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ARTIGO ESPAÇO CONFINADO

Descida letal
Equipamentos adequados, treinamento específico e procedimentos
operacionais escritos são essenciais para a prevenção de acidentes nesses locais
Arquivo Proteção

G
ustine é uma pequena cidade do homicídio culposo e lesões corporais, o ge- confinado em modernos estábulos com co-
estado da Califórnia, nos Esta- rente geral da fazenda e seu capataz. O ge- bertura metálica Os animais são identifica-
dos Unidos, onde a principal ati- rente geral e também proprietário da fazen- dos através de chips de computador. O leite
vidade econômica está baseada da, Patrick J. Faria, era comandante do Cor- é extraído através de canetas de sucção este-
em fazendas produtoras de leite po de Bombeiros Voluntário da cidade. Sua rilizadas, etc. Porém o que os métodos mo-
e fabricação de laticínios. Em julho de 2002 família, desde há muito tempo, é uma das dernos de gerenciamento não conseguiram
um grave acidente ocorreu na fazenda de principais patrocinadoras do festival anual resolver é como administrar as vastas quanti-
gado leiteiro de Aguiar-Faria & Filhos, uma da padroeira Nossa Senhora dos Milagres. dades diárias de esterco, urina e outros de-
empresa pertencente a uma das mais influ- Os bois de sua fazenda faziam a abertura da tritos que são produzidos nessas fazendas.
entes famílias da cidade. Dois trabalhado- parada de comemoração.
res rurais, imigrantes mexicanos, caíram e Assombro é pouco para descrever a reação O ACIDENTE
se afogaram em poço de dez metros de pro- da população. Se processos criminais deri- Na propriedade de Patrick, a água servida
fundidade, cheio de esterco e água 1servi- vados de mortes no trabalho são raros no utilizada na lavagem dos estábulos e outros
da, quando tentavam acessar uma bomba país, em Gustine eles são simplesmente ir- locais, era bombeada para uma lagoa com
de recalque com defeito. reais. Muitas pessoas ficaram desconcerta- área aproximada de um campo de futebol.
O promotor de justiça tomando conheci- das com o que entendiam ser uma absurda O esterco sedimentava e a água podia ser
mento do acidente, metodicamente come- intromissão do governo. reutilizada para novas lavagens. Isso, dia
çou a juntar evidências para levar a júri por Como podia ser considerado crime um após dia, se repetia.
acidente que ninguém esperava ou deseja- Naquela manhã, entretanto, os homens
Luiz Roberto Carchedi va que ocorresse? Especialmente, porque estavam tendo dificuldades com a drena-
Coronel da reserva do Corpo de Bombeiros de incriminar Patrick Faria que nem estava na gem da lagoa. Eles suspeitavam que havia
São Paulo fazenda no dia em que aconteceu o aciden- algum problema com a bomba que ficava
Instrutor de resgate e atendimento pré-hospitalar te? no fundo do poço, ao lado da lagoa. Prova-
em espaços confinados O fato é que as fazendas de produção lei- velmente estivesse entupida. Um trabalha-
lrcarchedi@ig.com.br teira evoluíram muito. Hoje o gado f ica dor chamado Juan Caballero sugeriu des-
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ARTIGO ESPAÇO CONFINADO
cerem no poço para dar uma olhada. Ralph de investigar e denunciar crimes resultan- um simples motivo. Patrick tinha estudado
Nunes, o capataz encarregado das opera- tes de acidentes do trabalho. esses assuntos como parte de seu treinamen-
ções diárias, concordou, mas recomendou- Preocupado com as reincidências de aci- to como bombeiro voluntário.
lhe levar uma corda e mais dois homens. dentes fatais em locais de trabalho, o fiscal Para realçar suas afirmações, o promotor
O poço, uma construção de concreto com da lei levantou que em agosto de 2002, já convocou para depor ao júri, o instrutor do
1,30 m de diâmetro e mais de 10 m de pro- havia ocorrido um caso de morte de traba- curso de “Cuidados em Espaços Confina-
fundidade, não tinha escada, apenas alguns lhador em circunstâncias similares em uma dos”. Um treinamento, destinado a bombei-
grampos metálicos aqui e ali. No fundo, um outra fazenda de produção de leite, em ros, de quatro horas-aula e que Patrick havia
líquido escuro esverdeado, resultado da Gustine. Um trabalhador perdeu a vida freqüentado, em 1999.
mistura de água, urina, esterco e outros de- quando executava uma tarefa em um fosso O instrutor explanou ao júri sobre como
tritos. de água servida de uma lagoa de resíduos ele tinha ensinado ao sr. Faria os perigos
O primeiro a descer foi Enrique Araisa, orgânicos. Sua morte deu-se por intoxica- que apresentam os gases em espaços
29 anos, que voltou poucos minutos de- ção por inalação de gás sulfídrico. E, ain- confinados, e particularmente, como a pre-
pois dizendo que não tinha conseguido ver da, havia outras mortes, na Califórnia e em sença do H2S é comum em locais onde se
nada errado. outros estados agrícolas como Michigan, acumula esgoto. E que ninguém deveria ser
José Alatorre desceu em seguida para onde cinco trabalhadores rurais perderam a autorizado a entrar em espaço confinado
olhar também. Em determinado momento, vida em um fosso de esterco em 1989. Já sem um prévio teste de atmosfera, utiliza-
queixou-se de que não conseguia respirar, era hora de a indústria leiteira deixar de ção de Equipamentos de Proteção Indivi-
e de repente, mergulhou de cabeça no líqui- culpar a “fatalidade” para se eximir das res- dual e proteção respiratória.
do verde escuro. Seu companheiro, Enri- ponsabilidades dos acidentes fatais. O instrutor declarou, ainda, que o sr. Faria
que, desceu para resgatá-lo, mas também Em janeiro de 2003 o promotor apresen- tinha sido aprovado nas avaliações realiza-
desmaiou e caiu da mesma forma. Juan Ca- tou o caso Faria ao júri. Nas razões da a- das no curso e forneceu aos jurados as fo-
ballero atirou uma corda no interior do po- cusação o promotor assim expôs: “Se você lhas de teste do acusado.
ço. Ele podia ouvir ruídos na superfície do conhece alguma coisa a respeito da agroin- E havia mais. A fazenda de Patrick Faria
líquido, semelhantes ao que se produz quan- dústria, particularmente as operações da in- tinha um plano de segurança escrito, como
do alguém se debate na água. A corda rete- dústria leiteira, logo fica sabendo que o es- exige a lei da Califórnia. O plano estabele-
sou-se. Logo em seguida, afrouxou-se e não terco produzido pelo gado gera certos gases cia: “Nosso programa de saúde e segurança
conseguiu ouvir mais nada. Assustados os letais. Produz amônia, hidrogênio sulfídri- incluirá todas as proteções físicas e mecâni-
funcionários resolveram chamar o Corpo co, metano entre outros. E quando você co- cas, inspeções para encontrar e eliminar
de Bombeiros, que pouco pode fazer a não loca esses gases dentro de um espaço confi- condições e atos inseguros no trabalho, trei-
ser resgatar os corpos já sem vida dos dois nado eles tornam-se particularmente letais”. namento para todos os empregados em prá-
empregados. O promotor argumentou aos 18 jurados ticas de segurança e saúde, utilização de
De acordo com a necropsia foi, provavel- que as leis de Segurança do Trabalho da Equipamento de Proteção Individual sem-
mente, gás sulfídrico (H2S), produzido a Califórnia exigem que os empregadores to- pre que necessário”.
partir dos detritos, o que causou a perda da mem várias precauções antes de mandar tra- O plano designava Patrick Faria “coorde-
consciência, a queda e o conseqüente afo- balhadores entrar em um espaço confinado nador de segurança” e fazia-o responsável
gamento dos dois trabalhadores. como um poço profundo e repleto de detri- pelo treinamento e em equipar seus empre-
tos líquidos, com entrada e saída restrita. gados contra riscos de segurança. Também
ACUSAÇÃO continha um explícito aviso a respeito de
Patrick Faria visitou os familiares dos tra- CONHECIMENTO fossos com esterco: “Cuidado! Perigo de
balhadores mortos e apresentou suas con- “Você deve pensar bem antes de mandar gases letais e diminuição do nível de oxigê-
dolências. Ofereceu-se para pagar os fune- alguém entrar em um espaço confinado. Os nio nessas estruturas” e continuava descre-
rais incluindo os custos com o traslado dos trabalhadores devem receber treinamento vendo especificamente os riscos do gás sul-
corpos para o México. Uma missa em me- e equipamento específico”. fídrico. Isso também foi entregue aos jura-
mória dos dois foi rezada na igreja e a vida E mais, há evidências que Patrick Faria dos.
continuou, como sempre para todos. Me- sabia tudo sobre os riscos dos espaços confi- Em seus argumentos finais o promotor
nos para o promotor estadual, encarregado nados e as leis de segurança sobre eles, por enfatizou todos os procedimentos de segu-

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ARTIGO ESPAÇO CONFINADO

Arquivo Proteção
mentos operacionais

Arquivo de treinamento Conect


padrão escritos.
Procedimento Ope-
racional Padrão é a
descrição passo a pas-
so de um trabalho ou
operação. Tem por fi-
nalidade uniformizar
o modo de realizar
uma determinada ma-
nobra técnica por a-
queles que trabalham
na atividade opera-
cional, que passando
a ser embasada em
procedimento escrito,
permite o controle e a
Detecção de gases: avalia atmosfera local Treinamento: operações bem sucedidas melhoria do serviço
prestado.
rança que haviam sido ignorados. Não ha- Tanto a NBR 14787, como o protótipo Para se ter um “POP” é condição básica
via treinamento. Não houve teste da atmos- de NR em discussão, contemplam esses três que exista uma rotina ou um manual de trei-
fera. Não havia equipamentos de segurança requisitos básicos para a prevenção de aci- namento, pois é daí que ele se origina. Não
disponíveis. Não havia sequer uma escada. dentes do trabalho em espaço confinado. se pode ter um procedimento padrão de uma
Patrick Faria e seu capataz, Ralph Nunes, De fato não se cogita autorizar a realização atividade inexistente. De nada adianta ela-
foram condenados a cinco anos de prisão de um serviço nestes locais sem realizar a borar um “POP” de medição de atmosfera e
por homicídio culposo e lesões corporais, avaliação da atmosfera com um detector de ventilação se esse trabalho não foi ensinado
e sua empresa foi multada em 166.650 dó- gás. Esse é o mínimo obrigatório em ter- em treinamento anterior; ou um “POP” de
lares pelas duas mortes. mos de equipamento, que se exige para libe- desfibrilação cardíaca se não está disponí-
rar uma área classificada com espaço con- vel o desfibrilador e o respectivo treina-
TRIPÉ DA PREVENÇÃO finado. Mas podem ser necessários, e qua- mento; ou ainda, um “POP” de combate a
O caso que acabamos de relatar foi publi- se sempre são, muitos outros equipamen- incêndios em edifícios elevados se a cida-
cado no jornal New York Times, em 23 de tos tais como: ventiladores – exaustores, de onde o bombeiro trabalha não tem edifí-
dezembro de 2003, em uma série de repor- movimentadores verticais, aparelhos de cios com mais de um pavimento ou não
tagens que denunciava a negligência das proteção respiratória, materiais para primei- possui escadas ou plataformas mecânicas.
autoridades na fiscalização das condições ros socorros, etc. Equipamento é a primeira A falta de apenas uma das “pernas” do
de segurança dos trabalhadores norte-ame- perna do tripé. “tripé da prevenção” inviabiliza a seguran-
ricanos. A segunda perna é o Treinamento. Para ça de toda e qualquer operação em espaço
É interessante notar que mesmo em um utilizar os equipamentos disponibilizados confinado, que como vimos no caso relata-
país, dito de Primeiro Mundo, a liberação e e realizar a tarefa no espaço confinado, tan- do, não é primazia só do Brasil.
realização de trabalhos em espaços confina- to o trabalhador como aqueles que cuida-
dos é muito semelhante a que ocorre no rão de sua proteção e resgate necessitarão Nota:
Brasil, onde os trabalhadores são enviados ter capacitação específica comprovada. É 1 “Água servida” é o termo utilizado
para realizar tarefas em espaços confina- preciso assegurar o correto manejo dos equi- para a água que foi utilizada para lavar
dos sem equipamentos adequados, sem trei- pamentos para realizar as operações com uma área e é captada e reaproveitada para
namento específico e sem procedimentos sucesso. outras lavagens. Essa técnica visa eco-
operacionais escritos, itens essenciais para Por fim, a terceira perna, que vai conferir
a prevenção de acidentes nesses locais. equilíbrio ao nosso tripé, são os procedi-
nomizar o consumo de líquido.

70 SETEMBRO/2005

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