118, 2013.

CRITELLI, D. M. Analítica do Sentido: uma aproximação e interpretação do real de


orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC, Brasiliense, 1996.

DANTAS, J. B. Tecnificação da vida: uma discussão sobre o discurso da medicalização da


sociedade. Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro , v. 21, n. 3, p. 563-580, Dez. 2009.

DE FEIJOO, A. M. L. C. A Psicologia Clínica: Técnica e Téchne. Psicologia em Estudo,


Maringá, v. 9, n. 1, p. 87-93, 2004.

LEMES, C. B; ONDERE NETO, J. Aplicações da psicoeducação no contexto da saúde.


Temas psicol., Ribeirão Preto , v. 25, n. 1, p. 17-28, mar. 2017.

SARAMAGO, L. Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do


pensamento. Aprender–Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação, Vitória da
Conquista, v.6, n. 10, p. 159-176, 2008.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

FACILITAÇÃO DE GRUPOS TERAPÊUTICOS NA PERSPECTIVA


FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL: DESAFIOS PARA ESTAGIÁRIOS DE
PSICOLOGIA

Sinara Pereira da Silva, sinaragomes25@hotmail.com, Estudante de graduação - UNIVASF;


Hanna Amando Matias, hannaamandom1@gmail.com, Estudante de graduação - UNIVASF;
Silvia Raquel Santos de Morais, silviamorays@yahoo.com.br, Professora Adjunta da
UNIVASF

Palavras-chave/Descritores: grupo terapêutico; clínica-escola; psicólogo.

INTRODUÇÃO

Este relato de experiência tem como premissa narrar as vivências de estagiárias de


psicologia na condução de um grupo psicoterapêutico, durante o estágio profissionalizante
ocorrido no Centro de Estudos, Pesquisas e Práticas em Psicologia (CEPPSI) da Universidade
Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), localizado em Petrolina-PE.
A modalidade de atenção psicológica de grupos terapêuticos, também chamada de
terapia em grupo, é uma opção possível/viável em clínicas-escolas de Universidades Públicas,
dada as longas filas de espera, a crescente procura pelo serviço e as dificuldades para responder
às demandas da comunidade em um curto espaço de tempo. Contudo, a população que procura
o CEPPSI pouco conhece ou se dispõe a participar de atendimentos ofertados na modalidade
de grupos terapêuticos, mas aos poucos isso vem se transformando, embora muitos ainda
priorizem o atendimento clínico individual, que convencionalmente é mais procurado/aceito
(EVANGELISTA, 2013). Assim, o trabalho em grupo costuma ser requisitado quando existem
grandes demandas de atendimento psicológico a serem supridas, tendo a necessidade de
otimizar filas de espera (CAMASMIE; SÁ, 2012). Contudo, a atenção psicológica no formato
de grupos terapêuticos tem resultados similares aos da modalidade individual (YALOM;
LESZCZ, 2006).

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Diante disso, o grupo terapêutico “Tecendo Sentidos” foi criado por uma professora
supervisora, juntamente com sua equipe de estágio, com o objetivo de acolher pessoas
cadastradas no CEPPSI na faixa etária de 20 a 50 anos com queixas de sofrimento diversas
(transtornos mentais comuns, dificuldades interpessoais, conflitos intergeracionais). Com
isso, foram selecionadas 35 fichas pré-cadastro de pessoas que se encontravam inscritas no
serviço há pelo menos seis meses e que estivessem em fila de espera. E mediante ligação
telefônica, as estagiárias convidaram ao todo, dezoito pessoas, as quais anuíram participar. No
entanto, só compareceram para o primeiro encontro, sete participantes. O grupo foi
desenvolvido com base no caráter heterogêneo e de funcionamento fechado, tendo ocorrido
no período de período de 29 de novembro de 2018 a 21 de fevereiro de 2019, tendo sete
participantes do sexo feminino e três participantes do sexo masculino.
Ao todo, foram dez encontros com duração de duas horas e facilitados por três
estagiárias do nono período de psicologia sob a supervisão de uma professora orientadora.
Duas estagiárias se revezaram no papel de terapeuta e de co-terapeuta, enquanto que a terceira
exerceu a função de observadora participante com o intuito de realizar os registros do grupo.
O grupo foi co-construído e ancorado na perspectiva Fenomenológica Existencial de
Martin Heidegger, a partir da qual se compreende os fenômenos humanos como expressão do
Dasein (ser-no-mundo). Ou seja, as queixas e as demandas de sofrimento apresentadas são
des-veladas a partir da relação destas com o estar-sendo-no-mundo e com os outros em seus
desdobramentos de possibilidades (HEIDEGGER, 2005).
Ressalta-se que pensar na prática clínica voltada para a terapia grupal requer que os
profissionais indaguem constantemente: “como se dá o encontro com o outro?” É importante
também compreender cada encontro em suas possibilidades de des-velamento e de ocultação
por meio da fala e da escuta dos atores envolvidos. Outrossim, é através do vínculo gerado na
convivência grupal, que os modos de ser-com tendem a se desvelar. E isso pode ser, ao
mesmo tempo, enriquecedor para o partilhar de sentidos, como também limitante/desalojador,
pois tende a mobilizar grande exposição e desconforto ao ponto do ser se velar novamente
(CAMASMIE; SÁ, 2012). Ademais, o terapeuta precisa estar atento a esse movimento do e
no grupo.
Segundo Evangelista (2013, p. 151) “o foco do processo grupal não é a “cura”
enquanto remissão do sofrimento psicológico, mas o crescimento pessoal enquanto liberdade
para dispor mais livremente de si nos relacionamentos interpessoais”. Ainda nessa direção,
destaca-se o cuidado liberador como pressuposto heideggeriano de importância ímpar no
processo de facilitação de grupos. Em alguns momentos, os participantes podem se colocar
com uma postura tutelar diante da experiência dos outros e isso pode comumente ser visto na
forma de dar conselhos/sugestões e ditar normas. Contudo, vale salientar que a troca de
experiências deve se manter no campo reflexivo, cabendo ao terapeuta indagar o estar-sendo
do movimento fenomênico em prol da ressignificação do vivido e da ampliação de novos
horizontes existenciais. (CAMASMIE; SÁ, 2012).
Nesse sentido, esse relato de experiência se justifica por tematizar questões
importantes no tocante à facilitação de grupos terapêuticos por estagiários em uma clínica
escola do interior nordestino, podendo inspirar/encorajar discentes e docentes no processo de

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criação, desenvolvimento e avaliação de práticas grupais nos contextos de clínicas-escola.


Diante do exposto, os objetivos desse relato foram: compreender o processo de facilitação do
grupo terapêutico “Tecendo Sentidos” e discutir sobre os seus desafios e contribuições para
psicólogos em formação.

MÉTODOS

Trata-se de um relato de experiência a partir da criação, planejamento e


desenvolvimento de um processo de facilitação/condução de um grupo psicoterapêutico,
intitulado “Tecendo Sentidos” em uma clínica escola de Psicologia.
O presente relato consiste em descrever, compreender e discutir o saber-fazer
psicológico engendrado na prática clínica de escuta, sob a inspiração da fenomenologia
existencial heideggeriana, no intuito de tematizar o saber-fazer a partir dos encontros de
supervisão dessa prática.
O grupo em questão foi criado em formato de funcionamento fechado com a
finalidade de que seus participantes iniciassem e encerrassem o seu processo terapêutico
juntos, sendo permitida a entrada de novos membros somente até o segundo encontro.
Destaca-se que o grupo ocorreu durante um semestre letivo com a proposta de
trabalhar questões existenciais do cotidiano. Ao todo, foram realizados dez encontros, de duas
horas cada, nos quais foram abordados temas distintos, sendo alguns pré-estabelecidos com
base nas queixas relatadas nas fichas e, outros, foram temas abertos escolhidos pelos
participantes. De um modo geral, abordaram-se emoções, culpa solidão, falta, ansiedade,
motivação, controle emocional e conflitos. Ao todo, participaram dez pessoas na faixa etária
entre 20 e 50 anos, de ambos os sexos, que possuíam ficha de pré-cadastro no CEPPSI.
Os encontros ocorreram em uma sala própria para grupos desse serviço, resguardando
todas as recomendações éticas e de sigilo, sob a anuência dos participantes e mediante
assinaturas do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e do termo de
consentimento para uso de imagens das produções do grupo.
Para a criação do grupo em questão, foram realizados encontros prévios de supervisão
seguidos de discussão e produção escrita. O planejamento foi co-construído e socializado
entre as estagiárias proponentes e continha os seguintes itens: atividades propostas, objetivos,
modos de operacionalização e recursos utilizados em cada um dos encontros. O planejamento
foi composto também pela leitura das fichas pré-cadastro entregues pelo serviço. Com isso,
foram selecionadas as fichas que indicavam alguma flexibilidade para participação de grupos,
e/ou problemáticas próximas a temas existenciais. Após essa etapa de amostra intencional, as
estagiárias efetuaram ligações telefônicas do próprio CEPPSI para cada participante, a fim de
convidar para compor o grupo. Compareceram ao primeiro encontro sete pessoas e o contrato
terapêutico foi pactuado entre os presentes nesse encontro e no subsequente.
Em seguida, após o início do primeiro encontros, constituiu-se prontuário próprio para
registro de evoluções do grupo e ainda, prontuário para evolução individual de cada
participante. Ambos obedeceram aos critérios exigidos pelo Conselho de Psicologia e

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continham registros sucintos das atividades realizadas no e pelo grupo. Os demais


procedimentos realizados foram: registros das estagiárias em diários de bordo individuais,
leituras de artigos científicos sobre grupos terapêuticos, tematização das atividades realizadas
e da escuta clínica em encontros em supervisão.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O grupo inicialmente apresentou-se com dez participantes e finalizou com seis


componentes assíduos, demonstrando um movimento natural de desistência que ocorre em
processos psicoterapêuticos grupais. Nos primeiros encontros poucos falavam, mas ao longo
do processo passaram a se posicionar mais ativamente e assumir cada um o seu papel no
grupo.
Yalom e Leszcz (2006) apontam que o foco no processo de terapia grupal se manifesta
a partir do relato de alguém, revelando o modo de ser e de encontro com o outro; sendo de
grande relevância compreender o impacto das falas dos participantes, o modo como se
escutam, recebem, sentem e são tocados, para então se atentar ao que se revela e desvela na
relação do grupo e no sentido da experiência dessas falas. Tais questões puderam ser
percebidas em vários encontros, os quais evidenciam a formação de vínculo terapêutico entre
os componentes do grupo, a busca por uma fala poética, autêntica, que se apropria dos modos
de ser e de estar no mundo, diferentemente da impropriedade que ocorria em falatórios do
grupo. Por vezes, o falatório era perceptível no processo, sobretudo quando os participantes se
distraiam em histórias paralelas que fugiam ao tema e não geravam reflexões.
Posto isto, o diálogo foi um ponto primordial para o movimento de expressão grupal,
que aconteceu de modo progressivo e no tempo de cada um, exigindo serenidade. Quem
busca a psicoterapia costuma de encontrar em uma situação de sofrimento e desconforto
existencial diante dos seus modos de ser-com. Assim, o diálogo terapêutico vai surgindo a
partir desse processo de fala e escuta clínica disponível, acolhedora e não moralista. No
grupo, isso foi visível, sobretudo quando um dos participantes insistia em dar conselhos de
cunho moral aos demais, anunciando “receitas prontas de conduta para cada tema tratado”.
Ao contrário disso, a escuta clínica do psicólogo deve servir como um difusor de sentidos,
que busca compreender em qual contexto se encontra a experiência que é dita enquanto
fenômeno, realizando assim um movimento de apropriação da existência do ser-aí
(CAMASMIE; SÁ, 2012).
Dessa forma, no decorrer do processo terapêutico, percebeu-se que alguns
apresentavam queixas específicas (conflitos interpessoais, tristeza, ansiedade, depressão,
angústia, insegurança) e através dos temas trabalhados, foram tocados em demandas que
ainda estavam ocultas, mas aos poucos, iam se desvelando. Isso se deve ao fato de que na
modalidade de grupo, os temas só são apresentados no encontro, tornando os participantes
propensos a serem afetados pelo inesperado; realçando assim o quanto a terapia grupal pode
alcançar possibilidades interventivas importantes para as práticas psicológicas (CAMASMIE;
SÁ, 2012).

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A imprevisibilidade e o ineditismo de cada encontro foi um desafio, exigindo das


estagiárias abertura para as possibilidades frente ao inesperado. Isso explicita o quanto é
importante ultrapassar a prioris teóricos, indo além do pensamento calculante, planificador. É
preciso considerar a emergência do aqui agora que emerge nos modos de
develamento/ocultação dos fenômenos grupais em uma dada espacialidade e temporalidade.
Essa situação afetou profundamente o processo de aprendizagem da escuta clínica,
convocando as estagiárias a pôr sob investigação, as próprias experiências junto com os
participantes, dentro e fora do grupo. Perceber-se diante do abismo de sermos fisgados pelo
óbvio e pela superficialidade foi algo difícil, desafiador, angustiante, mas significativo; pois
trouxe para todas nós o aprendizado de pressupostos heideggerianos como serenidade,
cuidado liberador, pensamento meditante, angústia, finitude.
Heidegger compreende a serenidade como a possibilidade de esperar, de aguardar o
tempo de ser das coisas e isso demanda uma abertura para o que pode vir-a-ser ou não.
Confrontar-se com essas questões foi percebido como um desafio recorrente no saber-fazer
clínico. Revisitar as próprias experiências, inclusive a de não-saber, foi algo necessário, mas
por vezes, desalojador para todas nós. Diante disso, percebemos sobre a importância de
sustentar a angústia desse aguardar, e permanecer serenamente receptivo ao que está por vir,
deixando-se levar pelo movimento (SARAMAGO, 2008).
A fenomenologia existencial nos ensinou muito sobre o trabalho com grupos, a
exemplo da valorização do aqui-agora, da co-construção de estratégias de enfrentamento no
grupo e pelo grupo, de como lidar com situações aparentemente caóticas indo em busca do
que elas querem dizer, do feedback encorajador dos participantes durante e ao final do
processo quando realizaram um confraternização e externaram gratidão a todos os presentes,
da supervisão como espaço indispensável de aprendizagem significativa, colaborativa. Além
disso, o grupo oportunizou o compartilhamento de afetações e a tematização do vivido, as
quais não foram apenas ouvidas, mas questionadas, revisitadas, refletidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que o objetivo deste relato se resguarda na compreensão dos sentidos que a
modalidade de grupo proporcionou a todas nós, a partir de nossa experiência como aprendizes
da clínica. Percebemos que uma equipe formada por duas estagiárias terapeutas e uma
observadora participante torna o processo grupal mais flexível e colaborativo, ajudando no
processo de aprendizagem de todos os envolvidos, atenuando os medos do psicólogo iniciante
e apaziguando-o diante da imprevisibilidade da clínica, e ainda, contribuindo para o
refinamento da escuta clínica por meio da observação de outros colegas que exercem papeis
distintos simultaneamente.
Outra questão de suma importância é o tamanho do grupo que pode se tornar um
obstáculo com o passar do tempo. Consideramos que para um terapeuta iniciante, o número
de seis até oito pessoas por grupo seja o mais recomendado. A experiência nos ensinou que a

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menor quantidade de componentes gera maior espaço para a distribuição de falas, ajudando os
estagiários no processo de contratualização, facilitação e vinculação.
Ainda pode-se pontuar que a proposta de temas abertos, a fim de incluir os
participantes na construção do grupo, demonstrou ser eficaz no que tange a opinião do
componentes e os ‘resultados obtidos’ nos encontros; denotando a importância do
planejamento inicial não ser rígido, pois o próprio grupo revela elementos que vão
modificando o que foi elaborado.
Não identificamos problemas de construção de vínculos e trocas de experiências
devido a diferença de idade entre os participantes, demonstrando que é possível uma
condução satisfatória com pessoas de diferentes gerações.
Em relação às limitações, destaca-se o recesso acadêmico como elemento que
dispersou o grupo, gerou descontinuidade e desistência de alguns participantes. Por isso,
sugere-se que os próximos grupos se atentem a isso. A demanda de fala de alguns
participantes também apresentou-se como um desafio, por dificultar que as discussões
acontecessem de forma integral, necessitando um maior manejo por parte das terapeutas e de
repactuações sempre que necessário.
Por fim, destacamos que o grupo Tecendo Sentidos aconteceu em um único semestre e
temos pretensão de dar continuidade ao mesmo com algumas reconfigurações que a própria
prática apontou. Além disso, consideramos que os desafios e contribuições já elencados nos
ensinaram um pouco mais sobre a clínica psicológica num perspectiva Fenomenológica
Existencial, já que a ação clínica não consiste meramente em operacionalizar atividades, mas
antes, considera a inventividade inerente aos diferentes modos de afetação experimentados no
encontro, e ainda, a singularidade dos modos de estar-com, de acompanhar a travessia do
sujeito em sofrimento, que demanda cuidado. Conclui-se que a experiência foi desveladora de
novos horizontes compreensivos para o nosso fazer-saber profissional.

REFERÊNCIAS

CAMASMIE, A. T.; SÁ, R. N.; Reflexões fenomenológico-existenciais para a clínica


psicológica em grupo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 12, n. 3, p. 952-972, 2012.
EVANGELISTA, P.E.R. O método fenomenológico na condução de grupos terapêuticos.
Rev. SBPH vol.16 no.1, Rio de Janeiro – Jan./Jun. - 2013
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. (F. Cad.). Campinas: Editora da Unicamp, Petrópolis: Vozes.
2005. (Original publicado em 1927).
SARAMAGO, L. Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do
pensamento. Aprender–Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação, Vitória da Conquista,
v.6, n. 10, p. 159-176, 2008.
YALOM, I. D; LESZCZ, M. Psicoterapia de grupo: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed,
2006.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

GRUPO DE AUTOCUIDADO E SUAS REPERCUSSÕES PARA A FORMAÇÃO


NA CLÍNICA

Layta Sena Ribeiro, laytasena@gmail.com, psicóloga.


Silvia Raquel Santos de Morais, silviamorays@yahoo.com.br, Professora Adjunta da
UNIVASF

Palavras-chave/Descritores: Grupo Terapêutico; Clínica-Escola; Psicólogo.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho dissertará sobre a experiência de um processo de


facilitação/condução de grupo na modalidade psicoterapêutico, em uma perspectiva
fenomenológica existencial, ocorrido durante o estágio profissionalizante no Centro de
Estudos, Pesquisas e Práticas em Psicologia (CEPPSI) da Universidade Federal do Vale do
São Francisco (UNIVASF), localizado em Petrolina-PE.
O atendimento psicológico por meio de grupos é uma alternativa de assistência em
saúde para clínicas-escolas de Universidades Públicas, dada às longas filas de espera, a
sucessiva busca pelo serviço e os impasses para corresponder às demandas da comunidade em
um curto período de tempo. Embora, a participação em grupo seja uma alternativa viável para
a população de usuários do CEPPSI, ainda se prioriza o atendimento clínico individual, que
segundo alguns autores, é um fenômeno que pode ser explicado por uma tradição histórica na
Psicologia (DOMINGUES, 2012). Contudo, essa realidade está se transformando, pois a
aderência do público assistido as modalidades grupais ofertadas tem aumentado.
Dessa forma, o trabalho em grupo pode ser utilizado quando existem grandes
demandas de atendimento para serem providas, pois os mesmos otimizam filas de espera nos
serviços (CAMASMIE; SÁ, 2012). Todavia, deve ressaltar-se que a atenção psicológica no
formato de grupos promovem efeitos semelhantes aos da modalidade individual de assistência
psicológica e mesmo são recomendadas, em alguns casos, quando as demandas são comuns
aos usuários (YALOM; LESZCZ, 2006; DOMINGUES, 2012).
O grupo foi perspectivado na abordagem Fenomenológica Existencial de Martin
Heidegger, através da compreensão de que os fenômenos humanos se dão no mundo e com as
coisas. Ou seja, as queixas e as demandas de sofrimento apresentadas são des-veladas a partir
da inter-relação entre o estar-sendo-no-mundo e com os outros no processo de abertura de
possibilidades (HEIDEGGER, 2005).

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Assim, esse relato de experiência se justifica por abordar questões importantes a


respeito da facilitação de grupos terapêuticos por estagiários em uma clínica escola do interior
nordestino, objetivando situar a Psicologia enquanto prática crítico-reflexiva, ancorada, por
sua vez, no agir ético e político, pois pode estimular processos de criação, desenvolvimento e
avaliação de práticas grupais nos contextos de clínicas-escola. Diante disso, objetivou-se:
compreender o processo de facilitação do grupo terapêutico de Autocuidado com estudantes
universitários e tematizar os desafios e contribuições para psicólogos em formação.

MÉTODOS

O trabalho aqui desenvolvido se configura como de um relato de experiência a partir


da condução de um grupo psicoterapêutico, mas precisamente pelo olhar de uma observadora
participante, intitulado “Autocuidado para Estudantes Universitários” em uma clínica escola
de Psicologia.
Este relato se propõe a descrever, compreender e debater o saber-fazer psicológico na
prática clínica da escuta, sob o viés da fenomenologia existencial heideggeriana, no intuito de
tematizar o saber-fazer, tanto por meio dos encontros ocorridos, como por meio da supervisão
e orientação do estágio.
Diante disso, o grupo de autocuidado foi criado em 2018 por uma professora
supervisora, juntamente com sua equipe de estágio e uma estagiária convidada de outro grupo
de estágio, com o objetivo de acolher pessoas cadastradas no CEPPSI, que fossem estudantes
universitários, sendo eles da instituição promotora desse serviço (UNIVASF), como também
de outras da região, de qualquer faixa etária, e que apresentassem queixas de sofrimento
diversas (transtornos mentais comuns, dificuldades interpessoais, conflitos intergeracionais e
que se intercruzassem com a condição de ser estudante universitário).
Com isso, foram selecionadas em torno de trinta fichas pré-cadastro de pessoas que se
encontravam inscritas no serviço, que estivessem em fila de espera e que fossem estudantes de
graduação e pós-graduação. O contato com o público foi realizado por meio de ligação
telefônica, no qual os estagiários convidaram ao todo, quinze pessoas, as quais anuíram
participar. No entanto, só compareceram para o primeiro encontro, três participantes. Neste
primeiro momento realizou-se o contrato terapêutico que foi pactuado entre os presentes nesse
encontro e no subsequente. O grupo foi desenvolvido com base no caráter heterogêneo e de
funcionamento fechado, tendo ocorrido no período de período de 29 de janeiro de 2018 a 26
de março de 2018, tendo uma participante do sexo feminino (embora outra tenha participado
do segundo encontro e desistido após isso) e dois participantes do sexo masculino.
Ao todo, foram oito encontros com duração de duas horas e facilitados por três
estagiários, no qual uma era do nono período de psicologia e os outros dois do décimo período
de psicologia, que estiverem sob a supervisão de uma professora orientadora. Dois estagiários
se revezaram no papel de terapeuta e de co-terapeuta, enquanto que a terceira exerceu a
função de observadora participante com o intuito de realizar os registros do grupo.
As sessões ocorreram em uma sala para grupos que o serviço obtém, resguardando
todas as recomendações éticas e de sigilo, sob a anuência dos participantes e mediante

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assinaturas do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e do termo de


consentimento para uso de imagens das produções do grupo.
Para a criação do grupo houve um planejamento anterior de atividades que auxiliariam
a condução nos encontros, com o uso de técnicas como a biblioterapia, a musicoterapia e o
TRE (Trauma & Tension Releasing Exercises) mediado por uma psicóloga convidada. Essa
construção ocorreu em momentos de supervisão seguidos de discussão e produção escrita. O
planejamento continha os seguintes itens: atividades propostas, objetivos, modos de
operacionalização e recursos utilizados em cada um dos encontros.
Com a abertura do primeiro encontros, criou-se prontuário para evolução individual de
cada participante, bem como um prontuário próprio para grupo. Ambos obedeceram aos
critérios exigidos pelo Conselho de Psicologia e obtinham breves registros das atividades
realizadas pelo grupo. Os demais procedimentos realizados foram: leituras de artigos
científicos sobre grupos, tematização das atividades realizadas e da escuta clínica em
encontros de supervisão.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Inicialmente, o grupo apresentou-se com três participantes e finalizou com o mesmo


número de integrantes, que se apresentaram ao longo do processo, assíduos. Ainda nos
primeiros encontros foi possível perceber que houve uma participação efetiva dos que ali
estavam, o que parece ter sido possível pelo número reduzido de componentes.
Evangelista (2013) aponta que um grupo conduzido por uma abordagem
fenomenológica não leva em consideração a quididade (o que), mas sim a qualidade (o como)
das questões que se dão nesse processo. O mesmo autor ressalta ainda que um grupo funciona
como uma demonstração dos modos de ser dos participantes fora do contexto clínico, e por
conta disso é rico para trabalhar de maneira psicoterapêutica, essas condutas que aos poucos
vão se desvelando por meio das interações.
Assim, as falas dos integrantes do grupo são manifestações importantes para
compreender como cada um se coloca no mundo e com os outros, a fim de que a partir da
condução dos terapeutas, os falatórios – conversas irrefletidas - fossem substituídos por falas
autênticas – que possibilitam perspectivar um horizonte de possibilidades e sentidos
(YALOM; LESZCZ, 2006).
O processo descrito acima se fez perceptível no grupo de Autocuidado, que embora
fosse de curta duração, parece ter sido capaz de possibilitar o des-velamento de significações
para os participantes acerca de suas trajetórias de vida. Muitas vezes, esses sentidos foram
facilitados pela intermediação de outros integrantes que se mostravam ora provocativos, ora
acolhedores.
Segundo Yalom e Leszcz (2006), estar em grupo significa arriscar-se, pois pode
oferecer mais oportunidades de afetações do que na modalidade de atendimento individual.
Porém, é exatamente por essa questão que um grupo dispõe de muitas potencialidades para a
exposição do ser-aí, tanto dos componentes atendidos, como do terapeuta que deve se valer da
serenidade para posicionar-se, a fim de promover uma ampliação de sentidos do grupo.

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Serenidade esta, que segundo Heidegger é o saber esperar e estar aberto ao que pode vi-
a-ser ou não no movimento do grupo.
Destaca-se o caráter mobilizador do grupo para a observadora participante, havendo
identificações com questões trazidas pelos membros do grupo que impulsionaram reflexões
importantes, em momentos de supervisão, a respeito de possíveis intervenções clínicas
pautadas em pressupostos heideggerianos, a exemplo: angústia, cuidado, serenidade. Além
disso, foi possível a partir dessa experiência, aprender e compreender um pouco mais o
método fenomenológico na prática clínica.
A Fenomenologia Existencial no trabalho com grupos permitiu vários aprendizados no
que diz respeito ao saber-fazer do terapeuta iniciante, pois essa modalidade se mostrou
bastante desalojadora e promotora de desafios, no que diz respeito à observação meditante, à
devolução das afetações, a provocação de reflexões necessárias e oportunas aos envolvidos no
grupo.
É importante demarcar que o grupo finalizou com uma confraternização idealizada e
realizada pelos próprios participantes do grupo, os quais expressaram gratidão aos estagiários
e compartilharam os sentidos coconstruídos ao longo do processo grupal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A condução de um grupo psicoterapêutico é uma tarefa desafiadora para terapeutas em


processo formativo, sendo uma oportunidade de aprendizado efetivo para o desenvolvimento
da escuta clínica. A partir dessa experiência em questão, ressalta-se que houve a
aprendizagem de competências inerentes ao saber-fazer psicológico e o desenvolvimento de
competências outrora discutidas apenas em sala de aula, a exemplo: construção de contrato
terapêutico, sustentação da angústia, afetação com o vivido, revisitação do aqui-agora em prol
da coconstrução de sentidos, escuta não moralizante, cuidado não tutelar. Ou seja, o grupo
proporcionou algo para além da remissão de sintomas anunciados pelos participantes, pois
oportunizou tempo para pensar sobre modos de ser-estar-no-mundo e de corresponder aos
apelos do mundo. Além disso, ajudou os atores envolvidos a tematizarem questões
existenciais apresentadas pelos participantes, tais como culpa, medo, angústia, solidão;
constituindo-se como espaço acolhedor para um pensamento que reflete/medita a respeito das
experiências promotoras de sofrimento.
Conclui-se que a implicação de todos os atores envolvidos no processo
psicoterapêutico é de suma importância, inclusive dos aprendizes da clínica que, juntos,
intervêem, pontuam, refletem, devolvem e co-participam do processo de des-velamento do
binômio queixa-demanda. A possibilidade de ver o colega atuando ajudou a esclarecer um
pouco mais a repeito da clínica, nos ensinando a estar atentos ao movimento dos
participantes. Todas essas questões demandaram, por sua vez, o refinamento da escuta clínica
e a co-criação de proposições investigativas em prol de novos horizontes compreensivos.

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e Fenomenologia

REFERÊNCIAS

CAMASMIE, A. T.; SÁ, R. N. Reflexões fenomenológico-existenciais para a clínica


psicológica em grupo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 12, n. 3, p. 952-972, 2012.

DOMINGUES, Willian Custodio. Terapia de grupo ou terapia individual: comparando


resultados. Revista IGT na Rede, v. 9, n. 17, p. 302-316, 2012.

DUTRA, Wagner Honorato; CORRÊA, Rosa Maria. O grupo operativo como instrumento
terapêutico-pedagógico de promoção à saúde mental no trabalho. Psicologia: Ciência e
Profissão, v. 35, n. 2, p. 515-527, 2015.

EVANGELISTA, P.E.R. O método fenomenológico na condução de grupos terapêuticos.


Rev. SBPH, v.16, n.1, Rio de Janeiro – Jan./Jun. - 2013.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. (F. Cad.). Campinas: Editora da Unicamp, Petrópolis: Vozes.
2005. (Original publicado em 1927).

SARAMAGO, L. Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do


pensamento. Aprender–Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação, Vitória da
Conquista, v.6, n. 10, p. 159-176, 2008.

YALOM, I. D; LESZCZ, M. Psicoterapia de grupo: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed,


2006.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

A CLÍNICA HUMANISTA-FENOMENOLÓGICA DO TRABALHO NO VALE


DO SÃO FRANCISCO

Shirley Macêdo, mvm.shirley@gmail.com, Docente do Colegiado de Psicologia, da


Residência Multiprofissional em Saúde Mental e do Mestrado Profissional em Dinâmicas de
Desenvolvimento do Semiárido da Universidade Federal do Vale do São Francisco
(UNIVASF). Membro do GT ANPEPP: Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos.

Palavras-chave/Descritores: trabalho; saúde mental e trabalho; clínica do trabalho; clínica


humanista-fenomenológica; saúde do trabalhador.

INTRODUÇÃO

Inaugurada posteriormente à psicodinâmica do trabalho de Christophe Dejours, a


clínica do trabalho é compreendida como uma clínica social, que dá centralidade ao trabalho
na sua relação indissociável com a subjetividade, está atenta para o mundo contemporâneo do
trabalho onde os atores sociais estão inseridos e busca, através de espaços de escuta e fala,
ampliar o poder de agir do trabalhador frente à precarização do contexto capitalista do
trabalho. No entanto, para além da clínica psicodinâmica do trabalho, outras propostas
surgiram e se fortaleceram, cada uma partindo de bases epistemológicas específicas e
construindo embasamento teórico próprio, sendo, atualmente, reconhecidas como
metodologias de pesquisa e intervenção.
Existem, segundo Bendassolli e Soboll (2011), quatro abordagens em clínica do
trabalho: a psicodinâmica (Christophe Dejours), que se pauta na abordagem psicanalítica, cuja
metodologia são os grupos de discussão para fortalecer estratégias coletivas defensivas frente
ao sofrimento no trabalho; a ergonomia ou clínica da atividade (Yve Clot), fundamentada em
teorias cognitivistas, que propõe a confrontação e a autoconfrontação cruzada como
necessárias para novas mobilizações cognitivas frente ao real do trabalho; a ergologia (Yve
Schwartz), abordagem predominantemente filosófica, focada em renormatizações de
procedimentos de trabalho, e que propõe uma leitura do Dispositivo Dinâmico de 3 Polos
(DD3P); e a psicossociologia (Eugéne Enriquez), que, apesar de não ser considerada
eminentemente pelo próprio autor uma clínica do trabalho, permite que se pense o trabalho
como alienador, propondo diversos procedimentos para promover mudanças nas
organizações.
Melo (2012), ao concluir seu Doutorado em Psicologia Clínica, percebendo que não
havia proposta em clínica do trabalho pautada numa visão humanista de subjetividade,

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enfrentou o desafio de propor uma abordagem humanista-fenomenológica. Considerou que o


mundo do trabalho é regido pela lógica da eficácia; nele, o sujeito luta contra seus próprios
limites e há, além de relações sociais perversas, uma competitividade que esfacela a dimensão
coletiva da subjetividade. Assim, reconheceu ser necessário ao trabalhador saber de si e cuidar
de si, apropriando-se de sua história e possibilidades futuras, para mudar o contexto ao seu
redor.
A autora defendeu que, na contemporaneidade, os homens estão vivendo uma crise de
sentido em relação ao trabalho e às diversas exigências do contexto globalizado; e que o
mundo está clamando por solidariedade, confirmação de potenciais emancipatórios e, acima
de tudo, realização e bem estar pessoal e social. Portanto, acreditando que princípios que
norteiam a Psicologia Humanista são profundamente humanizadores e passíveis de oferecer
ao contexto científico e ao mundo do trabalho alternativas para além dos parâmetros
tecnocratas que regem grande parte das ciências humanas, sociais aplicadas e da saúde,
apresentou uma proposta metodológica inovadora, a hermenêutica colaborativa, método de
pesquisa e intervenção, chave para que a autora propusesse as bases daquilo que denomina de
clínica humanista-fenomenológica o trabalho (Macêdo, 2015).
O método é baseado em conceitos teóricos da Psicologia Humanista de Carl Rogers
(atitudes facilitadoras e fases do processo terapêutico), e em preceitos filosóficos de Maurice
Merleau-Ponty (intersubjetividade e epoché incompleta) e Hanz-Georg Gádamer
(conversação, tradição e fusão de horizontes). É conceituado como um processo conjunto de
interpretação e construção de alternativas, pautado na intersubjetividade, através do qual os
parceiros de um diálogo confrontam tradições, resgatam suas consciências históricas,
ressignificam o sofrimento e constroem conjuntamente novos projetos para enfrentarem a
precariedade subjetiva e as adversidades enfrentadas no e por causa do trabalho.
Diante disso, o presente relato de experiência tem por objetivo descrever atividades
que vêm sendo realizadas, no Vale do São Francisco, com o método da hermenêutica
colaborativa, em contextos de intervenção em clínica humanista-fenomenológica do trabalho,
com trabalhadores de diversas instituições públicas e privadas, além de desempregados,
aposentados e afastados do trabalho por motivo de doença ou acidente.

MÉTODO

As intervenções são realizadas por uma equipe composta por uma psicóloga docente
supervisora de estágio e cerca de seis a oito estagiários por semestre, no Centro de Estudos e
Práticas em Psicologia (CEPPSI), serviço escola da Universidade Federal do São Francisco
(UNIVASF). Trabalhadores diversos, desempregados e aposentados procuram o CEPPSI
para se inscreverem, alegando sofrimento no e por causa do trabalho (ou sua ausência) e
várias organizações buscam fazer parcerias para cuidar de seus trabalhadores. Demandas
dessa ordem são encaminhadas para a referida equipe de estágio. Com algumas instituições,
são estabelecidos convênios de cooperação técnica; com outras, firma-se compromisso de
curto espaço de tempo para atender as demandas.

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Os serviços oferecidos são: atendimentos individuais, oficinas, diagnóstico


institucional e grupo interventivos. Nas atividades são utilizados como recursos: argila, fotos
da infância dos sujeitos, papel ofício, lápis, caneta, tintas, pincéis, revistas velhas, tesouras,
cola, maquetes, lixeiras, balões, contos, fábulas, músicas, poesias, planilhas,
escalas/inventários, livretos de vida, entre outros. Caso haja necessidade, estabelece-se
contato com profissionais para palestrar sobre determinados temas, principalmente nos grupos
com desempregados, aposentados e afastados do trabalho.
Os atendimentos individuais são conduzidos por um (a) estagiário (a) para cada cliente
em sessões semanais de até 50 minutos em média, não tendo número fixo de sessões, pois
depende do processo de cada cliente. As oficinas são momentos pontuais de até duas horas
com cerca de 20 pessoas e podem ocorrer no próprio ambiente de trabalho dos sujeitos e/ou
em eventos promovidos por instituições públicas ou privadas da região. Os grupos
interventivos são facilitados por duplas de estagiários (as), a cada 10 participantes, e levam de
quatro a oito encontros semanais de duas horas. O diagnóstico institucional interventivo
envolve entrevistas com gestores e equipe de gestão de pessoas (se houver), visitas técnicas,
oficinas de até três encontros com trabalhadores de diferentes setores (sem a presença dos
gestores) e com gestores, aplicação de escalas e inventários, e devolutiva final com a
apresentação dos resultados encontrados. Com exceção das atividades de entrevistas iniciais
com gestores, visitas técnicas para apresentar a proposta de trabalho e devolutiva no
diagnóstico institucional, todos os outros serviços são realizados no próprio CEPPSI, a fim de
não haver interrupção e preservar o sigilo e a confidencialidade aos sujeitos.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os atendimentos individuais, muitas vezes, requerem uma exploração do sentido do


trabalho para o trabalhador, da construção de sua identidade e das possibilidades de
enfrentamento que ele reconhece como viáveis. Nas oficinas, além da exploração do sentido
do trabalho, também se refletem sobre estratégias de enfrentamento para os trabalhadores ali
presentes, seus gestores e a própria instituição, no sentido de uma maior conscientização da
corresponsabilidade que envolve as situações de trabalho. Para o diagnóstico institucional
interventivo, precisam-se mesclar interpretação dos processos vividos pelos trabalhadores nos
encontros realizados com dados objetivos constatados em escalas e/ou inventários, a fim de
levar à organização uma leitura geral e não particularizada de sofrimento e/ou adoecimento
enfrentado pelas pessoas que a compõem. É chamado de diagnóstico interventivo porque, nos
encontros, as pessoas ressignificam o sofrimento e a realidade enfrentada, como também
constroem conjuntamente estratégias de mudanças que consideram necessárias.
Os avanços na prática do método com grupos interventivos permitiram que se
sedimentasse uma proposta que envolve um ciclo hermenêutico: com o uso da argila, explora-
se o sentido do trabalho (ou não trabalho, para aqueles sujeitos que não estão inseridos em
contexto formal de trabalho); com a foto da infância, caminha-se para um resgate histórico, a
fim de que o sujeito se aproprie de características pessoais passadas que podem possibilitar o
enfrentamento das adversidades presentes; com as lixeiras, os sujeitos refletem sobre o que

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podem manter, reciclar ou jogar fora diante das decisões que já tomaram na vida; com a
maquete, mapeiam-se competências e se exploram novas possibilidades de ação frente ao
mercado de trabalho ou novas situações sociais; com o balão de sonhos, definem-se metas a
alcançar; e com o livreto ou as planilhas de vida, culmina-se com a elaboração de projetos de
felicidade humana, parafraseando Ricardo Ayres (2005). Como já alertaram Souza e Macêdo
(2018, p. 269), “é importante ressaltar que esta perspectiva concebe a felicidade não como um
bem concreto, mas uma disponibilidade para projetos existenciais que favoreçam a superação
de momentos limitantes na vida do sujeito”.
Além da possibilidade de sedimentação metodológica, os trabalhadores que
participaram dos processos alcançam resultados como: ampliação do autoconhecimento (mais
clareza de si e do mundo); reconhecimento do próprio potencial (elevação da autoestima);
visualização de possibilidades de manutenção e/ou reinserção no mercado de trabalho;
desenvolvimento de habilidades interpessoais e de liderança; ampliação de vínculos sociais
entre os participantes de grupos interventivos; fortalecimento de vínculos familiares e afetivos
diversos; e elaboração de projetos de vida para além do labor. Por sua vez, as organizações
demandam mais atividades e/ou renovam convênios de cooperação técnica; e os (as)
estagiários (as) que conduzem os processos desenvolvem competências para atuação prática,
tanto em Psicologia Organizacional e do Trabalho, quanto na clínica em Psicologia, além de
vislumbrarem possibilidades de ofertar futuramente, como profissionais, serviços inovadores
na região do Vale do São Francisco, quando retornam para suas cidades de origem.
Como resultados adicionais, tem sido comum os sujeitos narrarem, ao final dos
encontros de grupos interventivos, como o compartilhamento de experiências com outros que
enfrentam realidades semelhantes, por si só, já favorece a diminuição do sofrimento. Nas
organizações, trabalhadores se surpreendem quando, no espaço de escuta e fala, percebem que
o colega passa por situações semelhantes, mas que não sabiam até então, o que favorece que
juntos pensem em estratégias de enfrentamento. Também se percebe que ações interventivas
junto a sujeitos sem perspectivas de mudanças sociais e organizacionais têm ajudado os
participantes a elaborar projetos, ampliando seu poder de agir sobre a própria vida, ao que se
está denominando de novos modos de gestão da própria vida.
Pode-se dizer, com os resultados alcançados até o momento, que um clínico humanista-
fenomenológico do trabalho enfrenta impasses ao compartilhar significados com os
participantes, devido sua condição de trabalhador concreto ser a viga mestra do diálogo. Ele
também precisa escutar sua experiência do mundo do trabalho como um dado da tradição,
sem se abster dela. No entanto, deve realizar uma leitura dos modos de subjetivação diante
dos modos de gestão e das relações sociais estabelecidas no contexto social do trabalho
investigado e considerar que a tradição vai além da empatia, a fim de mergulhar no mundo da
experiência compartilhada no momento do encontro, para produzir novos sentidos
(MACÊDO, 2015). Isso constituiria sua ação criativa (seu espírito selvagem), num dizer
merleau-pontyano, sua obra, para que possa, numa conversação gadameriana, contestar
verdades e chegar a novos conceitos, como também construir, junto com os sujeitos, projetos
de felicidade humana que não se restrinjam ao labor.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A clínica humanista-fenomenológica do trabalho tem avançado no Vale do São


Francisco a partir de intervenções com diversos dispositivos e com diferentes categorias de
trabalhadores e de organizações, podendo se apresentar ao contexto científico como uma
abordagem inovadora, coerente com sua fundamentação epistemológica e passível de ser
aplicada em contexto de estágio profissionalizante em Psicologia.
No entanto, ainda precisa avançar em conceitos, a fim de sedimentar arcabouço teórico
para fundamentar uma prática diferenciada diante de demandas de sofrimento no e por causa
do trabalho. Lança-se, assim, um desafio para futuras produções científicas sobre essa
abordagem.

REFERÊNCIAS

AYRES, J.R.C.M. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Ciência & Saúde
Coletiva, v. 10, n. 3, p.549-560. Disponível em <
http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n3/a13v10n3.pdf >. Acesso em 26 fev. 2019.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300013.

BENDASSOLLI, P.F.; SOBOLL, L.A.P. (Orgs). Clínicas do Trabalho: Novas Perspectivas


para Compreensão do Trabalho na Atualidade. São Paulo: Editora Atlas, 2011.

MELO, S.M.V. A saga de Hefesto: hermeneêutica colaborativa como possibilidade de


ação humanista-fenomenológica em clínica do trabalho. Tese de Doutorado. Laboratório
de Práticas Psicológicas Clínicas em Instituição. Universidade Católica de Pernambuco,
Recife.

MACÊDO, S. Clínica humanista-fenomenológica do trabalho: a construção de uma ação


diferenciada diante do sofrimento no e por causa do trabalho. Curitiba: Juruá, 2015.

SOUZA, G.W.; MACÊDO, S. Grupo interventivo com genitores (as) de crianças vítimas de
violência sexual. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 24, n. 3, p. 265-274, dez.
2018. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
68672018000300002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 09 set. 2018.
http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n3.1.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

BRINCANDO DE EXISTIR: A LIBERDADE DE SER NA CLÍNICA INFANTIL.

Ilana Pereira Bandeira, ilanapbandeira@gmail.com, Estudante de graduação – UNIVASF


Profa. Dra. Sílvia Raquel S. de Morais, silviamorays@yahoo.com.br, Colegiado de Psicologia
–UNIVASF

Palavras-chave/Descritores: Psicoterapia Infantil; Clinica Psicológica; Fenomenologia


Existencial.

INTRODUÇÃO

Esta produção trata do relato de experiência com a clínica fenomenológica infantil


enquanto estagiária e supervisora de estágio no Centro de Estudos e Práticas em Psicologia –
CEPPSI, serviço escola da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). De
modo mais específico, o relato foi desenvolvido com base nos recortes de um atendimento de
psicoterapia infantil, sob inspiração da psicologia em uma perspectiva fenomenológica
existencial. Pretende-se, além de descrever a experiência dos atendimentos, evidenciar
aspectos da clínica infantil, abordando o lugar da autenticidade da criança no contexto da
psicoterapia.
O caso acompanhado foi o de Mateus (nome fictício), 09 anos. Foi trazido ao Centro
de Estudos e Práticas em Psicologia - CEPPSI por sua mãe por intermédio da Vara Regional
da Infância e da Juventude de Petrolina, após o afastamento do pai por sucessivos episódios
de violência intrafamiliar. Inicialmente frequentou o Serviço à Família ofertado no CEPPSI,
juntamente com a mãe e irmã. Depois de finalizado o processo terapêutico em família, a
criança foi encaminhada para a modalidade de atendimento individual também ofertada no
serviço. As queixas relatadas pela mãe foram voltadas para a perda da presença paterna,
apontando como possíveis reverberações comportamentos agressivos no contexto escolar e
medo excessivo ao qual atribui a dificuldade do filho em separar-se de si, especialmente na
hora de dormir.
Diante da queixa na clínica, é preciso compreender que a Psicologia enquanto campo
do saber dispõe de diversas teorias acerca do desenvolvimento infantil, as quais costumam
evidenciar caminhos teóricos para se compreender os modos de ser da criança. As teorias
médicas e psicológicas, não raramente, apresentam-se enraizadas em uma ideia de
normalidade que aponta comportamentos considerados inadequados frente a um padrão
quantitativo pré-estabelecido. Pompéia e Sapienza (2013) ilustram tal fato ao se referirem às
teorias da psicologia do desenvolvimento como um saber que vislumbra o amadurecimento
como uma série de estágios e etapas a serem ultrapassadas para que se chegue a uma forma

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final: a idade adulta. Comportamentos desviantes da linearidade proposta são tidos como
patológicos, uma vez que cada fase superada deve ser deixada para trás, e retomar aspectos
passados é visto como uma regressão no processo de desenvolver-se.
No entanto, em sua obra, os autores apontam a trajetória humana não como uma linha
reta, mas sim como um círculo a ampliar-se, no qual o dasein é aquilo que se amplia, ou seja,
a existência humana. (POMPÉIA; SAPIENZA, 2013). Nessa perspectiva, o Dasein é algo
muito mais complexo, pois não se trata de um objetivo a ser atingido, mas sim uma ideia de
compreender o humano enquanto ser-aí frente ao sofrimento, e que essa forma de apresentar-
se nessa condição mostra algo que faça sentido na existência desse sujeito.
Tratando-se da clínica fenomenológica, visualizar a criança sob uma lente de
diagnósticos prévios ou limitado às queixas apresentadas pelo cuidador/responsável
dificultam a aproximação fenomenológica do sofrimento em seu estado originário, já que se
antepõe um apriori teórico sem aguardar que o fenômeno vá se des-velando por si mesmo a
partir da relação com os outros no mundo. Enxergar a criança através de um saber que a
enquadre teoricamente, sem o devido posicionamento de abertura e criticidade, pode
contribuir para que o fenômeno propriamente dito desapareça em detrimento de uma
configuração do real previamente determinada. Ao considerar uma atitude fenomenológica na
clínica, o terapeuta suspenderá as interpretações prévias a respeito da criança que é trazida ao
consultório, possibilitando acompanhar o desvelar do fenômeno ao seu modo (FEIJOO,
2011).
Com isso se tratando do contexto clínico, compreende-se que “assumir uma postura
fenomenológica frente ao fenômeno consiste em suspender qualquer posicionamento
ontológico, seja da ciência ou do senso comum sobre as coisas, fenômenos” (FEIJOO, 2011,
p.187). Dessa forma, como pontua Feijoo (2011), se desfazer de qualquer posicionamento
ontológico previamente estabelecido a respeito do comportamento da criança, possibilita a
aproximação do modo que se mostra em sua expressão singular, originária.
Diante de tais apontamentos, o presente estudo é norteado pela inquietação referente
ao lugar da liberdade de ser no atendimento infantil. Para tecer compreensões sobre tal
questão, pretende-se compartilhar a experiência enquanto estagiária e supervisora frente a um
caso infantil de violência intrafamiliar, elaborando compreensões acerca da clínica
fenomenológica voltada ao público infantil e desconstruindo o fazer psicológico pautado em
atendimentos e compreensões previamente estruturadas, o que dificulta a livre expressão do
ser-aí da criança.

MÉTODOS

Visando exemplificar a postura fenomenológica de disponibilidade afetiva, abertura,


inventividade e escuta não moralizante frente à clínica infantil, aqui será apresentado como
foram realizadas as sessões com Mateus. As informações apresentadas foram provenientes
dos registros de atendimento e do conteúdo explorado em supervisão e diário de bordo da
estagiária responsável pelos atendimentos realizados com a criança participante.

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Até o momento, foram realizados 10 atendimentos com duração de cinquenta minutos


e frequência de uma vez por semana. Para dar início ao processo de fato, foi realizada uma
escuta com a mãe de Mateus, que se apresentou como responsável pela criança, como forma
de compreender a queixa e as possíveis demandas. As sessões foram ancoradas no método
fenomenológico de inspiração heideggeriana, sob a supervisão da professora co-autora desse
trabalho.
A psicoterapia pautada no método Fenomenológico-Existencial busca por uma forma
de resgatar o que há de mais verdadeiro na existência humana, o que há de mais próprio na
historicidade do sujeito. E isso diz respeito à singularidade, à liberdade que cada indivíduo
tem de ser si próprio. É importante levar em consideração a dimensão existencial do homem,
onde a existência não é apenas uma característica entre outras, mas a que busca abarcar todas
as dimensões de nossas experiências. (BRAGA; FARINHA, 2017).
Diante disso, quanto aos atendimentos com Mateus, ao início de cada sessão, a criança
era conduzida à sala de brinquedos para que pudesse selecionar o material a ser utilizado.
Esta conduta se justifica no fato de que, neste caso, os atendimentos visaram que a atenção
estivesse voltada para a criança em seu modo singular de ser e agir, para que pudesse
expressar-se livremente.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Do ponto de vista existencial, foram percebidas compreensões notadamente


sofisticadas sobre um sofrimento real e tão presente na rotina de Mateus, que era o
afastamento do pai. Além disso, um ponto a ser destacado no ato de sua brincadeira, foi a
questão de sua capacidade imaginativa e criativa. Quando estava diante de um jogo que não
tinha conhecimento das regras, como exemplo a sessão em que levou para a sala de
atendimento um jogo de xadrez, Mateus apresentou a capacidade de criar e reinventar-se
dando novo significado para cada peça de xadrez, onde cada uma desempenhava um papel em
uma trama contextualizada no seu modo de existir. Esse posicionamento foi observado
diversas vezes, evidenciando a capacidade de movimentar-se e não permanecer paralisado ou
solicitar que fossem dadas as regras da brincadeira. Essa atitude nos fala de seu movimento no
mundo frente aos desafios e possibilidades anunciadas. E ainda, o quanto isso desvela um
processo de co-construção de saúde (HEIDEGGER, 2009).
Repetidas vezes no momento de escolha do material, Mateus optou por um quebra-
cabeça específico. Isso nos apontou a necessidade de revisitar a mesma experiência várias
vezes, como forma de, na linguagem da criança, evidenciar a dificuldade em lidar com
determinadas questões. Com isso, em uma postura de abertura, foram trabalhadas as
intervenções possíveis até que fosse esgotada a experiência para Mateus. Diante disso, na
vivência enquanto terapeuta, ao início dos atendimentos, muitas vezes, circulou a angústia de
estar diante do mesmo recurso repetidas vezes, com a preocupação de não ser mais possível
trabalhar em cima do mesmo material. No entanto, a inventividade exigida pela clínica
infantil e abertura frente à expressão livre de Mateus propiciou que cada encontro fosse
singular. O jogo funcionou ali como o mediador do encontro entre duas existências,
mostrando que havia sim inesgotáveis possibilidades a serem exploradas.

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Dessa forma cabe ressaltar que a técnica não é entendida aqui como um meio para
atingir um fim, mas como um processo cocriativo e coexistente. Como aponta Protasio
(1997, p.14) “o terapeuta acompanha, segue a direção sugerida pela criança com sua
intencionalidade como recurso de trabalho: seu olhar, sua escuta, únicos para aquela
criança.” Faz-se necessário ressaltar que a postura de abertura frente ao processo de
alethéia neste contexto visou não perder de vista o acolhimento do sofrimento do cliente
e de sua responsável, tampouco o ato de questionar como via de investigação do
fenômeno, assim como uma forma de pontuar intervenções reflexivas, que indagassem a
respeito do estar-sendo de cada um dos atores envolvidos e dos sentidos co-construídos
por eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio diante dos atendimentos apresentados esteve na imprevisibilidade,


evidenciando a necessidade de manter a atenção no momento do atendimento buscando
elementos provenientes do aqui-e-agora em prol da investigação da experiência narrada,
como via de explorar o brincar e realizar intervenções necessárias. Tratando-se da
experiência enquanto terapeuta iniciante foi, por vezes, desafiador entrar para o
atendimento com o sentimento de despreparo por não se tratar de uma sessão estruturada,
o que é acentuado pelo contexto acadêmico em si que por muitas vezes é voltado para o
saber científico pautado em um fazer psicológico tecnicista, excessivamente teorizante.
No entanto, essa situação também foi esclarecedora, pois nos ajudou a aprimorarmos o
nosso olhar e a nossa escuta para o novo, pautadas não por teorias, mas por pressupostos
heideggerianos inerentes a esse movimento de abertura, a exemplo da serenidade, do
cuidado liberador e do pensamento meditante.
A experiência diante do caso possibilitou não só o desenvolvimento da escuta
clínica, mas por se tratar de um caso de psicoterapia infantil a habilidade de “captar” na
brincadeira elementos que falam do fenômeno em questão. Além disso, foi possível
trabalhar o manejo clínico com o familiar frente ao desafio de não se colocar no lugar de
alguém que está a serviço de um ajuste ou correção de condutas, uma vez que a
psicoterapia não se trata de um ato disciplinar.

REFERÊNCIAS

BRAGA, T.B.M; FARINHA, M.G. . Heidegger: em busca de sentido para a existência


humana. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiás (Goiânia), v. 23, p.63-73, 2017.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A clínica psicológica infantil em uma perspectiva
existencial. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiás (Goiânia), v. 17, p.185-192, 2011.

HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon: protocolos, diálogos e cartas.


Petrópolis: Vozes, 2009.

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MORATO, H. T. P. . Algumas considerações da fenomenologia existencial para a ação


psicológica na prática e na pesquisa em instituições. In: BARRETO, C. L. B. T.; MORATO,
H.T.P.; CALDAS, M. T. (Orgs.). Prática psicológica na perspectiva fenomenológica.
Curitiba: Juruá, 2013, p. 51-76.

POMPÉIA, J. A.; SAPIENZA S. T. . Tempo da maturidade. In:______. Na presença do


sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo:
EDUC/ Paulus, 2004. p. 119-151.

PROTASIO, M. M. . Técnicas da Gestalt-terapia aplicadas à Ludoterapia. Revista Fenômeno


Psi, Rio de Janeiro, v. 1, n. 0, p. 12-20, 1997.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

O DESVELAMENTO DO SOFRIMENTO EM UMA EXPERIÊNCIA DE


PSICOTERAPIA

Clarisse Mendes Rodrigues. E-mail: clarissemenndes@hotmail.com.


Graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF
Silvia Raquel Santos de Moraes. E-mail: silviamorays@yahoo.com.br.
Docente do colegiado de Psicologia da UNIVASF

Palavras-Chave: psicoterapia; fenomenologia existencial; psicologia clínica;

INTRODUÇÃO

Uma questão emergente na clínica psicológica refere-se aos modos de acompanhar e


cuidar das diversas formas de expressão no sofrimento humano. Segundo Santos e Sá (2013),
a clínica em uma perspectiva fenomenológica existencial, se ocupa dos sentidos atribuídos à
experiência de adoecimento. Ainda nesse sentido, os autores complementam:

Embora, a existência seja, essencialmente, liberdade, cotidianamente parecemos distraídos quanto ao nosso
poder-ser próprio e vulneráveis às crenças impessoais e às objetivações. A compreensão da co-pertinência entre
homem e mundo e da existência como cuidado, naquele sentido ontológico, implica uma transformação do olhar,
revertendo preocupações técnicas de eficácia na solução de sintomas para o plano da ética a das possibilidades
de singularização existencial. (SANTOS; SÁ, 2013, p. 53)

Sendo assim, é comum que a experiência mobilizadora de sofrimento que motiva a


pro-cura pela psicoterapia, enquanto modalidade de atenção clínica, produza estranhamento
nos demandantes, sobretudo quando se revisita inseguranças, incertezas, fragilidades,
tonalidades afetivas. Geralmente o sofrimento apresentado encontra-se ligado à noção de
doença. É bem mais comum, inclusive, que se admita estar doente, ao invés de reconhecer-se
como aquele que sofre movido pelo pathos. Esse contexto reflete modos de ser/estar no
mundo movidos pelo “ter que” responder aos apelos de uma sociedade que hipervaloriza
produtividade, competitividade, lucratividade, sucesso, estabilidade, rapidez. Co-responder a
esses “imperativos” tem sido difícil, sobretudo em meio jornadas exaustivas de múltiplas telas
interligadas initerruptamente. A “dificuldade de parar”, de discernir sobre quais apelos
responder tem sido muito relatada no contexto clínico. E diante da exaustão, da sobrecarga,
dos excessos, das faltas e das ausências, muitos vão em busca de nomenclatura diagnóstica, de
fármacos “milagrosos” e de prescrições de conduta como possibilidades de conferir sentidos à

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vida que levam, de se reconhecer diante de experiências difusas, repletas de estranhamento e


fragmentação anunciadas pelo pathos.
Com isso, percebe-se o quanto a pre-ocupação por co-responder aos apelos de um
tempo líquido (BAUMAN, 2007), muitos se distanciam do cuidar de ser, do pensamento que
medita/reflete, e com isso, as relações passam a ser pautadas pela superficialidade e
instantaneidade, caminhando em direção à fluidez. Por outro lado, é notável a
dificuldade que as pessoas têm de reconhecer e de revisitar as próprias experiências de
sofrimento, sendo frequente aparentarem um suposto bem-estar que não se sustenta ao longo
do tempo fora das redes sociais. Ademais, as distrações contemporâneas, com forte apelo
consumista, costumam dispersá-las em falatórios e pensamentos notadamente calculantes,
planificadores, superficiais. Assim, vemos sujeitos com dificuldade de entrar em contato com
suas afetações, restringindo a sua liberdade de poder-ser. Diante disso, a clínica psicológica
surge como uma possibilidade de cuidado não tutelar, que prioriza a co-construção de
sentidos entre os atores envolvidos.
A fenomenologia existencial, ao inspirar a prática em questão e a proposta desse relato
de experiência, nos ensina sobre a importância de considerar a experiência humana passível
de investigação, por meio da fala e da escuta qualificada. Propõe a retomada à questão do
sentido do estar-sendo no mundo, ajudando o psicólogo a explicitar o modo como essa
questão se apresenta na existência cotidiana dos demandantes. Com isso, a ação clínica é
pautada por pressupostos heideggerianos importantes, a exemplo do cuidado, das tonalidades
afetivas, da queda, do pensamento meditante e calculante, da serenidade.
Com base nos pressupostos heideggerianos, é possível compreender que o homem em
situação de sofrimento encontra-se distanciado de seu poder-ser próprio, perdendo-se em
falatórios e em pensamentos calculantes. O pensamento que calcula, também planeja e faz
previsões; ou seja, é uma forma de se lançar em conjecturas, expectativas e planos, visando o
suposto controle de processos que levarão a resultados esperados, que reduz às possibilidades
de satisfazer aos fins prévios delineados pelo querer. (SARAMAGO, 2008). E isso é bem
presente na clínica, sobretudo quando as pessoas ainda se encontram em processo de
aproximação e apropriação do vivido, da experiência originária de sofrimento.
Já a serenidade apresenta-se como um caminho para o pensamento meditativo. Ela não
resulta das vontades do sujeito, mas de um ato de aguardar a emergência do fenômeno no
tempo de seu desvelamento. Não é uma tarefa fácil e costuma despertar angústia. Para
Heidegger (1927), a angústia é dimensão constitutiva da existência que nos lança às
possibilidades de devir. Tendo em vista essa fundamental compreensão, o presente relato se
justifica pela sua contribuição para o processo formativo de aprendizes da clínica ao propor
reflexões sobre o sofrimento na prática clínica, podendo auxiliar discentes, docentes e
gestores de clínicas-escola. É relevante não só para a contextualização do saber-fazer em
questão, mas também para aqueles que desejam adentrar na formação clínica e os que já
desenvolvem essa prática a partir de uma perspectiva fenomenológica existencial. Ademais,
tal proposta realça a discussão acerca dos desafios do terapeuta iniciante. Esse estudo é
também importante no sentido de trazer sugestões para futuros estagiários e supervisores em
seus processos de ensino-aprendizagem.

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Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo tematizar o sofrimento na clínica
psicológica de inspiração fenomenológica existencial a partir do recorte de um caso clínico
atendido na modalidade de psicoterapia.

MÉTODOS

Trata-se de um relato de experiência de um caso clínico atendido, na modalidade de


psicoterapia, em um serviço-escola da Universidade Federal do Vale do São Francisco
(UNIVASF) com base na Fenomenologia Existencial de Martin Heidegger. O caso em
questão se refere a um usuário do sexo masculino João (nome fictício) com queixa de
ansiedade agravada, o qual foi atendido pela estagiária proponente desse relato sob a
supervisão de uma professora orientadora. O presente relato de experiência consiste na
descrição, explicitação e reflexão de uma dada situação vivida com a finalidade de tematizar
aspectos significativos de uma realidade. Para a construção do mesmo foram utilizados os
seguintes procedimentos e instrumentos: registros dos diários de bordo da estagiária,
anotações de discussões/orientações de seis encontros de supervisões e ainda, a leitura de
artigos científicos correlatos.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Inicialmente João apresentou-se imerso no falatório cotidiano restringindo-se a narrar


sua rotina, demonstrando postura distanciada, racionalizada e reservada. A conquista da
intimidade, do vínculo e da confiança foram desafios presentes ao longo dos três primeiros
encontros. João nos solicitou a confirmação de diagnóstico prévio de transtorno de ansiedade
(auto realizado por ele mesmo a partir de consultas na internet), que, com o passar do tempo,
cedeu lugar ao desvelamento da demanda. No decorrer das sessões e das supervisões, novos
horizontes compreensivos emergiram: agora, João testemunhava sua dificuldade de confiar
nas pessoas e em si mesmo. Aos poucos, ele alternava esse modo de se mostrar com o pedido
de direcionamento/respostas para suas inquietações.
O caso em questão ilustra o pedido de direcionamento que muitos usuários fazem no
intuito de receber uma “resposta pronta” para aquilo que trazem, sendo necessário que
terapeutas e supervisores se atentem ao endereçamento do pedido, ao lugar que ele ocupa e
aos sentidos de tal fenômeno. Em outras palavras, é preciso que nos atentemos
cuidadosamente aos modos de revelação e de ocultação do sofrimento, os quais podem soar
como “mero pedido de ajuda” para terapeutas iniciantes. Contudo, é preciso ir além do que
soa como óbvio ou como “respostas aplacadoras” do sofrimento. Convém ressaltar que não
estamos diante do outro e com o outro como meros conselheiros ou treinadores de
habilidades, mas antes, como aqueles que acompanham a travessia do sofrimento em direção
ao cuidado de ser. Vale ressaltar que o pedido por direcionamento não pode nos levar a uma
postura de fechamento, de restrição de possibilidades, pois isso atropela a co-construção de
sentidos e o movimento fenomênico na clínica. O terapeuta está ali para abrir horizontes
compreensivos junto-com o outro.
Dessa forma, a partir das supervisões, o processo começou a caminhar quando nos
situamos com maior clareza e cuidado quanto a isso. E ao invés de sermos fisgadas por esse

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lugar do especialista que supostamente tudo sabe, fomos co-construindo caminhos junto com
o usuário, em direção à abertura, ao pensamento meditante que reflete o narrado/vivido no
aqui-agora do acontecimento. No entanto, ao longo dos atendimentos, João também se
apresentava como aquele que, aparentemente, sabia de tudo na maior parte do tempo. Com
isso, interrogamos sobre o quê o motivou a buscar psicoterapia e o quê o mantinha em
processo, já que explicitava um discurso “seguro” sobre o uso empregado de estratégias para
evitar sinais e sintomas da ansiedade que estavam à serviço do ocultamento do sofrimento.
Diante disso, podemos compreender que o fenômeno se mantinha velado frente ao que
se mostrava. Ou seja, ao mesmo tempo que se mostra diretamente, de modo a constituir o seu
sentido para quem o vivencia, também se esconde. E vice-versa. Assim, a compreensão co-
construída dos fenômenos apresentados não reside em a prioris meramente teorizantes, mas
antes de tudo, no que se quer dizer sobre o movimento fenomênico de ocultação e revelação.
As afetações da estagiária relacionadas a maneira como João se colocava nos
primeiros atendimentos foram problematizadas nas supervisões, trazendo o aprendizado que a
prática clínica nos convoca a revisitar e recordar questões existenciais que ultrapassam o
binômio queixa-demanda. E isso nos mostra sobre a imprevisibilidade do vivido, do narrado,
do experienciado, do quanto é importante e necessário que o estagiário invista em seu
processo psicoterapêutico, nas supervisões e nos estudos. A clínica nos afeta e tem o poder de
nos deslocar do aguardar sereno, podendo nos instigar a “colocar algo no lugar da angústia. ”
Esse foi um desafio e ainda é um exercício de aprendizado constante. Assim, revisitar o lugar
do não planejado, do imprevisível na clínica também é algo que pode trazer sofrimento,
inquietação, desassossego aos atores envolvidos no processo, inclusive para psicólogos mais
experientes.
A partir da disponibilidade e acolhimento do terapeuta, o processo de desvelamento foi
acontecendo, sendo possível distinguir a queixa apresentada (ansiedade agravada) da demanda
desvelada (dificuldade de dizer quem ele era, necessidade de agradar o outro e de se
autoafirmar). A forma de ouvir, de lançar questionamentos e de se atentar às questões trazidas
pelo usuário foram importantes para a construção da aliança terapêutica. E nesse caminhar
junto com o outro, pudemos des-velar novas possibilidades de coexistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que o psicólogo clínico não deve se colocar no lugar de mero especialista.
Partimos de uma clínica onde a técnica não consiste no prever e controlar ações para um
determinado fim, mas daquela que propõe horizontes reflexivos e compreensivos juntos-com
o outro mediante a indagação pelo sentido de ser. O caso em questão nos ensinou que a
compreensão clínica numa perspectiva fenomenológica não se limita à identificação de sinais
e sintomas presentes na experiência de sofrimento, até porque a nossa ação não consiste na
mera remissão de sintomas, mas na co-construção de novas formas de ser e de estar diante se
si, do outro, do mundo. É preciso acompanhar o vivido para que as pré-compreensões se
alarguem e produzam novos horizontes. Ao se limitar ao diagnóstico, há o grande risco do
terapeuta iniciante se fechar em leituras teorizantes. Com isso, não estamos descarando a
importância de correlatos ônticos ao longo do processo, mas alertando sobre o perigo de não
os contextualizar junto à historicidade de quem sofre. A clínica é uma experiência única e

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singular, que exige do terapeuta, presença e disponibilidade afetiva para estar-junto-com-o-


outro em seu processo de descobertas. O dizer, o não-dizer, o silêncio, as expressões, emoções
e histórias contadas no setting terapêutico nos co-movem a revisitar nossa própria
historicidade e afetações. Além disso, nos convoca ao cuidado ético, liberador. Cuidado esse
que não tutela ou substitui o outro em suas ações, mas acompanha, escuta, acolhe, questiona,
tensiona, indaga a respeito do sentido de ser/estar no mundo. É nessa relação que o paciente
encontrará um leque de possibilidades compreensivas. Por fim, ressalta-se que os sintomas
apresentados por João também estão presentes na historicidade de muitos e para além do que
se convenciona chamar de pathos. Alguns sofrimentos se apresentam como possibilidade de
vir-a-ser. Outros, denunciam o quanto a pessoa pode estar imersa na superficialidade, no
falatório, na queda. Por fim, não é possível trazer respostas prontas e definitivas ao sofrimento
na clínica, já que ele se transfigura a cada acontecimento vivido e interpretação compartilhada
com nossos pares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2007.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

SANTOS, Danielle de Gois; SA, Roberto Novaes de. A existência como "cuidado":
elaborações fenomenológicas sobre a psicoterapia na contemporaneidade. Rev. abordagem
gestalt. Goiânia, v. 19, n. 1, p. 53-59, jul. 2013.

SARAMAGO, Ligia. Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do


pensamento. Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, Vitória da Conquista, Ano VI, n. 10, p.
159-176, 2008.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

SERVIÇO PARA PAIS E FAMÍLIAS À LUZ DA GESTALT-TERAPIA: RELATO DE


EXPERIÊNCIA

Taciana Albuquerque Rafael. E-mail: tacipsirafael@gmail.com.


Graduanda de Psicologia da Univasf
Melina de Carvalho Pereira. E-mail: melinamcp@gmail.com.
Psicóloga – Univasf
Marcelo Silva de Souza Ribeiro. Email: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br.
Professor – Univasf
Emily Ribeiro da Silva. E-mail: emily.psi.univasf@gmail.com.
Estudante de Pós-Graduação em Psicologia - Univasf

Palavras-chave: serviço para pais; famílias; parentalidade; gestalt-terapia.

INTRODUÇÃO

O presente resumo apresenta-se enquanto um relato de experiência, a partir da


descrição e análise do Serviço para Pais e Famílias do Centro de Estudos e Práticas em
Psicologia – CEPPSI, serviço escola de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São
Francisco (Univasf). A Fenomenologia Existencial é tomada como base epistemológica e a
Gestalt-Terapia como abordagem de sustentação para as ações do Serviço para Pais e
Famílias. Via essa perspectiva de atuação, entende-se o humano a partir de sua natureza
relacional, histórica e social (AGUIAR, 2014), considerando-o de uma maneira global,
relacional e contextual, pois, inevitavelmente, é atravessado por inúmeros elementos do
campo do qual faz parte, afetando suas relações com o outro e consigo mesmo – a isso é
denominado “campo organismo/ambiente” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). As
práticas realizadas também apoiam-se nas visões sociointeracionista e sócio-histórica do
desenvolvimento humano, e, nesse sentido e de acordo com Bock (2006), as ações humanas
se dão em um processo histórico e cultural, forjado por experiências e vivências dos sujeitos.
Assim, para os atendimentos realizados no Serviço para Pais e Famílias, essa perspectiva se
faz muito cara, pois o entendimento de que é necessário compreender as concepções e as
produções de sentidos pelo indivíduo, a partir de seus valores sociais e dos seus próprios
julgamentos, é o que norteia a prática com um público tão heterogêneo e demandas deveras
específicas.
O referido serviço está em atividade desde 2014, atuando como um espaço de troca de
experiências entre os membros da família, tendo como principais temas abordados o

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fortalecimento de vínculos, regras e limites, estilos parentais e intergeracionalidade das


práticas parentais. Inicialmente, o grupo de pais, como a modalidade também é conhecida,
atendia somente adultos cuidadores que exerciam função parental e que desejavam buscar
orientações acerca de como cuidar e lidar com suas crianças ou adolescentes. Nesse modelo
de atendimento, buscava-se o autoconhecimento dos cuidadores sobre a forma como foram
educados e como educam agora os seus filhos. Recentemente, o serviço ampliou seu público
alvo quando oportunizou a entrada de outros membros da família, para que pudessem
participar do processo de forma ativa, também estando nos atendimentos intrafamiliares.
Para respaldar tal prática clínica diante de atendimentos a esse público, são levados em
consideração a complexidade das relações familiares, as circunstâncias sociais e culturais
diversas, a dependência da família a sistemas mais amplos, como por exemplo as famílias
pertencentes às classes sociais com menores condições econômicas, entre outros aspectos
levantados a partir de uma visão sistêmica para a clínica com famílias (COSTA, 2010).
De acordo com Osório (2004), a família é compreendida como um sistema próprio que
se relaciona com os demais sistemas em seu meio social. Por isso, a importância do Serviço
de Pais e Famílias se dá primordialmente graças à complexidade desse sistema de relações,
mas também, e não menos importante, ao fato de que essas relações estão em constante
desenvolvimento e transformação, favorecendo a constituição do sujeito como pessoa.
Portanto, o referido serviço almeja contribuir para a construção de relações mais saudáveis
entre pais, filhos e cuidadores de um modo geral, a fim de ressignificar essas práticas
parentais.
Dessa forma, este resumo objetiva descrever o Serviço de Orientação para Pais e
Famílias e apresentar os princípios e fundamentos que o norteiam, a fim de analisá-los à luz
da Gestalt-Terapia. Assim, aposta-se em gerar condições compreensivas no desenvolvimento
de práticas para o atendimento a famílias.

MÉTODOS

O Serviço de Orientação a Pais e Famílias oferece atendimentos individuais ou em


grupo, voltados para pais ou cuidadores que exerçam função parental e que buscam
orientações para melhorar as relações, como também para outros membros familiares que
objetivem contribuir no processo. Nestas modalidades, as sessões acontecem semanalmente,
por um período de seis a oito encontros, podendo haver exceções caso necessário. Os
atendimentos individuais têm duração máxima de uma hora e os de grupo têm duração de
duas horas e ambos são feitos por estudantes de Psicologia da Univasf que cumprem o
componente curricular Estágio Profissionalizante, sob supervisão da psicóloga Melina Pereira
e do professor Marcelo Ribeiro.
Os atendimentos possuem um caráter breve, focal e sistêmico, conforme o pressuposto
teórico utilizado como instrumento de compreensão e intervenção, sendo que os atendimentos
individuais são direcionados às pessoas que precisam elaborar questões mais específicas e que
não participam dos atendimentos grupais, seja por causa da disponibilidade de horários dos
grupos ou pela própria demanda apresentada. Já o grupo é o momento próprio para o
compartilhamento das práticas parentais, servindo como suporte para as famílias ali presentes,
que, como consequência, influenciam e são influenciadas pela diversidade das demandas

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apresentadas nesse contexto grupal, podendo ressignificar as suas próprias práticas a partir do
que fizer sentido para a sua realidade.
Realizados os atendimentos, os estagiários e os docentes supervisores reúnem-se em
supervisão semanal, previamente agendada, em que são relatados e discutidos os casos
individuais e os relatos do trabalho em grupo, a partir do aporte teórico estudado para
respaldar as práticas e posturas clínicas adotadas, e também para que se possa planejar e
direcionar cada caso acompanhado e também, sendo necessário, realizar encaminhamentos
para a rede interna do CEPPSI ou externa (a exemplo do Sistema Único de Saúde - SUS). A
supervisão possui ainda um caráter didático-formativo para o estagiário envolvido nesse
serviço, uma vez que a troca de experiências entre os agentes envolvidos favorece a uma
formação mais ampla, contribuindo para um exercício mais efetivo da Psicologia.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Ao longo da duração da oferta desse serviço, uma das modificações mais importantes
foi a inserção de outros membros da família na intervenção clínica, partindo do pressuposto
que precisam ser compreendidos em um contexto mais amplo, neste caso, o familiar. Tal
ampliação do olhar clínico encaixa-se com a visão de campo da Gestalt-terapia, em que se
considera que os indivíduos não podem ser vistos de maneira isolada, mas em relação. Além
disso, o conceito de Psicologia da Gestalt, em que se considera que “o todo é diferente da
soma das partes”, aponta para uma reorganização dos elementos quando vistos em conjunto.
Com base nesta ideia, o homem não pode ser compreendido fora do seu contexto, está
integrado ao seu campo e é construído a partir dele. Reciprocamente, o indivíduo constitui
ainda o meio, isto é, o sujeito afeta e é afetado constantemente pelo campo. A visão holística
(holos em grego significa total, completo) e a Teoria de Campo contribuem, então, para a
compreensão sistêmica do ser-no-mundo na Gestalt-terapia; sujeito este que não pode ser
estudado de forma independente ao meio nem pode ser divisível em partes isoladas,
manifestando-se sempre a sua totalidade a cada momento (KIYAN, 2006).
Em consonância a esse pensamento, Osório (2004) aponta que a família não é um
aglomerado de elementos em um sistema, mas um conjunto integrado em suas interações.
Esta nova forma de intervir tem proporcionado frutos interessantes, quando por exemplo o pai
de um adolescente considerava que seu filho o achava muito rígido, mas na oportunidade de
uma sessão conjunta ele pôde constatar que a visão de seu filho era diferente, considerando
que a figura parental estava apenas fazendo seu papel de orientação.
Essa perspectivação, ou seja, a capacidade do sujeito produzir novos sentidos e
significados remete também ao entendimento gestáltico para a questão do saudável, que passa
pela não obrigatoriedade de fixar-se no sintoma. Assim, determinadas qualidades da relação
familiar, que outrora eram vistas como problemáticas, passam a ser acolhidas e interpretadas
pelos membros da família como algo criativo. É o caso da criança que fazia birras para
chamar atenção dos pais, e quando isso pôde ser compreendido, a birra passou a ser vista
como uma necessidade a ser melhor mediada.
A produção de novos sentidos e significados na dinâmica familiar possibilita a
emergência, por sua vez, de novas gestaltens, o que implica nas recolocações das relações,
que são mutáveis. Assim, como explica Giordani (1997, p. 22), “a Existência (o homem) não

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é um estado, mas um ato; é, pois, algo dinâmico que se cria a si mesmo continuamente, que
luta por si, que dá a si sua própria forma”. O homem, na abordagem gestáltica é um ser-no-
mundo, inacabado e constituído continuamente a partir das relações que estabelece com o
meio. Nesta perspectiva, fica evidente a liberdade do indivíduo quanto às suas escolhas,
conscientes ou não. É ele quem decide qual escolha fará diante das possibilidades disponíveis
– porém limitadas - no seu campo vivencial e, em decorrência disso, tem responsabilidade
sobre si mesmo.
Dessa maneira, a forma como é construído o processo com cada cliente é bastante
singular, visto que cada sujeito tem formas únicas de perceber o mundo e, por consequência,
de vivenciar suas experiências enquanto pais e cuidadores. Logicamente, há dados científicos
que embasam as orientações e direcionamentos propostos aos cuidadores, no entanto, não há
um modelo previamente instituído que sirva para todos os clientes, uma vez que a
fenomenologia busca a autodescoberta como ser-no-mundo a partir da forma pela qual cada
um percebe os fenômenos a sua volta. Isto porque não acredita em uma verdade a priori, mas
sim em diferentes maneiras de perceber e sentir determinado fenômeno. Ainda, de acordo
com Rodrigues (2009) o sujeito aos poucos vai reconhecendo sua maneira própria de perceber
as coisas, de lidar com as dificuldades, reconhecendo a si mesmo e responsabilizando-se pelo
que deseja fazer com as novas descobertas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que não tenha sido o foco deste resumo, é importante destacar que, do ponto de
vista quantitativo, o serviço já atendeu, aproximadamente, 150 famílias, evidenciando a sua
relevância para o contexto social em que se encontra e para a emergência da promoção de
relações parentais mais saudáveis. Evidencia-se ainda a credibilidade desse serviço no
CEPPSI, tendo como possível indicador as solicitações por parte das instituições que buscam
orientação e apoio do Serviço de Orientação para Pais e Famílias, tais como Vara da Infância,
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social – e CREAS – Centro de Referência
Especializado de Assistência Social.
Isso corrobora com a aposta feita pela equipe nesse tipo de serviço, uma vez que a
promoção da saúde de famílias, no que diz respeito às qualidades de suas relações, aliando
teoria e prática, tem, nos limites do próprio serviço, possibilitado um espaço de acolhimento,
orientação e ressignificação dos padrões familiares.
Ademais, é importante frisar que o serviço também se constitui como significativo
contexto de desenvolvimento profissional de futuros psicólogos em searas ainda pouco
exploradas pelo campo, abrindo oportunidades de atuação inovadora e oferta de novas
contribuições à população.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Luciana. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. Summus Editorial,


2014.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

BOCK, Ana Mercês Bahia. A perspectiva sócio-histórica de Leontiev e a crítica à


naturalização da formação do ser humano: a adolescência em questão. Cadernos Cedes, v.
24, n. 62, p. 26-43, 2004.

COSTA, Liana Fortunato. A perspectiva sistêmica para a clínica da família. Psicologia:


teoria e pesquisa, p. 95-104, 2010.

GIORDANI, Mário Curtis. Iniciação ao existencialismo. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

GOODMAN, Paul; HEFFERLINE, Ralph; PERLS, Frederick. Gestalt-terapia. 2. ed. São


Paulo: Summus, 1997.

KYIAN, Ana Maria Mezzarana. E a Gestalt emerge: vida e obra de Frederick Perls. 2. ed.
São Paulo: Altana, 2006. (Coleção Identidades).

OSÓRIO, Luiz Carlos. A Família Como Sistema. In: MELLO FILHO, Júlio de; BURD,
Miriam (Org.), Doença e família. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. cap. 1, p. 29-31.

RODRIGUES, H. E. Introdução à Gestalt-terapia: conversando sobre os fundamentos da


abordagem gestáltica. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Pesquisa

TORNAR-SE PSICÓLOGO: IMPASSES E DESAFIOS EM SERVIÇOS DE


TRIAGEM E PLANTÃO PSICOLÓGICO

Ana Lícia Pessoa Nunes. E-mail: analicia.pessoa@hotmail.com.


Estudante de Psicologia- UNIVASF; Bolsista PIBIC CNPq/UNIVASF

Milena Vitor Gama Duarte. E-mail: milenavgduarte@gmail.com.


Psicóloga, Residente do Programa Multiprofissional em Saúde Mental da UNIVASF

Shirley Macêdo. E-mail: mvm.shirley@gmail.com. Orientadora, Docente do Colegiado de


Psicologia, da Residência Multiprofissional em Saúde Mental e do Programa de Pós-
Graduação em Dinâmicas de Desenvolvimento do Semiárido da UNIVASF

Palavras-chave: escuta clínica; pesquisa fenomenológica; formação do psicólogo; triagem;


plantão psicológico.

INTRODUÇÃO

Para a prática psicológica, a escuta clínica é essencial (BRAGA; DALTRO; DANON,


2012). É uma escuta com particularidades, não sendo uma escuta comum, mas uma
competência atrelada ao cuidado (DOURADO et al., 2016), uma competência clínica de ajuda
que pode minimizar angústias, diminuir o sofrimento e ampliar autorreflexões do sujeito
(MESQUITA; CARVALHO, 2014). Essa competência desenvolvida de forma qualificada ao
longo da graduação implica ouvir o outro que busca ajuda, valorizando sua subjetividade e, os
estudantes de Psicologia devem se comprometer com a produção da autonomia desse outro no
processo de saúde-doença. Portanto, a escuta se configura como uma ferramenta eficaz de
intervenção terapêutica que precisa ser desenvolvidas (VELASCO; RIVAS; GUAZINA,
2012).
Além disso, o futuro profissional de Psicologia precisa desenvolver qualidades pessoais e
profissionais, como: acolhimento, cuidado, respeito, empatia, coerência interna, dar feedback
e ter capacidade de relacionamento interpessoal (SOUSA, 2017). A preparação acadêmica e
outras circunstâncias da história de vida serão fundamentais para o graduando adquirir essas
qualidades e para o exercício da profissão, cuja formação é regulamentada por alguns
dispositivos institucionais.
A formação do psicólogo é regulamentada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCN), promulgadas em 2004 e revogadas em 2011 pelo Conselho Nacional de Educação
(CNE). Nesse processo, são exigidos às instituições formadoras os chamados Serviços Escola,
cujas práticas são reguladas, também, pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2013) e são
base para a construção da identidade profissional.

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Como instituição formadora, o serviço escola deve proporcionar aos estudantes de


Psicologia o desenvolvimento de competências aliadas aos objetivos do curso e às ênfases
curriculares oferecidas, sendo significativo para a consolidação dos projetos político-
pedagógicos dos cursos e tendo como missão habilitar estudantes em práticas psicológicas de
acordo com as demandas da sociedade e atendê-los com qualidade (ANCONA-LOPEZ, 2005;
BOECKEL et al., 2009; MELO-SILVA; SANTOS; SIMON, 2005). Algumas dessas práticas
realizadas são a Triagem e o Plantão Psicológico, consideradas serviços de porta de entrada,
já que o ingresso de usuários nessas instituições se dá a partir delas.
Partindo dessas concepções, o presente relato é um recorte da pesquisa “Escuta Clínica,
Triagem e Plantão Psicológico em um Serviço Escola Pernambucano” (PIBIC
CNPq/UNIVASF, 2017-2018) e tem como objetivo compreender o sentido da experiência de
escuta no processo de tornar-se psicólogo em estudantes que atuam nesses serviços,
identificando impasses e desafios que eles enfrentam em sua formação como futuros
profissionais.

MÉTODO

A pesquisa teve um caráter qualitativo humanista-fenomenológico, com enfoque no


sentido da experiência para o sujeito que a vivencia. O estudo atendeu aos preceitos éticos de
pesquisas com seres humanos contidos na Resolução CNE/CNS 466/2012 e a coleta iniciou
após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIVASF, sob o número 2.170.493;
CAEE: Nº 69091017.0.0000.5196. Colaboraram com o estudo 18 estudantes de Psicologia
que realizavam Triagem e Plantão Psicológico em um serviço escola do interior de
Pernambuco, há pelo menos dois meses, que se dispuseram a participar de forma voluntária e
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Foram realizadas quatro entrevistas grupais: dois grupos, com 4 estudantes cada, que
realizavam Plantão Psicológico (PP1) ou Triagem Triagem Tradicional (TT); e dois grupos,
com cinco integrantes cada, que realizavam Plantão Psicológico (PP2) ou Triagem
Interventiva (TI). Os facilitadores dos grupos foram três bolsistas de iniciação científica,
também estudantes de Psicologia, distribuídos em dupla para cada grupo investigado. Cada
entrevista durou em média uma hora e meia e foi registrada em áudio digital, foi conduzida
por duplas da equipe de pesquisa em sala agendada com antecedência no próprio serviço
escola em questão. Foi feita a seguinte pergunta disparadora: “Como você descreveria a sua
experiência de escuta ao participar do serviço de Triagem (ou Plantão Psicológico) no
serviço escola?”, pergunta que favoreceu que os colaboradores relatassem suas experiências e
os pesquisadores tentassem compreender seus significados e sentidos. A condição de estar em
grupo de discussão viabilizou que os colaboradores entrassem em consenso e/ou divergências
sobre suas experiências, o que está coerente com o método utilizado: a Hermenêutica
Colaborativa (MACÊDO, 2015).
As análises foram realizadas seguindo os seguintes passos: a) após a transcrição, foi
feita a leitura na íntegra de cada entrevista grupal, por cada membro da equipe de pesquisa,
para melhor apreensão do sentido da experiência narrada naquele grupo; b) após a leitura,
cada integrante da equipe de pesquisa realizou uma análise detalhada sobre os significados
que captava daquela conversa; c) as impressões pontuadas por cada membro da equipe de

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pesquisa foram levadas para reunião, onde era realizado um diálogo gadameriano para se
chegar a uma apreensão em comum dos sentidos que a equipe percebia da entrevista grupal, o
que levou à presentificação das unidades de sentido da experiência narrada por cada grupo; d)
a equipe de pesquisa sintetizou a descrição do sentido da experiência investigada em um texto
que consistia numa análise preliminar, para responder aos objetivos da pesquisa, retirando-se
conteúdos repetitivos; e) encaminhamento por e-mail ou entrega de algumas cópias impressas
da análise preliminar aos colaboradores daquele grupo para que os mesmos pudessem sugerir
modificações ou mesmo confirmar ou negar a análise realizada; f) após essa devolutiva, a
equipe de pesquisa realizou a análise final, buscando sentidos em comum para todos os
grupos, bem como diferenças significativas entre eles.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A fim de diferenciar os colaboradores, a equipe de pesquisa atribuiu pseudônimos a


cada um deles, referentes a plantas do semiárido nordestino. Para efeito de organização da
descrição das Unidades de Sentido da experiência investigada, elas serão destacadas em
negrito ao longo dessa análise.
A primeira Unidade de Sentido a se descrever é a desarticulação teoria-prática na
formação. Os colaboradores relataram que a formação não é suficiente para eles realizarem
os atendimentos, como pode ser percebido na fala de Angico (TI) “Então, a gente está só no
curso com muita teoria, teoria, teoria, e quando chega a prática, aí você diz 'Sim, vou fazer o
que agora?!' (...)".
Diante dessa desarticulação, todos os colaboradores apontaram a importância da
semana de capacitação oferecida no serviço escola, que fazia parte do processo formativo para
quem ingressasse, visando atuação mais qualificada. No entanto, mesmo reconhecendo a
capacitação como algo que não tinham vivenciado em sala de aula, os colaboradores alegaram
não receber no serviço escola capacitação específica para atuarem em cada modalidade
investigada. Considerando-se a finalidade de um serviço escola ofertar serviços de qualidade
na direção das diversas demandas da sociedade (KRUG; BOECKEL, 2016), reconhece-se,
aqui, a necessidade de programas de capacitação em modalidades clínicas de porta de
entrada.
Outra unidade de sentido compartilhada foi o fluir da escuta na condução dos
processos. No grupo TT, os estudantes, mesmo tendo que se guiar pela burocracia do
preenchimento da ficha de triagem, necessitando atuar mais no âmbito de uma escuta
investigativa para preencher conteúdos de respostas, não ficavam presos ao formulário. Como
mostra Pereiro (TT) : “às vezes, a gente chega meio que fechado só naquela ficha que está
ali, e nem sempre a gente consegue seguir aquele roteiro”. Reconheceram que a escuta é
variada, e desenvolvê-la é angustiante e difícil. As estudantes que realizavam TI, por sua vez,
relataram não se tratar de um momento de coleta de informações, mas de troca de
experiências promotora de melhor desenvolvimento da escuta. Essa modalidade de triagem no
serviço escola ocorria em grupo, tendo aquelas estudantes um tempo maior para realizar o
procedimento, que requeria disponibilidade para elas serem mediadoras ao manejar o
processo.

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Neste sentido, uma postura mais investigativa, explicativa ou tecnicista numa triagem,
além de fichas e formulários para atendimento podem dificultar a escuta nos serviços de porta
de entrada, considerando que o foco da escuta corre o risco de ser o conteúdo que deve ser
transcrito pelo estudante e não a demanda do cliente. Foi possível compreender que a
disponibilidade e a abertura dos estagiários, ao realizarem os atendimentos, parecem ser
cruciais para o fluir da escuta quando diante dos usuários. Nos grupos de PP, os estudantes
revelaram que a disponibilidade e abertura no aqui e agora são a base para a prestação desse
serviço, já que é o próprio usuário quem direciona o diálogo, faz fluir e dá rumo ao
atendimento. Como pode ser visto na fala de Umari (PP1):“A base do plantão é a
disponibilidade. Quando eu percebo que a gente está lá, disponível, não a pensar quando vai
intervir, [...] deixa ver o que ela quer dizer porque a fala dela vai dando o rumo de um
atendimento [...]”.
Compreendeu-se, também, que no processo de tornar-se psicólogo, os estudantes
enfrentavam dificuldades no manejo do tempo. Os estagiários de TT, por exemplo, diante
de usuários mais mobilizados, revelaram sentir-se convocados a realizarem um acolhimento
inicial com intervenções e pontuações, saindo do âmbito investigativo, porque eles
consideravam ser esse um momento importante para a permanência do sujeito no processo.
Uma dificuldade para os colaboradores também era o tempo que alguns usuários levavam
para falar. De acordo com os estudantes que realizavam TI, a dificuldade era a distribuição do
tempo de fala entre os integrantes do grupo, bem como manejar o tempo de maneira
“proveitosa” diante do limite de tempo da sessão.
Algumas características da modalidade de PP, como a impossibilidade de
planejamento antecipado, por exemplo, era experienciada com Insegurança e dúvida da
própria capacidade. Os colaboradores revelaram, inclusive, que serviço de PP não era
contínuo, sendo necessário que eles estivessem atentos no momento exato de intervir, como
relata Caroá (PP2) “No emergencial é ali e pronto. Ou você sabe o momento de você intervir
[...] ou, às vezes, passa aquele momento e para você resgatar nem sempre vai ser tão legal [...]
às vezes realmente passa”. Alguns estudos também constataram insegurança em estudantes
que atendem nessa modalidade (PAPARELLI; NOGUEIRA-MARTINS, 2007), sendo
possível refletir que essa insegurança pode estar associada às próprias características da
modalidade. No entanto, a insegurança também era experimentada no início da experiência
em qualquer modalidade de serviço de porta de entrada por todos os estudantes investigados,
como se pode compreender da fala de Angico (TI) “No começo eu estava muito muito
insegura, por quê? Por nunca ter participado de nada parecido”.
Outra unidade que pôde ser compreendida foi a necessidade de autocuidado, diante
da pressão e ansiedade que enfrentavam como estagiários. Nesse sentido, é importante refletir
sobre os modos de adoecimento e sofrimento de profissionais de saúde, compreendendo que,
antes mesmo de adentrarem o mercado de trabalho, já apresentaram sofrimento frente à
realidade profissional. Junto a isso, é possível pensar sobre modos de cuidado à saúde do
futuro profissional de Psicologia, reconhecendo o serviço escola como instituição e, dentro do
âmbito organizacional, os estudantes como parte do corpo de funcionários, sendo interessante
preservar e promover espaços de cuidado a eles.

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Outra compreensão foi a falta de infraestrutura para ofertarem os serviços. Nessa


perspectiva os estudantes apontaram a estrutura do local como algo comprometedor dos
atendimentos, já que disseram não haver isolamento acústico, existir falta de acessibilidade e
quantidade insuficiente de salas para o grande número de usuários, estudantes e serviços a
serem oferecidos, como relata Mandacaru (PP1) “Me dói muito ver o tamanho da fila que fica
lá fora e ver a disponibilidade de estagiários, mas ainda ficam quatro, seis sem atender
porque não teve salas para atender [...] isso limita muito algo que poderia ser
potencializado, [...] a estrutura física é muito limitada”. Vale refletir, aqui, sobre o contexto
de trabalho nas instituições públicas de serviços de saúde, que precisam ter otimizadas suas
condições físicas de prestação de serviços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos dados analisados, pode-se perceber que em serviço escola existem desafios
e dificuldades a serem enfrentados por estudantes de Psicologia. A desarticulação teórico-
prática pode comprometer o processo de desenvolvimento da escuta. No entanto, atender a
questões burocráticas nas atividades práticas, carecer de infraestrutura em serviço público de
saúde, aliado à insegurança, falta de autocuidado e dificuldades com manejo do tempo nos
atendimentos, tudo pode potencializar para esses estudantes impasses vivenciados na
experiência do processo de tornar-se Psicólogo, principalmente em serviços de porta de
entrada, que são definitivos para identificação da demanda, para os processos diagnósticos e
para encaminhamento dos casos.
Sugere-se estudos futuros com outras modalidades de atendimento para maior
aprofundamento do tema desenvolvimento da escuta clínica no processo de tornar-se
psicólogo, pois se compreende que na presente pesquisa, focada em apenas duas modalidades
clínicas de prática psicológica, algumas questões chaves, como manejo do contrato, relação
terapêutica e alta, profundamente relacionadas com a escuta clínica, não puderam ser
investigados.

REFERÊNCIAS

ANCONA-LOPEZ, M. Considerações sobre as diretrizes curriculares nacionais para os


cursos de psicologia. In: MELO-SILVA, L. L.; SANTOS, M. A.; SIMON, C. P. Formação
em psicologia – serviços-escola em debate. São Paulo: Vetor Editora, 2005.

BRAGA, A. A. N. M.; DALTRO, M. R., DANON, C. A. F. A escuta clínica: um instrumento


de intervenção do psicólogo em diferentes contextos. Revista Psicologia, Diversidade e
Saúde, 2012.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Carta de serviços sobre estágios e serviços-


escola. Brasília: CFP, 2013.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução N. 466, de 12 de dezembro, 2012.


Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e
revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008. Disponível em:
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf. Acesso em: 20 mar. 2019.

DOURADO, A. M. et al. Experiências de estudantes de psicologia em oficinas de


desenvolvimento da escuta. Phenomenological Studies: Revista da Abordagem Gestáltica,
2016.

KRUG, J. S.; BOECKEL, M. G. Serviço-escola e as Diretrizes Curriculares Nacionais para


formação em psicologia: relato de uma experiência. In: KRUG, J.S.; PRATI, L. E.;
BOECKEL, M. G. (Orgs.). Fundamentos e práticas em serviço-escola: espaço potencial de
formação em psicologia. Curitiba: Juruá, 2016. cap. 1, p.11-25.

MACÊDO, S. Clínica humanista-fenomenológica do trabalho: a construção de uma ação


diferenciada diante do sofrimento no e por causa do trabalho. Curitiba: Juruá, 2015.

MELO-SILVA, L. L.; SANTOS, M. A.; SALMON, C. P. Serviço-escola em psicologia: a


construção do saber prático. In: MELO-SILVA, L. L.; SANTOS, M. A.; SIMON, C. P.
Formação em psicologia – serviços-escola em debate. São Paulo: Vetor Editora, 2005.

MESQUITA, A. C.; CARVALHO, E. C. A escuta terapêutica como estratégia de intervenção


em saúde: uma revisão integrativa. Revista da Escola de Enfermagem USP, 2014.

PAPARELLI, R. B.; NOGUEIRA-MARTINS, M. C. F. Psicólogos em formação: vivências e


demandas em plantão psicológico. Psicol. cienc. prof. Brasília, v. 27, n. 1, p. 64-79, mar.
2007.
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932007000100006. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932007000100006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 19 mar. 2019.

SOUSA, D. Investigação científica em psicoterapia e prática psicoterapêutica: os dados


da investigação mais relevantes para os clínicos. Lisboa: Fim de Século, 2017.

VELASCO, K.; RIVAS, L. A. F.; GUAZINA, F. M. N. Acolhimento e escuta como prática de


trabalho do psicólogo no contexto hospitalar. Disciplinarum Scientia, 2012.

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Eixo - Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

AÇÃO CLÍNICA NO VIVER COTIDIANO: UM DIÁLOGO ENTRE


FORMAÇÃO E PRÁXIS

Giselle Oliveira Santos (giselleoliveiraps@gmail.com). Estudante de graduação – UPE


Gabriel da Silva (gs0292703@gmail.com). Estudante de graduação – UPE

Suely Emilia de Barros Santos (suely.emilia@upe.br). Orientadora, Profa. Dra. – UPE

Palavras-chave: ação clínica; extensão universitária; transposição; viver cotidiano.

INTRODUÇÃO

A extensão universitária vem se configurando como uma atividade acadêmica que


articula pesquisa e ensino de modo que lança um olhar para demandas de um contexto social
específico, e fomenta atividades acadêmicas na formação dos universitários, sendo assim um
caminho de mão dupla, já que contribui com a formação dos extensionistas, bem como se
inclina para acolher as demandas advindas dos fenômenos revelados nos contextos sociais.
Hunger et al. (2014, p. 337), nos ajuda a compreender a extensão ao dizer:

O discurso que se constrói sobre Extensão Universitária quer apontar para a


superação da dicotomia até então existente entre a Pesquisa e o Ensino. A Extensão
Universitária articularia o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e, portanto,
viabilizaria a relação transformadora entre Universidade e Sociedade.

Podemos compreender, então, que a extensão se mostra como um caminho de


intersecção entre academia e sociedade, possibilitando um trânsito entre esses dois espaços.
Assim, o projeto de extensão “Direito à Saúde: ressonâncias da transposição do Rio São
Francisco”, intitulado posteriormente como “transVERgente”, possibilitou a vivência de
estudantes e profissionais da área da Psicologia, que a partir dos pressupostos da
fenomenologia existencial, tem se inclinado para acolher o sofrimento humano, a partir das
experiências extensionistas vividas em trânsito por Sertânia/PE, sobre a ação clínica de
psicólogos em territórios por onde a transposição do rio São Francisco atravessou os modos
de viver cotidianamente de uma população rural.

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Barreto (2008, p. 7) afirma que a ação clínica inspirada nos pressupostos


fenomenológicos existenciais,

[...] rompe com o modo de contato construído numa concepção técnico/explicativa,


constituindo-se numa disponibilidade para acompanhar o outro (cliente) em seu
cuidar das suas possibilidades mais próprias, dispondo delas livremente e com
responsabilidade.

Sendo assim, a ação clínica dos profissionais e estudantes de Psicologia, no projeto de


extensão, aproxima-se de uma atitude serena, de aguardar aquilo que se mostra em seu
próprio movimento.
Nessa direção, pretendemos aqui abordar a experiência vivenciada em um projeto de
extensãorealizado pela Universidade de Pernambuco/UPE – Campus Garanhuns, em
articulação com o Campus Arcoverde e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/PE). Essa
extensão, nomeada de “transVERgente”, busca pensar intervenções que criem espaços de
cuidado para as pessoas afetadas pelas obras da transposição do rio São Francisco, na cidade
de Sertânia/PE, que vem sendo espaço de interesse para diversos estudos, como o de André
Monteiro, pesquisador da FIOCRUZ/PE, que após a realização de uma pesquisa, percebeu
que a transposição vem apresentando uma série de reverberações para a população onde
passam o canal, o que se faz presente nas narrativas dos moradores, presentes no
documentário “Invisíveis”, produzido pelo referido pesquisador (INVISÍVEIS, 2017). A obra
citada teve início em 2007 sob responsabilidade do Ministério da Integração Nacional, tendo
previsão de conclusão para o ano de 2012, abrangendo a área do Sertão e Agreste de estados
como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. No entanto, o cenário encontrado
atualmente é o de obras inacabadas e sem previsão de término (BRASIL, 2018).
Diante desse quadro, este trabalho tem como objetivo, refletir sobre como a extensão
universitária vem se tornando um espaço para pôr em andamento a formação de
universitários, bem como questionar e criar outros modos de intervir para escutar o sofrimento
do homem inserido num contexto social vulnerabilizado.

MÉTODOS

A equipe que vem desenvolvendo as atividades extensionistas em Sertânia/PE é


formada por estudantes de graduação de Psicologia (09),Direito (05),Medicina (02),
Residentes de Saúde Mental (09) e Saúde Coletiva (03), Mestranda em Saúde Coletiva (01),
Doutorando em Comunicação (01), e 04 professores/pesquisadores nas áreas de: Psicologia,
Direito, Enfermagem Sanitarista e Engenharia Sanitarista, em parceria com o STR/PE -
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sertânia, proporcionando assim um compartilhamento
de saberes, a fim de construir em coparticipação com a população rural, as intervenções
realizadas no território.
Esse trabalho utiliza-se do método qualitativo, trabalhando “[...] com o universo de
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço
mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2001, p. 22). Nessa direção, em andança pelo

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território das comunidades afetadas pelas obras da transposição do rio São Francisco,
utilizando-se da cartografia clínica, a extensão universitária permite vivenciar e refletir acerca
do viver cotidiano de uma população, articulando conhecimentos e experiências a partir da
inserção do extensionista no território, uma vez que a cartografia clínica “[...] cumpre uma
dupla função: detectar a paisagem, seus acidentes, suas mutações e, ao mesmo tempo, criar
vias de passagem através delas. Sua missão é criar língua para os movimentos, dando-lhes
condições de passagem e efetuação” (ANDRADE; MORATO; SCHMIDT, 2007, p. 198).
Ao lúmen da perspectiva fenomenológica existencial ao modo de Heidegger, este
trabalho é um relato de experiência, que lança mão da narrativa, inspirada nas ideias de
Walter Benjamin (1994), possibilitando o tecer de uma história, bem como o
compartilhamento de uma experiência acerca da vivência possibilitada pelo trânsito dos
extensionistas nas comunidades, constituindo-se enquanto “uma forma artesanal de
comunicação” (BENJAMIN, 1994, p. 205).
Tais narrativas foram registradas em diários de bordo, e, posteriormente foi realizada
uma leitura hermenêutica dos mesmos, visto que “um Diário é como um tecer de muitas
estórias interligadas. Estórias essas também tecidas por entre outras narrativas” (AUN, 2005,
p. 18), que sinalizam o desvelar da experiência no cotidiano da população.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O projeto de extensão “transVERgente” tem transitado por Sertânia/PE escutando a


população afetada pela obra da transposição do rio São Francisco. No testemunho dos
moradores que foram escutados pelos extensionistas, diversos fenômenos surgiram, tais como
a perda de casas, terras e animais. Vale citar ainda, que o direito à saúde da população
também foi violado, uma vez que, com a presença das obras do canal, os moradores foram
acometidos com novas doenças, tais como hipertensão, depressão e ansiedade, assim como os
dispositivos de saúde se fizeram escassos diante das demandas da população atingida.
Compreendemos, então, que essa população vive perdas materiais e imateriais/simbólicas, já
que nas narrativas foram apontadas não só as transformações no espaço físico, como também
no sentido dado ao viver, revelando assim o “[...] desenraizar do solo próprio, [...] onde nosso
mundo familiar e mais próximo se desfaz” (ARAÚJO; RIBEIRO, 2005, p. 2).
Diante de tal cenário, chegamos a seguinte questão: “Como o profissional de
Psicologia pode se inclinar num cenário de sofrimento causado por perdas materiais e
imateriais, como o de Sertânia/PE, causado pela transposição do Rio São Francisco?”.
Como já dito em nossa metodologia, o método para transitar pelos territórios foi o da
cartografia clínica. Morato (2009, p.92) assinala que o psicólogo quando parte de uma ação
cartográfica, consegue tecer “[...] ações clínicas pertinentes, contextualizadas e refletidas”.
Então, uma vez que se encontra inserido no cenário, transitando junto a população residente, o
cartógrafo se depara com a contação de uma história narrada a partir de pessoas que estão
atravessadas por situações de seu cotidiano, construindo com elas um sentido outro,
desenvolvendo um olhar reflexivo sobre esse contexto, visto que “[...] cartografar é dar voz,
aquela que parte da reflexividade de nosso olhar com muitos outros” (AUN; MORATO, 2009,
p. 123). É nessa direção que vemos a possibilidade do acontecer da ação clínica no viver
cotidiano, uma vez que ela se constitui “[...] no acompanhar o outro na tarefa de cuidar-se na

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e Fenomenologia

busca de apropriar-se dos modos de estar com outros e, assim, en-caminhar-se na sua
existência” (SANTOS, 2016, p.183).
A partir desse acompanhamento, os extensionistas escutaram ainda nas narrativas dos
moradores, queixas relacionadas ao processo de desapropriação de terras, uma vez que essa
foi uma das causas iniciais das problemáticas relacionadas à obra do canal principal da
transposição do rio São Francisco, pois ocasionou problemas em relação à impossibilidade de
produção e plantação, bem como o acesso a água para os moradores que já foram atingidos
pela obra. Além disso, os extensionistas puderam ouvir a partir dos moradores que ainda não
foram diretamente afetados pelas obras do ramal da transposição a crescente expectativa com
relação a essa série de perdas anteriormente citadas, pois existe o medo de que aconteça nas
comunidades próximas ao ramal o que aconteceu com os moradores afetados pelas obras do
canal principal. Ao ouvir esses testemunhos, compreendemos que “é na escuta dessas
narrativas de desenraizamento que o fazer clínico pode fomentar a abertura para o cuidado de
si, o cuidado com esse mundo a ser fundado, ou ainda, com essa ética com o próprio existir”
(HERÁCLIO, 2018, p. 106).
Destaca-se também em nossa experiência a relevância do trabalho em uma equipe
multi e interprofissional, o qual possibilitou o cuidado de lançar um olhar para o humano, para
além dos aspectos psicológicos. No entanto, para os autores desse trabalho, intervir
juntamente numa equipe multi e interprofissional é uma experiência nova. Santana (2013, p.
473) já assinala que:

[...] nas academias, não se privilegia de maneira apropriada a experiência


clínica em campos transdisciplinares como vetor importante de aprendizagem
e de formação, mesmo sendo referendada nos projetos pedagógicos do Curso,
em disciplinas de natureza prática, voltadas para esse fim.

Desse modo, a extensão nos possibilitou traçar diversas atividades relacionadas às


problemáticas emergentes nas narrativas, a partir das cartografias clínicas realizadas. Tais
atividades se voltaram não apenas a escuta psicológica, mas também a outros modos de
intervenção em saúde, como a auriculoterapia e o cineclube. Houve, ainda, a formação de
quatro comitês:Saúde, Cultura, Comunicação e Organização Social, e Direito e Cidadania,
contando com a participação de extensionistas e de moradores, com o intuito de discutir e
encaminhar ações direcionadas as demandas de cada comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência em Sertânia nos possibilitou diversas compreensões acerca da práxis e


formação profissional, revelando assim a extensão universitária como um espaço de pôr em
andamento uma prática crítica do fazer profissional. É nesse sentido que compreendemos
como relevante essa ação em que os extensionistasse lançam para além do espaço
universitário e, transitando por territórios, podemse inclinar em direção aos modos do viver
cotidiano de uma população inserida em determinado cenário social.

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e Fenomenologia

Importa ressaltar que diante do vivido em atividades extensionistas, o que tem se


revelado para nós é que para além de uma compreensão da extensão universitária como uma
oportunidade de pôr em ação aquilo que é discutido no espaço acadêmico, o
transVERgentetem se mostrado como uma possibilidade de transformações sociais e
questionamentos acerca da práxis do profissional inserido em diversos contextos.
Diante disso, tivemos a possibilidade de questionar nossa práxisprofissional, pensando
também, a inserção do psicólogo num contexto multi e interprofissional, de modo que essa
integração permita lançar um olhar para o sofrimento humano. Ressaltamos ainda que esse
trabalho nos possibilitou compreender que a ação clínica do Psicólogo frente a contextos de
vulnerabilidade social, solicita uma atitude cartográfica, no cuidado de pensar intervenções
contextualizadas, que partem da experiência vivida com outros. Desse modo, a extensão
universitária se mostra como possibilidade de experienciar no trânsito pelo território o que se
revela no cotidiano de um determinado cenário social articulado ao ensino acadêmico,
contribuindo para a formação profissional do discente.

REFERÊNCIAS

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instituição: etnografia, cartografia e genealogia. In: RODRIGUES, M. M. P.; MENANDRO,
P. R. M. (org.). Lógicas metodológicas: trajetos de pesquisa em psicologia. Vitória:
UFES/GM Gráfica Editora, 2007. p. 193-206.

ARAÚJO, R. F. S.; RIBEIRO, G. M. F. O fenômeno do falatório no pensamento de Martin


Heidegger. Existência e Arte. Rev. Eletrônica do Grupo PET - Cien. Humanas, Estética e
Artes. Ano I, n. I, 2005.

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instituição para adolescentes infratores. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

AUN, H. A.; MORATO, H. T. P. Atenção psicológica em instituição: plantão psicológico


como cartografia clínica. In: MORATO, H., T. P.; BARRETO, C. L.B. T.; NUNES, A. P.
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introdução. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009, p. 121-138.

BARRETO, C. L. T. Uma possível compreensão fenomenológica existencial da Clínica


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– Atenção Psicológica: Experiência, Intervenção e Pesquisa, 2008, São Paulo. Anais
eletrônicos… São Paulo: USP, 2008. Disponível em: http://www.lefeusp.com.br/#!anais-
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Encontro de TEMA
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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

BENJAMIM, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:


BENJAMIM, W. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p 197-221.

BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Projeto de Integração do Rio São Francisco.


Disponível em: http://www.mi.gov.br/web/projeto-sao-francisco/inicio. Acesso em: 27 mar.
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HERÁCLIO, M. A Ação Clínica e os processos de desapropriação: a narrativa enquanto


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HUNGER, D.; ROSSI, F.; PEREIRA, J. M.; NOZAKI, J. M. O Dilema extensão


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SANTANA, A. M. Prática Psicológica em saúde: acolhimento e zelo. In: BARRETO, C. L.


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MORATO, H. T. P. Prática de Plantão Psicológico em instituições: questionamentos e


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SANTOS, S. E. B. “Olha!...Arru(A)cão!?...” A Ação Clínica no Viver Cotidiano:


Conversação com a Fenomenologia Existencial. 222f. Tese (Doutorado) - Universidade
Católica de Pernambuco, Recife, 2016.

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Eixo Clínica Fenomenológica


Relato de Experiência

MULHERES EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE: PELO OLHAR DA


LOGOTERAPIA

Karla Maria Pereira dos Santos. E-mail: karlasantos30@hotmail.com.


Graduanda em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF

Janaina Vieira Mendonça. E-mail: janainavmendonca@gmail.com.


Graduanda em Psicologia- UNIVASF

Maria Helena Maia e Sousa. E-mail: helenamaia22@hotmail.com.


Graduanda em Psicologia- UNIVASF

Palavras-chave: logoterapia; liberdade; sentido da vida.

INTRODUÇÃO

A presente experiência relatada neste documento foi realizada a partir de uma atividade
da disciplina Psicologia Fenomenológica Existencial II, do curso de bacharelado em
psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco, Univasf, que buscou junto a
mulheres em situação de cárcere, da Delegacia Prisional de Petrolina/PE, conhecer a
perspectiva de vida e futuro para essas pessoas, fundamentando-se na Logoterapia de Viktor
Frankl - visto que o mesmo, enquanto prisioneiro de guerra, concluiu que somente aqueles
que mantinham alguma esperança para o futuro e encontravam um sentido para a vida é que
conseguiam sobreviver, diante de tantas circunstâncias adversas.
Ao longo de seus relatos no livro Em Busca do Sentido, Frankl (2018) mostra que por
mais grave que seja uma doença, física ou mental, o ser humano é dotado de uma dimensão
que jamais é atingida: a “noética”, ou espiritual. É bom esclarecer que este espiritual nada tem
a ver com determinada religião ou credo. Assim, para a Logoterapia o homem é uma unidade
composta pelo “amálgama biopsicosocionoético”, e é, exatamente, o “noético” (mente em
grego) que Frankl procura alcançar.
Nesta teoria, Humanista-existencial, destacam-se os seguintes pressupostos básicos:
crença na liberdade humana de uma instância que jamais poderá ser contaminada por qualquer
enfermidade, por mais grave que ela seja; toda e qualquer pessoa é chamada à vida para ser
responsável e, muito mais, para dar a ela o melhor de si, e não apenas para tirar dela qualquer
coisa que violente a sua natureza. Tendo sido, portanto, outro objetivo desta atividade
proporcionar as mulheres encarceradas, o direito de serem mulheres, sem preconceito,
discriminação ou rótulos; buscando compreender as suas experiências, perspectivas,
sentimentos e anseios, sem focar no que supostamente as levou a tal situação - um canal,
mesmo que mínimo, para que elas fossem as personagens mais importantes, e não suas ações
passadas.

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e Fenomenologia

MÉTODOS

Estudo de campo e pesquisa bibliográfica, o grupo estabeleceu um contato, um


encontro, por meio do argumento de entrevistas diretas, com seis colaboradoras da delegacia
prisional feminina de Petrolina-PE. Na ocasião, foram feitas três perguntas disparadora
comum a todas: “Como você vivencia essa experiência? e, “Você tem expectativas para o
futuro?” “Quais são?” As respostas eram livres sem limitação de tempo ou condicionantes.
Elas estavam cientes e permitiram que fossem gravadas para análise posterior da equipe.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Segundo relatos das colaboradoras, duas razões transversais estiveram presentes em


todas as narrativas, que as ajudaram a superar o período de cárcere: a família e a religião. A
primeira como sentido, motivação para sair daquela situação de privação de liberdade,
saudade e ausência, um motivo para não repetir os erros que as ausentaram do lar; a segunda
como base e instrumento de superação para ajudar na caminhada. A partir das exposições foi
possível identificar tratar-se de mulheres com histórias de vida similares, que todo momento
demonstraram consciência de seus erros e suas responsabilidades, principalmente quando
repetiam que neste novo recomeço agiriam diferente para não perderem a liberdade, em
nenhum momento da entrevista se colocaram como vítimas ou transpareceram revolta, o que
remota as experiências clínicas de Frankl (2018), quando afirmou em a importância da
autonomia da dimensão espiritual do homem, como ser-livre conscientemente-responsável.
Para ele, nada é mais importante do que a busca pelo sentido da vida. Dizer que esta é
um fim-em-si-mesma, equivale a negar-lhe qualquer sentido convertendo o ente humano em
vítima indefesa dos fatalismos do destino. Frankl (2018) ressalta ainda que se deixar levar por
atitude como esta, não passa de um estratagema pseudocientífico; sendo uma cômoda
cobertura, que visa colocar o homem sob o império de seus impulsos instintivos, ou torná-lo
joguete de disposições genéticas irremediáveis, ou ainda, institucionalizar falhas de conduta e
desvios característicos, fruto dos defeitos educacionais de seu ambiente familiar e escolar, ou
gerados pela pressão social do meio em que vive, fatores contra os quais seria inútil rebelar-
se.
Ao final do contato com as seis colaboradoras foi possível observar que em suas falas
demonstraram consciência clara de suas responsabilidades, sendo estas, base para suas futuras
decisões, fazendo uso da liberdade de escolha que é inato ao ser humano. Principalmente,
porque estas mulheres mesmo tendo experenciado limitações impostas pela privação de
liberdade e ausência de familiares e pessoas queridas, ainda assim adotaram diante desta
infeliz situação uma atitude corajosa perante a dor e dignidade ante um destino desafiador
perante uma sociedade machista e preconceituosa tão pobre em oportunidades de recomeço
para quem vem do cárcere.
O que nos permite compreender o valioso da vida é a apreensão de toda a riqueza do
reino dos valores. Nem todos os valores se pautam em uma realização mediante um
ato criador. Um homem simples que cumpre as tarefas concretas impostas pela
família e a profissão é, apesar de sua vida limitada, é mais valorizado do que, por
exemplo, um grande estadista que, com uma caneta, dispõe da vida de milhares de
pessoas, mas o faz tomando decisões inadequadas para um homem público. Assim,

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muitos clientes se queixam de não ter na sociedade um papel de destaque por


exercerem, a seu ver, uma atividade de valor inferior, sem margem à criatividade.
(FRANKL, 2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a conclusão da atividade acadêmica que deu origem a este relato foi possível uma
reflexão acerca do significado do encarceramento, bem como os mecanismos utilizados pelas
mulheres para o enfrentamento de suas novas realidades, visto que mesmo o ambiente
carcerário sendo caracterizado como um lugar inóspito, uma vez que reforça características
como opressão, desconfiança, medo, castigos... Gerando assim, um déficit emocional
significativo elas não demonstraram falta de vontade e força para superar suas limitações
daquele momento e retomar seus sonhos.
Conhecer as experiências de sofrimento, enfrentamento e superação destas mulheres
em cárcere, tornou visível a necessidade que o ser humano tem de se relacionar com os outros
e com o mundo (ser-com-os-outros), assim como, a presentificação do vazio de ordem
emocional. Suas falas mostram o desenvolvimento de mecanismos de enfrentamento que as
ajuda a uma adaptação, a um desenvolvimento de resiliência baseado em um Deus ou no amor
aos filhos, a projetos futuros e até mesmo na liberdade caracterizando deste modo, um suporte
emocional e motivacional.
Essas mulheres carregam um peso social evidenciado pela exclusão do exercício de
cidadania onde suas ações nas mais diversas formas poderão ser interpretadas como
insubordinação resultando em castigo. Carregam ainda vestígios das suas liberdades (que aqui
me refiro à definição em Sartre onde liberdade são escolhas e geradora de angustias) na fala,
no olhar, na expressão corporal... assim como, fica muito claro que a liberdade não as define,
ao contrário, a liberdade passa a ser um o ponto de partida para um leque de possibilidades
para um novo recomeço. A essa capacidade de assumir as consequências de suas escolhas sem
terceirizações, de ressignificação, de ir à luta, de mudar a realidade atual, é o que chamo de
superação.
Por fim, este trabalho dentro de um contexto existencialista foi de suma importância
por proporcionar aprendizagem e reflexão, principalmente no que tange ao preconceito social,
no qual, essas mulheres são penalizadas por romper com um código social e pela
extraordinária capacidade que o ser humano tem de superação mediante as adversidades.

REFERÊNCIA

FRANKL, V. E. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2018.

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e Fenomenologia

Eixo - Fenomenologia em Contextos Sociais


Relato de Experiência

REFLEXÕES SOBRE A IMERSÃO DA PSICOLOGIA EM UMA


COMUNIDADE TRADICIONAL: COSTURANDO SENTIDOS

Sonha Maria Coelho de Aquino. E-mail: sonha.mca@gmail.com. Psicóloga-Residente/


Saúde Mental Coletiva - Escola de Saúde Pública do Ceará (RIS-ESP/CE)

Erika Hofling Epiphanio. E-mail: erikapsicoesporte@yahoo.com.br.


Professora Adjunta- UNIVASF; orientadora.

Palavras-Chave: psicologia; fenomenologia; comunidades,

INTRODUÇÃO

Dentre o conjunto de grupos reconhecidos como povos e comunidades tradicionais


(PCTs), nosso trabalho volta-se especificamente para a experiência em uma comunidade de
fundo de pasto. Os fundos de pasto são constituídos como territórios tradicionais que se
configuram: pelos modos de posse e uso comum de uma área de terra para criação de animais,
especialmente caprinos e ovinos; pela agricultura de subsistência realizada em roças cercadas
e individuais; por formar uma comunidade, geralmente de origem familiar comum
(MARQUES, 2016). Próprio da cultura e formação social sertaneja, os fundos de pasto são
hoje específicos da Bahia.
Olhando para a realidade dos povos e comunidades tradicionais, estimativas realizadas
apontam que seus povos chegam a quase 5 milhões de famílias, totalizando 25 milhões de
pessoas que ocupam ¼ do território nacional (ALMEIDA, 2008). Embora uma parcela
significativa da sociedade, boa parte dos PCTs encontram-se invisibilizados na sociedade,
intimidados pelos grandes grupos econômicos e fazendeiros e vitimados por processos de
coerções, preconceitos e exclusão social. A invisibilidade de sua existência e resistência
constitui-se alicerçada no silenciamento de sua história e modos de vida, a cultura do silêncio,
conceituada por Freire (2007) como: a negação às massas do direito a fala, negando-se a
palavra e com ela a própria condição humana e seu direito de ser.
Voltando-se para o cenário da psicologia nesses contextos, há ainda um
desconhecimento ou invisibilidade das possibilidades de atuação e pesquisa do profissional de
psicologia em contextos populares, como com os povos e comunidades tradicionais
recorrentes de processo histórico da própria psicologia, porém esta vem cada vez mais sendo
convocada a ocupar esses espaços a partir de um posicionamento crítico, considerando o
contexto histórico e socioeconômico que incide sobre as subjetividades dos povos (ROCHA;
SANTOS, 2015).
Contudo, como traz Amatuzzi (2008) não se trata de se inserir nesses contextos para
pensar uma psicologia para esses povos das camadas populares, é necessário pensar uma

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psicologia com esses povos, de forma participativa, considerando a realidade que vivenciam.
Nessa mesma perspectiva, Martín-Baró (1996) propôs uma psicologia comprometida com
seus povos no sentido de intervir nos seus processos subjetivos, a partir de um quefazer
profissional voltado para a conscientização dos povos, ou seja, que promova o conhecimento
crítico sobre si e sua realidade, apontando, pois, o não acesso desse conhecimento crítico do
contexto e de si como causas que colaboram para sustentação das opressões que sofrem.
Assim, a realização desse trabalho fundamenta-se na busca por contribuir para
ampliação dos trabalhos já realizados em contextos que envolvam os PCTs, problematizando
a partir de uma experiência prática, sobre as possibilidades e a relevância de atuação da
psicologia dentro desses contextos. Esse estudo é parte do Trabalho de Conclusão de Curso da
autora, intitulado “Organização popular e subjetividade: costurando sentidos com a juventude
de uma comunidade de Fundo de Pasto”. Aqui o foco e objetivo é refletir sobre o processo de
imersão no campo de prática/pesquisa, questionando sobre o modo de adentrar nessas
comunidades.

MÉTODOS

A construção metodológica desse trabalho resulta da busca por realizar uma


experiência popular de pesquisa fenomenológica em psicologia, conforme convocação de
Amatuzzi (2008). Assim, esse estudo delineia-se como um relato de experiência, mas também
como relato de um processo de investigação.
A experiência foi vivenciada em uma comunidade de Fundo de Pasto do município de
Casa Nova-BA, especialmente na participação das reuniões do grupo de jovens. O relato
refere-se ao período de um ano, entre março de 2017 a fevereiro de 2018.
O acesso às experiências vividas ocorreu a partir da imersão na própria realidade em
pesquisa por meio da observação participante, sendo esta uma imersão onde o pesquisador
interage com os participantes e o contexto em que vivem, atuando como parte desse contexto
(FERNANDES; MOREIRA, 2013). O registro das observações se deu por meio do diário de
campo, buscando colher elementos gerais sobre a experiência da própria experiência da
pesquisadora em campo.
A análise da experiência seguiu o caminho fenomenológico indicado por Amatuzzi
(1996): a) sintonizar com o todo do vivido; b) encontrar os elementos experienciais; e c)
realizar uma síntese da experiência e articulação com a teoria, apresentada sobre a forma da
narrativa descritiva.
O trabalho apresentado seguiu os dispostos da Resolução 510/16 do Conselho
Nacional de Saúde do Ministério da Saúde, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética e
Deontologia em Estudos e Pesquisa da UNIVASF, sob CAEE Nº 78693617.0.0000.5196.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A imersão no campo se deu por meio do estágio profissionalizante em psicologia


dentro da Comissão de Pastoral da Terra (CPT). A instituição, presente hoje em quase todos
os estados do país, realiza acompanhamento de comunidades do campo, da floresta e das
águas. Volta-se para um trabalho educativo, de formação integral e continuada, como também

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de organização das comunidades de forma que elas conquistem direitos (território, água,
produção sustentável) e assim permaneçam em seus territórios.
A comunidade na qual foi realizada a prática/pesquisa existe há mais de 100 anos. Faz
parte de um Fundo de Pasto que está dividido em quatro comunidades e conta com cerca de
336 famílias (CPT, 2016). As famílias conseguem viver da própria terra, tendo como base da
economia a agricultura de subsistência, criação de animais (ovinos, caprinos e bovinos), pesca
e apicultura. A história da comunidade é marcada por muitos conflitos de terra e violência
agrária, sendo que em 2009, uma das lideranças camponesas foi assassinada em decorrência
de tais conflitos. Um território de constantes grilagens, que se iniciaram no final da década de
70, com a construção da barragem de Sobradinho. Fatos que compõe as estatísticas da
violência no campo (CPT, 2009, 2016).
As ameaças aos povos tradicionais perpassam também essa comunidade, apontando
para a necessidade de uma prática psicológica que possa atuar sobre os processos subjetivos
que alicerçam e propiciam a perpetuação das opressões e que contribua para a construção de
uma sociedade em que o bem individual de poucos não se faça sobre uma mal de uma
maioria, que para os privilégios de alguns outros tantos não sejam subjugados a condições de
vida desfavorecidas, que os interesses de alguns não determine a desumanização de todos
(MARTÍN-BARÓ, 1996).
Aos poucos foi sendo compreendido que as ameaças ao território não significavam
apenas um conflito de interesses materiais, mas também ameaças a um modo de vida, um
modo de ser no mundo que não cabe no modo-de-ser-de-trabalho da sociedade em que
vivemos. Enquanto que o modo-de-ser-trabalho estabelece uma relação utilitarista das coisas,
de domínio e servidão a interesses próprios, o modo-de-ser-cuidado promove a atitude
fundamental de valoração e conexão com o todo pelo sentido inerente às coisas, promovendo
a alteridade, reciprocidade e complementariedade (BOFF, 2011).
Nessa perspectiva, o profissional de psicologia uma vez que atua sobre as questões
subjetivas, tem a potência de contribuir para a constituição de uma identidade pessoal e
coletiva que atenda às necessidades e anseios mais autênticos dos povos (MARTÍN-BARÓ,
1996).
Quanto aos encontros do grupo de jovens, estes aconteceram mensalmente a partir de
temáticas e atividades indicadas como interesse dos próprios participantes. Foram realizados
na sede da Associação de Pequenos Produtores. A atividade fez parte das atividades de
estágio da pesquisadora dentro da CPT, inclusive na função de facilitadora dos espaços.
As primeiras imersões foram acompanhadas de frustações diante dos novos desafios: “E
agora, Maria? Preparei-me para atuar com jovens. Chego lá, tem crianças, jovens, adultos e
idosos” (Diário de campo). Percebe-se que o enrijecimento técnico levou a paralisação diante
da constituição de um território aberto. A imersão inicial foi de se encontrar ao se perder das
seguranças e manuais. Nesse sentido, Mendes, Sacardo e Pezzato (2016) apontam sobre as
dificuldades e possibilidades de erro na experiência, quando não nos dispomos à abertura ao
novo, ao inesperado, imprevisível e incontrolável.
Foi necessário também reconhecer as singularidades do contexto. Ouvir antes de
pronunciar. Ver antes de agir. Sentir antes de envolver-se. A fala a seguir exemplifica o
reconhecimento dessa necessidade: “Iniciei errando. Levando tapas na cara. Achando que
por ser camponesa nossas realidades eram as mesmas. Aí vou lá e no meio de uma dinâmica,

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para exemplificar, falei de Power Rangers para jovens que nunca haviam assistido ao
desenho” (Diário de campo). Assim, compreende-se que a convocação primeira foi a do
ouvir. Frente a isso, Amatuzzi (1990) traz que o ato de ouvir mais que observar, refere-se a
estar em relação no aqui, a se conectar ao outro em uma dinâmica relacional de gestação do
sentido.
Para compreensão dos sentidos era necessário acompanhar como o movimento da
juventude se dava. Contudo, percebeu-se que para acessá-los era necessário despojar-se e
mais que observar seus movimentos, movimentar-se com eles, como exemplifica o
depoimento abaixo:

Enquanto uns jogavam futebol, outros estavam a ensinar e/ou aprender crochê.
Afinal, eles quem decidem o que querem para os encontros. E eu estava ali enquanto
estagiária de psicologia, mas o que aquilo tinha a ver com o fazer psicológico?
Como deveria ser minha atuação naquele dia? Na verdade, essas perguntas me
importunavam a todo o momento nesse território. Desisti de ficar pensando e segui a
tal sensibilidade, fui fazer o que o coração convocava, tirei as sandálias e fui jogar
futebol com eles. O resultado, vários calos nos pés devido a terra quente e as pedras.
Fiquei pesando porque não havia levado uma chuteira, mas dei-me conta que
precisava ter tido a experiência com eles como eles, pisando descalço na terra. O
peso antes sentido começava a dar lugar a integração. Integração entre os dois
grupos de jovens. Integração entre eu e eles. (Diário de campo)

Percebe-se que nesse contexto a via de acesso não foi a técnica, mas o encontro. A
integração sentida é resultado desse encontro entre o eu pessoa, o eu psicóloga e o eu
pesquisadora. Mendes et al. (2016) trazem o encontro como uma via construída de afetos que
permite expandir a potência do agir. Amatuzzi (2008, p.135) também reforça que até mesmo o
psicólogo em sua prática profissional “se não for pessoa, antes de qualquer coisa, nada de
verdadeiro e profundo lhe ocorrerá”. E foi a partir desse encontro que o desafio da imersão
em um campo desconhecido começou a se transformar em possibilidades significativas de
inter-relações com o outro.
Frente a isso, compreende-se que o psicólogo em sua prática deve superar as
indagações meramente técnicas do onde ou como se está realizando algo e voltar-se para as
preocupações em torno do a partir de quem e em benefício de quem ele está atuando, de
forma a refletir quais as consequências históricas de sua atuação (MARTÍN-BARÓ, 1996).
Amatuzzi (2008, p. 137) considera que “a única saída para mundo enlouquecido é
envolver-nos em experiências comunitárias”. O autor ainda traz as experiências coletivas
como potenciais de transformação de um mundo envolto em individualismos que constringem
a humanidade (AMATUZZI, 2008). Sobre isso, a comunidade em imersão tem muito a
ensinar, e a psicologia e o mundo, muito a aprender. A realização do sentido potencial já
acontece no movimento vivo e dinâmico do jeito de ser da comunidade. É, contudo,
necessário, o reconhecimento e fortalecimento desses potenciais pelos seus contextos, pelos
que estão a sua volta, como também por eles mesmos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aponta-se o movimento marcado pelo desafio, que podemos dizer, cumpriu seu
sentido, uma vez que a experiência foi significativa ao permitir o encontro entre estagiária e
comunidade. E foi no encontro com os modos de vida da juventude daquela comunidade que
se transformou os modos de olhar, pensar e atuar da estagiária.
Nesse processo, cabem as reflexões para o lugar de quem se dispunha a adentrar nessa
realidade. Visto que os povos e comunidades tradicionais enfrentam atualmente uma das
piores investidas do capital, uma perpetuação das práticas colonizadoras de extermínio dos
seus modos de vida e identidade, cabe também a psicologia descortinar e refletir sobre tais
fenômenos na sociedade, através de uma atuação que problematize e questione a realidade,
tornando os mecanismos de opressão visíveis à sociedade.
Voltando-se para, talvez, a maior provocação desse trabalho, fica a atualização da
convocação de Martín-Baró (1996), de pensar e construir uma psicologia na insubordinação
da ordem estabelecida, no combate das práticas opressivas que perpassam a construção sócio-
histórica do povo latino-americano, questionando as desigualdades e injustiças sociais que
violentam as subjetividades. Assim, colocar o saber da psicologia a serviço dos povos, uma
psicologia latino-americana a serviço dos povos latino-americanos; uma psicologia brasileira
a serviço do povo brasileiro, uma psicologia nordestina a serviço do povo nordestino e uma
psicologia sertaneja a serviço do povo sertanejo.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA A. W. B. Terras de Quilombos, Terras Indígenas, “Babaçuais Livres”,


“Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2.
ed. Manaus: PPGSCA-UFAM, 2008.

AMATUZZI, M. M. O que é ouvir. Estudos de psicologia, v. 7, n. 2, p. 86-97, 1990.

AMATUZZI, M. M. Apontamentos acerca da pesquisa fenomenológica. Estudos de


psicologia, v. 13, n. 1, p. 5-10, 1996.

AMATUZZI, M. M. Por uma psicologia humana. 2. ed. Campinas: Editora Alínea, 2008.

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano- compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes,
2011.

COMISSÃO DE PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo – Brasil 2009. Goiânia:


CPT, 2009.

COMISSÃO DE PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo – Brasil 2016. Goiânia:


CPT, 2016.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R. Considerações metodológicas sobre as


possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na Saúde Coletiva. Physis-
Revista de Saúde Coletiva, v. 23, n. 2. p. 511-529, 2013.

FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. 12. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2007.

MARQUES, L. S. As comunidades de fundo de pasto e o processo de formação de terras de


uso comum no semiárido brasileiro. Sociedade & Natureza, v 28, n.3, 2016.

MARTÍN-BARÓ, I. O papel do psicólogo. Estudos de psicologia, v. 2, n.1, p.7-27, 1996.

MENDES, R.; PEZZATO, L. M.; SACARDO, D. P. Pesquisa-intervenção em promoção da


saúde: desafios metodológicos de pesquisar “com”. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p.
1737-1746, 2016.

ROCHA, R. V. S.; SANTOS, L. de A. Psicologia e promoção da saúde: fortalecimento dos


direitos humanos em comunidades tradicionais. Revista Brasileira de Psicologia, v.2 (nº
especial), 2015.

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Eixo - Fenomenologia em Contextos Sociais


Relato de Experiência

SERENIDADE NO ESTAR-COM: UM RELATO DE UM ACOMPANHAMENTO


PSICOSSOCIAL NO CRAS

Misael Carlos do Nascimento Neto – e-mail: misaelcarlos13@hotmail.com; Cargo:


Psicólogo do Centro de Referência Álvaro Nunes – CRAS em Casa Nova – BA,
Instituição: Mestrando em Psicologia / Práticas e Inovação em Saúde Mental pela
Universidade de Pernambuco – UPE, Garanhuns – PE.

Palavras-chave: cras; serenidade; saúde mental.

INTRODUÇÃO

Este relato versa sobre a prática do autor enquanto técnico social psicólogo do
Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) Álvaro Nunes no município de Casa
Nova – BA. Inspirado na Fenomenologia Existencial Heideggeriana, foi possível refletir sobre
um modo outro de estar-com aquele que sofre, acolhendo seu pathos, buscando uma postura
de serenidade frente a técnica, visando o cuidado emancipador.
O CRAS, conquanto porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), comporta dentro de si uma grande potencialidade: promover saúde mental por meio
do fortalecimento de vínculos. Pensar isso, por si só, já é inovador. A técnica traz consigo a
fragmentação do cuidado e isso ganha espaço nas políticas públicas, ao fragmentar o sujeito a
partir daquilo que cada espaço pode ofertar. Mesmo entendendo a pertinência disso, é preciso
estar atento a saúde mental ou o próprio cuidado à mesma não se restringe a um CAPS, por
exemplo. Mas o CRAS pode e deve ser aproveitado conquanto potência de cuidado, no
sentido de que, ao fortalecer os vínculos dentro de uma família ou entre famílias –
comunidade -, obrigatoriamente estaremos intervindo sobre a saúde mental dos usuários.

MÉTODO

O caso a seguir versa sobre um atendimento psicossocial realizado em março de 2018,


no qual foi utilizado um desenho metodológico da etnografia do Geertz (2008), entretanto,
apesar de utilizar um método antropológico, a proposta é apresentar uma possibilidade de
atuação psicológica pautada na compreensão do outro, abertura ao mesmo e disponibilidade
afetiva.

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RESULTADOS E DISCUSSÃO

A seguir, seguem o relato etnográfico do acompanhamento em questão:

Era uma terça feira comum, já havia feito uma visita ao Serviço de Convivência e Fortalecimento de
Vínculos (SCFV) e já havia também realizado o grupo de orientação a pais e cuidadores sobre criação
de filhos, eu estava um pouco agoniado, talvez pelo clima de mormaço do calor pós chuva ou porque
algumas crianças foram para o grupo e “atrapalharam” minha fala, roubando a atenção.
Tivemos uma reunião para discutir as dificuldades da implementação do SCFV e suas questões
burocráticas advindas. Ofertei algumas orientações pedagógicas a uma orientadora social e assim,
quase findei a manhã, mas tudo estava apenas começando! Recordei-me que uma amiga havia pedido
para marcar um atendimento para um parente dela. Os familiares chegaram, mas ela não havia
chegado ainda.
Logo de início, recebo o esposo e a irmã da usuária[1]. Eles me explicaram o caso: “LFS, 28 anos,
teve depressão pós-parto a 4 anos. Na ocasião, estava gestante de gêmeos, eles nasceram prematuros e
passaram dois meses na incubadora. Após 22 dias ela foi afastada do hospital devido ao alto grau
debilitante da depressão. Foi encaminhada para o sanatório para medicar-se, mas não ficou internada.
Após esse período, voltou para casa e passou por um tratamento com remédios naturais e conseguiu
retomar sua rotina, terminando inclusive uma faculdade.
Recentemente, ficou dois meses sem menstruar, mas assim que tomou os medicamentos naturais, o
ciclo se regularizou. Quando atrasou novamente, o marido até brincou para ter cuidado com o bebê, o
que prontamente ocasionou num acesso de agressividade, ressaltando que não queria ter outra
gestação.
Ela sempre cuidou bem dos dois filhos, mas não quer ter outro. A família foi até o médico fazer a
ultrassonografia e percebeu que o feto tinha entre oito a doze semanas.
Questiono-me: Seria um feto ou um bebê? O que ou ainda, quem determina? Para quem?
A família presente ressalta que a fala dela é bem clara: ‘Eu não quero ter esse bebê!’, ‘Se for para ter,
eu vou me matar antes dos nove meses’ e ainda, ‘vocês vão ter que escolher, entre eu ou o bebê’.
Escutei o marido e a irmã, provocando-os sobre o que eles pensavam sobre as possibilidades,
esclarecendo que legalmente, o aborto é crime. A irmã negou essa hipótese, o choro veio à face.
Demonstrava não querer opinar, enquanto o marido estava firme – ‘vamos fazer o que é melhor para
ela’.
Convidei o pai da usuária para a sala e questionei o que ele pensava, o mesmo só reafirmou que faria o
que era melhor para a filha.
Nesse momento, me senti deslocado. O que fazer? Como intervir? E quando a graduação não ensina?
A quem recorrer? Supervisão? Estudo pessoal? CRP? Grupos de psicologia?
Antes de escutar a usuária propriamente dita, convidei a assistente social para partilhar dessa
experiência, até porque, o modo de atenção dentro da assistência é de ordem psicossocial, não apenas
psicológica. Atualizei o caso, brevemente e retomamos a sala para dar continuidade ao atendimento.
Convidamos a usuária para a sala e a acolhemos. Ela sentou-se, abaixou a cabeça e continuou a chorar.
Esclarecemos que ela poderia ficar a vontade, que não seria julgada por nós e que poderia falar tudo o
que queria. Perguntei: “Como você está?” “Não estou bem” respondeu ela. “Eu sou muito burra,
idiota, burra, deixei de tomar a injeção e agora olha isso” comentou.
A Assistente Social ainda tentou intervir no sentido de aceitação do bebê, mas ela disse que não queria
ter o bebê, já teve os dois, não dormia a noite, mas ainda conseguiu criar os dois. Ela estava sem beber
e comer desde ontem, possivelmente na tentativa de provocar um aborto. Ressalta que desde que

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engravidou, perdeu o desejo de comer e beber, não sente prazer na vida. Questionei se ela já havia
pensado em fazer algo, ela não entendeu o sentido da pergunta, quando questionei mais diretamente se
ela pensava em fazer algo com a vida dela. Ela disse que já pensou algumas vezes. Perguntei como e a
mesma disse que quando estava vindo de moto para outra cidade para fazer o exame, ultrassonografia,
pensou em pular da moto.
O marido já havia relatado que encontrou-a esmurrando a própria barriga. Ele temeu não apenas pela
morte dela, mas se chegar a fazer algo com as crianças.
Trabalhamos (ou pelo menos tentamos) as duas possibilidades: prolongamento ou interrupção da
gravidez. Ela sustenta que não quer levar a gestação a diante.
Fico a pensar o quanto isso vem ao encontro dos meus valores pessoais (pontos de tensão entre a psicologia e a
perspectiva bíblica).
Qual a minha postura, enfim? Amoral? A-religiosa? Leiga? Neutra, na mediada do possível! Recomendamos a
família que apoiem a usuária em qualquer decisão tomada.
O marido da usuária só não quer que os remédios abortivos não cumpram o que se propõem e gerem sequelas no
bebê (ou feto); ou seja, se for para abortar, que saia tudo.
Refletimos na presença da família sobre todos os riscos:
I. Continuar com a gestação:
- Ela não aceitar ao filho.
- Ela se suicidar e/ou ferir os filhos por manter a gestação.
II. Interromper a gestação:
- A culpabilização por parte da família;
- A culpa por tê-lo feito.
O marido não está bem. Chora e diz que não deseja isso para ninguém. Ele quer o bem-estar da esposa, mas não
sabe se conseguirá se perdoar por matar uma criança. Ainda pondera se seria uma espécie de escolha entre a vida
da esposa e a vida da criança.
Como eu estava frente a aquela escuta? Estava profundamente afetado (sim, o campo me afetou profundamente,
senti-me pesado o dia todo), a experiência é de ter ouvido o próprio sofrimento, olhado para o mesmo e acolhido
suas lágrimas.
A Assistente Social sugeriu a ida ao hospital com vistas tomar um soro, sugerimos a família para ver se ela
topava ir, ela aceitou. A família já estava disponível para levá-la. Me ocorreu então, que oportunidade ímpar
havia me surgido (acompanhar esse itinerário; quando chegará outra ocasião dessa? Enfim, eu fui).
O carro da secretaria estava ocupado, assim, fui com o da própria família. O silêncio e os não-ditos tomaram o
percurso. Um ou outro comentário sobre uma escola, mas nada além.
Chegamos ao hospital. Acompanhei a família como se fosse parte dela (Exercício etnográfico?
Responsabilização pelo cuidado?), me apresentei na recepção junto com a irmã da usuária e após preenchida a
ficha, fomos encaminhados para o médico para depois tomar o soro (Julguei não ser necessário entrar em
detalhes com a recepcionista, disse apenas que a usuária estava grávida e estava sem se alimentar desde ontem,
por isso, o soro).
Entramos nós três (eu, a usuária e a irmã dela) na sala do médico. Vesti-me de anonimato, aproveitando o fato do
médico não me conhecer ainda. A usuária sentou-se frente ao médico, e logo o médico indagou: “o que houve?”
ela chorando, respondeu: “Eu estou grávida, mas eu não quero ter esse bebê”; choro e lágrimas envolviam esse
discurso. O médico pediu que se acalmasse, que isso não era um problema, que ela deveria pensar que ali era
uma vida que estava sendo gerada e que a mesma precisava ser forte. Quando dizia que não queria continuar com
a gestação, o médico recrutava: você não pode ser egoísta, tem que pensar no coletivo. Imagine se você fosse
esse bebê, você não gostaria de nascer?
Enquanto isso, eu sustentava o silêncio, não poderia interferir no fenômeno, aguentei a vontade de falar até o
momento coerente / pertinente.
O médico disse que ali não era local para atendê-la, que não iria passar nenhum medicamento, pois ela estava
grávida e aborto é crime, a única coisa que poderia fazer era encaminhar para um psicólogo.
Preenchido o encaminhamento para o psicólogo, ele já ia encerrando o atendimento, quando me apresentei
enquanto psicólogo, ele riu e disse: mesmo sem precisar, tome.

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Expliquei que ela estava sem se alimentar desde ontem e por isso, a necessidade do soro. O médico compreendeu
e fez a solicitação de procedimento. Assim que elas saíram, expliquei o caso ao médico e então ele me disse que
ali não tinha estrutura para recebê-la, talvez um sanatório, quem sabe. Agradeci, me apresentei novamente e fui
para a sala de medicações, com o encaminhamento médico para o psicólogo. Enquanto ela estava tomando o
soro, uma conhecida da família achegou-se e começou a discursar, não deu para ouvir a conversa, só percebia
que o choro cada vez mais se intensificava. Recomendei a família que na medida do possível evitassem
conversas que gerem mais culpa. Liguei para a coordenadora do CAPS, comentando brevemente do caso.
Prontamente, ela marcou um atendimento psiquiátrico para a mesma semana. Vou me esforçar para estar lá!.
(Diário de Campo, 13 de Março de 2018).

Frente às afetações oriundas desse caso, gostaria de propor algumas questões: Qual seria
o local então, para atencionar a pessoa em sofrimento? Quais as reverberações de um
acolhimento em saúde mental? Quando um transtorno mental põe em risco a vida da mãe, é
permitido o abortamento? Como está a questão do abortamento e a questão da não
maternidade? Como deve-se atencionar aquela que sofre tomando por base a postura
fenomenológica? Haveria espaço para a serenidade aqui?
O discurso do médico no caso em questão aponta para uma modalidade de cuidado em
saúde mental pautada ainda no modelo asilar, centrado na instituição manicomial, denotando
que o paciente ou usuário em sofrimento mental não tem lugar num hospital não-psiquiátrico.
Certamente essa não é uma compreensão de cuidado isolada e restrita apenas a um único
profissional, mas denuncia toda uma cultura permeada pelo modelo biomédico, tomando por
referência a patologização da loucura e a tentativa de medicalizá-la, ainda que seja através de
paredes e muros manicomiais.
É negado à pessoa que possui um adoecimento mental um lugar a mesma, de modo que,
se uma usuária vai até um hospital tomar um soro, ela é encaminhada, muitas vezes sem ser
escutada, dado que a mesma é “paciente de caps” (AMARANTE, 2007). Assim, cria-se um
estigma a partir de uma interpretação diagnóstica, quantas vezes baseando-se apenas na
aparência de quem aparece no serviço, buscando para si cuidado.
Destaca-se a potência do acolhimento em saúde, favorecendo o acesso do serviço,
formando vínculos tanto entre a equipe quanto entre o usuário e a equipe, empoderando o
usuário a ponto dele poder questionar o processo de tratamento, proporcionar o cuidado
integral e a possibilidade de modificação da clínica.
Caberia também destacar o suporte familiar dado que o mesmo foi crucial ao tratamento
em saúde mental, perpassando desde o cuidado da própria família, à própria aprendizagem
sobre o adoecimento mental (sintomas, diagnóstico, tratamento e estratégias de
enfrentamento), destacando também as mudanças que ocorrem dentro da própria família,
reconfigurando os lugares de cuidado, mesmo quando o tratamento demanda uma internação
em hospital-dia e ainda, o quão benéfico foi para as famílias participantes o contato com
outras famílias, numa espécie de cuidado mútuo.
O acolhimento institucional ocorreu primeiramente no próprio CRAS, através da escuta
psicossocial (psicólogo e assistente social); após o acolhimento no momento da crise, a
usuária foi encaminhada para o hospital municipal, onde foi acolhida, ainda que
incompreendida pelo profissional médico da instituição. Por fim, ela ainda foi acolhida no
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) por dois técnicos de nível superior, um enfermeiro
(para a triagem) e por uma psiquiatra (a qual escutou e medicou). Ainda que o acolhimento se

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configure como uma tecnologia leve em saúde, ele traz consigo uma potente forma de cuidado
ao que está em sofrimento.
A serenidade, tal qual, proposta por Heidegger, está para além da dicotomia: atividade
x passividade, mas é proposta como caminho do pensamento meditativo. Não se restringe à
ordem dos objetos e instrumentais, tais quais propostos pela técnica, mas uma forma outra de
ir além dos encaminhamentos protocolares e rígidos, buscando um aguardar para que o
cuidado se concretize, acolhendo-o (SARAMAGO, 2008).
Entretanto, e como proceder no caso da usuária LSF? A fala da usuária era
bem clara: “Eu não quero ter esse bebê! [...] Se for para ter, eu vou me matar antes dos nove
meses [...] vocês vão ter que escolher, entre eu ou o bebê” (sic). Certamente o tratamento
moralista não é o mais adequado, apesar de extremamente cotidiano nos dispositivos de
saúde. Ou seja, como intervir sem gerar ainda mais culpa? Sem obrigá-la a continuar a
gravidez? E quando ela está decida a não ter e tudo o que ouviu do profissional médico foi:
“Você não pode ser egoísta, tem que pensar no coletivo. Imagine se você fosse esse bebê,
você não gostaria de nascer?”. Dado que a gestação não foi fruto de estupro; não há
evidências de que a criança possui anencefalia e que muito dificilmente algum juiz vá
considerar que uma depressão seja tão algo “sério” a ponto de permitir o abortamento, o que
será dessa usuária? Assim, se isso já não fosse demasiadamente polêmico por si, quanto maior
agravo a situação ganha quando a usuária é paciente psiquiátrica? Trago uma provocação
decorrente dessa experiência: Quando um transtorno mental põe em risco a vida da mãe, é
permitido o abortamento?
Longe de encontrar respostas prontas e exatas, esse caso em questão tem
levantado perguntas que serão respondidas quando a cada caso “novo” de uma usuária com
transtorno mental engravidar e essa condição pôr em risco a vida da gestante. Como já foi
dito, o caso continua sendo acompanhado, após o acolhimento no CRAS, ela foi encaminhada
ao hospital e ao CAPS, retornando mensalmente ao CRAS como uma forma de
acompanhamento até uma possível alta até quatro meses após a acolhida. Quando ela foi ao
CAPS, ela havia se transformado, uma nova pessoa entrava naquele dispositivo, trazendo uma
maior aceitação da gestação e um desejo, ainda que não muito firme, de continuar até o fim
com a mesma.
Ou seja, foi um caso que não se deu apenas em uma única instituição
totalitária, com apenas uma única terapêutica possível, mas um cuidado que se construiu entre
dispositivos, em rede. Mais uma vez, o trabalho em rede prova sua efetividade e reafirma que
o cuidado e o tratamento da pessoa em transtorno mental devem ocorrer não no isolamento de
um hospital psiquiátrico, mas no próprio território a partir de uma rede que dialoga em favor
de um sujeito que está em sofrimento, através dos dispositivos que compõe a rede municipal
de saúde, acolhendo aquele que sofre, numa perspectiva de abertura ao que se mostra, sem se
deixar dominar pela técnica.

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REFERÊNCIA

AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Editora Fiocruz: Rio de Janeiro,


2007.

GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. 1. ed. 13 reimp. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

SARAMAGO, L. Sobre a serenidade em Heidegger: uma reflexão sobre os caminhos do


pensamento. Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, Vitória da Conquista, Ano VI, n. 10, p.
159-176, 2008.

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Eixo - Fenomenologia em Contextos Sociais


Relato de Experiência

CUIDADO AO ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO DO SEMIÁRIDO:


UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Jermyson Guimarães de Souza. E-mail: jermyson99guimaraes@gmail.com.


Estudante de Psicologia, Bolsista PIBEX UNIVASF 2018-2019
Keisy Roberta Vieira de Araujo Silva. E-mail: keisyaraujo@gmail.com.
Estudante de Psicologia da UNIVASF, Voluntária
Jhonanthan de Oliveira Ramalho. E-mail: jhon.ramalho125@gmail.com.
Estudante de Psicologia da UNIVASF, Voluntário
Géssica Souza Almeida. E-mail: gessica_almeida26@hotmail.com.
Estudante de Psicologia da UNIVASF, Voluntária
Shirley Macêdo. E-mail: mvm.shirley@gmail.com. Docente do Colegiado de Psicologia, da
Residência Multiprofissional em Saúde Mental e do Programa de Pós-Graduação em
Dinâmicas de Desenvolvimento do Semiárido da UNIVASF

Palavras-chave: cuidado; saúde mental; sofrimento psíquico; formação profissional; ensino


superior

INTRODUÇÃO

O contexto do ensino superior é marcado por uma série de mudanças e de novas


responsabilidades que devem ser assumidas pelo estudante, considerando seu novo papel
social declarado: o de universitário. Tais mudanças podem trazer, a depender da situação,
impactos positivos; colaborando no desenvolvimento da autonomia e do sentimento de bem-
estar do indivíduo, em uma ampliação dos seus conhecimentos e no fomento da produção de
saber, além de prepará-lo para o futuro mercado de trabalho que o aguarda. Não obstante, essa
nova fase também pode ser vivenciada como negativa, já que as transformações na vida do
universitário, de alguma forma, geram sofrimentos e, quando não, adoecimentos diversos.
Pesquisa realizada com 939.604 estudantes de graduação de Instituições de Ensino
Superior (IES) brasileiras, pelo Fórum de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e
Estudantis, constatou que a quantidade de atividades da universidade interfere na vida pessoal
dos universitários e em seu desempenho acadêmico (FONOPRACE, 2014). Os pesquisados
relataram passar por dificuldades emocionais, ansiedade, desânimo e falta de vontade diante
das atividades acadêmicas. No entanto, somente 30,45% desses estudantes alegou já ter
procurado atendimento psicológico. Esses resultados são preocupantes e colocam a questão
do sofrimento psíquico do estudante universitário como uma problemática de saúde pública
(OLIVEIRA; PADOVANI, 2014).

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De acordo com o estudo de Moretti e Hübner (2017), realizado com universitários de


IES privadas, a rotina universitária afeta de forma negativa os níveis de estresse dos
estudantes investigados e existe um descontentamento com o excesso de disciplinas
ministradas pelo curso, sendo enfatizadas pelos indivíduos a autocobrança, que constitui o
grande motivo do estresse na academia. Além disso, o acúmulo de disciplinas, a
desorganização da grade curricular, a metodologia ultrapassada, o ambiente hostil, relações
conflituosas com docentes/colegas e problemas familiares são desencadeantes do estresse na
universidade.
Outrossim, dados constatados no estudo de Ribeiro e Bolsoni-Silva (2011) são
propositores para reflexão sobre a promoção de saúde do estudante universitário, visto que as
IES não o prepara para mudanças que ocorrem na transição do ensino médio para o superior,
não favorecendo práticas pedagógicas para a adaptação psicossocial do mesmo. Destaca-se,
contudo, o enfoque no preparo por parte da IES para a saída desses sujeitos para o mercado de
trabalho, o que muitas vezes acarreta sentimentos negativos durante a formação acadêmica,
deslocando a responsabilidade das instituições de acompanhar os indivíduos de forma mais
ampla e com um olhar mais atento para os fatores psicossociais de risco e proteção no
decorrer da graduação dos mesmos.
De acordo com Macêdo (2018), os indivíduos que ingressam na academia são dotados
de um grande potencial. Em contrapartida, problemas encontrados durante a formação, tais
como rigidez institucional, necessidade de cumprir prazos e de dar conta de diversas tarefas
ao mesmo tempo, associadas a fatores da vida pessoal e social mais ampla do universitário
(distância de casa, falta de vínculos, características de personalidade, história de vida) podem
gerar sentimento de frustração no aluno, que não consegue responder às exigências do
ambiente universitário, que é pautado pela cultura da alta-performance.
Todos esses fatores combinados, além de influenciarem no desempenho acadêmico do
aluno, atingem diretamente suas relações interpessoais fora da universidade. O estudante
acaba comprometendo seus vínculos afetivos, muitas vezes por falta de tempo para mantê-los,
vínculos esses que serviriam como uma estratégia de prevenção ao sofrimento psíquico grave
e/ou adoecimento psíquico. Os relacionamentos interpessoais dentro da universidade também
ficam comprometidos por conta da intensa competitividade existente e uma preocupação com
o futuro mercado de trabalho. Nesse contexto, colegas de sala passam a ser vistos como
concorrentes e adversários.
Para além da universidade, contudo, diria-se com Bauman (2007) que, no contexto
social contemporâneo, há uma escassez de vínculos, fragmentação da vida e carência de
investimento afetivo, o que denota fragilidade e superficialidade das relações. O trabalho
colaborativo é deixado de lado. Em seu lugar, ocorre intensa competitividade, que
potencializa o sofrimento e as incertezas acerca do futuro.
Diante destas problemáticas que envolvem o universitário no contexto social e
acadêmico, diversos estudos denunciam a necessidade urgente de ações, cobrando das IES a
responsabilidade de criar programas de atenção psicossocial a esta população (RIBEIRO;
BOLSANI-SILVA, 2011; ANDRADE et al., 2016; GRANER; RAMOS-CERQUEIRA,
2017; MORETTI; HÜBNER, 2017). Portanto, o presente relato de experiência apresenta um
projeto de extensão que vem sendo realizado na Universidade Federal do Vale do São
Francisco (UNIVASF), fomentado pelo Programa Institucional de Bolsas de Extensão

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e Fenomenologia

(PIBEX) 2018/2019, que visa, no serviço escola da instituição (o Centro de Estudos e Práticas
em Psicologia – CEPPSI), promover práticas clínicas de cuidado que favoreçam mudanças em
processos de subjetivação e promoção da saúde para universitários de vários cursos e
instituições, viabilizando, concomitantemente, o desenvolvimento de competências em
estudantes de Psicologia que atendem essa clientela específica.

MÉTODOS

A metodologia do projeto se embasa na proposta de Macêdo (2015), denominada de


hermenêutica colaborativa, que vem se sedimentando nos últimos anos como metodologia de
pesquisa e intervenção (MACÊDO; SOUZA; LIMA, 2016; MACÊDO, 2018). Tal perspectiva
fenomenológica se pauta em conceitos teóricos de Carl Rogers e preceitos filosóficos de
Maurice Merleau-Ponty e Hanz-Georg Gadamer.
Partindo do princípio que o homem é mundano e compartilha de significados com
outros, considera-se que alguém só pode ter consciência de si no mundo tendo consciência de
outros e compartilhando com esses de significados percebidos, vividos e pensados
(MACÊDO, 2015). Nesse sentido, a intersubjetividade é constituída a partir da experiência de
compartilhamento da realidade social (COELHO; FIGUEIREDO, 2004), estando o sujeito
corporificado e existindo em um tempo, em um espaço e em um lugar específicos. Assim, a
experiência intersubjetiva se dá no mundo da vida e se expressa pela linguagem.
Ferraz (2009) propõe que a linguagem é uma via para melhor compreender as relações
intersubjetivas, culturais e afetivas entre os seres humanos. Diante disso, a proposta
metodológica do projeto consiste em facilitar espaços coletivos de escuta e fala. Nesse espaço,
busca-se promover um diálogo gadameriano, a fim de favorecer a produção de novos
sentidos. Num contexto de diálogo, através da linguagem, motor da experiência, os horizontes
dos universitários se fundem, eles confrontam tradições e chegam a uma nova verdade,
ressignificando a experiência ali compartilhada. Na hermenêutica gadameriana, o homem
conecta o passado ao presente e ao futuro, através da tradição, adquirindo um horizonte.
Portanto, no diálogo, ele pode experienciar com outro (s) uma conexão e mudar de
perspectiva, na medida em que suas suposições iniciais são desafiadas e surpreendidas no
encontro dialógico (MACÊDO, 2015).
Ao unir esses preceitos filosóficos, a hermenêutica colaborativa considera que em
espaços de escuta e fala, pode haver compartilhamento de sentidos, desde que os envolvidos
se abram à experiência, confrontem suas tradições e produzam novos sentidos. No entanto,
para que esse contexto seja facilitado, cabe ao psicólogo atitudes facilitadoras, propostas por
Carl Rogers, de consideração positiva incondicional e autenticidade, buscando, inclusive,
partir de sua própria tradição para viabilizar sua compreensão como homem mundano que
também é.
Assim, são oferecidas atividades coletivas de cuidado, onde os universitários podem
compartilhar experiências e construir conjuntamente estratégias de enfrentamento. As
intervenções ocorrem, principalmente, no CEPPSI e são oferecidas em contexto de grupos,
onde os participantes podem prestar atenção na corrente experiencial de um e de todos. Essas
atividades podem se constituir de oficinas pontuais ou grupos interventivos de até oito
encontros de duas horas cada, com a participação de, no máximo, 10 universitários.

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Os processos são facilitados por duplas de estudantes de Psicologia e supervisionados


semanalmente por duas psicólogas. Os universitários, a cada encontro, produzem Versões de
Sentido, que são compartilhadas no encontro posterior. Há uso de recursos artísticos diversos
(pintura, escultura, poesias, desenhos, colagem, música, contação de estórias, fábulas) que
auxiliam na produção e na ressignificação dos sentidos. Logo, esse processo pode ser
caracterizado como uma interface entre a experiência clínica e a educação, visto que há a
facilitação por universitários de Psicologia para universitários de outros cursos. O processo de
supervisão surge como recurso para formação profissional, auxiliando o estudante de
Psicologia a separar suas questões pessoais das dos demais universitários, já que podem
ocorrer experiências em comum, o que poderia dificultar a escuta das experiências ali
compartilhadas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Desde a implantação do projeto até agora, foram alcançados, em média, através de


oficinas grupais e grupos interventivos, além de outras atividades (reunião com gestores e
professores, palestras, acompanhamentos individuais, plantão psicológico, triagens,
participação em semanas pedagógicas, videoconferência), um total de 965 universitários de
instituições públicas e privadas do Vale do São Francisco (VSF).
Apesar de o projeto alcançar muitas pessoas, um número considerável de estudantes
desiste de continuar nas atividades. É importante analisar porque muitas pessoas se interessam
e depois se afastam. Talvez o silenciamento do sofrimento (MACÊDO, 2018), a dificuldade
de demonstrar fraqueza, até mesmo a rotina de compromissos acadêmicos e o fato de grande
parte dos universitários do VSF residirem em locais distantes das suas IES, sejam motivos que
levam os universitários a desistirem das atividades. Além disso, parece haver uma falta de
conscientização da comunidade estudantil dos processos saúde-doença que podem levar ao
adoecimento psíquico, muitas vezes recorrendo à ajuda psicológica apenas em momentos de
crise. Porém, os que permanecem se surpreendem com o fato de compartilhar de muitos
sentidos com outros e como esse compartilhar experiências, por si só, já alivia o sofrimento,
os faz criar estratégias de enfrentamento e fortalece vínculos no cotidiano acadêmico.
O projeto tem como vantagens permitir que os extensionistas (estudantes de Psicologia)
tenham contato com a prática antes dos momentos finais do curso em estágios
profissionalizantes, o que acrescenta muito na sua experiência acadêmica. As atividades
também possibilitam uma desobstrução da fila de espera do CEPPSI, pois, por esse ser um
espaço que presta serviço tanto para a comunidade interna como externa, o número de
estagiários disponíveis não corresponde às demandas da população que busca ajuda
psicológica. O projeto tem ainda um viés inter e multidisciplinar, possibilitando o contato e a
integração com profissionais da região do campo das Artes, Educação Física, Administração e
Medicina. Inclusive, foi realizado um evento no mês de setembro de 2018 que visava,
especificamente, o cuidado da vida no ambiente acadêmico, que alcançou diversas pessoas
com demanda de comportamento suicida. Não obstante, algumas limitações foram sendo
encontradas no decorrer do projeto. Uma delas foi a de conciliar as atividades tendo em vista
que o calendário da UNIVASF é diferenciado comparado ao de outras IES.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que as atividades desenvolvidas precisam ser estendidas a um núcleo de


cuidado específico para universitários, tendo como objetivo promover saúde e qualidade de
vida para esses atores sociais. Por conseguinte, por se tratar de um desafio contemporâneo
enfrentando por tantas outras IES, reconhece-se a urgência de ações contínuas e a ampliação
de discussões sobre a temática, a fim de se construir políticas públicas para essa população,
que enfrenta sofrimento psíquico no contexto acadêmico, a fim que possa ser desenvolvida
uma cultura de cuidado eficiente, eficaz e efetiva nas instituições educativas.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, A. S. et al. Vivências acadêmicas e sofrimento psíquico de estudantes de


psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, v.36, n.4, p.831-846, out/dez, 2016. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703004142015. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932016000400831&lng=pt
&tlng=pt. Acesso em: 13 ago. 2018.

BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

COELHO, N. E.; FIGUEIREDO, L. C. Figuras de intersubjetividade na constituição


subjetiva: dimensões da alteridade. Interações, v. IX, n.17, p. 9-28, 2004. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/inter/v9n17/v9n17a02.pdf. Acesso em: 20 mar. 2019.

FERRAZ, M.S.A. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. Campinas: Papirus,


2009.

FONAPRACE. IV Pesquisa do perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de


graduação das Instituições Federais de Ensino Superior brasileiras. Disponível em
http://www.andifes.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Pesquisa-de-Perfil-dos-Graduanso-
das-IFES_2014.pdf. Acesso em: 28 nov. 2018.
GRANER, K.M.; RAMOS-CERQUEIRA, A.T.A. Revisão integrativa: Sofrimento psíquico
em estudantes universitários e fatores associados. Ciência e Saúde Coletiva, v.16, n.3, 2017.
Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/revisao-integrativa-
sofrimento-psiquico-em-estudantes-universitarios-e-fatores-associados/16374?id=16374.
Acesso em: 24 ago. 2018.

MACÊDO, S. Clínica humanista-fenomenológica do trabalho: a construção de uma ação


diferenciada diante do sofrimento no e por causa do trabalho. Curitiba: Juruá, 2015.

MACÊDO, S. Sofrimento psíquico e cuidado com universitários: reflexões e intervenções


fenomenológicas. ECOS: Estudos Contemporâneos em Subjetividade, v. 2, ano 8, p. 266-
277, 2018.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
e Fenomenologia

MACÊDO, S.; SOUZA, G.W.; LIMA, M.B.A. Oficina de desenvolvimento da escuta: prática
clínica na formação em psicologia. Revista da Abordagem Gestáltica, v. 24, n. 2, p.123-
133, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.1.

MORETTI, F.A; HÜBNER, M.M.C.(2017). O estresse e a máquina de moer alunos do ensino


superior: vamos repensar nossa política educacional? Revista Psicopedagogia, v. 34, n. 105,
p. 258-67, 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicoped/v34n105/03.pdf.
Acesso em: 18 dez. 2018.

RIBEIRO, D.C.; BOLSANI-SILVA, A.T. Potencialidades e di?culdades interpessoais de


universitários: estudo de caracterização. Acta Comportamentalia, v.19, n.2, p. 205-224,
2011. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/actac/v19n2/a05.pdf. Acesso em: 18 dez.
2018

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Eixo - Fenomenologia em Contextos Sociais


Relato de Experiência

PAJUBÁ: A EXPERIÊNCIA INTERSECCIONAL DE LGBTS NEGROS NA


PERSPECTIVA HUMANISTA

Ketlen Ariany da Silva Xavier. E-mail: ketlenxavier@hotmail.com.


Estudante de graduação em Psicologia – UNIVASF
Emanuella Ribeiro Félix. E-mail: emanuellaribeiro.f@gmail.com.
Estudante de Graduação – UNIVASF
Lucas Batista de Souza. E-mail: lucasbatistsouza@gmail.com.
Estudante de Graduação – UNIVASF
Gabriel Medeiros Nunes Santos. E-mail: gabriel.mederus@gmail.com.
Estudante de Graduação – UNIVASF
Renata Helena Bastos Castro. E-mail: renatahbc@gmail.com.
Estudante de graduação em Psicologia - UNIVASF

Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Sociedade. Preconceito. Humanismo.

INTRODUÇÃO

O presente projeto nasceu da necessidade de se compreender o fenômeno da


interseccionalidade sob a ótica da psicologia humanista proposta pelo psicólogo
estadunidense Carl Rogers, pois ambos os temas dialogam entre si e acabam por se
complementarem na busca de uma compreensão maior sobre as opressões estruturantes,
reflexões, e formas de combate aos mesmos. Com base na experiência e na vivência de jovens
LGBT’s negros residentes no Vale do São Francisco e se valendo da atitude fenomenológica
na compreensão dos sujeitos em suas especificidades e subjetividades, o grupo pretende-se
traçar elos que explanem formas de complementação entre o fenômeno da interseccionalidade
e a psicologia humanista rogeriana na promoção de igualdade.
Acreditamos que o conhecimento da academia deve ser posto a serviço da
comunidade, promovendo o retorno à sociedade na forma de reflexões, reinvenções e
resistências para minorias sociais (grupos que se encontram em desigualdade civil). Dessa
forma, procura-se compreender como opressões sistemáticas afetam a vida de pessoas
LGBT’s negras na região, bem como explanar a teoria humanista proposta pelo psicólogo
americano Carl Rogers como um aparato teórico que promova a reflexão sobre tais opressões
(além de buscar aprofundar tais reflexões com o auxílio de outros autores que complementem
e contextualizem tal teoria), buscando assim um maior entendimento sobre as opressões
enraizadas na sociedade, bem como formas de combatê-las.

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Temos por objetivo principal compreender como se dá o fenômeno da


interseccionalidade no Vale do São Francisco por meio da experiência de LGBT’s negros que
residem no local, e através desse entendimento propor uma reflexão a luz da teoria rogeriana,
que acreditamos ser bastante complementar no combate a violência e a discriminação. Além
desta, outros conceitos teóricos serão usados como forma de contextualização e
complementação de tal teoria, buscando assim explanar com maior profundidade o assunto
em questão. Por fim, tem-se o objetivo de propor um diálogo entre a academia e a
comunidade, oferecendo retorno à sociedade na forma de considerações e reformulações entre
teoria acadêmica e movimentos sociais como forma de resistência aos grupos
majoritariamente oprimidos.

MÉTODOS

O presente trabalho utiliza-se do método de revisão bibliográfica para construção dos


seus resultados e discussão, uma vez que busca, através da literatura, revisar estudos
fundamentais no entendimento das narrativas de gênero, sexualidade, raça e psicologia
humanista.
Assim, a revisão bibliográfica constitui-se da busca de materiais prévios que
dialoguem com o assunto da pesquisa, ou seja, revisa-se artigos, livros e conceitos publicados
e suas contribuições acadêmicas para determinado tema (GIL, 2002).
Visto isso, a revisão bibliográfica de tais eixos escolhidos torna-se base para a análise
do cenário sociopolítico da da discussão da interseccionalidade no âmbito do Vale do São
Francisco, sendo esse o foco principal do trabalho.
Além disso, foi utilizado o método de observação participante (GIL, 2002) para
compreender a vivência de pessoas LGBTs negras que residem na região do Vale do São
Francisco e assim, experienciam o fenômeno da interseccionalidade no seu cotidiano. Essas
pessoas relataram suas vivências, sua subjetividade e o que é ser uma pessoa LGBT negra na
realidade na qual estão inseridas, com assinatura de TCLE - Termo de consentimento livre e
esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A elaboração do presente trabalho foi possível por meio da proposta formulada pelo
grupo, partindo do pressuposto de que a interseccionalidade pode ser vista como um olhar
fenomenológico à especificidade do outro, compreendendo-o na sua própria dimensão e
fugindo a ideia de atitude natural que estabelece relações diretas de causa e efeito para os
fenômenos sociais e subjetivos. Dessa forma, a análise do fenômeno da interseccionalidade e
seus efeitos na experiência de vida dos sujeitos se tornou objetivo de crescente interesse e
conhecimento, fomentado pelo necessário de se compreender como o mesmo se estrutura e
quais são as formas de se combatê-lo.
Desse modo, por intermédio dos depoimentos pessoais de jovens LGBT’s negros do
Vale do São Francisco, o grupo inferiu uma análise crítica sobre a experiência interseccional
na perspectiva humanista, o que resultou na compreensão de que o fenômeno da
interseccionalidade está presente de forma intrínseca na experiência de vida dos mesmos, e

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que tal fenômeno permeia suas relações com o mundo e com os outros. Considerando também
os diversos contextos em que ocorrem (família, afetividade, vida social, mercado de trabalho,
expectativas futuras, etc.), as opressões que decorrem de um meio social excludente causam
grande impacto na forma como tais sujeitos constroem sua subjetividade e identidade.
Uma vez que o ser humano é essencialmente um ser de relação com o mundo e com os
outros, no entanto, essa relação muitas vezes não vem acompanhada de compreensão e
aceitação, e sim de exigências normativas e desconsideração pela sua subjetividade
identitária. Problemática essa que ficou evidenciada nos muitos relatos que o grupo obteve,
perpassando uma realidade cada vez mais constante e preocupante se observados os índices
crescentes de mortalidade da população LGBT.
Partindo de perspectiva teórica rogeriana, foi possível contextualizar a mesma com
grandes reflexões acerca do fenômeno da interseccionalidade, mostrando ser uma teoria
complementar de extrema potencialidade na construção do trabalho tanto nos aspectos
teóricos, como práticos durante a elaboração de algumas perguntas prévias que condiziam os
encontros.
Em primeiro ponto, pode-se perceber que a dita relação de ajuda é muitas vezes
negada à pessoa vítima de opressão, especialmente no que diz respeito a aceitação e a
compreensão empática. Logo em seguida, foi possível observar que através de espaços de
reflexão e grupos de apoio, tais pessoas acabam por encontrar um espaço propício à relação
de ajuda, pois se tratam de sujeitos com vivências semelhantes, logo, partilham de
experiências que se aproximam em diversos pontos. E aqui, e sem o estranhamento inicial,
atitudes facilitadoras acabam por florescer em tais ambientes, mesmo os integrantes
desconhecendo a teoria rogeriana.
Por fim, vemos que com o decorrer da relação de ajuda pautada em atitudes
facilitadoras, as vítimas de opressões acabam por se tornarem mais conscientes de sua
situação enquanto padecentes de um problema estrutural, e passam então a tecer formas de
resistência e combate, principalmente por criarem relações intra/interpessoais mais
conscientes, congruentes, empáticas, decisivas e horizontais. Conjuntamente, toda a riqueza
de variáveis evidenciadas e documentadas pelo grupo, levou a contornos complexos de
extrema relevância e crescimento ao âmbito pessoal de militância e acadêmico/profissional
por propiciar o contato com realidades muitas vezes subtraídas de existência e legitimidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tem-se então que a compreensão da interseccionalidade se faz presente na educação


humanista, sendo ambos os conceitos complementares na promoção de dignidade por
intermédio do fenômeno educacional. Porém, para que esse modelo educacional se torne
efetivamente humanista, é necessário não apenas mudar a postura dos professores ou gestores
educacionais. Pensar em educação humanista é pensar em uma nova concepção de educação,
que altere radicalmente tanto a postura profissional daqueles que trabalham nesse cenário
quanto os valores e objetivos que a educação busca desenvolver nos alunos.
Através do contato com jovens LGBT’s negros e suas vivências no processo de
construção do presente trabalho, a experiência tornou possível compreender que de nada vale
a lógica de causa e efeito que tão rotineiramente assume-se no nosso dia a dia. O outro deve

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ser compreendido na sua totalidade e na sua especificidade, pois só ele sabe e sente o peso da
sua história. É preciso abandonar a bagagem normativa à qual estamos fortemente envoltos e
abrir-se a experiência que o outro traz para que se possa compreender sua forma de ser-no-
mundo e ser-com-outros. Ademais, a partir dos resultados obtidos, foi possível compreender
como conceitos rogerianos e interseccionais se complementam na reflexão para com a
subjetividade humana que foge a lógica determinista que permeia nossas relações.
Por fim, o grupo pontua a importância de se ter um olhar humanista e interseccional
acerca da especificidade do outro, assumindo posturas de aceitação, empatia e congruência,
abandonando a tradicional lógica de causa e efeito. Dessa forma, poderemos (re)inventar o
combate a toda e qualquer opressão que deslegitime a condição humana.

REFERÊNCIA

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

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Eixo - Fenomenologia em Contextos Sociais


Relato de Experiência

PESQUISA FENOMENOLÓGICA COLABORATIVA COM PROFISSIONAIS DE


SAÚDE DA ATENÇÃO BÁSICA DE JUAZEIRO/BA

Géssica Souza Almeida. E-mail: gessicaalmeidaevg@gmail.com.


Estudante de Psicologia da UNIVASF
Shirley Macêdo Vieira de Melo. E-mail: mvm.shirley@gmail.com.
Doutora em Psicologia Clínica; Docente do Colegiado de Psicologia, da Residência
Multiprofissional em Saúde Mental e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas de
Desenvolvimento do Semiárido da UNIVASF
Melina de Carvalho Pereira. E-mail: melinamcp@gmail.com.
Mestre em Psicologia; Psicóloga do CEPPSI/UNIVASF

Palavras-chave: pesquisa fenomenológica; saúde; condições de trabalho.

INTRODUÇÃO

No decorrer da história humana, a concepção de trabalho adquiriu diversos


significados: desde tortura e suor no rosto, até um significado intrínseco, sendo considerado,
na contemporaneidade, como um manancial de construção de identidade e autorrealização do
trabalhador. Não resta dúvida, entre os estudiosos da relação trabalho e subjetividade, que o
trabalho constitui uma categoria do psiquismo humano que proporciona a possibilidade do
homem construir-se a si mesmo e a história, e marcar sua existência no mundo.
Concomitantemente aos estudos sobre trabalho, ao longo dos anos, pode-se
compreender, a partir das ideias de Bendassolli e Soboll (2011) que, na sociedade industrial,
engendraram-se modos de produção em ritmos acelerados. Macêdo (2015) destaca que outro
fator constituinte da ainda prevalência desses modos de produção nos dias atuais deve-se a
processos políticos e econômicos do neoliberalismo e da globalização, que contribuíram para
a precarização das condições e das relações de trabalho. Sobrinho (2017), por sua vez, adverte
que a precarização se configura como um processo mundial de mudanças nas maneiras de
organização/gestão do trabalho, na legislação trabalhista e social.
Dessa maneira, o trabalho passa a ser reconhecido como uma atividade central que
ocupa de forma quase total o espaço de vida do indivíduo. Para autores como Bendassolli e
Soboll (2011), por exemplo, o trabalho se relaciona de modo dialético com a saúde, pois é
considerado uma atividade que potencializa as competências de um sujeito, ou, ao contrário, o
impossibilita de colocá-las em prática.
De acordo com Farina (2004), emergem preocupações com questões que dizem
respeito à saúde mental dos trabalhadores, fundamentalmente, ao tratar-se de trabalhadores
que trazem no contexto de seus serviços o cuidado com o outro e todas as vertentes
imbricadas que aí se situam. Para Oliveira et al. (2013), tais questões são evidentes em

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profissionais que atuam em serviços públicos de saúde, a exemplo da Atenção Básica de


Saúde (ABS), pois esses trabalhadores lidariam com a ineficiência das ações em saúde, bem
como com as defasagens das condições de trabalho.
Segundo a Portaria 2.436, de 21 de setembro de 2017 (BRASIL, 2017a), a Atenção
Básica é o conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas, desenvolvido por
meio de práticas de cuidado integral e gestão qualificada, realizada com equipe
multiprofissional e dirigida à população em território definido. O Portal do Ministério da
Saúde (BRASIL, 2017b) destaca que, no contexto da ABS, há o surgimento das Equipes de
Saúde da Família (ESF), que se configuram como porta preferencial de entrada no sistema de
saúde vigente no país, estabelecendo, assim, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) como os
locais prioritários de atuação das equipes de Atenção Básica (eAB), as quais têm o intuito de
desenvolver uma atenção à saúde com alto grau de descentralização e profunda capilaridade
no território nacional.
O estudo de Gois, Medeiros e Guimarães (2010) demonstra que boa parte dos
profissionais da atenção básica que estão em situação de precarização do trabalho, que chega
a quase 50%, está lotada na região Nordeste. Como visto, a atenção voltada à saúde mental
dos profissionais de saúde ainda não é significativa, dessa forma, o presente estudo voltou-se
para essa categoria profissional, a fim de colaborar com produção sistemática de
conhecimento sobre essa realidade.
Objetivou-se, assim, promover um grupo interventivo com profissionais de saúde
atuantes na Atenção Básica no município de Juazeiro-BA, compreendendo sentidos de suas
experiências de trabalho, com vistas à elaboração de estratégias de enfrentamento desta
realidade. Especificamente, buscou-se descrever o processo vivido por esses profissionais no
grupo interventivo, identificando o sentido do trabalho para eles, o sentido que o grupo
interventivo teve para os mesmos; bem como, elencar possíveis interferências das condições
de trabalho no processo saúde-doença destes profissionais; além de identificar e construir
conjuntamente com eles possíveis estratégias de enfrentamento para manutenção de suas
saúdes.

MÉTODOS

O presente estudo tratou-se de uma pesquisa de cunho qualitativo e, em meio às


diversas perspectivas em pesquisa fenomenológica, optou-se pelo método da hermenêutica
colaborativa (MACÊDO, 2015), que articula as premissas filosóficas de Maurice Merleau-
Ponty e Hanz Georg-Gadamer a postulados teóricos de Carl Rogers, consistindo em uma
proposta metodológica e contextualizada como uma possibilidade de ação humanista-
fenomenológica em clínica do trabalho, mas que, no entanto, não se restringe somente a esse
âmbito, e, gradualmente, vem se consolidando como práxis de pesquisa interventiva
(MACÊDO; SOUZA; LIMA, 2018; SOUZA; MACÊDO, 2018).
O método sugere que seja percorrido um círculo hermenêutico, que parte da
exploração do sentido da experiência socialmente compartilhada por determinados sujeitos
em uma determinada realidade social, percorre um resgate histórico e leva a um confronto de
tradições, a fim de que possam ser coletivamente construídas e /ou pensadas estratégias de
enfrentamento daquela realidade.

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e Fenomenologia

A partir disso, a presente pesquisa foi realizada no âmbito da ABS, mais


especificamente, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), situada no município de Juazeiro-
BA. Teve como colaboradores sete profissionais de saúde, independente de área de formação,
gênero e faixa etária; atuantes no serviço supracitado, a cerca de um ano; e que tivessem
disponibilidade para participar de 75% dos encontros.
O grupo interventivo foi facilitado pela auxiliar de pesquisa em três encontros de
duração de duas horas cada, tentando-se, ao máximo, não causar prejuízo à rotina de trabalho
dos participantes. Foram utilizados recursos artísticos como argila, recortes de revistas e
fotografias que, como posto por Lima et al. (2013), citado por Souza e Macêdo (2018), são
dispositivos clínicos por excelência, pois auxiliam na manifestação simbólica do sujeito.
No primeiro encontro, foi realizada a atividade de modelagem em argila, com o intuito
de facilitar a expressão do sentido de ser trabalhador daquela UBS. Segundo Souza e Macêdo
(2018), a argila permite que o sujeito se engaje na experiência ali rememorada. O segundo
encontro teve, como material, fotos antigas, prioritariamente da infância dos participantes,
que, de acordo com Souza e Macêdo (2018), permitem o resgate da consciência histórica.
Portanto, a atividade objetivou propiciar reflexões acerca de características pessoais passadas
que poderiam auxiliar no enfrentamento das possíveis adversidades presentes existentes no
seu contexto de trabalho. O último encontro consistiu na elaboração de livretos de projetos de
vida, para os quais os colaboradores utilizaram como recurso recortes de revista e lápis de cor.
O intuito era pensar e construir estratégias de enfrentamento do cotidiano de trabalho, que
poderiam auxiliar na manutenção da saúde mental dos colaboradores. Segundo Souza e
Macêdo (2018), essa atividade favorece aos envolvidos num processo de grupo interventivo
uma abertura para projetos existenciais que propiciem a superação de circunstâncias
restritivas na vida do sujeito.
Todos os encontros foram intercalados por momentos de supervisão com a orientadora
e a coorientadora da pesquisa, visto a necessidade de serem refletidas pela auxiliar de
pesquisa, também estagiária em clínica humanista-fenomenológica do trabalho, as afetações
causadas pelos encontros. Nesses momentos também eram discutidas possibilidades
interventivas para os encontros subsequentes.
Para fins de dados de pesquisa, os colaboradores escreviam Versões de Sentido (VS),
instrumento proposto por Amatuzzi (2008). Além das VS´s dos colaboradores, utilizou-se
também como material de análise as VS´s da própria auxiliar de pesquisa e suas anotações em
diários de bordo que eram discutidas e refletidas em supervisão. A análise das VS seguiu
cinco passos: leitura integral de cada VS; encontro dos elementos significativos da
experiência; presentificação do sentido da experiência; construção de um texto que
condensava uma análise preliminar da experiência vivida por cada colaborador no processo;
encaminhamento desse texto para validação pelos colaboradores da pesquisa; e, por fim,
encontro dos sentidos em comum vivenciados por todos os colaboradores no processo
investigado, o que constituiu a análise final.

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e Fenomenologia

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise realizada a partir do conteúdo das VS’s possibilitou perceber que os sujeitos
expressaram mais o sentido dos encontros no grupo interventivo, sem necessariamente se
referir ao sentido do trabalho, às condições sob as quais o realizam nem especificamente a
estratégias construídas ao longo do processo interventivo. No entanto, partindo do material
complementar analisado (VSs e anotações da auxiliar de pesquisa no diário de bordo), os
resultados permitiram compreender que os sentidos da experiência de ser trabalhador daquela
UBS estão relacionados à sobrecarga de trabalho, sentimento de indignação diante do descaso
do poder público, bem como à falta de reconhecimento. Nesse aspecto, percebeu-se que,
apesar de valorizarem o trabalho, os profissionais não se sentiam reconhecidos.
Alguns autores, a exemplo de Sobrinho (2017), discutem que a precarização do
trabalho no SUS tem uma sólida relação com o Estado, manifestada na (des)estruturação do
mercado de trabalho e no papel das Instâncias Governamentais na sua (des)proteção social.
Além disso, de acordo com Gernet e Dejours (2011), a dinâmica de reconhecimento do
trabalho se configura como fundamental para a manutenção da saúde mental no trabalho, pois
através do reconhecimento, as situações adversas têm uma possibilidade maior de serem
superadas.
Portanto, compreende-se que, mesmo diante de sentidos tão negativos, o que talvez
ajude os colaboradores dessa pesquisa seja: a valorização que os mesmos atribuem ao seu
próprio trabalho, pois eles reconhecem a importância do seu fazer produtivo para a sociedade;
a percepção de que o trabalho possibilita a eles e a sua família, projetarem-se, proporcionando
melhores perspectivas e condições de vida.
Foi possível compreender, também, os sentidos que emergiram relacionados ao
próprio processo vivido no grupo interventivo, dentre eles, a possibilidade de desabafar e falar
sobre problemas referentes ao trabalho e suas interferências, bem como exprimir aspirações e
questões pessoais, onde o ato de se expressar mostrou-se como um agente promotor de bem
estar, demonstrando a relevância em construir espaços que proporcionem o diálogo entre
participantes de uma equipe de trabalho, favorecendo a integração e, por conseguinte, o
fortalecimento do grupo. No contexto de troca de experiências, conheceram a história de vida
um do outro e expandiram vínculos. Resultados semelhantes com a aplicação da hermenêutica
colaborativa foram encontrados por Souza e Macêdo (2018), o que leva a compreender como
as intervenções em grupo propiciam o alívio do sofrimento através do compartilhamento de
experiências, bem como proporciona o alargamento das relações. Vale aqui o já exposto por
Dejours (1994): modos coletivos de enfrentamento são mais saudáveis, já que, estratégias
isoladas e individuais são potenciais fontes de sofrimento mental.
Destarte, outro sentido emergido no grupo está associado aos modos de
enfrentamento, os quais promoveram a elaboração de estratégias que podem propiciar o
manejo e superação das situações de adversidade, de maneira a repercutir na manutenção da
saúde mental dos colaboradores. Discutiu-se, então, a respeito de algumas estratégias, dentre
elas, o fortalecimento da equipe para a resolução de algumas questões referentes à busca por
direitos e melhores condições de trabalho, bem como a conscientização da população no que
tange a seus direitos e deveres. Além disso, conversou-se, por exemplo, sobre reservar tempo
para eles mesmos, a fim de fazerem algo que proporcione sensação de bem-estar, e momentos

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de integração em equipe, que visem o alargamento dos vínculos, fazendo com que o ambiente
de trabalho seja menos aversivo. Esses dados fazem lembrar o que propôs Macêdo (2015),
quando argumentou que o confronto de tradições, que surge num encontro intersubjetivo,
possibilita aos sujeitos envolvidos a construção de novos projetos para enfrentarem e
ressignificarem o sofrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível compreender que o grupo interventivo possibilitou benefícios aos


trabalhadores daquela UBS, pois os encontros foram percebidos por eles como uma estratégia
de manutenção da saúde mental, sendo o compartilhamento de experiências e o fortalecimento
dos vínculos da equipe como formas de enfrentar e atenuar as adversidades do dia a dia no
ambiente de trabalho.
Assim, os resultados da presente pesquisa sugerem que grupos interventivos se
configuram como prática de cuidado e atenção a profissionais atuantes na ABS. No entanto,
alerta-se para a importância dos momentos de supervisão em uma pesquisa interventiva como
esta, já que se trata de um processo clínico que promove mudanças em modos de sentir,
pensar e agir, inclusive, do próprio facilitador do grupo, principalmente sendo este um futuro
profissional de saúde.
Não obstante, se faz fundamental a implementação desses espaços de escuta e fala no
contexto do trabalho de trabalhadores em saúde para que, a partir disso, as instituições
promovam assistência aos mesmos, reverberando na atenção e prestação de serviços a
usuários do SUS. Além disso, os dados desse estudo poderão auxiliar na produção de
indicadores que venham subsidiar efetivação de novas políticas públicas a esses atores sociais,
principalmente, diante das ameaças emergentes da atual reforma trabalhista e previdenciária.

REFERÊNCIAS

AMATUZZI, M.M. Por uma psicologia humana. Campinas, SP: Alínea, 2008.

BENDASSOLLI, P.F.; SOBOLL, L.A.P. Clínicas do trabalho: filiações, premissas e desafios.


Cad. psicol. soc. trab. São Paulo, v.14, n.1, p.59-72, jun. 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria Nº 2.436, de 21 de setembro de


2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes
para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário
Oficial da União, Brasília, v. 183, n. 1, p. 68. 22 de set. 2017.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portal do Departamento de Atenção Básica. 2017.


Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php. Acesso em: 6 jul. 2018.

DEJOURS, C. Psicodinâmica do trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.

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e Fenomenologia

FARINA, H.D. Sofrimento psíquico: um estudo entre médicos e enfermeiros em um


hospital de Manaus. 2004. 113f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Fundação
Oswaldo Cruz, Manaus, 2004.

GERNET, I.; DEJOURS, C. Avaliação do trabalho e reconhecimento. In: BENDASSOLLI,


P.F; SOBOLL, L. A. (Orgs.). Clínicas do trabalho. São Paulo: Atlas, 2011. p. 61-70.

GÓIS, P. S.; MEDEIROS, S. M.; GUIMARÃES, J. Neoliberalismo e Programa Saúde da


Família: a propósito do trabalho precarizado. Rev. Enfer, v.4, n.3, p.1204-1206, 2010.

MACÊDO, S. Clínica humanista-fenomenológica do trabalho: a construção de uma ação


diferenciada diante do sofrimento no e por causa do trabalho. Curitiba: Juruá, 2015.

LIMA, M.B.A; MACÊDO, S.; SOUZA, G.W.; Oficina de desenvolvimento da escuta: prática
clínica na formação em psicologia. Revista da Abordagem Gestáltica, v. 24, n. 2, p.123-
133, 2018.

OLIVEIRA, R. G; SANTOS, E. O. FERRAZ, C. A. A. LAVOR, E. M.; NUNES, L. M. N.


Condições de trabalho das Equipes de Saúde da Família do município de Petrolina-PE:
percepção dos profissionais de saúde. São Paulo. Mundo da Saúde, v.37 n.4. p.433-438.
2013.

SOBRINHO, N. O. A Precarização do trabalho dos profissionais da Atenção Básica de


Saúde de um Distrito Sanitário de Campina Grande/PB. 2017. 108f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) - Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2017.

SOUZA, G. W.; MACÊDO, S. Grupo interventivo com genitores (as) de crianças vítimas de
violência sexual. Rev. abordagem gestalt, Goiânia, v.24, n.3, p.265-274, set/dez. 2018.

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Eixo - Fenomenologia em Contextos Sociais


Relato de Experiência

SOBRE O EXERCÍCIO DA ESCUTA NA RUA: UMA EXPERIÊNCIA


FENOMENOLÓGICA

Vitória de Amorim Almeida. E-mail: amorimvitoria@hotmail.com.


Discente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Pará – UFPA

Palavras Chave: escuta; fenomenologia; gestalt-terapia; PopRua.

INTRODUÇÃO

Durante o período de setembro de dois mil e dezessete até junho de dois mil e
dezoito, a Universidade Federal do Pará realizou o projeto de extensão “Brinquedos de Saúde:
ludicidade, lazer e educação popular para a promoção de cidadania e saúde mental”,
direcionado a públicos socialmente marginalizados e invisibilizados, procurando promover
saúde por meio de práticas humanizadas e acolhedoras, de acordo com a política nacional
vigente desde 2001. O objetivo permeava explicitar o quanto a saúde não é apenas um fator
biológico, mas englobadora de aspectos que vão desde autocuidado e relações interpessoais,
até fatores primeiros como saneamento básico e lazer. Assim, práticas corporais, esportivas e
lúdicas voltaram-se à promoção de qualidade de vida nos mais diversos espaços urbanos, a
fim de contribuir para o desenvolvimento de estratégias que elevassem a saúde de pessoas em
sofrimento psíquico, inseridas em seu próprio território, considerando e abordando, por
exemplo, sujeitos que utilizavam abusivamente de álcool e outras drogas, e pessoas em
situação de rua.
Atuando pelo projeto existia uma diversa gama de profissionais e estudantes,
trabalhando em conjunto e de forma interdisciplinar, com o objetivo de agregar e compartilhar
os seus saberes, almejando produzir saúde em um plano totalizante, holístico, na busca de
contemplar as múltiplas esferas existenciais de um indivíduo. Tendo a Redução de Danos e a
Educação Popular como eixos norteadores, esse corpo de trabalho heterogêneo ocupou as
ruas, praças, encruzilhadas e os mais diversos espaços públicos da cidade de Belém do Pará
durante três etapas de atuação em campo.
Aqui, especificamente, serão discutidos acontecimentos referentes à primeira etapa do
projeto, realizada na praça Magalhães, ou, como é comumente conhecida na cidade: a praça
abandonada. Esse momento ocorreu em parceria com a equipe do Consultório na Rua, equipe
de saúde básica voltada para o público em situação de rua da região na qual se encontra esse
território. O relato consiste em reflexões pessoais de uma estudante de psicologia, a partir de
seu encontro com um indivíduo da População de Rua (PoPRua), aqui tratado como João.
Objetiva-se, a partir do relato, refletir acerca do alcance da psicologia atualmente e sobre
necessidade de democratizar suas técnicas para parcelas mais vulneráveis da população.

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Para colaborar com a discussão, serão abordados autores chaves da fenomenologia e


da Gestalt-Terapia, bem como autores mais contemporâneos da psicologia em geral: Edmund
Hurssel, Martin Buber, Fritz Perls, Paul Goodman, Ralph Hefferline, Antonio Lancetti, Maria
Lucia Boarini e Letícia Vier Machado.

MÉTODOS

A prática consistiu em intervenções em campo que ocorreram semanalmente, nos dias


de quarta-feira, no período de outubro a dezembro de 2017. As atividades iniciavam-se por
volta das três horas da tarde e finalizavam por volta das seis horas da noite, totalizando cerca
de três horas de atuação. Algumas atividades utilizavam objetos lúdicos e educacionais, como
bolas, giz de cera, papéis, panfletos com informações sobre redução de danos, “lambes” com
direitos básicos e poesias, além de spray de graffiti pra intervenções artísticas. Porém, a
principal técnica utilizada foi a escuta, possibilitando interação e diálogo clínico e acolhedor,
mesmo que fora do ambiente oficial da clínica, como caracteriza a clínica “peripatética” de
Lancetti (2008).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O território da praça Magalhães é bastante inóspito, com a arquitetura original


desvalorizada pela falta de investimento do poder público, o descaso tanto governamental
quanto da própria população é nítido. Os cerca de dez habitantes que ali se encontravam, na
época, organizavam suas “residências” de maneira improvisada no canal localizado atrás da
praça. De ambos os lados do esgoto a céu aberto espalhavam-se compensados de madeira que
se apoiavam aos muros no objetivo de proteger e possibilitar uma mínima privacidade aos
seus moradores. Em cada compensado encontrava-se um indivíduo ou um casal e, não raro,
animais domésticos como cachorros ou gatos.
Apesar de uma presença relativamente grande de pessoas em situação de rua no
espaço, apenas três estabeleceram uma participação constante no projeto. Um casal que
representa certa liderança no território, inclusive sendo o pilar principal na mediação conosco,
e João, o sujeito anteriormente mencionado. João apresentava dificuldades locomotoras
devido a uma lesão na perna, e também um comprometimento na fala, ocasionado por anos de
consumo abusivo de drogas. A fala praticamente incompreensível, de início, apresentou-se
para mim como um grande empecilho para o estabelecimento de diálogos.
O primeiro contato ocorreu dia dezoito de outubro e consistiu em uma prática
introdutória, apresentações pessoais dos presentes, explicação do projeto e uma preparação de
planos para as atividades seguintes, com sugestões do próprio público-alvo, a respeito de
quais atividades mais lhe agradariam. Nessa mesma tarde, porém, outro participante do
projeto não designado para aquele território, Armando Mendonça, participou conosco. João e
Armando se reconheceram sem demora, ambos já se conheciam anos antes, quando João
costumava ficar pelas ruas perto da casa de Armando, criando laços com esse e sua família.
Nessa conversa, João demonstrou uma excelente memória de tempos há muito distantes, além
de uma capacidade de interação surpreendente.

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A partir da observação da relação entre ambos, despertou-se em mim um interesse


em desenvolver uma relação com João, que geralmente aparentava estar distanciado do grupo,
com a garrafinha de cola sempre ao seu lado. Nosso primeiro contato mais profundo ocorreu
em uma tarde atípica, havíamos preparado uma festa surpresa para um dos moradores da
praça. Quando convidei João para comparecer à praça para a festa, ele negou, talvez devido a
sua dificuldade de locomoção, resolvi então, sentar ao seu lado e tentei iniciar certa interação.
João, com suas vestes de segunda mão e há muito surradas pelo tempo, logo me alertou para
não sentar no chão para não sujar minha roupa. No chão daquela calçada, as nossas roupas
eram apenas mais um dos indicativos das inúmeras diferenças entre nós dois, resultantes tão
distintos de um mesmo centro urbano.
O fenomenólogo Martin Buber (1974) aborda a relação Eu x Tu, apontando as
distinções entre dois sujeitos e o reconhecimento destas como condições essenciais para o
estabelecimento de uma relação. Não é possível relacionar-se verdadeiramente com o igual,
pois não há adição do novo elemento; é a estranheza que é fundamental para provocar
alteração em ambos os seres, mudando-os após a relação. Naquele momento, eu e o João
representávamos puramente esse conceito Bubberiano, nos permitindo conhecer nossas
distinções.
A conversa fluía de maneira natural, João falou muito sobre a sua trajetória de vida,
relembrou com carinho figuras marcantes e mencionou o uso precoce de substâncias
psicoativas, desde os tempos da escola. Proveniente de uma família de baixa renda, com a
perda da casa, João foi para as ruas, assim como a mãe e o irmão. Apesar de falar sobre
situações extremamente delicadas, ele se mostrava espirituoso e sorriu ao lembrar que dia sete
de setembro havia completado 35 anos; foi parar na rua aos 9. Me pediu para calcular há
quantos anos estava naquela situação e conseguiu terminar a conta antes de mim, achando
graça da minha falta de capacidade matemática.
Senti, ao demonstrar claramente minhas dificuldades em cálculo, o surgimento de
uma aproximação entre nós, me tornei mais humana ao começar a expor também meus
defeitos, desmontando, pouco a pouco, as barreiras que afirmavam constantemente uma
hierarquia social culturalmente imposta. Quando eu tive que me afastar e me unir ao grupo
para a festa de aniversário, mais uma vez lhe fiz o convite para juntar-se a nós, mais uma vez
ele recusou. Optei por não insistir, a lesão na perna parecia séria e eu nunca tinha visto ele
caminhar. Tempos depois, enquanto enchíamos os balões e confraternizávamos com os outros
moradores, percebi João em pé, na esquina do canal, observando. Fiquei surpresa ao vê-lo ali
e me aproximei para ajudá-lo, oferecer apoio para caminhar, atravessar a rua e acomodar-se
junto a nós. Naquela tarde, ele tomou suco, comeu bolo e cantou parabéns conosco.
Posteriormente, ao final daquela atividade, já quando retornávamos para casa, um dos
profissionais do Consultório na Rua comentou sobre como era raro João sair da calçada em
que geralmente estava sentado. Percebi, então, que nosso objetivo havia realmente se iniciado.
O simples caminhar de João ao nosso encontro não era algo ordinário ou irrelevante, indicava
muito mais. Demonstrava a importância daquele encontro, capaz de fazê-lo alterar sua
atividade cotidiana e ir ao nosso destino, não por obrigação, mas por livre e espontânea
vontade, fazendo valer toda a sua autonomia e capacidade de escolha. Iniciávamos,
propriamente, o contato.

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Para a Gestalt-Terapia, abordagem psicológica com base na fenomenologia, o


conceito de contato apresenta intensa relevância, por se tratar da interação do Ser com o
mundo (ambiente, objeto ou outros sujeitos). Para isso, é necessário estar aware, ou seja,
consciente de si, e assim assimilar a novidade, de modo que se altera o indivíduo inicial
(PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997). Outro ponto primordial do contato é a
realização da epoqué. Conceito elaborado pelo teórico Edmund Husserl (1929) que consiste
na abstenção dos meus próprios valores e concepções pré-formados, para assim, apreender o
fenômeno tal como se apresenta no momento. Considerando esses referenciais técnicos, é
possível constatar que eu e João apresentávamos comportamento fenomenológico de maneira
espontânea, superando o distanciamento e os prejulgamentos iniciais, para gradualmente
elaborar uma relação dialógica. O fenômeno nascendo e expondo-se cotidianamente.
Durante as tardes que interagimos, nossa relação estruturou-se e mostrou-se cada vez
mais forte, com pequenas demonstrações de confiança de ambas as partes, explicitando o
surgimento do vínculo entre nós. João começou a interagir mais com o grupo como um todo,
e sempre conversava comigo por muito tempo. Quando chegávamos ao território, era
frequente que ele me convidasse para sentar ao seu lado e, assim, conversávamos por longos
períodos.
Em uma tarde específica, levamos lápis e papéis coloridos para desenvolver uma
dinâmica. Éramos poucos, sem o apoio do Consultório na Rua, os presentes além de mim
eram apenas meu parceiro de equipe, João e outra moradora. A ideia era livre produção, cada
um poderia desenhar ou escrever o que quisesse, enquanto dialogávamos vivências pessoais e,
conforme se desenvolveu, a própria relação com as drogas. João optou por não desenhar,
talvez tivesse dificuldades locomotoras também nas mãos, mas permaneceu para conversar
conosco.
A tarde seguiu calma, com cores e desenhos espalhados pelo chão cinza e as mais
diversas histórias de vida narrando cada traço. Em uma folha de papel amarela desenhei João
usando uma blusa do Remo, seu time de futebol paraense, e ao seu lado, uma gatinha
malhada, preta e amarela, que insistia em ficar perto dele, mesmo sob suas reclamações
constantes. Entreguei a ele na hora da despedida, entretanto, como João estava em um
momento de consumo, aceitei a princípio que o desenho iria se perder.
Na semana seguinte, senti que João e eu aprofundamos nosso vínculo com uma
conversa mais verdadeira acerca do consumo. Ele me contou suas experiências de uso e suas
vivências na rua, sempre repetindo que não ia mentir. Procurei criar uma escuta imparcial,
praticando a epoqué e buscando ao máximo evitar julgamentos e pré-concepções. Apenas
agradeci o compartilhamento e disse que ele era a única pessoa que podia decidir por si.
Autonomia. João demonstrou curiosidade sobre o meu tempo de trabalho e minha idade, ficou
surpreso quando eu afirmei dúvidas sobre minha vontade de casar ou ter filhos. Ao final da
conversa, afirmou que acreditava que tudo isso aconteceria comigo, mas que apenas eu
decidia por mim.
Eu soube então que ele estava compreendendo, que juntos estávamos criando um
vínculo e, a partir dessa relação, modificando nossa própria existência enquanto sujeitos,
exatamente como afirma a fenomenologia e a Gestalt-Terapia. Conversávamos sobre escolhas
e decisões individuais, valorizando a autonomia de cada um para conduzir sua vida, seja nas
ruas ou na universidade. João se apresentava cada vez mais lúcido a cada momento de

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conversa, ainda que continuasse fazendo uso de substâncias consideradas ilícitas. Sua fala e
sua movimentação indicavam uma melhora, ainda que ínfima, ocasionada pela “simples”
interação com um grupo que se dispôs a enxergá-lo, a considerar a sua existência, também,
humana.
Desde então, nunca mais o vi. Na semana que se seguiu, ele não se encontrava no
território, mas, conversando com outra moradora, soube que ele havia pendurado meu
desenho no lugar onde dormia. Não deixava ninguém arrancar. Tive certeza da criação do
vínculo e da importância pessoal do trabalho que o projeto estava produzindo. Vidas estavam
sendo afetadas, inclusive a minha. Depois, eu descobri. Em uma noite no território, João levou
um tiro.
A história nunca se esclareceu completamente. Dois sujeitos em uma moto, um único
tiro sem destino certo. A demora para conseguir transporte ao hospital. O sangue marcando a
calçada do canal. Eu não sei até hoje o seu estado, fontes me disseram que ele faleceu, outros
me disseram que melhorou e passa bem. A única coisa que eu sei, é que, morto ou vivo, João
foi, desde a infância, mais uma história produzida pelo sistema excludente que nos comanda.
Que contextualiza as pessoas na miséria, praticamente produzindo seus crimes, para depois
condená-las a uma vida de incompreensão e apagamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu fui modificada pela nossa breve, porém importante, interação. Conhecer João e me
permitir ser conhecida, possibilitou a ampliação da minha visão de mundo, além de me
proporcionar conhecimentos que não se encontram em minha graduação. Foi uma experiência
precoce a nível de período em meu curso, estava, na época, no segundo semestre apenas. No
entanto, ou, talvez por ter sido inicial, a partir dela consigo identificar necessárias alterações
na atual forma do curso de psicologia e, talvez, da Universidade de forma geral.
Atualmente, academia e comunidade permanecem distantes, separadas por uma
barreira cruel e invisível. O que se produz nas Universidades dificilmente é compartilhado e o
conhecimento das ruas é desvalorizado. A bolha intelectual formada pelos que possuem o
conhecimento nunca vai ser eficaz para promover as mudanças sociais que urgem diariamente
do lado de fora dos muros da sala de aula.
Em experiências como essa é possível reconhecer que a técnica é de grande relevância
e extremamente necessária, entretanto, é a relação que se forma que é capaz de fazer a
diferença. Não basta formar profissionais que dominem plenamente os conteúdos didáticos, se
os mesmos não serão capazes de olhar nos olhos do Outro, enxergar e valorizar o Ser Humano
que ali se faz presente. Matérias práticas, que coloquem o discente em contato e em
verdadeiro exercício da sua futura formação apresentam mais eficácia do que a absorção
passiva de conhecimento e precisam ser constantemente reelaboradas para atender as
demandas de uma sociedade que é mutável.
Abordando, especificamente o curso de Psicologia, acredito na importância de uma
formação contextualizada, que trabalhe com o plano existencial amplo do sujeito como Ser
vivente. A psicologia contemporânea, em muito, ainda realiza um “corte”, pensa o sujeito
como ser isolado, provocando grandes equívocos. Acredito na importância de uma formação
mais voltada para o aspecto comunitário, integrada com as mazelas e problemáticas do

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contexto regional. A estrutura do estado do Pará, da cidade de Belém, as dinâmicas indígenas,


quilombolas, a população de rua, ondas de machismo, homofobia, racismo. Todos são tópicos
relevantes para a Saúde Mental do povo paraense e que, portanto, deveriam ser debatidos a
fundo, contribuindo para o nascimento de profissionais atualizados.
A própria estrutura clínica também já se denota ultrapassada. O campo de atuação do
psicólogo é amplo e, como tal, para isso os discentes devem ser preparados. Não há um local
específico e único para ocorrer a psicoterapia, a escuta dialógica pode, inclusive, estabelecer-
se nas ruas, a céu aberto, como vimos aqui. Segue-se a linha da clínica peripatética, como
menciona Antonio Lancetti (2008), em alusão aos alunos de Aristóteles que filosofavam
enquanto caminhavam. Assim, também, pode se dar a intervenção psicoterápica, caminhando,
em qualquer lugar; basta, para isso, um profissional disposto a tal.
Focando, agora, na minha experiência pessoal, consigo identificar um aumento
significativo em meu repertório teórico; conheci conceitos e tive a oportunidade de aprender
diretamente com Mestres que me foram de grande estima, dentre outros, Domiciano Siqueira
(fundador da Associação Brasileira de Redução de Danos) e Cristiano Viana (psicólogo
atuante na região da cracolândia, em São Paulo). Além, claro, da convivência e aprendizado
com meus próprios colegas de projeto. A todos sou profundamente grata.
Com isso, concluo que jamais outra situação acarretaria os mesmos efeitos. A relação
só se produz daquela forma uma única vez, qualquer mudança em algum elemento acarretaria
em resultados diferentes. Portanto, ao olhar em retrospectiva, sei que cada aprendizado foi
possível por cada participante e evento realizado nesse projeto. Em relação especificamente
ao encontro dialógico abordado nesse relato, reitero que os participantes foram de suma
importância. Era necessário que, naquelas tardes paraenses, os corpos presentes naquela
calçada fossem o meu e de João, era necessária a nossa disposição para realizar o encontro e
alcançar todas essas mudanças pessoais minhas (e espero que mudanças dele também). Por
isso e por muito mais, lhe agradeço. Para sintetizar a importância de nós, como sujeitos dessa
relação, finalizo com a famosa frase de Michal de Montaigne: “Porque era ele, porque era eu.”

REFERÊNCIAS

BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo, Editora Moraes, 1974. 2018

HUSSERL, E. A Conferência de Paris. Lisboa: Edições 70, 1929.

LANCETTI, A. A clínica peripatética. 3. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2008.

MACHADO, L. V.; BOARINI, M. L. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução


de danos. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 33, n. 3, p. 580-595, 2013

PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-Terapia. 3. ed. São Paulo: Summus,
1997.

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Encontro de TEMA
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e Fenomenologia

Eixo - Fenomenologia e Educação


Relato de Experiência

A PRÁTICA DO PROJETO CUIDANDO DO MESTRE DA PRIMEIRA INFÂNCIA


EM UM CMEI DE PETROLINA – PE: ALINHAMENTO AS PERSPECTIVAS
“HEIDEGGERIANAS”.

Clara Maria Miranda de Sousa. E-mail: claradassis@gmail.com.


Mestra em Educação, UPE. Graduanda em Psicologia, Univasf
Jermyson Guimarães de Souza. E-mail: Jermyson99guimarães@gmail.com.
Graduando em Psicologia, Univasf
Marcelo Silva de Souza Ribeiro. E-mail: mribeiro27@gmail.com.
Doutor em Educação / Professor, Univasf

Palavras-chave: autocuidado; educação infantil; fortalecimento institucional.

INTRODUÇÃO

Ao discutir cuidado, temos a possibilidade de visualizar acerca da essência do humano


enquanto ser-no-mundo que, conforme Heidegger (2005), se mostra em suas ações pela
maneira de cuidar. Assim, há a expansão de que cada ser sendo cuidador de si, possa se lançar
ao cuidado na realidade onde se encontra. O presente resumo, portanto, se propõe apresentar
e tecer considerações sobre o desenvolvimento do Projeto Cuidando do Mestre em um Centro
Municipal de Educação Infantil (CMEI) na cidade de Petrolina – PE, via um relato de
experiência, em que teve como proposta fundamental vivenciar momentos de autocuidado
com professoras da educação infantil. A CMEI é uma das cinco escolas de primeira infância
que foram atendidas pelo projeto, através de uma parceria entre Universidade Federal Vale do
São Francisco (Univasf) e Secretaria Municipal de Educação entre os anos de 2017 e 2018.
Na educação infantil, o (a) professor (a) está constantemente envolto(a) às crianças na
dimensão relacional e educativa. Desse modo, o (a) professor (a) acompanha o
desenvolvimento e as transformações das crianças ocorridas cotidianamente, tendo as práticas
de cuidado como atitudes fundantes de seu fazer docente (MONÇÃO, 2017). Esse
profissional cuida e zela por cada criança e em cada minuto do exercício educacional, mas
esse professor mantém momentos de autocuidado para melhor cuidar dos outros?
Em pesquisas como a de Martins et al. (2014) observa-se que foram analisados o
processo de trabalho de 194 professores da educação infantil em uma cidade do Rio Grande
do Sul, e que fora percebido a presença de um grupo significativo manifestando riscos de
adoecimento por conta do envolvimento com as pessoas vinculadas ao trabalho, sejam elas
crianças ou colegas de profissão, de maneira a causar mal-estar. Outro estudo pertinente é o
desenvolvido por Ferreira e Pereira (2012), em que, pela vivência de um grupo focal com
professores da educação infantil, os autores pontuaram que há mal-estar pelas precárias

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condições de trabalho e recursos, pela desvalorização profissional, pela sobrecarga de


atividades e pela falta de recursos para o bom desenvolvimento docente.
Revela-se, portanto, a importância de refletir sobre o cuidado, sobretudo no contexto
da educação infantil, por ser uma área em que muito há descaso de políticas públicas para
com o bem-estar desses profissionais. Conforme isso, compreendemos que não somente o
professor(a) da educação infantil deveria ser contemplado, mas que de algum modo se
envolvesse toda a equipe de profissionais presente na escola. Assim, entendemos que o
cuidado implica todos os atores da escola, de modo que juntos promovam um espaço mais
afetivo e de convivência equilibrada (BOFF, 1999; FREIRE, 2003).
O Projeto Cuidando do Mestre teve como proposta o acompanhamento em
autocuidado com os professores que estão junto às crianças de 0 a 5 anos. Aos poucos,
compreendeu-se, no contexto da CMEI, a necessidade de que os funcionários serem cuidados,
poderiam repercutir na qualidade das relações da equipe, aperfeiçoando, assim, o trabalho
educativo desenvolvido com as crianças. As atividades do projeto incluíram todos os
profissionais com o intuito da experimentação do bem-estar, melhorando a convivência e
possibilitando que o cotidiano fosse ainda mais marcado pelo cuidado.
Observou-se que o Projeto Cuidando do Mestre da Primeira Infância, junto com as
articulações internas da equipe gestora, conseguiu tornar a escola uma comunidade de
cuidado, entendendo que cada funcionário, seja professor (a) ou outro profissional é um
educador do cuidado, capaz de promover mais ânimo nas práticas cotidianas em meio às
dificuldades em que a escola é assolada pela realidade, seja a nível político, quanto social e
econômico.

O JEITO DE FAZER

Como método para articulação do Projeto Cuidando do Mestre da Primeira Infância, o


CMEI contou com a colaboração de dois estudantes do curso de Psicologia – Univasf. Tais
estudantes realizavam visitas semanais no CMEI, tendo como atividades momentos de escuta
com as professoras e o desenvolvimento da oficina em autocuidado realizada uma vez por
mês. Para tanto, foram utilizados como dispositivos de levantamento de informação: ficha de
levantamento inicial da realidade, buscando informações sobre a composição da equipe
gestora, equipe pedagógica, as turmas atendidas pelo CMEI, nível de formação dos
profissionais, média de famílias atendidas, estrutura física da escola, levantamento histórico
da escola, se houve afastamento de funcionários por conta de questões de saúde e se havia
momentos coletivos relacionados às práticas de cuidado com os funcionários. No dispositivo
de intervenção, que foram os momentos das oficinas em autocuidado, foram vivenciadas
técnicas grupais e escuta. Por fim, foi provocada a elaboração de um plano de autocuidado
para que, após a realização do projeto, os participantes pudessem ter autonomia dando
continuidade ao autocuidado.
Para o desenvolvimento do projeto descrito, os estudantes dialogavam com a equipe
gestora com o intuito de encontrar modos de alcançar a todos os profissionais da escola.
Outras maneiras de incorporar a perspectiva do cuidado no cotidiano escolar a nível prático e
reflexivo foram às atividades mediadas pela equipe gestora nos momentos de planejamentos
pedagógicos e em datas comemorativas. Utilizou-se como registros para apresentar essa

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experiência os diários de campo dos estudantes de psicologia, os relatos da equipe gestora e o


processo avaliativo junto a todos os funcionários (professoras, auxiliares, assistentes de
educação especial, auxiliares de serviços gerais e merendeiras), quanto ao Projeto Cuidando
do Mestre da Primeira Infância na CMEI.

PASSOS DO PROJETO

O Projeto Cuidando do Mestre da Primeira Infância chegou no CMEI no mês de março


de 2018. A contemplação dessa escola para a incorporação no projeto se deu pela escolha da
Secretaria Municipal de Educação. Desse modo, dois estudantes do curso de Psicologia –
Univasf articularam o projeto, através de atividades como: momentos de escuta com as
professoras e funcionários da escola, desenvolvimento de uma oficina em autocuidado a cada
mês e apoio nas ações educativas que fizessem referência ao cuidado, a exemplo da Festa da
Família. Como contrapartida, a equipe gestora (gestora e coordenadora) pensou e propôs
ações quanto ao cuidado para melhorar ainda mais as práticas cotidianas junto às crianças
atendidas pela escola.
Heidegger (2005), ao tratar de cuidado, indica que, para que seja verdadeiramente
efetivo, deverá haver abertura. Enquanto ser-no-mundo mobilizamos via a nossa presença
ações que promovam cuidado. Através da contribuição da equipe do CMEI, o modo de cuidar
pôde ser desvelado, percebendo a potencialidade da comunidade escolar, sendo um
processo contínuo a todo tempo, não necessariamente vivenciado somente quando os
estudantes estivessem no espaço da escola, mas que a equipe tentava dar continuidade
ao processo.
No primeiro momento, os estagiários do projeto buscaram informações acerca da
realidade da escola, compreendendo e pensando o desenvolvimento dos momentos coletivos e
como poderiam se inserir no cotidiano. Constatou-se que o projeto manteve o respeito ao
tempo da escola e o processo de diálogo com a equipe gestora. Assim, Freire (2015) ao falar
de autonomia em meios educacionais nos indicar que o diálogo e o respeito para com o tempo
e o ser são maneiras diversas de cuidar.
Em cada semana os estudantes visitavam o CMEI e junto a equipe gestora foi
pensando em como o projeto poderia ser desenvolvido, levando sugestões e acolhendo as
ideias da equipe participante. Ao longo dos meses, os estudantes construíram vínculos com a
equipe e aos poucos foram elaborando um trajeto em que o projeto se moldou no próprio jeito
da comunidade escolar
As oficinas de autocuidado foram realizadas mensalmente com toda a equipe da
CMEI, tendo a participação de cerca de 30 pessoas. Na primeira oficina, a equipe teve contato
com práticas da Análise Bioenergética que objetivou o autocuidado através de movimentos
corporais. Em outras oficinas foram vivenciadas dinâmicas grupais, momentos de estimulação
da criatividade e técnicas para desenvolver as relações consigo mesmo, com o outro e com o
mundo. Paralelo as oficinas, a equipe gestora articulou momentos de cuidado como o
“Correio Amigo”, em que todas as pessoas se tornaram cuidadores uns dos outros e se
sentiram cuidados através de bilhetes e algum afeto expressado no cotidiano escolar.
No início da implantação do projeto Cuidando do Mestre, nesse CMEI, foram
percebidos que nem todos os funcionários participaram dos primeiros momentos coletivos.

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Assim, aqueles que estiveram presentes nas oficinas foram convencendo os demais e
juntos acabaram por perceber que o autocuidado se dava também em uma dimensão coletiva,
de modo que, para o outro se sentir bem haveria de se construir um contexto (pessoa e meio)
alinhado ao processo de harmonia, de zelo e atenção como o cuidado suscita a ser vivenciado
por todas as pessoas onde quer que estejam.
Por ser uma primeira tentativa, vemos que conseguimos resistir aos desafios
inicialmente apresentados pela novidade que o projeto trouxe, e nos sentimos apoiados no
aspecto formativo quanto ao cuidado. A equipe do CMEI se tornou uma das escolas pioneiras
em projetos como o do Cuidando do Mestre da Primeira Infância que destina momentos para
reflexão e formação em autocuidado para com a equipe (professoras, auxiliar de sala,
assistente em educação especial, auxiliares de serviços gerais e merendeiras).
Ao todo foram vivenciados 05 (cinco) momentos destinados as oficinas de
autocuidado, sendo cada encontro realizado no tempo de 4 horas. Os estudantes de Psicologia
da Univasf, vinculados ao projeto, estiveram no cotidiano da escola orientando sobre o
autocuidado das professoras e também dos funcionários que se aproximavam. E aos poucos a
perspectiva de cuidado foi tomando o cenário escolar na relação junto as crianças atendidas
pelo CMEI, possibilitando a vivência de bem-estar, relações afetuosas para consigo e com o
outro e atividades de práticas de autocuidado nos momentos vivenciais do fazer docente.
Em conformidade a tal perspectiva, Martins (1992 apud KARLMEYER-MERTENS,
2008), ao falar de cuidado dentro das questões educacionais, compreende que tal ideia, que
parte da essência do próprio ser, deverá ser o orientador do currículo, abrindo-se ao horizonte
das diversas possibilidades de ser-no-mundo. Com isso, todos participaram do Projeto
Cuidando do Mestre na relação e convivência mais harmoniosa no cotidiano escolar, seja
através da presença efetiva nas oficinas ou em outros momentos.
As professoras participantes do projeto puderam se tornar multiplicadoras do
autocuidado, já que inseriram em seu fazer docente, levando as crianças a conhecerem sobre
si, o outro e o mundo através do cuidado. O projeto, mediante o apresentado e discutido, não
somente visou a realização das oficinas de autocuidado, mas a formação efetiva com e pelo
cuidado, indicando incorporar uma tomada de consciência de que a atenção, a preocupação
para consigo e com o outro é um acontecimento vital para o bem-estar. Para Heidegger
(2005), os gestos que expressem zelo ou responsabilidade seja para consigo, como pelo outro
estaria na margem da preocupação de ser-no-mundo-com-os-outros. Então, o autocuidado
envolve o estado voltado para si mesmo, conhecendo-se, percebendo seus limites para melhor
estar com o outro na ajuda mútua em cuidar e ser cuidado.
Desse modo, aos poucos houve o compromisso de dar continuidade as atividades
relacionadas ao cuidado para com toda a equipe, mesmo após a finalização do projeto. Assim,
houve reciprocidade em entender que o cuidado se dá a todo momento. O que o Projeto
Cuidando do Mestre realizou foi o despertar quanto ao autocuidado, como diria Heidegger
(2005) em que perpassa as várias dimensões de ser.

CONSIDERAÇÕES

O cuidado está presente em todas as pessoas, compreendendo que não somente o


professor que está em sala de aula, mas toda a equipe se torna também educadora junto as

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crianças presentes na escola. Foi o que propomos relatar nessa experiência quando
observamos os impactos na equipe gestora, nas expressivas comunicações de cada pessoa que
e no aperfeiçoando qualitativo das relações grupais.
Portanto, entende-se que cada pessoa tem um tempo e que necessita de paciência e
abertura para que um projeto inovador consiga alcançar a toda equipe e, consequentemente,
melhorando o trabalho prático com as crianças atendidas pela CMEI. Mas, entre tentativas,
desafios e coragem, o cuidado vai ganhando seu espaço de centralidade para que cada pessoa
pertencente a equipe escolar sinta-se valorizada e cuidada.
Ao ter o filósofo do cuidado, Martin Heidegger (2005), como um dos autores que mais
nos indicaram maneiras de compreender o autocuidado envolvido no cotidiano educacional,
percebemos que, pelo acompanhamento promovido do Projeto Cuidando do Mestre para com
o CMEI, possibilitamos trazer à tona comportamentos e percepções de si e do outro,
contribuindo para o crescimento mútuo da rede de relações saudáveis que respeita a
particularidade e o jeito de ser de cada um, dedicando-se a dar significado a existência pessoal
e daqueles que estão ao redor.

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética da humana compaixão pela terra. Petrópolis, RJ:
Vozes; 1999.

FERREIRA, Mônica Baldiotti Campolina; PEREIRA, Marcelo Ricardo. O mal-estar


docente na Educação Infantil. Anais 9, Col. LEPSI IP/FE-USP. São Paulo: USP, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30. ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2015.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. 15. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Heidegger e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2008.

MARTINS, Maria de Fátima Duarte et al. O trabalho das docentes da Educação Infantil e o
mal-estar docente: o impacto dos aspectos psicossociais no adoecimento. Cad. psicol. soc.
Trab., São Paulo, v.17, n.2, p. 281-289, 2014.

MONÇÃO, Maria Aparecida Guedes. Cenas do cotidiano na educação infantil: desafios da


integração entre cuidado e educação. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 43, n. 1, p. 161-176,
jan./mar. 2017.

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Eixo - Fenomenologia e Educação


Relato de Experiência

EDUCAÇÃO INFANTIL E CORPOS (RE) CONHECIDOS:


PRÁTICA INTERVENTIVA COM EDUCADORAS E CRIANÇAS

Clara Maria Miranda de Sousa. E-mail: claradassis@gmail.com.


Mestra em Educação, UPE; Graduanda em Psicologia, UNIVASF
Vanessa Melo da Silva. E-mail: vanessamelope2010@gmail.com.
Graduanda em Psicologia, UNIVASF

Palavras-chave: educação infantil; corpo; desenvolvimento.

INTRODUÇÃO

Nesses últimos anos, a infância tem suscitado imensas discussões de modo


significativo. Pode-se sinalizar para a preocupação mantida para o trabalho com crianças
pequenas, especificamente as que correspondem à idade entre 0 e 6 anos, considerados por
muitos como momento primordial para o desenvolvimento humano. Merleau-Ponty é um dos
pensadores da fenomenologia que propiciou uma discussão relacionada à infância, afirmando
que as crianças devem ser compreendidas por elas mesmas e não por teorias sobre elas. O
retorno à criança para Merleau-Ponty seria conhecê-las no que elas nos dizem, no modo como
brincam ou até mesmo em seus silenciamentos do aqui e agora (MERLEAU-PONTY, 2006).
Desse modo, através da disciplina Teorias e Processos de Desenvolvimento e
Aprendizagem, duas estudantes do curso de Psicologia da Universidade Federal Vale do São
Francisco (UNIVASF) tiveram a condição de desenvolver momentos junto a crianças e
educadoras de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) na cidade de Juazeiro-BA,
em que teve como centralidade o corpo como principal instrumento de reflexão com o mundo
da vida. Tal intervenção foi realizada com proposta reflexivo-prática no período de fevereiro a
março de 2019, utilizando dos espaços e tempos favoráveis ao processo interventivo,
implicando-se no cotidiano e dialogando junto às educadoras estratégias que mobilizassem
para o trabalho quanto à corporeidade com as crianças atendidas pela EMEI.
Foram desenvolvidas com as educadoras da escola momentos de consciência corporal,
para que aos poucos fossem vivenciadas em sala de aula de maneira simples e possível.
Posteriormente realizou-se espaços de (re)conhecimento corporal junto às crianças e
educadoras no cotidiano escolar, mediado pelas estudantes de Psicologia. Para tanto, além da
articulação das ideias de Merleau-Ponty, nos baseamos nos quatro pilares da educação,
segundo Delors (2012), os quais se apresentam separadamente, mas se constituem em apenas
um, como uma teia, haja vista o seu inter-relacionamento e o seu mútuo comprometimento:
aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

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Compreende-se assim que a fenomenologia, conforme traz Machado (2013), não é


uma fórmula pronta e acabada, mas um modo de pensar a ação no mundo da vida. A prática
desenvolvida na EMEI junto às crianças e educadoras (professoras e auxiliares de sala) visou
possibilitar o espaço de tomada de consciência corpórea, deixando-as se expressarem com o
mundo-corpo que permeia a sua realidade. Para tanto, a prática com as crianças e as
educadoras da EMEI permitiu o olhar no aspecto da liberdade de sentir e de trazer sentido por
meio do corpo que traz em si a imaginação, os pensamentos, as narrações do viver e
especialmente o processo de ser, no entrelaçamento do tempo histórico vivido.
O corpo em várias das obras de Merleau-Ponty vem ser o sinal visível do estar no mundo,
enquanto sujeito encarnado com a possibilidade de escolher e refletir essa presença com os
outros pela liberdade e temporalidade. A liberdade pelo fato de possibilitar descobertas e
exploração de conhecimento de si e do outro. E a temporalidade pelo modo de projetar as
relações e as experiências com os outros pelos sentidos que vão sendo dados em cada
momento da vida (MERLEAU-PONTY, 2006; 1999; NÓBREGA, 2007).
A criança na visão de Merleau-Ponty (2006) tem a consciência própria em processo de
transformação pelo corpo. Chama-se com isso, a atenção para os profissionais que trabalham
com a infância no intuito de reconhecer a diversidade trazida pela criança em seu estado de
criação de si mesma. Nas palavras de Freire (1991), o corpo, inevitavelmente mortal, não está
morto. E sem ele nada se pode fazer aqui onde habitamos. Somos locomotores. Diferentes dos
vegetais que, onde nascem, permanecem. Não conhecemos a fotossíntese. Somos seres
motores, corpos locomotores.

Desse modo, entendemos que o processo de trabalho/vivência com práticas corporais na


educação infantil visa qualificar a percepção em prol da propagação do avanço nas
ações/interações do ser humano no mundo. Merleau-Ponty (1999, p. 551) trata que “a
percepção se dá com o tempo”. Através das relações com as outras pessoas, a criança vai se
desenvolvendo e agregando sentidos ao seu existir, tendo a expressão de ser por meio do
corpo. Assim, o corpo na educação infantil não pode ser pensado como máquina, com funções
repetitivas, mas, sim, na sua relação com outras dimensões, como a emocional, a mental, a
estética, etc., ou seja, considerar o ser humano como uma totalidade.

MÉTODO

O campo da prática foi uma escola de educação infantil, localizada em um bairro


periférico da cidade de Juazeiro-BA, sendo pertencente à Rede Pública Municipal. A escola
funciona nos períodos matutino e vespertino, com atendimento a cerca de 250 crianças, de
idade entre 0 a 5 anos, ambas não somente pertencentes ao bairro em que está localizada, mas
também de bairros circunvizinhos. A escola possui uma equipe administrativa composta por
gestora, secretária, duas cozinheiras, duas assistentes de serviços gerais e dois porteiros, além
da equipe pedagógica com uma coordenadora pedagógica, dez professoras e quatro auxiliares
de sala. O prédio tem um estilo padrão do Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição
de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância), instituído
pela Resolução nº 6, de 24 de abril de 2007, tendo sido financiado pelo governo federal
através de parceria com o município.

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A prática interventiva foi realizada em uma escola municipal de Educação Infantil em


Juazeiro - BA, com cerca de 14 educadoras (professoras e auxiliares de sala) e 05 (cinco)
turmas de crianças entre 4 e 5 anos, totalizando-se 125 crianças, todas do turno matutino que
ficam em horário parcial. A prática desenvolvida foi subdividida em três momentos:
inicialmente realizada discussão e prática de aporte teórico e do fazer da experiência, com as
educadoras da escola, acerca da corporeidade das crianças de 0 a 5 anos. No segundo
momento foram realizadas atividades de percepção corporal de si e dos outros com as
crianças no espaço educacional através de: jogos, dinâmicas e discussão sobre a consciência
corporal. No terceiro momento, foi avaliado com as crianças e educadoras quais as
contribuições trazidas pela prática realizada, através de relatos orais. Todo o processo foi
registrado em diário de campo das estudantes de psicologia da Univasf, para avaliarem e
aperfeiçoarem as práticas de tomada de consciência corporal dos participantes seja educador
ou criança.
Toda a prática teve como embasamento as ideias relacionadas à psicologia e pedagogia
da criança e a fenomenologia da percepção articulada por Merleau-Ponty (2006;1999). Em
cada momento, houve um planejamento prévio, estando sempre abertas ao aqui e agora
propiciado no estar-junto com as educadoras e crianças da escola.
Foram realizados dois encontros com as educadoras da escola, utilizando-se do tempo
relacionado aos planejamentos pedagógicos, com duração de 1 hora e 30 minutos. Assim
como desenvolvido 05 momentos junto às crianças e educadoras através de técnicas práticas
que explorassem as várias dimensões da corporeidade, tanto de maneira individual quanto em
grupo. Para tanto, foram negociados com as educadoras a inserção no cotidiano das
atividades a serem planejadas. Por fim, as atividades foram avaliadas por meio de relatos
orais, pelo grupo de educadores e considerado a fala das crianças após cada momento
realizado com as mesmas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Pelo corpo somos possibilitados de compreender o mundo vivido em suas várias


dimensões, sejam elas psíquicas quanto físicas. Pode-se considerar que na educação infantil,
todos os momentos são educativos, assim Merleau-Ponty (1999) contribui para entendermos
que pelo corpo apreendemos e damos significados às coisas, enriquecendo e reorganizando a
corporeidade. É importante que o professor que está cotidianamente junto à criança explore as
várias dimensões corpóreas, despertando a sensibilidade de entender o mundo vivido e
estabelecer nele conexão.
No primeiro encontro com as educadoras, discutiu-se em linhas gerais acerca do da
importância de que cada um tome consciência do seu corpo, para posteriormente melhor
desenvolver hábitos de percepção corporal com as crianças de seu cotidiano. Já no segundo
momento com as educadoras, foi explanado acerca da importância do corpo nas várias
atividades que envolvem a educação infantil, possibilitando maneiras inusitadas de promover
conhecimento. Nesses dois encontros, foram realizadas atividades práticas de tomada de
consciência corporal, desde a respiração até mesmo ao contato com o outro, podendo
posteriormente ser desenvolvidas as práticas com as crianças. Uma atividade que muito
chamou a atenção do grupo foi um momento em que em duplas, as educadoras deveriam se

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olhar por 5 minutos e depois disso falar uma qualidade que identificou na outra pessoa.
Muitas começaram a perceber aspectos que antes não tinham visto na convivência e relataram
ao grupo a importância de dispor de tempo para melhor conhecer a si e ao outro. Além de que
na reflexão avaliativa perceberam que sentiram dificuldade em ser olhada por outra pessoa,
mas que foi fácil olhar para a outra.
Foi sugerido o desenvolvimento prático no cotidiano da escola através da acolhida, em
que explicamos as educadoras que cada criança podia demonstrar afeto ao colega com algo
referente às gravuras (abraço, aperto de mão, bate aqui e viva) podendo ser fixadas em um
local visível nas salas.
Tais sugestões e explanações realizadas ao longo dos planejamentos pedagógicos
corroboram com o que Freire (2015, p. 196) afirma quando diz:

Nas minhas relações com os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível da
política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir de que devo “conquistá-los”, não importa a que
custo, nem tão pouco temo que pretendam “conquistar-me”. É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas,
na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas.

Desse modo, em todos os momentos junto às educadoras buscou-se propiciar


discussões em que contribuíssem para as suas práticas e não que fosse algo deslocado de suas
realidades. Merleau-Ponty (1999) convoca a conhecer a criança em seu próprio mundo, as
educadoras tiveram a possibilidade de refletir sobre a dinâmica pessoal e interpessoal entre
elas e com as crianças. Perceberam que pelo corpo poderiam se aproximar e conhecer um
pouco mais de si e dos outros ao seu redor.
As práticas junto às crianças foram desenvolvidas tanto em sala de aula como no pátio
da escola, explorando os vários lugares presentes e aprimorando as técnicas a partir de cada
turma. Buscou-se agregar a ludicidade, a brincadeira e os conhecimentos do mundo da vida de
cada criança para realizar os momentos coletivos. O brincar pode ser entendido como a
capacidade de criar da criança e está relacionado com as suas vivências. Toda brincadeira é
uma imitação transformada, no plano das emoções e das ideias, de uma realidade
anteriormente experienciada. No ato de brincar, os sinais, os gestos, os objetos e os espaços
valem e têm significado diferente daquele que aparentam ter. A brincadeira favorece na
criança a melhoria da autoestima e contribui para a interiorização de determinados modelos de
adulto, presentes nos diversos grupos sociais (CELANO, 1999).
Em cada turma fora vivenciada a prática em três momentos: 1) respiração,
aquecimento corporal, alongamentos e identificação de como estavam se sentindo. 2)
(re)conhecimento sobre o corpo através da identificação das partes e funções. 3) brincadeiras
de roda que possibilitassem a criatividade das várias dimensões corporais e encerrado com
uma música mais calma, para que após fosse feita breve avaliação de como as crianças
estavam se sentindo.
Através da ludicidade observamos nas crianças criatividade, sensibilidade, afetividade,
relacionamento mútuo, favorecendo o desenvolvimento de dimensões qualitativas no processo
de aquisição dos conhecimentos relativas ao corpo e à saúde.
Cada turma fora vivenciado de maneira bem subjetiva, pois cada criança tem um
tempo, assim como o grupo também precisa de paciência para ser integrado. Uma das

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crianças, de 5 anos, pediu para ensinar uma música que ele tinha recordado sobre as noções de
corporeidade “cabeça, ombro joelho e pé”. Para Merleau-Ponty (1990), a criança, ao
representar, amplia seu vocabulário, aproxima-se do outro, identifica-se com ele, sente-se
pertencente ao lugar e, logo, à comunidade, se diverte e exercita sua inteligência. Em outras
palavras, imitar é corporificar o outro e estar relacionado com o conhecimento e com o afeto
pelo outro. Percebe-se que “o movimento não é o pensar de um movimento, e o espaço
corporal não é um espaço pensado ou representado” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.192). Ou
seja, as práticas provocaram expansão corporal na dimensão de o aluno trazer a
espontaneidade e se reconhecer em uma dimensão criativa a ser vivida a todo momento.
A avaliação junto às educadoras e às crianças possibilitou perceber que a parceria
entre universidade e escola é sempre muito importante. Consideraram que a prática teve um
tempo curto e que muito gostaram da presença das estudantes de psicologia nas atividades
cotidianas e percebeu-se abertura para que fossem pesquisadas outras práticas por parte das
educadoras a serem exploradas no intuito de escutar mais a si e facilitar que as crianças
tomem ainda mais consciência do mundo vivido pela corporeidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática interventiva proporcionou uma experiência de parceria e troca entre as


educadoras e crianças, foi possível ter alguns momentos, que deram a oportunidade como
diria Merleau-Ponty (1999) de que o mundo é o lugar da experiência humana. Sendo assim,
uma educação que promova liberdade de se expressar, de conhecer por meio dos sentidos e
que explore as potencialidades pelo corpo, leva a uma construção subjetiva capaz de
(re)conhecer a si, para melhor estar com o outro.
A fenomenologia pensada por Merleu-Ponty, quanto aos aspectos da corporeidade,
sendo aporte teórico da prática com educadoras e crianças na modalidade da educação
infantil, levou a perceber que por meio de sensibilidade e entendendo que todos devem se
ajustar a um padrão, possibilita deixar transparecer a beleza de cada ser, do seu jeito, no seu
tempo e na sua consciência. As crianças se divertiram e aprenderam de forma lúdica e fluida,
desenvolvendo as várias dimensões corporais: desde a memória, a fala, o ritmo, até a
motricidade.
Portanto, a tomada de consciência corporal no viés “merleau-pontiano”, sendo
realizado na prática junto com as educadoras e crianças se mostrou elemento essencial no
(re)conhecimento dos corpos, podendo ser inserido na rotina e agregando aos componentes
norteadores do currículo.

REFERÊNCIAS

CELANO, S. Corpo e mente em educação: uma saída de emergência. Petrópolis: Vozes,


1999.

FREIRE, J. B. De Corpo e Alma: O discurso da motricidade. São Paulo: Summus, 1991.

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II Ciclo de Debates sobre Pesquisa fazer crítico e social da prática e da pesquisa
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DELORS, J. (org.). Educação um tesouro a descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão


Internacional sobre Educação para o Século XXI. 7. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2012.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51.ed. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 2015.

MACHADO, M. M. Fenomenologia e Infância: o direito da criança a ser o que ela é. Revista


Educação Pública, Cuiabá, v. 22, n. 49, p. 249-264, 2013.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MERLEAU-PONTY, M. Psicologia e pedagogia da criança. São Paulo: Martins Fontes,


2006.

NÓBREGA, T. P. Merleau-Ponty: o filósofo, o corpo e o mundo de toda a gente! In:


Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 2007. Recife. Anais... CD-ROM. Disponível
em: http://www.saosebastiao.sp.gov.br/ef/pages/Corpo/Habilidades/leituras/m2.pdf. Acesso
em: 02 fev. 2019.

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Relato de Pesquisa

ESCUTA CLÍNICA DE ESTUDANTES DE PSICOLOGIA EM GRUPOS


INTERVENTIVOS COM UNIVERSITÁRIOS

Melina Pinheiro Gomes de Souza. E-mail: melina-souza1@hotmail.com.


Mestre em Psicologia; Psicóloga do CEPPSI/UNIVASF
Ana Lícia Pessoa Nunes. E-mail: analicia.pessoa@hotmail.com.
Estudante de Psicologia- UNIVASF; Bolsista PIBIC CNPq/UNIVASF
Shirley Macêdo. E-mail: mvm.shirley@gmail.com. Docente do Colegiado de Psicologia, da
Residência Multiprofissional em Saúde Mental e do Programa de Pós-Graduação em
Dinâmicas de Desenvolvimento do Semiárido da UNIVASF.

Palavras-chave: sofrimento universitário; escuta clínica; formação do psicólogo; pesquisa


fenomenológica; ensino superior.

INTRODUÇÃO

Heckert (2007) defende que a escuta clínica não é um saber que possa ser transmitido
como conteúdo meramente técnico, mas exige que o sujeito a experimente no contato direto
com a prática de escutar. No entanto, no que diz respeito ao processo de formação do
psicólogo, profissional que, por excelência, se utiliza da escuta como dispositivo de cuidado
em sua prática, essa experimentação se dá tardiamente.
Heckert e Neves (2010), Rudnicki e Carloto (2007) e Mendes, Fonseca, Brasil e
Dalbello-Araújo (2012) discutiram a formação do psicólogo e apontaram limitações no ensino
das disciplinas, que visam apenas rigor teórico. Defenderam ser necessário ao estudante de
Psicologia vivenciar o processo de escuta e cuidado para só daí se debruçar sobre essas
dimensões da vida humana.
No entanto, a experimentação da escuta na formação do estudante de Psicologia tem
ocorrido apenas nos estágios de final de curso ou em seus processos pessoais em psicoterapia
(MEIRA; NUNES, 2005), quando eles estão prestes a adentrar o mercado de trabalho.
Portanto, apenas quando da prática do estágio, em serviços escola, ao se preparar para o
futuro exercício profissional, eles desenvolvem efetivamente esse dispositivo.
Pesquisas indicam, contudo, que graduandos de Psicologia sentem falta de práticas
psicológicas no início do curso, estariam mais preparados para o estágio obrigatório se essas
atividades fossem realizadas com antecedência, e a postura e a orientação do supervisor,
assim como as trocas de experiências em grupo de supervisão com outros colegas também
favorecem o desenvolvimento da escuta clínica, entre outras competências necessárias ao
futuro profissional desses aprendizes (MACÊDO; SOUZA; LIMA, 2018).
Para se capacitarem com vistas ao futuro profissional, é nos serviços escola onde
atuam que esses estudantes, na prática como iniciantes, vivenciam impasses de diversas

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ordens, dentre eles, prestar serviços a usuários universitários que compartilham de realidades
sociais semelhantes. Diante disso, o objetivo dessa pesquisa que teve o apoio do PIBIC/PIVIC
CNQPQ/ UNIVASF 2018-2019 foi compreender experiências de escuta clínica em estudantes
de Psicologia que conduzem grupos interventivos com outros universitários, investigando o
sentido que esses grupos têm no processo de formação desses estudantes; identificando
possíveis conhecimentos, habilidades e atitudes desenvolvidas; assim como atravessamentos e
desafios enfrentados; e ganhos de aprendizagem obtidos.

MÉTODO
O presente estudo se fundamentou na abordagem humanista-fenomenológica, para a
qual a pesquisa qualitativa é a mais apropriada. Tendo em vista que o conhecimento pode ser
construído a partir do compartilhamento de experiências, foi utilizado método da
Hermenêutica Colaborativa, que foca no sentido da experiência intersubjetiva compartilhada
entre pessoas que vivenciam uma dada realidade social (MACÊDO, 2015).
A coleta de dados só ocorreu após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em
Pesquisa com seres humanos, sob Parecer CEP/UNIVASF N. 2.759.228 e está registrada sob
CAEE N. 88562318.2.0000.5196. A proposta da pesquisa foi apresentada aos colaboradores
em reunião de supervisão em grupo, e, após concordarem em participar voluntariamente,
assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O grupo investigado foi constituído por: oito estudantes de Psicologia (sendo quatro
extensionistas, duas estagiárias e duas bolsistas do projeto de pesquisa); e duas profissionais
de Psicologia (supervisoras do grupo).
Para isso, utilizou-se o instrumento Versão de Sentido (VS), que se configura como
um breve relato escrito logo após um encontro (AMATUZZI, 1990; 2008). A cada um dos
oito encontros do grupo de supervisão, eram produzidas VSs por cada estudante e supervisora.
As VSs eram utilizadas nos encontros subsequentes como disparadores de discussão,
favorecendo o tecer e o retecer sentidos da experiência investigada e, assim, a ressignificação
das mesmas.
Os casos que foram acompanhados em supervisão consistiram em processos de grupo
interventivo dos quais participavam usuários universitários que buscavam ajuda psicológica.
Os grupos eram facilitados por estudantes de Psicologia supervisionados, inclusive pelas
bolsistas de iniciação científica. Por, nesse contexto, considerar-se a importância da imersão
subjetiva do pesquisador, as duas bolsistas participaram do grupo, visto se tratar de uma
pesquisa fenomenológica colaborativa, em que as mesmas também estiveram inseridas nos
processos das práticas investigadas: tanto nos grupos interventivos com outros universitários
quanto no grupo de supervisão desses atendimentos.
O procedimento de análise das VS’s envolveu os seguintes passos: leitura integral da
VS por cada autor no encontro de supervisão após cada atividade de grupo interventivo;
exploração de significados de acordo com o diálogo nos próprios encontros de supervisão;
presentificação do sentido da VS no encontro de supervisão a partir de consenso com o autor;
síntese dos processos do grupo de supervisão realizada pela equipe de pesquisa e enviada aos
colaboradores por e-mail para confirmação, negação ou ajuste.

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RESULTADOS E DISCUSSÕES

Foi possível compreender que, durante os encontros de supervisão dos grupos


interventivos, os colaboradores realizaram um resgate histórico da própria vida, articulando
passado, presente e futuro, como forma de compreender o que experienciaram naqueles
atendimentos, refletindo sobre o que precisam realizar para um aprimoramento profissional e
pessoal, desenvolvendo, assim, o autoconhecimento. Estiveram, ainda, em movimento entre ir
e vir no processo de história pessoal, reconhecendo as próprias limitações e a necessidade de
tempo para amadurecer, o que favoreceu ressignificar a própria prática. Nessa perspectiva,
atentaram para que, no caminho de tornar-se psicólogo, é necessária sabedoria, inclusive para
dosar os próprios passos, alegando que precisavam respirar e perceber onde se encontravam,
para continuar a caminhar.
Diante disso, perceberam a necessidade de delimitar o espaço entre eles e os usuários
nesse processo, concebendo, ainda, a importância da implicação afetiva no trajeto de tornar-se
futuro profissional, ao compararem experiências semelhantes entre eles e outros
universitários. Ressalta-se, portanto, a importância do processo pessoal a um psicólogo, a fim
de que possa lidar com questões pessoais que surgem nos contextos de atendimento, já que
este é, segundo Aguirre et al. (2008), um dos pilares da formação do clínico em Psicologia,
juntamente com o estudo e a supervisão.
Vale lembrar, aqui, Reis e Cruz (2018), ao alertarem que a potencialidade dos alunos
fica limitada quando não estão em processo de autoconhecimento e autodesenvolvimento,
pois tais conhecimentos são adquiridos em espaços terapêuticos individuais e, segundo os
autores, não são aprendidos teoricamente durante a graduação.
Além desse processo de autoconhecimento, também houve pelos colaboradores da
presente pesquisa a aquisição de competências. Essas requereram experienciação para serem
desenvolvidas como, por exemplo, a habilidade de sustentação do silêncio durante os
processos de grupos interventivos, compreendida pelos estudantes no espaço de supervisão.
Nesse processo de sustentação do silêncio, apontaram a necessidade de reconhecer a
importância do tempo de cada sujeito, num movimento de respeito à singularidade do usuário
e à sua própria.
No que diz respeito ao próprio tempo, os estudantes de Psicologia o relacionaram com
o processo de autoconhecimento já mencionado, reconhecendo uma interligação entre o
desenvolvimento das habilidades com o processo de autoconhecimento, já que os
atravessamentos que podem surgir no contexto da prática psicológica precisaram,
inicialmente, ser reconhecidos e manejados adequadamente pelo estudante, a fim de não se
tornarem empecilhos para sua prática. Essas habilidades são necessárias ao futuro profissional
desses aprendizes, porquanto a experiência com grupos interventivos com outros
universitários os aproximou da realidade do mercado de trabalho, deixando-os mais
preparados para situações de diferentes ordens que o mundo profissional pode requerer.
O sentido da experiência desses estudantes ao conduzirem grupos com outros
universitários pode ser compreendido por atravessamentos, quando, na execução das
atividades práticas, conseguiram perceber que há implicação da história e caminho do outro, e
que esses processos também perpassam pelas suas histórias de vida.

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Aqui se reverenciam os espaços de prática supervisionada para auxiliar o estudante a delimitar


o papel profissional ao conduzir os processos frente a usuários sem que haja prejuízos da
prática psicológica. Nesse sentido, o processo de supervisão possui essa função: fazer com
que as práticas dos estudantes não sejam centradas no seu próprio processo pessoal (NETO;
OLIVEIRA; GUZZO, 2017). Pode-se refletir, também, sobre a importância da supervisão na
promoção da saúde mental do estudante de Psicologia, pois que ajuda esses alunos a
perceberem questões pessoais que surgem nos contextos de prática, estimulando-os a se
autoconhecerem e possibilitando o processo de autocuidado para cuidar de outros.
Além disso, durante o processo de supervisão, os estudantes reconheceram situações
desafiadoras ao se depararem com o diferente, sinalizando que é algo que pode frustrá-lo.
Segundo eles, esse desafio promoveu aprendizagem e crescimento, pois fez com que
observassem o caminhar, percebessem os pontos positivos e negativos desse processo e
reconhecessem que ambos são necessários para a formação. Nesse sentido, foi possível
identificar ganhos de aprendizagem obtidos pelos estudantes: o processo de se moldar e
aprender sobre sensibilidade. Pôde-se refletir, também, o quanto a prática psicológica e a
sensibilidade no acolhimento de usuários auxiliaram no estabelecimento de vínculo e de
rapport com os sujeitos, o que foi essencial, como diria Tavares (2012), para o andamento do
processo.
Ademais, os estudantes de Psicologia também relataram aprendizagem sobre a
importância da criatividade e abertura ao novo, assim como a flexibilidade para lidar com
situações inusitadas, o que também é relevante. Outra aprendizagem foi que na condução de
espaços terapêuticos, os colaboradores repensaram a própria prática, o que pode ser associado
com o processo de flexibilidade, pontuado anteriormente, ao reconhecerem as próprias
limitações e o que precisariam buscar desenvolver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, foi possível compreender a importância da experiência prática da


escuta clínica para o desenvolvimento de competências que possam potencializar a formação
do estudante de Psicologia, inclusive daquelas que nem sempre podem ser ensinadas
teoricamente, tendo em vista as dimensões subjetivas que os atravessamentos e desafios
puderam provocar nos estudantes. A experiência da escuta promoveu, também, oportunidades
de aprendizagens, auxiliando-os a reconhecer suas limitações em espaços terapêuticos e
refletir sobre o que ainda precisariam desenvolver para ser um profissional da Psicologia.
No entanto, alguns limites existiram no transcorrer dessa pesquisa: número restrito de
referências bibliográficas, pois a equipe de pesquisa se deparou com pouca variedade de
artigos sobre a temática no âmbito dos estudos fenomenológico; e a disponibilidade de
horários dos colaboradores que, por vezes, acabavam coincidindo com outros compromissos
acadêmicos, resultando na ausência em alguns encontros de supervisão. Contudo, isso não
prejudicou a análise dos dados.
Por fim, sugere-se uma pesquisa de follow-up para compreender como a participação
em práticas psicológicas em meados do curso de Psicologia pode colaborar para o
desenvolvimento da escuta clínica quando da experiência de estágio, já que os colaboradores
aqui participantes ainda não eram estagiários.

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REFERÊNCIAS

AGUIRRE, Ana Maria de Barros et al. A formação da atitude clínica no estagiário de


psicologia. Psicol. USP, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 49-62, 2000.

AMATUZZI, M. M. O que é ouvir. Estudos de Psicologia, v. 7, n. 2, p. 86-97, 1990.

AMATUZZI, M.M. Por uma psicologia humana. São Paulo: Editora Alínea, 2008.

GONCALVES, L. O.; FARINHA, M. G.; GOTO, T. A. Plantão psicológico em unidade


básica de saúde: atendimento em abordagem humanista-fenomenológica. Rev. Abordagem
Gestalt, Goiânia, v. 22, n. 2, p. 225-232, dez. 2016.

HECKERT A. L. Escuta como cuidado: o que se passa nos processos de formação e de


escuta? In: PINHEIRO R; MATTOS R. A. (Orgs.). Razões públicas para a integralidade
em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC-IMS/UERJ-ABRASCO, 2007. p.
199-212.

HECKERT, A.L.C., NEVES, C.E.A.B. Modos de formar e modos de intervir: de quando a


formação se faz potência de produção do coletivo. In: BRASIL. Ministério da Saúde.
Secretaria de Atenção à Saúde. (Org.). Política Nacional de Humanização: formação e
intervenção. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010, p.13-28. (Série B. Textos Básicos de
Saúde - Caderno HumanizaSUS, 1).

MACÊDO, S.; SOUZA, G. W.; LIMA, M. B. A. Oficina de desenvolvimento da escuta:


prática clínica na formação em psicologia. Rev. abordagem Gestalt, Goiânia, v. 24, n. 2, p.
123-133, ago. 2018.

MEIRA, C. H. M. G.; NUNES, M. L. T. Psicologia clínica, psicoterapia e o estudante de


psicologia. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 15, n. 32, p. 339-343, dez. 2005.

MENDES, F. M. S. et al. Versus: relato de vivências na formação de Psicologia. Psicol.


Cienc. prof., Brasília, v. 32, n. 1, p. 174-187, 2012.

SILVA NETO, W. M. F.; OLIVEIRA, W. A.; GUZZO, R. S. L. Discutindo a formação em


Psicologia: a atividade de supervisão e suas diversidades. Psicol. Esc. Educ., Maringá, v. 21,
n. 3, p. 573-582, dez. 2017.

RUDNICKI, T.; CARLOTTO, M. S. Formação de estudante da área da saúde: reflexões sobre


a prática de estágio. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 97-110, jun. 2007.

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TAVARES, M. Considerações Preliminares à Condução de uma Avaliação Psicológica. Aval.


Psicol., Itatiba, v. 11, n. 3, p. 321-334, dez. 2012 .

REIS, L. C.; CRUZ, C. C, M. A importância da psicoterapia para a formação e atuação do


psicólogo clínico. Revista Brasileira de Ciências da Vida, [S.l.], v. 6, n. 2, mar. 2018. ISSN
2525-359X.

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Relato de Pesquisa

ESTUDO FENOMENOLÓGICO DAS VIVÊNCIAS DE CYBERBULLYING EM


ADOLESCENTES.

Liberalina Santos de Souza Gondim. E-mail: li-gondim@hotmail.com.


Docente - UNIVASF.
Marcelo Silva de Souza Ribeiro. E-mail: mribeiro27@gmail.com.
Docente - UNIVASF.

Palavras-chave: bullying; cyberbullying; adolescentes; fenomenologia.

INTRODUÇÃO

O contexto social atual, marcado pelo desenvolvimento tecnológico, tem despertado


interesse no estudo do comportamento dos jovens na internet e das especificidades do viver
adolescente. As investigações abordam, entre outros fatores, as manifestações e funções do
comportamento agressivo, como o cyberbullying, que tem relação com a ambiente escolar
como continuação do bullying.
O cyberbullying poder ser considerado uma modalidade do bullying diante da
evolução tecnológica e do uso constante de dispositivos móveis. Porém, possui aspectos
específicos que mudam qualitativamente as formas tradicionais da agressão entre pares
(BROWN; JACKSON; CASSIDY, 2006).
O interesse em pesquisar sobre experiências de adolescentes em situações de
cyberbullying surgiu tendo em vista a forma de organização da sociedade atual, em que os
jovens estão constantemente conectados às novas tecnologias digitais e as utilizam das mais
variadas formas nas interações entre os pares. Assim, fenômenos como a violência, ganham
novas dimensões no ambiente virtual, de modo que dilemas menos presentes, como os
relacionados à privacidade, exposição de assuntos íntimos, troca de comentários hostis, entre
outros, perpassam as experiências de vítimas e agressores e plateia.
Torna-se relevante pesquisar os aspectos envolvidos nas experiências dos atores
implicados no cyberbullying, assim como a criação de espaços de cuidado à saúde, escuta e
ajuda, além de medidas educacionais viáveis e efetivas de enfrentamento do problema.
Portanto, a partir de um viés fenomenológico, buscamos acessar as vivências dos
adolescentes, incluindo os sentimentos mobilizados, as reações às agressões e exposições on-
line, as causas atribuídas pelas vítimas e as estratégias utilizadas enfrentar o problema.
O estudo teve como objetivo geral compreender experiências de adolescentes com o
fenômeno cyberbullying, e como objetivos específicos descrever os sentidos da experiência
com o cyberbullying e suas possíveis repercussões na vida destes adolescentes; e apontar
estratégias de enfrentamento utilizadas por eles para lidar com o cyberbullying.

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MÉTODOS

Tratou-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva, sobre a experiência de vítimas e


agressores com o cyberbullying em uma escola particular da cidade de Juazeiro-BA. A
pesquisa foi desenvolvida como parte do projeto de mestrado da autora e utilizou o método
fenomenológico como forma de compreensão das experiências com o cyberbullying.
Participaram da pesquisa quatro alunos do ensino médio, entre 15 e 17 anos. Duas do sexo
feminino e dois do sexo masculino, os quais foram identificados com vivências de
cyberbullying por um período de tempo igual ou maior a um ano.
O instrumento utilizado foi uma entrevista individual com pergunta disparadora, sem
prejuízo de novas questões suscitadas durante a conversa: “Como foi a sua experiência com o
fenômeno cyberbullying?” intencionando colocar o sujeito em contato com as suas
experiências e lhe permitir descrevê-las, facilitando a pesquisadora alcançar o sentido delas
(AMATUZZI, 2009). As entrevistas tiveram duração média de 2 horas e foram gravadas em
áudio.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Sistema do Comitê de Ética em Pesquisa CEP-
CONEP no dia 04 de abril de 2017, por meio do parecer 1.998.179 e está registrada sob o nº
63823317.2.0000.5196, respeitando as questões éticas pertinentes à pesquisa com seres
humanos.
Optamos por utilizar uma metodologia de análise fenomenológica de pesquisa baseada
em alguns preceitos de Merleau-Ponty (1945;1984). A análise foi realizada em seis passos:
registro das informações gravadas, leitura e compreensão dos relatos, identificação das
unidades de significado, discussão sobre os sentidos das experiências, confirmação do sentido
da experiência, síntese comum das narrativas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Para garantir o anonimato dos participantes, o nome dos quatro alunos que
participaram da entrevista foram substituídos por pseudônimos referentes às características
que marcaram suas experiências com o fenômeno cyberbullying, são eles: “Aceitação”,
“Impulsividade”, “Raiva” e “Apatia”.
As experiências de cada adolescente com o fenômeno cyberbullying são bastante
singulares. Porém, chamamos atenção para o processo de transformação de si mesmo e da
relação com o outro, pelo qual todos passaram durante e após as vivências de violência.
Entre os sentidos compreendidos das experiências, destacam-se: a criação de
estratégias insuficientes para lidar com o fenômeno; a mobilização de diversos sentimentos
associados às vivências; as reflexões e mudanças após a experiência; as percepções sobre as
formas de relacionamento sociais; e as repercussões sociais, educacionais e para a saúde física
e emocional dos jovens.
Foi possível compreender que para lidar com o fenômeno da violência virtual e do
cyberbullying eles desenvolveram estratégias variadas, que apesar pareceram ser insuficiente
para lidar com o problema de modo resolutivo, foram os meios que conseguiram mobilizar e
que mais fizeram sentido na tentativa de autopreservação. Destacamos as estratégias de

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evitamento, de adaptação, de confronto, de diálogo, de proteção on-line, de prevenção, de


ruptura e de ajuda a outras vítimas.
Sobre estas estratégias Souza, Veiga Simão e Caetano (2014) corroboram com esta
pesquisa demonstrando que estratégias como fazer frente ao fato, contatar as autoridades
policiais, procurar ajuda de alguém de confiança e pedir ajuda aos amigos, funcionam como
importantes mecanismos e devem ser usadas pelas vítimas no contexto off-line. Esses autores
chamam atenção ainda para a necessidade de utilização dos mecanismos de proteção on-line
como excluir os agressores das redes sociais e contatar os gestores do site ou rede social.
Em relação às estratégias de pedido de ajuda, estas foram principalmente
direcionadas a amigos, de modo que pedir ajuda a familiares, profissionais de saúde ou a
própria escola foi pouco considerado pelos adolescentes. Pesquisas como as de Campbell
(2005) já constatavam dificuldades nas vítimas em enfrentar as agressões on-line, ao
identificar que os jovens por ele investigados não denunciaram seus agressores por acharem
que os adultos não acreditariam ou banalizariam suas queixas.
No que diz respeito às estratégias de evitamento, estas foram mais utilizadas pelos
adolescentes Aceitação e Apatia, que vivenciaram o bullying e o cyberbullying de maneira
isolada e passiva, com poucos recursos de enfrentamento e pedido de ajuda. Estes também
foram os dois adolescentes que passaram com o tempo a desenvolver pensamentos e ideação
suicida. Isso nos leva a pensar que a ausência de uma rede de apoio e de espaços de escuta,
associada ao sofrimento mobilizado pelas agressões.

Não, eu só tinha vontade de morrer mesmo, vontade de morrer, muita vontade de


morrer. (...) Peguei uma faca e tentei/ cheguei a ir para frente do espelho e ficar
assim sabe, com ela aqui no pescoço. Muito tempo olhando para ela. (Aceitação).

Outra estratégia bastante utilizada pelos jovens foram as de confronto ao agressor on-
line ou presencialmente, seja no sentido de uma conversa amigável ou um embate mais
incisivo. No caso de Raiva e Impulsividade, estes entravam em confronto mais hostis com os
agressores.
Tal aspecto é explicado por Erdur-Baker (2015) pelo fato de que, no ambiente virtual,
há maior sensação de liberdade e menor inibição de suas emoções, de modo que os jovens
podem se sentir mais a vontade para revidar as agressões do que em outras formas de
violência.
Outra estratégia a ser mencionada refere-se à ajuda a outras vítimas, utilizada por
Impulsividade, de modo que passou a intervir em situações de violência, na defesa de outras
vítimas. Porém, com isso passou a se envolver também em embates com outros agressores, de
modo a dar continuidade às agressões, ao invés de cessá-las.
O que aparece na literatura como positivo, são atitudes de ajuda direta como ouvir,
dialogar, não recriminar e de ajuda indireta como facilitar a construção de uma rede de apoio
incluindo profissionais, familiares e amigos, assim como dar suporte para a execução das
medidas necessárias (RONDINA; MOURA; CARVALHO, 2016).
Entre os sentimentos presentes nas experiências dos jovens estão: o aumento da
irritabilidade e do nível de estresse e raiva; prazer e satisfação no sofrimento do outro;

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necessidade de inferiorização do outro; tristeza; inutilidade; exclusão; vergonha; medo; culpa;


ansiedade; e frustração.
O aumento da irritabilidade, do nível de estresse e da raiva estão presentes nas
experiências de Raiva, Impulsividade e Aceitação. Observamos que se sentirem desta forma,
além de lhes causar intenso sofrimento, colaborou para uma redução da tolerância e,
consequentemente, o aumento do comportamento agressivo em relação aos outros.

Eu sinto muita raiva dele. Não é raiva, é desconforto. Se eu tô num lugar, ele vem
falar comigo na maior cara de pau. Isso é desconfortável. Eu não gosto dele. Uma
pessoa que só me desejou o mal. (...) porque ele é uma pessoa ridícula
(Impulsividade).

Tornando-se agressores, os adolescentes parecem reduzir o nível de empatia pelas


vítimas, de modo a apresentarem dificuldade em se colocarem no lugar delas e, naquele
momento, as avaliam como merecedoras das agressões.

Na época, eu fiquei:– Essa safada vai me pagar! Só pensei isso e eu falei a ela: – No
dia que eu tiver oportunidade de mostrar para sua mãe eu mostro! (...) Eu não senti
nada. Fiquei foi dando risada. (...) Ainda quando eu cheguei/ vim estudar aqui, ainda
chamava ela de Maria Nudes, na frente dela (Impulsividade).

No estudo realizado por Caetano, Freire, Veiga Simão, Martins e Pessoa (2016), foi
observado que a satisfação (32,6%), a indiferença (28%) e o alívio (26,5%) foram os
sentimentos mais vivenciados pelos agressores, o que para eles é considerado indicativo da
dificuldade dos agressores em sentir empatia pelas vítimas.
Os sentimentos de tristeza, vergonha, inutilidade e a sensação de ser excluído parecem
afetar aspectos como a autoestima e o relacionamento com o outro. Tais sentimentos
aparecem tanto diante da vitimização como no comportamento agressivo.

Você se sente envergonhado demais pelo que você fez, que você prejudicou uma
pessoa... Essa pessoa podia ter tomado uma atitude como a que eu pensava na época,
de me matar... eu podia ser responsável por isso (Aceitação).

Na literatura, encontramos resultados diferentes no sentido de que, em geral, a tristeza e


a rejeição são mais comumente atribuídas às emoções das vítimas, como demonstra Gualdo et
al. (2015). De forma semelhante, Caetano, et al. (2016) também relataram a tristeza como
prioritário nas vítimas, mas acrescentaram também a vontade de vingança, a raiva e o medo
como aspectos frequentes.
A culpa também aparece tanto no comportamento do agressor como da vítima. O
primeiro, quando se sente responsável pelo sofrimento causado ao outro, e o segundo, quando
a própria vítima se sente responsável pelas agressões sofridas.
Entre as repercussões da experiência que parecem permanecer a médios e longos prazos,
podemos citar os sinais de ansiedade como tensão, tremores, agitação, falta de ar e crises
diante de situações com as quais não se encontram recursos para lidar.
Sobre esse aspecto, vários estudos têm apontado o risco de desenvolvimento de
psicopatologias associadas ao cyberbullying, entre as quais se destaca a ocorrência de

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estresse, ansiedade, depressão e ideação suicida (CAMPBELL, 2007; ARICAK, 2009;


SCHENK; FREMOUW, 2012).
A dificuldade de envolvimento em novas relações e a insegurança com as amizades
construídas também estão presentes na experiência de Apatia. Nesse sentido, o receio da
ocorrência de novas formas de agressões ou exclusão pode ter contribuído para uma postura
de distanciamento social.
Os adolescentes Aceitação e Raiva demonstraram que a experiência de cyberbullying
trouxe interferências em seus desempenhos educacionais, relacionadas à atenção e
concentração diante das exigências educativas, levando Aceitação a sentir-se impotente e
incapaz e Raiva a se isolar socialmente.
Sobre essa questão, Perfeito, Silveira, Lima e Barros (2015) discutem sobre as falhas no
sistema de ensino brasileiro quando o assunto é a prevenção e intervenção em casos de
violência e preconceito, nos quais se incluem o bullying e o cyberbullying. Esses autores
demonstram que ações pontuais e simplistas não são efetivas para solucionar o problema.
Outro aspecto relevante a mencionar é que o espaço da entrevista funcionou também
como modo de acolhimento e trocas intersubjetivas que parecem ter facilitado a
ressignificação de algumas vivências por parte dos participantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo foi possível compreender que as estratégias mobilizadas pelos


participantes na tentativa de lidar com o fenômeno foram insuficientes para cessar as
agressões, uma vez que todos eles conviveram por mais de um ano com o cyberbullying. Tais
estratégias foram prioritariamente individuais, o que demonstrou dificuldade nos jovens em
recorrer à ajuda de outras pessoas no ambiente social.
As experiências com o cyberbullying foram perpassadas por sofrimentos, angústias e
sentimentos diversos, alguns dos quais já mencionados na literatura. Porém, destacamos como
diferencial deste estudo a possibilidade de compreender estes processos humanos de uma
forma profunda, a partir do enfoque fenomenológico. Assim, a irritabilidade, o estresse, o
prazer, a tristeza, a vergonha, o medo, a culpa, a frustração, entre outros sentimentos
mobilizados pelos jovens, puderam ser compreendidos no campo de suas experiências diante
daquilo que para eles fazia sentido naquele momento e que puderam, ao longo do processo,
ressignificar e elaborar.

REFERÊNCIAS

AMATUZZI, M. M. Psicologia fenomenológica: uma aproximação teórica humanista.


Estudos de Psicologia, Campinas, v. 26, n. 1, pp. 93-100, 2009.

BROWN, K.; JACKSON, M.; CASSIDY, W. Cyber-bullying: developing policy to direct


responses that are equitable and effective in addressing this special form of bullying.
Canadian Journal of Educational Administration and Policy, v.57, n.1, pp. 1-35, 2006.

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CAMPBELL, M.A. Cyber bullying and young people: Treatment principles not
simplistic advice, 2007.

CAETANO, A. P., FREIRE, I., VEIGA SIMÃO, A. M., MARTINS, M. J. D., & PESSOA,
M. T. Emoções no cyberbullying: um estudo com adolescentes portugueses. Revista
Educação e Pesquisa, v. 42, n.1, pp. 199-212, 2016.

ERDUR-BAKER, O. Cyberbullying and its correlation to traditional bullying, gender and


frequent and risky usage of internet-mediated communication tools. New Media & Society,
v. 12, n. 1, p. 109–125, 2015.

GUALDO, A. M. G.; HUNTER, S. C.; DURKIN, K.; ARNAIZ, P.; MAQUILÓN, J. J. The
emotional impact of cyberbullying: Differences in perceptions and experiences as a function
of role. Computers & Education, v.82, pp. 228-235, 2015.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. ed. 2011.São Paulo: WMF Martins


Fontes, 1945.

MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984.

PERFEITO, R.S; SILVEIRA, D.S.; LIMA, M.F.C.; BARROS,C.F. Caso Amanda Todd: uma
oportunidade de refletir o cyberbullying na escola. Educação Física em Revista – EFR, v. 9,
n. 1, p. 33-53, 2015.

RONDINA, J.M.; MOURA, J.L.; CARVALHO, M.D. Cyberbullying: o complexo bullying


da era digital. Re. Saúd. Digi. Tec. Edu, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 20-41, 2016.

SCHENK, A. M.; FREMOUW, W. J. Prevalence, psychological impact, and coping of


cyberbully victims among college students. Journal of School Violence, v. 11, n. 1, p. 21-37,
2012.

SOUZA, S. B.; VEIGA SIMÃO, A. M.; CAETANO, A. P. Cyberbullying: Percepções acerca


do Fenômeno e das Estratégias de Enfrentamento. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 27, n. 3,
p. 582-590, 2014.

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Eixo - Fenomenologia e Educação


Relato de Experiência

O DESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA EM ESTUDANTES:


EXPERIÊNCIAS COM O PROJETO COM-VERSANDO

Leonardo Rodrigues Vitor. E-mail: leonardorv15@hotmail.com.


Graduando em Psicologia - UNIVASF
Erika Hofling Epiphanio. E-mail: erikapsicoesporte@yahoo.com.br.
Professora do Colegiado de Psicologia - UNIVASF
Barbara Mó Pereira. E-mail: barbara.mo.pereira@gmail.com.
Graduanda em Psicologia - UNIVASF
José Luis Amorim. E-mail: luispsiunivasf@gmail.com .
Graduando em Psicologia - UNIVASF
Tereza Raquel da Silva Santos. E-mail: contatosantosraquel@gmail.com.
Graduanda em Psicologia - UNIVASF

RESUMO

O presente resumo tem por objetivo discutir o desenvolvimento da autonomia por


meio de experiências do projeto de extensão “Com-versando: uma proposta de cuidado por
meio do diálogo em escolas públicas de Petrolina” realizada em uma escola municipal de
Petrolina-PE. A abordagem Centrada na Pessoa (ACP) preconiza que algumas atitudes podem
proporcionar espaço fértil para que indivíduos possam desenvolver diversos aspectos de sua
vida, ressignificando sua existência, favorecendo o desenvolvimento da autonomia, o que na
psicologia humanista significa uma postura ativa do indivíduo, que buscará de forma criativa
agir em prol do melhor para si e para os demais. Nesse sentido, observa-se que o projeto
Com-versando através de diversas atividades e ações se mostrou como ferramenta facilitadora
dessa autonomia, aspecto iluminado a partir da ação de alunas, que frente à problemática que
as incomodava no contexto escolar elaboraram palestras para demais alunos, enxergando o
projeto como parceiro para realização dessa atividade. Desse modo, percebe-se que o projeto
conquistou espaço importante na escola, sendo referência para alunos, promovendo espaço de
cuidado que incentiva e facilita a autonomia dos alunos.

Palavras-chave: desenvolvimento; autonomia; atitudes; facilitadoras; educação.

INTRODUÇÃO

Após a realização de uma pesquisa pela orientadora deste projeto e outras duas alunas,
em que foi investigado o sofrimento presente na educação, o “Com-versando: uma proposta
de cuidado por meio do diálogo em escolas públicas de Petrolina” foi desenvolvido.

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Viu-se a necessidade dessa atuação e prestação de serviço à comunidade, devido a


constatação de um grande sofrimento existente nas escolas, algo que abarca todas as
categorias que compõem o ambiente escolar, pois participaram desta pesquisa, pais,
estudantes, professores e servidores das três escolas em que foi realizado o estudo. Este
sofrimento constatado, mostrou-se relacionado a conflitos interpessoais, ausência de cuidado
e diálogo, assim como a falta de uma esperança no futuro e ausência de perspectivas de
melhora para suas vidas. Em resposta a isso, o Com-versando foi construído com a intenção
de desenvolver no ambiente escolar, espaços que sejam possibilitadores de diálogo e cuidado
a todos que fazem parte da dessa comunidade, a partir de atividades que proporcionem o
desenvolvimento de habilidades relacionais, desenvolvimento das potencialidades do
indivíduo e na construção de um ambiente saudável, e de acolhimento.
Dessa forma, esse trabalho foi elaborado visando mostrar um recorte dos resultados
encontrados relacionado com o desenvolvimento da autonomia nos alunos da Escola
Municipal Paulo Freire em Petrolina/PE através das atividades realizadas pelos extensionistas,
levando em consideração as atitudes facilitadoras - atitudes que são possibilitadoras de um
desenvolvimento ativo do indivíduo, caracterizando um ambiente favorável para tal;
propiciadas por eles e que podem ter contribuído para o desenvolvimento de maior autonomia
entre outras habilidades que podem ser observadas desde que o projeto foi implantado. O
trabalho desenvolvido na escola desde março de 2018 teve impacto nas vidas do público para
qual as atividades foram oferecidas, mas também cabe destacar que as experiências
vivenciadas pelos integrantes também possuem enorme validade para a apresentação desse
projeto, visto que de forma cíclica todos os envolvidos foram afetados e compõem a história
do Com-versando.

Fundamentação Teórica

Os pressupostos da psicologia humanista entendem o humano como um ser que


possui genuinamente a capacidade de desenvolver-se, considerando também que para tal
desenvolvimento é necessário que haja um ambiente favorável que proporcione um clima
fértil para o indivíduo (AMATUZZI, 2010). Contudo, essa abordagem possui alguns
princípios acerca do seu objeto de estudo; primeiro tem-se a máxima de que o ser humano é
mais do que a soma das partes, ele deve ser visto como um ser singular e subjetivo, devendo
ser sempre compreendido a partir do seu contexto e do seu lugar no mundo. Dessa forma,
podemos indicar que a existência humana, ocorre em um contexto social, logo se torna
necessário estarmos atentos ao que ocorre nos relacionamentos com as outras pessoas, tendo
em vista os contextos em que isso ocorre. A Psicologia humanista também enfatiza o papel do
facilitador no desenvolvimento de suas potencialidades e ainda que o indivíduo possui a
capacidade de fazer suas próprias escolhas e de decidir-se. No entanto cabe ressaltar que
Rogers (1986) discute que o ambiente relacional pode influenciar em como este indivíduo
pode vir a tomar atitudes em prol do seu desenvolvimento.
Na Psicologia Humanista, temos o que é chamado de pressuposto da autonomia. Aqui
temos o ser humano como produto de múltiplas influências, mas sendo ele um ser ativo e
produtor de novos fenômenos. O indivíduo não é visto apenas como resultado de
acontecimentos e moldado por eles, ele também é constantemente desafiado e solicitado a agir

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de forma singular (MERLEAU-PONTY, 1996; FRANKL, 1989 apud AMATUZZI, 2009).


Ou seja, o ser humano mantém forte atividade e possibilidades de agir sobre aquilo que o
afeta. Dessa forma, o fazer psicológico humanista atua na oferta de um ambiente favorável
para o diálogo em que possa ocorrer a manifestação dessa capacidade. É reconhecido que a
partir de relações honestas, que ocorram em contextos férteis, o desenvolvimento da
autonomia ocorre de forma crescente. Então, podemos compreender a autonomia como o
modo que o indivíduo direciona a sua vida, adotando os meios mais positivos possíveis, que
afetem tanto a si próprios quanto os grupos no qual está inserido (AMATUZZI, 2009). Como
também o empoderamento, enquanto um processo que se desenvolve no decorrer da vida e
favorece a autoconfiança do indivíduo, possui bases pautadas na autonomia, na
autodeterminação, na auto-organização, bem como na participação e corresponsabilidade das
ações do mesmo (HOLANDA, 2006 apud GOMES, 2015).
Carl Rogers, um dos grandes teóricos da psicologia humanista, que ao desenvolver a
abordagem centrada na pessoa (AMATUZZI, 2010), contribui enormemente no que se pode
considerar como um dos princípios dessa abordagem, ou seja, a capacidade de modificar-se e
evoluir. Dentro de sua teoria, uma premissa dada pelo autor é a das atitudes facilitadoras,
onde, tais atitudes auxiliam na oferta de um espaço fértil para que o indivíduo possa
desenvolver-se. Por meio dessas atitudes o autor nos traz a capacidade do Ser de
autocompreensão, onde através de um processo facilitador e de um ambiente acolhedor, ele
consegue alterar seus autoconceitos, desenvolver boas atitudes e mudar seu comportamento.
Rogers ao descrever as atitudes facilitadoras, desenvolve uma técnica que vai além da clínica,
é possível que tais atitudes sejam utilizadas para que se possa promover o bem do outro, ou
seja, são atitudes que aprimoram a capacidade e que através da relação cria com o outro um
canal de múltiplos desenvolvimentos. Essas atitudes são apresentadas como congruência,
onde é necessário que haja por parte do facilitador uma compreensão de si, cabendo a ele
aceitação e a compreensão dos seus atos, comportamentos e sentimentos, visto que é
necessário ser genuíno e permitir-se expressar o que lhe é possível; aceitação incondicional,
atitude que abre espaço para o outro ser completamente quem é, ou seja, permitir-se aceitar o
outro de forma positiva desenvolvendo uma consideração afetuosa por tal; e empatia, que nos
fala de uma compreensão do outro a partir das suas intencionalidades, colocar-se no local de
quem nos é presente e compreendê-lo pela sua fala e seu mundo (AMATUZZI, 2010).
Para Rogers (1986, p.75) “o sistema educacional é provavelmente a mais influente de
todas as instituições”, modelando a política interpessoal da pessoa em crescimento. Nesse
mesmo propósito a Educação humanista vem reafirmar a mudança e o crescimento como
características básicas do ser humano, vendo as pessoas em constante crescimento, potentes
para realizar seus objetivos de vida, num constante processo de vir-a-ser.

Objetivos

O presente resumo tem como objetivo relatar as experiências dos estudantes da


Universidade Federal do Vale do São Francisco quando em contato com o Projeto de
Extensão Com-versando. Assim como, o objetivo de apresentar o modo como o
favorecimento de um ambiente de cuidado em uma escola pública possibilitou um clima mais
favorável para o desenvolvimento da autonomia nos estudantes.

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MÉTODOS

Esse projeto foi implantado em 2018 e se mantém ativo no presente ano atendendo
crianças e jovens oriundos da Escola Municipal Paulo Freire, localizada no bairro São
Gonçalo na cidade de Petrolina PE. Os estudantes possuem entre 10 e 15 anos, e são
moradores tanto do bairro onde se localiza a escola quanto de outros bairros da cidade. São
utilizadas ações facilitadoras no processo de desenvolvimento humano saudável destas
crianças, que são diversas atividades entre os alunos, sendo elas individuais ou em grupo,
como é o caso da roda de reflexão, que tem como objetivo levar um momento de fala para os
jovens, sendo realizada em grupos de 5 a 7 pessoas que se inscreveram anteriormente, onde as
mesmas estão livres para escolher o tema da roda. É importante ressaltar, que os alunos são
acompanhados pelos integrantes do projeto, que facilitam o processo de fala dos estudantes,
propiciando um clima acolhedor e respeitoso.
Diferentemente da roda de reflexão que tem como objetivo proporcionar um
ambiente de compreensão onde os alunos podem trazer suas vivências sem um tema
específico, o plantão psicológico tem como objetivo o acolhimento individual dos alunos,
professores, servidores e familiares do bairro São Gonçalo, sendo realizado por estagiários do
curso de Psicologia da Univasf. Esse atendimento não necessita de inscrições prévias, ou seja,
é necessário apenas procurar o plantonista na escola, que fará o acolhimento individual nos
moldes da clínica psicológica. Além disso, o projeto realiza anualmente a chamada
“Maratona do Cuidado”, que é uma manhã especialmente voltada para a comunidade,
servidores, alunos e professores. Esse momento é cercado por diversas atividades, que tem
como objetivo proporcionar ações que tragam benefícios a curto e longo prazo ao público em
geral. Nesse espaço, várias oficinas são levadas para a escola, como oficina de origami,
fotografia, primeiros socorros, desenho, massagem, autocuidado, rodas de conversa, entre
outros. Por fim, o projeto realiza à tenda da leitura, um momento onde os estudantes podem ir
para uma tenda armada na própria escola fazer a leitura de livros e conversar entre si no
intervalo, o que reflete numa maior integração entre os próprios alunos que convivem com a
leitura e o diálogo que é sempre bem vindo na tenda.
O presente ano também possibilitou a criação de grupos de trabalho dentro do
projeto, que levam para os estudantes novas possibilidades de engajamento em atividades
extracurriculares, como é o caso do Jornal da escola, que possui em seu grupo alunos que
buscam experiências com temas jornalísticos e atividades de elaboração e escrita de matérias,
sendo eles auxiliados pelos extensionistas do projeto. Outro grupo de trabalho é o Drama-
ação, que conta com atividades artísticas como teatro e dança, para propiciar uma maior
interação entre os alunos e potencializar suas habilidades corporais. Assim como a batalha de
rimas, onde os jovens fazem rodas de Hip-Hop e “batalham” através de improvisos, uma vez
que, é uma das atividades mais populares do projeto, já que é realizada normalmente na tenda
e com grande participação do público escolar que comparece em peso no intervalo. Por fim, o
projeto conta com o Com-vercine, que são exibições de curtas, filmes e vídeos para os
estudantes no intuito de levar assuntos relevantes para o ambiente escolar, além de contar com
parcerias dos professores, que podem solicitar ao Com-vercine que sejam realizadas sessões
com temas determinados anteriormente.

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RESULTADOS

A partir das atividades propostas pelos extensionistas na Escola Paulo Freire,


observou-se que com o acolhimento ao sofrimento dos estudantes, que tiveram oportunidade
de falar, ser escutado, ser acolhido e ter possibilidades de reflexão sobre seus sentimentos e
relações, bem como o desenvolvimento de suas habilidades e potencialidades frente a uma
escuta acolhedora, livre de julgamentos, pautada em uma compreensão empática a partir de
uma aceitação genuína das maneiras de existir do outro, pôde promover a autonomia dos
estudantes, os quais o projeto Com-versando visa atingir. Logo, para Amatuzzi (2009) a
Psicologia Humanista, como uma abordagem teórico-prática aposta na autonomia crescente
da pessoa, na potencialidade das relações facilitadoras no processo de desenvolvimento
humano e na tendência naturalmente humana de auto realização.
Acredita-se que propiciar um ambiente facilitador para o desenvolvimento da pessoa
enquanto um ser relacional, com possibilidades de modificação do seu eu e como agente
transformador do seu contexto social, estimula e potencializa sua autonomia frente o ambiente
à sua volta.
Deste modo, os momentos preparados pelo Com-versando, como as rodas de
reflexão, a tenda da leitura, os plantões psicológicos, as maratonas de cuidado e as atividades
oferecidas pelos grupos de trabalho podem ter contribuído para uma ação realizada por três
alunas do oitavo ano, que em seus contextos sentiram uma inquietude com o desenrolar de
algumas atitudes que lhe causavam sofrimento e buscaram o projeto como apoio para
dialogarem com a coordenação da escola a possibilidade delas promoverem uma roda de
conversa com o tema: Não é não/Assédio contra mulheres. Após a primeira experiência
dessas alunas como protagonistas nessa atividade a motivação se espalhou por todos os
corredores da escola e outros alunos idealizaram atividades similares, mas com pensamentos
de outros temas que fazem sentido para eles, como o bullying e o suicídio, percebendo assim
o quanto é importante as discussões dessas temáticas de aluno para aluno.
Bem como, as propostas dos grupos de trabalho iniciados este ano, em especial o
Jornal da escola caminha de encontro a ação dessas alunas, visto que nesse GT as produções
dos alunos serão voltadas para os mesmos e para comunidade escolar, favorecendo então a
busca por novas formas de alcançar os demais, com um olhar empático e crítico frente ao seu
contexto e suas problemáticas, como também a adesão cada vez maior em prol do coletivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ações realizadas na escola Paulo Freire se mostraram como potente ferramenta


facilitadora do diálogo e da autonomia, ilustrada pela atitude de alunas frente a problemática
do assédio, levando-as à ação ativa na busca pela mudança desta dentro da escola. Ao
reconhecer o projeto como um parceiro em suas ações, buscando ajuda para concretização de
suas idéias e atuando criativamente para alcançar os demais alunos, as alunas demonstram a
ideia de autonomia proposta pela psicologia humanista. Sendo assim, espera-se que as ações
do projeto Com-versando continuem como referência de cuidado e diálogo para os estudantes
e toda comunidade escolar, e esse espaço que aos poucos o projeto está conquistando, possa
no futuro ser construído pelos próprios alunos e a comunidade ao seu redor. Como já se

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observa, o projeto se tornou um lugar onde os alunos sentem respaldo para agir e pensar de
forma autônoma, isso vistas a procura de alunos pelo projeto, para ajudar em ações de
diversas temáticas. Assim, conclui-se que o projeto ocupa espaço importante na escola e como
facilitador da autonomia desses indivíduos.

REFERÊNCIAS

AMATUZZI, M. Psicologia fenomenológica: uma aproximação teórica humanista. Estudos


de psicologia, Campinas, v.26, p.93-100, 2009.

AMATUZZI, M. Rogers: ética humanista e psicoterapia. Campinas: Alínea, 2010.

GOMES, V. A Fenomenologia da Resiliência: teorias e histórias de vida. Curitiba: Editora


CRV, 2015.

ROGERS, C. Sobre o poder pessoal. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

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Eixo - Fenomenologia e Educação


Relato de Experiência

PRIMEIRAS PRÁTICAS EDUCATIVAS DA CAPOEIRA A PARTIR DE SEUS


SENTIDOS VIVIDOS: O JOGO DO CHAPÉU

Pedro Henrique Martins Valério. E-mail: pedrohmvm@gmail.com.


Doutorando em Psicologia-Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto –USP;
Bolsista FAPESP. Orientador: Cristiano Roque Antunes Barreira.

Palavras-chave: capoeira; educação; fenomenologia e Cultura.

INTRODUÇÃO

Este resumo parte de uma experiência profissional do ensino de elementos da Capoeira


Angola no programa Tempo de Escola/Mais Educação no município de São Bernardo do
Campo, no Estado de São Paulo, entre 2014 e 2016. Tal programa oferecia diversas atividades
artísticas, culturais e esportivas no contra turno para alunos do ensino fundamental de escolas
públicas. Nesta atuação surgiram questionamentos sobre como ensinar algo mais próprio à
Capoeira, criando métodos de ensino em sintonia com a mesma e de modo a contribuir para a
formação educativa dos alunos. Do contraste entre os resultados de pesquisa fenomenológica
realizada sobre a estrutura de sentidos vividos da Capoeira (VALÉRIO, 2014), a experiência
prática do autor enquanto capoeirista e a observação da aplicação de metodologias de ensino
por parte de outros profissionais dentro e fora do programa citado, tais questões a respeito de
como ensinar algo mais próximo de um saber pertinente a capoeira, - não apenas ensinar
movimentos que lhe são alusivos - surgiram. Iniciou-se uma prática educativa referenciada
nos sentidos vividos da Capoeira. Potencializou-se então a mesma enquanto prática educativa
a partir de seus próprios sentidos e, por outro lado, dialogou-se crítica e horizontalmente com
os conhecimentos teórico-pedagógicos formais que chegavam aos profissionais de então.
Portanto, o objetivo deste relato, é descrever como se chegou, durante esta experiência
profissional, aos primeiros questionamentos sobre o ensino da Capoeira neste contexto, às
orientações teóricas e práticas de ensino que emergiram como alternativa possível, buscando-
se respostas à estas questões.

MÉTODOS

Para se aproximar das questões e das possíveis alternativas de solução houve


contribuições de um olhar fenomenológico para o desenvolvimento de pesquisas qualitativas
em Psicologia (VALÉRIO; BARREIRA, 2015; BARREIRA, 2017) que, neste caso, atua
como referencial adaptado para responder à questão inicial: é possível ensinar Capoeira sem
se orientar exclusivamente por técnicas incorporadas à ela a partir de referenciais pedagógicos
formais da área da Educação Física?

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e Fenomenologia

É possível proporcionar uma atividade educativa significativa sem se orientar exclusivamente


por estes referenciais? Buscou-se desenvolver um exemplo de ensino efetivado durante esta
experiência profissional, com respaldo em pesquisa fenomenológica já realizada. Há então
quatro momentos inspirados no método fenomenológico, que orientaram esta busca: 1- Tirar
de circuito as concepções correntes sobre o tema (Inspirada na epoché). 2 - Observação e
registro das informações testemunhadas durante a experiência profissional, identificando
assim ideias invariantes que sustentam uma determinada concepção corrente entre diversos
educadores da área, sobre como, porque e o que é ensinar Capoeira neste contexto (Inspirada
no cruzamento intencional): a ideia invariante neste caso é a da necessidade de exclusividade
de técnicas pedagógicas formais oriundas da Educação Física e de outras áreas, se sobrepondo
a modos de ensino e aprendizagem próprios ao acontecimento original da Capoeira para
ensina-la. 3 – Indagação (Inspirada na Redução Fenomenológica) a respeito das concepções
que sustentam a ideia invariante anterior via variação imaginária para assegurar a validade
desta e aprofunda-la, extraindo o seu significado possível: chega-se na concepção de
instrumentalização teórico metodológica que tende esvaziar a Capoeira enquanto fonte
legítima de saberes, objetivando-a a serviço de ideais educativos genéricos, frequentemente
inquestionados. E, por fim, 4- Retorno à estrutura de sentidos vividos da Capoeira via um
novo olhar sobre os resultados da pesquisa citada que resultaram na elaboração de alternativas
educativas e pedagógicas que retornaram ao ensino prático e ao contato com outras teorias e
propostas metodológicas em educação, munidos de orientações que foram experimentadas e
avaliadas sempre segundo as estruturas originárias de sentido desta manifestação cultural.
(Inspirado na Arqueologia Fenomenológica das Culturas). Foram estes os passos que guiaram
a experiência profissional de produção do exemplo de proposta pedagógica aqui descrito.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Notou-se que de modo geral as metodologias mais em voga neste campo são orientadas
teoricamente pela Educação Física e pela Pedagogia. Neste caso, a Capoeira figurava como
instrumento para fins como cidadania, socialização entre outros. Ao analisar a prática destas
propostas acompanhando educadores que trabalham com a Capoeira, seja observando-as em
ambiente profissional, seja por via de participações em diversos cursos, formações e oficinas
sobre o assunto, seja testemunhando relatos de outros educadores, se entreviram alguns
referenciais teórico-práticos, a exemplo de Columá (2017) Silva e Reine (2008), entre outros.
Nesta interface entre propostas pedagógicas, observação das atuações de outros profissionais
e os referenciais teóricos citados, notou-se uma característica constante: nos relatos de
profissionais que fizeram menção a estes trabalhos como recursos pedagógicos importantes,
se verificou a prática e ensino da Capoeira no mundo adulto como demasiadamente
monótonas, exigentes e arriscadas para diferentes faixas etárias da educação infantil. Por este
motivo, se recorria sempre aos métodos e técnicas para mobilizar segura e ludicamente as
crianças e, assim, controlar seus comportamentos e ganhar sua atenção e engajamento na aula.
Desta forma se pode conseguir ensinar, indiretamente, aquilo que seria “chato” de aprender.
Outro motivo, este externo aos capoeiristas educadores, vinha da exigência do ensino de algo
para além da Capoeira, como valores supostamente externos a ela como “respeito ao
próximo”, “trabalho em equipe” etc. O educador então precisaria dominar

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recursos teóricos alheios à Capoeira e demonstrar como ela poderia ser instrumentalizada para
estes propósitos. Para isto, haveria necessidade descreve-la e oferece-la segundo métodos
pedagógico-formais que a instrumentalizam. Neste ato, vê-se que há implícita a ideia de que
aprender somente Capoeira, seria apenas dançar, fazer acrobacias e golpear e esquivar, acertar
ou não ser acertado no ritmo de uma música. Esta cobrança vinha de coordenadores de
equipes de variadas instituições vinculadas ao programa, de profissionais da área que
oferecem formações, entre outros. É possível se entrever, portanto, uma ideia de que apenas a
prática da Capoeira, sem finalidades específicas e aporte teórico acadêmico, seria incapaz de
transmitir saberes sociais, políticos e culturais e, assim, contribuir para a formação educativa
de modo original. Examinando estas práticas correntes, viu-se que há uma série de
brincadeiras desenvolvidas para que as crianças possam aprender e praticar valores e regras
genéricas de convívio social ou de desenvolvimento pessoal. Tal indício ganhou força quando
se pode observar que, no ensino de outras artes marciais, também se recorre aos mesmos
recursos lúdico-pedagógicos. Assim, realizando uma reflexão: ao substituir os movimentos de
Capoeira por outros movimentos típicos de outra arte marcial, ensinados direta ou
indiretamente nestas práticas pedagógicas, o resultado final pode ser o mesmo: o ensino de
valores genéricos. Verifica-se, então, a possibilidade de que as artes marciais em questão
nestas propostas educativas, são mais rótulos vazios de sentido culturalmente singular a serem
preenchidos por estes valores oriundos de teorias e práticas educativas formais, do que fontes
protagonistas na elaboração pedagógica do seu ensino.
Verificando este possível vazio nestas atuações práticas, procurou-se preenchê-lo. O
que se descreve a seguir foi aplicado em meio a outros recursos pedagógicos, inclusive alguns
oriundos dos próprios autores citados, que são importantes, mas sempre sendo colocados em
função do sentido da Capoeira, e não o contrário. Expõem-se primeiramente alguns dos
resultados de pesquisa (VALÉRIO, 2014). Um sentido vivido próprio à Capoeira é o Acordo
Corporal (Acorpo). Este é pré-reflexivamente dado a partir de uma mobilização corporal,
existencial e pessoal do capoeirista pela musicalidade que o coloca em ginga e diálogo
corporal com o outro. A dança é pre-condição para o ataque, a esquiva ou a defesa, ela não
apenas os esconde, mas antes os executa. Golpes nem sempre são perigosos, e nem sempre
são “de mentira”. Temos aqui um sentido vivido que já delineia, no momento mesmo de sua
manifestação, outros dois sentidos: a abertura atenta e a espera. Abertura porque é preciso
estar aberto ao diálogo corporal, mas atenta porque tudo deste diálogo movente e inconstante
pode surgir: há o risco como algo que se deve lidar. Há, portanto, uma tensão no risco que
estrutura um diálogo marcial divertido entre corpos relaxados. Corpos que se deixam levar,
sempre um tanto mais ou menos precavidos um ao outro, o corpo vadio é lúdico, atento,
desperto e perigoso. Neste ponto, há que se saber esperar – Espera –, em ação constante, que
o momento certo surja e aconteça o desenlace imprevisível ou não da mesma. É esta tensão da
iminência do ataque-defesa talvez imprevisível, em suas múltiplas possibilidades de saídas e
contra ataques, que se dá a vivência lúdica. Se a tensão é desfeita, a brincadeira “perde a
graça”, assim como em qualquer outra brincadeira fácil demais, ou difícil demais. Nota-se que
esta tensão intersubjetiva, frente a infinidade de alternativas espaciais e gestuais na roda, é
estruturante à Capoeira em sua manifestação plena. Estes sentidos estão na base da
constituição de um saber sensível no registro da alteridade, da situação vivida, suas
potencialidades e limitações, de si próprio, do outro e da relação entre eles. Portanto um saber

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que, por si mesmo, extrapola a roda de capoeira e pode se atualizar na vida em qualquer
situação vivida com outras pessoas.
Como então, se poderia proporcionar uma experiência para os alunos, que promova,
em algum grau, o desenvolvimento de tal saber? Para gerar a mobilização musical própria ao
capoeirista em ação, seria necessária uma roda de capoeira composta por capoeiristas
experientes e, além disto, de uma sensibilização existencial espontânea por parte dos alunos,
que, com certeza, seria incerta e necessária para o estado de Acorpo. Dentre as diferentes
alternativas desenvolvidas, opta-se aqui por uma, surgida a partir de uma observação de um
fato eventual, testemunhado durante ensaios de Maracatu Rural na Zona da Mata norte de
Pernambuco. Às vezes, surgia uma brincadeira em meio à dança - que também guarda saberes
marciais - que consistia em tentar “tomar” o chapéu de outro folgazão (“praticante”) que
estava presente em uma roda formada por vários folgazões que podiam um tomar o chapéu do
outro, dentro de uma linguagem e situação corporal específica.
Resolveu-se realizar então uma experimentação para, por meio de uma prática com o
chapéu, mobilizar as crianças na roda de capoeira de modo a gerar uma vivência que desse
conta, em algum grau, de promover esta qualidade de experiência lúdica semelhante ao jogar
capoeira. Ao colocar duas crianças no centro da roda, solicitei o cumprimento das seguintes
regras. A primeira regra não permite correr: ao se tentar pegar o chapéu, ou evitar que o
chapéu seja pego, é preciso mover-se atenta, cuidadosa e criativamente para não perder o
chapéu para o outro, o que gera um estado de atenção a ele, necessitando criar movimentos
alternativos para agir sem o recurso da velocidade em deslocamentos espaciais. A segunda
regra, não permite segurar qualquer parte do corpo do outro. Acentua-se a criatividade
corporal na lida com a situação. A ginga principiava a surgir espontaneamente: sem poder
correr ou segurar, é preciso fingir, movimentar-se incerta e constantemente para enganar o
outro, o corpo oscila ao tentar pegar sem ser pego, ou pegar escapando simultaneamente, o
corpo precisava cada vez mais flexibilizar-se, ondular-se com calma e atenção, o corpo
precisa se tornar imprevisível e eficaz de outra forma. A terceira regra consiste em só ser
permitido pegar o chapéu por cima do mesmo, não pela aba, afim evitar que as mãos ou dedos
atinjam os olhos do outro ao tentar pegar o chapéu, o que aumenta a atenção e o cuidado
mútuos.
A quarta regra é relativa aos golpes, estes só podiam ser desferidos lentamente, mas
sempre numa distância suficiente para conseguir encostar o pé no outro em direção a
determinada parte do corpo: tal condição impõe a quinta regra, cada golpe obriga realizar
uma esquiva, o que impede que a criança ignore intencional ou acidentalmente o golpe de
outro – ela é solicitada a perceber quando há o início de um golpe em curso, para onde ele vai
e o que pode ser feito antes, durante e depois do golpe: abre-se um lugar de conhecimento do
outro e da situação a cada golpe. Além disso, não se “atropela” o outro e suas ações, busca-se
o objetivo sem anular o outro, pelo contrário, percebendo-o melhor em parceria com ele. Se
instaura um estado de abertura lúdica ao outro, para acolher seus gestos e ações, contudo,
com atenção, visto a disputa coexistente – lugar essencialmente semelhante com a abertura
atenta. Além disto, tal regra inaugura uma situação na qual precisa-se domínio de si e do
corpo para lidar com a situação: saber esperar o momento certo que, ao mesmo tempo é
construído com o outro, uma vivência essencialmente semelhante ao Acorpo e à Espera. Estes
sentidos se aprofundavam mais, quando se entrava em jogo a sexta regra, na qual, quando os

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dois jogadores estão em pé, deviam se movimentar na mesma altura, ou seja, quem é mais
alto, precisava se movimentar um pouco mais agachado para que o alcance do chapéu fosse
mais equivalente para ambos. Quando se trabalhavam movimentações com as mão no chão,
estas condições tendiam a se igualar mais espontaneamente. Esta regra também ajudava a
manter, em diálogo, a tensão entre facilidade e dificuldade mais equivalente para ambos. Os
golpes deviam ser realizados lentamente, mas os movimentos para pegar o chapéu, podiam ser
rápidos, o que sensibilizava cada jogador aos movimentos um do outro. A partir daí, os alunos
foram orientados a construir um jogo de modo divertido para ambos, eis a sétima regra, a
diversão de todos os envolvidos: as tensões e riscos tinham que ser moduladas ou
equiparadas, o que exigiu dos mesmos agir de modo mais favorável a gerar situações de jogo
criativas onde a maioria se divertia esquivando-se de perder o chapéu, ou tentando pega-lo,
mesmo diante de um parceiro menos habilidoso. Inclusive os que assistiam avaliavam o jogo
segundo este critério, se mais ou menos interessante de se assistir, o que implicava ser mais
ou menos interessante para ambos os jogadores. Tal jogo foi sempre feito com
acompanhamento musical e em sintonia com o ritmo.
Com esta proposta, cada aluno pode se expressar jogando com recursos próprios e
inventados, sem, contudo, deixar de aprender algo próprio à Capoeira: o que ele aprende é um
modo de perceber e se relacionar com o outro a partir dos sentidos desta manifestação
cultural. Aprende-se a gingar procurando solucionar situações e impulsionados pela
necessidade de movimentar e atingir um objetivo frente as limitações impostas pelas regras,
estas restringem ações por um lado, mas liberam uma série de outras possibilidades a serem
desenvolvidas, até então não conhecidas. A ginga nasce das imposições, restrições e
necessidades de novas alternativas frente às adversidades, o que guarda conexões importantes
com a História da Capoeira e da Cultura Negra no Brasil, na qual a malícia e a malandragem
são também um modo estratégico, sensível e criativo de resistência pessoal, social, cultural e
política. Assim, um aluno que se desenvolve nesta prática, por exemplo, tem condições,
mesmo sem domínio técnico algum, de dialogar com outro capoeirista dentro de uma roda.
Contudo, estratégias para melhorar o aprendizado técnico de movimentos, também são
importantes e complementam esta prática educativa. Não se procura aqui generalizar as
afirmações presentes neste trabalho sobre o que pensam e ensinam os educadores capoeiristas
ou não, bem como as instituições, pois há alta complexidade e diversidade de abordagens
teóricas e práticas sobre a Capoeira enquanto prática educativa, bem como das formas de
atuação prática de profissionais desta área. Por outro lado, a segunda parte deste relato, que
delineia um exemplo de aplicação metodológica em Capoeira, desfruta de consistência, pois
parte de resultados consistentes de pesquisa, mas de modo nenhum estão imunes a críticas ou
revisões. Mais ainda, foi e é frutífero que este seja combinado ou conviva com a aplicação de
outras metodologias de ensino em Capoeira, desde que não se perca de vista o que realmente
está em jogo: a integridade e protagonismo da Capoeira enquanto fonte de saberes educativos
e existenciais diversos durante o processo de seu ensino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se desenvolver tal proposta de modo a trabalhar questões importantíssimas de


cunho étnico-raciais, de gênero, sociais e históricas de modo original. Pode-se partir da

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e Fenomenologia

constituição histórica e social destes sentidos, de certa forma reinventados nesta proposta, a
partir das vivências aí proporcionadas, caminhar assim na história da pessoa negra, sua
cultura, significados e símbolos implicados à Capoeira: O chapéu, por si só, já pode trazer
muito sobre estas dimensões, não partindo de um discurso externo e desligado do sentido da
sua prática para os alunos que a experimentam, mas articulado a este. Portanto, muito ainda
pode ser explorado e desenvolvido partindo destas primeiras elaborações educacionais em
Capoeira valendo-se de uma abordagem fenomenológica que pode contribuir para maior
visibilidade e compreensão, por parte da sociedade e das áreas da educação, da potencialidade
educativa de seus saberes culturais.

REFERÊNCIAS

BARREIRA, C. R. A. Análise fenomenológica aplicada à Psicologia: recursos operacionais


para pesquisa empírica. In: MAHFOUD, M.; SAVIAN FILHO, J. (Orgs.). Diálogos com
Edith Stein. São Paulo: Paulus, p.317-368, 2017.

COLUMÁ, J. F. Capoeira e psicomotricidade: brincando e aprendendo a jogar. Petrópolis:


Vozes, 2017.

SILVA, G. O; HEINE, V. Capoeira: um instrumento psicomotor para a cidadania. Rio de


Janeiro: Caminhos do Saber, 2008.

VALÉRIO, P. H. M. (2014). Capoeira: fluxos originários em rotas marginais. 2014. 265f.


Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Escola de Educação Física e Esporte,
Universidade de São Paulo, São Paulo 2014.

VALÉRIO, P. H. M.; Barreira, C. R. A. Arqueologia fenomenológica, fenomenologia


genética e psicologia: Rumo à gênese das manifestações culturais. Psicologia USP, v. 26, p.
430-440, 2015.

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REALIZAÇÃO

Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Infâncias e Educação Infantil

INSTITUIÇÕES FINANCIADORAS

APOIO

CEPPSI
Centro de Estudos e Práticas em Psicologia

PATROCINADORES

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