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Introdução

Este artigo visa fazer uma breve introdução das ideias do historiador (francês) de
filosofia antiga Pierre Hadot, em específico da sua original leitura da filosofia antiga,
bem como utilizá-la como ferramenta teórica de compreensão do denominado Programa
Doze Passos de Narcóticos Anônimos.

Trata-se de usar a argumentação do historiador francês sobre a filosofia antiga


como exercício espiritual e procurar, modernamente, alguns paralelismos deste conceito
na nova maneira de viver afirmada pela irmandade de Narcóticos Anônimos.

O artigo descreverá, incialmente, o conceito de filosofia antiga e exercícios


espirituais compreendido por Pierre Hadot, após será feita uma concisa introdução
histórica do grupo de mútua ajuda Narcóticos Anônimos para, em seguida, procurar
conciliar os conceitos estudados pelo historiador com as propostas realizadas pela
irmandade. Por fim, em anexo, alguns textos que foram fichados para elaboração do
trabalho.

Temos por base que tanto as propostas trazidas pelo historiador, quando
elucidou o que era a filosofia antiga, quanto a nova maneira de viver sugerida por
Narcóticos Anônimos são claras proposições de vida modelares e, por isso, o trabalho
incidirá sobre elementos homólogos dos respectivos modos de compreensão da
realidade humana.

A tese de Hadot servirá, por conseguinte, de apoio teórico e compreensivo para


concebermos que o método Doze Passos traduz, atual e igualmente, um modo de vida
exemplar.

Partimos do pressuposto que os argumentos defendidos por Pierre Hadot podem


fornecer indicações precisas sobre determinadas experiências formativas humanas
básicas, prototípicas, tal qual o modelo de vida sugerido pela irmandade, ou seja, em
ambas as ocasiões seria possível enxergar modos de vida que valem a pena ser vividos e
que são, por isso, buscados por aqueles que aderem aos princípios, respectivamente, na
antiguidade, pelos filósofos e, modernamente, pelos membros dos grupos.

O argumento de Pierre Hadot: Exercícios espirituais e filosofia antiga


Pierre Hadot foi um renomado historiador e filósofo francês (1922-2010).
Dedicou-se ao estudo sistemático tanto do helenismo, cristianismo e, especialmente, da
filosofia antiga. Sobre estes estudos deu original contribuição, tendo em vista que
conseguiu interpretar inúmeros textos antigos a luz tanto dos seus respectivos contextos
históricos quanto, principalmente, filosóficos.

Recolocou o problema da filosofia antiga argumentando que esta não se tratava


– apenas – de um sistema ordenado de proposições teóricas e abstratas, mas uma
maneira de viver, isto é, a filosofia antiga propunha uma nova forma de vida, entendida
por ele como a expressão “total do ser” que englobava imaginação, pensamento,
vontade, comportamento, sensibilidade etc. Para ele, “a filosofia antiga é exercício
espiritual porque ela é um modo de vida, uma forma de vida, uma escolha de vida”
(HADOT, 2014, p. 09).

Pierre Hadot introduzindo o tema dos exercícios espirituais, o lança informando


que a filosofia, pelo menos as escolas do pensamento filosófico antigo, não consistem
no ensinamento de uma teoria abstrata, mas uma “arte de viver”, pois diz ele:

o ato filosófico não se situa somente na ordem do conhecimento, mas na


ordem do eu e do ser: é um progresso que nos faz ser mais, que nos torna
melhores. É uma conversão que subverte toda a vida, que muda o ser daquele
que a realiza. Ela o faz passar de um estado de vida inautêntico, obscurecido
pela inconsciência, corroído pela preocupação para um estado de vida
autêntico, no qual o homem atinge a consciência de si, a visão exata do
mundo, a paz e a liberdade interiores (HADOT, 2014, p.22).

Desse modo, a filosofia antiga seria, fundamentalmente, exercício espiritual,


pois é uma forma (intentada) de vida cuja repercussão incide sobre todo o modo de
existência, não uma teoria, apenas. Nas palavras de Hadot (2014, p. 10): “a filosofia não
é uma teoria dividida em três partes, mas um ato único em viver a lógica, a física e a
ética” (em contraste com, respectivamente: uma lógica teórica, uma física teórica e uma
ética teórica, que eram fundamentais para a educação antiga), ou, como argumenta
ainda: “dito de outro modo, a filosofia era o exercício efetivo, concreto, vivido, a prática
da lógica, da ética e da física” (HADOT, 2014, p.10).

Tem particular importância o impacto do conceito “exercício espiritual”, pois é


ele, segundo Hadot, que fornece toda a compreensão subjacente das suas teses sobre
filosofia antiga. Para o filósofo, exercício espiritual e filosofia antiga são campos de
sentido indissociáveis e é essa conexão que o filósofo põe em evidência analisando os
inúmeros contextos de ocorrência dos atos filosóficos antigos.

O termo – exercício espiritual –, portanto, segundo Hadot, dá conta de abarcar a


totalidade da experiência humana buscada na filosofia antiga, pois:

a expressão (‘exercícios espirituais’) engloba o pensamento, a imaginação, a


sensibilidade assim como a vontade. A denominação de exercícios espirituais
é, finalmente, portanto, a melhor, porque marca bem que se trata de
exercícios que engajam todo o espírito (HADOT, 2014, p.09)

Pierre Hadot indica que o termo espiritual, empregado nos vários contextos dos
atos filosóficos antigos, é capaz de indicar bem os processos que esses mesmos atos
procuram operar na pessoa, porquanto diz ele: “a palavra ‘espiritual’ permite entender
bem que esses exercícios são obra não apenas do pensamento, mas de todo o psiquismo
do indivíduo” (HADOT, 2014, p.20).

Em consonância com os vários contextos onde os atos filosóficos ocorrem e,


especificamente, os exercícios espirituais, Pierre Hadot insere o termo grego askesis,
que: “nos filósofos da Antiguidade, a palavra askesis designa unicamente os exercícios
espirituais dos quais falamos, isto é, uma atividade interior do pensamento e da
vontade”. (HADOT, 2014, p. 69).

Logicamente, as implicações óbvias do tipo de vida que os exercícios espirituais


indicam, orientam, vai no sentido de harmonizar – o máximo possível – o discurso com
a vida, porque, nas palavras de Hadot (2014, p.79): “há na vida espiritual um tipo de
conspiração entre as palavras normativas, meditadas e memorizadas, e os
acontecimentos que dão ocasião de colocá-las em prática”.

Desse modo, um outro tema que se liga necessariamente com a harmonia entre
vida e discurso se dá através da exemplaridade, ou seja, a vida, de forma clara e
evidente, deve explicitar a coerência. Não à toa, ao tomar Sócrates como mestre e
exemplo de filósofo (isto é, aquele cuja vida é modelar nos exercícios espirituais),
Hadot diz: “no diálogo socrático, a verdadeira questão que está em jogo não é aquilo
que se fala, mas aquele que fala”. (HADOT, 2014, p. 36).

Isto tem significado capital em relações os exercícios espirituais na filosofia


antiga, pois tanto põe a experiência pessoal exemplar a fim de sustentar o próprio
discurso, dito de outro modo, a exemplaridade de quem fala deve ser o fundamento
daquilo que se fala, teoriza, abstrai, intelectualiza etc. Daí que a vida deve ser exercitada
em todos os seus aspectos, na totalidade de sua extensão e profundidade, cuja finalidade
é, fundamentalmente, nestes termos, o progresso espiritual, pois: “a realização do
progresso espiritual exige, pois, exercícios”1(HADOT, 2014, p. 53).

É, portanto, exigido um treinamento, uma “ginástica” empreendida no sentido


mais forte das palavras a fim de dirigir toda a personalidade à modificação de si e assim
cumprir as exigências dos exercícios espirituais, pois Pierre Hadot afirma, em
consonância com a leitura dos filósofos tanto da Antiguidade greco-romana quanto com
os primeiros padres da Igreja, que à noção de exercício comporta: “o fato de repetir
ações, de realizar training para se modificar e transformar a si mesmo (...)” (HADOT,
2014, p. 81).

Uma brevíssima história de Narcóticos Anônimos (NA)

Por conta da importância do Texto Básico (ou Livro Azul) de NA para a vida dos
que fazem parte do grupo, citaremos à íntegra a definição proposta pelo próprio grupo,
que afirma:

NA é uma Irmandade ou sociedade sem fins lucrativos, de homens e


mulheres para quem as drogas se tornaram um problema maior. Somos
adictos em recuperação, que nos reunimos regularmente para ajudarmos uns
aos outros a nos mantermos limpos. Este é um programa de total abstinência
de todas as drogas. Há somente um requisito para ser membro, o desejo de
parar de usar. Sugerimos que você mantenha a mente aberta e dê a si mesmo
uma oportunidade. Nosso programa é um conjunto de princípios escritos de
uma maneira tão simples que podemos segui-los nas nossas vidas diárias. O
mais importante é que eles funcionam. Não tem subterfúgios. Não somos
filiados a nenhuma outra organização, não temos matrículas nem taxas, não
há compromissos escritos, nem promessas a fazer a ninguém. Não estamos
ligados a nenhum grupo político, religioso ou policial e, em nenhum
momento, estamos sob vigilância. Qualquer pessoa pode juntar-se a nós,
independentemente da idade, raça, identidade sexual, crença, religião ou falta
de religião. Não estamos interessados no que ou quando você usou, quais
eram os seus contatos, no que fez no passado, no quanto você tem ou deixa
de ter; só nos interessa o que você quer fazer a respeito do seu problema e
como podemos ajudar. O recém-chegado é a pessoa mais importante em
qualquer reunião, porque só dando é que podemos manter o que temos.
Aprendemos com nossa experiência coletiva que aqueles que continuam
vindo regularmente às nossas reuniões mantêm-se limpos (TEXTO BÁSICO,
p. 10).

1
Comparemos, por exemplo, o que está descrito no texto básico de Alcoólicos Anônimos: “Não somos
santos. O importante é que desejamos crescer espiritualmente. Os princípios acima descritos (isto é, Os
Doze Passos) são guias para o progresso. Nossa meta é o progresso espiritual, e não a perfeição moral.”
Extraído de O texto básico para Alcoólicos Anônimos, Brasil, 2017, p. 89.
Passada esta definição validada e autorizada pela irmandade, o grupo de NA2, a
história de NA se dá, especificamente a partir de Alcoólicos Anônimos, este por sua vez
tem sua origem dentro de um movimento religioso chamado Grupo de Oxford, que se
organizava na cidade de Akron (EUA) e prescrevia comportamentos de moral elevada a
fim de transformar alcoolistas em seres humanos de verdade (A.A., 1987). O Grupo
Oxford foi iniciado pelo ministro luterano Frank Buchman (1889) entre os anos de
1916-1920 e os comportamentos propostos pelo grupo se assentavam numa ética rígida,
onde seus membros eram exortados a: “sinceridad absoluta, pureza absoluta, amor
absoluto, y falta absoluta de egoismo. Estos conceptos se empleaban como unidades de
medida del progreso individual (A.A., 1987, p. 06). Isto é, a sinceridade irrestrita, a
pureza, o amor e a total falta de egoísmo eram condições indispensáveis para
desenvolver o progresso individual.

Nos anos 30, o Grupo Oxford atraiu muitos alcoólicos e alguns conseguiam se
manter sóbrios, um desses alcoolistas fora Bill Wilson que, compartilhando sua
experiência com outro alcoolista, dr. Robert Smith, fundou em 1935 (Nova Iorque), o
Alcoólicos Anônimos (A.A., 1987).

A história de NA, derivada como vimos de AA, dá-se no início dos anos 50 na
cidade de Los Angeles (EUA). Um dos seus principais fundadores, Jimmy Kinnon
(1911-1985), frequentava reuniões de AA e viu a necessidade de partilhar o uso de
outras substâncias além do álcool mantendo a abordagem dos Doze Passos.

Atualmente, o grupo está em mais de 144 países, incluindo o Brasil que,


segundo estatística oficial (N.A., 2020), tem aproximadamente 4.555 reuniões em todo
o seu território, perfazendo um total próximo de 1.649 grupos.

Aproximações possíveis da Filosofia Antiga e o Programa dos Doze Passos

Partimos da premissa que a filosofia antiga compreendida como maneira de


viver e de forma mais especial realizada através dos exercícios espirituais possui
paralelismos, pontos de contato, formas análogas de expressão com o programa baseado
nos Doze Passos, uma vez que ambos intentam formar mais que informar, objetivam
2
Narcóticos Anônimos é apenas um dos muitos grupos que surgiram em torno do método dos Doze
Passos de Alcoólicos Anônimos; dentre eles podemos destacar: Neuróticos Anônimos, Comedores
Compulsivos Anônimos, Dependentes de Amor e Sexo Anônimos, Mulheres que amam demais anônimas
etc.
produzir mudanças (as vezes radicais) na personalidade do indivíduo. O diálogo aqui
empreendido tem como meta possibilitar a verificação dos núcleos de sentido comuns
entre práticas antigas e atuais, isto é, as convergências entre modos de vida cuja a
“substância” é o que vem a ser uma vida que vale a pena ser vivida, o que é viver uma
vida humana autêntica, como se vive esta vida, e em quais condições isto é possível?

Um dado relevante sobre o papel da literatura da irmandade é seu caráter fundamental


de experiência formativa. Isto é, os escritos – tanto da antiguidade clássica quanto textos
dos grupos de mútua ajuda – não visam tanto a informação quanto visam a formação.
Objetivam provocar um efeito no seu interlocutor, têm interesse de produzir
determinada disposição no espírito do leitor a fim de que este esteja capaz de receber
instruções que não são apenas instruções, mas orientações para a mudança de conduta,
“sugestões” de alternativas de vida. Essas literaturas buscam imprimir, ora implícita às
vezes de modo evidente, certo estado de modificação do ser. Neste aspecto são,
necessariamente, éticos.

LIVRETO BRANCO. Narcóticos Anônimos (1990). Van Nuys, World Service Office.

NOTICIAS DE LA OFICINA DE SERVICIOS GENERALES DE A.A. Dirección


Postal: Box 459, Grand Central Station, New York, NY 10163. Vol. 20 no. 1 / febrero-
marzo 1987. Material disponível em: www.aa.org/newsletters/es_ES/sp_box459_feb-
mar87.pdf

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