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LIÇÕES DE UM DEBATE DE MESTRES

Um olhar sobre a tarefa da filosofia a partir do debate Habermas-


Gadamer
Itamar Luís Hammes*
itamarh@unilasalle.edu.br
itamarh@uri.com.br

Considerações Introdutórias

Mesmo que vivamos um momento privilegiado, onde a filosofia se tornou


disciplina obrigatória nas escolas de ensino médio do Brasil, as
interrogações e dúvidas sobre a tarefa da filosofia são uma constante.
Sem querer entrar numa discussão sobre métodos e conteúdos mais
apropriados ao estudo da filosofia, o presente texto pretende extrair
algumas lições sobre a tarefa filosófica presente no debate Habermas-
Gadamer1. A nosso ver todo o debate gira, em última instância, em torno
da tarefa da filosofia no mundo contemporâneo2. Enquanto Gadamer
insiste na experiência hermenêutica, no papel da tradição e afirma que a
hermenêutica ultrapassa o domínio de controle da metodologia científica
(1977, p. 23), Habermas percebe nisto uma negligência da subjetividade,
*
Mestre em Filosofia - UNILASALLE/Canoas, URI/Erechim.
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Um debate de mestres que aconteceu na segunda metade do século passado.
De um lado Habermas, herdeiro da teoria crítica, autor da Lógica das Ciências
Sociais e preocupado com as condições de um diálogo livre de dominação e
violência. De outro, Gadamer, discípulo de Heidegger, interessado em temas
como a dialética platônica, Hegel, questões ligadas à arte e ao romantismo
alemão. Em sua obra mestra Verdade e Método reflete sobre as condições
históricas e filosóficas da compreensão e interpretação.
2
No essencial os textos encontram-se reproduzidos numa obra coletiva intitulada
Hermeneutik und Ideologiekritik (Frankfurt, 1971), que recolheu também os
contributos de Apel, Bormann, Giegel e R. Bubner. Aí se reuniram os seguintes
textos: Zu Gadamers Wahrheit und Methode (Análise de Habermas da obra
mestra de Gadamer, Verdade e Método); Rhetorik, Hermeneutik und
Ideologiekritik (resposta de Gadamer aos comentários feitos por Habermas a
Wahrheit und Methode em Zur Logik der Sozialwissenschaften); Der
Universalitätsanspruch der Hermeneutik (texto que Habermas escrevera para a
Festschrift em honra de Gadamer: Hermeneutik und Dialektik, Tübingen, 1970);
e, por fim, uma Replik de Gadamer.
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uma contraposição entre experiência hermenêutica e conhecimento


metódico (1987, p. 14), e uma falta de reconhecimento do papel crítico e
metódico da filosofia3.
O debate pode ser reconstruído a partir dos quatro pontos críticos que
Habermas percebe na “autocompreensão ontológica” (1987, p. 14) da
hermenêutica de Gadamer: 1) na pretensão de Gadamer de “contrapor
abstratamente a experiência hermenêutica ao conhecimento metódico
como um todo” (Habermas, 1987, p. 14); 2) na pretensão de Gadamer de
“transformar a intelecção da estrutura preconceitual da compreensão
numa reabilitação do preconceito como tal” (Habermas, 1987, p. 16); 3)
na pretensão de Gadamer em absolutizar o fator linguagem no
acontecimento da tradição, tal como fora fundamentado na terceira parte
de Verdade e Método (Habermas, 1987, p. 21); 4) na pretensão da
hermenêutica filosófica de ser apenas descrição daquilo que é, ou
acontece, sem o auxílio de um “princípio regulativo” (Habermas, 1987, p.
64). Estas críticas de Habermas são o ponto de partida do debate entre os
dois filósofos. Podemos dizer que eles são os pontos que dividem e
aproximam os autores e podem ser apresentados como situações
alternativas dentro das quais o debate acontece: 1) Experiência
hermenêutica ou conhecimento metódico?; 2) “Preconceitos” ou ênfase na
reflexão racional?; 3) Linguagem como um aspecto entre outros da vida
social, como o trabalho e o poder, ou como aspecto universal da vida
humana?; 4) Descrição ou crítica? (Lang, 1981, p. 102).
Em nosso texto não apresentaremos a totalidade do debate. Limitamos-
nos a apresentação dos dois primeiros pontos ou tarefas da filosofia: 1) a
filosofia enquanto questionamento de uma racionalidade instrumental que

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A respeito do debate, em nosso meio intelectual, precisamos considerar os
trabalhos de Álvaro Valls, especialmente a tradução dos textos de Habermas ao
português; de Ernildo J. Stein, em especial o artigo: Dialética e Hermenêutica,
uma controvérsia sobre o método em Filosofia, publicado como anexo da obra de
Jürgen Habermas. A obra de Jean Grondin, Hermenêutica: introdução à
hermenêutica filosófica, especialmente a última parte. O trabalho de Josef
Bleicher conhecido como Hermenêutica Contemporânea, especialmente a terceira
parte.
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absolutiza o ideal metódico do conhecimento; 2) a filosofia enquanto


questionamento de um pensar a-histórico e promotora da consciência
histórica. Inerente a apresentação dos temas perceberemos como os
parceiros do debate – sem chegar a um acordo definitivo – aprenderam
através dos argumentos do outro, vendo-se levados a detectar, na sua
própria concepção, um potencial ainda não explorado. Cabe salientar
ainda, que o texto procura resgatar no debate aquela experiência de
humildade e finitude em que os parceiros reconhecem não contar com a
exclusividade de pretensão de verdade da fala ou a última palavra. Ambos
os filósofos estão conscientes de que cada fala deve ser exposta à
interpretação e, nessa perspectiva, jamais esgotam a amplitude de seus
sentidos possíveis. Eles sabem, na verdade, estar sempre correndo o risco
de perder algo de vista, quando acreditam ter chegado a uma verdade
inquestionável.

A Filosofia enquanto questionamento de uma racionalidade que


absolutiza o ideal metódico das ciências

Habermas, ao analisar a obra de Gadamer, percebe uma certa


desvalorização da hermenêutica em sua pretensão de ultrapassar o
domínio de controle da metodologia científica. Para Habermas, a crítica à
falsa autocompreensão objetivística das ciências não pode levar a uma
contraposição entre experiência hermenêutica e conhecimento metódico,
afinal este continua sendo o chão das ciências hermenêuticas. Afirma
Habermas:
A reivindicação que a hermenêutica legitimamente faz valer
contra o absolutismo, também cheio de conseqüências
práticas, de uma metodologia geral das ciências da
experiência não dispensa de todo o trabalho da metodologia
- e será, como temos de temer, ou produtiva nas ciências,
ou simplesmente não será (1987, p. 14).

Habermas analisa também duas afirmações de Verdade e Método. A


primeira que aparece no prefácio da segunda edição desta obra, em que
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Gadamer afirma que sua intenção não era desenvolver um sistema


metódico, um sistema de regras, uma metodologia. Seu objetivo era
filosófico: “não se trata do que nós fazemos, nem do que nós deveríamos
fazer, mas o que está em questão é o que acontece conosco para além de
nosso querer e fazer” (Gadamer, 1977, p. 10). E a segunda, que se
encontra como tese conclusiva do debate que Gadamer desperta a partir
do conceito de clássico: “a compreensão não deve ser pensada tanto
como uma ação da subjetividade quanto como o entrar num acontecer da
tradição, no qual o passado e o presente estão em contínua mediação”
(Gadamer, 1977, p. 360).
Para Habermas, a primeira afirmação encontra sua fundamentação na
segunda, isto é, que a história da efetuação (Wirkungsgeschichte) ou a
tradição é, enquanto substancialidade, um acontecer da verdade que nos
sobrevêm além do nosso querer e fazer. Estas frases demonstram, para
Habermas, que Gadamer fundiu as tradições ainda vivas e a investigação
hermenêutica num único ponto. Entretanto, isso não é possível, uma vez
que a reflexão hermenêutica se realiza contra a decrescente pretensão de
validade das tradições, de modo que é neste contexto que Habermas
mostra como a hermenêutica filosófica pode esclarecer pela reflexão e
pela razão a relação com a tradição. A reflexão potencializa a
compreensão. A razão clarifica a gênese da tradição da qual nasce a
reflexão, sacudindo assim o dogmatismo da práxis. Na verdade, Habermas
teme que o rumo ontológico da hermenêutica filosófica de Gadamer acabe
afastando-a do debate sobre questões do método nas ciências.
Gadamer responde a este questionamento que jamais pensou numa
aguda oposição entre experiência hermenêutica e conhecimento metódico,
entre verdade e método. O que ele questionava era a pretensão moderna
de exclusividade da consciência de método, a tese dogmática de que fora
do método não poderia existir nenhuma verdade. É por isto que as
ciências do espírito foram o ponto de partida da análise, porque
“convergem com experiências que não afetam ao método nem à ciência,
mas que se situam fora da ciência, como a experiência da arte e a
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experiência da cultura marcada por sua tradição histórica” (Gadamer,


1992, p. 231). A experiência hermenêutica perpassa todas as experiências
e, neste sentido, não é objeto de estranhamento metódico, mas “[...] que
precede a este ao reservar a ciência suas questões e possibilitar assim a
aplicação de seus métodos” (Gadamer, 1992, p. 231). Gadamer insiste na
validade da experiência hermenêutica nas ciências e nos seus métodos,
como também nas ciências sociais de Habermas.
Para Gadamer, a metodologia objetivista moderna distanciou as ciências
do mundo social e humano. Não é intenção da reflexão hermenêutica
modificar esta metodologia. Nem poderia. O que ela pretende, ao revelar
as pré-compreensões que guiam as ciências, é “liberar novas dimensões
problemáticas e favorecer indiretamente o esforço metodológico (...) para
seu próprio progresso e das cegueiras e abstrações” (Gadamer, 1992, p.
240). O verdadeiro investigador da natureza sabe perfeitamente que a sua
área cognitiva é muito particular no conjunto da realidade humana, por
isso que o investigador necessita tanto mais da reflexão hermenêutica
sobre os pressupostos e os limites da ciência. Na perspectiva de Gadamer
também a metodologia objetivista das ciências sociais se distanciou do
mundo social e humano. Preocupada exclusivamente com o progresso, a
planificação, a organização e o desenvolvimento, a metodologia objetivista
possibilitou inumeráveis funções que “determinaram por assim dizer do
exterior, a vida de cada indivíduo e de cada grupo. O engenheiro-
sociólogo encarregado do funcionamento da máquina social parece, de
algum modo, separado da sociedade à qual, todavia, não cessa de
pertencer” (Gadamer, 1992, p. 240). Para Gadamer, a distanciação
dissolve a relação de pertença, com isso desembaraçando a ciência de
toda a referência ética.
A hermenêutica filosófica, na visão de Gadamer, não pretende ser um
método ou reivindicar uma determinada legitimação filosófica. Ela
pretende muito mais “retificar uma autocompreensão” (1992, p. 247). A
hermenêutica filosófica também “não critica o método científico como tal,
por exemplo, a investigação da natureza ou da análise lógica, mas a
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justificação de métodos deficientes em aplicações” (Gadamer, 1992, p.


247). É nesta perspectiva que a hermenêutica reivindica a universalidade:
“[...] a compreensão e o acordo não significam primária e originalmente
um comportamento com os textos formado metodologicamente, mas que
são a forma efetiva de realização da vida social, que em última
formalização é uma comunidade de diálogo” (Gadamer, 1992, p. 247).

A filosofia enquanto questionamento de um pensar a-histórico e


promotora da consciência histórica

A segunda alternativa criada no debate a partir da crítica de Habermas


gira em torno do conceito de preconceito. Gadamer havia advertido o
pensamento iluminista para a inevitabilidade de preconceitos no processo
de compreender. Os preconceitos possibilitam, para Gadamer, a
compreensão e comunicação. Habermas questiona esta pretensão
gadameriana de reabilitar o preconceito. Para ele, em vez de insistir tanto
com a força do preconceito, seria mais importante perseverar com a força
da reflexão racional.
Para entender a posição de Gadamer sobre o preconceito precisamos
recorrer a Verdade e Método, em que o autor afirma que o preconceito
não significa “juízo falso, mas que nele reside a possibilidade de ser
avaliado positiva e negativamente” (1977, p. 337). Gadamer explica a
importância do preconceito na compreensão. Quando nos colocamos
diante de um texto, não podemos evitar nossa pré-compreensão: temos
opiniões prévias que fazem parte do modo pelo qual lemos um texto,
ouvimos uma palestra, lemos uma carta, dialogamos com alguém. “O que
me é dito por alguém, em diálogo, por carta, em um livro ou seja como
for, encontra-se em princípio sob a pressuposição de que o que é exposto
é sua opinião e não a minha, da qual eu tenho de tomar conhecimento,
sem precisar compartilhá-la” (1977, p. 334).
Esta pressuposição é um problema em relação à compreensão, pois eu
posso permanecer submetido ao poder de minhas opiniões prévias, sem
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poder nem mesmo percebê-las. “Se elas motivam mal-entendidos, como


seria possível chegar sequer a percebê-los face a um texto em que não
houver contra-objeções de um outro? Como se pode proteger um texto
previamente frente a mal-entendidos?” (1977, p. 335-336). O leitor que
quer compreender um texto deve, mesmo sabendo que está determinado
pelas suas próprias opiniões prévias, estar de algum modo aberto,
receptivo à alteridade do texto. Essa receptividade “não pressupõe nem
neutralidade com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas
inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos” (1977,
p. 336). Não se trata de assegurar-se contra a tradição “que faz ouvir sua
voz a partir do texto” (1977, p. 336), mas de “manter afastado tudo o que
possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa. São os
preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos
para a coisa de que nos fala a tradição” (1977, p. 336). Sem reconhecer
este caráter preconceituoso de toda compreensão não é possível estar
aberto à alteridade.
Para Gadamer, há um preconceito da Aufklärung (Iluminismo): “O
preconceito contra os preconceitos enquanto tais, e, com isso, a
despotencialização da tradição” (1977, p. 337). Para a Aufklärung,
somente a fundamentação e a garantia do método conferem ao juízo sua
dignidade. Neste sentido, a crítica da Aufklärung se dirige em primeiro
lugar “contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada
Escritura” (1977, p. 338). A tendência geral do Iluminismo é não deixar
valer autoridade alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim,
a tradição escrita, a Sagrada Escritura, assim como qualquer outra
informação histórica, não podem valer por si mesmas. Antes a
possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que
a razão lhe concede. A fonte última de toda a autoridade já não é a
tradição, mas a razão. A hermenêutica, nesta perspectiva, para Gadamer,
deve partir da idéia de que “toda existência humana, mesmo a mais livre,
está limitada e condicionada de muitas maneiras (...). E, se isto é assim,
então a idéia de uma razão absoluta não é uma possibilidade da
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humanidade histórica” (1977, p. 343). A razão somente existe como real e


histórica, isto significa simplesmente: “a razão não é dona de si mesma,
pois está sempre referida ao dado no qual se exerce” (1977, p. 343). Na
visão de Gadamer “antes de que nós nos compreendemos a nós mesmos
na reflexão, nós estamos compreendendo já de uma maneira
autoevidente na família, na sociedade e estado em que vivemos. A lente
da subjetividade é um espelho deformante.” (1977, p. 344).
Habermas percebe com bons olhos esta relação do sujeito que
compreende com a situação histórica. Questiona, no entanto, a tentativa
gadameriana de reabilitar o conceito de preconceito a partir da estrutura
prévia da compreensão de Heidegger. Habermas pergunta se há
preconceitos verdadeiros somente por causa da antecipação
hermenêutica. Analisa também a idéia gadameriana de que a autoridade
está fundamentada sobre o conhecimento e não sobre a obediência ou
ainda que a autoridade seja portadora de conhecimento. Esta afirmação
de Gadamer “não coincide com a hermenêutica, mas quando muito com
sua absolutização” (Habermas, 1987, p. 16). Habermas esclarece sua
discordância usando o exemplo da relação pedagógica que se estabelece
entre educador e educando no ato da aprendizagem quando se parte do
preconceito da tradição. “A pessoa do educador legitima aqui preconceitos
que são inculcados (eingebildet) no educando com autoridade, e isto quer
dizer, como quer que o encaremos: sob potencial ameaça de sanções e
com perspectivas de gratificações” (1987, p. 16). Para Habermas, a
afirmação de Gadamer de que conhecimento coincide com autoridade,
significa dizer que a tradição legitima os preconceitos transmitidos (ou
impostos) às novas gerações. Com isso, a reflexão torna-se impotente. “O
preconceito de Gadamer em favor do direito dos preconceitos
documentados pela tradição questiona a força da reflexão, que entretanto
se confirma pelo fato de que ela pode também rejeitar a pretensão das
tradições” (1987, p. 17-18). Contra o acento de Gadamer no poder da
autoridade e da tradição, Habermas, no sentido do idealismo alemão,
insiste na força da reflexão que destrói a substancialidade naturalística da
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tradição. “A substancialidade se esvai na reflexão, porque esta não apenas


ratifica, mas também rompe ou derruba poderes dogmáticos” (1987, p.
18). Diante do ponto de partida hermenêutico de que todo o
conhecimento está baseado na tradição, Habermas afirma que o “direito
da reflexão exige a auto-restrição do ponto de partida hermenêutico.
Aquele direito requer um sistema de referência que ultrapasse o contexto
de tradição enquanto tal só então a tradição pode ser também criticada”
(1987, p. 18-19). Para Habermas, identificar simplesmente a investigação
hermenêutica com a continuação da tradição é acentuar unilateralmente a
participação e diálogo em detrimento do distanciamento e da crítica. Na
reflexão crítica podemos tanto rejeitar como aceitar as pretensões de
validade da tradição.
Para Habermas, a reflexão deve partir da falta de convergência entre
autoridade e conhecimento: a reflexão não trabalha na faticidade das
normas herdadas sem deixar marcas; ela trabalha depois, pois só
podemos, segundo Habermas, voltar-nos sobre as normas internalizadas
quando aprendemos a segui-las cegamente por imposição de coerção
externa. Enquanto

[...] a reflexão recorda aquele caminho da autoridade, no


qual as gramáticas dos jogos de linguagem foram
exercitadas dogmaticamente como regras da concepção do
mundo e do agir, pode ser tirado da autoridade aquilo que
nela era pura dominação, e ser dissolvido na coerção sem
violência da intelecção e da decisão racional (1987, p. 18).

Habermas invoca a tradição crítica da Aufklärung para afirmar, contra a


absolutização dogmática da tradição, a superioridade da reflexão. Não é
que Habermas negue a relação entre ser e compreender estabelecida por
Gadamer. Qualquer comunicação entre homens é processo de tradução,
de fusão de horizontes, uma incorporação do estranho ao que é próprio.
Habermas aceita a importância da hermenêutica, mas critica sua
pretensão de universalidade, pois falta a ela o trabalho da crítica da
ideologia.
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Gadamer recusa-se em aceitar a depreciação habermasiana, no sentido do


iluminismo moderno, dos conceitos de autoridade e tradição, bem como a
contraposição destes conceitos em relação à razão. Na verdade
encontramo-nos na base da crítica às premissas da reflexão temática.
Afirma Gadamer:

Minha tese é – e creio que seja a conseqüência necessária


de nosso condicionamento pela história da efetuação e
finitude – que a hermenêutica nos ensina a considerar
suspeitosa e dogmática a oposição entre uma tradição viva
‘natural’ e a apropriação reflexiva da mesma. Detrás disto
esconde-se um objetivismo dogmático que segue
deformando o conceito de reflexão (1992, p. 232).

Um pouco mais tarde, ainda no mesmo texto, contra Habermas afirma


Gadamer: “se trata em todo o caso da pretensão de ver algo perceptível e
não de uma ‘crença básica’ quando eu descarto entre autoridade e razão a
antítese abstrata da ilustração emancipatória e afirmo sua relação
essencialmente ambivalente” (1992, p. 236). Gadamer acentua aqui, mais
uma vez, a partir da estrutura prévia da compreensão de Heidegger, os
conceitos intercalados de autoridade e conhecimento, que ele já tentou
fundar sobre o título de A reabilitação de autoridade e tradição de
Wahrheit und Methode.
Gadamer acusa Habermas de usar um conceito simplificado de crítica e de
elaborar um antagonismo abstrato entre tradição e reflexão. Para
Gadamer, “a reflexão sobre uma pré-compreensão mostra-me algo que de
outro modo aconteceria às minhas costas. Algo, mas não tudo. Porque a
consciência da história da efetuação tem inevitavelmente mais de ser que
de consciência” (Gadamer, p. 239). Quando o sujeito reflete
inevitavelmente desconta ou desconsidera uma multiplicidade de
conceitos, juízos, princípios e critérios. Não pode colocar tudo em questão
ao mesmo tempo. Portanto, a crítica é necessariamente parcial e feita
desde um ponto de vista particular. Se o ponto de vista crítico se
submete, por sua vez, à reflexão, isto haverá de fazer-se inevitavelmente
desde outro ponto de vista e sobre a base de outras pressuposições que
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se darão, por sua vez, por descontadas. Visto a esta luz, conclui Gadamer,
o conceito habermasiano de crítica é dogmático; atribui à reflexão um
poder que esta somente poderia ter se aceitássemos as premissas de
Hegel. É verdade, concede Gadamer, que a apelação à tradição não é um
argumento, pois “a tradição não é nenhuma garantia, ao menos quando a
reflexão exige uma garantia. Porém este é o ponto decisivo: Aonde exige?
Em todo lugar? A isto oponho a finitude da existência humana e a
essencial particularidade da reflexão” (Gadamer, p. 236). A reflexão não
está menos historicamente situada, não é menos dependente do contexto
que outros modos de pensamento. Ao desafiar a herança cultural, o
intérprete a está pressupondo e prosseguindo.
Gadamer nega também que a hermenêutica possa contrapor-se, sem
mais, à reflexão crítica como a renovação da autoridade tradicional se
contrapõe à dissolução desta. Afirma Gadamer:

O que se debate é se a reflexão dissolve sempre as relações


substanciais ou se pode também assumi-las explicitamente.
(...). Que a tradição como tal seja a única razão de validade
dos preconceitos – afirmação que Habermas me atribui –
contradiz minha tese de que autoridade descansa no
conhecimento. Quem tem alcançado a maioridade pode, sem
estar obrigado, assumir por conhecimento o que havia
admitido por obediência (1992, p. 236).

A hermenêutica não implica uma cega sujeição à tradição. Também


entendemos quando nos desfazemos dos preconceitos que distorcem a
realidade. Afirma Gadamer: “Então, é aí que melhor compreendemos”
(Gadamer, p. 235). Porém, para Gadamer, isto não significa que somente
entendemos quando desmascaramos a falsa consciência, erros ou
enganos, pois o ponto de divergência não é aceitarmos ou rejeitarmos
uma pretensão de validade dada. A questão é, muito mais, como nos
fazermos conscientes e como avaliarmos as pré-compreensões e
preconceitos. Isto não é algo, argumenta Gadamer, que se pode fazer de
uma só vez, em um supremo ato de reflexão. É precisamente o tratar de
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entender outros pontos de vista, o tratar de chegar a um entendimento


com outros, quando minha própria estrutura de preconceitos, assim como
a deles, se torna perceptível. A reflexão não é algo que se opõe à
compreensão. É um momento integral na tentativa de entender. Separá-
la, como Habermas faz, é uma “confusão dogmática”.

Considerações conclusivas

Se retomarmos os argumentos até aqui empreendidos no debate, de


ambos os lados, tanto de Habermas como de Gadamer, podemos ressaltar
que aconteceram alguns mal-entendidos, correções, mas principalmente
ambos aprenderam que em sua filosofia havia um potencial ainda não
explorado.
Cabe assinalar, em primeiro lugar, que este debate resgata para a filosofia
aquela experiência de humildade e finitude em que os parceiros
reconhecem não contar com a exclusividade de pretensão de verdade da
fala ou a última palavra. Ambos os filósofos estão conscientes de que cada
fala deve ser exposta à interpretação e, neste sentido, jamais esgotam a
amplitude de seus sentidos possíveis. Eles sabem, na verdade, estar
sempre correndo o risco de perder algo de vista, quando acreditam ter
chegado a uma verdade inquestionável. Este argumento comprova-se nas
palavras de Habermas e Gadamer:

Talvez sob as atuais circunstâncias seja mais urgente


apontar para os limites da falsa pretensão de universalidade
da crítica do que para os da pretensão de universalidade da
hermenêutica. Mas, na medida em que se trata da
clarificação de uma questão de direito, também esta última
pretensão necessita de crítica (Habermas, 1987, p. 69).

Mas com este acréscimo eu não quero ficar com a última


palavra. Gadamer é o primeiro a acentuar o caráter aberto
do diálogo. Dele todos nós podemos aprender a sabedoria
fundamental hermenêutica de que é uma ilusão achar que
alguém possa ficar com a última palavra (Habermas, 1987,
p. 85).

O diálogo que está em curso não se subtrai a qualquer


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fixação. Mau hermeneuta é o que crê que pode ou deve ficar


com a última palavra (Gadamer, 1977, p. 673).

Em segundo lugar o debate serviu para esclarecer que a hermenêutica


filosófica procura liberar dimensões ou trazer à tona experiências ou
verdades que não são afetadas necessariamente pelo método, como a
experiência da arte, da história e da linguagem. A reflexão hermenêutica
não pretende criticar o método científico, como, por exemplo, a
investigação da natureza ou análise lógica, mas a justificação de métodos
deficientes em aplicações. Neste sentido, ela pretende retificar uma
autocompreensão falsa. Revelar as pré-compreensões que guiam as
ciências, liberar novas dimensões problemáticas e assim favorecer o
esforço metodológico. Habermas concorda com esta crítica na medida em
que também ele percebe como positiva a destruição da auto-suficiência
objetivística das ciências do espírito, uma vez que o seu domínio objetivo
está estruturado pela tradição.
Em terceiro lugar o debate mostra que sempre compreendemos a partir
dos preconceitos que se gestaram na história. Compreendemos, portanto,
a partir de expectativas de sentido que provêm da tradição. Esta tradição
não está a nosso dispor. Ao contrário, somos nós que estamos sujeitos a
ela. Portanto, a tradição é a instância a partir da qual a compreensão é
possibilitada. Ela nos condiciona sem que possamos elevá-la plenamente à
consciência. Tenhamos ou não consciência disto, ela nos influencia e torna
possível o conhecimento, nossas valorações, nossas tomadas de posição.
É por essa razão que a hermenêutica é essencialmente uma reflexão
sobre a atuação da história na compreensão. Somente uma compreensão
que descobre sua própria historicidade pode ser considerada crítica. É
assim que a hermenêutica questiona a pretensão a uma verdade absoluta.
A verdade é sempre finita e histórica. O ser histórico nunca pode
simplesmente transformar-se em transparência plena. Em outras
palavras, o sentido de uma afirmação nunca se esgota no dito, sempre
existe algo não dito que precisa ser esclarecido.
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Além disso, os parceiros puderam revisar algumas de suas posições.


Gadamer pôde elaborar o potencial crítico do diálogo hermenêutico.
Segundo o autor, a hermenêutica filosófica aspira a um “saber de reflexão
crítica” (1992, p. 242), para conquistar mais liberdade para as pessoas,
seja corrigindo equívocos objetivistas ou mesmo rompendo traços
absolutistas ou violentos inerentes à tradição. A hermenêutica crítica é
solicitada também para defender uma linguagem compreensível diante da
lógica dos enunciados que mede a linguagem segundo falsos princípios da
lógica. Habermas também recebeu um estímulo para chegar, de um certo
modo, ao diálogo reconhecido. Cresce significativamente o interesse pela
linguagem. De Gadamer podia ser aprendido que, no diálogo, em princípio
devia ser alcançada a compreensão universal.
Enfim, o debate reforça a crítica a uma racionalidade desencarnada,
excessivamente apegada às ciências positivas e ao ideal absolutista de
método. Procura resgatar uma racionalidade que se desenvolve no modo
de ser linguagem, posicionada, que amplia o rigor e torna o pensamento
mais radical. Um pensamento

[...] que precede e acompanha o pensamento objetivista e


que, ao mesmo tempo, seja capaz de pensar os níveis nunca
inteiramente recuperáveis da práxis cotidiana. Práxis esta
que guarda em seu seio os momentos mais importantes da
experiência da arte, da filosofia, das ciências humanas e da
história (Stein. In: Habermas, 1987, p. 130).

Referências Bibliográficas

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Filosófica: nas trilhas de Hans Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs,
2000. (Coleção: Filosofia – 117).

BLEICHER, Josef. Hermenêutica Contemporânea. Traduzido por Maria


Georgina Segurado. Rio de Janeiro: edições 70, 1992. Tradução de:
Contemporary Hermeneutics, 1980.
15

GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: Fundamentos de una


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e Rafael de Agapito. Salamanca: ediciones Sígueme, 1977. Tradução de:
Wahrheit und Methode.

__________. Verdad y Metodo II. Traduzido para o espanhol por


Manuel Olasagasti. Salamanca: ediciones Sígueme, 1992.

GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Traduzido por


Benno Dischinger. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. Tradução de:
Einführung in die philosophische Herrmeneutik.

HABERMAS, J.. Dialética e Hermenêutica: Para a crítica da


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