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Pedro Matias1

TEZZA, Cristovão. ENTRE A PROSA E A POESIA: Bakhtin e o Formalismo Russo.


Curitiba: Tovo textos, 2013.

● O significado compreendido como uma relação entre sujeitos, e não entre formas [...].
(p. 161)

● [...] Bakhtin definirá o seu conceito de literaturidade e de acabamento estético, isto é,


em que tipos de relações se faz a palavra literária. (p. 161)

● [...] separação bakhtiniana entre autor-criador, “componente da obra”, e autor-homem,


“componente da vida”. (p. 161) [grifo meu]

○ Aqui ele descarta imediatamente a ideia de que o “autor-biográfico” seja


relevante para a compreensão literária e que seja possível qualquer identificação
mecânica entre o mundo teórico do autor e o mundo teórico do herói. (p. 161)

○ Qualquer transposição do mundo teórico do autor para o mundo do herói


modifica todo o sentido original do autor, reorganizando-o no universo global do
herói. (p. 161)

○ Note-se bem a separação que Bakhtin faz entre autor-biográfico e autor-criador,


porque ela é fundamental para responder à ideia de que os “temas” – filosofia,
religião, sociologia, política – seriam “estranhos” à natureza literária do texto em
si mesma, à “literaturidade”. Sim, eles são estranhos como manifestações do
autor-biográfico, mas não como elementos constitutivos da obra de arte,
manifestações axiológicas da consciência do herói refratada pela consciência do
autor-criador e atualizadas em determinados material e forma. (p. 162 e 163)

○ O autor-criador é, portanto, parte integrante da obra de arte, mas não se


confunde, de nenhum modo, com o clássico narrador, isto é, o ponto de vista
gramatical que estabelece a narrativa. (p. 162)

● Não há, assim, no universo de Bakhtin, nenhuma diferença essencial, metafísica, entre
“linguagem prática” (ou qualquer outro nome que se dê ao uso cotidiano da linguagem),
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tomada em sua estrutura formal, e “linguagem poética” (em qualquer manifestação
artística, poética stricto sensu ou lato sensu), também tomada em sua estrutura formal;
não há absolutamente nada nessas formas históricas, consideradas em seus sinais, que
nos autorize a delas extrair ou não a sua esteticidade. O estético nasce de uma relação
viva de consciências sociais, não de uma relação reiterável de sinais axiologicamente
neutros. (p. 163)

○ Se na vida essa relação é fragmentária, construída, por assim dizer, palavra a


palavra e momento a momento, fazendo-se numa instável provisoriedade (tanto
na consciência que temos dos outros como aquela que temos de nós mesmos),
na obra de arte há a exigência de finalização, de acabamento: a consciência do
autor-criador é uma consciência que engloba a totalidade do herói, em todos os
seus momentos, como um conjunto único e inseparável. (p. 163)

○ [...] uma das categorias mais sugestivas de Bakhtin, a da exotopia, o fato de, no
mundo estético (ao contrário da vida, quando só podemos ser completados
pelos outros, num processo de falta absolutamente insuperável), o autor-criador
saber mais, ter um excedente de visão com relação ao herói [...] (p. 163)

○ [Citação] E este estar-do-lado-de-fora [esta exotopia] em relação ao herói


permite ao autor (1) apreender e concentrar tudo do herói, o qual, de dentro
dele, está difuso e disperso no mundo projetado da cognição e no evento aberto
da ação ética; (2) apreender o herói e sua vida e completá-lo até o ponto em que
ele forme um todo, suprindo-o de todos aqueles momentos que são inacessíveis
ao próprio herói por ele mesmo (tais como uma imagem externa completa, um
exterior, um plano de fundo às suas costas, sua relação com o evento da morte,
do futuro absoluto, etc.); e (3) justificar e completar o herói independentemente
do significado, das conquistas, das consequências e do sucesso da vida do herói
direcionada para a frente. (p. 164)

○ [...] o fato de concordarmos ou não com Raskolnikoff não afeta em nada, para
nós, o valor estético de Crime e Castigo. Mas se um Raskolnikoff da Silva
escrevesse um artigo em um jornal defendendo os pontos de vista que defendia
no romance, com exatamente as mesmas palavras, com a mesma composição
formal, com o mesmo ritmo, sintaxe, paralelismos, assonâncias e dissonâncias,
essas palavras, não submetidas ao um todo excedente, no tempo, no espaço e
nos valores, sem a refração de um outro olhar, entradas diretamente no
ser-evento inescapável da vida, ganhariam um sentido, um significado
essencialmente distinto. (p. 166 e 167)

■ A palavra relativizada do romance, pela finalização estética (o olhar


exotópico do autor-criador), agora, sem esse olhar, nos afrontaria
diretamente no acontecimento aberto da vida. (p. 167)

● [Citação] Na obra de arte, por outro lado, as reações do autor às manifestações isoladas
por parte do herói se fundam na sua reação unitária ao todo do herói: todas as
manifestações particulares do herói têm significância para a caracterização do seu todo
como momentos ou traços constituintes dele. (p. 162)

○ A diferença entre a vida e a arte, aqui, está no fato de que as reações cotidianas
são isoladas, “caso a caso”, por assim dizer; já na obra de arte há uma reação
ao todo [...] (p. 162)

● A relação entre o autor-criador e o seu herói [...] estabelece-se como a consciência de


uma consciência, impregnada de tensão valorativa. (p. 162)

○ [Citação] Esta é a razão por que é necessário enfatizar o caráter criativamente


produtivo de um autor e de sua reação global ao herói. Um autor não é o
portador de uma experiência interior vivida, e sua reação não é nem um
sentimento passivo nem uma percepção receptiva. Um autor é a energia ativa
singular produtora de formas que se manifesta não como uma consciência
psicologicamente concebida, mas como um produto cultural duradouro, e sua
reação ativa e produtiva se manifesta nas estruturas que ela gera – na estrutura
da visão ativa do herói como um todo definido, na estrutura de sua imagem, no
ritmo em que ele se revela, na estrutura da entonação e na seleção dos seus
traços significantes. (p. 162)

○ O conceito central de O autor e o herói permite também uma classificação e


tipificação dos heróis não mais baseadas no engavetamento formal de modelos,
mas de graus qualitativos, em geral, e quantitativos, especificamente, da relação
de consciências. O acabamento estético é garantido pela distância entre o autor
e o herói (que deve ser mantida mesmo na obra autobiográfica) – mas, como
lembra Bakhtin, “a exotopia é obtida por conquista e a batalha por ela é
frequentemente uma luta vital, especialmente no caso do herói autobiográfico,
mas não apenas nele”. (p. 164 e 165) [grifo do autor]

● A noção de excedente de um centro de valores com relação a outro é particularmente


importante na sua estilística; nela, será indispensável a categoria do plurilinguismo, ou
heteroglossia, que se define como a presença direta ou indireta de diferentes vozes
sociais, ou centros de valor, em todo momento verbal. (p. 164)

○ Para Bakhtin, o plurilinguismo é um traço constitutivo da linguagem (porque


nenhum sujeito é uma realidade una, unilateral e monolítica em nenhum
momento de sua existência); assim, todo estilo é um comentário, a atualização
de uma tensão valorativa entre consciências assimétricas. (p. 164)

● O dialogismo bakhtiniano é a expressão de uma falta, de uma carência inelutável do


sujeito único e monolítico que subjaz às concepções tradicionais da linguagem (p. 165)

○ [Citação] Um evento estético só pode existir quando há dois participantes


presentes; ele pressupõe duas consciências não-coincidentes. (p. 165)

○ [Citação] Quando o herói ou o autor coincidem ou quando eles se encontram ou


próximos um do outro em face de um valor que eles partilhem ou contra um
outro valor como antagonistas, o evento estético termina e um evento ético
começa (panfleto polêmico, manifesto, discurso de acusação ou de elogio e
gratidão, injúria, confissão como um autojulgamento, etc.). Quando não há
nenhum herói, nem mesmo de forma potencial, então estamos diante de um
evento cognitivo (tratado, artigo, conferência). E, finalmente, quando a outra
consciência é a consciência englobante de Deus, um evento religioso tem lugar
(oração, adoração, ritual). (p. 165 e 166)

○ Mas bastará lembrar, no nosso caso, que o segundo participante de que ele fala
não é nenhum interlocutor, no sentido tradicional da palavra; é a consciência
contra a qual (e só contra a qual) a nossa consciência ganha sentido, entra no
ser-evento concreto [...]. (p. 166)

● [...] Bakhtin considerará três categorias da constituição do herói: [...] 1. a forma espacial
do herói [...] 2. o todo temporal do herói [...] 3. o todo significante do herói [...] (p. 168)
○ Até aqui, examinamos as condições sob as quais o espaço e o tempo de um ser
humano e de sua vida assumem validade estética. Mas o que também assume
validade estética é a atitude significante do herói no ser – aquele lugar interior
que ele ocupa no evento unitário e único do ser, sua posição axiológica no
evento. (p. 168)

○ A relação entre o autor e o herói, para Bakhtin, não difere substancialmente da


relação cotidiana entre as consciências; e nosso olhar (e todos os nossos
sentidos, por assim dizer) vive a mesma falta substancial, com relação ao tempo,
ao espaço e aos significados, que só o olhar do outro pode completar. (p. 168)

● Essa falta de origem, essa incompletude a priori, é parte integrante do nascimento da


palavra, dupla, ou dialógica, no momento mesmo em que nasce. (p. 168)

○ A realização estética, portanto, é parte integrante do evento da vida, e não um


objeto autônomo, regido por leis internas e próprias. (p. 168)

○ A estetização é um processo de afastamento, de acabamento, de tudo aquilo


que, por sua própria natureza vital, é perpetuamente inacabado e parte
integrante e inconclusa da experiência interior – em suma, do fluir da vida. (p.
168)

○ E mais: somente considerando o que está fora do texto pode-se enfim chegar ao
momento estético. (p. 168)

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