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GABRIELA DE SOUSA MOURA

A PASÁRGADA DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS PODE NOS


EMANCIPAR?

O EXAME DE VIABILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO MODELO JURÍDICO DA


PASÁRGADA DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS PARA CONSTRUÇÃO
DE UM DIREITO DEMOCRÁTICO EMANCIPATÓRIO

1
Este pequeno escrito é dedicado ao Professor Doutor Flávio
Quinaud Pedron, pelas suas orientações atentas e sua disposição
em ajudar. À Professora Doutora e querida Astreia Soares por
me fazer conhecer um pouco dos estudos de Boaventura de
Sousa Santos e despertar minha curiosidade sobre Habermas. E
à amiga de sempre, pelo companheirismo de cada época,
Roberta Drummond. Os erros cometidos são de minha inteira
responsabilidade.

2
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................5
1 QUE LUGAR É PASÁRGADA.......................................................................................8
1.1 Breve apresentação do Direito pasargadiano..............................................................9
2 O PRAGMATISMO DO DECIDIDOR DE PASÁRGADA........................................13
2.1 A Atuação do Presidente da Associação de Moradores como decididor..................13
2.2 O Pragmatismo Jurídico..............................................................................................15
2.2.1 O Realismo Norte-Americano e o Decididor de Pasárgada..................................16
2.2.2 O decididor serve à Democracia?............................................................................19
3 PASÁRGADA: A TEORIA DO PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA E
AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO................................................................................22
3.1 Wer hat dir, Henker, diese Macht Über mich gegeben?«2
3.1.2 A Teoria da Relação Jurídica Triangular em Pasárgada......................................24
3.2 Processo e Procedimento: uma diferenciação necessária.........................................2
3.2.1 A ausência de Procedimento em Pasárgada ...........................................................28
3.3 Crítica ao Modelo de Formas Flexíveis de Pasárgada..............................................31
3.3.1 A incompatibilidade da Teoria do Processo como Relação Jurídica para um
modelo jurídico democrático.............................................................................................32
3.3.2 O Processo como garantidor da Democracia: crítica aos métodos do forum de
Pasárgada............................................................................................................................35
3.3.3 A Revisitação do Caso Julgado................................................................................3
4 O DISCURSO LEGAL PASARGADIANO: A RETÓRICA É UM VIÉS
DEMOCRÁTICO?.............................................................................................................4
4.1 O que é a Retórica?......................................................................................................41
4.2 Pasárgada e o Discurso Retórico.................................................................................44
4.2.1 Extensão do Espaço Retórico Versus Nível de Institucionalização; e Extensão do
Espaço Retórico Versus Aparelho Coercitivo..................................................................44
4.2.2 A operacionalização da Retórica em Pasárgada através de topoi.........................45
4.3 Os tópicos confundidos por Boaventura de Sousa Santos: normas morais ou
jurídicas?.............................................................................................................................4
4.4 Democracia e Retórica.................................................................................................49

3
4.4.1 A retórica é contra-projeto para Democracia........................................................5
CONCLUSÃO....................................................................................................................5
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................5
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................

4
INTRODUÇÃO

No início da década de 70, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, desenvolveu


uma pesquisa empírica numa favela que chamou fictamente de Pasárgada e que está situada
no Rio de Janeiro. Esta pesquisa é parte do trabalho realizado em sede de seu doutoramento
pela Universidade de Yale, e resultou na tese intitulada Law Against Law: Legal Reasoning
in Pasargada Law, publicada em 1974 pelo Centro Intercultural de Documentación de
Cuernavaca (México), além de ter também resultado em outras versões de publicação, como
o texto (resumo) O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica Jurídica
(SANTOS, 1988), que foi publicado pela primeira vez no Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra.

SANTOS (1988: 8) pretende, com sua tese, responder três questões: 1) da extensão do espaço
retórico ou do campo da argumentação; 2) da constituição interna do espaço retórico; 3) das
condições socais do regresso da retórica em geral e da retórica jurídica em especial, na
segunda metade do séc. XX.

Para responder à primeira questão, SANTOS (1988: 9) utilizou especialmente a comparação


entre a prática jurídica dos países capitalista e a prática jurídica que observou em Pasárgada.
É esta parte de seu estudo que está manifesta no texto O Discurso e o Poder: ensaio sobre a
sociologia da retórica jurídica. Ou seja, para concluir sobre a extensão do espaço retórico,
Santos parte do pressuposto de que há, dentro da jurisdição do Estado brasileiro, outra ordem
jurídica, estranha e independente em relação a este, e que consiste na ordem jurídica de
Pasárgada.

Assim, o sociólogo lusitano, na época filiado à antropologia, apresenta Pasárgada como um


caso de Pluralismo Jurídico, fenômeno que entendia ser caracterizado pela coexistência no
mesmo espaço geopolítico de dois ou mais ordenamentos jurídicos, independentes se
reciprocamente considerados. Tal filiação ao pensamento antropológico se observa no
próprio estudo de Santos, e que está expressa através do seguinte questionamento feito em
O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica: ³FRPR UHVROYHU D
questão de reconhecer no mesmo espaço geo-político, neste caso o estado-nação brasileiro,
5
a existência de mais de um direito, sendo certo que tal reconhecimento choca frontalmente
com os pressupostos constitucionais do estado moderno, que atribuem a este o monopólio
GDSURGXomRGRGLUHLWR"´ 6$1726S 

Importa esclarecer que, posteriormente, Santos abandonou o conceito antropológico de


Pluralismo Jurídico, o que pode ser verificado na obra Para um novo senso comum: a
ciência, o direito e a política na transição paradigmática, do próprio sociólogo (2000), e
que se trata da versão revista e ampliada em português da publicação Toward a New
Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transtion (Nova Iorque,
1995).

A versão em português ainda não foi publicada por completo no Brasil, mas tão somente o
1° volume de um total de quatro. E, embora o abandono ao conceito antropológico de
Pluralismo Jurídico fique mais evidente no 2° volume da obra, nomeado O Direito da Rua:
Ordem e Desordem nas Sociedades Subalternas, é possível essa percepção já no 1° volume,
entitulado A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, no qual a
definição de Santos para Pluralismo Jurídico converge para a idéia de interlegalidade, que
é promovida pela existência de várias ordens jurídicas nas sociedades modernas, as quais
são marcadas por porosidade, e entre as quais vivemos em constante transição, como foi
colocado pelo próprio sociólogo no trecho a seguir:

A cartografia simbólica do direito aqui traçada é uma das vias possíveis de


acesso a uma concepção pós-moderna de direito. Ao longo da exposição, fui
apresentando alguns componentes básicos desta concepção. Alguns deles foram
já apresentados no Capítulo 2 e serão retomados no Capítulo 5, outros serão
desenvolvidos no 2° e 3° volumes. O primeiro deles e talvez mais importante é o
conceito de pluralismo jurídico. Não se trata do pluralismo jurídico estudado e
teorizado pela antropologia jurídica, ou seja, da coexistência, no mesmo espaço
geo-político, de duas ou mais ordens jurídicas autônomas e geograficamente
segregadas. Trata-se, sim, da sobreposição, articulação e interpenetração de
vários espaços jurídicos misturados, tanto nas nossas atitudes, como nos nossos
comportamentos, quer em momentos de crise ou de transformação qualitativa
nas tajectórias pessoais e sociais, quer na rotina morna do quotidiano sem
história. Vivemos num momento de porosidade ética e jurídica, de um direito
poroso constituído por múltiplas redes de ordens jurídicas que nos forçam a
constantes transições e transgressões. A vida sócio-jurídica do fim do século é
constituída pela intersecção de diferentes linhas de fronteiras (....).
A intersecção de fronteiras éticas e jurídicas conduz-nos ao segundo conceito-
chave de uma visão pós-moderna do direito, o conceito de interlegalidade. A
interlegalidade é a dimensão fenomenológica do pluralismo jurídico. (SANTOS,
2000, p. 221)

6
Entretanto, o objeto desta pesquisa é apenas o texto O Discurso e o Poder: ensaio sobre a
sociologia da retórica Jurídica, e tem como objetivo realizar uma análise crítica da resposta
dada por SANTOS (1988: 54-59) sobre a extensão do espaço da retórica, bem como da
proposta ali contida, no sentido de que o modelo jurídico pasargadiano é, como quis
SANTOS (1988: 88), a base analítica para a construção de uma nova teoria fundamentadora
de Direito democrático emancipatório.

Tal análise crítica será procedida pela sujeição dos elementos da prática jurídica em
Pasárgada a estudos já desenvolvidos pela Filosofia do Discurso, considerando
especialmente a obra Direito e Democracia: entre faticidade e validade (HABERMAS,
2003). Outros estudos da Escola Mineira de Processo também contribuirão como referentes
teóricos.

7
1 QUE LUGAR É PASÁRGADA?

Pasárgada é apontada por SANTOS (1988: 10) como uma das maiores favelas do Rio de
Janeiro, e seu nome é na verdade Jacarezinho (Diversa, n 8, p. 8), localizado numa zona
industrial da cidade e que a maior parte de sua ocupação é ilegal e foi iniciada na década de
30, momento em que se tratava de propriedade privada, e posteriormente passou a ser da
titularidade do estado. SANTOS (1988: 10) aponta ainda que as construções edilícias dali
também são ilegais, não apenas pela falta de título, como também por ferirem as disposições
normativas sobre construções de edifícios em áreas urbanas. Soma-se ainda o fato de que,
até a data em que Santos teve em Pasárgada o seu objeto de estudo, a favela também não
recebia, das entidades federativas, rede elétrica, abastecimento de água aos domicílios,
esgotos e pavimentação das ruas. Além disto, a comunidade também sofria uma grande
pressão para ser removida dando lugar a empreendimentos urbanísticos.

Diante de tantas dificuldades, os habitantes de Pasárgada se organizaram para melhorar as


condições habitacionais e a ordem das relações sociais. Esta organização comunitária fez
subir os custos políticos e sociais de uma remoção forçada.

Um dos recursos que a comunidade criou para solucionar seus problemas é a Associação de
Moradores, que tem várias atribuições, e dentre elas a de funcionar como uma espécie de
fórum, dotado de prática e discurso jurídicos próprios (SANTOS, 1988, p. 14). Assim, o
sociólogo português afirma que Pasárgada passou a utilizar um Direito paralelo não oficial
(não estatal), ao qual os moradores recorrem para celebrar contratos (inclusive referentes ao
direito de propriedade), e também para solucionar conflitos (SANTOS, 1988, p. 14-16). E,
em razão de se tratar de um Direito paralelo ao Direito estatal (Direito do asfalto), que
coexiste com este no mesmo espaço geo-político, SANTOS (1988: 72-78) atribui a este
fenômeno a nomenclatura de Pluralismo Jurídico1.

1
Importa relembrar que Santos abandona posteriormente este conceito antropológico de Pluralismo Jurídico,
para adotar uma nova compreensão que está expressa na obra Para um novo senso comum: a ciência, o
direito e a política na transição paradigmática.2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. Publicação ainda incompleta
no Brasil.
8
1.1 Breve apresentação do Direito pasargadiano

No decorrer do texto O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica,


o lusitano SANTOS aponta que o Direito de Pasárgada sofre menos da formalidade e da
institucionalização que caracterizam o Direito do asfalto, e conta com instrumentos de
coerção muito empobrecidos se comparados a todo o aparato que detêm o Estado (SANTOS,
1988, p. 53-58). E, assim, SANTOS conclui que uma das maiores diferenças entre o Direito
pasargadiano e o Direito estatal, consiste que o primeiro possui um espaço retórico muito
mais amplo do que o segundo, o que se dá exatamente em razão da seguinte correlação
HODERUDGD SHOR VRFLyORJR ³$ DPSOLWXGH GR HVSDoR UHWyULFR GR GLVFXUVR MXUtGLFR YDULD QD
razão inversa do nível de institucionalização da função jurídica e do poder dos instrumentos
de coerção ao serviço da pURGXomRMXUtGLFD´ 6$1726S-59)2. E desta forma,
ainda na proposição de Santos, o fato da jurisdição se realizar em um espaço retórico maior,
no qual as partes envolvidas participam ativamente através do uso de uma argumentação que
não é legalista, mas sim quotidiana e comum (SANTOS, 1988, p. 45), além de também
lançarem mão da negociação, as decisões finais não são atingidas por uma carência de
legitimidade (SANTOS, 1988, p. 27).

Já o Discurso Jurídico de Pasárgada, em si considerado, é caracterizado como retórico e


também diferenciado por SANTOS (1988: 45), como já mencionado, por não ser legalista e
preferir uma linguagem simples, cotidiana, comum, que recorre a elementos acessíveis a
cognição dos moradores, como citações bíblicas, topoi, clichês, provérbios (SANTOS, 1988,
p. 23)

No que diz respeito à atividade jurisdicional, Pasárgada tem, na figura do Presidente da


Associação de Moradores, o personagem que exerce a função de juiz. O modelo
pasargadiano confere grande importância a este papel, uma vez que seu Direito se encontra
centrado no decididor (SANTOS, 1988, p. 20), que pode inclusive decidir além do que foi
VXVFLWDGRSHODVSDUWHVTXH³SRULJQRUkQFLDQmRVRXEHUDPVLQWRQL]DURREMHFWRGRFRQIOLWR
com o forum  ´ 6$1726S7). O Presidente da Associação de Moradores ainda

2
Esta correlação aqui apresentada não é feita por Boaventura sem que este deixa de destacar que
Institucionalização e Coerção são varáveis independetes.
9
determina, gradualmente e segundo suas próprias convicções subjetivas, o modelo
procedimental, porque para este não estão estabelecidas normas (regras e princípios) pré-
determinadas. Tal determinação se dá conforme cada caso. (SANTOS, 1988, p. 30-33).

Além disto, o juiz de Pasárgada assume uma posição de superioridade no discurso em relação
às partes envolvidas, por este motivo chega inclusive a ser concebido, pelo próprio Santos,
FRPR³VXMHLWRSULYLOHJLDGRGRGLVFXUVR´ 6$1726S TXHVXEPHWHDSDUWLFLSDomR
das partes ao ritmo e à direção da argumentação proposta por si próprio (SANTOS, 1988, p.
34).

Esta ausência de isonomia também é possível em relação a uma das partes, i.e, os demais
HQYROYLGRV³QmRVmRQHFHVVDULDPHQWHLJXDLVSHUDQWHRforum (e o presidente), e suas posições
relativas influenciam a medida da participação" (SANTOS, 1988, p. 27).

$ MXULGLFLGDGH ³HQ[HUJDGD´ HP 3DViUJDGD p D HYLGrQFLD GH TXH VHJXLQGR D WHQGrQFLD GD
sociologia, Santos acredita que o Direito reside nas práticas socais. Ou seja, para o sociólogo
as normas jurídicas não se distinguem de outras normas sociais3; motivo pelo qual o Direito
pode ser extraído ou captado a partir de uma observação do comportamento das pessoas ou
dos grupos. Esta indistinção entre as espécies normativas (culturais e jurídicas) está evidente
na conceituação de Direito dada por SANTOS (1988: 72):

(...) concebe-se como direito, o conjunto de processos regularizados e de


princípios normativos, considerados justificáveis num dado grupo, que
contribuem para a criação e prevenção de litígios e para a resolução destes
através de um discurso argumentativo, de amplitude variável, apoiado ou não
pela força.

São basicamente estas as características dos elementos e do discurso que compõem a


prática jurídica pasargadiana, que , na visão de SANTOS (1988: 88), fornecem a base para
a construção de uma nova teoria para o Direito nas sociedades capitalistas, que encontrará

3
Posteriormente, Santos passará a utilizar um conceito de Direito mais complexo, que reconhece como umas
de suas características a ameaça da força, e a submissão dos litígios à resolução de terceiros não diretamente
envolvidos. Este conceito aparece em: SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a
ciência, o direito e a política a transição paradigmática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. V.1. A crítica da
razão indolente: contra o desperdício da experiência. p. 290. Contudo, o novo conceito de Direito dado por
Santos também se mostra frágil.

10
como elemento democratizante o Discurso Retórico, que se volta contra o método de
triunfo do Direito Estatal que é ancorado na violência institucional-sistêmica e física-
psíquica, em razão do poder que tem o Discurso de encantar a consciência, colocação que
o sociólogo faz numa referência a Gadamer (SANTOS, 1988, p.94)

Esta proposta precisa ser revista cuidadosamente.

Sem dúvidas, Pasárgada (ou Jacarezinho) representa uma parcela de pessoas não adotadas
pelo projeto dos CIVIS. Trata-se, portanto, de excluídos do processo de civilização (governo
e jurisdição dos patrimonializados). Isto é, conforme esclarece Leal, atento ao fato de que a
Sociedade Civil ainda não se libertou dos moldes como foi interpretada por Marx e Hegel
³SRWHQFLDomRHFRQ{PLFDTXHLQIOXLQDPRGHODomRHIRUPDVGHYLGDHTXHDVVXPHFRQWUROHV
VRFLDLV´ /($/S cidadão não se trata de sinônimo de civil como costumam errar
os dicionários, uma vez que aquele seria o habitante da ci-datus, o lugar dado pelo civil ao
potus SRYR HDVVLP³RSRYRTXDQGRDGRWDGRSHORCIVIS, torna-se o coletivo de cidadãos,
livres de sua vida errante, vadia, despossuída. Não são pessoas inatamente portadoras de
liberdade, são cidadãos livres QR VHQWLGR GH OLEHUWDGRV GD HUUkQFLD H GHVRUJDQL]DomR´
(LEAL, 2005, p 1-2). De tal maneira, os moradores de Pasárgada constituem aqueles para
quem o governo civil não é dirigido, mas dos quais tal governo é apenas o dirigente (LEAL,
2005, p. 1); pois, historicamente, este governo continua a dar seguimento ao seu primordial
projeto, que não tem os moldes da política que permite a efetivação de direitos fundamentais
(LEAL, 2005, p.3).

E por configurarem não incluídos é que os habitantes de Jacarezinho tiveram que promover
formas de contornar a exclusão que sofrem. A Associação de Moradores foi criada para
tentar suprimir ou superar as carências daqueles a quem não são possíveis os projetos dos
civis.

Entretanto, não obstante a esta função atribuída à Associação de Moradores, e ao fato de O


Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica ainda inspirar muitos
estudantes de Sociologia e de Filosofia do Direito, é necessário verificar a adequabilidade
da proposta lançada por SANTOS, no sentido de que Pasárgada é, potencialmente, um novo

11
referente para a construção de um Direito Democrático emancipatório. Para esta tarefa, os
ultrapassados paradigmas jurídicos Sociais e Liberais, bem como a filosofia da consciência,
ainda utilizados pelos operadores do Direito, devem ser substituídos por outros pensares
adequáveis ao Estado Democrático, como, p. e., a filosofia da linguagem.

Os próximos capítulos serão, portanto, dedicados a focarem em determinados elementos que


compõe o modelo jurídico pasargadiano.

O primeiro elemento estudado será a figura do Presidente da Associação dos Moradores,


que exerce o papel de decididor (SANTOS, 1988, p. 20) em Pasárgada.

Já o método jurídico de obtenção de resultados, i.e., as formas de ratificação e de resolução


de litígios, adotado por Pasárgada, bem como possibilidade da falta de isonomia entre as
SDUWHVTXH³QmRVmRQHFHVVDULDPHQWHLJXDLVSHUDQWHRforum (e o presidente), e suas posições
relativas influenciam a medida da participação" (SANTOS, 1988, p. 27) serão os objetos
de análise do terceiro Capítulo.

Outro ponto que merece exame é o discurso pasargadiano, que não recorre sempre e somente
às leis, mas usa principalmente de topoi, clichês, provérbios e citações bíblicas, exatamente
por se tratar de um discurso retórico (SANTO, 1988, p. 17-18). Portanto, este será então o
objetivo do quarto capítulo: conhecer a estrutura do discurso de Pasárgada e sua
operacionalidade, a fim de verificar a adequabilidade da correlação Espaço Retórico,
Institucionalização e Coerção elaborada por SANTOS (1988, p. 54-59). Nesse momento do
trabalho, também será observado o papel que tem a moral no Modelo Jurídico pasargadiano.

12
2 O PRAGMATISMO DO DECIDIDOR DE PASÁRGADA

2.1 A Atuação do Presidente da Associação de Moradores como decididor

Como mencionado no capítulo 1, o Direito pasargadiano é centrado na figura do Presidente


da Associação dos Moradores, que exerce o papel de decididor (SANTOS, 1988, p. 20), e
tem suas atribuições ramificadas na função de ratificar relações jurídicas e na competência
para resolução de litígios (SANTOS, 1988, p. 15).

Assim, se as partes desejam celebrar um contrato (ou qualquer relação jurídica), elas podem
comparecer perante o Presidente da Associação e então explicam a este os seus propósitos,
o que geralmente fazem acompanhadas de amigos ou familiares que servem como
testemunhas. A seguir, o juiz pasargadiano passa a interrogar os envolvidos até se considerar
elucidado sobre a natureza e a legitimidade da relação que pretendem estabelecer e do objeto
a ser pactuado, bem como sobre a autonomia das vontades e a seriedade das partes em
cumprir os compromissos assumidos. Isto feito, o decididor então elabora o contrato, e para
tanto pode inclusive adotar fórmulas correspondentes àquelas utilizadas pelos órgãos
estatais. É este tipo de serviço que SANTOS (1988: 15-16) identifica como ratificação, e
que entende ser bastante útil para a prevenção de disputas. Entretanto, a ratificação nem
sempre ocorre como aqui descrito, haja vista que tanto a elaboração de documentos e até
mesmo a efetuação do interrogatório são variáveis (SANTOS, 1988, p. 30-31).

Já nos casos de conflitos entre os moradores, a atuação do Presidente se verifica


aproximadamente da seguinte maneira: após o comparecimento queixoso da parte, o
decididor passa a interrogá-la para se certificar e concluir a cerca da seriedade do conflito,
hipótese em que o juiz pode utilizar inclusive do próprio conhecimento que tem do caso para
impedir procedimentos movidos pela má-fé. Esta interrogação também serve para o
Presidente verificar a competência material da Associação para a resolução do litígio, bem
como a competência territorial, i.e, se o objeto do conflito está dentro do território de
Pasárgada (SANTOS, 1988, p. 16). Portanto, a intervenção da Associação de Moradores no
caso, depende do juízo de admissibilidade exercido pelo Presidente, que verifica, segundo o
13
próprio entendimento, principalmente no que tange à matéria, se tal causa é da competência
de Pasárgada. O litígio tem, portanto, de encontrar razão na subjetividade do juiz, para ser
aceito na Associação.

Iniciado o procedimento de resolução de litígios, a discussão entre as partes é orientada pelo


Presidente, que ao final profere a decisão (SANTOS, 1988, p. 16).

Os elementos utilizados nesta discussão são bastante amplos, pois compreendem das leis
estatais até citações bíblicas, passando por provérbios, topoi, clichês e slogans (SANTOS,
1988, p.23-24). E tais elementos são, sobretudo, utilizados pelo Presidente, que é
LGHQWLILFDGRFRPRDTXHOHTXH³GRPLQDRGLVFXUVRMXUtGLFR´ 6$1726S 

A tomada pelo elemento aplicável ao litígio se dá gradualmente, na medida em que o


decididor aprofunda o seu conhecimento do caso (SANTOS, 1988, p. 25), e a interpretação
deste mesmo elemento é feita tendente ao que é melhor para toda coletividade (SANTOS,
1988, p. 23); ou seja, o critério hermenêutico adotado para realizar a subsunção do fato a
norma é o entendimento que o Presidente da Associação de Moradores tem acerca do que é
mais interessante para a maioria.

Também é da competência do decididor determinar gradativamente e segundo suas próprias


convicções como se dará, em cada caso, o procedimento, porque este não conta com normas
(regras e princípios) pré-determinados (SANTOS, 1988, p. 30-33). Geralmente, diante das
disputas, os métodos aplicados para o exercício jurisdicional em Pasárgada são mais ou
menos semelhantes, mas não em função de regras.

Além disto, o juiz de Pasárgada pode proferir uma decisão que vai além das questões que
IRUDPVXVFLWDGDVSHODVSDUWHVTXH³SRULJQRUkQFLDQmRVRXEHUDPVLQWRQL]DURREMHFWRGR
conflito com o forum (...) quer porque uma delas, pelo menos, procurou conscientemente
usar o fórum com propósitos capciosos, quer ainda porque o presidente conclui que o objecto
processado do conflito é uma parcela mínima do objecto real do conflito (...)´ 6$1726
1988, p. 27).

14
Não é difícil perceber, portanto, o quão muito o discurso jurídico e o próprio conteúdo do
direito pasargadiano ficam a mercê do entendimento do Presidente da Associação de
Moradores, que ao decidir utiliza mais do próprio ponto de vista do que de uma
normatividade que lhe precede, ou ainda de uma normatividade que tenha sido construída
em paridade no próprio processo de resolução do conflito, pelas partes diretamente afetadas.
No modelo decisório de Pasárgada, a voz do Presidente é o phoné do próprio Direito, que a
seu turno é retirado dos lugares-comuns da comunidade, também pelo decididor. Tal
caracterização faz do juiz de Pasárgada um pragmático, aos moldes dos norte-americanos.

Para elucidar esta afirmativa, o título a seguir tratará de apresentar a Escola do Pragmatismo
Jurídico e como seu pensamento se revela no comportamento do decididor pasargadiano.

2.2 O Pragmatismo Jurídico

O Pragmatismo ou Realismo Jurídico não é caracterizado como um movimento uniforme, e


há diferenças importantes entre os seus diversos pensadores.

De um lado, por exemplo, se encontram os realistas norte-americanos, assimiladores do


pensamento da Sociological Jurisprudence, e que basicamente deram seqüência aos
entendimentos dos fundadores desta Escola: Oliver Wendell Holmes e R. Pound (BILLIER
e MARYOLI, 2005, p. 252).

Noutra mão, há o realismo escandinavo, que se recusou a entender que o direito é o que
decidem os tribunais, como gostam os americanos, e preferiu a tese de que o direito é um
conjunto de normas capazes de constranger psicologicamente (BILLIER e MARYOLY,
2005, p. 261). Neste sentido, Alf Ross, um dos nomes mais importantes desta corrente,
explica que a força vinculante de uma norma não é mais que o resultado de um ato subjetivo
de aceitação da obrigatoriedade da própria norma (GUASTINI, 2005, p. 113). O
pragmatismo escandinavo foi bastante influenciado pela lógica empirista do Círculo de
Viena (GUASTINI, 2005, p. 108), o que se nota pela repulsa deste movimento à Metafísica.

15
Entretanto, a Escola Realista americana interessa mais a este trabalho, pois é com ela que o
juiz pasargadiano guarda características em comum.

2.2.1 O Realismo Norte-Americano e o Decididor de Pasárgada

Oliver Wendell Holmes que foi identificado anteriormente como umas das principais fontes
GRVUHDOLVWDVHVWDGXQLGHQVHVFKHJRXDDILUPDUTXH³DVSUHGLo}HVGRTXHIDUmRRVWULEXQDLVH
QDGDPDLVSUHWHQVLRVRGRTXHLVWRVmRRTXHHXHQWHQGRSRUGLUHLWR´ +2/0(S, 1897, v. 10,
p. 461, apud BILLIER e MARYOLI, 2005, p. 252). É na linha desta proposição que o
pensamento pragmático americano se firma. Em outras linhas, para estes realistas o Direito
não está manifesto em um conjunto de normas, nem consiste num conjunto de normas; mas
ele é o que os juízes decidem diante dos casos. Isto porque, no pragmatismo, as normas
jurídicas não precedem à interpretação, mas são tão somente o resultado desta (GUASTINI,
2005, p. 141).

Esta maneira de compreender o Direito rendeu ao pragmatismo norte-americano a


qualificação de empirismo reducionista (BILLIER e MARYOLI, 2005, p. 264), e permitiu
reconhecer nele uma posição cética, na qual a interpretação é uma atividade de valoração e
decisão, e não de conhecimento (GUASTINI, 2005, p. 140). DWORKIN (2003: 186), um
dos que se voltam contra o realismo, desenvolve que uma das implicações deste ceticismo
consiste no fato de o pragmático adotar uma posição de incredulidade em relação ao
reconhecimento de que as pessoas tenham quaisquer pretensões jurídicas tuteladas por
normas ou até mesmo por decisões anteriores. E tal postura se garante uma vez que os
intérpretes devem agir sob a fórmula como se, que simula aos indivíduos que eles tenham
realmente algum direito que não é determinado exclusivamente pelo ponto de vista os juízes
(como se tivessem direitos) (DWORKIN, 2003, p.187-189).

E o que o juiz pragmático faz, para reduzir o conteúdo do Direito a sua própria idiossincrasia,
é: 1) sublimar o caráter indeterminado das regras; e 2) se apegar aos seus termos vagos, para
os preencher com os seus pontos de vistas e finalmente atender a função instrumentalista do
direito, segundo a qual a ordem jurídica serve para satisfazer os interesses políticos
(determinantes extrajurídicos). É em função disto que HABERMAS (2003, p. 248, v. 1)
16
afirma que a prática da decisão deixa de ser determinada internamente através das regras do
próprio sistema jurídico; e por tal motivo, a lógica própria do Direito desaparece por
completo, e se torna impossível, para o realismo legal, uma distinção clara entre Direito e
política (HABERMAS, 2003, p. 249, v. 1).

Assim, na concepção jurídica do pragmatismo as normas são de somenos importância, pois


o conteúdo do Direito reside, em última análise, no que dizem os tribunais, e sua função é
atender a diretrizes políticas, dominadas e conhecidas pelo julgador. Contudo, esta idéia se
sustenta sem negar por completo a autoridade das regras, mas por sublimar suas tramas
abertas (BILLIER e MARYOLI, 2005, p. 254), o que amplia o espaço a ser ocupado pela
UD]mRGRMXL]1HVWHVHQWLGR ³DV UHJUDVVmRLPSRUWDQWHVQDPHGLGDHP TXHQRVDMXGDPD
predizer o que os juízes vão fazer. É nisso que reside a importância delas, à parte do fato que
FRQVWLWXHPEHORVEULQTXHGRV´ //(:(//<1, p. 14, apud BILLIER e MARYOLI,
2005, p. 254).

GUASTINI (2005: 141) explica que esta maneira de proceder dos juízes pragmáticos é
acompanhada do entendimento de que os ordenamentos jurídicos são incoerentes e
incompletos, e que, diante de antinomias e lacunas, a função dos juízes é de criar o direito,
como um legislador. De tal maneira, não há claro limite entre Judiciário e Legislativo.

2 UHDOLVPR MXUtGLFR SRUWDQWR TXHU H ³HVWLPXOD RV MXt]HV D GHFLGLU H D DJLU VHJXQGR VHXV
SUySULRVSRQWRVGHYLVWD´ 'WORKIN, 2003, p. 186). O resultado disto é que a conclusão
de um processo judicial pode ser explicada pela estrutura da personalidade dos juízes, por
enfoques políticos, por tradições ideológicas e por interesses (HABERMAS, 2003, p. 249,
v. 1).

Este modo de compreender o Direito e de efetivá-lo é bastante similar ao cotidiano jurídico


de Pasárgada. Voltar ao exame da maneira de atuação do decididor pasargadiano deixa tal
proposição ainda mais em evidência.

E assim, consoante com maneira dos realistas, o Direito de Pasárgada tem seu habitat na
sentença prolatada pelo Presidente, uma vez que é este quem domina (sabe) o Discurso
Jurídico (SANTOS, 1988, p. 20). E assim, antes da decisão do julgador da Associação de
17
Moradores, não há conclusão acerca da existência de direito ou dever algum. Aos habitantes
de Pasárgada não é concedido o poder (capacidade) de predizer seus direitos, porque é o
decididor quem conhece a fala jurídica (SANTOS, 1988, p. 20); a ponto até mesmo de existir
confusão entre linguagem do próprio Presidente e a linguagem normativa ± como se fossem
todas uma só. Às partes é apenas concedida uma ilusão de controle do discurso, o que ocorre
nos instantes procedimentais em que o Presidente dá a elas a palavra e permanece em silêncio
(SANTOS, 1988, p. 39).

O conteúdo do sistema jurídico pasargadiano está tão atado ao subjetivismo do decididor,


que um conflito para ser processado perante o fórum de Pasárgada, como já foi apontado,
tem de ser primeiro aceito pelo Presidente (SANTOS, 1988, p.16), para, em um segundo
momento, o juiz apresentar o direito às partes, dar a elas o conhecimento de uma
normatividade que, anteriormente, só podiam, quando muito, supor.

E este direito, intangível a priori à cognição dos envolvidos, e submisso ao verbo do


julgador, é apresentando pelo próprio Santos como ontológico aos juízos valorativos do
Presidente da Associação de Moradores, quando o sociólogo aponta que a decisão proferida
³WHQGH DVHULQYHVWLGDGRSURSyVLWRGHFRQWDELOL]DUHP SRUPHQRURVPpULWRV UHODWLYRs das
GLIHUHQWHVSUHWHQV}HVPHVPRGDTXHODVTXHjSDUWLGDVHVLWXDP IRUDGRREMHFWR GDFDXVD´
(SANTOS, 1988, p. 21). Portanto, cabe ao decididor julgar os méritos (avaliação moral) por
detrás das pretensões, inclusive daquelas estrangeiras ao procedimento, para então dar o
Direito.

O pragmatismo pasargadiano faz com que o Direito esteja simulado enquanto tal, quando
QDGD pDOpP GR ³VHQWLPHQWR´HGDV SUHIHUrQFLDVSROtWLFDVGRGHFLGLGRU. E os pragmáticos
estão inteiramente de acordo com esta situação, pois como indicado, para eles não existem
Direitos a priori, em razão do fato de que as decisões judiciais nada são além do que
preferências manifestas dos julgadores, e neste sentido elaboram uma crítica ao Hércules de
DWORKIN (2003: 311) ao apontar que este é um juiz fraudulento quando afirma que
descobriu qual direito é aplicável aos seus hard cases (a única resposta correta), porque o
que ele faz na verdade é afirmar o conteúdo do direito a partir de suas escolhas políticas; ou
seja, quando decide, Hércules apenas dá uma opinião de como o direito deveria ser.

18
De tal maneira, no realismo jurídico americano e pasargadiano, o Direito assume a
perspectiva de um instrumento de fazer política. Isto fica bastante notório, p.e., diante da
colocação de SANTOS (1988: 23) no sentido de que em Pasárgada a decisão do Presidente
da Associação de Moradores deve sempre tender ao que é melhor para comunidade. Esta
posição do fórum é política.

A redução do sistema de direitos a instrumento estritamente político, da maneira como faz


Santos, se apresenta como uma idéia identificável com a fundamentação utilitarista do
Direito, que, conforme aponta HABERMAS (2003, p. 123. v.1), encontra expressão em
Hobbes, através de sua concepção de que um ordenamento jurídico deve servir para que o
maior número de pessoas possível se sinta bem durante o maior tempo possível.
Fundamentação que legitima o sacrifício individual em favor de vantagens desfrutadas por
muitos.

Diante desta versão instrumentalista do Direito que tem o pragmatismo, Dworkin destaca:

O pragmatismo não exclui nenhuma teoria sobre o que torna uma comunidade
melhor. Mas também não leva a sério as pretensões juridicamente tuteladas.
Rejeita aquilo que as outras concepções do direito aceitam: que as pessoas podem
claramente ter direitos, que prevalecem sobre aquilo que, de outra forma,
asseguraria o melhor futuro à sociedade. Segundo o pragmatismo, aquilo que
chamamos de direitos atribuídos a uma pessoa são apenas os auxiliares do melhor
futuro: são instrumentos que construímos para esse fim, e não possuem força ou
fundamento independentes. (DWORKIN, 2003, p. 195)

2.2.2 O decididor serve à Democracia?

Todas as colocações apresentadas neste capítulo permitem concluir que no viés pragmático,
também adotado em Pasárgada, o Direito é confundido com a sentença (fala) do juiz, e
ambos acabam por assumir um só corpo ± o direito está na palavra do decididor. Um dos
desdobramentos desta característica realista consiste no fato de que quando o conteúdo do
ordenamento jurídico está inserido num processo de confusão (indistinção) com o discurso
do decididor, e no caso de Pasárgada com a fala do Presidente da Associação de Moradores,
o Direito nada é além do que expressão da própria opinião política do julgador que assume
a condição de único intérprete da norma.
19
Isto percebido, resta fácil a constatação de que o Juiz pasargadiano é um dos elementos
componentes do Direito descrito por SANTOS (1988) que impede que Pasárgada seja
utilizada como base para a construção de um sistema jurídico democrático.

Face aos paradigmas inaugurados com a Democracia, não interessa mais à ciência jurídica
contemporânea a compreensão da decisão como lócus de manifestação de verdades
irrefutáveis e utilizadas estritamente para fins políticos. É nesta linha que LEAL (2002: 17)
afirma que a decisão vista como mera escolha individual entre várias alternativas não mais
satisfaz às investigações do pensamento jurídico.

O decididor pasargadiano, camuflado na condição de achador do direito, é na verdade um


personagem que se dedica a achar a ética (o bem comunitário) na própria razão. É exatamente
como faz o achador de Carnelutti que, diante das situações em que a ética se manifesta débil
para dirimir ou permitir a composição de conflitos, surge como se a voz da própria ética
fosse, para ecoar sob a forma expressa de sentença (LEAL, 2002, p. 19)

Em Pasárgada, o realismo jurídico introduz um entendimento afetado sobre a atividade de


decidir, que se torna atividade falsária do julgador de contar à comunidade o direito e a ética,
como se ambos residissem na sua fala. Há ali uma fraudulenta técnica de interpretação
jurídica, que é na verdade forma de expressão de uma vontade do sábio-julgador, como
leciona Leal:

Todas as metodologias da interpretação no correr dos séculos até as fronteiras


teóricas das sociedades pós-metafísicas (anos 80 do séc. XX) desenvolveram-se à
sombra da árvore cerebral do julgador justiceiro por técnicas e nomenclaturas
sofisticadas de acoplamento da razão prescritiva ao mundo vivo das tradições
milenares como fonte institucional estratificada e validadora da faticidade
juridicamente normatizada ou idealizada por uma ética sistêmica confirmatória.
(LEAL, 2002, p. 28)

A pós-modernidade ou hipermodernidade, já que HABERMAS (1981) fala em


continuação do projeto iluminista, como detentora do projeto democrático, requer espaços
jurídicos (devido processo) em que os envolvidos se instalem como autores, e não apenas
como sujeitos passivos de um Direito assentado exclusivamente em pretensões de validade

20
estratégicas estritamente articuladas para fins políticos; e de tal maneira, úteis tão somente
para transmissão de informações e não capazes de contribuir para a integração social.

Não é o senso comum do julgador achador intencionado em termos axiológico (LEAL, 2002,
p. 30) o elemento capaz de garantir a legitimidade do provimento judicial.

21
3 PASÁRGADA: A TEORIA DO PROCESSO COMO RELAÇÃO JURÍDICA E
AUSÊNCIA DE PROCEDIMENTO

No capítulo anterior foi demonstrada a posição de superioridade que o juiz pasargadiano


assume em face das partes. Este capítulo, a partir desta relação de subordinação dos
conflitantes face ao decididor, bem como dos parâmetros relacionais das partes entre si,
tratará de estabelecer uma comparação destas características do sistema jurídico de
Pasárgada com a Teoria do Processo como Relação Jurídica. Também é objeto desta etapa
do trabalho demonstrar que na favela de Santos não há adoção de elementos que padronizem
a efetivação do Direito.

3.1 Wer hat dir, Henker, diese Macht Über mich gegeben?

O título acima (Wer hat dir, Henker, diese Macht Über mich gegeben?) foi retirado do livro
Técnica Processual e Teoria do Processo, do professor AROLDO PLÍNIO GONÇALVES
(2001), e se trata de uma pergunta feita pela personagem Margarida, na obra chamada Fausto
de GOETHE (1981). Sua tradução para o português é: Quem deu a ti, Carrasco, esse poder
sobre mim? (GONÇALVES, 2001, p. 91).

A indagação de Margarida é citada como uma ilustração da idéia do Processo como Relação
Jurídica, que encontrou suas primeiras formulações nos estudos de Windscheid sobre os
direitos subjetivos como geradores de uma relação, no século XIX (GONÇALVES, 2001, p.
71 e 76).

Assim, o conceito de direito subjetivo funciona como pilar da teoria relacional, e tem suas
origens no Naturalismo Racional (HELMUT GOÏNG, 1964, apud GONÇALVES, 2001, p.
75), que os identifica como princípios primeiros da YLGD VRFLDO GHVFREHUWRV SHOD ³UD]mR
QDWXUDO´ /($/S 1HVWHVHQWLGRVmRFRQFHELGRVFRPRDEVROXWRVFRQWUDRVTXDLV
ninguém pode se opor, nos mesmos moldes das axiomáticas liberdades negativas de Kant,
que concebeu que cada indivíduo é possuidor natural de um conjunto de direitos que não
pode ser usurpado pelos demais (HABERMAS, 2003, p. 126); e o que consiste numa
elaboração teórica que é meramente inventiva, sem adequados critérios epistemológicos.

22
Os direitos subjetivos gozam assim, na condição de Naturais, do status de estarem acima do
próprio ordenamento estatal, exatamente por sobrepujarem as próprias elaborações
humanas, em virtude de se tratarem de direitos que não são construídos pela ação humana,
mas que são dados prontos (daisen) à humanidade, e com ela estabelecem uma relação
ontológica. Desta forma, são inquestionáveis e inerentes à natureza humana.

E, com os trabalhos de Windscheid, os direitos subjetivos adquiriram a qualidade necessária


para atribuírem, no campo Processual, um poder que permitisse o sujeito ativo exigir uma
conduta do sujeito passivo (GONÇALVES, 2001, p. 76-77).

Neste sentido, GONÇALVES (2001:71) esclarece que a figura da Relação Jurídica surgiu
primeiro na dogmática civilista, para explicar as relações obrigacionais, através da
proposição da existência de um poder que permite um sujeito subjugar o outro; e,
posteriormente, tal tese se alastrou para os outros ramos do Direito.

Portanto, a teoria da Relação Jurídica se configura pelo reconhecimento da existência de um


elo que permite ao sujeito ativo (que no Direito Processual é representado pelo autor) impor
uma conduta ao sujeito passivo (réu). Trata-se, pois, de um pensamento marcado pela supra-
ordenação, e que mesmo baseado numa forma de organização pela opressão (GONÇALVES,
2001, p. 74, apud VILLELA, 1978, p. 27-35), continua amplamente aceito na
processualística brasileira, através de nomes como Dinamarco e Grinover, hoje identificados
como seguidores da Escola Instrumentalista.

A atual denominação do movimento neo-relacional se justifica pelo fato de seus perfilhados


conceberem o processo como mero instrumento de realização da jurisdição, para além do
fato de já se perderem nas afirmativas obscuras dos chamados direito subjetivos; i.e, os
instrumentalistaVHQWHQGHPTXHRSURFHVVRp³XPDFRUGDDVHUYLoRGDDWLYLGDGHMXULVGLFLRQDO
nas mãos do juiz para puxar pela coleira mágica a Justiça Redentora para todos os homens,
trazendo-OKHVSD]HIHOLFLGDGH´ /($/S 

Desenhos geométricos foram utilizados para representar a Relação Jurídica. Köhler, por
exemplo, apresentou a Relação Jurídica através de uma figura linear, formada pelo autor e
pelo réu, cada um em uma extremidade. Idéia criticada com base nos entendimentos de que
23
o processo retirou do particular o direito à auto tutela, e em razão da relação direta, entre
autor e réu, ser entendida como eminentemente de Direito Material, bem como pelo fato de
conceberem o juiz como sujeito também interessado no litígio. (PELLEGRINI, 2003).

Outro desenho angular, sustentado por Planck e Hellwig, tentou representar a Relação
Jurídica. Nesta figura o juiz estaria no vértice, e as partes nas extremidades (PELLEGRINI,
2003). Já em Wach e em Degenkolb a teoria relacional ganhou a forma triangular, e em cada
vértice estavam juiz, autor e réu. (PELLEGRINI, 2003)

E assim, observa GONÇALVES (2001: 97), diante de cada um dos contornos imaginados,
a Relação Jurídica foi pensada: 1) como relação de subordinação do réu face ao autor
(linear); 2) relação de subordinação do juiz às partes, que o acionavam e o faziam investir
em suas atribuições; 3) relação de subordinação das partes perante o juiz (triangular).

3.1.2 A Teoria da Relação Jurídica Triangular em Pasárgada

Já foi apontada anteriormente a condição de superioridade do Presidente da Associação de


MoradoresTXHFRQFHELGRFRPR³VXMHLWRSULYLOHJLDGRGRGLVFXUVR´ 6$1726S 
submete a participação das partes conflitantes ao ritmo e à direção da argumentação proposta
por si próprio (SANTOS, 1988, p. 34).

Não obstante ao fato do decididor ser identificado como aquele que domina o raciocínio
jurídico (SANTOS, 1988, p. 20), e que deixa às partes apenas a ilusão de participação no
discurso (SANTOS, 1988, p. 39), há também diferença de condição entre as próprias partes,
isoladamente consideradas. É neste sentido que SANTOS (1988: 27), ao analisar a resolução
GHFRQIOLWRHP3DViUJDGDREVHUYDTXHGXUDQWHDQHJRFLDomRGRVREMHWRVGDGLVSXWD³QmRp
estranho o poder relativo dos participantes. Nesta ponderação as partes não são
necessariamente iguais perante o forum (e o presidente), e suas posições relativas
LQIOXHQFLDPDPHGLGDGDSDUWLomR´

Com base nesta descrição dada por Santos, se nota um outro aspecto que o modelo jurídico
pasargadiano guarda em comum com a teoria do Processo como Relação Jurídica Triangular;
24
pois esta corrente também sustenta o mesmo dogma de que não há isonomia entre os
conflitantes. É neste sentido que tal Escola entende possível, como indicado anteriormente,
representar as relações jurídicas através do signo de um triângulo isóscele, em cujo vértice
de seu topo se encontra o juiz, que tem poder sobre a conduta dos conflitantes; e em cujos
vértices da base se encontram as partes, que, do mesmo modo como assinalou o próprio
SANTOS (1988:27), têm suas posições como determinantes da medida de suas
participações; e por posições se entende a condição de autor ou de réu.

Seguindo ainda pelas análises de Santos, se observa que o Direito pasargadiano compartilha
também da concepção de que o juiz é Parte no processo. Posição que é bastante coerente
diante do fato do Direito de Pasárgada acompanhar a linha teórica da Relação Triangular,
que tem Bülow como um de seus representantes, e que, por sua vez, encontrou inspiração
para seus estudos na frase do jurista italiano Búlgaro (séc. XII) que dizia que o processo é
ato de três personagens: do juiz, do autor e do réu (LEAL, 2004, p. 88).

Assim, já que reconhecido como parte, o sociólogo Santos afirma que o decididor também
tem seus particulares propósitos na resolução dos conflitos:

Os propósitos do presidente, enquanto terceira parte, não têm de coincidir com os


das partes (ou com os de uma delas), e a argumentação que a este propósito se gera
faz com que o objecto do conflito seja, ele próprio, objecto de negociação entre os
participantes, uma negociação em que a matéria relevante vai sendo
sucessivamente resolvida e reaberta, até à decisão final. (SANTOS, 1988, p. 27)

Depois de demonstradas as características que relacionam o Direito de Pasárgada com a


Corrente do Processo como Relação Jurídica, seguirá análise sobre a forma de efetivação do
ordenamento jurídico pasargadiano.

3.2 Processo e Procedimento: uma diferenciação necessária

Para uma melhor análise da solidificação da jurisdicionalidade pasargadiana, é


imprescindível conhecer as diferenças entre Processo e Procedimento, que são dois institutos
utilizados pela realidade jurídica para validação de atos e para resolução de disputas.

25
A definição tanto de Procedimento como de Processo é feita comumente de maneira confusa
e refutável pelos processualistas.

Em linguagem jurídica, muitas vezes os institutos são confundidos e são assim tratados de
maneira indistinta (GONÇALVES, 2001, p. 59). É bastante ocorrente que a doutrina do
Direito Processual recorra à origem etimológica do termo procedimento para encontrar sua
significação. Desta forma, procedimento, que vem de procedere, logo é interpretado como
marchar a diante. É neste momento que, conforme leciona GONÇALVES (2001:61-62), os
estudiosos do Processo se esquecem que proceder é também originar-se, descender-se; e na
comum confusão que os estudiosos fazem entre Processo e Procedimento, aquele ganha logo
o sentido dado ao último: de seguir em frente.

Bülow foi um dos que reagiram contra a idéia de que Processo e Procedimento são
sinônimos. Para tanto, utilizou o critério teleológico para proceder a uma distinção. De tal
maneira, na diferenciação trabalhada por Bülow, o Processo possui fins, como a sentença ou
o exercício da jurisdição; enquanto o procedimento não. (GONÇALVES, 2001, p. 63-64).
Entretanto essa diferenciação é desarrazoada, uma vez que, se o Procedimento é o meio pelo
qual ao Processo é possibilitado sua ordenação e seu desenvolvimento, como entende o
SUySULR%ORZHQWmRHVVHLQVWLWXWRWDPEpPSRVVXL³RFDUiWHUWHOHROyJLFRTXHWRGDWpFQLFD
intriQVHFDPHQWH FRPSRUWD FRPR PHLR LG{QHR SDUD DWLQJLU ILQDOLGDGHV´ *21d$/9(6
2001, p. 66). Ou seja, a finalidade do Procedimento é a de servir como meio para a ocorrência
do Processo.

Com o italiano Elio Fazzalari, teve início uma adequada distinção entre os institutos
(GONÇALVES, 2001, p. 67). E, acompanhando a perspectiva fazzalariana, o professor
Gonçalves traz o seguinte entendimento sobre Procedimento:

O procedimento não é atividade que se esgota no cumprimento de um único ato,


mas requer toda uma série de atos e uma série de normas que os disciplinam, em
conexão entre elas, regendo a seqüência de seu desenvolvimento. Por isso se fala
em procedimento como seqüência de normas, de atos e posições subjetivas.
(...) atos que são disciplinados segundo um modelo normativo próprio, que
determina sua especial forma de coordenação e de conexão, no desenvolvimento,
ou no iter do procedimento, até o final. (GONÇALVES, 2001, p. 108-109)

26
Em outras palavras, na seqüência normativa que compõe a estrutura do
procedimento, a observância da incidência da norma que prevê o ato que pode ser
exercido ou deve ser cumprido é pressuposto, é condição de validade, da
incidência de outra norma que dispõe sobre a realização de outro ato, sendo deste
o pressuposto, assim até que o procedimento se esgota atingindo o seu ato final,
quando se verificam todos os pressupostos normativamente previstos para a
emanação do provimento. (GONÇALVES, 2001, p. 111)

Já Processo, após toda uma confusão criada pela doutrina, também obteve importantes
contribuições de Fazzalari, que fora das linhas teleológicas, definiu este instituto como
espécie do gênero Procedimento, que se diferencia deste pela presença do elemento
Contraditório. I.e., em Fazzalari, o Processo é Procedimento em Contraditório. De tal
maneira, é possível que se tenha Procedimento sem Processo, mas não é possível o Processo
sem o Procedimento (ANDRÈ LEAL, 2002, p. 84).

O Contraditório a que se refere o jurista italiano, é bem explicado por GONÇALVES


(2001:120)

(...) QmRpDSHQDV³DSDUWLFLSDomRGRVVXMHLWRVGRSURFHVVR´6XMHLWRVGR3URFHVVR
são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exige, e as partes
(autor, réu, intervenientes). O Contraditório é a garantia de participação, em
simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença,
GDTXHOHV TXH VmR RV ³LQWHUHVVDGRV´ RX VHMD DTXHOHV VXMHLWRV GR SURFHVVR TXH
suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor.

Foi a partir da linha de pensamento de Fazzalari que se despontaram novas e melhores teorias
sobre o instituto do Processo. ANDRÉ LEAL (2002:887) destaca, dentre essas novas teorias,
os estudos de Andolina e Vignera, para quem o Processo não é apenas Procedimento em
Contraditório, mas instituto que passa a ser entendido como modelo constitucionalizado apto
a guiar os procedimentos infra-constitucionais. Além disto, nesta linha que surge a partir do
fato de que as Constituições Democráticas têm em seus conteúdos a previsão do instituto
Processo e de seus Princípios regentes, o Contraditório deixa de ser entendido apenas como
um elemento caracterizador, e ganha o caráter normativo que tem um Princípio (ANDRÉ
LEAL, 2002, p. 88). De tal maneira, Contraditório é agora Princípio Processual
constitucionalmente assegurado.

Andolina desenvolveu ainda sobre outros contornos do Processo enquanto instituição


constitucionalizada, que consistem nos atributos qualificadores do devido processo, e são: o

27
princípio da reserva legal, da ampla defesa, da isonomia, para além do já mencionado
Contraditório (LEAL, 2004, p. 93). Estes são, portanto, direitos-garantias impostergáveis
que, além de caracterizar, são dirigentes do Processo (LEAL, 2004, p. 93).

Com LEAL (2004) vem a Teoria Neo-Institucionalista do Processo que, em seguimento às


sistematizações do modelo constitucional de Andolina e Vignera, se trata de acepção do
Processo como organização composta por um conjunto de princípios e institutos jurídicos
reunidos pelo texto constitucional. A proposição trazida por LEAL (2004) é alargada em
relação aos entendimentos já desenvolvidos pelos também estudiosos do Processo enquanto
garantia constitucional, porque identifica ainda como Princípios Processuais o direito ao
advogado, bem como o direito de livre acesso à jurisdicionalidade, além de todo e qualquer
outro elemento garantido constitucionalmente e infra-constitucionalmente para efetivação
do Processo, vistos como instrumentalidades manejáveis pelos cidadãos juridicamente
legitimados (LEAL, 2004, p. 94).

Neste sentido, com a Teoria Neo-Institucionalista, o Processo passa a ser reconhecido como
direito de todo um povo lídimo, e instituto capaz de contribuir para a emancipação dos
cidadãos. É, assim, dimensão discursiva aberta não apenas ao agir comunicativo de
especialistas (Assembléias Constituintes originárias e derivadas), mas espaço aberto no qual
um povo se garante soberano, dirigente de si mesmo e afastado de tiranias estatais (LEAL,
2004, p. 94-98). O Processo é, por fim, meio garantidor da legitimidade do Direito, em
diversas situações que reclamam pelo consenso ou pelo provimento.

3.2.1 A ausência de Procedimento em Pasárgada

Se por um lado é possível estabelecer uma linha de conexão entre o modelo jurídico
pasargadiano e a Teoria do Processo como Relação Jurídica, em outro aspecto Pasárgada
diverge da maior parte dos teóricos do pensamento relacional. Esta divergência diz respeito
ao Procedimento. É que, enquanto este instituto serviu de objeto de estudo, ainda que mal
trabalhado, para diversos juristas da Teoria do Processo como Relação Jurídica, e de maneira
exemplificativa cita-se Liebman, que compreendeu o Procedimento como um conjunto de

28
atos que se sucedem no Processo (PELLEGRINI, 2003); Pasárgada dispensa o uso de um
método organizado e definido previamente por normas para a concreção de seu Direito.

De maneira mais clara, a favela de Santos não tem, tanto para atividade de ratificação das
relações que seus moradores pretendem estabelecer, bem como para resolução dos litígios,
modelos procedimentais pré-determinados para estes fins. Geralmente, os roteiros das
atividades exercidas pelo decididor são semelhantes, mas ainda assim, não são totalmente
padronizados e, portanto, passíveis de variação (SANTOS, 1988, p. 31).

É em contraposição ao modelo jurídico estatal, que SANTOS (1988:30) analisa como


marcado por distribuições rígidas daquilo que chama de categorias polares, que se traduzem
em: forma/ conteúdo; processo/ substância; ou como, de maneira mais comum à linguagem
jurídica, Direito Material/ Direito Processual; que o sistema de efetivação do Direito
pasargadiano é descrito.

Assim, para o sociólogo lusitano, de um lado está o Direito do Asfalto, com esta divisão
rígida das categorias polares, que entende como arbitrária e em contradição com os
princípios da lógica material. Para Santos, também, esta divisão rígida cria um ordenamento
MXUtGLFR TXH GHILQH FRPR ³WHUUD GH QLQJXpP´ QR TXDO p SRVVtYHO R DFLRQDPHQWR VHP
restrições de uma lógica tecno-operacional, mais eficaz na medida proporcional do grau da
tecnologia conceitual e lingüística, da profissionalização dos seus agentes, e da
burocratização institucional (SANTOS, 1988, p. 30). Ainda sobre este modelo que entende
como adotado pelo Estado, o teórico de Pasárgada (1988:30) afirma que tal forma de
organização do sistema jurídico, ajustada pela dominação legal racional (Weber), é utilizada
como meio necessário para garantir a arbitrariedade.

Noutro lado, Santos apresenta o modelo regulador pasargadiano como absolutamente


distinto da racionalidade jurídica do asfalto, e esclarece que a divisão das categorias polares,
HPERUD GR FRQKHFLPHQWR GR 'LUHLWR GH 3DViUJDGD ³QmR WHP QHOH TXDOTXHU ULJLGH]´
(SANTOS, 1988, p. 30). O sociólogo indica assim que, em Jacarezinho, são usadas fórmulas
H IRUPDV SDUD D FRQFUHomR GD MXULVGLomR H TXH DWp PHVPR VmR SRVVtYHLV ³H[LJrQFLDV
processuais ± muitas das quais resultam de aquisições selectivas e transformadas do

29
formalismo processual do direito oficial ± PDV VHPSUH FRP JUDQGH IOH[LELOLGDGH´
(SANTOS, 1988, p. 30).

E, para apontar concretamente como operam tais fórmulas flexíveis em Pasárgada, SANTOS
(1988:30-31) indica como exemplo o fato de o processo de elaboração de documentos no
domínio de prevenção de conflitos (ratificação de relações), variar e não seguir
hermeticamente um padrão; bem como a questão da possibilidade da dispensa do
interrogatório comumente realizado pelo Presidente, que só tem lugar quando este o entende
necessário.

SANTOS (1988: 31-33) explica ainda que no Direito pasargadiano os formalismos


processuais são usados como argumentos, mas não do tipo capazes de constituírem limite
H[WHUQRGRGLVFXUVRMXUtGLFR1HVWHVHQWLGRHPURGDSpGHSiJLQDPHQFLRQDR³SULQFtSLRGR
cDVRMXOJDGR´HRVSUD]RVGHSUHVFULomRTXHGHPDQHLUDFRQWUiULDDRTXHHQWHQGHRFRUUHUQR
Direito do Estado, não constituem óbice ao modelo regulador de Pasárgada, vez que

podem voltar a ser objecto de decisão, se houver razões substanciais para tal e,
paralelamente, o fato de ter passado um longo período de tempo (nunca
determinado com precisão) sobre a prática dos actos que são objecto do processo
nunca é motivo, por si só, para o accionamento automático do mecanismo da
prescrição (SANTOS, 1988, p.32)

Concluindo seu raciocínio, o sociólogo de Pasárgada esclarece que a falta de uniformidade


e de padronização da forma, são substituídas por determinações normativas graduais, que
atendem às questões de segurança, e que vão se revelando ao longo daquilo que SANTOS
(1988: 31) chama descuidadamente de processo. E aponta que dessa flexibilidade
³SURFHVVXDO´ QmR p SRVVtYHO TXH UHVXOWHP SUHMXt]RV jV SUHWHQV}HV GDV SDUWHV SRUTXH QR
Direito pasargadino, o formalismo só tem lugar para dar cobertura a uma decisão substantiva
(SANTOS, 1988, p. 31); além de ser esta mesma vulnerabilidade a responsável por um tipo
de formalismo popular (SANTOS, 1988, p. 33), não permissivo para que os padrões se
³WUDQVIRUPHP QXP yQXV TXH SUHMXGLTXH D DFHVVLELOLGDGH H D HILFLrQFLD GR GLUHLWR GH
3DViUJDGD´ 6$1726S 

Portanto, é o fato do modelo regulador pasargadiano dispensar a utilização de uma


padronização definida e determinada previamente, que permite a conclusão de que não há,
30
em Pasárgada, o uso do Procedimento, enquanto conceito do Direito. Afinal, como indicado
anteriormente, tal instituto, em linguagem jurídica, é definido como uma organização de atos
que são regulamentados por normas pré-existentes. Desta maneira, o Procedimento possui
uma relação ontológica com a seqüência normativa que compõe a sua estrutura. Assim, a
observância da incidência da norma que prevê a consecução de um ato, é pressuposto e
condição de validade do próprio instituto (GONÇALVES, 2001, p. 32).

Deste modo, a forma flexível de efetivação do Direito estudado por Santos é incompatível
de ser encarada como um modelo procedimental, porque exclui a própria identidade do
Procedimento.

Noutro giro, também não é correto quando Santos utiliza o termo Processo para designar as
operações jurídicas ocorridas em Pasárgada, pois faltam aos seus meios jurídicos de
obtenção de resultados os Princípios regentes e caracterizadores do instituto. Neste sentido,
destacamos em especial a ausência do Princípio do Contraditório, que como já indicado, se
traduz no direito de participação das partes, em paridade, na construção do provimento.
Enquanto que, no Direito pasargadiano, como já foi indicado, as partes não são
necessariamente iguais perante o fórum e suas posições determinam a medida da intervenção
que compete a cada uma no feito (SANTOS, 1988, p. 27).

3.3 Crítica ao Modelo de Formas Flexíveis de Pasárgada

O Modelo de Formas Flexíveis de Pasárgada é caracterizado basicamente pelos seguintes


aspectos: 1) Pelas posições desiguais das Partes e do julgador nos meios jurídicos de
obtenção de resultados, que permite estabelecer um link entre o modelo de Pasárgada com a
Teoria do Processo como Relação Jurídica, como já demonstrado neste capítulo; 2) Pela
ausência de Procedimentalidade, pois os métodos do forum não contam com normas pré-
determindas, e definem seu roteiro gradativamente, sem a necessidade de atender requisitos
já previstos; e pela inexistência do instituto do Processo, uma vez que às Partes e ao juiz não
são garantidos os Princípios do devido processo; 3) Pela constante possibilidade de reversão
das decisões tomadas, e também das normas adotadas, de modo que a Coisa Julgada, a

31
Prescrição e a Decadência não são obstáculos às pretensões das Partes, inicialmente, embora
possam ser alegados, principalmente de maneira discricionária pelo decididor.

A partir dessas premissas, que são frutos de análises aqui realizadas, é preciso submeter o
Modelo de Formas Flexíveis a uma apreciação crítica, para verificar se os métodos do forum
pasargadiano são aptos como bases teóricas para um modelo democrático, como afirmou
SANTOS (1988:88).

3.3.1 A incompatibilidade da Teoria do Processo como Relação Jurídica para um


modelo jurídico democrático

A idéia do Processo como Relação Jurídica, embora fonte de inspiração consentânea de parte
significante dos processualistas brasileiros, como Humberto Theodoro, Cândido Rangel
Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, que hoje se apresentam como Escola Instrumentalista;
foi objeto de diversas críticas.

Neste sentido, GONÇALVES (2001:81) mostra a reação de Kelsen que, numa perspectiva
normativista, viu a teoria da Relação Jurídica como bastante estreita, uma vez que, se há
relação entre sujeitos, decorrente de direitos e deveres, então há relação destes sujeitos
também com o legislador, e com o aplicador das normas, bem como entre os indivíduos que
tem competência para aplicar os atos coativos com aqueles a quem estes atos se dirigem.
Portanto, se é viável falar em Relação Jurídica, ela não se restringe entre o sujeito passivo e
o sujeito ativo num litígio, mas seria então um complexo emaranhado de relações, nas quais
outros tantos sujeitos também estariam implicados porque são, de alguma maneira,
envolvidos com a norma origem de tais direitos e deveres.

É em coerência com este raciocínio que kelsen afirma que não há, então, Relação Jurídica
HQWUHLQGLYtGXRVPDVVLPHQWUHDVQRUPDVHDVFRQGXWDV,VWRSRUTXH³DUHODomRGHVXSUD-
ordenação e infra-RUGHQDomRµQDGDPDLVpVHQmRDVXSUD-ordenação que existe entre a ordem
MXUtGLFD H RV LQGLYtGXRV FXMD FRQGXWD HOD UHJXOD¶´ .(/6(1  S 234 apud
GONÇALVES, 2001, p. 83).

32
GONÇALVES (2001:85-86) indica ainda que, com bases diferentes daquelas de Kelsen,
outra linha teórica se volta contra a Relação Jurídica. Trata-se da Teoria das Situações
Jurídicas, que teve seu início com os estudos de Bonnecase, e recebeu importantes
contribuições de Paul Roubier, que, por sua vez, se ancorou nos trabalhos de Leon Duguit,
para quem a concepção clássica de direitos subjetivos não era mais do que mera metafísica.

O pensamento de Roubier seguia na linha da compreensão abaixo:

Todas as leis são feitas para determinar certo número de situações jurídicas que
podem ser unilaterais ou oponíveis a todas as pessoas, que podem ser constituídas
pela ocorrência de um fato, ou de um ato ou de uma pluralidade e fatos e atos, e
que não poderiam ser explicadas pela categoria da relação jurídica porque não
decorrem de vínculo entre sujeitos. (GONÇALVES, 2001, p. 87-88)

E assim, GONÇALVES (2001:88) conclui:

Em todas as propostas, a teoria das situações jurídicas se estruturou não como


vinculo entre dois sujeitos, com o poder de exigibilidade de um sobre a conduta
do outro. A situação jurídica forma-se por fato jurídico ou ato jurídico, produzido
segundo a lei que governa a sua constituição. (...) é ela o complexo de direitos e
deveres de uma pessoa, direitos e deveres que não se confinam mais no plano
abstrato e genérico da norma, mas que se realizam na situação de um determinado
sujeito.

Com esta colocação se percebe que o pensamento da Situação Jurídica corresponde ao


Realismo Escandinavo de Alf Ross, para quem uma proposição normativa, considerada
isoladamente, não é um objeto real, não é absolutamente nada além de um enunciado vazio
de qualquer referência semântica (BILLIER & MARYIOLI, 2005, p.262); e que só passa a
ter sentido quando realizada na situação de um determinado sujeito. E é exatamente por isto
que a teoria da Situação Jurídica diverge do normativismo kelseniano, segundo o qual basta
a postulação de uma norma no ordenamento jurídico, para sua realização.

Além disto, o chamado direito subjetivo, alicerce do pensamento Relacional, a partir da


perspectiva da Escola da Situação Jurídica, só pode agora ser entendido como uma faculdade
ou um poder de agir, mas jamais pode ser concebido como poder sobre a conduta alheia
(GONÇALVES, 2001, p. 90)

33
Contudo, a crítica de Kelsen e também a tese elaborada pela Teoria da Situação Jurídica têm
seus pontos criticáveis.

A apreciação feita por Kelsen, como já indicado, de perspectiva normativista, pensa numa
Relação existente entre a conduta do sujeito e a norma. Este pensamento parte da premissa
de que, uma vez posta a norma, o seu destinatário fica vinculado, por se tratar de uma regra
Válida, e restando excluída a questão da Legitimidade.

Contudo, HABERMAS (2003, v.1, p. 17-26) aponta que não é suficiente a existência da lei
no ordenamento, para que reste saciada a questão de sua Validade. É que o filósofo de
Frankfurt aproxima o conceito de Validade ao de Legitimidade, diferentemente do que
procedeu Kelsen, que estabeleceu que a Validade de uma norma era elemento retirado de
uma outra norma superior; i.e, para o positivista, o fato de uma norma ser produzida dentro
das condições de legiferação determinadas pelo ordenamento jurídico, e em adequação com
sua norma superior, era suficiente para garantir a Validade da regra legal (já que Kelsen não
trabalha com Princípios).

Mas com Habermas, a Validade passa a estar relacionada com o reconhecimento das normas
como obrigatórias por parte de seus destinatários. Neste sentido, GALUPPO (2002, p. 18-
19), na linha habermasiana, explica:

Por validade quero aqui me referir à dimensão de justificação racional do direito


moderno, que o liga indissoluvelmente, à exigência de sua fundamentação, vale
dizer, às questões acerca da sua legitimidade e justiça, e assim, à moral moderna
(GALUPPO, 2002, p. 18-19).

Portanto a Validade se relaciona (mas não se confunde) com aspectos axiológicos. Esta
maneira de entender a questão da Validade é bastante adequada para uma perspectiva
democrática do Direito, que deixa de ser um Sistema Fechado, e passa então a depender
tanto de um discurso complementar, que recorre a fatores exógenos como a ética, a moral
ou a política; como também de um consenso produzido comunicativamente, que pressupõe
um alter ego. De tal modo, não é possível pensar num modelo de relação direta entre o
indivíduo e a norma, tão somente. Porque este indivíduo e esta norma existem num contexto
não-solipsista.
34
Já na linha de pensamento da Situação Jurídica o problema dos direitos subjetivos persiste.
Se tais direitos são pensados agora com faculdade ou poder de agir (GONÇALVES, 2001,
p. 90) e não mais como poder de subjugar a conduta alheia, por outro lado, não foi atribuída
a eles uma origem clara. Isto porque a Escola da Situação Jurídica coloca tais direitos como
oriundos dos atos e fatos jurídico, mas resta aberta a questão do porque de tais atos e fatos
serem capazes de gerar faculdades e poderes. Ou seja, falta à Situação Jurídica um
fundamento democrático.

Este elemento democratizador não é apenas a eleição dos legisladores pelo povo, nem a lei
posta pela Assembléia de especialistas (LEAL, 2004, p. 95), porque para a realização do
paradigma democrático é imprescindível uma legalidade que não tenha o fim de sua
produção nos tradicionais processos legiferantes. Para que aconteça o Projeto da
Democracia, é necessário um espaço que assegure aos cidadãos o direito de participação na
construção do discurso legal. E, para que este espaço se realize enquanto tal, deve ser
garantido, às partes, a isonomia, o contraditório, a ampla defesa e as condições técnicas para
atuação (direito ao advogado). Deve também ser assegurado, aos cidadãos, o livre acesso a
este lócus. É a este fim que se propõe o devido processo, como pensado pela Teoria Neo-
Institucionalista.

3.3.2 O Processo como garantidor da Democracia: crítica aos métodos do forum de


Pasárgada

A dispensa de Pasárgada à utilização do Procedimento é grave, porque permite maior


margem para a discricionariedade julgadora. Afinal, na medida em que falta um modelo
determinado e condicionado previamente por normas, e é permitida ao sentir do julgador a
definição gradual de fórmulas, a jurisdição em Pasárgada sujeita as partes às vicissitudes
temperamentais e a erros possíveis do Presidente da Associação de Moradores.

Mas o verdadeiro obstáculo para o Modelo de Formas Flexíveis servir como inspirador para
uma nova teoria democrática do Direito, está no fato de que a Democracia não é possível
sem o instituto do Processo. Afinal, é este o instituto capaz de assegurar, em relações
35
MXGLFLDLVDSURGXomRGHXPGLVFXUVRUDFLRQDOQRVWHUPRVGR3ULQFtSLR³'´IRUPXODGRSRU
HABERMAS (2003, v.1, p. 142):

D: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam


dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais

(PDWHQomRDSURSRVLomR³'´+$%(50$6 YS H[SOLFDTXH³DWLQJLGRV´VH


refere a todos aqueles que terão seus interesses afetados pelas prováveis conseqüências
provocadas pela regulamentação de uma prática geral por normas. E discurso racional como:

toda tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na


medida em que ele se realiza sob condições de comunicação que permitem o
movimento livre de temas e contribuições , informações e argumentos no interior
de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias.
Indiretamente a expressão refere-se também a negociações, na medida em que
estas são reguladas através de procedimentos fundamentados discursivamente.
(HABERMAS, 2003, v.1, p. 142)

(VWH ³HVSDoR S~EOLFR´ LQGLFDGR SRU +DEHUPDV p MXVWDPHQWH R TXH UHSUHVHQWD R devido
processo para as disputas jurídicas, porque se trata exatamente de loco aberto à
discursividade, e ao mesmo tempo, garantidor desta, por ser dotado da devida fiscalidade. E
esta afirmativa é possível porque a esfera pública em Habermas não deve ser interpretada
somente através do modelo fornecido pela Agora grega, i.e., a dimensão esfera pública
pensada pelo filósofo alemão como lugar das manifestações de opinião, não deve ser vista
apenas como os espaços das assembléias populares, mas além disto, deve ser entendida e
complementada por outras formas possíveis de extensões, incluindo as procedimentalizadas
(como o caso do processo judicial).

Em outros termos, os processos discursivos em Habermas podem ser ligados e


complementados pela teoria do devido processo, pois embora o autor de Direito e
Democracia: entre faticidade e validade não trate estritamente de Processo Judicial, mas
sim de processos de comunicação efetivado em meios diversos, seu pensamento ilustra uma
dimensão discursiva aberta às tomadas de posições dos diretamente atingidos
(HABERMAS, 2004, p. 296). Por isto as idéias habermasianas se aproximam e são
compatíveis com a teoria processual constitucionalista, com a qual estabelece uma
complementação.

36
E esta relação aqui proposta é de fundamental importância para a contemporaneidade diante
do esfarelamento das formas tradicionais de vida. E isto porque o espaço jurídico
procedimentalizado (devido processo) é o meio capaz de inverter, através da discursividade
e como quer Habermas, a lógica anterior de que a justiça era a determinadora do critério de
reconhecimento das normas:

A relação inicial de conteúdo e forma se inverte no decorrer dessa evolução. Se


no início as concepções concretas de justiça eram o critério para decidir se as
normas subjacentes ao julgamento de conflitos mereciam reconhecimento, no
fim o que é justo, se mede, inversamente, pelas condições de uma formação
imparcial do juízo. (HABERMAS, 2004, p. 296)

E, mais adiante:

A expectativa de legitimidade ± segundo a qual merecem reconhecimento apenas


DVQRUPDV³LJXDOPHQWHERDVSDUDWRGRV´± só podem ser doravante satisfeita com
auxílio de um processo que, nas condições de inclusão de todas as pessoas
potencialmente envolvidas, garanta imparcialidade no sentido da consideração
igual de todos os interesses afetados. (HABERMAS, 2004, p. 298)

Neste mesmo contexto, HABERMAS (2004: 298) chega inclusive a propor uma nova
perspectiva de visão sobre o papel das partes envolvidas no discurso dos litígios judiciais,
que se caracteriza não por ter o juiz como parte interessada na causa (porque seria caso de
suspeição), mas por tê-lo com parte interessada no discurso, envolvida também no propósito
de convencer e de ser convencido. Tanto é, que suas decisões devem ser fundamentadas:

A neutralidade do juiz em relação às partes conflitantes ± a venda nos olhos da


Justitia ± é agora insuficiente como modelo da práxis de fundamentação exigida.
Pois nela devem tomar parte, com igualdade de direitos, todos os membros
enquanto potencialmente envolvidos, de modo que não haja mais separação de
papéis entre um terceiro privilegiado e as partes envolvidas em cada caso. Agora,
todos igualmente se tornaram partes que pretendem se convencer reciprocamente
na competição pelo melhor argumento.

E, ao abrir mão deste lócus procedimentalizado em que todos estão envolvidos num processo
de convencimento com igualdade de direitos, Pasárgada retira dos atingidos o direito à
efetiva participação da construção do provimento (sentença), que passa então a funcionar
como instrumento produtor de homogenias artificiais, em situações heterônomas (FERRAZ
JR, 2003, p. 291).

37
Desta forma, os envolvidos em situações de discórdia, identificam, na decisão, uma carência
de justificação por não terem participado efetivamente e igualitariamente do seu processo de
formulação. É neste sentido que disserta FERRAZ JR (2003:291):

Por isso, a presença de uma estrutura monológica numa discussão-contra não só exclui um
sistema axiomático, mas também é resultado de um artifício argumentativo: a
homologização artificial das partes necessariamente heterológicas. Isto afeta sem dúvida o
problema de legitimidade de decisões. Enquanto os discursos verdadeiros relacionam à sua
legitimidade à competência comunicativa dos comunicadores, isto é, à sua qualificação para
usar os meios de comprovação empregáveis e indicáveis na verificação ou falsificação de
ações lingüísticas, os discursos fazem desta competência o ponto de partida das questões que
envolvem a sua legitimidade. Por isso eles nunca abandonam a estrutura dialógica, mesmo
quando, como é o caso do discurso normativo, um momento monológico parece predominar.
Isto é, enquanto os discursos verdadeiros (homológicos) ascendem de uma estrutura
dialógica a uma monológica, instaurando uma espécie de compulsão tirânica (tirania da
verdade) que força as partes a se renderem, os discursos decisórios (heterológicos)
representam uma constante indagação que vai da consistência da opinião à consistência da
autoridade dos que emitem opinião.

Vem assim que, o fato de modelo jurídico Pasargadiano não optar por uma metodologia de
legitimação do provimento através da participação efetiva de todos os sujeitos envolvidos
no processo, seu Direito fica exclusivamente reduzido à coação moral, ao pretender que uma
GHFLVmR TXH QmR IRU DFHLWDU SRU WRGRV PDQWHQKD ³FDUga de persuasão suficiente para
PDUJLQDOL]DURXHVWLJPDWL]DURVUHFDOFLWUDQWHV´ 6$1726S RTXHQmRGHL[DGH
VHUXPDSUiWLFDMXUtGLFDYLROHQWDHXPPRGRGHRSHUDFLRQDOL]DomRGD³SROtWLFDGDIRUoD´
que WOLKMER (2001: 55-56) condenou como método do modelo jurídico estatal.

3.3.3 A Revisitação do Caso Julgado

Quando aqui foi descrito o Modelo de Formas Flexíveis, foi apontado também que no Direito
pasargadiano os formalismos processuais podem servir como argumentos, mas não do tipo
capazes de constituírem limite externo do discurso jurídico (SANTOS, 1988, p.31-33).
38
Um exemplo que o sociológo Santos apresenta neste sentido, como já indicado, diz respeito
DR ³SULQFtSLR GR FDVR MXOJDGR´ H DRV SUD]RV GH SUHVFULomR TXH QmR VmR HOHPHQWRV TXH
constituem um óbice no modelo de Pasárgada, vez que podem ser revistos como objeto de
decisão, desde que existam razões materiais ou substanciais para tanto; e o fato de haver
transcorrido um período de tempo desde a prática do ato objeto do litígio, não enseja motivo
para o acionamento automático daquilo que SANTOS (1988: 32) chama genericamente de
prescrição (compreendendo também a coisa julgada e a decadência).

Este é um aspecto do modelo pasargadiano que, embora o teórico lusitano o diga,


inicialmente, pouco adequado, sem apresentação de motivos, posteriormente nele percebe
uma positividade, em razão de acrescer o espaço retórico do Direito (SANTOS, 1988, p. 32).

A questão que se pretende suscitar é a forma como SANTOS (1988:32) concebe a Coisa
Julgada no Direito do Estado, e também sobre como a retificação do Caso Julgado é
operacionalizada em Pasárgada.

Assim, e provavelmente pela época em que o sociólogo desenvolveu o estudo do modelo


pasargadiano, a Coisa Julgada estatal é tomada nos seus velhos moldes ortodoxos civilista e
liberais individualistas, como qualidade que uma decisão adquire com o passar do tempo,
para atender aos reclamos de segurança jurídica, e que assim, não pode ser reaberta.

Entretanto, com o advento da Constituição Democrática de 1988, a res judicata perde suas
conotações anacrônicas, de modo que se torna estéril a discussão se ela é impeditiva do
direito de ação (LEAL, 2005, p. 4).

Melhor explicando, a Coisa Julgada não tem mais como função a segurança. Afinal, um
Direito democrático não pode se constituir sob a forma de uma instituição, aos moldes como
concebeu Maurice Hauriou (OST, 1999, p. 247), destinada à duração no meio social para
permitir ambientes estáveis e garantir a segurança jurídica. Esse tipo de Coisa Julgada, que
se expressa como imperativo categórico, de incondicional passado e de impossível
modificação, não serve ao Direito contemporâneo, como indicou OST (1999:118), que
estabelece uma nova relação com o tempo.
39
A Coisa Julgada, na atualidade, não é mais efeito da sentença de mérito, mas elemento
autônomo com contornos próprios (LEAL, 2005, p. 3). E sua atribuição agora é de garantir
a legitimidade obtida através do due process, de modo que a revisitação da res judicata
implica necessariamente no uso deste mesmo instituto, porque foi no espaço processual que
ocorreu a sua produção (LEAL, 2005, p. 3-22).

É neste ponto também que ergue a problemática da reabertura do Caso Julgado pasargadiano:
se de um lado não é compatível com o modelo democrático que a Coisa Julgada seja capaz
de impedir o advento do tempo e de todas as mudanças que vem com ele, por outro lado, a
garantia da legitimidade do ato de retificação da res judicata só se realiza se este for efetuado
com observância ao Contraditório. Por isto, a modificação do provimento (decisão) não pode
ILFDUDGVWULWDDRVDEHUGRMXOJDGRUTXHFRPR³RQLSRWrQFLDWXUELQDGD´DVVXPH³DFRQGLomR
eterna e exclusiva de criador do direito (teologia leiga), podendo também desfazê-lo em
QRPHGHXPVDEHUDEVROXWR´ /($/S 

Em outras palavras, a revisão do Caso Julgado não pode ficar condicionado ao entendimento
do Presidente da Associação de Moradores, como ocorre com todo o discurso jurídico em
Pasárgada (SANTOS, 1988, p.20). Isto porque o julgador não é a fonte legitimadora da
declaração jurídica num espaço democrático.

4 O DISCURSO LEGAL PASARGADIANO: A RETÓRICA É UM VIÉS


DEMOCRÁTICO?

Foi indicado na Introdução que o texto O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da
retórica jurídica, objeto desta pesquisa, é parte do trabalho realizado por Santos, para seu
doutoramento pela Universidade de Yale, e tem como conteúdo uma comparação entre a
prática jurídica de Pasárgada e o Direito Estatal dos países capitalistas. O propósito desta
comparação é chegar à resposta sobre a extensão do espaço da retórica.

40
O confronto que SANTOS (1988) estabelece entre estas duas formas de manifestação
jurídica é útil porque, conforme identifica o sociólogo, o Discurso Legal pasargadiano é
eminentemente retórico, em contrapartida do Direito do Asfalto no qual há incidência da
tópica. Portanto, a aposta do teórico de Pasárgada é que, ao examinar os elementos
constituintes do Modelo rergulatório da favela e contrastá-los com aqueles caracterizadores
do Direito Oficial, será possível conceber de que maneira estes mesmos elementos
influenciam no espaço retórico.

4.1 O que é a Retórica?

O entendimento consentâneo que se tem sobre Teoria da Argumentação comumente deriva

de algumas publicações da década de 50, que tinham em comum uma rejeição à utilização

do método lógico-formal para análise dos raciocínios jurídicos. Neste ponto, merecem

destaque os estudos de Viehweg e de Perelman (ATIENZA, 2003, p. 45).

Para melhor entender sobre o discurso retórico, é antes importante saber que a tópica é uma
parte integrante da retórica, que toma como ponto de partida não o que é real (veraz), mas o
que é plausível. E, na Antiguidade Clássica, bem como na Idade Média, a tópica foi
considerada uma disciplina de grande importância, inclusive utilizada como matéria de
estudo de Aristóteles (Organon) e de Cícero (ATIENZA, 2003, p. 47).

Desta forma, Aristóteles, que entendeu que a tópica se opera por silogismos, identificou que
a principal diferença entre a lógica jurídica (que é tópica) e os argumentos demonstrativos,
está na natureza de suas premissas; pois enquanto a tópica trabalha com argumentos que
parecem verdadeiros a todos (endoxa), os argumentos demonstrativos trabalham não com
aquilo que é verossímil, mas com o que pode ser constatado objetivamente, e são assim
argumentos apodícticos. (ATIENZA, 2003, p. 47). Neste sentindo:

O papel da lógica formal é fazer com que a conclusão seja solidária com as
premissas, mas o da lógica jurídica é mostrar a aceitabilidade das premissas.
(ARISTÓTELES apud ATIENZA, 2003, p. 75)
41
Isto porque, no raciocínio lógico, a conclusão decorre necessariamente da natureza das
premissas e, portanto, não pode contrariá-las. Já o raciocínio jurídico não trabalha com
premissas irrefutáveis, mas apenas plausíveis.

É desenvolvendo o pensamento aristotélico que Perelman, conforme aponta ATIENZA


(2003:75), vai além do próprio filósofo grego, ao indicar que no raciocínio tópico a passagem
das premissas para a conclusão não é obrigatória, mas ela é necessária no raciocínio lógico
formal. Esta colocação de Perelman implica que, na razão jurídica é possível que se chegue
a mais de uma conclusão aceitável, além da hipótese de não se chegar a nenhuma idéia final.

Já Cícero cuidou de elaborar um rol de tópicos (topoi, o mesmo que lugares comuns, clichês)
de aceitação generalizada, e a tópica é entendida então como a arte de encontrar os
argumentos que estão contidos nos topoi (loci depósitos). No tocante aos argumentos, estes
VmRSRUVXDVYH]HVD³UD]mRTXHVHUYHSDUDFRQYHQFHUGHXPDFRLVDGXYLGRVD´ $7,(1=$
2003, p. 48-49).

Finalmente, cabe acrescentar que o modo de pensar tópico surgiu como reação ao método
sistemático-dedutivo (ATIENZA, 2003, p. 49), e que os topoi são, como dito, lugares
comuns, tão heterogêneos que se manifestam sob a forma de máximas, slogans, clichês,
SURYpUELRV([HPSOLILFDWLYDPHQWH³iura novit curi´µGr-me o fato, que lhe darei o GLUHLWR´
³R LQDFHLWiYHO QmR SRGH VHU H[LJLGR´ 7UDWDP-se pois de verdades pré-estabelecidas, não
submetidas aos testes do processo dialógico, e que submetem as situações futuras. Além
disto, ATIENZA (2003: 87) também esclarece que o modelo tópico do raciocínio leva a um
Direito inerte, lento, no seguinte sentido:

dado o processo de formação ± necessariamente lento ± dos tópicos e sua


caracterização como opiniões compartilhadas, há boas razões para pensar que o
papel destes é comparativamente maior nos ramos jurídicos mais tradicionais e/ou
naqueles em que o ritmo de mudanças é relativamente lento (é sintomático que a
maioria dos partidários da tópica se encontre entre os civilistas) do que no setores
de formação mais recente ou naqueles em que o Direito deve se adaptar a um ritmo
de mudança mais intenso. Em outras palavras, o uso dos tópicos no Direito
moderno precisa ser limitado, a não ser que, com a sua utilização, pretenda-se,
simplesmente, a conservação e a consolidação de um certo status quo social e
ideológico (cf. Santos, 1980, pág. 96).

42
Entretanto, SANTOS (1988: 7), que é um defensor do pensamento jurídico tópico, entende
que a concepção tópico-retórica tem como fim uma crítica radical às concepções jus-
filosóficas até então dominantes, que trabalharam a racionalidade jurídica como um sistema
fechado técnico. E Viehweg, para quem também o ressurgimento da retórica era de interesse
da prática jurídica, assinalou que a tópica é resgatada na Europa do pós-guerra, por diversas
disciplinas (ATIENZA, 2003, p. 45-46). Este mesmo período é detectado por Perelman, ao
identificar que a tópica ressurge no raciocínio jurídico dos paises ocidentais a partir de 1945,
que após a experiência dos regimes nacional-socialistas, tenderam a aumentar o poder dos
juízes na elaboração do Direito (ATIENZA, 2003, p. 77). Desta forma:

A lógica jurídica, especialmente a judicial [...] se apresenta, resumindo, não


como uma lógica formal, e sim como uma argumentação que depende da
maneira como os legisladores e os juízes concebem a sua missão e da idéia que
eles fazem do Direito e do seu funcionamento da sociedade (PERELMAN,
1979b, p.232-233 apud ATIENZA, 2003, p. 75)

É inegável que o pensamento tópico contribuiu para ajudar a explicar certas características
da razão jurídica que escapavam quando abordadas pelo método exclusivamente lógico, no
sentido que através dele é possível identificar problemas de justificação externa, e não
apenas interna (ATIENZA, 2003, p. 55). Nisto reside, por exemplo, a importância de
Perelman, que conseguiu introduzir no raciocínio jurídico aOJXQVDVSHFWRVGD³UD]mRSUiWLFD´
i.e., acrescentar questões concernentes à moral, à política e à ética (ATIENZA, 2003, p. 77).

É importante destacar assim que, exatamente por admitirem o papel dos elementos externos
da lógica jurídica na efetivação do Direito, que os estudos promovidos nos anos 50 pelos
defensores da Retórica, influenciam as mais discutidas teses jus-filosóficas da
contemporaneidade, como as idéias de Habermas e Alexy, p.e. (ATIENZA, 2003, 78-81).
Entretanto, a tópica não é capaz, per se, de dar uma explicação satisfatória da argumentação
jurídica, em função dela se ater à estrutura superficial dos argumentos, e não os analisar em
suas profundezas. E de tal forma, acaba por permanecer num nível tão grande de
generalidade, que é bastante distante da realidade de aplicação do Direito (ATIENZA, 2003,
p. 55).

43
4.2 Pasárgada e o Discurso Retórico

4.2.1 Extensão do Espaço Retórico Versus Nível de Institucionalização; e Extensão do


Espaço Retórico Versus Aparelho Coercitivo

SANTOS (1988: 88), que apresenta Pasárgada como a base analítica para a construção de
um novo Direito para as sociedades ocidentais capitalistas, indica que o elemento
GHPRFUDWL]DGRUGHVWH³QRYRGLUHLWR´pMXVWDPHQWHR'LVFXUVR5HWyULFRPRGRGHHIHWLYDomR
do raciocínio jurídico pasargadiano.

Isto porque o sociólogo entende que a Retórica é o elemento produtor da Democracia, por
concebê-la na mão contrária da violência da lógica institucional-sistêmica e da violência
física e psíquica do aparelho coercitivo, em virtude do poder que tem o Discurso de encantar
a consciência (colocação que o português faz numa referência a Gadamer), e de assim poder
dispensar outras técnicas para garantir a aderência aos seus conteúdos (SANTOS, 1988, p.
94).

E assim, para concluir sobre a extensão do espaço retórico numa sociedade (que seria o meio
de identificar e produzir a Democracia), SANTOS escolhe uma técnica de comparar os
elementos existentes no Direito do Asfalto e que são externos à Retórica, com aqueles
existentes no Direito pasargadiano, porque parte basicamente de duas premisas iniciais: 1) a
extensão do espaço da retórica é um indicativo da existência ou não de um sistema
democrático; ou, em outras palavras, quanto maior o espaço da retórica (da argumentação
livre), mais garantida estará a Democracia SANTOS (1988:43). E 2) Como o lusitano afirma
TXH³RHVSDoRUHWyULFRGRGLUHLWRGH3DViUJDGDpPXLWRPDLVH[WHQVRGRTXHRGRGLUHLWR
HVWDWDO´pHODSRUWDQWR RSDUDGLJPDSDUDVHFRQFOXLUVREUHRVHOHPHQWRVQHFHVViUio para
permitir a amplitude do Discurso.

Um dos resultados deste método adotado pelo teórico de Pasárgada é a seguinte assertiva:
³D DPSOLWXGH GR HVSDoR UHWyULFR GR GLVFXUVR MXUtGLFR YDULD QD UD]mR LQYHUVD GR QtYHO GH
institucionalização da função jurídica e do poder dos instrumentos de coerção ao serviço da
SURGXomRMXUtGLFD´ 6$1726S LVWRSRUTXHR'LUHLWRGR$VIDOWRVHGLIHUHQFLD
44
aos olhos de Santos, do Direito pasargadiano, basicamente por ser dotado de um aparelho
coercitivo maior e mais cheio de aparatos, bem como por ser dotado de um maior nível de
institucionalização sistêmica. Disto então resultaria a minimização do espaço retórico
identificado no Direito Oficial.

Cabe destacar que a correlação elaborada por Santos entre a extensão do espaço retórico, o
Nível de Institucionalização e o Aparato Coercitivo, não é apresentada sem que o sociólogo
deixe claro que Institucionalização e Coerção são varáveis independentes, em nota de roda-
pé (SANTOS, 1988, p. 59).

4.2.2 A operacionalização da Retórica em Pasárgada através de topoi

No tópico anterior foi assinalado que Santos utilizou fatores externos à Retórica para
concluir sobre a amplitude do seu espaço, e com isto também chegou a uma segunda
constatação possível: outros elementos do Direito da favela carioca (não apenas o pobre
Aparelho Coercitivo e o baixo Nível de Institucionalização), garantem que Pasárgada saia
sempre à frente do Direito Estatal no quesito extensão da dimensão retórica, exatamente pelo
modo como se opera o Discurso Jurídico no seu interior. E assim, destaca-se que o meio
utilizado de maneira mais recorrente na operacionalização da argumentação em Pasárgada é
o topoi, parte constitutiva do Discurso Retórico.

Neste sentido, a partir da ampla utilização dos topos, é possível chegar ao seguinte aspecto
do direito pasargadiano, que também garante a maximização da argumentação:

Pasárgada não recorre somente e usualmente às leis, e tem os topoi como engrenagem
retórica do Discurso jurídico (SANTOS, 1988, p. 23); o que significa, para o sociólogo
lusitano, que Pasárgada recorre a um arsenal de argumentos bem mais amplo do que o Direito
Estatal, já que, como observa Alexy, os tópicos suportam coisas extremamente heterogêneas
(ATIENZA, 2003, p.53), além de se constituírem de maneira por demais generalista, de
modo que possuem um buraco enorme que pode ser preenchido por múltiplas interpretações,
ao contrário das normas estatais que tendem a ser mais bem delimitadas quanto a aplicação.

45
Diante da importância que tem os tópicos no Direito de Pasárgada, para melhor entender a
essência desta manifestação jurídica, é importante identificar os principais topoi que são
utilizados pela Associação de Moradores: topos do equilíbrio, topos da justeza, topos da
cooperação e topos do bom vizinho (SANTOS, 1988, p. 19).

Todos estes tópicos são, sobretudo, utilizados pelo Presidente da Associação de Moradores,
já que, como outras vezes indicado, é aquele que domina o Discurso jurídico (SANTOS,
1988, p. 20).

Portanto, como se pode auferir, os tópicos pasargadiano são também standards que
comportam aplicações muito amplas, e assim permanecem num nível de generalidade que
está distante do nível da aplicação do Direito enquanto tal. São assim argumentos
excessivamente genéricos para serem aplicados, sem outros critérios, aos casos concretos
(ATIENZA, 2003, p. 55), como aqui já mencionado.

4.3 Os tópicos confundidos por Boaventura de Sousa Santos: normas morais ou


jurídicas?

Neste capítulo foi tratado de explicar a identidade e caracterização dos tópicos, que são
partes integrantes da Retórica. Também foram indicados os principais tópicos utilizados no
Direito Pasargadiano: topos do equilíbrio, topos da justeza, topos da cooperação e topos do
bom vizinho (SANTOS, 1988, p. 19).

Da observação destes topoi recorrentemente utilizados em Pasárgada, se verifica que todos


eles estão ligados à Razão Prática kantiana, ou seja, há uma remissão dos topoi pasargadianos
à moral, porque eles se referem, de maneira bem genérica, ao que é justo; ao que é razoável;
ou à maneira como se deve proceder, porque se deseja que os outros se procedam da mesma
forma (iguais liberdades subjetivas).

Inicialmente essa conexão não é um problema, pelo fato de que o Direito consiste realmente
num sistema que recorre a elementos externos para sua justificação, ou, como prefere
46
HABERMAS (2003, v.1, p. 30), para sua validade ou justificação. O que poderíamos chamar
também de uma irritação sofrida pelo sistema.

Entretanto, esta relação entre o Direito e a Moral não pode ser vista como subordinação, em
que aquele fica completamente atado ao conteúdo desta. A relação existente entre estes dois
sistemas é, na verdade, de complementação:

Através dos componentes de legitimidade da validade jurídica, o direito adquire


uma relação com a moral. Entretanto, essa relação não deve levar-nos a subordinar
o direito à moral, no sentido de uma hierarquia de normas. A idéia de que existe
uma hierarquia de leis faz parte do mundo pré-moderno do direito. A moral
autônoma em relação ao direito positivo, que depende de fundamentação,
encontra-se numa relação de complementação recíproca. (HABERMAS, 2003, v.
1, p. 141)

Desenvolvendo, tal relação de complementação recíproca que há entre o Direito e a Moral


consiste em que o primeiro depende desta para garantir a sua legitimidade. Já no que tange
à Moral, ela é complementada pelo Direito porque, enquanto também norma de ação, precisa
das garantias coercitivas daquele para assegurar a vinculação da conduta dos agentes que, se
ficassem exclusivamente presos às intuições morais, teriam que conseguir forças para agir
inclusive contra os próprios interesses. Neste sentido, o Direito contribui para aliviar o peso
que os indivíduos teriam sobre si, se fossem obedecer tão somente aos mandamentos morais,
porque uma norma jurídica, que difere de uma norma moral, pode vincular a conduta dos
agentes através de seus elementos coercitivos, e deixando livre as questões individuais
motivacionais (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 139-150). Nesta mesma linha, HABERMAS
(2003, v. 1, p. 149) observa que esta contribuição que o Direito fornece à moral é importante
porque as normas morais:

não mantém mais vínculos com os motivos que impulsionam os juízos morais para
a prática e com as instituições que fazem com que as expectativas morais
justificadas sejam realmente preenchidas. A moral que se retraiu para o interior do
sistema cultural passa a ter uma relação apenas virtual com a ação, cuja atualização
depende dos próprios atores motivados.

Disto, portanto, se retira a diferença que há entre as normas de ação morais e a normas
jurídicas; i.e., as normas jurídicas pertencem ao Direito Positivo, que é um sistema de ação
que pode inclusive recorrer a força física para sua efetivação (GALUPPO, 2002, p.15). Já as
normas morais contam apenas com o reconhecimento subjetivo dos atores, além de

47
depender, posteriormente, da boa vontade destes mesmos agentes para que venham a agir
conforme seus ditames, o que evidentemente se mostra como uma versão fraca de vinculação
das condutas.

A título de exemplo: X tem como norma moral que deve cumprir todas promessas. X
promete a Y que vai com ele ao cinema. Contudo, X não deseja ir ao cinema com Y, e decide
por isto.

Conclui-se então que a moral é apenas um sistema simbólico de conhecimento, enquanto o


Direito é também um sistema de ação (GALUPPO, 2002, p. 15), por poder recorrer inclusive
à força coercitiva; e exatamente por isto, é mais apto para garantir a vinculação das condutas.

Toda esta explanação sobre o Direito e a Moral, tem sentido para analisarmos a seguinte
questão em Pasárgada: SANTOS (1988: 55) afirma que Pasárgada conta com meios de
coerção muito incipientes e quase inexistentes. Estes meios incipientes são: 1) a pressão
moral exercida pelos moradores contra o vizinho recalcitrante em relação às decisões
proferidas pelo forum (SANTOS, 1988, p. 19), e 2) uma ameaça vazia de recorrer ao apoio
da Polícia Militar, que segundo o sociólogo, se prontificaria em ajudar para conquistar
OHJLWLPLGDGHSHUDQWHRVKDELWDQWHV³HYHQFHUDKRVWLOLGDGHHRRVWUDFLVPRDTXHpYRWDGDSHORV
PRUDGRUHV´ 6$1726S KLSyWHVHTXHDSUySULDAssociação descarta, para ela
mesma não perder a legitimidade perante a comunidade e ter a própria imagem corroída
(SANTOS, 1988, p. 56).

Portanto o que resta sobre a natureza das normas pasargadianas, que se expressam por clichês
e sensos comuns, se elas contam apenas com a pressão moral dos outros atores?

Evidentemente a única conclusão possível é que em Pasárgada não há normas jurídicas e,


portanto, não há, ali, um Direito próprio. O que há em Jacarezinho são as normas morais
como condutoras do agir, como ocorria em tempos mais remotos, nos quais o Direito foi
relegado como reduplicação de normas morais (HABERMAS, v. 1, p. 140).

48
3RUWDQWR D ³JUDQGH´ SURSRVWD GH 6$1726    QR VHQWLGR GH TXH R 'LUHLWR
pasargadiano é hábil como base para uma nova teoria aplicável aos sistemas jurídicos
capitalistas ocidentais, contém dois erros cruciais:

O primeiro erro consiste que em Pasárgada não há nenhum Direito, mas apenas uma moral
institucionalizada pelos trabalhos do forum.

2VHJXQGRHUURHVWiHPTXHD³QRYDWHRULD´TXHWHP3DViUJDGD como referencial, nos termos


da proposta do sociólogo lusitano, nada tem de nova. Trata-se tão somente de uma proposta
de retorno às formas mais primitivas do Direito, em que as normas jurídicas não eram nada
além do que normas morais. Foi este o tom da tHVHGH3ODWmRSDUDTXHP³DRUGHPMXUtGLFD
FySLDHDRPHVPRWHPSRFRQFUHWL]DQRPXQGRIHQRPHQDODRUGHPLQWHOLJtYHOGHXP³UHLQR
GH ILQV´´ +$%(50$6  Y S   H p WDPEpP HVWH R FDUiWHU GR ,PSHUDWLYR
Categórico de Kant.

4.4 Democracia e Retórica

O segundo erro apontado na proposta do sociólogo Santos, no sentido de que Pasárgada


converge para uma nova teoria jurídica, a partir de uma confusão entre normas morais e
legais, é um verdadeiro problema para as sociedades que atravessaram a modernidade, e é
também uma proposta duvidosa para a construção da Democracia.

Inicialmente, é um desafio para as sociedades pós-modernas porque, se durante a


Antiguidade Clássica as normas da natureza e as normas de conduta humana faziam parte
de um só todo (physis), e ainda, se durante a Idade Média, o Direito, a Igreja e a moral
compunham um conjunto indiferenciado (QUINAUD PEDRON e CAFFARATE, 2003),
com a Reforma da Igreja, datada do século XVI, as idéias e valores passados principalmente
pelo canal da religião, deixaram de ter uma adoção homogênea por parte da sociedade; e
assim, houve uma cisão na visão de mundo do ocidente.

Ou seja, com o fim da homogeneidade de crenças, os valores deixaram de ter adesão


generalizada. A conseqüência disto é que sujeitos com valores morais diversos passaram a
conviver no mesmo espaço geográfico. De tal maneira, os juízos avaliativos, que são
49
expressão da preferência subjetiva, se tornam múltiplos em um só contexto. O momento,
que é marcado pelo dissenso, se transforma num instante histórico em que há, conforme a
H[SUHVVmRGH:HEHU³SROLWHtVPRGHYDORUHV´ %$5==272S-14). Nesta linha,
destacamos Habermas:

com a passagem para o nível de fundamentação pós-convencional, a consciência


moral se desliga da prática tradicional, enquanto o ethos da sociedade global se
torna simples convenção, costume, direito consuetudinário. (HABERMAS, 2003,
v. 1, p. 149)

Mas se ainda assim for pretensa, em tom de continuidade, uma Teoria Jurídica que tenha a
moral como fonte única de produção das normas jurídicas da sociedade contemporânea, a
carência de legitimidade será evidente. Afinal, para esta razão jurídica seria impossível
comportar os múltiplos projetos de vida individuais. E é neste ponto também que reside o
desafio para a Democracia. Afinal, se a Retórica for o método utilizado pela razão jurídica,
as bases deste pensar serão os topoi, que são lugares comuns que encontram assentimento
na moral. E se não é mais possível identificar uma axiologia homogênea nas sociedades,
impor valores padrões, com a conseqüente exclusão das diferenças, não é praticável se a
Democracia for o objetivo.

4.4.1 A retórica é contra-projeto para Democracia

Uma vantagem que o Direito Positivo goza sobre a moral é que, para se legitimar, deixa
parte do campo da validade ser preenchido livremente pelos atores, segundo suas próprias
motivações (HABERMAS, 2003, v.1, p. 159). Esta característica não existe no Direito
Retórico porque, como esclarecido, a retórica se opera por silogismos; e as suas premissas
são, comumente, proposições axiológicas ou destas derivam diretamente. Este caráter está,
por exemplo, nas idéias de equilíbrio e de justiça.

É por este motivo que é possível relacionar a razão tópica com a razão prática.

Por um lado, é viável trazer as idéias de justiça e equilíbrio para o Direito Positivo. Mas isto
deve ocorrer no campo da justificação, para garantir a legitimidade do ordenamento jurídico.

50
Afinal, como já foi mencionado, o Direito tem uma relação de reciprocidade e
complementação com a moral, e também com a política e com a ética (HABERMAS, 2003,
v.1, p.141)

Mas por outra via, pelo fato de a Retórica confundir elementos axiológicos (que se referem
ao que é preferível) com elementos deontológicos (que se referem a um dever ser), e assim,
por estar diretamente relacionada com a Razão Prática, é que ela se mostra na contramão do
Projeto Democrático.

Uma Razão que pretenda erguer a Democracia tem que, antes de qualquer outra coisa,
comportar o caráter pluralista das sociedades contemporâneas. Só assim será assegurado aos
atores um discurso que esteja aberto aos seus assentimentos. É neste momento que deve
entrar no lugar da Razão Prática kantiana que se opera pela lógica de mandamentos morais
elaborados pelo indivíduo monológico, a Razão comunicativa que tem como instrumento o
medium lingüístico (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 19), já que somente através deste meio é
possível estabelecer um contato com o mundo subjacente, em virtude do fato de que não é
viável um acesso à realidade não filtrado pela linguagem, que além da função comunicativa
possui também competência representativa (HABERMAS, 2004, p. 38-39). I.e., não é
possível ao indivíduo um contato com os objetos a sua volta que não seja mediado. E essa
mediação é necessariamente feita pela linguagem. Por lançar mão deste medium, a Razão
comunicativa dá o primeiro passo em direção a um modelo inclusivo, porque não se apóia
na tradição, como a Razão Prática, e porque se opera pelo discurso.

Isto significa também que a Razão Comunicativa, ao contrário da Razão Prática, não é
fonte direta das normas de agir, mas um meio pelo qual se ergue pretensões de validade:

Ela possui um conteúdo normativo, porem somente na medida em que o que age
comunicativamente é obrigado a apoiar-se em pressupostos pragmáticos de tipo
contrafactual. Ou seja, ele é obrigado a empreender idealizações, por exemplo, a
atribuir significado idêntico a enunciados, a levantar uma pretensão de validade
em relação aos proferimentos e a considerar os destinatários imputáveis, isto é,
autônomos e verazes consigo mesmos e com os outros.

(...)

A razão comunicativa possibilita, pois, uma orientação na base de pretensões de


validade; no entanto, ela mesma não fornece nenhum tipo de indicação concreta
para o desempenho de tarefas praticas (...) (HABERMAS, 2003, v.1, p.20-21)
51
Ao falar em pretensões de validade, inicialmente Habermas supõe indivíduos que não se
mantêm inertes diante do Discurso, como é o caso do Auditório Universal de Perelman
(ATIENZA, 2003, p.81).

Além disto, levantar pretensões de validade significa tentar a aderência do outro, pelo
Discurso; e o que pode ser realizado, segundo Habermas, por três maneiras: 1) através de
pretensões de verdade, que são enunciados descritivos e se referem ao Mundo Objetivo; 2)
através de correção normativa, que se refere às normas elaboradas para a condução social e
pertencem ao Mundo Intersubjetivo; 3) através de pretensões de veracidade ou sinceridade,
que se tratam de enunciados expressivos (artes, sentimentos) e se referem ao Mundo
Subjetivo (GALUPPO, 2002, p. 117-119).

A importância disto é que, quem age comunicativamente (pela Razão Comunicativa), não
tenta angariar a posição dos demais através de falsas verdades impostas, como é o caso dos
topoi, que não são submetidos a testes. Mas o tenta através de pretensões de validades
criticáveis (HABERMAS, 1990).

Outra consideração importante é que a Razão Prática kantiana é uma idéia desatualizada,
porque concebe indivíduos que agem solitariamente. I.e., a Razão kantiana, anterior ao giro
lingüístico, não se dá conta que a razão humana só surge com a identificação de alter, a partir
do qual surge o ego. Não há, portanto, indivíduos que num exame moral solipsista, possam
guiar a própria conduta. A razão humana se opera pela linguagem, e a linguagem necessita
do outro (HABERMAS, 2004, p. 38).

52
CONCLUSÃO

Para chegar a uma resposta sobre a dimensão do espaço retórico, SANTOS (1988) segue na
esteira da sociologia jurídica de Eugène Ehrlich que ajudou a criar a disciplina Sociologia
Jurídica, e para quem

³2FHQWURGHJUDYLGDGHGRGHVHQYROYLPHQWRGRGLUHLWRHPQRVVDpSRFDFRPRGH
todos os tempos, não deve ser buscado nem na legislação, nem na doutrina, nem
QDMXULVSUXGrQFLDPDVQDSUySULDVRFLHGDGH´(E. EHRLICH, 1913 apud BILLIER
& MARYIOLI, 2005, p. 280)

A sociologia jurídica pretende assim, que o Direito seja concebido com um fato social. O
que significa que as manifestações normativas legais podem ser constatadas de uma análise
empírica da sociedade, porque é no seio desta que ocorre a produção da Legalidade.

53
Neste sentido, Ehrlich estabeleceu uma distinção entre direito vivido e normas de ação. O
chamado direito vivido p ³R FRQMXQWR GH UHJUDV UHODWLYDV jV UHODo}HV LQWHULQGLYLGXDLV H
LQWHUQDVDRVGLYHUVRVDJUXSDPHQWRVVRFLDLV´(BILLIER & MARYIOLI, 2005, p. 284). Já as
normas de decisão são aquelas aplicadas pelos Tribunais.

Desta distinção procedida por Ehrlich, podemos chegar a seguinte conclusão, ao levar em
consideração os estudos de SANTOS (1988) na favela carioca: o direito vivido está para o
Direito de Pasárgada, assim como as normas de ação estão para o Direito do Asfalto.

Tal conclusão é possível porque SANTOS (1988) também entende que não basta que haja
um Direito estatal legislado e aplicado pelos Tribunais. É preciso verificar se este direito é
praticado e vivido, porque além das normas oficiais, há uma legalidade produzida no interior
GRVJUXSRVVRFLDLV³jVYH]HVDWpGLYHUJHQWHVGRGLUHLWRHVWDWDOPDVFRQVLGHUDGDVDSURSULDGDV
pelos membros desses agrupamentos para construir suas relaç}HV P~WXDV´ (BILLIER &
MARYIOLI, 2005, p. 285). Ou seja, tanto para o teórico de Pasárgada, como para um dos
fundadores da sociologia jurídica (ao lado de Dean Roscoe Pound), o Direito é o resultado
de um processo social.

A relação de Santos com Ehrlich é tão evidente, que a preocupação com a idéia de Pluralismo
Jurídico já estava presente nos estudos deste, quando se dedicou pensar as práticas jurídicas
de sua província, Bucovina, no antigo Império Austro-húngaro (F. Michaut apud BILLIER
& MARYIOLI, 2005, p. 287).

As críticas que se voltaram contra os trabalhos de Ehrlich também seguem a mesma linha da
crítica que foi apresentada, neste trabalho, em desfavor da confusão feita por SANTOS
(1988) entre normas morais ou sociais, e normas jurídicas. Ambos jus-sociólogos não foram
capazes de distinguir o dado, o dever ser, e o axiológico (BILLIER & MARYIOLI, 2005, p.
288).

É visível que a preocupação da sociologia jurídica, ao pretender captar o Direito no meio das
relações sociais, é com a legitimidade. Mas seus trabalhos se perdem, ao que parece, numa
certa ingenuidade.

54
A legitimidade do Direito, como aponta HABERMAS (2003, v.1), de fato pode ser retirada
de fatores que estão no seio da sociedade, como a moral, p.ex. Isto porque o Direito é um
sistema aberto que depende de fatores externos para sua justificação. Entretanto, o Direito é
também um sistema autônomo, e exatamente por este motivo, não pode ser confundido com
estes outros fatores externos. Como foi indicado, a relação que há entre eles é de
complementação e não de confusão.

Além disto, o Direito de Pasárgada não é o resultado de diferenças culturais, mas sim da
exclusão social, que se verifica inclusive no Discurso Jurídico.

A solução para este quadro, portanto, não é propor uma teoria pluralista não-democrática
como fez SANTOS (1988). Uma resposta inclusiva passa necessariamente pela efetivação
dos Direitos Fundamentais, e aqui se inclui o devido processo, que garante aos atores o
direito de participação na construção do Discurso, em simétrica paridade.

Também é preciso rever o papel do decididor, pois

à compreensão da teoria democrática do direito, em nada adiantaria


sustentar um garantismo por um Estado Constitucional de Direito,
(...) que resolvesse antinomias e lacunas fatais do ordenamento
jurídico por um juiz monológico e portador de uma interpretação
SRWHQWRVDHUHSDUDGRUDGH³LQMXVWLoDVVRIULGDV´HPIDFHGHDOHJDGRV
defeitos inatos da lei ou extintiva de uma opinião publica hostil ao
discurso democrático-constitucional só acessível a um intérprete
especialíssimo e julgador neutro e independente (...). Nenhuma
garantia, na concepção democrática, é assegurada na significância
pragmático-lingüística do decididor solitário e asséptico. (LEAL,
2003, p. 336)

Desta maneira, também não é possível esmerar um Modelo Legal Democrático nos moldes
do pragmatismo jurídico norte-americano, encarnado pelo Presidente da Associação de
Moradores.

É preciso ainda, substituir as velhas formas manifestas da Razão Prática pela Razão
Comunicativa (HABERMAS, 2003, v.1); pois se o direito não acompanhar o giro
lingüístico promovido tanto pela neurociência como pela semiologia, seu pecado não será

55
só o da fraqueza teórica, mas da fraqueza para construir um modelo Jurídico Democrático
que permita a emancipação dos atores sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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