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Quadro 1 – População distribuída por distrito sanitário X Número de CAPS por Distrito2
DS População N. de CAPS transtorno N. de CAPS AD N. de CAPS infantil
I 78.098 1 1 -
1
Portador de transtorno mental: proposta de Amarante.
2
A Cidade do Recife conta com apenas um CAPS III, CAPS David Capistrano, localizado no Distrito
Sanitário VI que, de acordo com a Portaria Ministerial 336/02, deve funcionar 24hs oferecendo
“acolhimento noturno, nos feriados e finais de semana, com no máximo 05 (cinco) leitos, para eventual
repouso e/ou observação”. Os demais são CAPS II, que funcionam em dois turnos.
II 205.986 1 1 1
III 283.525 2 1 -
IV 253.015 1 1 -
V 248.483 1 1 2
VI 353.798 2 1 -
De acordo com o Ministério da Saúde, os CAPS do tipo II ou III devem cobrir uma área
de 200 mil pessoas, então o número de CAPs existentes hoje na Cidade do Recife está em
sintonia com o que preconizam as diretrizes para o atendimento territorial. Assim, se o que nos
interessasse neste estudo fosse cobertura, estaria encerrada a discussão. Contudo, o que nos
motiva a discutir não é a cobertura, mas os processos de trabalho, a cultura antimanicomial, o
fazer político.
Lancetti (2006) nos chama atenção para as “diversas formas tecnocráticas, burocráticas
e coorporativas em que a assistência acaba caindo” (p. 46) apontando que um dos grandes
obstáculos para o funcionamento adequado dos CAPS é a centralização em si mesmo, ou seja,
sua pouca abertura para o território.
No processo de Reforma Psiquiátrica em andamento no Recife, em 2004 foi
consolidado o seguinte modelo: de um lado as equipes dos CAPS, e do outro as equipes
matriciais – aqui atualmente denominadas de Equipe de Ação Avançada - que não se
misturavam nem exerciam funções na assistência dos serviços substitutivos. Esse formato
proporcionou o estabelecimento de uma dicotomia da política de saúde mental no município: de
um lado uma equipe avança no território, e de outro uma que atende a crise prioritariamente
dentro dos muros institucionais. Essa experiência nos mostra que não basta criar serviços
substitutivos para que estejam dadas as condições de se avançar na Reforma Psiquiátrica.
Lancetti (ibidem) aponta para os riscos de cronificação de um serviço que trata doentes
mentais. Percebe-se que há uma tendência de adaptar os indivíduos aos modelos supostamente
terapêuticos “dominados” pelas equipes. No caso pernambucano, fica evidente que quando se
cria uma equipe para “sair”, se diz para a outra que ela não precisa fazê-lo, e,
conseqüentemente, ela não se oxigena com a complexidade do território o que facilita seu
processo de cronificação. As análises recentes sobre o funcionamento dos CAPS apontam para
os riscos de “capsização” e mostram que quando um CAPS não vai para o território torna-se
burocrático e corporativista.
O panorama de Recife se repete em muitas cidades brasileiras: prioridade na ampliação
da rede CAPS II em detrimento da dos CAPS tipo III. Se de um lado, não é eficaz um CAPS
que não funciona 24hs, de outro, precisa-se problematizar o que vem se chamando de “atenção
psicossocial”. Essa questão passou a fazer parte de nossas preocupações há quase dois anos
quando participamos de uma defesa de tese na Universidade Federal de Pernambuco e um dos
professores citando um trabalho, apontou que os CAPS em Recife eram “mini manicômios”,
referindo-se especificamente ao CAPS III David Capistrano. A afirmação nos pegou de surpresa
e a primeira reação foi negar o que estava sendo dito. Num segundo momento, contudo,
procuramos saber em que bases o professor defendia sua afirmação. Afinal de contas nós
estávamos implicadas na Reforma Psiquiátrica e, ainda pior, éramos todas lotadas no
mencionado serviço apesar de fazermos parte da equipe matricial. Passado o momento de
negação e a angústia inicial, abrimos um canal de comunicação com o professor. Com a sede de
saber quem estava difamando nossas práticas perguntávamos: será por desconhecimento? O
assombro aumentou quando descobrimos que sua veemência estava pautada numa dissertação
de uma colega de trabalho, mas a angústia ainda iria piorar, pois o professor nos relatou que em
nenhum momento essa colega falava em seu trabalho que esse serviço era como um hospital.
Não, muito pelo contrário. Ela não só fazia referência à reforma psiquiátrica como sustentava
que o serviço era fruto disto. Questionamos, então, como ele poderia dizer que o trabalho
mostrava o serviço como um manicômio? Ele nos respondeu calmamente que foi o que concluiu
pelas atividades realizadas no CAPS que a colega descreve em seu trabalho. Aquilo nos
inquietou profundamente e, desde então temos nos perguntado: o que diferencia os CAPS dos
centenários hospitais psiquiátricos? A estrutura física? A humanização do atendimento? Se a
questão é essa, para quê se inventa uma nova instituição? De acordo com Lancetti (2006)
“qualquer instituição que agrupe doentes mentais tende a cronificar-se. Criam-se coletivos
altamente repetitivos: providenciar sinuca, televisão, oficinas adjacentes, por exemplo, mas
quando há uma crise, busca-se logo o psiquiatra” (p. 47). Ao discutirmos sobre isto numa
reunião do CAPS, chegamos inclusive a questionar, em que as atividades ali realizadas se
distinguiam das praticadas no manicômio, lembrando que no hospital também existem grupos,
oficinas, reuniões de família, etc, ficando claro que tais práticas (ou atividades?) por si só não
conduzem a desinstitucionalização, o que de acordo com Cedraz e Dimenstein(2005 ), “requer
uma desconstrução cotidiana de ideologias e práticas cristalizadas, defendendo uma mudança
para além dos muros dos serviços de saúde mental”. E ainda, a desinstitucionalização não está
voltada para a adaptação do indivíduo a sociedade, mas “se preocupa em transformá-la,
repensando o trabalho, a família, a medicina, as políticas públicas e demais instituições que
atravessam nossas vidas na contemporaneidade, por isso exige um questionamento
interminável de nossas ações”
A Reforma Psiquiátrica brasileira sofreu grande influência da Reforma Psiquiátrica
Italiana com Franco Basaglia, que percebe que não adianta humanizar o hospital. Fundando-se
no conceito (ou idéia?) de desinstitucionalização traz a prerrogativa de que éÉ necessário
romper com o paradigma psiquiátrico e construir um novo espaço social para a loucura. Pois
bem, no Brasil, muitos dos nossos serviços, como no caso do Recife, têm mostrado que sem
dúvida o CAPS é um espaço mais humanizado do que o manicômio. Mas a questão é: o que
vem fazendo para desconstruir o modelo manicomial que está na cabeça de cada um de nós?
Ou, como dizem Alverarenga e Dimenstein (2006):
(...) discutir os “desejos de manicômio”, chamando atenção para o fato de que
os mesmos atravessam o tecido social, e, nesse sentido, constituem força
motriz que alimenta as instituições, que se fazem presentes cotidianamente
nas práticas e concepções no campo da saúde mental (p. 300).
A análise de um caso recente ilustra bem até onde vai a cronificação das práticas. É para
romper com a cronicidade, com o burocratismo e com o corporativismo, mas é também por
acreditar que existe a possibilidade de se ter uma prática política radicalmente em defesa do que
preconiza a Lei 10.216, que as pessoas têm direito em de serem tratadas em serviço substitutivo,
que fazemos essa crítica. O caso em questão é de uma usuária do CAPS LivreMente, Maria3, 45
anos, sujeito (vivo), usuária diagnosticada como portadora de transtorno afetivo bipolar, em
grande sofrimento psíquico, com mais de 10 internações em hospitais psiquiátricos e com uma
família em grande sofrimento. Foi identificado pela equipe do CAPS LivreMente onde ela está
em acompanhamento que Maria necessitava de acolhimento integral, o que implicava em
pernoite no CAPS David Capistrano, único 24hs da Cidade 4, tendo início um drama comum no
Recife: a falta de vagas para pernoite.Como já apontamos, a Portaria 336/02 prevê 5 (cinco)
usuários para pernoite, justiça seja feita a equipe do CAPS David Capistrano já recebeu até 8
usuários. Talvez por esse motivo, recentemente a equipe técnica tenha estabelecido que o
máximo para pernoite seriam 6 (seis) usuários e, naquele momento, Já existiam 6 (seis) pessoas
no serviço. Diante disso, coube à equipe do CAPS LivreMente “decidir” onde Maria passaria a
noite. Remarque-se que “passar a noite”, nesse caso, implicava em oferecer acolhimento
noturno à Maria. Naquele momento a família não tinha condições de acolhê-la, visto que
também precisava cuidados. Diante da posição da equipe do CAPS David Capistrano em não
exceder o número de usuários no serviço, restava à equipe do LivreMente enviar a usuária para
o Serviço de Emergência Psiquiátrica do Hospital Ulysses Pernambucano (manicômio estadual)
que conta com leitos de observação, com o compromisso de “resgatá-la” no dia seguinte. Temos
aqui um paradoxo e, porque não dizer, um absurdo: como um serviço substitutivo aos hospitais
psiquiátricos pode fazer pactos com o manicômio?!
Talvez novamente Lancetti tenha razão “a maioria dos CAPS não funciona pensando
na cidade, em seus problemas, mais candentes, e muito menos se preocupa com a diminuição
da das internações psiquiátricas, dos suicídios, dos homicídios ou de outras formas de
violência” Lancetti,2006: 47). Muito provavelmente poderíamos aprofundar a discussão da
3
Nome fictício.
4
Cabe ressaltar que o CAPS LivreMente é do mesmo distrito sanitário que o CAPS David Capistrano.
cronicidade dos serviços à discussão marxista de trabalho alienado, mas deixaremos isso para
um outro momento.
O percurso de Maria nos permite uma ampla discussão política na direção da
responsabilidade do Estado na construção e consolidação da política de saúde mental. Não
podemos operar com o estatuto do Estado mínimo, não podemos responsabilizar as famílias por
seus pacientes em crise. É preciso que se entenda que o que sai de cena é o hospital psiquiátrico
e não o Estado.
Sabemos que apenas um CAPS 24hs para uma população de mais de 1.400.000
habitantes, quando deveria existir um CAPS para cada 200 mil habitantes é muito pouco. Sem
dúvida alguma precisamos discutir política, mas também precisamos fazer política. Sair da
condição passiva de seguidores de regras (quando convém) e passar para ação política
(GRAMSCI, ????). enfrentando, para isso, o “espírito de rebanho produzidos por nós
mesmos”(Castelo Branco,2004 citado por Cedraz e Dimenstein,2005) “trata-se pois de
empreender o exercício do político, tal como entendido por Arendt (Ortega, 2000), de produção
de novas subjetividades, novas formas de sociabilidade, de milagres em favor do inesperado e
do imprevisível, de formas de agir que são máquinas de guerra contra a despolitização da
vida” .(Cedraz e Dimenstein, 2005). Os autores e pensadores acima destacados nos convidam
então a questionarmos----Questionamos como estamos construindo espaços de discussão
política? Ou ainda: se toda clínica é política, que clínica é essa? Na mesma semana discutimos
em outro espaço a “Clínica Dom José” 5, uma clínica excludente, segregadora, opressora,
seguidora de regras e que não discute nem vê sujeitos, apenas objetos de suas regras. A
“clínica” dos números, das regras que não potencializa sujeitos, que rejeita as subjetividades,
que não faz vínculos, que não discute cuidado. Percebe-se a necessidade de proceder-se a uma
ampla revisão sobre os princípios que orientaram a organização e administração dos serviços
substitutivos.
A situação nos faz lembra Lancetti (2006) quando aponta para a cronicidade e
burocratização dos serviços em que “não cabe aos terapeutas procurar novas estratégias
clínicas: os pacientes é que devem adaptar suas demandas às ofertas dos serviços” (p. 47).
Nessa teia burocratizada, os técnicos dos serviços passam a ser movidos pelas dificuldades e se
fecham no corporativismo. Percebe-se uma crescente individualização das ações, com uma
fachada de decisões coletivas; uma crescente valorização nas necessidades individuais,
exarcebação do individualismo, típicos da sociedade burguesa contemporânea.
Não se faz política se omitindo, seguindo regras sem refletir, sem lutar e sem brigar. A
prática habitual, eminentemente hospitalocêntrica, centrada nas “metodologias de
padronização, protocolos, fluxograma, cadeias de cuidado e acreditação – tentam transportar
5
É do conhecimento de todos o caso da menina de 09 anos que ficou grávida de gêmeos (fruto do estupro
do padrasto) e que a equipe médica que praticou o aborto (mesmo previsto em Lei) foi excomungada por
Dom José Cardoso Sobrinho, segundo ele, cumprindo as regras da Igreja Católica.
para os serviços e sistemas de saúde a lógica da linha de produção. Reconhecem como
inevitáveis a fragmentação do trabalho clínico” (CAMPOS, 2007, p. 851). Esse modelo de
trabalho em saúde mental tem grande influência das teorias fordista e taylorista buscando a
racionalização, eficiência e controle das ações, caracterizando-se por um crescente processo de
individualização e privatização das práticas sociais e psíquicas. Como aponta Campos (ibidem,
p. 851):
Em geral, esse sistema produz importante grau de desresponsabilização
diante de casos concretos, acarretando ainda custos crescentes e retardo no
acesso a tratamentos essenciais. O modelo da acreditação e da qualidade total
centra sua atenção em equipamentos, fluxos e procedimentos; em geral, não
instituindo alternativa para a gestão do caso clínico.
6
Frase dita por Sueli Câmara, ex- gerente do CAPS LivreMente, ao saber da decisão da equipe.
para a ampliação do grau de autonomia dos usuários, ou seja, para o aumento da capacidade de
compreenderem e atuarem sobre si mesmos e sobre o mundo, pela capacidade de autocuidado,
de compreensão sobre o processo saúde/enfermidade, pela capacidade de usar o poder e de
estabelecer compromisso e contrato com outros, a questão que se coloca para reflexão é: como
desenvolver a autonomia dos usuários se não exercemos a nossa?
Referências Bibliográficas:
ALVERARENGA, Alex R. e DIMENSTEIN, Magda. A reforma psiquiátrica e os desafios na
desisnstitucionalização da loucura. In: Interface – Comunicação, Saúde, Educação v. 10,
n.20, p. 299-316, jul/dez 2006.
AMARANTE, Paulo. ?????
CEDRAZ, Ariadne e DIMENSTEIN, Magda. Oficinas terapêuticas no cenário da Reforma
Psiquiátrica: modalidades desinstitucionalizantes ou não?. In: Revista Mal-Estar e
Subjetividade. v. V, n. 2, p. 300-327, Fortaleza, Set. 2005.