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DUTRA, D. J. V.

Razão e consenso em Habermas: teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da

biotecnologia. 2ed. rev. e ampl. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2005.

Resenha
Andrei Luiz Lodéa - UFSC

No seu livro Razão e Consenso em o uso da linguagem dá validade à racionalidade


Habermas, Delamar José Volpato Dutra procura comunicativa, recusando de toda forma uma
esclarecer as principais teses desenvolvidas por fundamentação última.
um dos mais importantes filósofos contemporâneos Ambos, Habermas e Apel, assumem,
nos âmbitos da teoria discursiva da verdade, da segundo Dutra, o mesmo projeto. Habermas não
moral, do direito e da biotecnologia. Dutra tem a concorda com Apel em um ponto: o da
pretensão de poder justificar a idéia de que fundamentação última, mas apropria-se da
Habermas não foi apenas um cientista social, mas contradição performativa para se livrar das criticas
também, um filósofo. do cético. Ao retratar as divergências de idéias,
O tema central perpassa pela exposição Dutra procura defender a postura adotada por
da teoria da ação comunicativa que demonstra o Habermas em relação a Apel.
surgimento da ética discursiva com suas quatro Em seu segundo capitulo, o autor trata do
pretensões de validade. A ética do discurso tema da racionalidade comunicativa “que tem por
projeta-se como sendo uma inversão e tarefa identificar e reconstruir condições universais
reformulação do Imperativo Categórico kantiano, do entendimento possível” (p. 42). A própria razão
ao substituir a consciência (subjetividade) pela esta embutida na ação comunicativa e na esfera
linguagem (intersubjetividade). Segundo o autor, do mundo vivido. Para isso, cada indivíduo que
Habermas trabalha com um uso quase quiser participar deve estar inteirado sobre as
transcendental da ética, pois fazemos uso da pretensões universais que deverá utilizar para gerar
linguagem para fundamentá-la. Assim, a ação consenso. O ponto de partida da pragmática de
comunicativa almeja as condições de possibilidade Habermas é a teoria dos atos de fala tomada de
e entendimento, o que faz Habermas procurar em empréstimo de Austin, sendo considerada por ele
Apel o argumento da contradição performativa a o ponto mais promissor da pragmática universal.
ser evitada, a saber, a contradição daquele que Austin classificou os atos de fala em constatativos
nega as condições pragmáticas da ética discursiva. e performativos e, em locucionarios, ilocucionário
Ao fazer isso, Habermas considera as quatro e perlocucionários. O principal interesse de
pretensões de validade, as quais serão explicadas Habermas esta na ação, comenta Dutra, ou seja,
a seguir, cumpridas e a racionalidade comunicativa na força dos atos de fala ilocucionários, que na
definida como regra do consenso. Para Habermas, racinalidade comunicativa será a força do melhor

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argumento, “a coação sem coação”, fixando assim, comunicativa. Para o filósofo alemão esta situação
a ação comunicativa. O falante que se dispõe a ideal faz parte de uma forma de vida, ou seja, seus
participar da argumentação deve levantar quatro integrantes devem ter capacidade de diálogo e
pretensões de validade, são ela: verdade, retitude, entendimento para não ser enganado por falsas
veracidade e inteligibilidade, sendo essa última verdades. Segundo Dutra, é devido as
condição de compreensão de qualquer ato de fala. determinações da verdade que Habermas propõe
A linguagem deve necessariamente explorar um situação ideal de fala. Assim, ela se resume
determinada pretensão de validade. Para pelo Discurso o qual detém a participação de todos
Habermas, todo enunciado dever conter as quatro os concernidos na busca dos melhores
pretensões de validade. É dessa classificação que argumentos. Uma situação ideal de fala garante o
Habermas divide os atos de fala em constatativos, consenso racional do Discurso.
expressivos e regulativos. A teoria do conhecimento de Habermas
Em se falando da racionalidade está ligada a noção de interesse orientado ao
comunicativa, Habermas aceita, diz Dutra, apenas conhecimento, assim como pretendeu Kant. Esse
a verdade e a retitude como possíveis pretensões é o tema do terceiro capítulo – a teoria da verdade.
resgatas discursivamente. A verdade deve ser Dutra argumenta que essa teoria é desenvolvida
justificada em um discurso teórico e a retitude em como uma crítica ao positivismo dos anos 60 que
um discurso prático. Neste caso, as condições levou Habermas a construir sua própria teoria: o
para o entendimento são: o cumprimento das conhecimento baseado sobre o interesse, ou seja,
quatro pretensões de validade; a resolução cada forma de conhecimento pressupõe um
discursiva destas pretensões; o primado da interesse técnico, prático ou emancipatório.
racionalidade comunicativa sobre a estratégica. Habermas faz isso trazendo para a discussão
Outra idéia importante, e que Dutra autores como Marx, Kant, Hegel, Dilthey, Comte,
explora em seu livro, é a idéia do mundo vivido Freud e Peirce. Para Kant a filosofia
resgato de Husserl e Heidegger, o qual representa transcendental tem a tarefa de buscar as condições
o pano de fundo de toda a teoria comunicativa de de possibilidade do conhecimento, unindo a
Habermas. O mundo da vida é o horizonte das sensibilidade e o entendimento. Através da assim
auto-evidências culturais e lingüísticas. É o terreno chamada “Revolução Copernicana” efetuada por
dos termos lingüísticos. É um cenário organizado Kant, os objetos devem se regular pelo
de forma comunicativa e intersubjetiva. Ele é conhecimento e nas categorias os objetos são
definido por Habermas como uma estrutura produtos. A resposta de Habermas à Kant segue
comunicativa onde os indivíduos estão inteirados na linha do que a experiência não pode ser
sobre suas pretensões. É um horizonte equiparada a consciência transcendental a priori,
aproblemático, é um fundo de certezas anterior a mas o sujeito deve interagir com o mundo. Para
ação comunicativa. Embora o mundo da vida não Habermas a objetividade não é condição suficiente
admitir problemas deve existir uma comunidade para a verdade.
ideal de fala que possa desenvolver a ação

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Referindo-se ao materialismo Marx trabalho publicado após Conhecimento e


considera o trabalho parte da teoria do interesse, a saber, em Verdade e Justificação,
conhecimento, pois uma atividade social tema que é deixado em segundo plano em sua
concretiza-se em um objetivo que pode ser filosofia posterior. Habermas adota a partir de
experienciado, processo que segundo Habermas 1970 a pragmática universal da linguagem como
faz o homem se auto-produzir. “O trabalho é a tema principal, fazendo com que a discussão se
interação do homem com a natureza” (p.101). desenvolva sobre a validade dos enunciados. Ao
Habermas critica o positivismo de Comte por ele tratar da questão semântica, Habermas, volta-se
admitir a verdade do conhecimento somente ao ao naturalismo fraco recusando a falácia idealista
real, encobrindo que o conhecimento é dupla e naturalista e ao realismo sem representacionismo.
relação entre “sujeito que conhece e a realidade A teoria da verdade de Habermas serve
conhecida” (p.103). Pierce também não concorda para justificar a sua proposta de ética discursiva.
com o positivismo, pois o pensamento é uma ação. Procura fundamentar a ética através da
Lê-se Pierce através de Habermas da seguinte comunicação. Entrando no quarto capitulo, Dutra
forma: “a verdade como opinião sustentada por expõe as idéias da teoria discursiva da moral, como
todos” (p. 103). Habermas define o conhecimento sendo o assunto principal das teses de Habermas.
como “o instrumento da autoconservação da Todo discurso deve ser proferido com sentido
espécie, porém transcendendo a mera podendo levar ao entendimento. Ao participar da
autoconservação” (p.104). Ao fazer este confronto argumentação o falante admite as pretensões de
com a tradição, Habermas chega a conclusão de validade do discurso. Para Habermas, o consenso
que os interesses foram expurgados do é estabelecido por meio da argumentação proferida
conhecimento. Pra ele, diz Dutra, o interesse não pela vontade racional do falante. Somente existirá
é puramente transcendental, como em Kant, nem consenso se todos os participantes argumentarem
completamente empírico, como em Comte. Ele de forma racional e não de forma espontânea. O
defende uma virada pragmática antropológica na princípio que conduz a ética discursiva é o princípio
filosofia transcendental de Kant, chamada de de universalização (U). Cabe a (U) justificar as
pragmática transcendental – quase transcendental pretensões de retitude dos discursos práticos.
- surgindo a idéia da ação instrumental e ação Toda norma deve seguir o caminho para ser
comunicativa. universalizável.Oprincípio(U)éumareformulação
Para Habermas o problema da verdade do imperativo categórico de Kant, ou seja,
se resolve no discurso. A teoria da verdade se transforma-se a realidade subjetiva para uma
expressa antes do pensamento nos objetos e na realidade intersubjetiva. A universalização ética
experiência. A validade de uma pretensão é deve ser feita dentro de um processo dialógico
justificada a partir de razões. Para ele a verdade é entre sujeitos. Desta forma, a ética de Habermas,
uma pretensão de validade que vinculamos aos é cognitivo-formal e se funda na intersubjetividade.
enunciados, as afirmações e aos estados de coisa. A legitimidade de (U) se desenvolve a partir das
Habermas ainda revisa o tema da verdade num respostas aos empecilhos dos céticos.

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Inversamente ao cético, Habermas admite que de decisões arbitrárias, mas a partir de pretensões
existem fenômenos morais já no mundo da vida, a legitimidade. Assim, Habermas estabelece o
mas estes fenômenos devem obedecer a regra direito moderno como positivo e legítimo. Nessa
imposta pelo princípio (U), que é ser aceito por distinção entre direito e moral o conceito forma
todos os demais envolvidos no diálogo. A jurídica é importante, pois diz respeito à motivação
efetivação de (U) demonstra-se na admissão de e à coerção. Esses dois conceitos são extraídos
uma pretensão de validade aceita por todos. Ao de Kant e têm o objetivo de mostrar o que é o
aceita ou negar uma norma o indivíduo aceita direito. Para Kant, o conceito do direito é definido
participar da argumentação conferindo valor à (U), pela coerção e o próprio dever é uma coerção do
não admitir (U) é cair em contradição livre arbítrio pela lei. Em Kant, moral e direito são
performativa. Para fazer parte da argumentação, incompatíveis pelo ponto de vista da motivação,
todo falante deve respeitar três regras básicas mas se assemelham no que diz respeito a
tomadas por Habermas de Alexy: não contradição justificação. Desta forma, a legitimação moral
(a); acreditar no que diz e dar razões para tal (b); admite apenas a motivação da própria lei moral.
todo sujeito capaz de falar e agir pode participar Para Kant, o direito limita a moral ao substituir a
(c). Habermas pensa que o cético já faz parte de vontade pelo arbítrio, ao tratar de relações
uma comunicação, por isso, entra em contradição externas entre pessoas e por atuar em
ao querer negar o cognitivismo da ética discursiva. conformidade à lei. Habermas vê uma relação
Ao fim deste capítulo, percebe-se a relação feita sociológica entre os dois, admitindo eficácia à
por Habermas entre eticidade e a moralidade como moral e legitimidade ao direito, já que estes
autoevidência uma para a outra. A ética discursiva possuem uma aplicação contrária. Muitas
caracteriza-se como transcendental apoiando-se determinações morais não permitem um acordo –
em um “fato da razão”. como no caso do aborto -, por isso, o direito pode
No quinto capitulo, o autor reconstrói-se possibilitar uma tomada de decisão moral, mesmo
a teoria discursiva do direito. Na visão de Dutra, com sua positivação. Cria-se, neste caso, um
Habermas procura democraticamente resolver o equilíbrio dos interesses conflitantes.
problema da legitimidade do direito a partir da No mesmo sentido, a democracia é
própria legalidade. Ele pretende legitimar o direito condição de possibilidade da legitimidade do
através da perspectiva discursiva. O direito exerce direito, interligando o princípio do discurso, a forma
uma força coativa sobre perspectiva de jurídica e o princípio da democracia. Nesta esfera
legitimidade, o que o faz perder seu poder de democrática Dutra destaca o paradoxo da
interação social. Habermas vê nisso um processo legitimidade que surge de legalidade. A forma
de justificação para a fundamentação jurídica que jurídica não proíbe a comunicação, mas a permite,
podem vir de condições políticas do próprio pois, o direito não pode obrigar os direitos
direito. Pensa Dutra que para Habermas, o direito subjetivos à coação. Na visão de Habermas, o
deve manter uma relação dupla entre a moral e a direito traz uma marca de legitimidade. Ele acha
política. O direito não deve mover-se na direção possível através de um processo democrático o

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respeito e a defesa das liberdades comunicativas. proibir ou justificar o aborto, em quais casos e
Dutra argumenta que nesta democracia surge a situações? Aborto não tem a ver com eugenia;
regra da maioria, onde muitas decisões são Dworkin fala de eugenia e Dutra usa seus
tomadas por uma maioria que decide, mas como argumentos a respeito disso. O que Habermas
podem ser falíveis são passiveis de revisão. A procura justificar é que com a eugenia perde-se a
decisão da maioria terá aceitação se a minoria moralização do homem enquanto homem. Para
visualizar a esperança de se tornara maioria ele, muda-se a concepção do homem autor de
futuramente, respeitando, neste caso, o princípio sua vida, não podendo dizer sim ou não, o que
da democracia. Portanto, na democracia da anula sua liberdade de escolha.
maioria as normas jurídicas não podem contrariar Enfim, o livro de Dutra permite uma
princípios morais. compreensão clara e precisa de todo o
No sexto e ultimo capítulo, Dutra expõe pensamento de Habermas. Dutra explora debates
as idéias habermasianas a respeito da eugenia, fecundos, confrontando as idéias do autor por ele
procurando evidenciar quais os problemas que estudado com posições contrarias, mostrando as
surgem com as intervenções eugênicas na vida do respostas de Habermas. O livro trata, sobretudo
ser humano. Desta forma, Habermas distingue uma da ética discursiva, pois Habermas tenta justificar
eugenia negativa de uma eugenia positiva. Dutra suas idéias de moral, verdade, direito e eugenia,
esclarece que Habermas se pergunta qual é o pelo meio da comunicação intersubjetiva. Este
problema que surge ao mexer na linha divisória trabalho feito por Dutra possibilita ao leitor uma
entre ser corpo e ter corpo? O autor utiliza para o inserção em toda obra de Habermas. Alia-se a
debate as idéias de Dworkin sobre o mesmo tema. estas idéias as intervenções do autor como forma
Dworkin trata das biotecnologias pelo exemplo de esclarecer problemas existentes nas teses de
do aborto, perguntando até que ponto pode-se Habermas.

e-mail: allodea9@hotmail.com

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