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GRH

Romances Históricos
Tradução/Pesquisa:GRH

Revisão Inicial: Tania Candida

Revisão Final: Ana Julia

Formatação e Leitura Final: Ana Paula G.


Amparo Balbuena

Como uma Flor entre as


Rochas

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Resumo

Ele acreditava que seu maior desafio seria enfrentar os Cátaros. Conquistar o coração de um
deles se converteria em um desafio ainda maior.
A fé move montanhas.
No começo do século XIII, os “Cátaros” pregam seu credo no sul do que mais tarde seria a
França. Acreditam na igualdade entre o homem e a mulher, na liberdade para o amor,
aborrecem o materialismo e negam a existência do inferno. Ameaçada por esta religião, a
Igreja Cristã promove uma Cruzada contra o que considera uma heresia e se propõe
exterminá-la.
Laetitia, uma jovem cátara, é a alma de sua comunidade, Montaillou. Alegre, atraente e
bondosa, dirige um hospital no qual cura os doentes do povoado. Vive refugiada na religião e
na observância da fé, jejua habitualmente, não tem posses materiais e rechaça aos múltiplos
pretendentes do povoado que tentam conquistá-la. Entretanto, é Ramiro de Zaragoza quem
inesperadamente põe em perigo suas crenças.
Ramiro, um cavalheiro Aragão, lutou nas Cruzadas e sempre foi um homem de fé. Banido,
impossibilitado de voltar para seu lar, Ramiro se dedica com exclusividade à guerra e às
damas da corte: dois territórios no qual a conquista está assegurada. Seus inimigos cansados
de verem-se ofuscados por suas glórias militares armam uma armadilha. Planejam assaltá-lo
enquanto transporta uma relíquia da cristandade para a Abadia de Montaillou. E é Laetitia
que, sem saber, precipita a emboscada. Quando Ramiro compreende que vai ser atacado,
entrega a relíquia a Laetitia para que a esconda, sem imaginar que confia a ela muito mais
que um tesouro.
Forçados a compartilhar o segredo do esconderijo, uma cátara e um cristão, compreendem
que a fé move montanhas. Mas que o amor é mais poderoso.

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Nota da Autora

Em julho de 2005, estava de férias com minha família no sul da França. A região
que visitávamos é conhecida como Languedoc e abrange uma série de povoados e cidades
que formam uma mescla que desemboca no Mediterrâneo. Esta zona do sul francês foi,
durante muito tempo, independente do norte. Estavam mais em contato com a Espanha, com
Aragão mais precisamente, que com os nobres francos. A proximidade não era tão só
geográfica, mas também linguística. O idioma occitano que se falava em Languedoc
(Languedoc, de fato, quer dizer “língua do oc” ou “língua do sim”) era muito mais próximo
do Aragão e do catalão que do francês medieval.
Percorri com grande prazer junto a meu marido, Reiner, e minha pequena filha, Clara, as
cidades medievais de Carcasona e Tolosa. Também passamos vários dias em cidades
variadas. Languedoc tem a estranha propriedade de possuir todas as paisagens. Das
montanhas alpinas nevadas em Axles Thermes aos bosques em torno de Carcasona. Da
Montanha Negra até o mar tão próximo a Narbona. Nós adorávamos a região com seus
castelos da Idade Média, com seus quentes habitantes e com sua história a flor de pele.
Foi em Béziers quando a denominação que já tinha escutado tantas vezes começou a
me chamar a atenção: os Cátaros. O guia de turismo, um languedociano que tinha vivido
muito tempo em Munich e falava um alemão estranho (devo esclarecer, Rainer mal fala inglês
e, por isso, todos os tours que fizemos são falados em seu alemão natal, idioma que eu
domino à perfeição) contou-nos a respeito da matança dos Cátaros em Béziers. Seu relato foi
tão vivido que eu podia ver como tinham acontecido às coisas.
Quando terminou a visita, e porque eu mesma trabalhei como guia de turismo muitos anos
em Madrid, aproximei-me para agradecer o compromisso que tinha posto em seu trabalho. E
dizia como colega.
Nem sempre se podem encontrar guias dispostos a relatar com paixão, mas sim estão
aqueles que enumeram com voz monótona uma longa lista de monumentos e lugares
históricos. O guia, então, começou a me contar dos Cátaros, tema que o apaixonava. Tinham
surgido como uma seita mais entre as que se chamavam “dualista” e logo se impuseram pela

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simplicidade de suas crenças. Para os Cátaros, o mundo não era uma grande “sala de espera”
para um julgamento final que decidiria sobre a salvação ou a condenação. Para eles, o mundo
era uma condenação em si mesmo e a obra de um ser maligno. Todo o material formava parte
da obra deste ser maligno. O deus que adoravam era etéreo, luminoso e despreocupado pelas
coisas materiais e, portanto, não se importava se alguém fazia amor sem ser casado ou tinha
amigos de outras religiões. Dependia de cada um querer sair deste mundo que era o
verdadeiro castigo e acessar ao etéreo e luminoso espaço de seu deus. Para isso, devia-se levar
uma vida de abnegação e privações (não comer carnes porque se tratava de algo material, não
ter relações sexuais, etc.). Aos que se consagravam a esta vida os chamavam perfeitos.
Deviam, previamente, receber o único sacramento cátaro: a consolamentum. Os que não
levavam esta vida não eram julgados, simplesmente voltavam para este mundo que era um
castigo em si mesmo. Os que participavam da fé sem comportarem-se como perfeitos eram os
crescentes.
O guia se apaixonou e continuava com seu relato. Eu o escutava atenta e ansiosa por saber
mais. Disse-me que os Cátaros acreditavam na igualdade entre o homem e a mulher, já
que qualquer um podia ter sido em uma vida anterior homem ou mulher e poderia sê-lo,
indistintamente, em uma próxima.
Perguntei por que os Cátaros tinham despertado tanto rancor por parte da Igreja em
Roma. A resposta foi singela, mas contundente. Por um lado, ao ser este mundo o castigo em
si e não um trânsito, a ideia do pecado ficava abolida. Não havia nada pecaminoso, a não ser
tão só uma escolha, a de salvar-se ou não. Quem escolhia salvar-se, devia observar certas
regras. Mas quem não as observava não era considerado um pecador que merecia uma
admoestação. A Igreja de Roma fundava sua autoridade em julgar o que era pecado e o
que não e os Cátaros a desafiavam. Por outro lado, o rechaço da materialidade que
propunha o catarismo atacava aos impostos, base da riqueza da Igreja, e às faustuosas
Igrejas e vestimentas dos bispos.
Pareceu-me sensato e lógico o que o guia me contava. Não me pareceu estranho que o
Papa lançasse uma Cruzada contra os Cátaros, nem tampouco a brutalidade com que tinham
atacado Béziers. Mais de vinte mil pessoas mortas. Uma cidade arrasada.

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Despedi-me de meu colega e agradeci novamente seu compromisso para com a tarefa que
desempenhava. Meu marido e minha filha me aguardavam impacientes.
Essa noite no hotel, convenci Rainer a ficar uns dias mais. Queria continuar conhecendo a
terra dos Cátaros.
Essa noite, também, não podia me concentrar para contar à história que sempre contava a
minha filha antes que dormisse. Ela me olhou nos olhos e disse que não se importava que
podia continuar pensando na história que o guia tinha me contado nessa tarde. Soube que ela
tinha razão. Que continuava pensando nos Cátaros. E que devia escrever esta história.

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Resenha Bibliográfica
Amparo Balbuena

Amparo Balbuena nasceu em Madrid em fevereiro de 1975. Estudou


alemão e trabalhou vários anos como guia de turismo bilíngue em
sua cidade de nascimento. Há cinco anos vive em Berlim junto a seu
marido e sua pequena filha. Na Alemanha se dedica ao ensino do
espanhol como
idioma estrangeiro.
Leitora precoce e voraz desfruta da leitura de novelas históricas e de biografias, embora o
gênero romântico continue sendo seu preferido.
Começou a escrever contos em sua adolescência e, mais adiante, novelas românticas.
Como Uma Flor Entre as Rochas é sua primeira obra publicada.

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Comentário Revisora Inicial Tania Candida

Um livro bonzinho, sem muitas emoções e sem ser hot. Mas dá bem pra passar o
tempo

Comentário Revisora Final Ana Julia

O livro é bom, para quem gosta de fatos históricos, a autora usou um fato verídico para
enredar a história que é muito boa, mas que para mim poderia ter tido um algo mais...

Comentário de Leitura Final Ana Paula G

Tenho que concordar com as meninas da revisão inicial e final.O livro poderia
ter mais romance.Achei que a autora focou muito na história dos cátaros e
deixou a desejar neste quesito.Mas como ADORO história antiga, adivina se não
amei??? Gostei muito, sim…Tem romance,mas não é aquela história quente que
a gente espera…é mais suave, romântico.

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Prólogo

Béziers, 1209

Assediar uma cidade levava tempo e tinha o seu passo a passo a ser seguido. Primeiro,
um exército que acampasse fora das muralhas e um motivo para sitiá-la; segundo, atacar o
fornecimento de água para que os habitantes da cidade, que não podiam sair, já que seus
inimigos os espreitavam de fora, tivessem menos capacidade de resistência; terceiro,
acionar complexos mecanismos para poder penetrar na cidade murada. Um desses
mecanismos era uma máquina chamada “gata”, que auxiliava na tarefa de romper as
grossas muralhas. A gata era feita de madeira e funcionava como um carro: um teto de
troncos com um chão que o imitava em sua forma e composição. Entre essas duas enormes
prateleiras se escondiam os peritos em alvenaria e carpintaria que acompanhavam o
exército que esperava o momento da ação. Usavam o dispositivo da gata para aproximar-se
das muralhas sem serem mortos pelas flechas que choviam das ameias da cidade
fortificada. Muitas vezes tinham que molhar a parte superior da máquina com sangue de
animais que caçavam especialmente durante o combate para que as flechas acesas não
atassem fogo ao aparelho. Uma vez que cruzavam o fosso, os peritos em alvenaria
começavam a cavar os alicerces das muralhas para debilitá-las. Quando a parede parecia
que podia cair, sustentavam-na com cordas de seda grossas e duras que os carpinteiros
dispunham habilmente. Não deixavam que a parede caísse, mas sim a escoravam e a
preenchiam com palha, tecido, sebo e gordura para poder incendiar o passadiço que
tinham cavado. Se tudo tinha sido disposto corretamente, a parede caía violentamente
para dentro e feria ou matava a vários inimigos. Depois chegavam os soldados e o combate
corpo a corpo.

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Assediar uma cidade era um trabalho de paciência. E Béziers não ia ser uma exceção. Ou
talvez sim.
Reuniu-se um exército variado para sitiar a cidade. O ataque tinha sido convocado pelo
Papa Inocêncio III como uma Cruzada e os soldados tinham chegado de todas as partes para
cumprir com sua obrigação. Participar de uma Cruzada era obrigatória por quarenta dias
pelo menos. Para os que não faziam, pesava a pena de excomunhão. Por isso todos os
senhores e nobres participavam.
—Decidiram entregar o listrado?
—Não.
Quem perguntava era Arnaud Amaury, líder espiritual da Cruzada em Languedoc, região
mediterrânea do que hoje é a França e antes uma terra autônoma.
—Dizem que não entregarão seus vizinhos e concidadãos.
—Então deveremos entrar e todos pagarão.
Prepararam a gata e o assédio começou a transformar-se em uma realidade.
A Cruzada se desatou para combater uma heresia. O Papa estava convencido que em
Languedoc, nessa mescla de povoados que desembocavam no Mediterrâneo, tinha
florescido uma nova crença e que seus fiéis se estendiam e ameaçavam ao catolicismo.
Esses hereges eram os Cátaros. Ninguém podia precisar com exatidão como tinha surgido
essa seita, mas todos conheciam seus princípios.
Seus seguidores pregavam que este mundo era invenção de um ser maligno e que todo o
material estava corrupto: era igual se fosse uma árvore, um animal ou uma pessoa. Todos
tinham algum grau de corrupção. A salvação era possível por meio de uma vida de jejuns e
abstinências, quem se salvasse viveria junto a Deus em um mundo imaterial, etéreo. Aos
que podiam conseguir a salvação eram conhecidos pelo nome de perfeitos e deviam
receber o único sacramento que tinham os Cátaros: a consolamentum. Os outros que
participavam da fé, mas que não levavam uma vida de privações eram chamados de
crescentes. Os outros que não eram perfeitos estavam condenados a reencarnar e voltar a

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viver na Terra, quer dizer no mundo criado pelo maligno entre a corrupção do material.
Então, pouco importava o que fizesse: não era necessário casar ou proibir ter relações
sexuais ou deixar de comer carne. Ou a vida ascética era total e a pessoa se salvava ou não
valia à pena tentar. As pessoas deviam levar uma vida de privações para obter a salvação,
mas se não fosse assim não eram reprimidos, castigados ou doutrinados. Seu único castigo
consistia na reencarnação. E isso bastava. Os Cátaros, então, propunham uma liberdade
que alterava a Igreja de Roma. Inclusive acreditavam que as mulheres não eram diferentes
dos homens: qualquer mulher podia ter sido homem em uma vida passada e qualquer
homem podia reencarnar em forma de mulher em uma vida futura.
Mas o verdadeiramente revolucionário da crença cátara era que eles eram contra as
faustuosas vestimentas e joias dos bispos, porque significavam mostras de materialidade e,
por sobre todas as coisas, eram contra os impostos. Isso tinha feito que a Igreja fixasse sua
atenção neles e não para fazer amizade precisamente. Por outro lado, aos nobres da região,
essa situação os permitia cobrar taxas não autorizadas pela Igreja e fazia que suas fortunas
crescessem. E por isso não queriam reprimir aos fiéis Cátaros que viviam em suas terras.
Convinha a eles essa tolerância religiosa. Convinha não criar inimizade com sua própria
gente.
Muito antes de decidir lançar uma Cruzada contra a região, o Papa, cansado da heresia,
enviou alguns delegados para obter dos nobres locais um compromisso de que reprimiriam
os Cátaros.
Os nobres mais importantes da zona, o conde Raimundo VI de Tolosa e o conde
Trencavel, não só não reprimiram, mas sim ignoraram a mensagem que vinha de Roma.
Inclusive suspeitou que Raimundo tivesse mandado matar um dos embaixadores papais.
Foi esta a desculpa para desatar a Cruzada e para justificar a presença de tropas cristãs
nas terras de Languedoc.
Raimundo VI de Tolosa, um homem folgazão para a guerra, que tinha anexado mais
territórios por casamento que por batalhas, pediu perdão ao Papa, fugiu do ataque e se

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uniu aos cruzados. Estes decidiram que, em vez de atacar Tolosa de Raimundo, atacariam
Béziers e Carcasona, cidades em terras de Trencavel, que se sentiu traído e empurrado a
uma luta que não queria.
Em julho de 1209, o exército cruzado se preparava para atacar Béziers. Trencavel, o
senhor da cidade, foi a Carcasona, onde residia, para armar um exército e voltar para
defender Béziers. Confiava que as muralhas iam conter os cruzados por tempo suficiente
para que ele voltasse com seu próprio exército. Os habitantes tinham medo e ansiedade,
mas sabiam que as altas ameias e muros os protegeriam e era muito difícil deixá-los sem
água, situação excepcional, porque dominavam o rio Orb com elevados diques, o que fazia
que pudessem resistir um tempo maior.
Arnaud Amaury, o chefe religioso da Cruzada, tinha pedido que não duvidassem em
matar os hereges Cátaros que viviam na cidade.
—Como saberemos quem é Cátaro e os que não são? —quiseram saber os líderes da
Cruzada.
—Deus salvará quem não for herege. Os outros devem morrer. Não nos cabe diferenciar
um herege de um que não seja.
Na tranquilidade do acampamento, um jovem cavalheiro, escutava com desconcerto
essas palavras. Não era esse o espírito pelo que tinha ido lutar. Não era esse o espírito da
Cruzada. Acreditava profundamente em seu dever como cristão e tinha partido para a
batalha com apenas quinze anos. Cinco anos de lutas sem descanso em terras árabes não
tinham conseguido minguar seu ânimo nem sua fé. Entretanto, quando escutava Amaury
falar dessa maneira, duvidava serem esses homens os verdadeiros representantes da fé ou
se tão só eram emissários de sangue do poder do ouro. As lutas políticas entre os senhores
e as intrigas políticas o tinham sem cuidado e, entretanto, parecia que nessa Cruzada que
estava por desatar-se havia mais intriga e lutas dos homens que uma missão de Deus.
O jovem se chamava Ramiro de Zaragoza e estava no comando de um grupo de
mercenários, formado por ladrões de estradas e vagabundos que, em troca da permissão

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do saque uma vez que a batalha terminasse, estavam dispostos a arriscar a vida sem
perguntar qual era o motivo da guerra. Estavam sob controle e isso custava a ele bastante
trabalho, porque não possuíam nenhum tipo de disciplina nem respeito pela autoridade.
Simplesmente bebiam todo o vinho que podiam, comiam tudo o que permitia seu
estômago e falavam aos gritos. Entretanto, o jovem cavalheiro tinha encontrado a fórmula
para mantê-los a raia.
—Queremos atacar - diziam divertidos os homens— Você não pode atacar ninguém, é
como uma menina.
—Cale-se - um dos homens se equilibrou sobre o outro.
—Cale-se você, menina.
—Atearei fogo em você, quando começar o saque.
—E eu te arrancarei os olhos e te venderei como prostituta a um mercado cátaro.
—Basta! —gritou Ramiro. Sua voz era imponente. Ninguém podia pensar que o quanto
era jovem o que falava com esses homens. Seu aspecto físico parecia o de um gigante. Alto,
fornido e com braços tão musculosos que se parecia com torres de uma cidade murada.
Ramiro ia à missa todos os dias junto a um cavalheiro que tinha conhecido no Oriente,
um nobre menor da zona de Paris que tinha conhecido na Palestina e que se chamava
Simón de Montfort. De todos os modos, seu aspecto de homem de fé não fazia que o jovem
cavalheiro fosse cuidadoso sem respeito pelos mercenários. Sua estatura desmedida, sua
capacidade para suportar o peso da armadura sem nunca queixar-se e sua resistência para
beber vinho faziam do jovem espanhol um dos cavalheiros mais respeitados desse grupo
heterogêneo que se reuniu nos subúrbios de Béziers para a Cruzada.
Mas não era em todas as divisões em que havia mercenários que reinava a calma. Alguns
deles escaparam do acampamento e começaram, debaixo das muralhas da cidade, a
provocar os habitantes que os olhavam impotentes e furiosos pelas brincadeiras que
lançavam aos gritos.
—Cátaros! Hereges!

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—A morte os espera do outro lado das muralhas!
—As mulheres de Béziers se entregam a qualquer homem!
Com essas palavras se burlavam da cidade, da orgulhosa Béziers que sabia que podia
resistir o assédio por suas muralhas. A notícia da provocação desses homens correu por
todos os bairros e casas. Como não havia chefe militar nem político na cidade, os que se
sentiram injuriados tomaram o touro pelos chifres e decidiram sair para enfrentar esse
grupo que os desafiava sem nenhum pudor.
Os provocadores estavam seminus, gritavam insultos e se banhavam no lance do rio Orb
que acompanhava a cidade. Um deles, inclusive, avançou sobre a ponte como se tão só
necessitasse disso, a decisão de avançar, para entrar na cidade. Este último foi o cúmulo.
Um grupo de jovens de Béziers decidiu que tinham que dar uma lição a essas trombadinhas
que conheciam e evitavam sempre. Recolheram algumas armas, paus, pedras e um
estandarte e abriram a porta da cidade decididos a dar uma lição aos zombadores. Em meio
à rixa, os primeiros mercenários receberam os golpes, mas os outros conseguiram proteger-
se e avisar ao exército cruzado que as portas da cidade estavam abertas e que a sorte os
amparava: se conseguissem transpassar essa soleira estariam dentro da cidade sem ter
sequer que assediá-la.
Os cruzados se lançaram ao ataque frente aos olhos incrédulos dos jovens que tinham
saído para defender uma honra que já não servia de nada. Os cidadãos que observavam a
briga do outro lado das muralhas viam como o orgulho de Béziers, cidade que nunca antes
tinha sido violada por um exército sitiador, agora era avassalado com força e em menos de
um dia.
Era 22 de julho, dia da Maria Madalena.

Assediar uma cidade era uma forma digna de ganhar uma guerra. Saquear, queimar e
matar toda uma população indefesa já não parecia tanto. Não se podia dizer que havia lutas

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nas ruas: simplesmente, os habitantes de Béziers se limitavam a correr incrédulos e
horrorizados.
Os mercenários começaram a apoderar-se de todos os bens que podiam transportar.
Entretanto, os senhores desde seus cavalos com estandarte os obrigaram a deixar as coisas:
eles diriam o que e quando saquear algo. Os mercenários, ao ver sua recompensa nas mãos
dos nobres que a queriam para si, decidiram que se eles não podiam ter ninguém a teria e
começaram a incendiar tudo o que estava à sua frente.
Os guerreiros continuavam concentrados na ordem do líder religioso Amaury: matar
todos os habitantes, Deus ia salvar os que não fossem hereges.

As pessoas de Béziers tentavam escapar por qualquer lugar. Abriram uma greta em uma
muralha posterior, depois de muito esforço e alguns tropeços, à custa de concentrar todas
as energias e armas da cidade. Correu-se à voz e todos se atropelavam para poder fugir e
salvar suas vidas.
Os soldados cruzados tinham demorado a entender o que acontecia, e finalmente se
dirigiram à zona por onde escapavam e continuaram ali o massacre convencidos que a força
divina os acompanhava. Outros se dispuseram nas ruas que convergiam para o muro onde
estava a greta para não deixar passar ninguém.
A cidade estava devastada depois de várias horas de combate. A fumaça das casas
incendiadas cegava e fazia tossir tanto aos habitantes de Béziers quanto aos cruzados.
Pouco a pouco, a noite tinha estendido seu manto escuro sobre a cidade. O mar próximo
à cidade parecia o rugido de algum monstro doente de ira. As chamas em cada uma das
casas e o castelo e os mercados davam um tom terrível.
Os gritos e as correrias começaram a sossegar para dar lugar aos soluços e gemidos.
Ramiro tinha combatido como um leão e tinha feito tudo o que se esperava dele.
Postou-se nas partes da cidade em que havia uma pequena resistência: comerciantes e
pessoas dos grêmios que tinham podido reunir paus, duas ou três lanças e muitas pedras.

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Parecia um grupo fácil de atacar, mas preferia lutar pelo menos contra alguém que
apresentasse combate. Outros tão só perseguiam e matavam as pessoas assustadas que
corriam pelas ruas. Fazer isso não lhe parecia muito ligado a Deus e não achava nada digno
de um cavalheiro como ele.
Quando os focos armados terminaram, o jovem guerreiro tentou refrear o impulso
destrutivo dos mercenários. Obteve, mas só com os que estavam sob seu comando,
entretanto cavalgou por toda a cidade com a intenção de evitar que ficasse reduzida a
ruínas. Pensava nas palavras do enviado do Papa, mas não estava de acordo com isso de
matar indiscriminadamente. Tinha feito porque era a ordem que tinha, mas cada vez que
sua espada caía com força sobre algum suposto herege, algo em suas feições estremecia.
Talvez ninguém notasse porque o elmo encobria seu rosto. Era um elmo metálico,
prateado, tinha dois arcos que emolduravam os olhos e uma coluna pintada de vermelho
que ocultava o nariz que dividia seu rosto. Alguns dos golpes que tinha recebido nas
diversas lutas ficaram marcados nas amolgaduras do elmo e algumas cicatrizes que o
tinham infligido os mouros percorriam suas costas. Não tinha se dado conta da dor quando
em Jerusalém o tinham atacado por trás.
Podia, entretanto, perceber a dor dos habitantes de Béziers abandonando suas casas e
tentando ocultar-se de um inimigo que, com a desculpa da fé, não mostrava nenhum tipo
de piedade com eles. Via essa dor e seu rosto se contraía. Era um gesto instintivo,
involuntário. Entretanto, ele fechava os olhos frente à dor alheia. Não tinha problema em
lutar com outro soldado, com um infiel, com outro exército, mas parecia uma crueldade
perseguir mulheres e crianças.
A figura do jovem espanhol era vista de longe: sua estatura era descomunal e seu elmo
brilhava sob o sol. Muitos dos soldados cruzados o tinham usado inclusive como um ponto
de referência dentro da cidade, como se ele fosse um ponto mais da paisagem.
Agora, com a luz que se extinguiu, seu elmo quase não brilhava quando refletia às tênues
chamas que se apagavam sobre os escombros do que antes tinham sido casas e oficinas.

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Viu um grupo de mercenários que corriam atrás de uma mulher e uma menina de não
mais de dez anos. A mulher sangrava em um lado e os homens a perseguiam com a
intenção de matá-la. O espanhol açulou seu cavalo e foi diretamente até o grupo. Interpôs-
se entre eles e as mulheres. Elas continuaram correndo e giraram por uma ruela à direita
sem que escapassem da vista do jovem guerreiro. Falou com os homens que pareciam
desmedidos e gritou em sua língua que se retirassem.
—Basta! Eu me ocupo das mulheres!
Um deles quis enfrentá-lo enquanto os outros olhavam espectadores.
—Não me ouviu? Vá. E seus companheiros também.
Foram à contra gosto. O que tinha parado a frente quis atacá-lo, mas seus amigos o
contiveram acovardados frente à figura do espanhol, cuja sombra os sumia em um cone de
penumbra.
Cavalgou por onde tinham dobrado as mulheres e as alcançou em seguida. Pediu que se
acalmassem. Disse que queria as ajudar. A mulher duvidou. Fez um gesto de dor e segurou
o lado direito do corpo, sobre a perna. Dali saía uma mancha de sangue que empapava seu
vestido. A menina, entretanto, aproximou-se sem medo.
—Como pensa nos ajudar? —perguntou.
—Quero tirá-las da cidade. Não acredito que possam sobreviver de outra maneira.
—E por que faz isso? —interrompeu a mãe com a voz um pouco quebrada, mas firme e
decidida. Não se queixava de sua ferida e não parecia uma pessoa quebradiça e frágil.
—Não sei. —Não mentia; simplesmente não tinha certeza do porque de sua necessidade
de auxiliá-las, só sentia um irresistível impulso de resgatá-las— Subam, e as levarei para
fora da cidade.
A mulher voltou a duvidar. Por um lado se apresentava um soldado imponente que dava
ordens para salvar suas vidas. Por outro, entretanto, podia ver que o cavalheiro, por trás
desse elmo e apesar de que parecia ter estado em muitas batalhas, não tinha mais de vinte
anos. Procurou com o olhar para onde escapar e quis agarrar a mão de sua filha, mas não

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pôde: a menina correu e subiu ao cavalo sem pensar. Abraçou a armadura quente do
cavalheiro.
—Vem mãe. Vamos de uma vez.
A mulher soprou um pouco confundida e fez o esforço de subir no corcel. O jovem
espanhol ficou quieto, sem saber o que fazer. Logo procurou em seu saco uma capa negra e
a colocou sobre os ombros e cobriu às mulheres com ela.
Cavalgou pela cidade com lentidão. Elas mal se moviam. Sentia como a menina se
agarrava a sua armadura e cobriu os braços que apareciam com os alforjes. Aproximou-se
como se estivesse monitorando as tropas que já tinham dominado a zona da abertura nas
muralhas pelas quais fugiam os habitantes de Béziers. Chegou até o lugar e se agachou para
poder passar com o cavalo. A greta era larga para que passassem duas pessoas juntas, e
igualmente altas. Passou por ali e disse aos guardas que tinham ficado a postos que ia
patrulhar para tentar apanhar os que fugiram. Alguns quiseram acompanhá-lo, mas ele os
impediu.
—Devo ir sozinho. Se virem mais pessoas, se assustarão e escaparão.
Galopou até o limite do bosque que estava ao oeste da cidade. Ali se deteve. Desceram
os três e, quando estiveram sobre a terra, a mulher abriu a boca em um gesto de assombro
frente à estatura e a corpulência do jovem.
—Deixo o cavalo com vocês. A Cruzada seguirá, certamente, em Carcasona. Não vão ali.
—Obrigado - disse a mulher.
O moço tentou falar, mas não o fez. Procurou em seus alforjes uns tecidos e aplicou um
rudimentar torniquete sobre a ferida.
—Convém que lave a ferida várias vezes e que descanse, na medida do possível. —
Entregou-lhe outros retalhos que tinha para que pudesse trocar os curativos. Acomodou o
elmo: não queria que vissem seu rosto.
—Novamente obrigado. Meu nome é Helena. Espero alguma vez poder retribuir o que
fez por nós.

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A menina desceu do cavalo e brincava sem preocupações sobre o pasto. Não teria mais
de dez anos. Não podia escutar o que diziam.
—Meu nome é Ramiro, senhora. Trate de ganhar alguns quilômetros de noite e logo
descanse. Terá que repor-se para ficar bem.
Saudaram-se de longe. A menina agitou sua mão com força e sorriu. Enquanto se
afastava com sua mãe, girou seu rosto para ver a figura de seu salvador. Passaram muitos
metros até que deixou de vê-lo. Não se moveu em todo esse tempo.
Ramiro tirou, então, o elmo e fez um golpe nele com uma pedra. Voltou para a cidade e
disse que o tinha assaltado uma horda de cidadãos famintos e zangados. Todos acreditaram
na história.

Helena não fez caso ao soldado. Cavalgou toda a noite e todo o dia. Apenas parou para
que sua filha bebesse e comesse as poucas frutas que pôde encontrar no caminho. Foram
para Montaillou, um povoado rodeado de bosques e montanhas, que tinha uma ampla
comunidade cátara. Os perfeitos, líderes da religião, refugiaram-se perto dali, em
Montségur, uma fortaleza no topo de uma montanha. Helena conhecia Blanche em
Montaillou, uma amiga com a que compartilhava a fé. Blanche dirigia um lar de mulheres
cátaras. Parecia um lugar seguro e apropriado para criar sua filha.
Helena viajou dois dias sem dormir para pôr a salvo sua pequena. Mal se ocupou de sua
ferida, nem trocou as ataduras. Quando chegou a Montaillou, perguntou por Blanche e a
conduziram até a enorme casa que a mulher dirigia e que estava cheia de mulheres que
professavam a fé cátara. Helena golpeou a porta, recebeu-a sua amiga:
—Esta é minha filha Laetitia - disse antes de desmaiar.
Acomodaram-na em uma cama e uma Laetitia muda se acomodou a seu lado e segurou
sua mão inerte. As mulheres revisaram sob as roupas a ferida e viram que infeccionou,
apesar do torniquete. Limparam a área e observaram que tinham aninhado alguns insetos
que apareciam curiosos e fugiam frente às curas que praticavam à mulher.

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Laetitia ficou toda a noite sem dormir, segurando a mão de sua mãe. Olhava a ferida sem
cessar, como se quisesse memorizá-la, como se essa fosse à maneira de praticar as curas
que não podia dar à sua mãe. Não conhecia ninguém mais no mundo. Não conhecia essa
nova cidade. Olhava a ferida como uma forma de sarar a quem mais queria.
O sono a venceu perto da manhã. Despertaram os ruídos e gritos apagados das mulheres
que anunciavam que sua mãe tinha morrido.

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Capítulo 1

Carcasonne, março de 1217.

Procurou o lugar adequado e descarregou seu punho, que de longe bem podia ser
confundido com uma jarra para vinho, sobre a mesa do botequim. Vinha fazendo isso fazia
uma hora: golpeava a mesa e murmurava bem baixo. Todos no botequim o conheciam o
suficiente para saber que estava furioso e que, quando isso ocorria, o mais prudente era
não aproximar-se. O taberneiro mandou uma das mulheres verificar o que tinha
acontecido. Ela se negou em voz muito baixa, mas finalmente se aproximou e pareceu
divertido provocar um pouco o homem. Nunca tinha maltratado uma mulher e não
acreditava que essa fosse à primeira vez.
—O que tem hoje, Ramiro? —perguntou sem nenhuma ingenuidade— Acaso agora que
vão te condecorar não presta mais atenção em mim? Agora só o interessam as mulheres da
corte? —insistiu e olhou ao taberneiro com uma piscada cúmplice. Para divertir-se tinha
que provocá-lo de verdade. E sabia que sua fama de mulherengo o incomodava.
Ramiro parou e se aproximou da mulher até que ela apagou o sorriso do rosto. A mulher
retornou para onde estava o taberneiro e disse que estava nervoso pela condecoração e
soltou um sorrisinho mal audível. Via-se um pouco assustada.
Nos oito anos que tinham passado da batalha de Béziers, Ramiro tinha deixado de ser
um jovem moço com certas convicções para transformar-se em um guerreiro respeitado,
temido e querido por seus soldados. Descobriram a ajuda que ele tinha prestado às
mulheres para que escapassem da matança de Béziers e tinha estado preso por isso.
Também tinha perdido sua condição de vassalo do Rei d’Aragão pelo incidente. O único que
tinha ajudado-o era Simón de Montfort, a quem reconhecia como seu senhor.
Tinha cavalgado toda Languedoc junto a Montfort e era seu braço direito em temas
bélicos. Montfort tinha viajado de Paris como um nobre menor e empobrecido, mas, logo

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depois da batalha de Béziers e, pouco mais tarde, de Carcasona, revelou-se como um líder
valente e audaz. O Papa o tinha premiado nomeando-o Visconde de Carcasona, lugar que
antes tinha ocupado o jovem Trencavel. Logo, animado pelo poder religioso e o novo
arcebispo Arnaud Amaury, Montfort tinha excedido os limites dos territórios que lhe
correspondiam como Visconde e se lançou à conquista de novas cidades com a desculpa de
limpá-las de hereges. Cumpria com a missão evangélica de levar o cristianismo e expulsar
os Cátaros, mas também anexava territórios para si mesmo. Um tempo depois, recebeu as
terras de Raimundo VI de Tolosa, que tinha sido excomungado e despojado de seus
territórios. Em oito anos, Montfort passou de um nobre menor do norte a ser o senhor mais
importante do sul. Tinha conquistado a cidade de Tolosa e o tinha nomeado Conde dessa
região.
Ramiro tinha estado ao seu lado todo esse tempo sem questionar nem dizer nada. A
única desobediência tinha sido salvar uma mulher ferida gravemente e sua pequena filha.
Quando estavam na batalha não havia mais feroz combatente que ele e seus guerreiros.
Mas quando Montfort decidia o castigo para os hereges, ele e seus homens empreendiam a
volta a Carcasona. Não tinha participado jamais dos cruentos castigos que seu senhor
prodigalizava em nome de Deus.
Na cidade, todos conheciam e saudavam Ramiro. Sabiam de sua valentia no campo de
batalha e que sempre estava disposto a ajudar quem necessitasse. Também era conhecido
por suas conquistas de mulheres da corte e porque não faltava jamais a um ofício religioso.
Era igualmente devoto e mulherengo. Passava muitas horas no botequim, conhecia melhor
que nenhum outro às mulheres que o frequentavam e bebia sem parar como se em vez de
vinho, servissem água na jarra que subia até sua boca e logo descia bruscamente sobre a
mesa.
Esse dia, entretanto, sentou-se sem beber nada, sem recorrer a nenhuma mulher. Só
resmungava palavras e golpeava com força a mesa. Nem sequer riu como sempre fazia,

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com a tentativa de falar da mulher. Gostava de fazer duro e, quando vinham falar com ele
com temor, ria com uma gargalhada estrondosa e sapateava com seu pé direito no chão.
Continuou sentado como se nada, como se o mundo exterior não existisse: só ele, seu
punho e a mesa que recebia os embates.
—Por fim te achei Ramiro. O Bispo vai dar um sermão na porta da igreja em sua honra.
—Não penso ir, obrigado.
—Nunca faltou quando falava de você ou de seus homens, quando relatavam suas
batalhas.
—Pergunto-me se não é uma heresia dar um sermão para falar de um soldado, de um
homem com as mãos manchadas.
—Vamos, parece que está exagerando. Também irá ao banquete no castelo de
Montfort?
—Se pudesse escapar, faria.
—Quem te detém, Ramiro?
—Basta, por favor, Domingo.
—Então vamos e não se queixe.
O guerreiro obedeceu. Domingo era seu escudeiro, embora antes tivesse sido de seu pai.
Era um homem velho e que mal podia ver. Entretanto, adivinhava, sem necessidade de
olhar, o estado de ânimo de Ramiro e o acompanhava desde que era um moço que
abandonou Zaragoza para ir a uma Cruzada. Tinha comunicado a morte de seu pai dois
anos mais tarde, quando ainda estavam na Palestina. Tinha visto como um jovem Ramiro
de dezessete anos se esforçava para não chorar frente à notícia e ficar só no mundo.
Domingo foi sua família a partir de então. Ele e os homens que tinha comandado ao longo
dos anos. Quando o ancião adoecia, era Ramiro quem cuidava e velava por ele. O espanhol
respeitava as opiniões de seu escudeiro e se acalmava quando o outro o fazia entrar em
razão por meio das palavras. Para Ramiro custava muito não seguir seus impulsos:
equilibrava-se sobre aquilo em que acreditava como se fosse ouro ao alcance da mão e não

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media as consequências. Sua astúcia, sua inteligência e seu físico privilegiado: seus braços
fortes, suas costas largas, seu torso torneado pelas longas horas no campo de batalha e as
justas de cavalheiros o faziam destacar-se por sobre os outros guerreiros. Domingo,
entretanto, tinha que acalmá-lo muitas vezes e atribuía os impulsos de Ramiro à sua
juventude.
Saíram do botequim. O escudeiro se apoiou no guerreiro e caminhou a seu lado.
—Sabe? Faz quatorze anos que deixei minha casa em Zaragoza. E não posso voltar.
Expulsaram-me de lá. Às vezes penso que este é meu destino e que não tenho outra opção.
—Voltará Ramiro. Verá. Mas você é um soldado e não acredito que a vida aprazível do
campo assente bem a seu temperamento.
—Ultimamente, nada me cai bem.
—Isso é verdade.
Caminharam pelas ruas até a igreja em silêncio. A multidão que se reuniu na porta
escutava a arenga do Bispo. Quando os viram chegar, a multidão abriu espaço para deixá-
los passar. Ramiro ficou quieto, na metade do caminho, sem chegar às primeiras filas. As
pessoas voltaram para seus lugares, fechando assim a passagem que tinham aberto para o
guerreiro. Ramiro escutou o Bispo e se enfureceu. Falava de seus combates e de suas
batalhas e de como tinham sido boas para enfrentar à heresia. Enfureceu-se ao ouvir falar
outra vez dos Cátaros como se fossem a única razão dos oito anos de guerra Cruzada, de
saques e de gente despojada de seus lares. Sabia que a ambição tinha muito mais a ver com
esses oito anos. Sabia que Montfort queria ser poderoso e que cada vez o importavam
menos os Cátaros e mais as terras. Todos conheciam a situação e, entretanto, o Bispo em
Carcasona continuava falando dos Cátaros e de deter os hereges. Ramiro detestava que
invocassem seu nome para falar dos outros. Abriu espaço furioso entre as pessoas e
abandonou a congregação. Domingo o seguiu, ante o olhar das pessoas que escutavam com
desdém.

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No palácio de Simón de Montfort, onde faziam os preparativos para o banquete em
honra a Ramiro, o rumor de que tinha abandonado a arenga do Bispo não demorou a
chegar. Pulverizou-se da cozinha e foi subindo pelas salas e quartos através das criadas e
assistentes das senhoras que eram as primeiras a fazer correr uma notícia. As mulheres
sempre falavam de Ramiro. Todas conheciam sua fama e todas se aproximavam dele nas
contadas ocasiões em que estava no castelo ou na corte para algum banquete ou festa. Não
estava acostumado a pavonear-se frente às damas como outros cavalheiros e nobres.
Simplesmente, quando não estava no campo de batalha, passava de botequim em
botequim, e se conhecesse alguma senhora da corte intimamente, fazia com uma discrição
absoluta.
Diziam, entretanto, que uma vez tinha estado com duas damas em uma cidade
longínqua em que não o conheciam. As duas o tinham estado observando e, como Ramiro
se comportava como uma pessoa taciturna, acreditaram que fosse mudo. Com gestos o
levaram à casa de uma das mulheres que estavam convencidas que, como ele não falava,
não ia poder contar a história. Entretanto, como ainda duvidavam que fosse certa sua
condição de mudo, decidiram fazer a prova do gato. Esta prova consistia em colocar um
gato dentro de suas roupas. O animal começaria a arranhar e, se o homem era realmente
mudo não gritaria. Mas se fosse um engano saberiam de antemão. Contavam que Ramiro
aguentou, sem falar, os arranhões do felino e que então desfrutou de como as duas damas
se ocuparam dele, curá-lo, atendê-lo em outras atividades que se contava em sussurros.
O rumor da irritação de Ramiro com o discurso do Bispo seguiu seu caminho para os
quartos superiores do castelo e chegou à antecâmara em que Simón de Montfort debatia
com seus conselheiros. Um homem foi até a porta e escutou atentamente. Logo voltou
para onde estava Montfort e disse:
—Senhor, parece que Ramiro de Zaragoza não escutou a arenga que o Bispo fazia na
porta da igreja em sua honra.
—Devia estar com alguma mulher.

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—Não senhor. Foi até lá e saiu zangado, segundo o que contam as fontes.
—São falatórios.
—Me contou uma criada em quem tenho muita confiança.
—Confiança de que tipo, conselheiro?
—Confiança, senhor - disse e ficou um pouco avermelhado frente à pergunta insidiosa de
Montfort.
—Entendo. Confiança. O que não compreendo é no que nos prejudica que Ramiro, um
homem sempre impulsivo, saiu enquanto um bispo pronunciava um discurso para adulá-lo.
Inclusive sei que pensou para adulá-lo, porque repassou comigo os pontos que ia dizer. O
Bispo é um dos poucos aliados que temos na Igreja hoje.
—Senhor, se me permite compartilhar com você meu ponto de vista, posso dizer por que
considero perigosas essas irritações do espanhol.
—Prossiga.
—Acredito que Ramiro tem muito predicamento na tropa. Admiram-no e é um líder
indiscutível. Se tivermos em conta a situação presente, senhor, em que você está
excomungado...
—Sim, sei. Sou do norte. Vim ao sul para uma Cruzada. Não tenho o direito de
sobrenome sobre estas terras, a não ser o que o Papa me concedeu. O poder da Igreja me
fez senhor de Languedoc e, se agora a Igreja me tirar o apoio, então meu poder pode diluir-
se. Por outro lado, os homens de Ramiro são os únicos que me acompanham sempre. Cada
vez que devo conquistar um território, devo recrutar um novo exército. É verdade, então,
que sem o apoio de Ramiro de Zaragoza e de seus homens e sem o beneplácito da Igreja,
meu poder se vê ameaçado. Mas também, o espanhol deveria ambicionar meu lugar e não
acredito que o faça e, além disso, teria que pactuar com o poder eclesiástico. E, já o vê, se
não tolera o discurso de um bispo, não acredito que suporte ter que negociar com o Papa.
—Entendo o que diz senhor, mas é meu dever informar que penso que o guerreiro
espanhol continua sendo uma ameaça.

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—Sei. Uma ameaça um pouco oculta. Como sabe, estou em negociações com o
Arcebispo para que anule minha excomunhão. Prometi tornar cristã uma cidade que ele
deseja controlar. Uma cidade que hoje está, de fato, sob o comando de hereges, mas cujos
legítimos senhores são meus vassalos.
—Montaillou.
—Exato. Montaillou é um reduto cátaro que se empenham em parecer cristãos. O Prior
que morreu em janeiro era um perfeito e convivia com os Cátaros sem problemas.
—Controlar Montaillou é uma maneira de controlar Montségur, de ter perto a esse
grupo que propaga a fé cátara desde essa montanha inexpugnável.
—É verdade. Nunca pudemos acessar Montségur. Se tomarmos Montaillou, poderemos
vigiá-los de perto, dominá-los em pouco tempo.
—Suponho que o Arcebispo exigiu isto, senhor.
—Eu propus isso. A fundação de uma Abadia em Montaillou, uma forma de cristianizá-
la. Além disso, a ideia é transformar o povoado em um lugar de peregrinação: vamos
depositar uma relíquia ali, um pedaço da Santa Cruz.
—Estas ações, suponho meu senhor, o devolverão ao mais alto da cristandade.
—Só espero recuperar o apoio da Igreja e afirmar meu poder.
—E o que fazemos com Ramiro?
—Ramiro transportará a relíquia a Montaillou. Vou encarregá-lo disso depois de
condecorá-lo.
—Mas isso o transformará em um herói ainda maior que hoje, senhor.
—Não se não cumprir a missão... —disse Montfort e sorriu sinistro ao seu conselheiro.

O banquete aconteceu em um amplo salão do castelo. Serviram diversas comidas que


Ramiro mal provou. Seu escudeiro tinha ficado em uma mesa afastada da principal em que
ele estava localizado junto a Montfort e sua esposa e outros personagens da corte de
Carcasona. Faltava pouco para que começassem os discursos e o Conde apoiou uma mão

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no ombro de Ramiro e parou a seu lado. Era um claro gesto de apoio. Começou a falar e
todos os convidados pararam as conversas e a comida e escutaram atentamente. Montfort,
com sua mão no ombro de Ramiro, disse que o tinha conhecido na Palestina, quando ainda
era um moço de dezessete anos. Que, logo, o jovem espanhol o tinha acompanhado a Paris
e, dali, a Béziers. Que desde esse então não havia batalha em que não se destacou e que
tinha sido uma peça fundamental para combater e reduzir a heresia. Quando escutou que
falava de heresia, o rosto de Ramiro se contraiu marcando seus traços definidos e sem
curvas, seu cabelo negro pareceu transformar-se em uma sombra sobre suas feições e seu
olhar se voltou profundo e duro. Estava irritado e se notava. Não o importava se o Conde
apoiava uma mão em seu ombro como um gesto de respaldo. Não o importava se falavam
elogios dele. Não queria esse lugar. Era só um soldado. Mas sob nenhum conceito era um
instrumento de alguém para nenhuma tarefa.
Montfort continuou com seu discurso e disse que tinha chegado o momento de
reconhecer a tarefa de um guerreiro que com sua coragem e valentia tinha feito uma tarefa
enorme para consolidar os territórios do viscondado de Carcasona e Béziers. Contou que
tinham decidido nomeá-lo Cavalheiro Principal de Carcasona e Béziers e que tinha criado
esse título especialmente para ele. Nomeou-o então diante de todos os assistentes. Ramiro
ficou de pé e logo se ajoelhou diante de Montfort. Seu rosto não estava contente, de fato,
parecia incômodo.
Logo depois da breve cerimônia, o Conde retomou a palavra e anunciou que ia
encomendar a Ramiro uma missão à altura de seu novo título: devia transportar uma
relíquia à recém fundada Abadia de Montaillou. Não era uma relíquia menor, a não ser um
pedaço da Santa Cruz, a cruz em que tinha sido crucificado Cristo.
Depois do anúncio, que surpreendeu os assistentes, o banquete continuou com sua
litania de comida e bate-papo supérfluo. Montfort chamou Ramiro a um recinto contíguo e
lhe deu os detalhes da missão. Tinha que contatar o abade Wolfgang de Lübeck que há
pouco tempo tinha chegado a Montaillou. Deu-lhe um pequeno estandarte que o

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identificava como o portador da relíquia e uma caixa de ouro de uns doze centímetros por
seis de largura, adornada com pedras preciosas, que continha um pedaço de madeira. Esse
era o fragmento da Cruz. Aconselhou-o como chegar ao povoado e pediu que fosse sozinho.
Mais tarde o alcançariam seu escudeiro e outros homens, mas era imperioso que chegasse
o antes possível e que ninguém o atrasasse. Montfort disse que confiava nele e voltou a pôr
uma mão em seu ombro, embora desta vez tivesse que elevar seu braço para alcançar a
altura do espanhol.
Depois de dar as indicações da missão, outorgou-lhe como recompensa a sua valentia e à
sua coragem na batalha uma bolsa com moedas de ouro.
Ramiro tomou a bolsa e a relíquia e saiu do quarto rumo à rua. No salão, o banquete
continuava sem alterar-se por sua ausência. Quando saiu do castelo e se encontrou com a
cidade, respirou aliviado. Voltou a olhar a relíquia e fez o sinal da cruz sem convicção.

Domingo estava preparando o cavalo para a partida. Não tinha amanhecido ainda.
Ramiro se aproximou do estábulo e acariciou o lombo de seu cavalo e murmurou algo ao
ouvido.
—Não está convencido de fazer esta viagem, verdade?
—É verdade, Domingo.
—O caminho é perigoso para um homem sozinho.
—Não é isso o que me preocupa. Não tenho medo, sei como me cuidar pelos caminhos.
—O que o preocupa, então?
—Não sei. De repente Montfort é muito amável comigo.
—Tome cuidado. Ninguém me disse nada, mas pressinto que nada bom sai do Conde e
seus conselheiros.
—Talvez este título tenha algo a ver. Agora sou importante.

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—Já era importante. Acredito que o título de Cavalheiro só o ressaltou. Como se quisesse
que todos notassem o quanto você é importante para então te desacreditar de algum
modo.
—Não acreditei em nenhum dos gestos de amizade que fez. Aplaudia-me, tocava-me o
ombro e era como se ninguém fizesse em realidade.
—Eu tampouco o achei sincero.
Os homens ficaram em silêncio. Refletiam sobre os sucessos da noite anterior.
—Acredito que o que Montfort quer é te atacar - disse Domingo depois de um breve
lapso. Entre eles falavam em Aragão e não temiam ser escutados por ninguém.
—Me atacar? Para que?
—É uma pessoa proeminente na cidade e um guerreiro respeitado e querido por suas
pessoas. Montfort sabe que, se você quisesse, poderia rebelar seus soldados contra ele.
—Mas não quero. Não quero seu lugar.
—Ele não pode saber. Só sabe que não conta com muito apoio por parte da Igreja, as
pessoas da cidade ainda o veem como um invasor e que seu exército pessoal depende dos
homens do norte que venham participar de uma Cruzada e de você. É muito para ele. Tem
muito poder e não acredito que duvide em tentar eliminar você.
—Para que me condecorar, então?
—Talvez para que deixe de ser um herói. Converta você em um importante para depois
te transformar em um soldado raso. Teme também à lembrança que outros possam ter de
você.
Ramiro terminou de preparar seu cavalo. Encheu os alforjes, escondeu a relíquia dentro
de suas roupas e montou. Antes deu um abraço em Domingo.
—Cuide-se — pediu.
Ramiro não respondeu e começou a cavalgar para os subúrbios da cidade que ainda
dormia.

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Capítulo 2

Montaillou, novembro de 1216.

Laetitia tomava cuidado com suas mãos por causa dos espinhos de algumas ervas. Já
estava acostumada a isso e sabia como evitar se arranhar, mas sempre existia a
possibilidade de não prestar a devida atenção e suas mãos terminassem machucadas. O
bosque estava ainda um pouco úmido pela manhã, mas cheio de luz. Conhecia cada um dos
atalhos e se afastava por uma colina perto do castelo, onde se via o modesto amontoado
de casas que era Montaillou. Tinha começado a procurar ervas medicinais no bosque pouco
tempo depois de ter chegado ao povoado, pouco depois da morte de sua mãe. O Prior do
povoado a tinha acolhido quase como a uma filha natural e a pequena Laetitia, que nunca
tinha conhecido seu pai e tinha visto sua mãe morrer, aceitou-o feliz e aprendeu com ele
tudo o que sabia sobre curar às pessoas. Blanche, a regente do lar cátaro, transformou-se
em sua mãe e, assim, Laetitia tinha uma família, embora não muito típica, mas sim muito
afetuosa.
O Prior, que era um homem alto e magro, que se notavam os ossos, tinha percebido que
a menina tinha um dom para tratar e curar às pessoas e tinha ensinado a ela com muita
paciência todos seus conhecimentos de farmacêutico. O Prior reconhecia as qualidades das
pessoas só de vê-las. Seus olhos azuis eram incisivos e parecia cintilar uma luz interna. Em
Laetitia tinha visto beleza e bondade, além disso, o dom de curar. Quando a conheceu, ela
tinha tão só dez anos. Algumas primaveras mais tarde, a menina se converteu na jovem
mais formosa do povoado. Só ela parecia não dar-se conta.
O Prior e Laetitia tinham explorado o bosque juntos todas as manhãs e o religioso se
surpreendia dia a dia com a habilidade e a memória de quão pequena classificava as flores,
as ervas e os cogumelos. Sabia qual servia para qual doença e qual podia ser nociva para o

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corpo. Inclusive dava conselhos de cozinha às mulheres do lar cátaro, que também era sua
casa. O lar tinha sido um estábulo abandonado. Ali, os antigos nobres do lugar, guardavam
seus cavalos. Blanche o havia organizado com a ajuda de uma legião de mulheres que
compartilhavam sua crença. Lentamente, o velho estábulo tinha mudado para converter-se
em uma construção que continha uma cozinha, um depósito e alguns quartos. Fora tinham
construído um pomar ordenado e variado que mostrava suas cores com as alaranjadas
cabaças e os verdes caules das cebolas. As especiarias emanavam um aroma característico
que se pulverizava pelo povoado ao amanhecer. Laetitia vivia ali junto a Blanche e cuidava
dos doentes.
A comunidade se organizou entorno às duas instituições religiosas: a igreja e o lar cátaro.
A primeira se ocupava das relações com outras comunidades e trazia as notícias mais
frescas da Cruzada que açoitava a região e da organização da comunidade. Quer dizer,
atravessava nas disputas entre camponeses, cobrava uns magros impostos com os que
sobreviviam o Prior e seu ajudante; um padre que cozinhava para os pobres e se ocupava
de manter as instalações da igreja local.
A segunda, o lar cátaro, servia de refugio para um grupo de mulheres que seguia os
preceitos da seita. Refletiam sobre a doutrina e viviam de seus próprios cultivos.
Enquanto no resto da região as relações entre os cristãos e os Cátaros eram
inconcebíveis, em Montaillou viviam em uma clara harmonia. A igreja dava seus sermões
públicos e as pessoas do povoado assistiam e escutavam os conselhos do Prior sobre
cultivos e ervas e sobre como comportar-se respeitando o próximo.
De fato, a igreja comprava os cultivos do Lar cátaro e com o dinheiro que recebia do
bispado ajudava a mantê-lo. Todos conviviam bem sem que importasse muito as doutrinas
de ambos. Laetitia queria ser perfeita de acordo com a doutrina cátara e, entretanto,
adorava o Prior e não faltava a nenhuma de suas convocatórias. Por outro lado, ninguém
via uma contradição nesta particular comunidade que vivia fora das lutas e ódios da região.

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Todos compartilhavam as festas e se ajudavam mutuamente. Compartilhavam os
cultivos e os animais das granjas; inclusive o moinho era propriedade da igreja que tinha
liberado seu uso sem cobrar por isso.
Laetitia tinha estudado com o Prior tudo o que ele sabia a respeito da forma de produzir
remédios e das enfermidades. O lar cátaro se transformou em pouco tempo em um
hospital que atendia todas as questões cotidianas. Tinham construído com esforço um
andar a mais, já que o teto era o suficientemente alto e o permitia. Ao andar de cima
mudaram os quartos das mulheres que viviam no lar e na parte de baixo adicionaram os
modestos colchões de palha nos que alojavam os doentes que deviam permanecer aos
cuidados das cátaras.
Ainda adolescente Laetitia já comandava um grupo de mulheres que cuidava dos
doentes e decidia o que convinha administrar a cada um e em que dose. Nem por isso
deixava de acompanhar todas as manhãs o Prior ao bosque para procurar as ervas e juntos
discutiam e confeccionavam os preparados. Ela encontrava a maneira de cuidar dos
doentes mais diversos: desde dores de estômago até fraturas dos pedreiros ou desde
queimaduras dos ferreiros até os partos das mulheres, em especial fez os dos dois meninos
de sua amiga Miriam. As pessoas se aproximavam do lar cátaro e esperavam ser atendidos
como se fosse o mais natural do mundo. Todos colaboravam com mantimentos, porque
muitas mulheres tinham deixado os cultivos para cuidar dos doentes, e a granja do lar se
viu reduzida. Blanche, então, tinha recrutado novas pessoas para o campo e, em pouco
tempo, a comunidade de mulheres cátaras cresceu. Blanche estava orgulhosa de Laetitia, a
filha de sua amiga Helena que havia falecido fugindo da matança de Béziers. Estava
simplesmente encantada com a moça que tinha organizado um hospital que era consultado
inclusive por pessoas de outros povoados.
A fama, entretanto, não parecia bem. A fama fazia que estivessem na boca de todos e
isso podia fazer com que os cruzados ou o poderoso Montfort quisessem alterar a vida
aprazível da comunidade que não entendia de lutas religiosas nem de poder.

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Fazia vários anos que os senhores do lugar o tinham abandonado para ir com Montfort,
deixando os habitantes à sua própria sorte.
A comunidade era formada por algumas poucas casas modestas de tijolos crus. Podiam-
se ver as chaminés fumegando. A igreja era uma casa mais, talvez um pouco maior e com o
moinho ao seu cargo. Mais à frente, no alto de uma colina, estava o castelo que tinha sido
abandonado pelos senhores do lugar e nunca tinham voltado para ocupá-lo.
Ninguém queria que as coisas mudassem, porque eram felizes com sua particular
maneira de vida.

Em dezembro o Prior adoeceu. Laetitia procurou curá-lo por todos os meios, mas nada
do que sabia parecia dar resultado. Perguntou a seu professor que agonizava como saná-lo.
O velho padre lhe disse que já era sua hora de deixar o mundo. Ela, em troca, não se
resignou. Trabalhou mais que nunca com os emplastros e remédios. Provou novas
combinações e as aplicou sem duvidar. O Prior melhorou levemente e seus gemidos já não
alagavam o ar da igreja.
—Crê que melhorará? —perguntou Xavier, o padre que se ocupava da cozinha e de
ajudar o Prior nas tarefas.
—Espero que sim, Xavier - disse Laetitia com certa angústia na voz. A notava afligida e
cansada de tantas noites de dormir mal velando por seu professor e amigo. Seus belos
olhos azuis pareciam apagados, depois de tanto esforço. Estavam acostumados a ser
vivazes e alegres e combinar com as folhas das árvores no bosque.
—Deve dormir querida. —Xavier soltou uma lágrima e desceu seu rosto para seu peito
para que a jovem não pudesse vê-lo— Estou tão preocupado. Não sei o que faremos sem
ele - disse e voltou a afogar sua voz com o pranto.
Laetitia chorou também. Pensou em tudo o que o Prior tinha ensinado e que não queria
que morresse. Sentiu uma angústia em seu peito e abraçou Xavier que era baixo e gordo e

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que correspondeu rodeando-a com seus braços gordinhos. Choraram juntos, ao princípio
em silêncio e, depois, de maneira mais ruidosa.
Passaram duas semanas e o ancião Prior se recuperou um pouco. Laetitia cuidava dele
com o carinho de uma filha para seu pai, que era o que ela sentia pelo ancião religioso.
—Não se engane com esta melhora. Às vezes as enfermidades se ocultam no corpo, mas
não o abandonam.
—É por isso que tem que se cuidar, querido Prior — Laetitia sussurrou ao ouvido e lhe
deu um ruidoso beijo na bochecha.
Xavier parecia um ditador impondo um regime de comida e conduta tão logo tinha se
recuperado o Prior. Entretanto, o doente não era um paciente dócil e teimava em fazer
suas tarefas cotidianas. Recebia a todos que tivessem um inconveniente e os ajudava a
encontrar a solução.
Laetitia se enfureceu quando soube que o Prior não ficava de cama.
—Como pode deixar que ele se levante Xavier?
—Não há maneira de detê-lo, não me faz conta.
—Pois a mim sim vai obedecer — disse decidida a jovem. Era impetuosa. Toda sua figura
esbelta e cheia de curvas parecia transformar-se em uma afiada seta quando algo a
zangava. Seus cabelos loiros se transformavam em um brilho incandescente e seus olhos
azuis tomavam um brilho de fogo.
Entrou nessa noite nos aposentos do Prior e discutiu com ele. O quarto dava aos fundos
da igreja, quer dizer à horta. Era um lugar úmido e frio e despojado de adornos. Tão só as
paredes e uma pequena cama com um colchão de palha. Ao lado do leito, o Prior tinha uma
pequena mesa em que apoiava a Bíblia que lia continuamente.
Laetitia o ameaçou para que permanecesse na cama e que não tentasse se levantar.
Precisava terminar de sarar. Ocupou-se de esquentar um pouco a quarto, de tirar a
umidade que era tão nociva para os pulmões do Prior. Insistiu que se cuidasse. Disse que

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não faltava muito para que o ancião se curasse e pudesse voltar para suas atividades
normais.
—Filha, já te disse isso. Estas forças que tenho são como um último presente divino. Sei
que a enfermidade está aqui, esconde entre os humores de meu corpo. Já voltará para me
levar.
—Não é assim. Conheço o proceder frente a este tipo de doenças. As ervas são as
adequadas. Curei muitos homens com sintomas similares e conheço a evolução. Esta
melhoria é enganosa, sei, mas se ficar na cama, sarará.
—Prometo que me cuidarei. Quero falar no Natal, como todos os anos. Todos
necessitam umas palavras de fôlego.
—Veremos como se encontra. Falta uma semana. Não me defraude.
—Não o farei querida.
O Prior cumpriu com sua palavra, embora procurasse ocultar os acessos de tosse que o
atacavam todas as noites. Tinha expulsado Xavier de seus aposentos e não deixava que
Laetitia cuidasse dele. Mentia e relatava uma suposta melhoria que Xavier cuidava de
desmentir: escutava-o tossir do outro lado da porta.
—Não sabe o mal que me trata. Está de um humor de cães. Há dias que, depois de visitá-
lo e administrar os remédios, saio chorando do quarto — contou comovido Xavier ao
Laetitia.
—Não entendo o que é que acontece. Tampouco me escuta - soluçou em voz baixa a
moça. Tinha dezoito anos e quase a metade de sua vida a tinha passado junto ao Prior. Ele
tinha se aproximado com uma flor na mão, quando soube que a mãe de Laetitia tinha
morrido logo que tinham chegado a Montaillou. Perguntou a uma Laetitia que não falava se
queria acompanhá-lo ao bosque. A garota estendeu a mão e foi com ele. No dia seguinte, a
pequena o buscou na porta da igreja para que a levasse de novo. Não tinham interrompido
esse costume até a enfermidade do Prior.

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—Não se preocupe minha menina - a tranquilizou Xavier— Já o faremos criar juízo.
Devemos cuidar dele para que possa falar no Natal. Todos no povoado perguntam por sua
saúde.
—Já sei. Todos têm esperanças e me dizem que poderei curá-lo. —As lágrimas voltaram
a rolar pela bochecha da moça. Desta vez sentiu um frio que se apoderou de seu corpo. Foi
como uma premonição. Ou talvez fosse simplesmente à tristeza que a percorria quando
alguém querido adoecia. Entretanto, a sensação não tinha sido tão intensa desde que tinha
visto sua mãe agonizar e depois, morrer. Afastou esses pensamentos de sua cabeça e
prometeu a si mesma curar o Prior.
O Natal cobriu de neve o povoado e as baixas temperaturas se apropriaram das pessoas
do lugar. Todos os aldeãos se alegraram, quando o Prior anunciou por intermédio de Xavier
que daria seu sermão como todos os anos.
Amontoaram-se na igreja, que tinha um modesto tamanho, sem conflitos entre as
crenças cátaras e as cristãs. Tinham aprendido a viver em conjunto e todos estavam
preocupados com a saúde de um dos membros mais destacados da comunidade.
Blanche se sentou na primeira fila e as mulheres do lar cátaro a cercaram. Laetitia ajudou
o Prior a chegar ao altar. Falou com a comunidade como fazia sempre. Tossiu algumas
vezes, mas dissimulou para que o fizesse ver como alguém sadio. Disse aos habitantes que
era o momento de manter-se unidos, que as ameaças que se abatiam sobre os outros
povoados podiam chegar a qualquer momento a Montaillou. Tinham que ser cuidadosos.
Todos se retiraram um pouco afligidos, mas convencidos que o Prior tinha razão.

Xavier correu a toda pressa da igreja até o lar cátaro. Seu porte rechonchudo não
permitia avançar com facilidade e custava que suas pernas gordas tomassem a velocidade
que ele desejava. Chegou agitado e golpeou com tanta a força a porta do lar que parecia
que ia vir abaixo.

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—O que aconteceu, Xavier? —perguntou Blanche vestida com apenas uma túnica grossa
com a que se protegia do frio.
O homem não podia falar por sua agitação e mal murmurou o nome “Laetitia”. A mulher
correu para procurá-la, até sem saber bem o que acontecia. Conhecia Xavier o
suficientemente para compreender que não tinha se deslocado em vão.
Laetitia chegou preparada para sair. Tinha escutado os ruídos na porta e se trocou,
porque pressentia que podia ser uma emergência que tivesse que atender.
Voltou a perguntar a Xavier o que acontecia. O homem, um pouco menos agitado,
contou-lhe:
—Tem que vir à igreja. O Prior está grave. Piorou. Faz horas que não pára de tossir e
perdeu a consciência. Antes de sair para cá o agasalhei, tirei o traje suado e troquei por um
limpo e seco. Nesse momento, descobri que tinha o corpo todo ulcerado. Cheio de
pequenas pústulas em qualquer parte e machucados que pareciam ter sangrado. Nunca me
tinha mostrado isso. Estou espantado pelo que vi.
Laetitia soube que não era o momento de interrogar Xavier. Simplesmente se dirigiu à
igreja correndo. Ela sim era veloz. Xavier ficou aos cuidados de Blanche para que se
recuperasse. Concordaram que passaria a noite ali.
Laetitia chegou à igreja tão rápido como foi possível. Encontrou o Prior em seu quarto,
delirando de febre. Revisou seu corpo e viu o que Xavier havia descrito. Tinha revisado seu
corpo uma semana antes do Natal e não havia nenhuma marca. Tinham que ter saído
depois que ela o tinha visto. Irritou-se porque o Prior não havia dito nada.
—Por que me escondeu isso? —disse entre lágrimas e abraçou o corpo que agonizava.
Em sua inconsciência, o Prior moveu uma mão que pareceu acariciar a sua jovem discípula.
Laetitia secou as lágrimas e começou a aplicar os unguentos e emplastros necessários
para curar as chagas e pústulas. Sabia que isso era tão só uma questão superficial, que a
enfermidade estava debaixo da pele do Prior.

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Foi até a farmácia, onde sabia que o Prior guardava as ervas medicinais e algumas
poções e preparou uma beberagem para curá-lo.
Voltou para o quarto gélido, pessimamente iluminado por um candelabro, e a
administrou ao Prior.
Laetitia não soube se deveria rezar ao Deus cátaro ou ao cristão. Mas rezou para que o
Prior se salvasse.

No segundo dia do ano de 1217, o Prior morreu. Laetitia tinha conseguido fazer que as
chagas desaparecessem, mas não tinha conseguido fazer a febre ceder, nem que o doente
voltasse a si. Faleceu dormido, com um sorriso aprazível no rosto.
Logo depois do funeral, em que assistiu toda a população, a calma cotidiana de
Montaillou começou a transformar-se em preocupação. Quem substituiria o Prior? Seria
Xavier? Ou seria alguém de fora, alguém que não tolerasse a fé cátara?
Laetitia, entretanto, parecia alheia a todo o revoo do povoado. Passava seus dias
fechada em seu quarto e mal cuidava dos doentes do hospital.
—Não devo me culpar.
—Claro que não querida, você não podia adivinhar que o Prior te ocultava informação
como paciente.
Blanche e Xavier tentavam consolá-la, mas parecia uma tarefa impossível. Laetitia estava
abatida. Não podia compreender como a vida do Prior tinha escapado das suas mãos.
Pensava que era sua responsabilidade salvá-lo e que tudo tinha sido por sua culpa. Não se
animava ir ao bosque, porque sentia saudades da companhia de seu professor e mentor.
—Eu o perdi. É minha tarefa velar pela saúde de meus pacientes. Inclusive se mentirem
para mim - disse Laetitia, ante o olhar atônito de Xavier e de Blanche.
—Não é assim. O Prior era seu professor, sabia como te enganar. Para ele foi mais
importante falar no Natal, nos fazer saber que as ameaças estão perto de nossa
comunidade.

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—Ninguém me entende - se zangou a jovem— Já perdi minha mãe, agora o Prior que foi
como o pai que não conheci.
Um acesso de pranto se apoderou de Laetitia. Xavier correu a rodeá-la com seus braços.
A moça pôs-se a chorar sobre o ombro do religioso. Não podia conter seus violentos
soluços.
—Laetitia, me escute - pediu Blanche— Sua mãe não morreu por sua culpa. Arriscou-se
para te salvar. Recebeu os sacramentos e foi uma boa mulher. Não acredito que reencarne
imediatamente. Essa deve ser sua recompensa.
—Vi minha mãe morrer - replicou a jovem— Hoje sei como curar uma ferida como a que
ela tinha. Sei também que nunca deveria ter permitido que cavalgasse tantos quilômetros
em seu estado.
—Por favor, filha, repense. Tinha só dez anos.
—Era idade suficiente para entender. Se tivesse podido ajudar...
—Você não tem culpa. Deve aprender a aceitar - disse Xavier e passou meigamente uma
mão por seus cabelos. Não tinha deixado de abraçá-la.
Laetitia continuou chorando um bom momento. Logo adormeceu. Faltavam vários dias
para que pudesse recuperar seus ânimos e voltar para o bosque.

Em fevereiro de 1217, chegou o substituto do Prior a Montaillou. Só que não devia


ocupar o mesmo cargo. O Arcebispo se pôs de acordo com Simón de Montfort, e juntos
tinham decidido fundar uma Abadia. O substituto do Prior era, então, um abade. Como
sede da Abadia, usaria o velho castelo que os senhores de Montaillou tinham abandonado.
O castelo tinha sido um presente dos senhores do povoado a Montfort e este, a sua vez,
tinha doado à Igreja para que fundassem a Abadia. Não tinha sido um ato de bondade o de
Montfort. Simplesmente, necessitava que a Igreja voltasse a aceitá-lo entre seus fiéis, dada
sua excomunhão, e parecia uma boa maneira de reconquistar os favores do arcebispado.

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Por outro lado, Montaillou estava perto de onde se refugiavam os líderes Cátaros e à Igreja
interessava tomar o controle de uma zona próxima para tê-los vigiados.
O Abade tinha sido escolhido de comum acordo entre Montfort e o Arcebispo. Chamava-
se Wolfgang de Lübeck e tinha nascido na Alemanha. Conhecia Montfort dos tempos da
Cruzada em Jerusalém e tinha sido o padre confessor de sua esposa. O Arcebispo confiava
nas firmes ideias do jovem religioso e tinha estado de acordo em nomeá-lo Abade de
Montaillou.
Wolfgang chegou ao povoado junto com seu ajudante, um curandeiro que ia atender os
doentes.
Uma semana depois de instalar-se, o novo Abade reuniu as pessoas nos subúrbios da
velha igreja do povoado e falou. Apresentou-se aos habitantes que o olhavam com receio.
Apareceu rodeado de um séquito de monges que murmuravam todo o tempo. O Abade era
um homem pequeno, com os dentes para fora, parecidos com os de um rato e com um
olhar que se assemelhava em como as pessoas de Montaillou imaginavam ao demônio.
Vestia uma túnica negra com um rebordo dourado no pescoço e tinha muitos anéis de ouro
nas mãos. Os anéis brilhavam e deslumbravam vários dos presentes.
Todas as pessoas do povoado prometeram não dizer nada do lar cátaro nem das pessoas
que professava essa fé em Montaillou. Antes só tinham tido que dissimular para fora para
que os acreditassem cristãos. O Prior cumpria com suas obrigações com o arcebispado, mas
convivia em harmonia com os Cátaros.
—Fiéis de Montaillou - começou seu discurso o Abade— A cidade está cheia de regozijo
por ter sido escolhida como sede de uma nova Abadia que expressa à devoção ao Senhor e
representa a seu Pastor, o Papa Inocêncio III. O Senhor premia suas ovelhas, mas também
castiga sem piedade aos hereges. Eu tampouco terei contemplação com eles. A ter é um
pecado - disse com uma voz aguda e potente que aos habitantes pareceu a de um pássaro
de mau agouro.

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»Sei que conto com a colaboração de todos os habitantes desta cidade para pulverizar a
palavra do Senhor e rebater a heresia. Dispus algumas medidas para que a Abadia e a
comunidade tenham uma estreita relação. A primeira disposição será selecionar fiéis do
povoado que provejam à Abadia de mantimentos para quem viverá ali: eu mesmo, meu
colaborador e curandeiro pessoal e os monges que vieram junto comigo e o monge Xavier
que vivia junto ao Prior na igreja. Não cobrarei como é o direito da Abadia, pelo uso do
moinho, das pontes ou do sistema de rega. Este direito foi transpassado com o castelo pelo
conde Simón de Montfort. Os fiéis ao Senhor e a Igreja de Roma estarão eximidos desses
impostos, como uma amostra de minha vontade de fazer de Montaillou uma comunidade
pacífica.
Os habitantes se olharam perplexos. Havia uma ameaça nos ditos do Abade. E
demonstrava que conhecia que dentro das pessoas do lugar havia muitos crentes dos
preceitos Cátaros. Os impostos e as compras da Abadia eram seus instrumentos de pressão,
no momento.
—Também disporemos uma ala do castelo para que seja usada como hospital, para que
as enfermidades não afetem às pessoas do lugar.
Foi nesse momento em que os habitantes se olharam entre si e souberam que o Abade
não fazia nada inocentemente. O religioso sabia do hospital cátaro e tinha encontrado uma
maneira de rebatê-lo. Era o que todos temiam que ocorresse, logo depois da morte do
Prior. Não tinham outra opção que fingir se queriam conservar suas crenças sem ser
atacados. Estavam convencidos que se o Abade podia demonstrar que eles mantinham suas
crenças cátaras, desataria uma Cruzada contra a pequena Montaillou.
—Nosso Arcebispo decidiu honrar nosso povoado e transformá-lo em um centro de
peregrinação cristão. Para isso, legou-nos uma relíquia, uma parte da Santa Cruz -
continuou o Abade— A trará um soldado das hostes do Conde Montfort. E mais tarde,
formará uma guarda para custodiá-la.

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Depois de contar a respeito da relíquia, o Abade se retirou. Sua túnica negra, longa até o
chão, arrastou-se como se um animal escuro o seguisse. Acompanharam-no os monges que
não faziam outra coisa mais que murmurar.
O debate entre os habitantes estalou quando viram que os religiosos subiam aos cavalos
em que tinham chegado e se retiravam da cidade rumo à Abadia. Todos estavam de acordo
que deviam fingir que eram fiéis cristãos como queria a Igreja. A ameaça de uma guarda
armada perto do povoado os amedrontava. Tinham que impedir que se desatasse uma
Cruzada como tinha acontecido em Béziers ou em Carcasona. As mulheres choraram ao ver
em perigo seu modo de vida, os homens gritavam de fúria e rasgavam as roupas em um
claro sinal de descontentamento.
Blanche ocupou o lugar onde antes tinha falado o Abade. Era uma mulher alta e de
cabelo grisalho. Tinha os olhos mais negros que alguém já tivesse visto e uma voz doce e
cálida como o mel. Entretanto, quando falava, conseguia que todos a escutassem.
—Amigos - disse e obteve a atenção de todos— devemos nos manter unidos. Podemos
conservar nossas crenças e nosso modo de vida, se cumprirmos com todas as formalidades
dos cristãos. Sigamos com nossa fé e trabalhemos para nossa salvação. O que acontece
neste mundo não deve nos preocupar. Alertaremos aos amigos em Montségur da situação
e os líderes Cátaros não se aproximarão de Montaillou. Desse modo não nos exporemos a
perigos, nem eles se exporão.
—O que acontecerá com nosso hospital? —quis saber um homem.
—Manteremos aberto em segredo. Ocultaremos as camas atrás de alguns montões de
palha para que não as vejam e cuidaremos para que nem o Abade nem suas pessoas
entrem ali.
—Mas isso reduzirá o número de camas. O que acontecerá aos doentes que não possam
ser atendidos ali? —perguntou uma mulher.

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—Aos que não tenham enfermidades graves, atenderemos em suas próprias casas. Não
podemos correr riscos, assim faremos consultas no hospital da Abadia. Não queremos
levantar suspeitas de nenhum tipo.
Os habitantes concordaram com Blanche e puseram mãos à obra. Tinham a esperança
de poder manter seus costumes intactos. O Abade, apesar da distância que separava a
Abadia do povoado, visitava todos os dias seus novos “fiéis” e controlava tudo o que
acontecia na comunidade.
Xavier teve que ir viver na nova Abadia. Não gostava de viver ali, longe de Laetitia a
quem queria com loucura. Também Xavier devia conviver com o curandeiro que era um
homem áspero, que mal falava a língua da região, e cujo aspecto o assustava. Tinha um
nariz enorme e caminhava curvado. Vestia sempre negro e olhava de esguelha às pessoas
com as que falava; nunca diretamente à cara.
As poucas vezes que baixava ao povoado, Xavier se reunia em segredo com Blanche e
Laetitia e as mantinha informadas dos planos do Abade. Tentava não ser descoberto, posto
que Wolfgang parecia ter olhos em todos lados e uma rígida ideia a respeito de como dirigir
uma comunidade.
O primeiro que organizou Wolfgang foi à cozinha da Abadia. Xavier tinha que cozinhar
para todos os monges e um prato especial para o Abade e seu curandeiro, tarefa que o
deixava exausto.
Wolfgang comprava e pagava pontualmente os mantimentos que vendiam a ele as
pessoas do povoado. Sabia que se queria transformá-los em seus paroquianos, tinha que
ser uma figura importante para eles. Se os habitantes dependessem economicamente da
Abadia, então olhariam com outros olhos os conselhos e pedidos do Abade.
O hospital da Abadia era dirigido pelo temível curandeiro e assistido pelos monges de
clausura.
As pessoas do lugar, tal como tinham concordado com Blanche, começaram a ir à Abadia
para consultar a respeito de suas doenças. Wolfgang tinha ordenado que antes de receber

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a atenção correspondente se confessassem e recebessem os sacramentos cristãos que ele
mesmo se ocupava de administrar. Era sua maneira de pulverizar a doutrina.
Quando no fim de fevereiro uma gripe açoitou Montaillou, o Abade soube com certeza
que os habitantes recorriam a outro lugar além da Abadia para curar-se. Era óbvio: uma
grande quantidade de camponeses não tinha podido entregar sua mercadoria à Abadia a
tempo por causa da gripe, mas nem a metade deles tinha ido se consultar.
Wolfgang castigou Xavier, porque este último não quis revelar nada.
—Vou encontrá-los de todos os modos, estúpido folgazão - vociferou frente a um Xavier
que derramava lágrimas de medo, mas que, por sua vez, não deixava de enfrentá-lo.
O Abade desceu para o povoado cheio de ira. Sabia qual era o lugar que sempre tinha
parecido suspeito. Essa espécie de pomar comunitário em que trabalhavam as mulheres
viúvas e seu misterioso celeiro sempre tinha despertado intriga. As mulheres nunca o
tinham deixado passar, sempre se desculpando de mil maneiras corteses diferentes.
Foi diretamente até ali e exigiu ver o famoso celeiro ao que nunca lhe davam acesso.
Não tiveram mais remédio que deixá-lo passar. A gripe o tinha deixado transbordando de
doentes e não podiam atender nas casas de cada um. Havia tornado a colocar as camas e o
hospital do lar estava repleto de gente.
—Esta tarde os doentes serão transferidos à Abadia - disse Wolfgang com sua voz aguda
e potente— O celeiro será acondicionado como tal no término de dois dias ou será
queimado.
—Você não pode fazer isso. —O Abade escutou o grito e quando girou a cabeça para ver
de onde provinha viu uma formosa moça cujo cabelo dourado o deslumbrava e cujos olhos
azuis pareciam da cor do fogo pela ira que a embargava. Laetitia o olhava do outro lado do
quarto desafiante.
—Claro que posso. E proíbo que alguém que não esteja autorizado por mim se dedique a
cuidar dos doentes.

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—Você não tem a autoridade para me dizer o que fazer. Não é meu senhor. De fato, não
há nenhum senhor em Montaillou. Ninguém se ocupa de nós.
—De sua vontade se ocupará Deus e, talvez, os soldados cruzados - lhe respondeu
Wolfgang em tom ameaçador— Eu apenas me ocupo das coisas da Igreja aqui. Este lugar
deve ser desmantelado, como já disse. Os doentes devem ser curados como cristãos. Se
não for assim, se continuar a exercer como curandeira, moça, então começarei a pensar em
minha igreja e cobrarei a todo aquele que queira usar o moinho ou as pontes ou somar-se
ao sistema de rega. Essa é minha faculdade. Poucos camponeses sobreviverão ao
esgotamento que representam esses impostos. E claro, para suas amigas, as que habitam
esta casa, a taxa a pagar será o dobro. Como vê, não posso com sua vontade, mas de sua
vontade dependem muitas pessoas.
Os lábios sensuais e carnudos de Laetitia se avermelharam ainda mais quando os
mordeu para não responder ao Abade. Blanche interveio e prometeu colaborar. Laetitia
chorou de raiva, mas não voltou a pronunciar uma palavra. Wolfgang se retirou com um
sorriso nos lábios, esse sorriso que a todos parecia o sorriso do demônio.

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Capítulo 3

Montaillou, março de 1217.

Desceu do cavalo, depois de uma longa jornada atravessando Languedoc. Ramiro tinha
saído à só dois dias de Carcasona e se dirigia a Montaillou com a relíquia entre suas roupas.
Vestiu-se como um comerciante, porque não queria chamar a atenção. Os guerreiros como
ele não estavam acostumados a viajar sozinhos, a não ser com seus guerreiros. Tentava
passar despercebido nos caminhos, mas as pessoas notavam que não era um comerciante a
simples vista. Era muito alto e fornido. Não tinha a maneira de falar de um vendedor, nem
mercadoria para vender. Seu corpo estava torneado pelos exercícios e as batalhas e seus
braços pareciam capazes de dobrar o ferro e forjar suas próprias espadas.
Tampouco seu rosto parecia o de um comerciante. Tinha um olhar profundo e, quando
entrava em um botequim ou passava por uma cidade, escrutinava a cada um dos que o
rodeavam com seus olhos negros. Sua vista era aguda e quase nunca se enganava quando
analisava um possível competidor. Com tão só olhá-lo, podia determinar quais eram as
habilidades do outro ou se era sincero quando falava.
Sua voz estava acostumada a sobressair por sobre a dos homens normais. Nisso sim
podia ser considerado um comerciante, mas sua maneira de falar, dando ordens secas e
breves, distanciava-o do grupo de vendedores que estavam acostumados a usar frases
longas e arengas para despertar a atenção dos habitantes das diversas cidades pelas que
circulavam oferecendo suas mercadorias.
Ramiro decidiu descansar uma noite em Puivert, uma localidade leal a Montfort, que
ficava a poucos quilômetros de seu destino: Montaillou. No dia seguinte, pensava estudar
um caminho atravessando o bosque entre ambos os povoados. Não queria expor-se pelos
caminhos principais que estavam infestados de ladrões. Não tinha medo de um

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enfrentamento com alguns trombadinhas, mas sua missão consistia em proteger à relíquia
e não arriscá-la em uma possível briga.
Entrou em um botequim e procurou alojamento. Quando deram uma cama, uma espécie
de cama de palha em um estábulo decidiu voltar para o salão e comer algo. Havia um par
de mesas nada mais e um atendente que se ocupava de servi-las.
—É novo nesta rota? —perguntou o taberneiro.
—Sim, é a primeira vez que faço este trajeto - respondeu Ramiro, tentando fazer com
que sua voz não fosse estridente e imitando o jargão dos comerciantes.
—Dei-me conta, porque nunca tinha visto você por aqui.
Ramiro sorriu e esperou que o homem não quisesse continuar a conversa. Enganou-se.
—Vai para onde?
—A Montaillou. —Ramiro tinha pensado em mentir ao taberneiro, mas supôs que não
havia nada de mal em dizer a verdade e, talvez, obter informação sobre os caminhos. Já
que se via obrigado a conversar com o homem para sustentar seu álibi, então que o bate-
papo fosse de proveito.
—Montaillou. Parece que com a nova Abadia a cidade se restabeleceu. Até
recentemente, quase não chegavam comerciantes ali. O que vende?
—Um pouco de tudo.
—Ah, já vejo, não quer contar. Deve ser algo muito valioso. Cuide-se, então, pois os
caminhos estão infestados de ladrões, alguns inclusive se disfarçam de camponeses para
roubar aos comerciantes.
Ramiro não podia dizer que conhecia os ladrões de caminhos, porque os tinha
combatido e inclusive os utilizado para suas tropas.
—Terei em conta seus conselhos - respondeu em uma voz tênue, tão incomum nele que
se surpreendeu.
Pediu uma segunda jarra de vinho; podia beber tanto quanto quisesse e poucas vezes se
embebedava. Era a inveja de todos seus soldados por isso.

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—Diga taberneiro, qual considera que é o melhor caminho para chegar a Montaillou?
—Deve ir pelo que sai ao sul de Puivert e chegará diretamente. Entrará no povoado pela
parte oposta à nova Abadia.
Ramiro agradeceu a informação e comeu o que ficara em seu prato com uma velocidade
que assombrou ao taberneiro que ficou olhando-o como se fosse um espetáculo. Pagou o
jantar e a noite de estalagem.
—Partirei amanhã antes que saia o sol - disse a modo de explicação. Desta vez sua voz
soou forte, decidida, como era sempre.
Ramiro deixou uma pequena gorjeta que o taberneiro agradeceu com uma excessiva
reverência.
O soldado se deitou na cama entre outras pessoas que estavam de passagem.
Desembainhou uma adaga que guardou entre suas roupas, por cima da relíquia. A túnica
que levava posta era o suficientemente ampla para dissimular ambas as coisas. Tentou
descansar um pouco, embora sempre estivesse alerta. Qualquer ruído, por mais leve que
fosse, o despertava e o fazia levar as mãos à adaga. Três pares de olhos, entretanto,
simulavam estar fechados, mas o observavam sem fazer o menor ruído.

Laetitia acatou a ordem do Abade. Não voltou a atender os pacientes e o lar cátaro
começou somente a albergar mulheres viúvas ou órfãs. Sobreviviam com o que cultivavam
elas mesmas. A Abadia comprava muito pouco, o suficiente para dizer que adquiria bens de
todos os produtores de Montaillou, mas não tanto para que as mulheres do lar pudessem
viver dessas vendas. Comiam seus próprios cultivos e tinham uma vida ascética, de acordo
aos mandatos da religião cátara. Laetitia continuava fazendo seus preparados e indo ao
bosque para procurar as ervas e bagos com que experimentava.
Blanche às vezes a seguia e a observava trabalhar em solidão no bosque. Estava
preocupada com a jovem e como estava sozinha. Laetitia tinha se transformado em uma
mulher formosa, os moços do povoado mal podiam dissimular seu rubor quando estavam

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frente a ela. Entretanto, nenhum a abordava, talvez pelo respeito que impunha. Como
tinha o poder de curar às pessoas, os jovens se mantinham à distância, temerosos dos
conhecimentos de Laetitia. Ela tampouco fazia muito por participar das festas e interagir
com gente de sua idade. Sua amiga Miriam, que estava casada, insistia em recomendar que
prestasse atenção nos moços. De fato, muitas vezes se oferecia para arrumar encontros
para que Laetitia encontrasse um marido. Dialogava com Laetitia no pomar do lar, onde
ambas se ocupavam dos cultivos de especiarias. Agachadas sobre as plantas, as amigas
falavam em um tom que parecia com o de uma reza.
—Não quero - dizia sempre Laetitia.
—Mas, por quê? —queria saber sua amiga.
—Não me interessa. Não tenho intenções de perder meus passeios pelo bosque ou meu
trabalho cuidando dos doentes.
—Agora não pode cuidar deles. O Abade proibiu.
—Não importa, aperfeiçoarei minha técnica, então.
—Sempre tem que ser tão teimosa! —zangou-se Miriam— Você perde! Pierre é um bom
moço e muito atraente.
—Poderia vir me falar ele em pessoa de suas intenções.
—É que você o intimida, Laetitia! Todos têm medo, porque sempre os recusa e ameaça
os envenenar!
Laetitia riu. Era verdade que usava essa ameaça quando um homem ficava muito pesado
com suas propostas. Ela também pensava que Pierre era um bom moço e arrumado
também. Entretanto, faltava-lhe algo. Não é que Laetitia pudesse precisar o que é que
faltava a Pierre, mas sim, simplesmente, percebia. E estava acostumada a insistir que queria
ficar sozinha. Dizia que queria chegar a ser uma perfeita, o máximo grau de hierarquia na
religião cátara. Para isso devia seguir um estrito regime de comidas, mas também não
sentir-se atraída pelos homens.

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Blanche, que tinha substituído à mãe de Laetitia quando esta morreu ao chegar a
Montaillou, estava acostumada a falar com a jovem todas as noites. Laetitia se preparava
para deitar-se e Blanche cuidava de penteá-la. Sentava-se em um pequeno tamborete
pintado de branco e deixava que a jovem se acomodasse na beirada da cama, lhe dando as
costas. Blanche, que era a “mãe” de todas as que viviam no lar, falava enquanto se ocupava
do cabelo da jovem:
—Às vezes, não sei por que recusa aos convites que faz Miriam.
—Blanche, sabe que não tenho interesse. Quero consagrar minha vida a ser uma
perfeita, como você. —Laetitia tinha que virar para ver o rosto de sua interlocutora que,
com doçura, girava seu rosto para frente para poder continuar com sua tarefa.
—Sei. Mas eu me casei. Desde que enviuvei me dediquei a observar as regras da religião
cátara e administrar este lar.
—Eu quero permanecer aqui, contigo. Ajudar-te com o lar.
—Miriam também me ajuda e, entretanto, está casada.
—Mas eu não quero me casar. Desejo me consagrar à religião. Se fizer isso, não voltarei
a reencarnar e ter que sofrer o que acontece neste mundo.
—Você pode ajudar a não reencarnar mais, mas não decide quando terminam. Talvez,
rechaçar uma oportunidade de ser feliz com um homem não te ajude a sair do ciclo de
reencarnações.
—Sabe que não é assim. Não é o que dizem os perfeitos Cátaros em Montségur.
—Só sei que cada um tem um caminho marcado. Você é muito formosa e os homens
sabem. Se não os espantasse com supostas poções...
Laetitia se divertia atemorizando os jovens que acreditavam que podia transformá-los
em animais com suas beberagens. Queria muito a Blanche, mas não pensava ceder em suas
convicções. No fundo de seu coração, estava assustada ante a possibilidade de relacionar-
se com um jovem do povoado. Tinha medo. Ela tinha tido que criar-se sem um pai.

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—É pelo que aconteceu à sua mãe, verdade? —perguntou Blanche que podia identificar
cada um dos rostos que Laetitia punha e que reconhecia quando ficava melancólica
pensando em sua mãe.
—Sim - aceitou a jovem.
—Não tem que acontecer com você o mesmo que a ela.
—E não me acontecerá, porque continuarei sozinha aqui, junto às demais mulheres,
ajudando no lar.
Esse era o tipo de resposta que indicava a Blanche que devia para com a conversa.
Laetitia podia ser muito obcecada. A mulher sabia que esse era o momento de dar boa
noite e deixar que dormisse, depois de ter penteado com cuidado o comprido e loiro
cabelo.

Os olhos esperaram que Ramiro se levantasse e partisse. Viram-no seguir o caminho do


sul, o mesmo que tinha recomendado o taberneiro. Os homens o seguiram a uma distância
prudente. Parecia previsível o percurso que Ramiro estava fazendo. Calcularam que até o
entardecer podia estar em Montaillou. A missão dos homens era impedir que isso
acontecesse.
Detiveram-se quando as montanhas que se interpunham entre as duas cidades ficaram
atrás. Agora só faltavam os quilômetros do atalho que bordejava o bosque. Os homens
desceram de seus cavalos e discutiram:
—Temos que emboscá-lo. Há um lugar ideal, quando o caminho dá a volta. Podemos
tomar um atalho pelo bosque. O ponto que acredito conveniente é uma curva estreita e
rodeada de árvores por ambas as partes.
—Não nos verá chegar.
—Temos que nos preparar com tempo. Devemos roubar a relíquia. As instruções de
Montfort foram precisas. Temos que nos apossar do pedaço da Santa Cruz e, quando a
notícia se dispersar, restituí-la à Abadia. Trata-se de desprestigiar a fama de Ramiro.

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—E de matá-lo.
—Mas é importante que sua memória fique manchada. O Conde não quer que morra
como um herói.
—Devemos nos apressar. Ainda nos leva um pouco de vantagem e teremos que dispor
de tudo para a emboscada.
Empreenderam a viagem até a zona onde ia ser a cilada. Entraram no bosque, girando
para a direita para chegar à curva que os ladrões preferiam.

Laetitia estava acostumada a entrar no bosque. Cada vez se afastava mais do povoado
para procurar os elementos que necessitava para seus compostos. Os remédios que ela
fazia tinham várias formas de ser preparados. Aos métodos tradicionais como a decocção, o
fervor das ervas, a infusão, a maceração, ou a simples extração dos conteúdos aquosos de
certas plantas, Laetitia tinha agregado álcool à destilação. Acreditava no novo princípio da
quinta essência, quer dizer, o princípio que permitia a cura e era o espírito das ervas e
plantas. A quinta essência se obtinha através do álcool, que era a sua vez, a quinta essência
do vinho.
Como já não podia fazer seus preparados no lar porque o Abade ia todos os dias
inspecioná-lo, Laetitia levava todos seus implementos ao bosque e trabalhava ali. Usava sua
marmita e acendia um fogo para os diversos compostos. Logo, punha-os em frascos e os
levava ao povoado, à parte secreta do lar em que tinha sua farmácia.
Ramiro tinha perguntado o caminho ao taberneiro, para poder saber se alguém o seguia.
Não queria revelar seus atalhos através do bosque nem a rota que já tinha riscada desde
que tinha saído de Carcasona. Decidiu fazer o percurso que propôs o taberneiro para ser
por um tempo um alvo fácil. Quando o caminho deixou atrás às montanhas, entrou no
bosque, girando para a esquerda. Sabia que para o outro lado se chegava a uma curva
aonde seria uma presa fácil para uma emboscada.

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Avançou entre as árvores até que soube que se encontrava perto do povoado. Então a
viu.
Laetitia estava tão concentrada em sua busca que não notou a presença de Ramiro que a
observava a poucos metros de distância. Tinha saído em busca de uma flor em particular.
Servia para fazer um elixir muito poderoso. Crescia uma vez ao ano graças ao efeito
umidificador das águas do degelo. Surgia entre as rochas a partir da umidade que gerava o
degelo e se estirava para o céu, orgulhosa. Todas as suas pétalas eram brancas e se abriam
de seu centro.
Ela queria essa flor para fazer o elixir. Tinha esperado todo o ano esse momento e não ia
desperdiçar a oportunidade. Viu um exemplar perto da beirada, entre duas rochas.
Ramiro a olhava extasiado. Não tinha conhecido uma mulher que captasse sua atenção
dessa maneira. Ficou admirando a figura de Laetitia, seu cabelo loiro, seus lábios vermelhos
e carnudos, seus olhos de um verde tão intenso que se confundia com as copas das árvores
e o corpo que se escondia sob seu vestido de cor clara e que ele podia adivinhar de sua
posição em cima do cavalo. Concentrou-se tanto na moça que não escutou as vozes que
murmuravam escondidas entre os arbustos, muito perto dele.
Os homens que deviam emboscar Ramiro o esperaram em vão na curva do caminho.
Quando compreenderam que já não chegaria decidiram investigar os percursos
alternativos. Cruzaram o passo e tomaram o bosque pelo lado esquerdo da rota e entraram
entre a floresta para procurar o soldado que transportava a relíquia. Tinha muita vantagem
deles e não tinham mais muitas esperanças de encontrá-lo. De fato, conversavam entre
eles que desculpa dar ao Abade, a quem tinham que reportar-se, segundo tinha pedido o
próprio Simón de Montfort.
Aproximaram-se do povoado. Deveriam estar a não mais de três horas de lá. Em uma
clareira do bosque viram duas pessoas, um homem a cavalo e uma mulher que fazia
malabarismos para não cair na água enquanto tentava arrancar uma flor de entre as rochas.
Riram da situação, mas logo observaram com atenção os curiosos personagens que tinham

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perto e ficaram boquiabertos. O homem era Ramiro. Não podiam acreditar em sua sorte.
Estavam em um lugar ideal para atacá-lo, só tinham que atuar com cautela. Desceram de
seus cavalos e se ocultaram atrás de umas árvores. Logo, eles mesmos se esconderam atrás
de uns arbustos próximos. Só queriam aguardar o momento preciso e poder observar o que
jogava a moça a que consideraram muito bela, por certo.
Laetitia se esticou para alcançar a flor. Cuidava de cada detalhe, não podia arrancar
nenhuma pétala, porque para o elixir necessitava da flor completa. Queria preparar essa
poção que ia ajudá-la em seu caminho para ser uma perfeita. Esticou-se para alcançar o
caule que surgia entre as rochas. Não estava muito longe, mas parecia que escapulia. A
água do riacho descia com fúria, porque o degelo já tinha começado. Fez uma última
tentativa para tomá-la entre os dedos. E caiu à água.

Ramiro a estava observando e se deu conta do perigo que corria Laetitia caso golpeasse
contra alguma das rochas. Açulou seu cavalo e avançou velozmente em direção a ela, que
tentava flutuar na água como um ramo durante a tormenta. Laetitia tinha a flor na mão e a
estendia por cima de sua cabeça para tentar que não se molhasse. Se isso acontecesse,
perderia as propriedades e não poderia fazer o elixir. Ramiro desceu do cavalo em um só
movimento e caminhou arroio abaixo. Ajoelhou-se na beirada e rapidamente apanhou
Laetitia com seu braço direito. Ela chocou em uma primeira instância contra ele e se
inundou um pouco, o suficiente para que a flor ficasse sob a água. Ela não compreendeu
bem o que acontecia em um primeiro instante, mas logo se agarrou a esse braço fornido e
grosso que a sustentava.
Ramiro ficou de pé e a elevou, tirando-a da água para depositá-la sobre a terra da
beirada. Ela ficou sentada, e girou para ficar frente a ele. Teve que virar seu pescoço para
trás para olhá-lo nos olhos. Seu coração pulsava agitado e ela tossia afogada pela
quantidade de água que tinha engolido em sua tentativa de salvar a flor. Sabia que ter
caído na água gelada a tinha sobressaltado; mas também intuía que a presença inesperada

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desse homem tinha sua participação nas batidas de seu coração, mais ainda considerando
ela completamente empapada e que seu vestido não fazia mais que remarcar a forma de
seu corpo.
Ramiro estendeu a mão. Ajudou-a levantar-se, levantou seus braços por sobre sua
cabeça e bateu suave, mas firmemente nas costas para que terminasse de expulsar a água
com a que se engasgou. Ela tossiu e soltou um pequeno gemido, provavelmente a causa da
agitação, mas isso bastou para que o sangue de Ramiro fervesse. Tinha estado observando-
a e agora o contato com o corpo da moça o tinha aquecido. Ramiro escutou murmúrios
surdos atrás deles e aguçou o ouvido: sentiu o som apagado de passos sobre as folhas
caídas do bosque. Passos que se aproximavam.
—Obrigado - disse ela, e o olhou nos olhos. Notou uma apenas perceptível cintilação em
seu olhar, algo mudou subitamente.
Uma ideia sulcou o pensamento de Ramiro. Duvidou uma fração de segundo, mas depois
soube que tinha que fazê-lo. Tomou-a pela cintura e a beijou. Um beijo intenso nos lábios
surpreendidos da moça que fechou os olhos instintivamente e ficou paralisada. Ela sentiu
uma rajada de calor que parecia secá-la. Um calafrio a tomou de surpresa. Um comichão
que percorreu seu corpo de ponta a ponta. O guerreiro não perdeu tempo e, enquanto
beijava Laetitia, deslizou a relíquia no bolso onde ela guardava suas ervas.
—Agora vai. Rápido! —ordenou ele.
Ela pareceu confundida, como se não entendesse o que acontecia. Até que por trás do
ombro de Ramiro viu três homens que se aproximavam com suas espadas desembainhadas.
O guerreiro girou e com seu corpo cobriu Laetitia que permanecia imóvel atrás dele.
Aproximou sua mão à cintura e mediu o punho de sua arma. Ramiro girou para Laetitia e ao
vê-la ainda paralisada a suas costas, buscou-lhe o olhar com urgência e gritou:
—Vai!

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Capítulo 4

O cavalo saiu correndo depois de ver Laetitia correr. Ramiro girou e enfrentou os
homens. Tinha-os escutado quando ajudou a moça. Tinha tido que escolher: ou a apanhava
na água e impedia que ela se machucasse ou enfrentava os que o estavam seguindo. Não
duvidou. A moça o tinha cativado. Os homens que tinha em frente eram mercenários,
soldados contratados para qualquer exército.
Ramiro se via como um gigante ao lado dos atacantes. Ao princípio, ficaram quietos, sem
atuar, com as espadas nas mãos, medindo cada gesto de seu oponente. Decidiram rodeá-lo
antes de começar a atacar. Então, equilibraram-se sobre Ramiro. Pôde repelir a primeira
investida. Os golpes das espadas ressonaram no bosque, entre as árvores que eram o
público da briga.
Laetitia se afastou o suficiente para ficar fora da cena. Via-os ao longe e distinguia
Ramiro por sua altura. Buscou no bolso de seu vestido, porque o sentia pesado. Encontrou
uma caixa de ouro com um pedaço de madeira dentro dela. Identificou em seguida o
objeto. Era a relíquia. Então, o homem que a tinha beijado tinha deslizado a caixa em seu
bolso durante o beijo. Tocou os lábios. Esse homem era o emissário de Simón de Montfort.
Um inimigo pensou. Alguém que ajudaria a transformar sua comunidade em um centro do
cristianismo. Escondeu a relíquia no oco de uma árvore velha, talvez já morta. Prometeu
que não a encontraria com facilidade, ela não permitiria que os planos do Conde e do
Abade para sua comunidade chegassem a se realizar. Escondeu o cavalo que a tinha
seguido e observou a briga com atenção. Ainda devia a vida àquele homem. Embora fosse o
inimigo. Embora a tivesse beijado e ela sentisse fúria por ter fechado os olhos para recebê-
lo. A fúria era consigo mesma, mas nunca ia admitir. Era mais simples odiar outra pessoa.
Espiou por entre as árvores os homens que brigavam ao longe. O que viu a fez estremecer.

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Os assaltantes voltaram ao ataque, apesar de Ramiro conseguir repeli-los com facilidade.
No último ataque, um deles, o mais ágil, se posicionou por trás do guerreiro espanhol e
afundou a espada por seu lado direito. Foi um corte profundo, à altura da cintura. Não
conseguiu afundar o fio pelas costas, porque Ramiro se virou oportunamente, embora não
pôde evitar que o ferissem. Os outros dois atacantes avançaram quando o viram sangrar.
Tentaram derrubá-lo. A tarefa não era simples, porque Ramiro combatia. Mas suas forças
iam minguando pela perda de sangue e seus olhos começaram a fechar-se pouco a pouco,
como se um torpor se apoderasse dele e tornasse torpes seus gestos. Uns segundos depois
caiu. Seu corpo golpeou o chão e provocou um estrondo igual ao que teria causado uma
árvore ao cair.
—Reviste-o - ordenou um dos homens.
—Aqui não há nada - respondeu o menor que buscava entre as roupas de Ramiro.
—Não pode ser, procure melhor. —O líder deu uma nova ordem.
O outro a acatou e rompeu as roupas com um pouco de esforço. O que tinha
permanecido calado se ajoelhou sobre o peito de Ramiro e ajudou à inspeção. Tiraram o
calçado e olharam ali, embora parecesse pouco provável, já que se tivesse escondido a
relíquia ali, não teria podido caminhar com facilidade. Revistaram o lado da túnica, onde as
calças se ajustavam e tampouco acharam nada.
—Não está com ele. Talvez no cavalo...
—O cavalo, revistei eu mesmo, enquanto ele dormia na estalagem em Puivert.
—Talvez a tenha colocado ali depois que saiu.
—É muito inteligente - disse o menor— Enganou-nos uma vez no caminho e agora nos
dá esta surpresa.
O líder chutou Ramiro que soltou um gemido apenas audível.
—Tínhamos que entregar a relíquia. Não nos pagarão se não a entregarmos ao Abade.
—Para que a quer o Abade? Acaso este soldado não ia levar a ele? Para que a roubamos
então?

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—Não sei. Talvez não queiram que ele —o líder voltou a chutar Ramiro— a entregasse.
Talvez seja uma forma de fazê-lo ficar como um inútil.
—Mas pôde esconder a relíquia. Então, não é um inútil.
—O inútil é você - disse o líder e deu uma cabeçada ao que tirava conclusões.
—É que não entendo.
—Eu tampouco, mas não nos pagam para entender.
—Agora, sem a relíquia, nem sequer nos pagarão.
—Veremos a forma de obter que nos paguem. Talvez a moça...
—Frescuras! A moça não tem nada a ver.
—Mas ele a beijou, chefe.
—Isso não quer dizer nada.
—Também teria gostado de beijá-la - disse o menor dos três.
—E a mim - opinou o das perguntas.
—Basta! —calou-os o líder— A moça fugiu. Não é tão má ideia se a seguirmos.
—Pegaremos a moça agora, chefe.
—Agora não. Deixemos que volte para sua casa, ali poderemos atuar. Devemos observá-
la com cuidado.
—Ah! Eu gosto de observá-la - disse o pequeno.
—O que fazemos com ele, chefe?
—Sem cavalo e com a moça assustada, não acredito que ninguém o ajude. Deixemos que
o bosque cuide dele - respondeu o chefe e riu.
—Iremos ver o Abade?
—Não até que não tenhamos a relíquia em nossas mãos.

Laetitia permaneceu afastada, enquanto os atacantes discutiam o que fazer e chutavam


Ramiro. Fechou os olhos com cada agressão ao homem caído e estremeceu da mesma
maneira que ele fez, quando viu que a espada de um dos homens o cortava perto da

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cintura. Permaneceu em seu esconderijo, embora lamentasse não poder escutar o que
falavam os três malfeitores.
Depois que esteve certa que os homens partiram, aproximou-se com cuidado de Ramiro.
Levava a cavalo pelas rédeas. Era sua única esperança de levá-lo até Montaillou. Tinham
umas boas horas de caminhada pela frente.
Aproximou-se dele e o inspecionou. Reconheceu o tipo de ferida em seguida. Era muito
parecida com a de sua mãe antes de morrer. Fechou os olhos. Um calafrio percorreu seu
corpo. As imagens apinhavam em sua cabeça. Por um lado, a morte da mãe tantos anos
antes, a agonia no lar cátaro umas horas depois de ter chegado a Montaillou, sua esperança
de menina de que sua mãe se salvasse; sua fé em que a cura ia chegar milagrosamente, o
lar cátaro cheio de gente estranha para Laetitia então; tudo isso se reunia em sua mente e
se amontoavam atrás de seus olhos em forma de lágrimas. Por outro lado, via Ramiro e
sabia que podia ajudá-lo. Se mantivesse a calma. Recordava-se do procedimento.
Recordava como a tinha salvado da queda no riacho. Como suas mãos fortes e grandes
tinham rodeado sua cintura com firmeza. Recordava também o beijo, fugaz, e seus lábios
preparados para recebê-lo, como se o tivesse beijado todos os dias sempre.
—Tem que se acalmar, Laetitia — pensou em voz alta.
E foi o som de sua voz que o fez dizer algo. Ou talvez não tivessem sido palavras as que
saíam da boca de Ramiro. Talvez tenha sido apenas um gemido.
Procurou os materiais necessários com rapidez. Conhecia as espécies que no bosque
cresciam ao pé do chão. Aplicou um unguento na ferida e a enfaixou. Tentou que não
perdesse mais sangue. Observou que as roupas de Ramiro estavam perdidas. Os atacantes
as tinham rasgado procurando a relíquia, pensou. Utilizou parte dessas tiras de tecido para
terminar o torniquete. O peito do homem que tinha diante de si era amplo e marcado pela
musculatura. Observou-o com cuidado. Estava acostumada a atender camponeses que
acostumavam ser pouco robustos; e bem mais baixos e magros. Nunca tinha visto alguém

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desse porte. Surpreendeu-se olhando-o mais da conta. Depois pensou que era um homem
forte e que ia resistir.
Procurou os sais no bolso de seu vestido. Sempre os tinha com ela, para qualquer
emergência que pudesse surgir. Mesclou-as com um pouco de hortelã e o fez inalar o
preparado, que tossiu um pouco e pareceu recuperar a consciência.
—A relíquia... —disse com a voz quebrada.
—Agora o importante é que se cure - respondeu Laetitia— Pode levantar-se?
Ramiro moveu uma perna e desabou.
—A relíquia... —insistiu— Devo levá-la à Abadia.
—Iremos à Abadia, não se preocupe. Economize suas forças para falar e as use para ficar
de pé. Vamos, apóie-se sobre mim.
O peso do homem quase a jogou ao chão. Mas com um pouco de esforço de Ramiro e
um pouco de astúcia de Laetitia, ele conseguiu manter-se erguido. Um pouco cambaleante,
sustentou-se contra uma árvore.
—Vamos cavalheiro, tem que montar. Se não, não chegaremos nunca ao destino.
Laetitia estudou a situação. Parecia impossível que o homem montasse. Entretanto, não
havia outra maneira de levá-lo a Abadia e que lhe dessem os medicamentos que ela não
podia lhe dar, agora que o hospital do lar cátaro tinha sido fechado pelo Abade. Tinha
estado toda a tarde provando uma nova combinação para uma poção e recordou que
levava açúcar. Revolveu entre suas coisas e encontrou os torrões que tinha sobrado dos
preparados. Utilizou-os em um truque que conhecia bem de trabalhar na granja: convenceu
o cavalo para que se deitasse para comer o açúcar. Depois disso, fez Ramiro se sentar, que
não estava de tudo consciente do que acontecia, sobre o lombo do cavalo. Laetitia
procurou nos alforjes dos arreios e achou alguns tecidos de reserva. Usou-os para atar o
guerreiro para que não caísse durante a marcha.
—Meu nome é Ramiro - disse ele com um fio de voz. Entregou-lhe um pequeno
estandarte com o leão característico de Simón de Montfort. Ela entendeu que essa era sua

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insígnia para que o deixassem entrar na Abadia. Essa parte de tecido o identificava como o
portador da relíquia. Ramiro quis perguntar por que Laetitia o estava atando, quando caiu
desabado sobre seu cavalo. Precisamente por isso o fazia.
Ela fez que o animal ficasse de pé e o premiou com mais açúcar. Começavam a se
entender. Montou atrás de Ramiro, embora não a deixasse ver com claridade o caminho.
Ter subido diante do corpo daquele homem, seria uma tarefa titânica: Laetitia não teria
podido suportar o peso de Ramiro sobre suas costas. Preferiu, então, se resignar a só um
pouco de visão. Com sorte, pensou, chegariam à Abadia antes que caísse a noite.
A Abadia se divisava ao longe. O sol estava se ocultando e Laetitia pensou que não
estava mal chegar de noite. Não queria que a vissem, podiam acusá-la de havê-lo curado.
Preferia ficar à margem da situação, não misturar-se mais. Pensou que estavam quites: ele
a tinha resgatado da água; ela, agora, tinha-o transportado até o hospital da Abadia. Não
podia fazer mais, mentiu a si mesma. Tampouco pensava dizer nada a respeito da relíquia.
Tinha que impedir que esse objeto chegasse a Montaillou. Estava convencida que a
chegada da relíquia era o início do fim dos Cátaros no povoado. Não queria ter que fugir,
nem tampouco um combate que intuía desde já perdido.
Aguardou até que o sol desapareceu por completo. Depois, aproximou-se até a Abadia e
a rodeou. Desceu do cavalo e procurou algumas pequenas pedras. Começou a jogar uma a
uma contra a janela que dava para a cela em que dormia Xavier. Teve que jogar mais de
cinco, com uma pontaria assombrosa.
Ramiro despertava a momentos. Os golpes das pedras na janela de madeira o
sobressaltavam. Laetitia notou e se alegrou que seu torpor não fosse tão profundo. Isso
significava que a ferida sararia.
Xavier apareceu à janela e se surpreendeu ao ver Laetitia junto a um homem
desacordado. Levou as mãos à cabeça e desceu imediatamente pelas escadas escuras da
Abadia. Não queria que nenhum dos monges despertasse. Saiu por um passadiço do castelo
que dava a um dos lados. Rodeou o edifício e se encontrou com Laetitia.

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—Mas, o que faz minha menina?
—Este homem queria chegar à Abadia.
—E você como sabe? Por que está ferido?
—Trazia a relíquia para cá. Vi como uns homens o assaltavam no bosque. Ministrei a ele
algumas curas básicas e o ajudei a chegar.
—É um homem fornido e bonito - disse Xavier quase sem pensar.
Laetitia se ruborizou.
—Seu nome é Ramiro. Salvou-me no bosque. Eu estava tentando alcançar a flor para o
elixir e caí na água. Ele me resgatou antes que a corrente me levasse.
—Então é um herói.
—Não sei. É quem trazia a relíquia. Depois, três homens o atacaram. Suponho que para
roubá-lo.
—Sabe se a roubaram?
—Não, não sei - mentiu. Precisava esclarecer suas ideias e, além disso, não queria contar
nesse momento a Xavier, como tinha obtido a relíquia. Passou os dedos pelos lábios— Eu
me escondi quando começou a briga. Revistaram-no e não tinha a relíquia. Depois o
deixaram a sua sorte, atirado no chão. Ajudei-o a chegar até aqui.
—Por que me despertou?
—Não posso deixá-lo aqui fora durante a noite - explicou Laetitia— Tampouco posso
chamar à porta. Se o Abade souber que o tratei, pode tomar represálias contra o lar.
—Deus não o permita - disse Xavier e fez o sinal da cruz.
Os dois conseguiram descer Ramiro do cavalo. Estava totalmente inconsciente. Ambos
subiram com calma até a enfermaria. Cada degrau tornava mais difícil a tarefa.
—Este homem é um gigante, filha - sussurrava Xavier a cada passo.
Acomodaram-no como puderam em uma cama.
—Terá que explicar como chegou até aqui - alertou Laetitia a Xavier— Ninguém
acreditará que o trouxe sozinho.

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—Não tinha pensado nisso.
—Talvez possa dizer que estava consciente quando chegou. Ele chamou à sua janela.
Você despertou e desceu para ajudá-lo. Subiu com sua ajuda e desmaiou quando estava
deitado.
—Assim está bem. É um bom plano. Direi que o deixei entrar, porque tinha o estandarte
de Montfort e porque disse algo sobre a relíquia. Você acha certo que conte que ele não
está com ela?
—Deixemos que seja ele que diga isso.
—Tem razão, querida. Agora sai pelo caminho que já conhece e vai para sua casa, que
tem um grande pedaço ainda para chegar - recordou Xavier. O povoado não estava
precisamente perto— Nem bem tenha ido, eu despertarei o curandeiro.
Laetitia arrancou as ataduras e o torniquete de Ramiro.
—Melhor que ninguém saiba que alguém tentou curá-lo.
—É verdade, menina. Agora vá que se alguém acordar será pior.
Laetitia deu um beijo na bochecha Xavier e saiu da Abadia. Esperava a ela uma longa
caminhada até o lar cátaro e estava cansada. Empreendeu a viagem de todos os modos.
Conhecia um atalho para chegar. Tentou repassar mentalmente os sucessos desse
comprido dia para que o trajeto resultasse mais curto. Não percebeu que três pares de
olhos, a essa hora da noite um pouco cansada, seguiam-na a uma distância prudente.

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Capítulo 5

Fatigado, Xavier despertou o curandeiro e fez um escândalo.


—Chegou. Chegou o homem que nos trazia a relíquia - gritou a toda voz, enquanto
golpeava a porta do quarto do velho alquimista.
—Não é a mim quem deve despertar. Essa notícia é para o Abade.
—Mas Wolfgang não é capaz de curar um homem e este guerreiro chegou ferido,
senhor... Sempre esqueço seu nome.
—Meu nome é Marcabru. Já deveria saber.
—Oh, desculpe - continuou Xavier se divertindo fazendo Marcabru zangar-se— É que
minha memória não anda bem. Talvez o senhor tenha uma beberagem para me dar.
—Cale-se. Diga-me onde está o homem.
—Ajudei-o a subir as escadas. Ainda estava um pouco consciente. Logo o acomodei em
uma das camas. Longe dos poucos doentes que temos. Alegra-me da boa saúde que goza
este povoado, não?
—Vá despertar o Abade de uma vez.
—Sim, senhor Macabro - disse Xavier.
O bate-papo com o curandeiro o tinha reanimado. Tinha encontrado essa maneira de
divertir-se, fazendo pequenas brincadeiras ao Abade e Marcabru com suas palavras, para
não sentir-se tão triste longe do povoado e das pessoas a quem amava. Quando estava
cansado, fazia bem jogar esse papel diante dos dois chefes da Abadia.
—Wolfgang - chamou Xavier ao Abade.
O homem já havia despertado com o alvoroço. Saiu do quarto irritado pelos golpes que
Xavier dava à porta.
—O que quer?
—Macabro me mandou informar que chegou o encarregado de trazer a relíquia.

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—Onde está a relíquia?
—Não sei - respondeu Xavier e encolheu os ombros— Eu o encontrei ferido gravemente
e o acompanhei até uma cama no hospital. Logo desmaiou. Por caridade não perguntei
nada de sua missão. Pareceu-me que o pobre já tinha muito com a ferida que sangrava e a
perda dos sentidos.
—E como sabe que é o emissário, então?
—Porque trazia o estandarte de Montfort.
O Abade disse apenas um “está bem” e foi ao encontro de Marcabru. Inspecionou
Ramiro e olhou seu ajudante.
—Tem uma ferida muito profunda. Parece como se tivesse tentado curá-lo, porque está
muito limpa. Alguém também rasgou suas roupas e o inspecionou - concluiu seu relatório.
—A relíquia?
—Não a vi. Ainda não mandei ninguém inspecionar os alforjes de seu cavalo.
O Abade deu a ordem a um dos monges que voltou poucos minutos depois indicando
que não tinha encontrado nada. Wolfgang, então, esvaziou a sala. Quando todos se
retiraram, ficaram ali o Abade, Marcabru e Ramiro que permanecia desacordado.
Wolfgang fechou a porta.

Os três homens sabiam que deviam permanecer ocultos e vigiar o povoado. Se a moça
conservava a relíquia, então provavelmente os tinha visto.
—Improvisarei um disfarce - disse o que sempre levava um capuz.
—Um disfarce de burro? —burlou-se o pequeno.
—Um disfarce e ponto. —indignou-se o do capuz— Algo para poder circular pelo
povoado sem que a moça nos reconheça.
—Você estaria muito bem como uma camponesa. —O pequeno se dobrou pela risada.
—Não me parece uma má ideia - falou pela primeira vez o chefe.
—De camponesa? —perguntou contrariado o do capuz.

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—Não, bruto. O do disfarce. Talvez possamos fabricar umas barbas brancas e conseguir
uns ramos para que sirvam de muletas.
—Os velhos sempre são bem-vindos - opinou o do capuz— Sua muleta pode ser feita
com o broto de uma planta — soltou o pequeno.
—Não é verdade - se defendeu.
—Basta! —interveio o chefe— Sempre brigando! Temos que inventar uma história além
das barbas. Os velhos não viajam muito.
—É verdade. Podemos fingir que somos pregadores Cátaros. Vamos fugindo de algum
lugar - propôs o pequeno.
—Não seja estúpido - bramou o chefe— Se a garota tiver a relíquia, então não é cátara.
Só um cristão poderia querer algo assim como a Santa Cruz.
—É verdade - disseram os outros dois em uníssono, sem discutir com seu chefe. Nenhum
dos três reparou como estavam enganados a respeito das crenças de Laetitia.

Laetitia contou a Blanche e a Miriam o que tinha ocorrido ao guerreiro que transportava
a relíquia. Omitiu dizer que ela a tinha escondido em uma árvore e muito menos contou o
beijo de Ramiro com o que tinha deslizado a caixa de ouro em seu vestido.
—Isto foi uma demora para os cristãos - opinou Blanche ante as duas jovens que a
rodeavam.
—Sim, é verdade - demarcou Miriam.
—Mas logo resolverão - disse Laetitia com o rosto grave.
—Como sabe?
—Eles querem instalar-se e tirar os Cátaros daqui, verdade? —As outras duas mulheres
assentiram— Então, conseguirão outra relíquia. Um pedaço de madeira dá no mesmo que o
outro. Se um bispo ou arcebispo disser que é uma relíquia, todos acreditarão. Não me
parece que a original, a que agora se extraviou, seja algo verdadeiro. E embora fosse não

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deixa de ser algo material. A matéria é toda corrupta - sentenciou recordando a doutrina
cátara.
—É verdade - aprovou Blanche — Eles arrumarão qualquer desculpa. Os que se
adaptarem e renunciarem a suas crenças para transformar-se em cristãos, se salvarão. Os
que não o façam, que não cederem em nossa fé, nos perseguirão com uma Cruzada.
As três mulheres ficaram em silêncio. O quarto, embora fosse de dia, parecia um lugar
lúgubre. Permaneceram assim, sem mover-se, por mais de um quarto de hora. Era como se
o tempo se detivesse e nenhuma das três pudesse mover-se por causa desse feitiço.
Entretanto, se alguém pousasse sua vista sobre os rostos das mulheres que havia no
quarto, podia perceber que cada uma refletia para si e que essas reflexões pareciam
bastante profundas e agitadas.
Finalmente, Laetitia falou:
—Me diga Blanche, se alguém forçar uma pessoa que está observando certas regras para
converter-se em um perfeito, de acordo às crenças cátaras, a fazer algo que transgrida
essas regras, a pessoa que tenta consagrar-se como perfeita perde sua condição de tal e
deve receber os sacramentos novamente?
—Explique, por favor, querida. Fez uma salada com essa pergunta.
—Tentarei. Tome a mim como exemplo. Eu quero me consagrar como perfeita dentro
das regras de nossa religião. Espero com ansiedade ser aceita pelos líderes em Montségur.
Para isso, recebi nosso sacramento e, entre outras regras, não como carne de animais.
—Nem tampouco quer ter nada a ver com os homens - disse Miriam divertida.
—Dizia: não como carne - Laetitia preferiu ignorar o comentário de sua amiga— já que a
carne representa a matéria e a matéria é corrupta e um aspirante a perfeito não tem que
estar em contato com a corrupção.
—Sim - interveio Blanche um pouco chateada— já sei como funciona.
—Então - prosseguiu Laetitia— Se alguém me forçasse a comer carne, perderia eu minha
condição de perfeita? Deveria começar tudo de novo e receber um novo sacramento?

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—Somente se gostasse do que fez - sentenciou Blanche e logo se despediu. Disse que
tinha coisas que fazer no lar, mas que as jovens podiam ficar conversando.
Laetitia parecia outra vez abstraída em seus pensamentos. Via-se como se as palavras da
regente do lar a tivessem alterado. Quando Miriam parou para retirar-se, Laetitia a deteve.
—Amiga, pode me dizer por que um homem gostaria de beijar uma mulher?
—Que pergunta é essa?
—Uma singela.
—Vamos. — ficou pensativa uns instantes e logo exclamou— Não a forçaram a comer
carne! A beijaram!
—Baixe a voz - implorou Laetitia.
—Está bem, mas conte-me tudo.
Narrou com detalhes a queda no arroio, e logo como o guerreiro a tinha colocado no
chão com um só movimento. Depois continuou com o beijo, que a tinha desconcertado a
princípio e que não se negou. Também contou que, enquanto Ramiro a beijava, tinha
deslizado a relíquia em seu vestido.
— Então você tem a relíquia! —disse surpreendida Miriam.
—Sim, eu a escondi, mas esse não é o ponto.
—Tá. O ponto é o beijo. Posso te dar mil razões pela qual um homem poderia gostar de
beijar uma mulher. Mas, se te importar saber se gostou, é que sim você gostou que te
beijasse.
—Está louca. Eu nunca disse isso.
—Já sei. Deduzi eu. E por um pouco tenho mais experiência que você nestes temas.
—É mentira. Se tivesse gostado, então eu teria perdido minha consagração. E não estou
disposta a arriscar tantos anos de devoção e sacrifícios por alguém que me beijou somente
para poder esconder sua relíquia. Que coisa mais absurda diz Miriam!
—Mas salvou sua vida com seus braços fortes.

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—Não tem nada a ver uma coisa com outra. Eu também salvei a dele levando-o à Abadia
- disse furiosa e viu que sua amiga tentava conter a risada— E não gostei do beijo -
exclamou furiosa.
—Você saberá - sussurrou Miriam entre risadas— E baixe a voz.
Laetitia se retirou zangada do quarto, enquanto que a outra jovem já não podia reprimir
suas gargalhadas.

O Abade caminhava de um lado ao outro do quarto. O velho alquimista o via só quando


se afastava dele, já que sempre olhava de esguelha. Wolfgang parecia desesperado, sem
saber o que fazer. Nada tinha saído segundo seus planos.
—Esses três imbecis...
—Refere-se a...
—Sim, eles mesmos. Eu os recomendei a Montfort para que fizessem o trabalho. Tinham
que matá-lo e me trazer a relíquia. Dessa maneira, o Conde tirava de cima este guerreiro
que representava uma ameaça e nós tínhamos nosso objeto evangelizador.
—Os três homens não se apresentaram - disse o que era óbvio para ambos.
—Não, não fizeram. Talvez estejam procurando a relíquia. Se não me entregarem ela,
não recebem.
—Seria bom que a trouxessem, pelo menos para que concluíssem uma parte do trato. Da
outra posso me encarregar. —Os olhos de Marcabru brilharam, mas não foi uma luz que
saiu deles, a não ser a mais clara expressão das trevas.
O Abade ficou petrificado um segundo. Depois seu rosto se alargou com um sorriso,
seguida de uma gargalhada um pouco cruel.
—Você terminará o trabalho. Disso não cabem dúvidas.
—Quer que melhore para saber onde pode estar à relíquia e logo o mate?
—Não. Quero que o liquide agora mesmo, se for possível.
—Mas, o que acontecerá a parte da Santa Cruz?

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—Diremos que Ramiro foi assaltado por Cátaros deste povoado e que eles roubaram a
relíquia. Logo convocaremos uma Cruzada. Será a mão direita do Senhor que baixará sem
piedade sobre os infiéis deste povoado. E quando isso acontecer, nós teremos o poder em
Montaillou.
Marcabru não prestou atenção ao sorriso de auto-suficiência que se podia ver no rosto
do Abade. Simplesmente se limitou a perguntar:
—Quer que o mate aprofundando a ferida?
—Não, prefiro uma agonia lenta para ele. Um veneno que seja ministrado em pequenas
doses - disse e pôs sua mão no queixo como se esse gesto o ajudasse a refletir— Não quero
que esse gordo folgazão do Xavier suspeite de nada. Sempre anda colocando o nariz onde
não o interessa.
—É verdade - concluiu o alquimista.
Olhou de esguelha a Wolfgang. Agora sim o Abade sorria como o demônio.

—Cátaros, Cátaros! Somos líderes Cátaros! —gritava no meio de Montaillou o menor dos
três homens— Damos a lamentum!
—Não é lamentum, é consolamentum - disse o do capuz e deu uma pequena cotovelada
a seu companheiro.
—Não é consolamentum, é melioramentum - disse o chefe e acotovelou a seus dois
companheiros a sua vez.
A verdade é que ambos tinham razão. A consolamentum era o sacramento cátaro por
excelência. Através destes ditos, uma pessoa iniciava seu caminho como perfeito ou era
recebido ao nascer ou servia como equivalente à extrema unção cristã. Por outro lado, a
melioramentum era a saudação de bem-vinda que davam os Cátaros entre si. Uma forma
de reconhecer como membros de um culto que tinha que permanecer oculto para não ser
apanhado pelos caçadores da Igreja e uma forma de cortesia que transpassava os limites

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próprios da língua. Embora em menor quantidade, fora de Languedoc havia Cátaros na
Itália, Alemanha e até na Grécia.
Os três homens pararam perto do monastério de Montaillou e gritavam em alta voz
fingida sua fé cátara. As barbas postiças eram tão evidentes para todos os que passavam
por ali, que tinham que esconder a risada. Era muito estranho que o Abade tivesse posto
três ridículos homens com barbas postiças para que os habitantes de Montaillou se
mostrassem abertamente Cátaros frente a eles. Era uma maneira estúpida de querer que se
incriminassem voluntariamente de sua fé que para a Igreja era um delito. Todos riam
quando viam os três homens que não deixavam de lado sua representação. Pareciam cegos
às gargalhadas dos habitantes de Montaillou. Ou estavam muito envolvidos em seus
personagens.
—Por que nos fazemos passar por Cátaros, chefe? —perguntou finalmente o do capuz.
—Porque aqui há muitos Cátaros e a moça que procuramos deve ser também.
—E como sabe? —insistiu o do capuz, enquanto o pequeno continuava arengando aos
cidadãos a receber uma lamentum.
—É simples - disse o chefe— É só pensar - e se tocou a cabeça— Se a garota fosse cristã,
já teria levado a relíquia à Abadia.
—Ah!
Já tinham passado mais de duas horas desde que os homens pararam nesse lugar e
tinham começado a chamar os habitantes de Montaillou com uma fé e barbas fingidas.
Ninguém tinha se aproximado, entretanto, salvo algum distraído que tinha jogado uma
moeda como esmola.
—É bom que a jovem seja cátara - disse depois de pensar muito o do capuz.
—Por quê? —quis saber o chefe.
—Porque se fosse cristã e tivesse levado a relíquia à Abadia, então nós não receberíamos
nosso dinheiro.
O chefe assentiu. Já quase sem voz, escutou o pequeno dizer:

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—Cátaros, Cátaros! Somos líderes Cátaros!

Laetitia passou uma má noite. Dava voltas na cama e até caiu dela. Logo se recostou
novamente, mas mal podia dormir. Tinha constantes pesadelos de si mesma escorregando
entre as rochas do arroio, gritando sozinha em uma queda que não terminava jamais e
perdendo para sempre a flor.
Finalmente, perto das quatro da madrugada, aceitou que não podia dormir e se
levantou. Dirigiu-se à despensa, onde guardavam os mantimentos comuns e procurou um
pouco de água. Ficou ali pensativa. As palavras de sua amiga Miriam soavam em sua
cabeça: “Então você gostou do beijo”. Jurava que não era verdade, que não tinha gostado
de nada, que tudo tinha acontecido muito rápido. E, entretanto algo em sua pele, que se
ruborizava até na escuridão da despensa, dizia o contrário.
Depois pensou na ferida que tinham feito em Ramiro e se lembrava da de sua mãe e não
pôde evitar preocupar-se. Precisava saber como estava. Agora, ela sabia como tratar esse
tipo de ferida e suas infecções. Trocou-se apressada. Saiu com sigilo do lar cátaro rumo à
Abadia.
Cruzou todo o povoado. Viu sem prestar muita atenção três homens que dormiam
amontoados entre si na porta do monastério. Pareceu que usavam barbas falsas, mas não
os reconheceu. Estava apressada para chegar à Abadia e falar com Xavier. De todos os
modos, não poderia tê-los reconhecido. Quando atacaram Ramiro, Laetitia permaneceu
oculta e não pôde ver o rosto da distância em que se encontrava. O menor dos homens,
entretanto, despertou quando ela passou a seu lado. Sorriu encantado pela beleza da
jovem e se acreditou afortunado, porque Laetitia o visitava em seus sonhos.
Xavier se sobressaltou uma vez mais pelas pedras que golpeavam contra sua janela. Não
tinha tido um dia fácil e tampouco estava podendo dormir muito bem. Parecia que todos
em Montaillou tinham um sono leve e acidentado. Xavier tinha tido que ver com o
curandeiro Marcabru que não o deixava cuidar de Ramiro, nem sequer aproximar-se. Ele

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não sabia que remédios tinham estado dando ao guerreiro, mas não confiou nem um
pouco nas atitudes do alquimista e do Abade.
Tinha tentado escutar atrás da porta, enquanto esses dois conversavam pela tarde, mas
a constante circulação dos monges fiéis ao Abade o tinha feito abandonar suas atividades
detetivescas. Só sabia que tramavam algo, porque os tinha ouvido rir. Entretanto, mal teve
uma oportunidade, Xavier se aproximou do hospital e, com a desculpa de atender um
doente que estava ao seu cuidado, observou Ramiro e o que viu o surpreendeu. Seu
aspecto piorava apesar do tratamento. O guerreiro não tinha despertado e seu rosto estava
contraído, como se tivesse apropriado dele uma grande preocupação. A ferida estava
coberta com uma bandagem, que Xavier não se atreveu a abrir. Não podia perguntar nada
a nenhum dos monges, porque suspeitariam dele e o denunciariam ao Abade. Xavier não
tinha nenhum aliado dentro da Abadia e parecia ser o único que se dava conta que Ramiro
estava morrendo lentamente.
Estes pensamentos o mantiveram acordado até altas horas da noite e, quando por fim
dormiu, teve pesadelos. Apenas umas horas mais tarde sobressaltou-se ao escutar umas
pedrinhas que golpeavam a janela de seu quarto. Tão rápido como pôde, trocou-se e
desceu para conversar com Laetitia. Sabia que era ela, ninguém mais tinha tanta pontaria.
—Para que veio querida? —disse Xavier nem bem chegou a seu lado. Subir e descer
escadas o agitava por sua compleição.
—Não podia dormir.
—É por ele, verdade?
—Sim. A ferida...
—Não diga mais, sei. É como a de sua mãe.
Laetitia assentiu com a cabeça e continuou:
—Tenho que vê-lo, curá-lo.
—Está louca! —exclamou Xavier um pouco assustado pela possibilidade.
—Vamos, tem que me ajudar.

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—Mas se mal posso me aproximar dele e isso por que vivo na Abadia!
Laetitia não chorava quase nunca. Não depois da morte de sua mãe. Era como se esse
fato a tivesse secado de lágrimas. Entretanto, essa noite, frente a Xavier, fez o mais
parecido a chorar que sabia fazer. Apertou suas unhas contra as palmas das mãos e mordeu
o lábio inferior com tanta força que os olhos encheram de lágrimas que nunca se atreveram
a cair por suas bochechas. Xavier não era capaz de opor-se aos desejos da moça e a abraçou
enternecido:
—Sabe que é muito perigoso que o veja. Não sei o que me acontecerá se descobrirem e
é o que menos me importa —disse o religioso ao ouvido da moça— Mas me preocupa o
que possam fazer a Blanche e o lar. E, fundamentalmente, o que possa acontecer com você.
—Tomarei cuidado, prometo Xavier. Virei amanhã de noite e serei apenas uma sombra.
Ninguém se inteirará de minha presença. Tem que dizer que sim.
—Por que tanta preocupação por este homem, Laetitia?
—Não quero ver morrer outro paciente, nada mais - mentiu ela. Em realidade, mentia a
si mesma com essa desculpa e a tinha estado repetindo todo o caminho do lar à Abadia.
—Este não é seu paciente - replicou Xavier.
—É, porque fui eu quem o trouxe até aqui e fui eu quem o atendeu em um primeiro
momento.
Xavier pareceu duvidar embora inclusive ele soubesse que terminaria aceitando.
—Só te ajudarei, porque aqui cheiro algo estranho. E meu instinto não se engana
querida. Agora, quero que saiba que se Ramiro melhorar, é possível que a relíquia seja
entregue a Montaillou. Sabe o que isso implica?
Laetitia assentiu. Os Cátaros não queriam ver sua cidade transformada em um centro do
cristianismo. Entretanto disse:
—É um risco que devemos correr.
E para si jurou que nada nem ninguém a obrigariam a dizer onde tinha escondido a
famosa relíquia.

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Capítulo 6

Guardou suas coisas e se aproximou do grupo de homens. Domingo tinha sido o


escudeiro de Ramiro toda sua vida e antes de trabalhar com ele tinha acompanhado seu
pai. Alistou-se no grupo de homens que se preparava a partir para Montaillou como guarda
do Abade. Estava quase cego, mas alguns dos homens gostavam dele e tinham insistido em
que podia ser uma boa companhia. Alguém que se ocupasse de auxiliar à tropa nos serviços
domésticos. Domingo não importava que reduzissem suas funções quase às de uma
faxineira. Simplesmente queria estar onde estivesse Ramiro. E se esse lugar era Montaillou,
então não importava se tinha que atender a esses homens para chegar.
Domingo estava preocupado, porque não tinham chegado notícias da missão de Ramiro:
—Ninguém parece saber o que aconteceu com a relíquia - comentou entre os homens da
futura expedição. Estavam reunidos nos subúrbios do castelo de Carcasona, ao redor de um
fogo, depois de ter comido e esperando instruções para sua partida.
—Sei de boa fonte que chegou um arauto do Abade para ver Simón de Montfort.
Ninguém o viu sair desde que entrou no castelo.
—Isso só quer dizer que foram más notícias - demarcou Domingo com uma expressão
perdida.
—Devemos transportar algumas cartas do Conde Montfort para o Abade - disse outro
dos homens.
—Não nos informaram ainda quando partiremos - se queixou um terceiro e jogou uma
pedra que tinha na mão ao fogo que soltou algumas faíscas pelo impacto.
—É verdade. Têm-nos aqui, sem fazer nada - se queixou ainda mais— Já gostaria de
estar a caminho. Aborreço-me esperar.

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Outro soldado corria para o grupo do castelo. Mal o viram, os homens junto ao fogo se
alegraram.
—Talvez por fim saibamos quando iremos daqui.
O soldado chegou agitado até onde estava o fogo.
—Na próxima semana devemos partir para Montaillou. Devemos obedecer ao Abade.
Seremos sua guarda pessoal. O povoado está cheio de infiéis que são hostis ao cristianismo.
Nossa tarefa será de controle e vigilância.
Faltava-lhe o ar quando terminou de dizer tais palavras.
—E a relíquia? —perguntou Domingo, embora não esperava resposta.
—Roubaram-na.
O ancião escudeiro escutou essas palavras e soube que nada bom podia ter sido de
Ramiro.

Laetitia passou todo o dia no bosque recolhendo as ervas necessárias para o tratamento.
Não se animava a entrar entre as árvores, como da última vez. Preocupava-a menos ser
vista que a possibilidade de perder-se ou de machucar-se como quando tinha ido procurar
a flor. Por certo devia conseguir um pouco da erva que precisava para a poção que pensava
aplicar em Ramiro. Suas propriedades para melhorar a circulação, com certeza iam permitir
uma cicatrização mais rápida.
Preparou sua marmita e realizou uma decocção. Logo a retirou e colocou a água em uma
jarra de vidro. Voltou a por no fogo a pequena panela sem ter tirado as ervas que tinha
feito a decocção. Voltou a ferver a água e logo realizou uma infusão com uns bagos.
No bosque, com a luz que chegava de entre as árvores, Laetitia se via mais bela que
nunca. Sua cabeleira longa e loira parecia um reflexo mais da luz que acompanhava os
ramos e seus olhos cintilavam como dois vivazes vaga-lumes. Embora ela não estivesse
consciente disso, sua figura impactava os homens. Transformou-se de uma menina fraca e
desajeitada em uma moça que brilhava e fazia brilhar tudo a seu redor.

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Miriam a encontrou quando já quase terminava de preparar os remédios. Olhou-a de
longe e disse:
—Sabe o que está fazendo, verdade?
—Uns preparados - respondeu Laetitia sem inocência.
—Isso eu já sei. A pergunta é se sabe ao que se expõe.
—Sim, sei. Espero não comprometer muito Xavier, isso é tudo.
Miriam se aproximou o suficiente para lhe acariciar a cabeça. Tinham crescido juntas e
tinham brincado nesses mesmos lugares toda a vida. Depois, Miriam conheceu quem seria
seu marido e se casou em uma confusa cerimônia precedida pelo Prior, mas cheia de
Cátaros que não acreditavam no sacramento do casal, embora celebrassem a união de duas
pessoas.
O gesto comoveu Laetitia que fechou os olhos e deixou que a mão de sua amiga
percorresse seu cabelo. Ficou de pé e a abraçou. Voltaram juntas ao povoado, agarradas
pelo braço.

As barbas falsas dos três homens já haviam se caído de tudo, quando viram passar duas
jovens de braços dados.
—A morena é muito bonita - disse o do capuz.
—Prefiro à loira, tem o rosto de um anjo e os... —colocou suas mãos diante de seu peito
e as dispôs formando dois grandes círculos - com os que sonhei toda minha vida —disse o
pequeno e de repente a reconheceu. Era a mulher que tinha visto em seu sonho a noite
anterior. Ou a que tinha acreditado ver.
—É ela - exclamou e os três começaram a seguir Miriam e Laetitia.
Viram-nas entrar no lar cátaro e ficaram nas imediações esperando que voltassem a sair.
No momento Miriam saiu sozinha e o do capuz propôs segui-la:
—Pode saber algo da relíquia.
—Te cale —disse o chefe— só quer ir atrás dela porque você gosta.

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O pequeno riu de seu companheiro que saltou em cima e começaram a brigar. Rodaram
pela ladeira e caíram na granja do lar cátaro. Decidiram que era um bom lugar para
permanecer ocultos e chamaram o chefe. Roubaram algumas hortaliças para comer.
Sentaram-se e observaram a luz que provinha de dentro do lar, onde Laetitia enchia e
esvaziava frascos sem cessar.
Quando estavam ficando dormidos, o pequeno assinalou para frente, como se alguém
aparecesse em seus sonhos e disse aos outros que deviam segui-la. Laetitia tinha deixado a
casa rumo à Abadia.

Xavier já tinha descido e a esperava na porta da Abadia. Caminhava nervoso de um lado


a outro. Quando a viu vir, correu para abraçá-la. A noite se elevava escura sobre as duas
pessoas abraçadas na porta da Abadia. A lua era a única luz, e soprava uma brisa fresca.
—Trouxe vários compostos - disse Laetitia.
—Não acredito que trate de sua ferida. Quando hoje preparei a comida dos doentes,
pude me aproximar um pouco dele. Não vi que supurasse ou sangrasse. Entretanto, seu
rosto não estava bem. Parecia estar sofrendo muito.
—Revisarei-o esta noite e tentarei aliviá-lo com o que tenho.
Subiram juntos as estreitas escadas, e Xavier se meteu em seu quarto, depois de mostrar
com gestos qual era o caminho para o setor do hospital. Ela tinha prometido não
comprometê-lo e não deixou que a acompanhasse. Por outro lado, era mais simples que ela
se escondesse. Não era mais que uma jovem pequena que podia escapulir sem problemas e
esconder-se outro tanto.
Entrou na sala onde funcionava o hospital. Era um quarto largo e grande. Provavelmente
tinha funcionado com antecedência como um salão de jantar ou algo similar dentro do
castelo. Os doentes comuns estavam localizados em um extremo da sala, atrás de pesadas
portas que davam ao que Laetitia imaginava como um refeitório. Ramiro estava localizado

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em uma espécie de sala de espera que tinha sido transformada pelo Abade em um quarto
especial, dentro da área do hospital, mas longe dos doentes comuns.
Laetitia acendeu uma vela. Necessitava um mínimo de luz para examiná-lo. Todo o lugar
parecia cinza ou azul; uma espécie de azul cinzento que invadia todo o quarto e conferia
um tom lúgubre. O teto parecia dobrar-se sobre o quarto. Era evidente que se tratava do
último andar. Onde o teto se encontrava com o chão, formava um lugar escuro, ideal para
esconder-se se isso chegasse a ser necessário.
A vela dava um tom ocre ao lugar em que ela estava. Demorou uns minutos para
encontrar o lugar adequado para a vela. Necessitava das mãos livres para poder atender
Ramiro, mas também necessitava uma luz móvel e próxima.
Aproximou-se com cuidado. Ramiro permanecia inconsciente. A primeira coisa que
Laetitia fez foi examinar a ferida com atenção. Tirou a atadura e o homem se moveu um
pouco, talvez pela dor. Aproximou a vela e não a viu infectada. Parecia evoluir bem. Voltou
a colocar a atadura como estava.
Parou e percorreu com a vela na mão a cama em que repousava Ramiro. Depois abriu a
manta que o cobria e o contemplou. Nunca tinha visto um torso tão largo. Os músculos do
peito o marcavam de forma precisa e ampla. O centro de seu torso se via como uma linha
clara rodeada de pequenas formações que marcavam seu abdômen e mostravam um corpo
próximo à perfeição.
Não estava acostumada a ver guerreiros, a não ser simples camponeses, por isso Ramiro
a impressionou. Não era que não o tivesse visto antes. Justamente o contrário. Conhecia-o
perfeitamente, porque ela o tinha atendido no bosque e o tinha transportado à Abadia.
Entretanto, não deixava de surpreender-se. Disse a si mesma que só se tratava da falta de
costume, que o único corpo que considerava possível era o dos camponeses e que ia levar
um tempo habituar-se a ver um guerreiro. Em sua mente, transformou Ramiro em um
simples paciente, em um objeto de estudo. Transformou-se em algo tão objetivo e externo
como uma erva ou um bago que servia em seus preparados.

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Não podia compreender por que não despertava. Então, decidiu tocá-lo. Apoiou sua mão
no peito de Ramiro e a retirou em seguida. Como se algo a queimasse. Mas não era o corpo
do guerreiro que fervia pela febre, nem muito menos. Era sua própria mão que havia
sentido o ardor, algo assim como um fogo interno. Voltou a posar sua mão e desta vez
contornou os músculos do peito de Ramiro. Fez com calma, como se fosse uma fruta que se
saboreia comendo-a pouco a pouco. Não tinha febre, concluiu. E tratou de ignorar o
pequeno incidente com sua mão e seu ardor.
Isso, de todos os modos, não explicava nada de por que não podia despertar. O rosto de
Ramiro estava contraído, preocupado, com as sobrancelhas juntas. Instintivamente, Laetitia
passou uma mão por sua bochecha. Foi um gesto terno e manso e ele, inconsciente ainda,
acalmou-se e serenou suas feições.
Sem saber muito bem por que, Laetitia decidiu acariciar a boca de Ramiro. Pousou seu
dedo indicador sobre os lábios do guerreiro espanhol e os percorreu por fora com total
naturalidade. De fato, Ramiro pareceu reconfortado. Laetitia continuou e se deteve nos
cantos que mereciam uma pausa. Estranhou a cor apagada de seus lábios, então correu o
lábio inferior para baixo e viu que estava tingido de negro. Tentou fazer que esse negro que
estava aderido à boca de Ramiro ficasse em seu dedo.
Aproximou a vela o mais que pôde e o observou com atenção. Parecia uma substância
levemente sólida que havia se dissolvido pela ação da saliva. Aproximou-se e a cheirou. Era
um aroma de ervas, misturado com alguns substratos minerais. Assustada limpou as mãos
em seu vestido. Cobriu-o de novo como estava e decidiu descer. Já sabia por que não
despertava.

Os três homens ficaram sobressaltados quando a viram entrar na Abadia.


—Deve ter ido levar a relíquia.
—Não, não acredito - disse o chefe— Se fosse fazer, teria feito de dia.
—O certo é que trama algo com esse gordo.

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—O melhor será informar o Abade da situação - sugeriu o pequeno.
—Não - gritou o chefe— Não penso ficar sem minha recompensa. Temos que averiguar
onde escondeu a relíquia.
—Temos que segui-la ao bosque e zás! —adicionou o do capuz.
—Não entendo o que quer dizer “zás” - quis saber o menor.
—Quer dizer que nos ocuparemos dela.
—O gordo deve estar ajudando-a a respeito de quanto deve pedir.
—Então também “zás” para ele.
—Não haverá nenhum “zás” por agora - ordenou o chefe.
—Eu queria... —disseram em coro o do capuz e o menor.
—Mas não. Não ainda. Precisamos saber onde está a relíquia.
—E então sim?
—Então sim. Haverá “zás”.
Os outros dois festejaram e os três empreenderam o caminho de volta. Deviam vigiar
Laetitia, isso os levaria para a relíquia e à recompensa que tanto ansiavam.

Xavier a interceptou nas escadas enquanto ela descia e a acompanhou até abaixo.
Saíram da Abadia sem dizer uma só palavra. Afastaram-se uns metros do edifício. Xavier
não podia conter-se e queria lhe perguntar muitas coisas, mas o rosto sério de Laetitia o
deteve. Então disse:
—Conseguiu descobrir alguma coisa?
Ela respondeu com outra pergunta:
—Deram-lhe algo de comer?
—Não que eu saiba. Nada que eu tenha preparado.
—Mas não notou se davam algo de comer a ele?
—Macabro não me deixa nem me aproximar. Fica de um humor péssimo quando estou
ali.

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—Quantas vezes por dia vai vê-lo?
—Não muitas. Acredito que uma só vez, perto do meio-dia. Logo o atendem os monges
que limpam a ferida e trocam as bandagens.
—Os monges não estão envolvidos, então.
—Envolvidos? No que?
—Amanhã pela manhã te trarei um remédio. Tem que dar imediatamente para ele
depois que o curandeiro sair.
—Farei.
—Tem que ver bem também se não deixou algo na boca dele. Algo do tamanho de uma
noz, mas negro e abrandado pela ação da saliva.
—Que asco! —disse Xavier e Laetitia dirigiu um olhar de reprovação— Bom, bom, não
fique assim, menina. É que eu não gosto de andar colocando minha mão na boca de
alguém.
Laetitia ignorou o comentário.
—Se tiver essa espécie de fruto negro, peço que o tire da boca e que o guarde para mim.
Quero analisá-lo.
—O que é esse fruto misterioso? Já sabe por que Ramiro não acorda?
—Sim, sei. Estão envenenando-o.

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Capítulo 7

Falaram uns minutos mais e Xavier se despediu. Disse que era melhor que ele fosse para
o povoado procurar o antídoto. Não queria chamar a atenção de todos com a visita de
Laetitia em pleno dia à Abadia. De todos os modos, tinha que ir ao povoado procurar os
mantimentos para o almoço e conversar com os camponeses.
Laetitia voltou para lar cátaro e revistou entre as ervas que tinha guardado. Sabia que
nada do que tinha preparado no dia anterior tinha servido. Entretanto, procurou entre seus
preparados habituais e passou o resto da noite fazendo combinações.
Conhecia o veneno. Era um preparado básico. O Prior a tinha ensinado. Os alquimistas
estavam acostumados a usar essas artes para envenenar seus inimigos. Diziam que
funcionava como um reverso dos princípios que transformavam as coisas em ouro. Eram a
própria negação da vida. Uma dose suficientemente forte podia matar imediatamente, mas
o curandeiro tinha decidido dar para Ramiro uma longa agonia. Desse modo, ninguém ia
suspeitar de um envenenamento.
Para terminar de obter o antídoto, devia ir procurar algumas ervas do bosque. Sabia que
também tinha que conseguir algum componente animal. Não havia possibilidade de
reverter um veneno sem algo que estivesse ligado à vida animal, porque os homens se
assemelhavam mais aos animais que às plantas. Pensou em tomar alguns pêlos dos animais
da granja, mas não acreditou que fossem de grande utilidade. Mal tinham algumas aves de
curral e porcos. Decidiu que devia procurar uma lebre. Tinha amanhecido não fazia muito e
pareceu um bom momento. Necessitava de alguns pêlos das orelhas da lebre. Com isso
bastaria para completar o antídoto.

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Os três homens a viram passar entre sonhos. Ficaram adormecidos atrás da horta do lar
cátaro. O menor sorriu pela aparição de Laetitia uma vez mais em seus sonhos e
compreendeu que não estava sonhando essa vez. Nem as anteriores.
—Vamos - disse— Acima. A moça acaba de passar.
—Só a vê quando está dormindo - replicou o do capuz e girou para acomodar sua cabeça
contra umas ervas que serviam para que descansasse em uma espécie de colchão.
—Vamos - insistiu o pequeno e despertou ao chefe.
—Mais te vale que seja verdade - disse zangado.
Levantaram-se e seguiram as indicações do pequeno. Viram-na em uma clareira do
bosque. Tinha preparado uma espécie de armadilha para lebres e esperava escondida. Os
homens a viram e se detiveram. Decidiram esconder-se e observá-la.
—Atacamos agora?
—Espera um pouco - disse o chefe— Quando se distrair.
—Mas está distraída. Parece querer caçar algo.
—Já chegará à oportunidade - sentenciou o chefe com o cenho franzido.
Uma lebre irrompeu na cena. Foi diretamente até a armadilha e logo parou. Farejou nos
lados das ervas. Aproximou-se com cautela e começou a comer primeiro as bordas da
porção que tinha servido. Logo, mais para o centro e a armadilha ativou. Laetitia se
aproximou com cautela do animal. Não queria lhe fazer dano.
—Agora - gritou o chefe e os três se equilibraram sobre Laetitia.
Os três saltaram de trás dos arbustos onde se escondiam e tomaram como centro a
armadilha de folhas e hortaliças. Caíram de repente. Laetitia não entendeu o que acontecia.
Tinha libertado à lebre que, ao ver os três homens, correu para a moça e se escondeu no
bolso de seu vestido. Os homens ficaram enredados nas cordas da armadilha e entre as
folhas. Laetitia tomou os pêlos das orelhas da lebre que necessitava para o antídoto e a
deixou ir. Os homens pararam e voltaram a cair. Cansados, no chão, viram como a moça se

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afastava a toda velocidade. Tinha que encontrar-se com Xavier e preparar o remédio antes
do meio-dia.
—Estúpido - disse o chefe e amaldiçoou com uma voz muito mais potente.
—Eu? —destacou a si mesmo o menor.
—Sim, você. E o outro imbecil também.
—E agora o que fizemos? —perguntaram em coro.
—Espantaram-na.
—Mas nós seguimos a ordem.
—Mas não tinha que correr atrás da lebre.
—É que tenho fome - disse a causar pena o do capuz.
—Temos que apanhar a moça.
—Para que? —perguntou o pequeno.
—Para que nos leve a relíquia.
—Ah. É verdade. É tão bonita que às vezes me esqueço.
O do capuz assentiu de acordo com seu companheiro. O chefe os pegou pelas orelhas e
os fez caminhar de volta ao povoado.

Laetitia voltou com pressa até o lar e terminou de preparar o antídoto. Depois foi ao
encontro de Xavier. Esperava-a perto de uma das granjas. Não queria que fossem vistos
juntos. O religioso tinha medo dos aliados do Abade no povoado e não queria expor Laetitia
aos possíveis perigos. Saudaram-se com afeto.
—Foi tudo bem? —perguntou o religioso.
—Sim, salvo pelo episódio da lebre.
—O que ocorreu?
—Estava procurando uma lebre que necessitava para o antídoto. Preparei uma pequena
armadilha e apareceu uma. Quando estava para apanhá-la, três homens saíram dos
arbustos e saltaram sobre a lebre. Deveriam estar esfomeados.

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—Mas, e a lebre?
—Apanhei-a. Extraí os pêlos que necessitava para a poção e a soltei novamente no
bosque.
—Deveriam ser uns vagabundos do caminho.
—Isso me pareceu.
Laetitia procurou entre suas roupas e extraiu um pequeno frasco. O deu a Xavier que o
guardou por sua vez em sua túnica.
—Esse frasco deve servir para vários dias. Deve dar a ele antes que o sol se ponha, pois o
antídoto só funciona de dia. Macabro deve lhe dar as pequenas avelãs de veneno ao
amanhecer, porque suas propriedades se ativam com o passar da noite. Não se esqueça de
retirar o fruto de veneno de sua boca.
—Não esquecerei.
Ficou um minuto em silêncio. Nos arredores corriam alguns meninos entre o barro das
granjas vizinhas. O vento corria com força e voou o cabelo loiro ao rosto de Laetitia que
falou.
—Sabe por que querem envenená-lo?
—Não. Ao Abade e ao curandeiro não escutei dizer uma só palavra.

—Alegra-me a marcha do tratamento - disse Wolfgang, o Abade.


—Em um par de dias estará morto. A lentidão do processo nos libera de ter que
responder por isso - comentou Marcabru— As propriedades do preparado atuam melhor
com a noite, em vez da manhã. À noite o ajuda e dá um manto que o protege para exercer
seu poder. Adiantarei o momento de administrá-lo.
—Perfeito. Mandarei notícias ao Conde Montfort. Quando a tropa que nos enviar estiver
aqui, ninguém poderá deter a Cruzada que lançaremos sobre Montaillou.
Em outro lado da Abadia, Xavier cumpria muito bem as instruções de Laetitia. Arrancou
aquele veneno em forma de fruto seco da boca de Ramiro e administrou o antídoto. O

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guerreiro contraiu seu rosto e pareceu querer cuspir algo na inconsciência. Entretanto, em
seguida se acalmou. Pareceu sumir em um sonho ainda mais profundo. Em um sonho
aprazível.

De noite, Laetitia se encontrou com Xavier na porta da Abadia. Já tinham um lugar de


encontro marcado e se viram ali. Laetitia tremia. Xavier a abraçou contra seu peito e
perguntou o que acontecia.
—Sempre parece tão decidida, filha.
—Não sei. De repente, tenho medo - disse ela com a voz quebrada.
—Se quiser, eu subo contigo - atinou a dizer o religioso sem soltá-la.
—Eu tenho que fazê-lo sozinha. Os dois somos mais fáceis de descobrir. Tenho que fazer
com que se cure.
—Por que se preocupa tanto?
—Já te disse isso. Não quero que morra ninguém mais que eu atendi.
—Mas há algo mais.
—Sim. Acredito que o estão envenenando porque sabe de algo. Porque já não é útil.
Talvez ele possa ser nosso aliado para saber o que trama o Abade.
—É verdade. Não sabemos o que busca Wolfgang com tudo isto.
—Tenho medo e ontem não tinha. Ontem tão só devia ver uma ferida. Hoje também há
uma intriga por trás.
—Vem comigo. Não façamos ruído.
Laetitia avançou pelas escadas circulares do que tinha sido o castelo. Os monges
dormiam e tudo parecia estar quieto. Xavier entrou em seu quarto, depois de lhe dar um
forte abraço. Ela avançou com cautela e ingressou na sala em que sabia que estava Ramiro.
Aproximou-se com sigilo e o observou. Tinha o rosto contraído e parecia debater-se em
seu interior. Como se algo o atormentasse. Tinha feições bem marcadas e olhos grandes,
como duas amêndoas, que se ocultavam atrás das pálpebras fechadas. Seu cabelo negro

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caía sobre a testa e foi o primeiro que Laetitia correu. Com um pequeno tecido úmido,
limpou a testa das mechas aneladas que se apoiavam ali. O contato com o pano molhado o
fez sobressaltar-se e os músculos, de repente, deixaram de esticar-se. Parecia que antes, o
guerreiro tinha estado todo o tempo em guarda. Agora, depois da intervenção de Laetitia,
estava um pouco mais calmo.
Começou a passar o tecido pelo pescoço, com muito cuidado, para que o frio do tecido
não o alterasse em seu interior. Ela sabia que tinha que limpá-lo. “Manter um corpo limpo é
a melhor maneira que seja saudável”, dizia sempre o Prior, quando a ensinava as artes de
tratar aos doentes.
Continuou para baixo. Passou as mãos por seu peito e teve que voltar a molhar o pano
em um balde onde depositavam a água para os pacientes do hospital. A luz entrava pela
janela e ela não acreditou necessitar da vela para ver o corpo de Ramiro.
Observou com atenção o lugar e a luz de fora lhe dava um aspecto pálido, uma palidez
que contrastava contra a pele dourada do homem que estava cuidando. Continuou
passando o tecido por seu torso, seu peito parecia interminável. Uma mulher podia perder-
se nesse lugar. Imaginou sua cabeça recostada contra esse peito, imaginou os braços do
guerreiro rodeando-a, acariciando-a com cuidado para não lhe fazer dano. E de repente
compreendeu o que estava pensando. E recordou o beijo e as advertências de Blanche.
Terminou com rapidez de limpá-lo e se ocupou da ferida. Estava para abrir a atadura,
quando escutou ruídos no corredor. O rosto de Ramiro se contraiu novamente, alerta.
—Esta é a melhor hora. Mais perto da manhã, o processo demora mais. Em troca, no
meio da noite, o poder do veneno se multiplica.
—Já não quero esperar. Devemos atuar o quanto antes possível.
—Quer vê-lo? Quer ver como se retorce quando o preparado entra em seu sangue?
—Agradeço. Prefiro descansar. Amanhã tenho que dispor a chegada dos homens.
Laetitia reconheceu a voz do curandeiro e a do Abade do outro lado da porta. Escondeu-
se na zona onde estavam os baldes de água. Ali o teto fazia uma curva e se unia com o

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chão. Era um lugar escuro e ficou quieta com o pano na mão, enquanto escutava como
abria a porta e o passo lento e silencioso de Marcabru que entrava no quarto.
O corpo de Ramiro pareceu esticar-se. Laetitia o observava de seu esconderijo e tentava
não tremer, nem fazer ruídos. Sabia que se a encontrasse, podia ser fatal para ambos.
Entretanto, a soberba do curandeiro não o permitiu ver a seu redor. Confiava cegamente
em seu plano e não se precaveu sequer da ligeira umidade que refrescava o corpo de
Ramiro. Com sigilo, introduziu o veneno em sua boca. Tinha a forma de um fruto. Ao
contato com a saliva, começava a desfazer-se e, dessa maneira, vertia a nociva substância
no interior da vítima.
Os músculos da frente de Ramiro se contraíram e tossiu algumas vezes. Logo se acalmou,
mas em seguida começaram algumas convulsões e todo o corpo do guerreiro se sacudiu
sobre a cama em que agonizava.
O curandeiro pôs sua pesada mão sobre o abdômen de Ramiro e pressionou para baixo.
Não se incomodava em machucá-lo. Simplesmente queria que cessasse nesses movimentos
repentinos. Não explicava por que podiam acontecer, mas supôs que se tratasse da ação do
veneno potencializado pela ação da noite. Sorriu.
—Amanhã já não estará entre nós - prometeu a Ramiro antes de retirar-se.
Laetitia permaneceu escondida uns minutos mais. Queria estar segura que Marcabru não
voltaria. Com lentidão se levantou e se aproximou de Ramiro. Tirou o veneno de sua boca e
o guardou em um bolso do vestido para desfazer-se dele quando saísse. Revisou a ferida
em pouco tempo e se deu conta que estava quase cicatrizada.
Refletiu sobre as convulsões. A ela também tinham impressionado. Nunca tinha visto
uma reação tão desmedida. Isso falava da força que tinha Ramiro. As convulsões
mostravam a luta em seu interior entre o veneno e o antídoto. E ela sabia que o antídoto
junto com a força do guerreiro venceria.
Ficou junto a ele, passando o pano frio por seu rosto. Estava contraído e com as
mandíbulas rígidas e os dentes apertados que chiavam de momento em momento. Pensava

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que teria que indicar a Xavier que administrasse o antídoto perto do meio-dia. No
momento de apogeu do sol, teria um efeito muito mais intenso.
—Amanhã estará entre nós. —Laetitia se aproximou até seu ouvido para sussurrar as
palavras com uma ternura da qual não se acreditava capaz.
Depois, acariciou seu rosto com o pano úmido até que suas feições relaxaram por
completo. Parecia que Laetitia era capaz de acalmá-lo. Suas mãos tinham um poder sobre
ele, além da consciência.

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Capítulo 8

Seguia solitária através da sombra quando a presença de Xavier a sobressaltou.


—Não deve se ocultar assim. Assustou-me.
—Desculpe. Estava nervoso por sua causa. Escutei as vozes de Wolfgang e Marcabru no
corredor.
—Tive que me esconder. O curandeiro administrou o veneno enquanto eu estava aí.
Xavier fez o sinal da cruz e rezou em voz muito baixa.
—Viu você? —perguntou finalmente.
—Não, consegui permanecer oculta. Além disso, está tão crédulo de suas artes malignas
que não pensa que alguém possa enfrentá-lo.
O religioso respirou aliviado.
—Suponho, então, que já o tirou da boca dele. — Laetitia colocou a mão no bolso e
mostrou o que restava do veneno. —Já vejo. Bom, isso está muito bem. Quer que lhe dê o
antídoto agora?
—Não, deve esperar o meio-dia. Esse é o momento em que terá seu maior efeito.
—Confio que sarará. Estive rezando por isso.
—Eu também. Virei amanhã de noite.

Laetitia voltou para o lar perto do amanhecer e procurou onde dormir. Custava a ela esta
nova rotina de desaparecer pelas noites e cobrir-se em algum lugar do lar sem ser vista
para, pelo menos, dormir algumas horas. Tinha escolhido um pequeno abrigo perto da
horta onde guardavam as ferramentas para poder descansar sem ter que dar maiores
explicações. Enquanto se acomodava no pequeno espaço, pensava nos episódios da noite
anterior. A ideia que quase tinha sido descoberta a aterrava. Preocupava-se o que pudesse
acontecer com suas amigas do lar. Sabia que o que poderiam fazer a ela era pouco, mas

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que qualquer desculpa seria suficiente para atacar o lar e desarticulá-lo. Pensou, como cada
vez que se sentia triste, em sua mãe. Recordava sua infância em Béziers e a rotina que
tinham. Ela gostava de acompanhar sua mãe pela cidade, em especial, quando tinha
produtos para vender no mercado. Em Béziers funcionava um lar similar ao de Montaillou e
todos os que colaboravam, contribuíam com seus produtos para que pudessem ser
vendidos. Uma vez por semana, Helena, a mãe de Laetitia, subia pelas ruas junto com
alguns ajudantes e punha à venda os produtos do lar. Laetitia brincava entre os
improvisados postos de vendas que não eram mais que o que os atendia e suas
mercadorias exibidas em sacos ou tonéis. Sua mãe devia ter um olho atento em que não
roubassem o pagamento ou, diretamente, em que não furtassem nada e o outro em
Laetitia que estava acostumada a mesclar-se entre as pessoas e conversar com todos até
sumir de vista. Já então, quando ainda era uma menina e o tempo da Cruzada não chegou
sobre Béziers, todos a queriam. Voltava cheia de presentes de seu passeio pelo mercado, e
Helena a repreendia por ter se afastado, mas não era capaz de zangar-se de tudo com sua
filha.
Laetitia não sabia nada de seu pai e fingia que não se importava, embora, na realidade,
observava com atenção cada um dos homens do mercado para ver se tinha algum parecido
com ela. Durante muito tempo acreditou que um dos camponeses que ia vender cereais era
seu verdadeiro pai. Mas depois confirmou que não podia ser, quando o senhor foi
acompanhado de seus filhos e não se achou parecida com nenhum de seus supostos
irmãos.
Dormiu pouco a pouco, no desconforto do abrigo, com a lembrança de sua mãe. Antes
que caísse completamente adormecida, penetrou a lembrança da noite anterior, quando
banhava o peito de Ramiro. Lançou um longo suspiro, enquanto recordava a expressão de
tranquilidade e calma que tinha posto depois que ela percorresse com sua mão o rosto do
guerreiro. Pensou, entretanto, que ela queria ser uma perfeita. Que os homens não tinham
lugar em sua vida. Não queria cair no engano de sua mãe, de um homem que a tinha

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abandonado. Não, ela pensava dedicar sua vida a pulverizar a fé cátara. Depois, com a
lembrança de sua mãe a acalmando, dormiu profundamente.

Blanche despertou Laetitia que mal sentiu uma mão em sua bochecha e, entre sonhos,
supôs que era sua mãe. Logo abriu os olhos e se sobressaltou.
—Como sabia que estava aqui? —perguntou a moça ainda sonolenta.
—Laetitia, é como minha filha. Sou capaz de te encontrar em qualquer esconderijo.
—Dormi pensando em minha mãe. Às vezes sinto falta, sabe? Às vezes só posso dormir
se sentir que é ela que me embala.
—Sua mãe foi uma boa amiga minha. Ensinou-me como dirigir um lar e propagar nossa
fé. Então, vim para cá e trabalhei em nossa casa com muito esforço. Ela foi um exemplo
para mim. O que fazia ali em Béziers sempre foi uma inspiração para nós em Montaillou.
—Mas ela não foi uma perfeita.
—Não, claro que não foi. Ela escolheu ter você. E nunca quis empreender o caminho de
um perfeito. Só se interessava poder cuidar de você.
—Eu não quero que me aconteça o que aconteceu com ela. Não quero que um homem
me abandone. É por isso que escolho o caminho de um perfeito.
—Mas Laetitia, a fé não pode ser escolhida por despeito. Você tem que querer transitar
o caminho e não fazê-lo porque você pensa que sua mãe sofreu. Ela estava contente com
sua decisão. Por isso te chamou Laetitia, que quer dizer felicidade.
—Mas esta é minha decisão e você sabe de meu compromisso com a fé.
—Está bem. Eu sei que quer chegar a ser uma perfeita. Agora, me diga, onde passou as
duas últimas noites?
—É uma longa história.
Blanche estendeu uma mão e a ajudou a sair do pequeno abrigo. Acompanhou-a para a
cozinha do lar e lhe serviu algo para que bebesse.
—Agora, me conte.

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—Estou curando o guerreiro que trazia a relíquia. Vou todas as noites até a Abadia e
Xavier abre a porta.
—Ah, já sabia que se tratava de algo assim.
—Só aceitou porque pedi.
—É claro que sim - disse Blanche com ironia.
—Insisti, em princípio, porque queria curar a ferida. Trazia lembranças e, além disso, não
queria deixar que alguém mais que tivesse atendido morresse. Logo, vi que o estavam
envenenando e me preocupei. Não entendo o que trama o Abade, mas não acredito que
possa ser nada bom para nós.
—Não, não deve ser nada bom. Se não vacila em matar um dos seus, então não vacilará
em nos atacar.
—Devemos estar alertas.
—Talvez a festa do povoado seja uma ocasião em que o Abade queira atuar.
—Tentarei alertar a todos durante os preparativos. Que não confiem no Abade nem em
seus emissários.

Os três homens decidiram que deviam esperar. Tinham que organizar-se para poder
raptar Laetitia e obrigá-la a levá-los até a relíquia.
—Estive pensando - disse o menor com o rosto sério e uma mão no queixo - que, talvez,
convenha fazer que nos empreguem para trabalhos nas granjas e ser parte do povoado.
—Agora quer trabalhar - opinou o do capuz.
—Não é que queira, mas sim me parece que pode nos aproximar de nosso objetivo.
—Por que não se cala e volta a sonhar com ela?
Começaram a brigar e o chefe os deteve. Continuaram caindo um pouco mais no chão e
dando golpes graciosos e pouco efetivos. O chefe se meteu na briga e com dois murros fez
que os dois homens se separassem.
—Tá, tá.

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—Ele começou - disse o pequeno e apontou seu companheiro.
—Não é verdade - negou o outro— Foi ele que começou e não aceita que está
apaixonado pela moça.
—Ouça para mim ela só representa uma recompensa.
—Bom basta. Não quero presenciar mais brigas. É uma boa ideia.
—Qual? —disseram os dois em coro.
—A de conseguir trabalho no povoado, até que possamos elaborar um plano.
—Viu? —disse o pequeno ao do capuz.
O outro só resmungou.
—Já disse que basta - gritou o chefe.
Procuraram um emprego entre as granjas do povoado e conseguiram sem nenhum
problema. Desde que a Abadia comprava, os camponeses precisavam contratar mais gente
e estavam ganhando dinheiro. Todos, portanto, estavam contentes com o abade Wolfgang.
Além disso, já tinham começado os preparativos para a festa anual do povoado.

Domingo avançava em seu cavalo lentamente. Os homens da conformada guarda do


Abade cavalgavam em bom ritmo, mas o velho escudeiro os atrasava. Propôs percorrer o
caminho que unia Carcasona com Montaillou em uma semana. Um cavaleiro podia fazer o
trajeto em dois dias, se assim desejasse. Mas a companhia era necessariamente mais lenta.
Deviam cavalgar todos juntos e, além disso, queriam mostrar em cada povoado sua
existência. Necessitavam que soubessem que Montaillou já não estaria desguarnecida, mas
sim um grupo de soldados defenderia o Abade.
A seu passo pelas diversas cidades, uniram-se outros homens ao grupo. Gente que
contribuíam os senhores de cada lugar como um sinal de respeito para as decisões do
Conde Montfort e a Santa Igreja.
Sem treinamento em conjunto, os homens se somavam a guarda.

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—Estou cansado de cavalgar e de me deter em cada povoado. Parecemos mercadores e
não soldados.
—Ei! Ancião! —um dos líderes chamou Domingo, o escudeiro de Ramiro.
Domingo se aproximou com seu cavalo até onde estava quem o chamava. Sua função
era ser submisso e sabia que os soldados podiam deixá-lo a sua sorte em qualquer povoado
se não os satisfizesse.
—O que acha que aconteceu com seu amigo Ramiro e a relíquia? Ninguém falou mais do
tema. E agora nos mandam com toda essa pompa.
—Não sei. Mas não acredito que nada bom possa estar acontecendo.
—Talvez tenha razão. Estamos fazendo muito alarde em cada lugar pelo que passamos.
Parece que todos querem que se saiba que o Abade de Montaillou agora tem seu pequeno
exército. Isso não ocorreria se Ramiro tivesse entregado a relíquia. Nesse caso, seria com a
relíquia com o que o Abade estaria fazendo alarde e não conosco.
—Fala com verdade - disse Domingo, solene.
—Ficam alguns povoados por percorrer antes de chegar até a Abadia de Montaillou.
Talvez na próxima semana estejamos ali e quando chegarmos espero encontrar são e salvo
seu amigo.
—Eu também.

Laetitia estava perto de Ramiro. O quarto estava iluminado pela lua e ela decidiu não
acender nenhuma vela para não chamar atenção. Tinha ido mais tarde, confiada que o
curandeiro seguiria dando as dose de veneno de noite.
Não se enganava. Marcabru já tinha estado ali e ela teve que tirar o veneno da boca do
guerreiro. Não teve convulsões como no dia anterior, a não ser apenas seu rosto contraído,
como se estivesse preocupado. Aliviou-se em seguida, quando ela começou a banhá-lo. Era
a suave pressão da mão de Laetitia que o acalmava. O que lhe permitia pôr uma expressão
similar a um sorriso em seus lábios.

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Laetitia continuou com sua rotina, embora se perguntasse se era necessário que ela o
atendesse pessoalmente. Estava sarando e sabia como neutralizar o efeito do veneno.
Xavier podia cuidar dele e ela já não teria que correr o risco nem dormir no abrigo pelas
manhãs.
Entretanto, continuava ali. Cuidava dele com uma dedicação desmedida. Cuidava para
que suas mãos atuassem como carícias sobre o rosto de Ramiro, que instantaneamente
parecia regozijar-se com o mínimo contato com ela.
Também seu abdômen reagia, quando as mãos de Laetitia passavam por ali
embainhadas em um pano úmido que mediava entre as carícias que prodigalizava e a pele
do guerreiro que permanecia inconsciente.
Ramiro despertou de repente e abriu os olhos. Viu a moça, mas não a identificou
instantaneamente. Voltou a fechá-los e se fingir adormecido. A cada tanto espiava para ver
o que é que ela estava fazendo. Sentiu-a passar sua mão pela zona onde tinha sido ferido.
Então recordou a ferida. E a briga no bosque. E o beijo. E Laetitia. Decidiu manter os olhos
fechados. Gostava da ideia que a moça cuidasse dele.
Depois de revisar a ferida, Laetitia voltou a cobri-la com cuidado. Observou o peito de
Ramiro. Tinha-o contemplado antes e gostava. Tinha pensado nele, cada vez que seus
pensamentos chegavam a esse ponto, ela os separava de sua mente. Decidiu que precisava
refrescá-lo nessa zona. Começou a passar o tecido úmido por onde terminava o pescoço, no
oco que forma o final da clavícula, justo debaixo do pomo. Logo decidiu continuar para
baixo. Sentia a pele em suas mãos através do magro tecido, quase inexistente. Seu corpo
tremia imperceptivelmente, sua boca estava levemente aberta, trêmula e seus olhos
permaneciam fixos no que fazia.
Não queria ver nada mais. Sentia que se levantasse a vista podia perder o equilíbrio.
Continuou passando sua mão com delicadeza pelo peito de Ramiro, alheia a todo o resto,
apertando sua palma contra o tecido para que desaparecesse de uma vez, para não senti-lo
no meio deles dois.

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Então ele gemeu.
Não foi uma exalação de prazer, a não ser um pequeno regozijo. Laetitia deixou o tecido
onde estava e retirou a mão. Observou o rosto de Ramiro que parecia ter saído da profunda
letargia dos dias anteriores. Não tinha os olhos abertos, entretanto não se via como um
ausente. Laetitia pensou no que fazer, mas seu corpo atuou por ela. Voltou a tomar o pano
e a passá-lo pelo mesmo lugar onde antes se deteve. Agora podia sentir a pele dele um
pouco úmida, um pouco avermelhada pelo frio.
E ele gemeu de novo.
Eram suas carícias que o provocavam, mas Laetitia não queria acreditar. Retirou a mão e
guardou o pano no bolso de seu vestido.
Ramiro abriu os olhos.
—Que bom que despertou - disse Laetitia com a voz um pouco trêmula.
—Quanto tempo fiquei assim? —perguntou Ramiro.
—Alguns dias, não muito tempo.
—Onde estou?
—Na Abadia de Montaillou.
—E o que faz aqui, uma mulher, dentro de uma Abadia de homens?
—Eu não sou daqui.
—Isso não responde o que faz.
—Nos conhecemos no bosque, perto do arroio... —disse Laetitia dúbia— Não me
recorda?
Ramiro tocou a boca. A boca com que a tinha beijado. Claro que recordava. Não podia
esquecer a imagem de Laetitia no bosque, na água do arroio, tentando resgatar aquela flor.
E logo o beijo. Tinha servido para lhe dar a relíquia, claro. Mas ele tinha escolhido fazer
desse modo, porque tinha querido assim. Tinha desejado beijá-la no instante em que a viu
agachada, recolhendo flores. No instante em que o sol pousou sobre seus cabelos loiros e

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seus olhos se confundiram com a água do arroio. Tinha parecido nesse momento, que a
conhecia de algum lugar longínquo, mas não podia precisar de onde.
—Não. Não me lembro - mentiu. Precisava saber mais a respeito de sua situação. Não
desconfiava da moça, mas queria saber o que acontecia. —Em que situação nos
conhecemos? —perguntou ele um pouco divertido.
—No bosque... Perto do arroio. —Não se animava a dizer nada mais.
—Deveria me contar algo para que me lembre disso - respondeu Ramiro. Cada vez
gostava mais desse jogo. Notava como ela ficava incômoda.
—Feriram-no - ela não parecia titubear— e eu o ajudei a chegar até aqui, onde podiam
curá-lo.
—Entendo. E por que vem na madrugada ver-me?
—Ver se está bem.
—Não pode fazê-lo durante o dia?
—Não sou bem-vinda aqui. Sou cátara.
Ambos ficaram em silêncio.
Ramiro não tinha avaliado essa possibilidade. A moça não era cristã. Ficou um momento
pensativo, sem saber o que dizer. Supunha que era um risco muito alto para uma mulher
expor-se a ir à Abadia no meio da noite ver como estava um doente. Reconhecia que era
ela que devia tê-lo levado ali, não havia outra possibilidade. Recordava haver dito a alguém
aonde ia, depois de ter sido ferido pelos três homens e ficar desacordado. Além disso, ela
tinha a relíquia. Não tinha que importuná-la, se queria recuperá-la. Havia coisas que não
compreendia, mas ia ter tempo de perguntar tudo à moça e, sorriu quando pensou como ia
se divertir averiguando.
—Por favor, não diga nada. O Abade suspeita de nós e se você falar... —Não pôde
continuar. A voz falhava. Todos os sucessos dessa noite se amontoavam na lembrança e
não era capaz de colocar cada coisa em seu lugar— Tenho que ir. Tenho que sair daqui
antes que amanheça.

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Ramiro tentou levantar-se para detê-la. Não sabia por que, mas queria estar perto da
moça uns minutos mais. Não pôde. A ferida o recordou seu estado e o devolveu à cama
agitado, como se tivesse passado o dia em uma batalha. Laetitia saiu a toda velocidade do
quarto.
E fechou a porta com rapidez, mas sem fazer ruído. Ramiro mal escutou seus passos e
fechou os olhos. Tentou recordar o som que ela fazia enquanto descia pela escada.

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Capítulo 9

Jurou que não ia voltar mais a Abadia e passou longe da porta de Xavier que a esperava e
que se surpreendeu, quando Laetitia não parou para falar com ele. Correu pelas escadas
tentando não fazer ruído e não enredar-se com sua própria túnica. Não sabia como tinha
obtido, mas conseguiu sair da Abadia e agarrá-la pelo braço sem problemas. Logo tropeçou.
Laetitia o ajudou a levantar-se e se desculpou por não ter se detido para falar com ele.
—Filha, parece que viu o demônio.
—Não está de tudo enganado.
—O que aconteceu?
—Despertou. Voltou a si.
—O guerreiro?
—Quem mais?
—Vejo que te alterou.
—Desculpe Xavier. É que fiquei nervosa. Ele me pôs nervosa.
—Aconteceu algo?
—Nada em particular, mas me perguntou o que fazia aqui e não pude explicar tudo. Não
sei se poderia entender meus motivos. Cuide dele, por favor. Estarei em contato. Agora
desejo descansar.
—Vai, filha. Eu cuidarei para que Marcabru não tente envenená-lo novamente.
—Não acredito que o deixe. Parece muito... —procurou a palavra adequada— tenaz —
disse por fim, embora ela tivesse pensado em “teimoso” ou “intratável”. Não cabiam
dúvidas que ele a tinha reconhecido imediatamente e tinha pedido que ela explicasse como
se conheceram só para divertir-se. Havia tocado a boca duas vezes em uma clara alusão ao
beijo que tinha dado sem que ela pedisse. Odiava a si mesma por não ter podido responder
do modo que merecia que o fizesse. Tinha estado vacilante, talvez porque, quando ele

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despertou, ela ainda estava concentrada nos gemidos que ele tinha proferido enquanto
Laetitia o banhava. Embora tampouco pudesse dizer que o houvesse banhado somente.
Não sabia por que tinha feito aquilo e isso também tinha ajudado para que não soubesse
responder. A surpresa tinha sido muita.
—Melhor que seja tenaz. Ainda tem que recuperar-se e você e eu sei que nem Macabro
nem o Abade o querem vivo. Vai e deixa minhas saudações no povoado.
—Obrigado, Xavier. Vai amanhecer logo. Devo me apressar.

Laetitia chegou ao lar cátaro, quando começava a amanhecer. Decidiu deitar-se e


dormir, mas desta vez não se abrigou em sua cama de sempre. Já tinha visto Blanche e já
não era um segredo que ela ia à Abadia pelas noites para cuidar do doente ilustre do qual
todo o povoado falava. Além disso, tampouco pensava voltar para esse lugar. Ramiro já
estava bem e isso concluía seu trabalho. Laetitia só tinha querido assegurar-se que não
morresse por causa da ferida que lhe fizeram no bosque. Aquela que lhe infligiram, quando
ela o observava escondida entre as árvores.
Recostou-se e dormiu, mas não teve um sono tranquilo. Dava voltas de um lado para o
outro e contraía os músculos do rosto. Disse algumas palavras que chamaram a atenção de
Blanche que, a cada momento, visitava-a para ver como se encontrava.
Despertou sobressaltada, banhada em suor. Com falta de ar e teve que inchar seus
pulmões várias vezes para poder normalizar o ritmo de sua respiração. Levantou-se da
cama e decidiu lavar o rosto. Pensou que devia ter muito mau aspecto. Molhou o rosto e
esfregou os olhos. Umedeceu o cabelo e a mescla de brisa fresca e água lhe deram uma
sensação de frescor que a ajudou a sair da letargia na qual se encontrava.
Foi para onde Blanche estava e decidiu falar com ela.
—Vejo que hoje voltou a Abadia.
—Sim, assim é. Blanche tenho que te pedir um favor. Preciso receber de novo a
consolamentum.

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—Laetitia, sabe que a consolamentum não é um jogo. Eu não posso lhe dar isso cada vez
que você sinta que se separou de seu caminho de perfeita. Além disso, tenho que entender
as circunstâncias e você tem que me mostrar que quer continuar com o caminho
empreendido.
—Sei. Mas as coisas me aconteceram de repente, sem que pudesse refletir sobre elas.
—Que coisas?
—Antes de qualquer coisa, aquele beijo. Eu não quis que me beijasse, mas aconteceu... E
depois nesta madrugada. Eu o estava limpando e logo ele gemeu, mas não foi um gemido
de doente, mas sim mais bem parecia como se gostasse. Eu repeti o gesto queria saber...
—Espera um segundo. O guerreiro que transportava a relíquia te beijou?
—Sim.
—Por que te beijou?
—Acredito que para aproximar-se de mim, para poder deslizar a relíquia entre minhas
coisas. Acredito que se deu conta que iam atacá-lo o e não tinha tempo de esconder o que
trazia de outra maneira.
—Que fazia ele contigo?
—Eu tinha caído à água e me resgatou.
—Entendo. Agora me explique o que aconteceu nesta madrugada.
—Eu estava banhando-o, como os últimos dois dias. Decidi voltar a passar um pano
úmido pela zona do peito. Ele soltou um pequeno gemido. Eu percebi que era uma
expressão de prazer e não um gemido. Tirei as mãos imediatamente. Mas depois me deu
intriga e voltei a repetir o procedimento. Queria saber se eram minhas mãos que faziam
que esse homem gemesse.
—Não é errado o que fez.
—Não sei. Não sei se não desfrutei fazendo isso. E você disse que se desfrutasse, então
não era o correto para um perfeito.
—Recordo o que disse.

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—E agora me sinto muito pior, porque compreendo que o homem já estava acordado,
que, quando eu passava minhas mãos por seu peito e ele gemia, estava se fazendo de
adormecido, que ainda não tinha saído da letargia que tinham provocado a ferida e o
veneno.
—Acredito que sua atitude e a do homem são diferentes. Em todo caso, o que importa é
que você não pode decidir se gostou das sensações com ele ou não.
—Não gostei! Não gostei que me beijasse e não gostei que gemesse esta manhã! —
gritou Laetitia.
—Então, não entendo qual é o problema. Por que quer receber a consolamentum de
novo? Se não gostou, não se afastou do caminho.
—Mas eu quero... Embora fosse para reforçar...
—Não terá que reforçar nada. Você conhece a liturgia.
—Mas...
—Sem “mas” Laetitia. Quando tiver bem claro o que te acontece com esse homem,
então poderei te dar um conselho e te ser útil. Até que não saiba, não vejo necessidade de
te conceder um sacramento que não sei se pode honrar. Não há nada de mau que este
guerreiro provoque coisas em você.
—Não me provoca nada. Detesto-o. Ele é o inimigo, o braço armado do Abade, o homem
que vem nos atacar. —ficou por um momento sem fala— Eu —disse hesitante— contei que
sou cátara. Não sei por que fiz isso. Tudo foi muito rápido e me tomou de surpresa.
—Vejo que, de algum jeito, confia nele.
—Não! —exclamou furiosa— Simplesmente... Não sei. Não o quero perto, me provoca
muitas suspeitas que sempre faça tudo com outras intenções: beija-me para esconder a
relíquia; finge dormir para desfrutar de minhas mãos.
—Para mim é igualmente suspeita a atitude do Abade que quer envenenar seu braço
armado. Há algo que não sabemos.

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Laetitia soprou. Não queria aceitar o que dizia Blanche. Só gostaria de receber uma nova
consolamentum e reafirmar suas crenças cátaras. Prometeu nunca vincular-se com
homens. E agora Blanche se negava a ajudá-la. E lhe dava muitas razões que não era capaz
de discutir. Ela não sabia como rebater, ficava sem palavras.
—Olhe Laetitia, eu quero que reflita em tudo o que ocorreu. Todos têm um momento
para ser perfeitos, uma vida para ser. Talvez essa vida não seja para você. Talvez, em sua
próxima vida possa deixar de reencarnar. Quando puder se decidir, falaremos novamente e
então, eu te darei a consolamentum.
A jovem olhou para o chão. Estava ofuscada, mas não queria discutir mais com Blanche.
Decidiu que era hora de dedicar-se a suas obrigações no lar, a seus remédios e a ajudar nos
preparativos da festa de primeiro de abril.

Os três homens trabalhavam em uma granja vizinha ao lar cátaro e tramavam quando
tinham um minuto livre, a forma de obrigar Laetitia a entregar a relíquia.
—Chefe - disse o pequeno.
—Não me chame assim na granja. Podem te ouvir.
—Está bem, chefe - respondeu e cobriu a boca com ambas as mãos.
—Me diga.
—Eu gosto desta vida. Não quero raptar ninguém para obter uma relíquia e uma
recompensa. Eu gosto de trabalhar aqui. Pagam-me, dão-me de comer e a terra é fértil.
—”Não quero raptar ninguém...” - replicou o chefe burlando-se das palavras de seu
subordinado— Fará o que já dissemos e ponto. Se então quiser cultivar e fazer queijos é
seu problema. Não estará livre até que não terminemos o que devemos fazer.
—Mas...
—Nada. Fará e ponto.
—Tem um plano, chefe? —perguntou o do capuz.

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—Acredito que a festa é um bom momento. Haverá muita confusão ali. Temos que
aproveitar essa oportunidade.
—Mas eu queria me divertir... —opinou um pouco triste o menor— Sabe chefe, há uma
camponesa que sorri cada vez que passo a seu lado e eu pensava que na festa, talvez,
pudesse roubar uns beijos.
—É um castigo o que eu recebo - disse o chefe e deu uma cabeçada em cada um de seus
assistentes.
Os três continuaram trabalhando, embora a cada momento os dois ajudantes olhavam
ao chefe com receio e comentavam entre eles.
—Às vezes o chefe me cansa - murmurou em voz muito baixa o do capuz.
—A mim também. Tinha me iludido com a camponesa... É muito bonita, sabe?
—A moça também é.
—Que moça?
—A que o chefe quer raptar.
—Ah. Sim, é formosa.
—Eu também queria vê-la na festa. Talvez se interesse por mim.
—Não pode ser que o chefe nos diga sempre o que temos que fazer.
—Por isso é o chefe.

Xavier foi ver Ramiro nem bem Laetitia desapareceu no caminho. Encontrou-o acordado
e tentando sair do hospital da Abadia.
—O que faz? —disse quando o viu de pé. Disse com tanta força que Ramiro se
sobressaltou.
—Vou, já estou bem. Tenho que me encontrar com o Abade e explicar minha missão.
—Você não está bem. Deve repousar ainda.
—Como sabe?
—Digamos que simplesmente sei.

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—Está no comando deste hospital?
Xavier riu com vontade.
—Não, por favor. Eu sou só o cozinheiro.
—Bem, então comunicarei o que quero para meu almoço. Se me permitir...
Xavier fez um gesto como se quisesse empurrá-lo, mas a altura e a textura física de
Ramiro o impediam. Não tinha a força suficiente para impor nenhuma decisão ao guerreiro
espanhol. Entretanto, não se amedrontou. Sabia que sua figura redonda cobria quase toda
a porta e parou diante. Não acreditava que Ramiro fosse empurrá-lo e, além disso, não era
tão fácil de mover. Pesava bem mais que uma pluma.
—Afaste-se, por favor.
—Não até que me escute. Volte para seu leito, por favor.
O soldado obedeceu muito à contra gosto e se sentou na beirada da cama. Olhou-o com
olhos severos que fizeram que o religioso se sentisse um pouco assustado. Xavier era por si
só, assustadiço, mas Ramiro conhecia a perfeição de qual olhar usar para intimidar alguém.
—Me explique por que devo ficar.
—Você sofreu uma ferida bastante profunda que o fez chegar inconsciente à Abadia.
Trouxe-o uma jovem do povoado que o encontrou no bosque, quase desacordado.
—Veio ver-me esta manhã, mas tampouco soube me explicar por que o fazia.
—Ela cura às pessoas, mas o Abade proibiu. Ninguém pode saber que ela... —Xavier se
arrependeu do que disse. Não sabia se podia dar esse poder ao estranho que tinha diante.
—Entendo - soltou cortante Ramiro— Ninguém pode saber que me ajudou, porque pode
ser castigada. Ela disse que era cátara. É seu amigo?
—Eu... Bom... Né...
—Responda - exigiu com um vozeirão.
—Sim, sou. Sei que não é o que se vê habitualmente em Carcasona, mas aqui
convivíamos todos em harmonia. Não havia tantas distinções. O Prior anterior -
umedeceram os olhos - não perseguia os infiéis, como os chama o Abade. A instalação da

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Abadia mudou as regras. Eu vivia no povoado e tive que vir para cá. E ela já não pode curar
às pessoas. Tem que fingir acreditar em algo que não crê.
—Então é seu amigo.
—Criou-se conosco. Seus pais morreram. Quero-a como uma filha.
—Por que vinha me curar? —enfatizou a última palavra como um sinal de descrédito à
história que lhe estavam contando.
—Não queria que acontecesse nada mau com você. A primeira noite veio ver como se
encontrava, nada mais. Apenas se interessava saber se seu tratamento estava
encaminhado. Suponho que se tratava de uma questão de consciência. Ela o considerava
seu paciente.
—Já vejo. Ela é extremamente boa - disse com ironia.
—Deveria deixá-lo ir ver o Abade e que seja o que Deus quiser com você. Parece uma
pessoa intratável.
—Sou um soldado. Não posso confiar em todo mundo.
—Então não confie. Ela veio porque se importou com sua saúde e continuou vindo
porque descobriu que o queriam envenenar.
—O que? Quem?
—O assistente do Abade. Um curandeiro. Dava isto para você. —Xavier lhe mostrou uma
das porções de veneno que tinha conservado— Não se ativa se você o tocar, só se o ingerir.
Ramiro olhou com atenção essa espécie de fruto negro que o outro mostrava na palma
da mão.
—Isso não prova nada.
—Faça o que quiser - disse ofendido Xavier— Eu já o pus de sobre aviso.
No fundo de seu coração, Ramiro acreditava no que dizia o religioso. A moça o tinha
resgatado e o padre gordo não parecia mentiroso. Pensou que tinha que fazer uma visita ao
Abade e a seu assistente. E que depois tinha que ir ao povoado falar com a moça.

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Terminou de vestir-se e saiu do quarto em que tinha estado convalescente desde que
tinha chegado a Montaillou. Golpeou a porta do quarto onde o Abade trabalhava e não
esperou ser atendido. Não lhe passou despercebida a expressão de Wolfgang e de seu
ajudante Marcabru que pareciam ter visto um fantasma.
—Senhor...
—Ramiro de Zaragoza. Apresento-me. O conde Simón de Montfort me encomendou a
tarefa de trazer uma parte da Santa Cruz a esta Abadia para celebrar sua fundação. No
caminho fui emboscado por três homens e assaltado. Não sei o que aconteceu com a
relíquia - mentiu com este último.
—Surpreende-nos sua melhoria. Até ontem estava à beira da morte - disse o Abade
ainda sem poder acreditar na presença de Ramiro ali.
—Eu mesmo o atendia e não vi possibilidades...
—É verdade. Eu sentia em minha agonia um veneno que se apoderava de mim e, então,
apareceu um anjo que me trouxe de volta - mencionou a palavra “anjo” e pensou em
Laetitia, a moça estava se apropriando de seus pensamentos. Pensava nela, mas também
olhava com atenção a expressão dos dois cúmplices que tinha diante quando disse a
palavra “veneno”.
—É uma reação comum - disse Marcabru um tanto áspero.
— Como é, alegramo-nos que esteja bem, senhor.
—Eu também me alegro - soltou Ramiro não sem ironia.
Houve uma pausa. O Abade estudou o guerreiro com o olhar. Estava parado diante de
sua mesa de trabalho e parecia enorme. A sombra de Ramiro se projetava sobre a figura do
Abade e a eclipsava. Quando falava, inclinava-se um pouco para frente e parecia que podia
abranger todo o quarto e sufocar às duas pessoas que ali o olhavam intimidadas.
Depois falou medindo suas palavras.
—A relíquia foi roubada, então.

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—Não posso assegurar nada. Não sei se a tinha quando cheguei aqui, não me recordo. —
Voltou a mentir.
—Não entendo. Se você não a tem, então deve ter sido roubada.
—Não estou certo se os homens que me atacaram conseguiram roubá-la ou se,
simplesmente, foram espantados logo depois de brigar comigo.
—Mas o feriram e derrubaram - interveio Marcabru.
—Eu não caí até que eles abandonaram o lugar. Depois perdi a consciência. Cheguei aqui
como pude, embora não recordo como. Desabei na entrada. O resto da história são vocês
que sabem. Eu não posso assegurar que não me tenham despojado da relíquia aqui.
—Como se atreve? —bramou o Abade furioso e pôs ambas as mãos sobre a mesa e se
levantou. Bastou um gesto de Ramiro para que voltasse a sentar-se.
—Não me atrevo a nada. Simplesmente, digo que não posso assegurar nada, porque
estava inconsciente. Não digo que o tenham feito. Eu não me recordo.
—Mas você tinha a relíquia quando o feriram?
—Quando me feriram a única coisa em que pensei foi chegar até aqui. Fiz com a
intenção de completar minha missão. Se aqui não a tiverem, tentarei encontrá-la. Nunca
deixei uma missão sem completar.
—É obvio que não a temos - disse irritado o Abade.
—É o que eu dizia - respondeu Ramiro com um sorriso nos lábios.

Ramiro procurou Xavier e pediu algo de comer.


—Não sei se devo preparar algo, talvez você pense que sou eu quem vai envenená-lo
com essa comida.
—Então, deverá prová-la primeiro. —Tinha decidido experimentá-lo.
—Muito gracioso, mas você senhor Soldado não me dá ordens - respondeu irritado
Xavier.

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—Falei com o Abade. Surpreenderam-se de me ver. Era como se tivessem diante de um
morto ou um fantasma.
—Eu disse.
—Sim, sei. Agora, me faça algo para comer e me diga como chegar ao povoado.
Xavier preparou algo que Ramiro comeu com uma velocidade assombrosa. Pediu uma
segunda ração. Era como se não fosse saciar-se jamais. Até que finalmente disse.
—Preciso ir ao povoado.
—Eu vou ali agora. Se quiser pode me acompanhar.
Os dois homens foram para onde estavam os cavalos e Ramiro voltou a montar o seu,
depois de bastante tempo. Ia a um passo moderado com Xavier, o que impacientava o
guerreiro que preferia ir a toda velocidade. O religioso, em troca, desfrutava vendo como
seu acompanhante morria de impaciência para chegar ao lugar.
—Me conte o que quer o Abade. Que trama.
—Não sei. Ninguém sabe com certeza. Suponho que o que mais quer é poder. Ser o
senhor deste lugar.
—Enfrentou à população?
—É estranho. No princípio, quando chegou, disse que pensava desterrar o catarismo
destas terras. Depois proibiu o hospital que Laetitia dirigia - a menção da moça provocou
uma mudança no rosto de Ramiro— mas não se enfrentou com ninguém. Compra produtos
para a Abadia de todos os camponeses e todos o respeitam e o estimam.
—Mas o temem.
—Todos o temem. E, pessoalmente, não acredito que estejam errados. Trama algo,
como você disse. Algo sobre essa relíquia.
Ficaram em silêncio e seguiram o caminho para o povoado. Ramiro agradeceu a Xavier
por lhe mostrar o caminho e começou a percorrer o povoado. O lar cátaro se destacava
entre as outras construções. Estava aonde começava o bosque e se via de longe.

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Ramiro se aproximou sem duvidar. Precisava falar com a moça. Gostou que tivesse sido
ela que se ocupou de curá-lo. Sentia que devia umas desculpas, mas não acreditava que
essas palavras pudessem sair de sua boca frente a ela. De fato, sentia que Laetitia tinha o
poder de deixá-lo calado, de fazer coisas que o prejudicassem. Tinha salvado-a no bosque
aquele dia, em vez de ter se ocupado dos três homens torpes que o perseguiam desde
Puivert. Isso tinha dado a oportunidade que o atacassem.
Sentia que devia agradecer a Laetitia, mas também sabia que por ela as coisas se
complicaram. Ele era um soldado, dizia constantemente, e não tinha que se preocupar se
por acaso o Abade queria fazer algo com as pessoas do povoado. Ele tinha que entregar
uma relíquia e ponto. Não queria fazer outra coisa. Agora, a moça tinha complicado tudo.
Reconheceu-a quando se aproximava do lar. Estava no limite com o bosque. Vê-la era
perder o fôlego, disso não tinha dúvidas. Tinha o rosto branco como à lua e os cabelos
como o sol. Seus olhos eram o mar que não estava longe dali e sua boca um fogo. Via os
lábios perfeitamente delineados da moça e custava esclarecer em sua mente que tinha sido
por culpa dela que o tinha levado a essa situação quase desonrosa.
Logo disse que não, que os homens já o estavam seguindo e que ele sabia que devia tê-
los atacado antes, mas que pareceram divertidos e os tinha deixado fazer. Entretanto,
Laetitia havia se interposto em seus planos, isso ficava claro. Uma mecha de cabelo loiro
como o trigo caiu sobre sua testa. Ramiro teve a intenção de aproximar-se e tirar com a
maior suavidade que suas mãos permitiam. Parou porque a viu falando com outra moça.
Alguém da idade de Laetitia.
Esperou que a conversa entre elas terminasse e se aproximou sigiloso com seu cavalo.
Fez um volta e se meteu no bosque, onde amarrou o cavalo ali e se aproximou caminhando
para onde estava Laetitia.
Aproximou-se dela com calma e sussurrou.
—Tem que me devolver à relíquia.

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Ela se sobressaltou. Afastou-se uns passos e o olhou intensamente. Era muito alto e
conhecia a amplitude de seu peito e suas costas. De pé pareceu ainda maior do que
supunha. Observou os olhos negros de Ramiro e seu cabelo escuro que formava
redemoinhos com o vento. Parado frente a ela parecia mais uma árvore no bosque e seus
fortes braços eram os ramos e suas mãos enormes milhares de folhas. Desceu a vista e foi
como se voltasse a si. Aquele homem a sobressaltava. Sabia que não podia lhe dar com
gosto a relíquia. Sabia o prejudicial que podia ser para os Cátaros de Montaillou que o
povoado se transformasse em um lugar de peregrinação cristã. Só daria mais e mais poder
ao Abade e, quando tivesse poder suficiente, exterminaria às pessoas que Laetitia queria.
Se pudesse impedir que chegasse essa relíquia à cidade, ia fazer. Sem olhá-lo nos olhos,
disse.
—Não. Não direi jamais onde está.
—Eu não estava pedindo - respondeu ele imediatamente— É uma ordem.
—Um inimigo não pode me dar ordens. E isso é o que você é para mim, um inimigo que
deve invadir meu povoado.
Ramiro a segurou pela mão e a aproximou de si. Não tinha sido gentil, mas tampouco
violento. A força que utilizou foi correta: enérgico e delicado ao mesmo tempo. Estavam
tão perto que a figura de Ramiro cobria a de Laetitia, como se ela pudesse esconder-se
atrás dele. Ramiro se inclinou um pouco para frente e Laetitia arqueou seu corpo para trás.
De todos os modos ficaram perto, tão perto que podiam sentir a respiração um do outro.
Então ele, em um tom claro e firme, mas sem levantar a voz disse:
—Vai me devolver essa relíquia.

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Capítulo 10

Quilos e quilos de comida estavam sendo preparados para a festa anual do povoado.
Celebrada em primeiro de abril, que era a data em que começava a primavera. Quer dizer,
o tempo da colheita. O tempo em que os frutos cresciam esplêndidos nas árvores e o
trabalho de todo o ano era visto nos vinhedos e culturas. As granjas empanavam de
hortaliças e verduras e os meninos brincavam em uma espécie de mãe natureza que tudo
tingia de verde e que dava vida a tudo que tocava. Todos no povoado estavam alegres e
multiplicavam as comidas ao ar livre e os camponeses compartilhavam almoços e jantares e
o ar que chegava do Mediterrâneo mudava o humor dos habitantes. Pareciam mais felizes
que nunca. E a festa era o momento de demonstrar. Era a única festividade que ninguém
queria perder e se transformou em uma tradição de Montaillou. Cátaros e cristãos, sem
distinções, como sempre tinha sido entre eles, celebravam juntos a chegada de um novo
ano de colheitas.
Antigamente, os povoados nativos de Languedoc festejavam a primavera com o começo
do ano. Quer dizer, o ano começava com o renascimento das plantas e os cultivos. A Igreja
receava esse tipo de festas porque as associava com costumes pagãos, mas em Montaillou
nunca tinha havido oposição em que as pessoas do lugar festejassem. Na realidade, os
monges, antes que começasse a Cruzada em Béziers, não eram tão restritos em relação à
festa da primavera.
Entretanto, os habitantes dos povoados invadidos por Montfort, caudilho da Igreja de
Roma na região, celebravam com certo recato sua festividade. Em Puivert, em Béziers, em
Carcasona multiplicavam os olhares cúmplices e os festejos mesurados. Em Montaillou,
entretanto, todos se reuniam perto do monastério do povoado e armavam mesas longas e
repletas de comida e bebida e realizavam uma série de jogos que divertiam tanto a
participantes como a espectadores.

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Wolfgang era consciente do que significava a festa para as pessoas de Montaillou e
decidiu não reprimi-la. Foi inclusive além, respirou-a. Enviou animais e vegetais que a
Abadia tinha comprado aos camponeses como uma oferenda à celebração e, por extensão,
à Natureza como uma espécie de deidade. Fez também um discurso, logo, antes de
inaugurar os jogos.
Os preparativos eram dirigidos quase secretamente por Blanche. O Abade tinha
designado Xavier, muito a seu desgosto, como seu porta-voz no povoado para as questões
que tivessem a ver com a organização do evento. Não era uma decisão que tinha tomado
com gosto, entretanto, nenhum de seus homens era aceito pelos habitantes. A Marcabru
temiam e não era para menos. Seu olhar turvo e sua figura quase maltratada o
transformavam em alguém que não infundia confiança e simpatia entre as pessoas. A
Xavier, à diferença do restante dos que trabalhavam na Abadia, já o conheciam e o queriam
como igual. Tinha passado toda sua vida no povoado e era um deles. O Abade supôs que, se
queria que reconhecessem algum mérito na organização da festa, então teria que designá-
lo como o responsável por parte de sua congregação ante os habitantes. Xavier tinha
aceitado a tarefa com muito gosto e discutia com Blanche frequentemente, porque ele
dava uma indicação e ela a mudava. No fundo, ele também respeitava como todos à mulher
e confiava em seu critério, mas o irritava que não reconhecesse a autoridade que o Abade
tinha conferido a ele. Blanche, em troca, divertia-se o contradizendo. Um pouco porque
gostava de fazer raiva em Xavier, outro pouco porque queria incomodar Wolfgang.
—Blanche, querida, a disposição das mesas é como eu pedi isso. Você deu uma ordem
totalmente diferente aos carpinteiros e as coisas não sairão como quer o Abade.
—Bom, melhor assim.
—Além disso, o soalho que construíram não é suficientemente alto. Recorda que
Wolfgang é um homem um tanto pequeno.
—Diminuto, quer dizer.
Xavier riu. Sempre lhe arrancavam um sorriso as cômicas réplicas da mulher.

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—Como queira. Eu passei as medidas aos carpinteiros e você as mudou, evidentemente.
—Então, terão que refazer a cadeira de onde falará o Abade.
—Mas já enviaram a madeira para construí-la! Não me autorizarão dispor de mais
madeira para as mesas e outras construções!
—Você pode convencê-los. Se a Abadia pagar, é um ingresso mais para nossos
carpinteiros e lenhadores.
—Sei. Mas Wolfgang é pequeno, mas não estúpido e, se perceber, retirará seu apoio.
Não quero desatar sua ira.
—E não o fará. Já se comprometeu e sua imagem de homem benévolo o interessa muito,
pelo menos por agora. Devemos aproveitar sua bondade enquanto dure.
—Está bem. Verei o que posso fazer.
—Muito bem, Xavier. Essa é a atitude.
—Claro. Não me pressione.
—Ah, esquecia-me. Faltam os porcos para os jogos. Diga ao Abade que os envie.
—O que? Esses animais deviam ser contribuição da comunidade.
—Pois os usaram para alimentar-se. Diga ao Abade que os envie. Se não, não haverá
jogos que ele possa inaugurar com seu discurso.
—Não me pressione - disse zangado Xavier.
—Faço por que sei que pode — respondeu risonha Blanche.

A guarda do Abade continuou seu caminho sem muita pressa. Transformou-se em uma
multidão de fabricantes itinerantes do Visconde de Carcasona e do Conde de Tolosa, Simón
de Montfort, e recolhiam informações do que acontecia em cada um dos povoados dos que
o Conde era senhor. Cada um de seus vassalos, quer dizer os senhores dos povoados que
visitavam, contribuía com homens para o pequeno exército que estava organizando para
que servisse Wolfgang em Montaillou.

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Domingo observava com atenção à atitude de cada um dos senhores, que aceitavam a
contra gosto dar seus homens, e que descriam das ideias de Montfort para pacificar a
região. Eles tinham vivido com os Cátaros durante muitos anos e não tinham se
preocupado. Inclusive, as crenças desse grupo os tinham ajudado a arrecadarem impostos
por fora da Igreja e a adotar certas condutas um pouco mais liberais que as que propunham
Roma. Depois da Cruzada, tiveram que se submeter à vontade da Igreja e a de Montfort,
que tinha se imposto lutando com crueldade em cada um desses povoados. Não o queriam,
mas não tinham outra opção mais que o obedecer. Desde 1209, fazia já oito anos,
sopravam ventos de mudança em Languedoc e todos tiveram que demonstrar qual crença
professavam. Os senhores invejavam Raimundo Roger de Foix que era o único dos senhores
da região que se manteve independente e que brigava valente contra Montfort.
—Escudeiro - diziam a Domingo muitos dos soldados que iam se incorporando ao grupo,
à medida que se aproximavam de Montaillou— seu senhor, Ramiro de Zaragoza, é o
soldado mais valente que já vimos. Brigava sem temor nas batalhas e era o mais feroz dos
lutadores. Era visto de longe com sua imponente figura e não havia cidade que resistisse a
seu assédio.
—Obrigado - estava acostumado a responder. Contente porque outros também viam em
seu senhor as mesmas qualidades que ele via.
—Além disso - estavam acostumados a continuar os diálogos— nunca foi cruel. Nunca
matou desnecessariamente a ninguém, nem participou dos castigos exemplares contra os
Cátaros que Montfort realizou. Ao Conde todos temem e, no fundo de seus corações, não o
aceitam. Entretanto, quando mencionam Ramiro de Zaragoza, ninguém permanece
indiferente e a admiração é a regra. Inclusive as damas suspiram por ele.
—Sei - respondia Domingo divertido— sei.
O escudeiro, entretanto, estava preocupado pelo destino de seu senhor. Na última
cidade que tinham visitado, tinha conhecido uma adivinha e tinha perguntado por ele. A

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mulher tinha sido um pouco vaga e havia dito uma frase enigmática: “Um homem e uma
mulher lutam por sua vida. Se escolher à mulher, se salvará”.
Não entendeu bem o que queria dizer essa frase, mas esperava poder encontrar-se com
Ramiro e que ele pudesse lhe explicar o significado. Havia dias em que pensava que podia
estar morto, havia dias em que refletia sobre quem seria a mulher que podia salvá-lo.
Quando a guarda do Abade, que saiu de Carcasona e percorreu toda a região recrutando
homens, ficou conformado com perto de uma centena de soldados, decidiram ir
diretamente a Montaillou.
Domingo sentiu um alívio na alma ao ver o povoado de longe. Achava que veria seu
senhor. E, se não fosse assim, terminaria a angústia de não saber nada dele.

Marcabru tinha decidido examinar Ramiro. O soldado se negou várias vezes, mas teve
que ceder ante a ordem do Abade. Não teve argumentos para negar-se quando Wolfgang
explicou que queriam controlar sua melhoria e saber que não podia voltar a piorar.
—Esteve muito doente e Deus te trouxe de volta. Deixa que meu curandeiro, que se
ocupou de você todo o tempo em que esteve convalescente, confirme que não vai voltar a
ter problemas.
Ramiro aceitou a contra gosto. Mas estava vivendo na Abadia e não podia criar inimizade
com o Abade por mais receios que tivesse.
Foi para o hospital onde estava o curandeiro. Viu-o dando ordens a gritos aos outros
monges e se exasperou. Não tolerava uma pessoa que estivesse no comando e maltratasse
seus homens. Ele estava acostumado a estar no comando de muitas tropas e sempre falava
com respeito a seus subordinados. O mesmo respeito com que se dirigia a seus inimigos,
aos que nunca denegria ou castigava cruelmente. Era Montfort quem aplicava esses
castigos exemplares. Estava acostumado a dizer em relação aos Cátaros que se tratava de
infiéis e que os infiéis não mereciam nenhuma consideração por parte de um cristão.
Voltou a olhar Marcabru e, simplesmente, deu-lhe asco.

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—É você quem vai me examinar?
—Ah, adiante.
Ramiro notou a mudança de tom. Com ele era amável e condescendente. Irritou-se
ainda mais.
—Vou precisar observar sua boca. Peço que se sente.
—Estou bem assim.
—É que não alcanço sua boca.
—Ah, diz por você. Está bem se me sento aqui? —disse apoiando-se sobre uma cama
elevada.
—Farei a prova.
Marcabru aproximou um pequeno tamborete e subiu nele para inspecioná-lo. Fez
Ramiro abrir a boca e observou.
—Alguma conclusão? —quis saber Ramiro, quando o curandeiro desceu do tamborete.
—Nada em particular.
—Fale - ordenou o soldado— Não me fez vir até aqui para nada. Você suspeitava de algo.
Fale - voltou a ordenar.
—E... Está bem. —O curandeiro temia Ramiro como um rato a um gato— O fármaco que
apliquei devia deixar um resíduo negro em sua boca. Não o vi. É estranho que tenha
melhorado sem isso. Mas, pelo resto está tudo em ordem. Está saudável.
Ramiro não disse nada. Pensou em seguida no que havia dito Xavier. O veneno tinha a
forma de um fruto negro. O que o curandeiro fazia era verificar o que tinha acontecido com
seu veneno, por que não o tinha matado.
Então Xavier tinha razão, Laetitia o tinha salvado.

Marcabru deixou o hospital e se aproximou de onde trabalhava o Abade. Fechou a porta.


—E bem? —perguntou Wolfgang.
—Não há rastros do veneno.

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—Pensa que pode ter se dissipado?
—Não. Alguém interveio. Não só tirando o veneno. Deram-lhe um antídoto.
—O gordo imbecil.
—Xavier? Não, muito complexo para ele. Deve ter sido cúmplice.
—A moça - disse finalmente o Abade— Já encontraremos uma maneira de castigá-la.

A guarda chegou a Montaillou à tarde. Evitou o povoado para não alertar os camponeses
do lugar. Acamparam na porta da Abadia e se apresentaram. Ramiro foi ver os que
imaginava que iam ser seus companheiros. Encontrou uma centena de homens com
diversos estandartes e de diversas origens. Esse não era um grupo homogêneo. E o Abade
ia ter que trabalhar muito para fidelizar e fazer dele uma equipe. Caminhou entre os
soldados e alguns o reconheceram. Era uma figura legendária e muitos o saudaram. Outros
recordavam batalhas nas que tinham participado juntos ou das que tinham escutado falar.
Domingo estava em uma tenda de campanha e Ramiro chegou até ele primeiro. Entrou
tentando não fazer ruído e o tocou no ombro com delicadeza.
—Ramiro!
Deram um grande abraço. Para o soldado, Domingo era como um pai.
—Vejo que está bem. Escolheu à mulher.
—Como sabe que ia falar de uma mulher?
—Disse-me isso uma adivinha.
—Você e suas adivinhas. —Ramiro o abraçou de novo com vontade.

O Abade saiu do antigo castelo, convocou sua nova guarda e disse o que esperava deles.
—O Conde foi suficientemente generoso para doar este castelo para que o povoado de
Montaillou tenha uma Abadia. Agora foi novamente generoso para dotar esta humilde casa
do Senhor de uma guarda que a proteja dos possíveis ataques. Há muitos infiéis nas
cercanias que poderiam querer atacar a minha figura ou à Igreja. Sem ir mais longe, a

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relíquia que trazia o cavalheiro Ramiro de Zaragoza foi roubada, depois que sofreu um
ataque que o deixou ferido e convalescente.
Ramiro não gostou que o fizessem ver tão vulnerável, mas não podia dizer nada. Ele
tinha salvado a relíquia, inclusive antepondo-a a sua vida. Agora, só faltava recuperá-la.
O Abade prosseguiu:
—A necessidade de uma guarda, então, tornou-se evidente. Quero que esta guarda
defenda à Abadia, suas instalações e também os religiosos que habitam nela e que também
a resguarde dos infiéis.
Fez uma pausa tão prolongada que todos pensaram que tinha terminado.
—Amanhã é a festa de primeiro de abril. Todos os anos, os habitantes de Montaillou
festejam a chegada da primavera e a Abadia decidiu ajudar na celebração como uma
maneira de estender sua mensagem evangélica. Desejo que minha guarda participe da
celebração e que se integre ao povoado. Não como soldados, mas sim como futuros
habitantes desta comunidade. Também desejo que meus guerreiros conheçam os
habitantes e saibam identificá-los. Por isso não beberão álcool amanhã. Quando tiverem se
familiarizado com o povoado, então lhes darei uma missão.

No dia seguinte, todo o povoado esperava que o Abade desse o início oficial da
celebração. Nunca antes tinha acontecido algo assim. Nunca alguém da comunidade jamais
pensou em fazer um discurso. Esse dia, entretanto, havia um alto soalho disposto para que
Wolfgang falasse. Reuniram-se em torno do soalho. As mesas estavam dispostas ao redor.
Primeiro falaria o Abade, então começariam os jogos tradicionais nos quais iam participar
camponeses, habitantes e homens da nova guarda. Por último, viria o jantar e o baile.
Ramiro e Domingo não tinham tido muito tempo para conversar. Ramiro tinha passado
boa parte do dia anterior com Wolfgang, que o tinha nomeado chefe da guarda, e, depois,
entre os soldados. Tinha que conhecê-los para poder ser seu líder. Sua fama e sua
habilidade não bastavam. Ramiro sempre conhecia até o último de seus soldados e sabia

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qual era a habilidade e qual a debilidade de cada um. Tudo isso tinha tomado seu tempo
para poder conversar com seu apreciado escudeiro. De repente, Ramiro mostrou Laetitia
que passava ao longe.
—Já vejo por que tinha que me falar da mulher - disse Domingo— É formosa. Deve ter
escolhido bem. A adivinha a quem perguntei por você, disse que um homem e uma mulher
lutariam por você e que, se escolhesse à mulher, então sararia.
—Povoado de Montaillou – o Abade começou seu discurso de abertura— Para mim é
uma honra ter sido convidado para participar destas festividades que nos recordam com
alegria que a colheita está próxima e que o esforço de um ano logo dará seus frutos.
—No caminho - prosseguiu Domingo contando a Ramiro - vi muitos homens desgostosos
com Montfort. Está perdendo poder desde que a Igreja o excomungou e necessita de uma
ação espetacular, que chame a atenção, para poder voltar a obter o respeito dos religiosos
e o temor dos senhores menos importantes.
—A Abadia celebrou a gritaria popular no ano de sua fundação e participou ativamente
dos preparativos para a festa que todos esperamos com ansiedade. Queria que todos
compreendessem o esforço que nossa congregação tem feito para que esta seja uma festa
que cada um de nós possa desfrutar. Todos somos cristãos e o Senhor nos guiará também
nas horas vindouras. —Wolfgang tinha uma incrível facilidade para dizer uma coisa, e que
ao mesmo tempo todos se dessem conta que com seu discurso implicava algo bastante
diferente do que ouviam.
—Em todos os povoados nos quais estive, respeitam-no e o apreciam. É por isso que
Montfort zela por você. Você tem o carisma que falta a ele. Não tenho dúvidas que foi
Montfort que preparou a emboscada para você. Queria por você em ridículo, queria te
assassinar, mas também manchar sua fama. Há outro homem que entra em conflito por
você e esse homem é Montfort. Pergunto-me se a moça será suficientemente forte para
que você a escolha. —Domingo riu depois dessas palavras.

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—Por último, antes de declarar oficialmente o início da celebração, queria dizer que
entre nós se encontram os homens que formarão minha guarda pessoal. —Wolfgang fez
com que todos soubessem que estava bem protegido e que tinha um exército a poucos
quilômetros do povoado— Vieram unir-se a esta festa do povoado porque formarão parte
da comunidade, comandados pelo cavalheiro Ramiro de Zaragoza —assinalou Ramiro entre
a multidão. Sua altura se destacava entre os camponeses— Quero que os que já estão aqui,
dessem boas-vindas como a velhos vizinhos. —Ninguém acreditava que o “nós” que falava
o Abade implicasse a ele e às pessoas do povoado. Ninguém se sentia identificado
formando um “nós” junto a Wolfgang.
Quando terminou o longo discurso de abertura, as festividades começaram. E com elas a
alegria.

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Capítulo 11

Os três homens se disfarçaram para unir-se aos festejos. O do capuz o tinha tirado e o
chefe estava vestido como mulher para que não os reconhecessem. O pequeno era o único
que conservava sua aparência de sempre, embora tivesse deixado crescer o bigode.
Acreditava que com essa aparência nova, a camponesa com a que falava todos os dias
prestaria atenção nele. Além disso, a presença de Ramiro no povoado os tinha posto
alertas, já que temiam que o soldado os reconhecesse e desejasse desforrar com eles pela
ferida e a tentativa de roubo da relíquia.
—Chefe - disse o pequeno agora com bigode— está muito linda.
—Sim, é verdade. Concede-me uma dança? —perguntou o do capuz que, pela primeira
vez em muito tempo, não usava seu capuz.
—Deus! Por que mandou estes dois? —quis saber o chefe e uniu as mãos e elevou os
olhos ao céu.
Mesclaram-se entre as pessoas para ver o sorteio dos jogos. Era uma tarde bastante
limpa e a todos pareceu um bom indício que a primavera começasse com um dia tão
bonito. As pessoas se amontoavam ao redor de um círculo pelo que deviam ficar os que
queriam participar da competição. Ramiro estava entre os escolhidos para competir por
aclamação popular. Não acreditava que os habitantes de Montaillou o conhecessem, mas,
em seguida, depois da apresentação dele que fez o Abade, correu com rapidez a voz de
suas proezas e de suas façanhas como guerreiro. Como amostra de aceitação, as pessoas o
tinham reclamado para participar dos jogos. E se agora era o novo chefe da guarda do
Abade não deixava de ser uma pessoa importante do povoado.
O menor dos três homens e sua camponesa também ficaram no círculo de
competidores, um pouco de maneira fortuita, já que estava falando com ela e tropeçou

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levando-o para frente. Ambos caíram no chão, no meio do círculo e as regras diziam que o
que entrava não podia sair.
Miriam insistiu com Laetitia para que participasse. Em especial, quando viu que a
multidão aclamava Ramiro e o soldado aceitou sem protestar.
—Não, não insista - dizia uma e outra vez Laetitia— Vai você, se te interessa.
—Sabe que não posso. Sou a encarregada do sorteio. Não estou autorizada a participar.
—Então, não me obrigue a fazer o que você quer e não pode.
—Mas pense melhor. Será divertido. —A estratégia da Miriam era caminhar enquanto
falavam. Laetitia retrocedia um passo cada vez que Miriam avançava. Iam em direção ao
círculo e se Miriam obtivesse que sua amiga pisasse dentro da circunferência, então estaria
obrigada a participar.
—Já pensei. A resposta é não. —Outro passo em direção ao círculo dos jogadores.
—Parece que não sabe se divertir. —Já estavam quase lá.
—Esta não é minha ideia de diversão. —Um último passo e ficou pisando na beirada.
—Bom, já não te incomodarei mais. Se não quer, não quer. E ponto. Devo entender. —
Enquanto dizia isto, Miriam se aproximou de Laetitia o suficiente para tocá-la. Deu-lhe um
pequeno empurrãozinho e sorriu, quando escutou os aplausos. —Já está dentro - disse
rindo.
Laetitia se viu dentro do círculo e soube que não restava mais opção que aceitar o
desafio. Só esperava que não tivesse que participar com Ramiro.
Um terceiro casal se ofereceu como voluntário. Era um casal de camponeses que estava
acostumado a participar da competição todos os anos. Consideravam-se os campeões do
povoado e não pensavam em deixar tão fácil sua liderança. Assim fizeram saber a Ramiro.
—Por mais que você seja o chefe da guarda do Abade, saiba que nós ganhamos esta
competição durante os últimos três anos e que não cederemos nem um centímetro só
porque você é um militar importante.

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—Parece-me justo - respondeu Ramiro— Eu tampouco cederei nada e tentarei ganhar.
Esperemos que vença o melhor.
O casal deu meia volta um pouco altivo, mas, na realidade, tinham medo de ser
derrotados pelo herói de tantas batalhas e assédios.
Quando estiveram os seis participantes, Miriam começou a realizar o sorteio
correspondente. Todos deviam submeter-se ao sorteio para saber qual seria seu par. Era
um procedimento simples. Cortavam seis pequenos ramos ou caules de plantas das que
havia três pares que tinham o mesmo tamanho. Os ramos eram expostos para o sorteio a
uma mulher, que os mostrava em sua mão, onde se via só as pontas à mesma altura. Os
que tirassem ramos do mesmo tamanho seriam parceiros na competição.
O casal passou primeiro a escolher os ramos. Corriam o risco de não ficar no mesmo par.
Se acontecesse isso, a mulher atrasaria seu parceiro e tentaria que seu marido obtivesse a
vitória que também seria a sua própria. De todos os modos, já tinham estudado para saber
como obter o par correspondente. Aproximaram-se de Miriam e observaram atentamente
os cortes do ramo. Queriam poder deduzir quais tinham sido cortados da mesma maneira.
Os que tinham os mesmos entalhes, os que tinham sido cortados ao mesmo tempo
necessariamente eram do mesmo ramo original e, portanto, iguais entre si. Estiveram um
bom tempo calculando e medindo com seus olhos os diversos caules. Até que Miriam se
impacientou e os obrigou a pegar um. Escolheram os corretos e ficaram na mesma equipe.
Festejaram com um sorriso nos lábios e uma saudação que parecia uma vênia militar.
Ramiro escolheu ao azar.
O menor dos três homens se agachou e tinha espiado as pequenas pontas que se
sobressaíam por abaixo da mão de Miriam. Como era tão pequeno, ninguém notou que
fazia isso. Escolheu e fez a camponesa que tanto gostava escolher o ramo que era igual ao
seu e eles também formaram uma equipe.
Laetitia se resignou.
Miriam sorriu satisfeita e entregou o pedaço de caule que faltava.

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—Isto é obra sua — disse a jovem loira a sua amiga que não parava de sorrir.
Ramiro se aproximou de Laetitia e perguntou qual era o jogo.
—É simples. Soltam três porcos. Cada um tem uma fita de uma cor presa ao pescoço. Há
um vermelho, um amarelo e outro azul. A cada equipe entregarão também uma fita. O
objetivo do jogo é apanhar o porco que tem a fita da mesma cor que o da equipe e trazê-lo
de volta ao círculo. Quem primeiro fizer ganha.
—São bons esses dois que escolheram primeiro os caules?
—O casal Bentardom é a melhor equipe para este jogo. Ganharam nos últimos anos e
ninguém consegue batê-los.
—Nós os venceremos.
—Já veremos - disse cética Laetitia.
—Conhece o outro casal?
—Ela sim. É camponesa e trabalha na granja de sua família. Ele sei que veio
recentemente ao povoado e entre os dois parece haver uma bela amizade.
—Entendo. Sei que o conheço. Mas não posso precisar de onde.
—Eu também.
Os organizadores se aproximaram com uma jaula de madeira onde estavam os três
porcos. Deram as fitas correspondentes a cada casal. Ramiro e Laetitia ficaram com o
vermelho. Houve um breve discurso interrompido muitas vezes pela multidão que queria
ver a competição e que soltassem os animais de uma vez. Os organizadores continuaram
relatando as regras do jogo, enquanto que, sem que ninguém percebesse, abriram a porta
da jaula e os porcos saíram correndo. O primeiro casal a começar a perseguir o porco foi o
casal Bentardom e os outros casais reagiram tarde.
O pequeno e sua companheira correram e se chocaram entre si. Terminaram os dois no
chão. Ele ia atrás do animal com a fita amarela, enquanto que ela corria na direção oposta,
para o casario. O pequeno sorriu à jovem que acompanhava e entendeu o que ela queria a
princípio. Os dois foram para as casas, esquecidos do porco que tinha ido em direção

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oposta para uma segura liberdade. O pequeno estava contente porque tinha conseguido: a
camponesa ia beijá-lo.
Laetitia e Ramiro correram atrás de seu animal que se meteu no bosque e se perdeu
entre as árvores. Ramiro era muito veloz, dava duas pernadas e se aproximava do animal,
mas ele sempre escorregava de suas mãos ou saía correndo antes que pudesse tomá-lo
entre suas grandes mãos. Laetitia o seguia e ria dele. Ramiro a olhava furioso. Detestava
que alguém risse das coisas que saíam mal. Correu para o porco uma vez mais e se agachou
à carreira para alcançá-lo. O animal escapou das mãos e ele escorregou e terminou de
bruços no chão.
Laetitia não podia parar de rir.
—Basta - ordenou ele com voz suave, ainda de joelhos.
—É que é muito gracioso. É um gigante e caiu fazendo um estrondo.
—Vamos, quero apanhar esse porco e voltar para o jantar. Além disso, não gostei desses
pedantes Bentardom.
—Quer ganhar?
— Claro. Sempre quero ganhar.
Essa última frase fez que Laetitia risse ainda mais forte que antes. Ramiro olhou Laetitia
furioso e voltou a correr para o porco que dava voltas entre as árvores, francamente
assustado.
Entre as árvores se formava um corredor e o porco se meteu nele. Ramiro corria quase
agachado. Seus largos braços pareciam roçar o chão. Laetitia caminhou rápida para o outro
extremo do corredor de árvores. Acomodou-se ajoelhada sobre as folhas que estavam no
chão. Ramiro corria para o porco e este escapava de Ramiro. Laetitia sussurrou algo.
Cantarolou uma pequena canção e o animal subiu em seu colo. Ela o abraçou e deixou que
Ramiro se aproximasse para pôr o distintivo vermelho que lhe correspondia. Logo o
entregou e ele o sustentou sob seu braço.

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Voltaram para o povoado caminhando. Faltava um lance ainda para sair do bosque,
quando ele falou.
—Obrigado - disse com uma voz tênue.
—Obrigado? Por quê? Por ter apanhado o porco?
Ramiro riu com vontade. O porco se retorceu sob seu braço e ele o apertou um pouco
mais.
—Obrigado por salvar minha vida. O veneno teria me matado.
—Quem...?
—Xavier me contou do envenenamento. E Marcabru...
—Dizemos Macabro.
—E Macabro confirmou isso, quando insistiu em me examinar a boca para ver o que
tinha acontecido com seu veneno.
—Deverei andar com cautela, então. É lógico que suspeitem de mim.
—Não se preocupe. Não deixarei que te aconteça nada.
—É a mim a quem toca dizer “obrigado” agora.
Ambos se olharam. Os olhos de Laetitia tinham perdido a irritação inicial por ter que
participar do jogo com ele e os olhos negros de Ramiro não mostravam seu receio, nem seu
alerta de soldado. Estava relaxado e contente ao lado de Laetitia. Custava acreditar naquilo
que se impôs: que ela tinha complicado todas as coisas.
Chegaram ao círculo o mais rapidamente possível e se encontraram com os Bentardom
que se empanavam de alegria, enquanto alardeavam de continuar sendo invencíveis.
Ramiro e Laetitia se sentiram um pouco decepcionados pelo segundo lugar. Depositaram
seu animal na jaula e se olharam cúmplices. Riram um pouco. Do pequeno e a camponesa
não havia notícias.
—Faz você? —perguntou Ramiro.
—Não. Você - sugeriu Laetitia galante e se agachou em uma reverência.

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Ramiro se aproximou da jaula e tirou dali o porco que haviam trazido os Bentardom.
Sustentou-o com um braço e com a mão que tinha livre desenredou uma fita que estava
escondida atrás da outra: era de cor amarela. O pequeno tecido de cor amarela contrastava
ao azul que correspondia ao casal invencível e que eles tinham colocado no pescoço
escondendo à cor original. Todos olharam atônitos frente à armadilha que tinham feito os
Bentardom. Tinham apanhado o porco que correspondia ao casal do pequeno e tinham
escondido a fita que usava o animal atrás da fita que eles mesmos tinham colocado.
Ramiro riu e a multidão o imitou. Os organizadores entregaram o prêmio a Ramiro e
Laetitia. Depois, convidaram todos os participantes para jantar.

O sol tinha começado a cair e a luz se fazia escassa para os que participavam das
festividades. As pessoas do povoado comentavam em voz baixa a proeza que Ramiro e
Laetitia tinham realizado. Vencer os Bentardom se instalou como um objetivo de toda a
população que não queria ver mais o casal pavoneando-se pelas ruas de Montaillou. Não
deveria ser algo tão importante apanhar um porco, mas para os habitantes do pequeno
povoado significava a honra maior.
As pessoas foram ocupando os assentos e Ramiro e Laetitia foram separados. Cada um
se dirigiu para o setor que lhe correspondia: ele com a guarda, ela com as mulheres do lar.
Entretanto, Blanche lhe disse que não podia sentar-se ali e a Ramiro também o trocaram de
lugar. Os ganhadores deviam sentar-se juntos no centro da mesa. Assim era o costume. Os
dois foram levados aos seus assentos que pareciam os de um rei e uma rainha no centro da
grande mesa disposta para todos os cidadãos.
A brisa começava a correr e as mulheres, que tinham trocado suas pesadas roupas de
inverno, por trajes mais leves, sentiram um pouco de frio. O clima estava agradável, mas as
mulheres eram mais sensíveis ao ar fresco. As tochas foram acesas ao redor das mesas e
isso trouxe calor para as mulheres e uma luz que competia com a do sol que estava
extinguindo-se.

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A comida começou a chegar em grande quantidade. A contribuição do Abade tinha sido
generosa e não cessavam de chegar cervos, faisões e codornas assadas. Havia vinho a
granel para que ninguém ficasse sem beber, se queria fazê-lo. As gargantas se regozijavam
com o néctar das ânforas e as uvas. As mulheres bebiam com certo recato, mas os homens
não se continham e falavam aos gritos, contavam piadas e riam a gargalhadas.
Ramiro e Laetitia não conversavam muito entre si. Ele conversava com seu escudeiro
Domingo. Inclinava-se docemente para escutar as opiniões que o ancião lhe dava da festa e
das pessoas que via. Ela sorria a todos os que lhe falava, mas não emitia muitas opiniões.
Os camponeses se aproximavam e falavam da proeza que eles tinham feito. Adoravam a
parte em que Ramiro se aproximou da jaula e desarmou a mutreta dos Bentardom. Ele já
estava cansado de escutar a mesma história uma e outra vez. Uma história da que ele
mesmo era o protagonista. Olhava Laetitia que ria de sua sorte, enquanto um novo
habitante começava o relato outra vez.
—Sempre foi assim - disse Laetitia ao ouvido— Quando algo os emociona. Quando algo
novo no povoado acontece, não deixam de comentá-lo.
—Já o vejo - soltou um Ramiro um tanto vexado. Entretanto, não deixou de sorrir a cada
um dos que se aproximavam para falar e relatar o episódio.
Quando a fila se dissipou, os camponeses continuaram conversando entre eles. Nada ia
deter a lenda que começava a gerar e cada um adicionava seu ponto de vista e suas
opiniões para que fosse mais interessante ainda. E mais incrível.
—Se isto pareceu grande - sussurrou Ramiro ao ouvido de Laetitia e ela estremeceu pela
profundidade de sua voz tão perto— então não viram nenhuma proeza militar.
—Não. Não viram e esperemos que não vejam nunca — respondeu ela também ao
ouvido dele.
Falavam em sussurros como se estivessem sozinhos, em uma voz apenas audível para
eles mesmos. A seu redor tudo era gritaria e gargalhadas. Entretanto, entre eles as palavras
não tinham necessidade de ser em um volume alto. A proximidade se dava de maneira

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natural e o tom que havia entre os dois era o da cercania, o dos murmúrios, de quem
necessita do diálogo para se entender.
Perto de onde tinha estado o círculo dos jogos, no mesmo soalho em que tinha falado o
Abade, começaram a se acomodar os músicos. Eram uns poucos camponeses que
improvisavam algumas canções ou tocavam outras que estavam ligadas a temas religiosos
ou histórias da primavera. Um tocava harpa, outro um alaúde e um terceiro uma espécie de
flauta. Havia um cantor principal e um pequeno coro que acompanhava. Muitos dos
músicos tinham trabalhado como tais no antigo castelo de Montaillou, antes que seus
donos fugissem para Carcasona atemorizados pela Cruzada. A música era alegre e
convidava ao baile, convite que todos aceitaram satisfeitos.
Ramiro a olhava desconcertado.
—Deve dançar, todos esperam. —Laetitia teve que esticar-se para poder chegar ao
ouvido de Ramiro. Fez isso pelo costume de sussurrar as palavras e gostava de sentir o
quente fôlego da moça roçando sua orelha. Sentia que estava perigosamente perto e isso
provocava uma inquietação em seu corpo da que talvez Laetitia não fosse consciente.
—Farei. Mas será meu par. — Foi sua vez de falar no ouvido dela e a viu ruborizar e
tremer de maneira imperceptível. Não era imune a suas galanterias e isso o fez sorrir.
A dança tinha suas regras fixas e os homens se situavam de um lado e as mulheres do
outro. Começavam com uma pequena reverência e logo davam uma série de passos que
acompanhavam o ritmo da canção. Depois cruzavam de lado formando umas figuras e com
novas reverências, desta vez da parte dos homens para as mulheres que os esperavam
pacientemente e, mais tarde, ajoelhavam-se a seus pés para que os varões tomassem suas
mãos e as beijassem.
Ramiro se atrasou. Deteve-se um momento a mais para beijar a mão de Laetitia e
chegou atrasado à sua formação. A moça estava ruborizada, mas sorria. Ela tinha percebido
que ele fazia de propósito e gostou desse detalhe.

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Logo vinha um pequeno deslocamento para a direita e de volta para a esquerda. Todos
avançavam em grupo. Depois uma aproximação para o centro, onde era a mulher quem
fazia a reverência enquanto passava seu braço pela cintura do homem.
—Nada escapa de minhas mãos, quando quero apanhá-lo.
—O porco sim, fez - disse Laetitia divertida.
Voltaram a separar-se, porque a dança assim o exigia e, em seguida, a juntar-se
novamente. Desta vez os dois juravam com as mãos entrelaçadas nas costas um do outro.
—Você tem algo que quero e vai me dar
—Por favor - respondeu ela confundida— Desfrutemos da dança. Já falaremos da
relíquia.
—Eu não falava da relíquia. —Ramiro a atraiu até seu corpo, até que ela sentiu a
proximidade de seu peito, muito mais do que a convenção da dança permitia.
—E do que falava? —perguntou Laetitia um tanto crédula.
—Do que tenho em minhas mãos. —E voltou a estreitá-la contra si.
Depois se separaram e voltaram para a coreografia sem sobressaltos. Quando terminou
a canção, todos festejaram e aplaudiram e lançaram vários “vivas” ao ar.
Os grupos se dissiparam, enquanto os músicos descansavam. Ramiro foi a um chamado
de Domingo que tinha observado toda a cena sentado, já que por sua idade não era
conveniente que dançasse.
—Vi você com a moça. Dá muita atenção a ela. Ou é só a gratidão por ter salvado sua
vida?
—Não sei. Não entendo muito bem por que brinco de seduzi-la. Necessito que me
devolva à relíquia.
—Algo trama o Abade com isso. Não o deixou claro, mas o assunto não vai ficar sem uma
resolução. Wolfgang é muito orgulhoso para isso.
Ramiro observou como Laetitia se afastava da festa.
—Segue-a com o olhar. É mais grave do que pensei.

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—Já basta Domingo. É só uma moça.
O ancião escudeiro sorriu. Conhecia muito bem Ramiro.
—Mas não é igual a nenhuma das outras.
—Não. Não é.
Ramiro observou como Laetitia falava com o homem pequeno que tinham disputado e
com uma mulher que pareceu muito feia. Logo se aproximou outro homem. Perguntou-se
onde tinha visto esse trio.
—Ramiro, talvez deva se aproximar e falar com ela. Necessitamos da relíquia. Não quero
que o Abade jogue com essa vantagem. Não me caem bem as pessoas que respondem a
Montfort.
—Eu respondi a Montfort durante muito tempo.
—Acreditei que já não o fazia.
—Ainda sou seu vassalo, não é verdade? —disse Ramiro um pouco irônico.
Voltou a olhar para onde estava Laetitia e não a viu mais. Tampouco aos dois homens e
essa horrível mulher. De repente, recordou de onde os tinha visto. Eram os que o tinham
assaltado no bosque. O pequeno do concurso não tinha bigode então, o outro mais alto
usava um capuz e a mulher... A mulher era ao que chamavam “chefe”, disfarçado! Disse
rapidamente a Domingo que voltaria em uns minutos e se dirigiu velozmente para o
bosque.

Os três homens tinham prendido Laetitia a uma árvore e exigiam que dissesse onde
estava a relíquia.
—Não sei - mentia.
—Sim sabe. —O chefe se aproximava ameaçador, ainda com as saias postas. Aproximou
uma faca ao rosto dela e apoiou sua ponta sobre a bochecha da moça.
—Não importa o que faça, não direi nada.
—Chefe, por favor, não a machuque. É muito formosa.

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—Sim, chefe, deixe-a. Ela nos guiará até a relíquia.
—Não!
—É que não entende? —O pequeno se aproximou para onde ela estava— O chefe está
acostumado há ficar um pouco louco.
—Eu não me ponho nada. Olhe que se continuar me provocando... —E o ameaçou com a
faca em alto.
—Vê o que te digo? Não gosta que o contradigam.
Ramiro chegou em meio à discussão e não houve espadas nem adagas que o
intimidassem. Deu-lhes uma surra. Começou pelo chefe que recebeu vários murros no
rosto. Eram golpes demolidores. Ao terceiro impacto, desmontou e caiu ao chão. Logo se
levantou e arrastando se afastou ainda vestido de mulher.
O do capuz esquivou um ou dois golpes, mas recebeu um terceiro que o fez retroceder
uns quantos metros. Procurou o capuz entre suas roupas e fugiu.
O pequeno fez uma reverência antes de seguir seus companheiros. Notava-se em sua
expressão certa tristeza. Um pouco porque não ia ver mais Laetitia, outro pouco por sua
camponesa a que amava.
Ramiro a desatou com cuidado, elevou-a em seus braços e a levou até um lugar no que
pudesse pisar sem fazer dano. Depositou-a brandamente no chão. Não disseram nada. Não
necessitou. Ele a olhou com intensidade e tomou seu rosto com ambas as mãos. Ela o
deixou fazer, fechou os olhos e se entregou a aquilo que já não desejava evitar. Ramiro
beijou primeiro uma bochecha, logo a outra, finalmente seus lábios.
Roçou-os muito brandamente nos cantos e notou como ela tremia. Tomou suas mãos e
as colocou ao redor de sua cintura, logo a abraçou e a atraiu contra si. Não se
desprenderam as bocas. A moça se agarrava a Ramiro com todas suas forças. Ele queria
demais. Afastou-se uns centímetros de sua boca e a observou, ela instintivamente tomou ar
pela boca e ele então voltou a beijá-la. Beijou o lábio inferior de Laetitia, percorreu-o com
lentidão, logo se ocupou de sua boca completa, metendo-se no interior de sua boca,

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aproveitando que permanecia aberta. Jogou um pouco com seu lábio inferior e se ocupou
do outro. Com delicadeza apoiou sua língua no canto da boca dela e bordeou a forma de
sua boca. Quando a teve percorrido inteira, sua língua entrou. Ela a recebeu surpreendida,
mas se deixou acariciar e envolver pelo beijo que Ramiro lhe dava. Sentia que seu corpo
tremia. Estava pesado, como se caísse, e devia segurar o pescoço do homem por causa da
debilidade que a invadia. Fechava os olhos e sua pele se arrepiava sob as carícias que ele
fazia em suas bochechas, no pescoço, na parte posterior de sua cabeça. Gemeu. E então ele
foi mais exigente. Mais apaixonado. A doce carícia do princípio se transformou em desejo.
Ele também gemeu. Laetitia decidiu imitar com sua própria língua o que fazia a de Ramiro.
As sensações que recebeu se repartiram por todo seu corpo e quis agarrar-se a ele e fundir-
se no peito que tanto gostava. Ele, como se lesse seu pensamento abraçou-a com mais
força.
Quando se separaram, os dois estavam agitados. Laetitia sentia que seu corpo era
percorrido por um comichão interminável que a fazia querer desfalecer pela emoção.
Apoiou-se com uma mão em uma árvore. Ramiro se aproximou dela e lhe disse para passar
as mãos ao redor de seu pescoço. Ela obedeceu. Esperava outro beijo. Mas ele levantou
suas pernas e a carregou em seus braços até o povoado. Logo, com doçura, depositou-a em
seu lugar na mesa.
A festa continuava.

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Capítulo 12

Muitos dos soldados foram chamados ao quarto onde o Abade estava acostumado a
trabalhar. Pediu que relatassem a festa com luxo de detalhes. Todos os soldados falaram do
episódio do porco e Ramiro não soube onde esconder-se. Incomodava-o muito a situação.
Alguém se atreveu a mencionar o baile e como Ramiro tinha beijado inapropriadamente a
mão de uma moça. A risada foi generalizada.
—Que moça? —perguntou o Abade.
Ramiro fulminou o informante com o olhar.
—Não a conheço.
—Pois seu trabalho era conhecê-la. Isso foi o que eu ordenei. Que cada um se mesclasse
com a população, que a conhecesse. Se observou seu superior dançar com uma moça e não
sabe quem é, então seu trabalho fracassou. Quero que permaneça em detenção até que
recorde quem era.
Um silêncio percorreu o quarto da mesma maneira que o teria feito um vento polar.
—Por outro lado, quem era a moça? —continuou com seu interrogatório o Abade.
Ramiro teve que responder. Não queria ter que pensar em Laetitia nesse momento.
—Suponho que terá que me prender também, pois não recordo seu nome.
—Vejo que desafia minha autoridade.
—Para nada. Submeto-me a ela. Mas no futuro, pediria que deixasse a meu cargo a
maneira de disciplinar meus homens. Não estou de acordo com a detenção do soldado.
Nem com a minha própria, é obvio. Você nos pediu que nos mesclássemos na festa, que
bebêssemos e comêssemos como o resto e, também, que recordássemos os nomes de
todos. É quase impossível. Trouxemos um relatório suficientemente detalhado. Se quiser o
nome da moça, então vou ao povoado e o pergunto. Não acredito que seja algo dramático.

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O Abade estudou o olhar duro que lhe cravava Ramiro e não teve argumentos mais que
sua própria irritação. Voltou atrás quanto à prisão do soldado.
—Seguiremos esse critério, então. Peço que voltemos a nos reunir pela tarde.

Marcabru escutava com atenção Wolfgang.


—Ramiro é um insolente e um rebelde. Deveríamos poder nos desfazer dele de uma vez
por todas. Mas não é o momento. Já chegará a oportunidade de encarcerá-lo. Não
podemos depender de homens que o idolatram como a um herói de lenda.
—A moça da que falavam é a pequena curandeira. A que dirigia aquele hospital que
fechamos.
—Laetitia.
—Exato. É ela quem deve tê-lo salvado do veneno.
Wolfgang olhou seu conselheiro e sorriu. A forma se materializou em sua cabeça e então
soube o que fazer:
—Acusaremos os amigos de Laetitia de assaltar Ramiro e roubar a relíquia. Farei que o
guarda detenha todos os Cátaros hoje pela tarde. Baixaremos ao povoado e montaremos
uma cena que não esquecerão.
—Não fará nada a ela?
—Não ainda. Ramiro está preso a ela. Pode nos ser útil para mantê-lo ocupado.
Os dois riram depois que o Abade terminou de delinear o plano. No rosto de Wolfgang
voltou a se desenhar o sorriso do demônio.

Toda a guarda do Abade recebeu sua missão nos subúrbios da Abadia. A lista de pessoas
que deviam capturar era longa. O motivo, simples: tinham conspirado para roubar a
relíquia.

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O primeiro que deveriam procurar estava na própria Abadia. Xavier não escapou da ira
de Wolfgang e teve que ser preso. Marcabru o tinha denunciado como o ajudante de
Laetitia na melhoria de Ramiro.
—Você sabe que não tenho nada a ver - sussurrava Xavier a Ramiro, quando o levava até
sua cela.
—Sei. Prefiro prendê-lo eu a deixar que o Abade o faça. Porei dois homens ao seu dispor
e deverão tratá-lo com respeito e humildade. Cuidarei que nada aconteça com você.
—Mas...
—Agora não posso resolver nada. Quando puder, farei que o libertem. Confie em mim.
Xavier não teve mais remédio que acreditar no que dizia Ramiro e entrou em sua cela
custodiada por dois homens de confiança. Um deles era Domingo, que chamou seu amigo a
um lado e disse:
—Deve deter isto. Wolfgang não tem limites.
—Ocuparei-me de resolver tudo. Necessito de tempo. Por agora, seguiremos as ordens
do Abade. Cuida deste homem - disse apoiando uma mão no ombro de seu escudeiro— Eu
cuidarei de mim.
Os soldados cavalgaram até o povoado a toda velocidade. Wolfgang ficou atrasado, mas
ninguém fez nada até que ele chegou à praça principal.
Os restos da festa estavam ainda intactos. Muitos dormiam a sesta, cansados por ter
estado toda a noite dançando e bebendo entre amigos. As mesas continuavam dispostas no
mesmo lugar e o soalho em que tinha dado seu belo discurso de vida comunitária
permanecia intacto.
Subiu ali para falar e para dar um discurso completamente diferente do que tinha dado
no dia anterior.
A guarda se ocupou que houvesse público e os vizinhos mais próximos foram chamados
para ir escutar o que o Abade tinha para dizer.

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—Soube por diversas fontes que os assaltantes que feriram nosso herói - fez uma pausa,
a palavra a tinha escolhido para provocar Ramiro que odiava que o chamassem assim— e
lhe roubaram a relíquia são de Montaillou. Esse roubo é uma ofensa contra todo o
cristianismo e, especialmente, contra nosso senhor, o Conde Montfort, contra o Arcebispo
e contra o próprio Papa em Roma. Não é um fato que possa ficar impune e quero anunciar
que tomaremos medidas necessárias para que se respeite a autoridade destes senhores e a
fé na Santa Cruz. Ofendê-la como o tem feito as pessoas deste povoado, é ofender a Cristo.
Os habitantes de Montaillou se olharam desconcertados. Depois, o Abade deu uma lista
de nomes que os soldados procederam a procurar em suas casas.
Foram em grupos de dois e golpeavam as portas das moradias das pessoas às que
deviam prender. Esperavam que se entregassem sozinhos e a maioria o fazia com certa
resignação.
Alguns fugiam pelo campo de trás, por suas granjas e pisoteavam os cultivos que tanto
tinham esperado que crescessem.
A um dos homens tiveram que persegui-lo entre vários. Escondia-se entre as árvores e o
encontraram em cima de uma. Resistia em descer e os soldados tiveram que subir pelos
ramos para alcançá-lo. Quando chegaram em cima, o homem tremia como uma folha e
pedia por favor que não lhe fizessem nada. Ajudaram-no a descer sustentando-o entre
ambos os soldados e o capturaram. O homem chorava e perguntava quem ia cuidar de sua
colheita e da comida para sua mulher e seu filho recém-nascido. Levaram-no na presença
do Abade que escutou pacientemente o caso e disse que não aceitava a defesa de ninguém.
Não queria escutar razões e, se o homem se preocupava com sua mulher e seu filho,
deveria ter pensado antes de ter participado do roubo da relíquia. O homem disse que não
tinha roubado nada, nem encoberto a ninguém, nem tramado nada com ninguém. O Abade
sorriu e respondeu que isso era precisamente o que diziam todos.
Iam entrar no lar cátaro. As mulheres deviam ser todas capturadas, menos Laetitia. Essa
tinha sido a ordem do Abade e assim seria. Ramiro foi o primeiro a entrar no lar. Nunca

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tinha posto um pé ali, apesar de que sabia que era o lugar onde Laetitia vivia. Adiantou-se o
Abade e fez um discurso.
—Desde que me instalei neste povoado com a honra de ter sido designado para ocupar a
Abadia de Montaillou, a primeira vez que a cidade recebeu um privilégio desse tipo, como o
de ter uma casa do Senhor tão importante, foi este lar o que dificultou minha tarefa.
Mentiram a respeito de sua atividade. Albergavam um hospital no que disseram que era um
estábulo. Um hospital dirigido por uma curandeira insolente que demonstrou sua
desfaçatez no mesmo dia em que fiz uma visita.
Laetitia ficou tensa. Cravou as unhas em suas palmas e conteve a respiração.
—Depois interferiram com os tratamentos que dava aos pacientes na Abadia. Trocavam
os medicamentos recomendados por outros de origem escura. São essas poções as que têm
feito que a população permaneça reticente à ação evangelizadora de meu ministério. Não
obstante isso, fui indulgente...
—Você não pode provar nada do que diz. Não foi indulgente. Não tinha uma desculpa
para nos prender. Isso é tudo. —Blanche falou com calma e com voz firme do centro do lar
— Peço-lhe, por favor, que deixe de lado o discurso e nos leve de uma vez.
Todos os soldados ficaram assombrados frente à dignidade da mulher. Não demonstrava
ter medo. Mas tampouco estava entregue. Com o que tinha respondido ao Abade, deixava
claro que podiam pô-la em uma cela, mas não podiam encarcerar seu espírito.
Wolfgang sorriu. Depois continuou falando pausadamente, porque supôs que isso
irritaria ainda mais Blanche e às demais mulheres do lar.
—Não necessito desculpas, quando o Senhor é meu guia. —Fez uma pequena pausa que
a todos incomodou. Ramiro tossiu para cortar o silêncio e deu um pequeno empurrão ao
Abade. Laetitia o olhava horrorizada. Não entendia como ele podia formar parte dos
inimigos. Embora sempre tivesse sabido. Embora ele fosse um soldado e nunca tinha
negado isso— Entretanto, o mais terrível que têm feito neste lar foi tramar o roubo da
relíquia. Emboscaram nosso herói - de novo olhou a Ramiro— feriram-no e o despojaram

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do fragmento da Santa Cruz que trazia para nós. Para que Montaillou fosse para sempre
cristão.
—Não fizemos tal coisa - disse Blanche com calma, sem perder a compostura.
O resto das mulheres começou a chorar com desespero. Sentiam-se vulneráveis e
impotentes. Sentiam-se manchadas, humilhadas. A desonra caía sobre o lar por uma
acusação injusta, infundada. Como havia dito Blanche, o Abade tinha planejado uma
desculpa para capturá-las e nada mais. Tinha aproveitado uma situação que tinha se
apresentado para eliminar do meio seus inimigos.
Os soldados procederam a uma ordem de Ramiro. O Abade não tinha finalizado com seu
discurso desmoralizante, mas o espanhol não se importou. Se os soldados atuassem de
uma vez, já não tinha sentido o que o religioso dissesse.
Escutaram os gritos desesperados das mulheres que se agarravam às precárias colunas
de madeira e às mesas para não serem arrastadas e levadas dali. Só Blanche permaneceu
sem derramar uma lágrima. Caminhou com tranquilidade para a saída e, quando passou ao
lado do Abade, cuspiu-o no rosto.
Laetitia ficou no fundo do estábulo, sem chorar, com os olhos avermelhados de fúria,
aniquilada porque os soldados passavam a seu lado como se fosse invisível.
—Acaso, Abade, não quer prender à curandeira insolente que tantos problemas lhe
causou?
Ramiro a fulminou com o olhar. Necessitava-a livre para poder ir procurar a relíquia. Ela
parecia não compreender e queria provocar ainda mais Wolfgang. Laetitia continuou.
—Não mereço também o castigo?
—Querida menina - respondeu Wolfgang— você já tem um castigo. Uma curandeira que
já não pode curar ninguém. Essa é sua prisão.
Depois o Abade deu meia volta e ordenou empreender a marcha para a Abadia. Ali
vários soldados tinham preparado as celas.

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Às mulheres ataram as mãos e, por sua vez, ligaram todas as cordas entre si. Levavam
todas como se formassem parte de um todo. Quando a primeira se punha em movimento,
a última também tinha que fazê-lo. E se a primeira parasse então as outras também se viam
obrigadas a diminuir sua marcha.
Encontrou-se com os outros detentos. Quase todo o povoado estava ali, atados uns aos
outros. Uniram também às mulheres e começaram a marcha para a Abadia que também
tinha se transformado em prisão. Parecia uma centopeia gigante atravessando os campos
de Montaillou.
Laetitia saiu para ver o terrível espetáculo. À frente dos prisioneiros ia à figura
imponente de Ramiro. Ajoelhou-se no chão e chorou todas suas lágrimas em meio de um
povoado vazio.

Um par de horas depois, quando o sol começava a descer, Ramiro encontrou Laetitia
estendida na terra, cansada por ter chorado horas, com o rosto tão claro manchado pelo pó
e as lágrimas. Parecia adormecida e, entretanto, quando ele se aproximou, a fúria da moça
se refletiu em seus olhos que passaram de azuis a vermelhos, como se um mago tivesse
disposto a mudança.
—O que faz aqui? —gritou— Veio por mim? Tinha se esquecido de levar a curandeira? —
avançou sobre ele e tentou descarregar sua irritação contra o peito do guerreiro que a
abraçou e fez que cessasse seus golpes e chutes.
—Tem que me levar à relíquia.
—Por que teria que fazê-lo? Para que sua honra de guerreiro fique intacta? Para que
nosso herói - enfatizou a palavra como fazia o Abade - seja ainda mais imenso?
—Não sou um herói. Só sou um soldado. Não imite Wolfgang, se não, deverei pensar que
é como ele.
—Mas não sou!
—Então não se comporte da mesma maneira.

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—E como é isso?
—Não seja tão obtusa e escute de uma vez.
Laetitia conteve sua fúria.
—Estou ouvindo.
—A desculpa do Abade, como bem disse Blanche, para capturar todas as pessoas que
levou esta tarde é o roubo da relíquia. A restituição demonstrará que estava enganado.
—Mas saberá que eu a tinha.
—Eu não direi que me acompanhou. Eu simplesmente me retirei da Abadia. Ninguém te
procura. A nossa volta direi que recordei quem me assaltou e que cheguei a esconder a
relíquia em uma árvore. Trarei-a em minhas mãos como prova. Exigirei que soltem seus
amigos.
—Crê que o Abade acreditará em você? Consulta você em tudo? Não parece.
—A tropa é leal a mim, não a Wolfgang. Isso bastará para dissuadi-lo.
Laetitia cedeu. Compreendeu que a relíquia era o único que podia ajudar Blanche,
Miriam e a demais amigas do lar.
—Está bem. Iremos. Deve me prometer que tirará todos do cárcere.
—Considere feito.
Laetitia entrou no lar que estava vazio lavou o rosto em um dos tanques onde
armazenavam água. Trocou seu vestido pelo que usava sempre para recolher ervas; o do
bolso largo onde Ramiro tinha posto a relíquia. Saiu e o encontrou fora, esperando-a
montado em seu cavalo, com roupas militares que não tinha observado. A figura dele
parecia imponente e se sentiu segura para a expedição.
—Falei com uma anciã. Ela cuidará do lar e da horta - disse ele.
Ela subiu ao cavalo e começaram a marcha para o bosque. No começo foi um pouco
lenta e Laetitia o guiava sem titubear. Circundaram o povoado e, à altura da Abadia,
entraram entre as árvores. A sombra da Abadia se projetava sobre eles pela tênue luz do
sol. Laetitia ia no cavalo atrás de Ramiro. Agarrou-se a seu peito rodeando-o com os braços.

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Sentiu os músculos do guerreiro através da roupa. Apoiou seu rosto contra as costas dele e
soube que podia relaxar e que podia descansar nele sem problemas.
—Ramiro - perguntou temerosa— o que acha que acontecerá?
—O Abade deverá soltar todos seus prisioneiros quando entregarmos a relíquia.
—Refiro ao depois.
—Não sei. Os planos do Abade não parecem alentadores. Acredito que querem controlar
as comunidades vizinhas. É mais fácil com uma base em Montaillou. E, uma vez mais,
querem dar o exemplo. Enquanto eu estiver aqui, tentarei que não te aconteça nada.
—Diz de verdade?
—Sou um soldado e brigo nas batalhas que me indicam, mas nunca ataquei pessoas
indefesas. Parece-me a atitude de um covarde.
O caminho os esperava e eles devoravam os quilômetros com seu cavalo. Laetitia se
sentia tranquila logo depois do bate-papo com Ramiro. Sua voz profunda parecia um
bálsamo. Uma infusão de ervas para o sono. Atrevia-se a sonhar com ele? Em todo caso,
não queria responder essa pergunta. Preferia mais apoiar sua cabeça nas largas costas do
guerreiro, cruzar suas mãos sobre seu abdômen e que a rigidez de seu corpo fosse seu
descanso.
Chegaram perto de um arroio. Não era aquele onde ela tinha encontrado a flor, a não
ser um mais próximo ao povoado. Um do quais outros arroios chegava ao rio que
desembocava, a sua vez, no Mediterrâneo. O arroio também trazia a água do degelo. As
montanhas nevadas permaneciam à suas costas. A noite estava chegando com seu manto
escuro povoado de pérolas que brilhavam no céu.
Decidiram acampar. No dia seguinte continuaria o caminho. Não estavam muito longe do
lugar, mas era perigoso avançar de noite pelo bosque. Havia muitos animais soltos e as
possibilidades de acidentes cresciam grandemente pelas irregularidades do terreno.
Ramiro foi procurar isca e ramos secos para armar uma fogueira. Com os lenhos que
havia trazido podia permanecer acesa toda a noite. Fez o fogo. Geralmente era Domingo

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quem desempenhava essas tarefas nos acampamentos militares, mas Ramiro não gostava
de ser um líder que dava ordens e se sentava para esperar que outros as executassem. Ele
se sentia um mais dentro do grupo e não tinha problemas em fazer qualquer tarefa. Então
preparava o fogo e esquentava a comida.
Tinha enchido os alforjes de seu cavalo com algumas provisões e bastante pão. Comeram
em silêncio, se isso podia dizer. Em realidade, Ramiro fazia todo tipo de ruídos ao comer
que a Laetitia pareceram do mais divertidos.
—Come como se nunca o tivesse feito. Come como se não houvesse outra coisa no
mundo.
—É que há? —disse ele risonho. Foi até o arroio e lavou as mãos, quando terminou de
alimentar-se— Você parece muito delicada. Como uma princesa em uma corte.
—Não, não sou. Simplesmente, tento saborear o que me oferece a comida.
—Sim, claro. A princesa tem maneiras. Procura coisas únicas no mundo. Como aquela
flor. O que tinha de importante essa flor que arriscava sua vida por obtê-la?
—Seriamente quer saber?
—Claro. Quero que a princesa me instrua no refinamento.
—Olhe. Eu não sou uma princesa, nem nada parecido. O que posso dizer é que essa flor
é algo único.
—É verdade, princesa. Você tem coisas únicas.
—Basta, se quiser que te conte, farei. Mas não me chame mais de princesa.
—Está bem, sua majestade - disse Ramiro divertido e em seguida prometeu que era a
última vez que a chamava por algum título nobiliário.
—Está melhor assim. A flor cresce muito estranha vez. É um produto do degelo, assim só
a encontro a fins de março ou princípios de abril.
—Já vejo por que tanta intensidade na busca.
—Espera. Isso é só o princípio. Como te dizia, cresce entre as rochas. É um milagre que
aconteça, porque nasce do inerte. A pedra está morta e, entretanto, dá a vida à flor.

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—Tem propriedades mágicas?
—É o ingrediente especial de um elixir.
—Um elixir de amor? —perguntou ele.
—Não, não é uma poção de amor. Tem a ver com a vida. Com o que surge do
inesperado. Uma flor entre as rochas.
—Já vejo. Não é muito conciso, mas tento imaginar. — Disse ele esfregando as têmporas.
—Bem, então não seguirei adiante.
—Oh, vamos. Não me faça rogar. Diga-me como é a flor. Mal pude vê-la aquele dia.
—É pequena e branca. Parece uma estrela com suas pétalas abertas. Seu caule se eleva
um pouco entre as rochas, mal é perceptível.
—E o elixir serva para...?
—Vejo que não está levando a sério.
—Sim, sim, claro. É muito sério para mim. Se você se arriscou tanto por isso, então deve
ser.
—Contarei. Mas deve guardar o segredo.
—Juro.
—Basta de brincadeiras.
—Sério, guardarei o segredo que me pede Laetitia. —Escutar seu nome foi para ela algo
especial. Não se lembrava de alguma vez que ele a tivesse chamado por seu nome.
—Obrigado. O elixir serve para que cada um encontre seu destino. Quando as pessoas
chegam a uma encruzilhada na vida e deve tomar uma decisão, então é o elixir que
desembaraça esse caminho. Faz-nos tomar a decisão correta.
—Deve ser algo muito requerido - disse grave, Ramiro. Ele conhecia de encruzilhadas.
Mas não de como resolver.
—É um segredo. Poucas pessoas têm acesso a esse conhecimento.
—Entendo.

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—Além disso, o elixir só pode ser ingerido uma vez na vida. Quer dizer, não serve para
qualquer dúvida. Não serve para decidir sobre que roupas vestir. Então, terá que saber para
que circunstância convenha bebê-lo. Seu efeito é irreversível.
—Deve ser algo sério.
—É. Não é uma poção qualquer.
—Não. Digo que deve ser algo sério aquilo para o que você queria o elixir.
—Quero afirmar minha vocação de perfeita - disse ela em uma voz tênue.
—Por que baixa a voz?
—Não sei se é conveniente falar destes temas contigo. Você representa os que querem
destruir nossas crenças. E nós não fazemos nenhum mal a ninguém. Perseguem-nos só por
pensar diferente.
—Comigo não deve ter esse medo. Sou um soldado. Não tenho preconceitos.
—Mas foi à Cruzada.
—Porque era meu dever.
—E qual é seu dever agora?
—Terminar a missão que me encomendaram. Transportar a relíquia de Carcasona a
Montaillou.
Ficaram em silêncio. Ramiro procurou em seus alforjes e estendeu uma manta grande
aonde cabiam os dois sobre o chão. Disse a Laetitia que era melhor descansar. No dia
seguinte deviam levantar-se cedo.
Recostaram-se e Ramiro pareceu dormir imediatamente. Laetitia se esforçava por fechar
os olhos, mas não podia conciliar o sono. Os ruídos do bosque a punham em uma alerta
constante. Ouvia os grilos e os animais mover-se entre as folhas secas do chão. Temia pelos
insetos que pudessem aproximar-se; as aves pulavam de um ramo a outro e isso a
inquietava. O mocho emitia seu particular som ao longe e o arroio não a arrulhava, mas sim
a punha nervosa com esse murmúrio constante da água. Em face de todas essas
inquietações, Laetitia não se moveu. Parecia inclusive que não respirava de tão quieta que

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estava. Surpreendeu-se quando Ramiro girou sobre seu próprio corpo e ficou com o rosto
olhando suas costas. Rodeou-a com um braço e a atraiu para si. Ela se sobressaltou um
instante que se dissipou em seguida.
—Não vai acontecer nada. Estou aqui. Agora dorme - disse Ramiro ao ouvido como tinha
feito na noite anterior.
Laetitia se agarrou ao braço que a rodeava e o sentiu firme e forte, mas também
cômodo, brando, que se moldava com precisão a seu corpo. Recostou-se contra o peito de
Ramiro e fechou os olhos. Então dormiu.

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Capítulo 13

Não sem certa preguiça, Laetitia despertou. Não sabia quanto tinha dormido, mas podia
presumir que não era cedo, porque o sol já quase estava chegando a seu ponto máximo.
Olhou a seu redor e a paisagem que tinha parecido ameaçadora a noite anterior, agora
resultava familiar e acolhedora. A luz se filtrava entre as árvores e tingia tudo de uma cor
esverdeada. Essa mesma luz ia até o arroio e o tornava de um verde intenso, apesar da
transparência da água. Levantou-se e observou as folhas pulverizadas pelo chão. Também
viu as pedras ao redor da fogueira que conservavam o calor e o fogo virtualmente extinto.
Apenas umas faíscas brotavam do lugar. Procurou com a vista entre as árvores e não viu
Ramiro. Faltava ele na paisagem que olhava. Era isso o que não a permitia ficar tranquila
admirando o lugar. Sentia que a manhã não estava perfeita; que a ausência de Ramiro a
enchia de angústia. Teria preferido um lugar sombrio e não essa paisagem que a recebia
cheia de luz, de texturas e de cores. Teria preferido uma paisagem vazia e despojada,
porque assim se sentia com a ausência de Ramiro.
Depois começou a zangar-se. A encher-se de ira porque ele se foi. Não entendia de tudo
o porquê de sua reação, mas a enfurecia saber que não estava mais ao seu lado. Enfurecia-
se saber que essa manhã de sonho não estava completa.
Levantou-se de uma vez e procurou alguns ramos e os atirou ao fogo. Tinha que fazer
algo antes que Ramiro voltasse. Perguntou-se como se levantou sem que ela sentisse.
Despertou uma ou duas vezes e tinha podido voltar a dormir só porque ele continuava
abraçando-a. Não entendia, então, por que não havia sentido quando se levantou e a
deixou sozinha no meio do bosque.
Deu uns passos e foi até o arroio para lavar o rosto. Gostava de sentir a água fresca
sobre seu rosto e depois a suave brisa da manhã primaveril.

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O cavalo estava preso a uma árvore não muito longe do arroio. De fato podia beber água
também e isso fez um par de vezes enquanto ela o observava.
Depois, Laetitia voltou para onde estava a fogueira. Esperou um bom momento que
Ramiro voltasse e, quando se cansou de aguardar, empreendeu o caminho de volta. Estava
tão zangada que não pensou na relíquia, nem no objetivo da viagem. Simplesmente
começou a caminhar no sentido contrário ao que tinham chegado.
—Aonde vai? —A voz de Ramiro a surpreendeu, mas tratou de parecer indiferente.
—De volta.
—Temos que procurar a relíquia, recorda?
—Seria bom se o recordasse você. Onde esteve toda a manhã?
—Ah! Toda a manhã? Quase toda estive esperando que despertasse.
—Poderia ter me despertado e ponto, se queria continuar o caminho.
—Saí para procurar algo para o café da manhã. Movi o cavalo para que pudesse beber
água. Logo me entretive no bosque; não é tão fácil encontrar frutas amadurecidas para
satisfazer uma princesa.
—Não comece novamente.
—Está bem. Então voltemos e tomemos o café da manhã. Logo continuaremos a
marcha.
A volta tinha tomado um sentido novo para Laetitia. Agora podia desfrutar das luzes da
manhã e do som do arroio. A presença de Ramiro tinha posto tudo em seu lugar, e a
simplicidade com a que tinha falado a tranquilizava. Era como se nunca tivesse saído, como
se o despertar que a tinha irritado se dissipasse imediatamente.
Sentaram-se no chão e comeram os frutos que Ramiro tinha recolhido.
—Espero que você goste. Não sabia o que gosta de comer.
—Estão bem. Obrigado.

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O caminho era longo e depois do café da manhã ambos montaram e partiram de acordo
com as indicações de Laetitia. De dia a marcha era mais rápida, mas nem por isso teriam
que deixar de estar atentos ao que o caminho propunha.
—Me diga —perguntou ela— por que é tão importante um pedaço de madeira?
—Não te entendo.
—A relíquia não é mais que um pedaço de madeira. Por que é tão importante?
—Supõe-se que pertence à cruz em que Cristo foi crucificado. Isso é o que a faz
importante.
—Mas não deixa de ser uma parte de madeira. Algo inerte. Não posso entender como
algo material, algo inanimado pode significar tanto.
—Suponho que é o que representa o que a faz valiosa.
—E o que representa? A morte de alguém?
—É o Filho de Deus.
—Mesmo assim, não consegue me explicar o que a torna tão importante.
—Eu sou um soldado. Cumpro com o que me pedem. Não tenho a responsabilidade de
pensar por que é importante. Em todo caso, essa é a tarefa dos clérigos.
—Vejo que tem muito claro o que deve fazer cada um. Se um clérigo está enganado,
você não fará nada porque não é sua tarefa.
—Algo assim.
—Já vejo. Conte-me como chegou a essa posição de privilégio - Laetitia soava irônica.
—Meu pai era militar na corte de Pedro II d’Aragão. Faz muitos anos que parti de
Zaragoza, onde o Rei tinha sua corte e onde meu pai servia. Enviou uma Cruzada para
defender nossa fé. —Ramiro fez uma pausa. A ideia da fé se tornava tão ridícula como a do
pedaço de madeira que era venerável— Nesse momento acreditava nisso e fui à Palestina
lutar. Meu único companheiro após isso é Domingo. Antes tinha sido escudeiro de meu pai.
Nunca mais voltamos para nossa casa. Na Palestina defendi a causa cristã contra os
mouros.

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—Deve ter sido duro ser tão jovem e carregar com tantas responsabilidades.
—Não acredito que seja diferente do que você tem feito.
—Como seguiu sua história? Como foi o caminho que te trouxe até aqui?
—Na Palestina conheci Montfort. Parecia-me um guerreiro valente, um nobre temerário.
Então o segui a Paris, onde me aborreci bastante. Não havia nada para fazer até que
chegou a ordem da Cruzada em Languedoc. Domingo e eu duvidamos. Uma Cruzada contra
nossas pessoas. Pedro II duvidou, quis evitar. Aos que iam atacar eram, em definitivo, seus
vassalos. Mas ele não podia opor-se à autoridade do Papa.
—Por quê?
—Porque também ele é vassalo do Papa.
—Às vezes as coisas simples se voltam complicadas.
—Às vezes sim. Por isso decidi ser soldado. Para me manter do lado das coisas simples.
—Esteve em muitas das batalhas de Montfort. Também em Béziers?
—Prefiro não falar disso. Há coisas das que não me orgulho.
—E não tem feito nada para mudá-las.
—Já disse isso. Sou só um soldado. E isso é um destino que nem seu elixir pode mudar.
Estavam chegando ao segundo arroio, onde tinham se conhecido. Laetitia lhe deu
algumas indicações de como chegar e se encontraram frente a um arvoredo.
Laetitia desceu do cavalo e procurou a árvore correta durante vários minutos. Ramiro a
olhava um tanto preocupado; um tanto extasiado de vê-la acariciar os troncos das árvores,
de vê-la apoiar seu rosto contra a casca úmida.
Mal era o começo da tarde e o sol golpeava totalmente sobre as copas das árvores que
tingiam tudo de um tom mais escuro. O arvoredo em que estava imersa Laetitia era
bastante mais baixo que o meio do bosque e por isso a sombra parecia dobrada. Um
primeiro filtro constituía das árvores altas e o segundo, aquelas que a moça sensualmente
parecia acariciar.

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O som do arroio não deixava Ramiro escutar com atenção os movimentos de Laetitia
contra as árvores e não chegava a entender o que fazia. Levou seu cavalo para beber água,
enquanto aguardava que ela se decidisse, embora não soubesse com certeza o que era que
estava fazendo.
Finalmente, aproximou-se. Ela parecia ter se afeiçoado com uma árvore em particular.
—O que faz?
—Procuro a relíquia, claro.
—Em uma árvore?
—Escondi dentro do tronco oco de uma destas árvores. Estive procurando em qual
exatamente.
—Pensei que tivesse feito algum tipo de marca nela.
—Não fiz. Não sabia o que fazer nesse dia e, depois de esconder a relíquia, observei o
que acontecia contigo. Parecia que estava em problemas.
—E estava.
—Então me alegro de não ter perdido tempo em identificar a árvore e de ter te ajudado.
Ramiro se aproximou do tronco que virtualmente abraçava Laetitia e o golpeou com
suavidade. O som do vazio interior foi como um eco surdo que só puderam escutar eles
dois. Alguns sons de animais escutaram também. Como se quisesse fugir para alguma
parte, mas a árvore não tinha uma saída diferente do oco em seu tronco, uma abertura
ovalada pela que o braço de Ramiro não cabia.
—Eu não posso colocar a mão aí, não cabe - disse ele um pouco ofuscado.
—Porei eu, quando se aquietarem os ruídos.
—Acha que permanecerá intacta?
—Não vejo por que não. A caixa era de algum metal precioso, se não estou enganada.
—Tem razão. O pior que pode ter acontecido é se perderem algumas pedras preciosas.

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Os ruídos cessaram, mas os pequenos habitantes da árvore estavam ali. Pareciam mais
tranquilos. Ramiro tinha dúvidas do que poderia acontecer, mas Laetitia, decidida,
introduziu a mão.
—Não está.
—Como? Alguém te viu?
—Não!
—Então?
—Suponho que os ruidosos habitantes da árvore a levaram para cima. Como uma grande
noz da que se apropriaram.
Ramiro riu. Imaginava os esquilos tentando roer a caixa em que a relíquia estava
guardada.
Laetitia parou sobre as raízes da árvore que se sobressaíam da terra e tentou manter o
equilíbrio. Voltou a colocar a mão e no interior da árvore algo se moveu. Tirou-a o mais
rápido possível e conseguiu tocar algo metálico.
—Ali está!
—Pode tirar?
—Não, ainda não. Vai ter que me ajudar.
—O que precisa que faça?
—Necessito que me levante. Devo estar por cima do nível das raízes para alcançá-la.
Ramiro se aproximou da árvore e se colocou atrás de Laetitia que permanecia se
equilibrando nas raízes. Segurou Laetitia pela cintura. Suas mãos cobriam quase toda a
circunferência do quadril dela. Laetitia sentiu as palmas de Ramiro que a seguravam e
pressionavam com intensidade e doçura ao mesmo tempo. Soltou um leve gemido que foi
sossegado pelo canto dos pássaros. Para ele também foi imperceptível. Ela introduziu seu
braço no oco da árvore e se esticou. Conseguiu alcançar o metal, mas não podia tomá-lo
em sua mão.
—Me levante um pouco mais.

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Ramiro pressionou a cintura de Laetitia com delicadeza e pareceu que podia continuar
com suas mãos ali para sempre. Era muito prazeroso tocá-la, tê-la para si. Subiu-a apenas
uns centímetros e ela voltou a se esticar. Conseguiu agarrar a caixa e a puxou para cima.
Algo a mordeu e soltou um grito que desta vez sim foi audível para todos. Ramiro a desceu
e a apoiou com delicadeza sobre as raízes e a abraçou. Ela terminou de tirar o braço do oco
da árvore e a relíquia estava entre seus dedos. Um deles sangrava.
Ramiro a levantou e a colocou no chão. Laetitia parecia estar paralisada. Ele pegou a
relíquia e a deixou cair ao chão. Procurou a ferida no dedo indicador dela e o levou à sua
boca. Introduziu o dedo entre os lábios com delicadeza e Laetitia deu um pulo quando
sentiu a língua úmida e cálida de Ramiro ao redor a seu dedo. Não conhecia as sensações
que percorriam seu corpo, mas podia identificar que eram muitas. Muitas. Seus músculos
se esticaram de uma maneira que desconhecia e seu coração pareceu agitar-se. Um
comichão a percorreu da junta das pernas subiu pelo estômago e em seu peito se fez um nó
tão grande que só pôde desatar-se em um suspiro. Ramiro o ouviu e interpretou
corretamente. Entretanto, não quis afligi-la.
—Desculpe - disse. Mordeu brandamente na zona da ferida e cuspiu no chão— É a
melhor maneira de limpar de malesas o machucado.
Ela se recompôs como pôde. Tentou esquecer as sensações prazerosas que tinha
experimentado, mas não pôde. Mal conseguia pô-las de lado temporariamente.
—Vejo que sabe como atender um caso assim. —Tentou soar recomposta.
—Vem. Lavarei a ferida no arroio.
—Mas... E a relíquia?
—Esperará - respondeu ele com um sorriso cúmplice.
Foram ao arroio. Ali tinham se conhecido. Ela nadava com uma flor na mão e tentava
não afogar-se.
—Recordo de você toda ensopada neste arroio — disse ele e sorriu.
—A flor estragou.

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—É verdade. Eu a arruinei, quando tomei sua mão para te tirar da água.
—Se não tivesse feito, talvez eu não estivesse aqui. Deverei esperar o próximo ano para
preparar meu elixir.
Ramiro mergulhou o dedo de Laetitia na água e deixou que a corrente limpasse a ferida
da moça. Depois cortou um pedaço de tecido de sua camisa e a atou no dedo de Laetitia
com força.
—Pronto.
—Eu não teria feito melhor - disse ela e piscou levemente o olho.
Parecia que no bosque os problemas de Montaillou desapareciam, e entre eles havia
uma comunicação diferente. Sincera. Sem barreiras nem diferenças. Ele não era um
soldado com ela ali. Ela mal recordava o caminho para ser uma perfeita. Unia-os a relíquia
que dizia que ele era um soldado cristão e ela uma mulher cátara, mas conseguiram
sossegá-la, quando Ramiro a guardou em um dos alforjes e subiu Laetitia com delicadeza ao
cavalo.
—Montarei atrás de você — comunicou ele— Eu te segurarei para que não tenha que
fazer esforço com a mão machucada.
Começaram com a volta e foi uma experiência para Laetitia poder recostar-se contra ele
e sentir-se segura, sem ter que segurar-se em nada, a não ser com o apoio de Ramiro que
cuidava que sua viagem de retorno fosse sem sobressaltos.
Ramiro a apertava contra si e lhe cortava a respiração quando ela levava a cabeça para
trás e se apoiava em seu peito. Podia cheirar seu cabelo loiro e que parecia fresco como
uma brisa matinal, como a água do arroio que tinham deixado atrás.
—Calculo que estaremos em Montaillou antes do anoitecer - disse ele.
Mas nenhum dos dois queria que a viagem terminasse. Ela apoiava sua mão sobre a dele
que a segurava pela cintura, apoiando a palma com firmeza e ternura sobre seu abdômen.
Inconscientemente acariciava os grossos dedos de Ramiro. Brincava de saltar do indicador
ao maior e do maior ao anular e voltava como se seus próprios dedos fossem caminhantes.

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Às vezes, simplesmente passava sua mão com suavidade sobre a dele ou procurava que os
dedos de ambos ficassem entrelaçados. Olhava a paisagem extasiada. Agora tudo tinha
sentido para ela. O bosque adquiria uma forma nova e desconhecida. Uma forma que
recordava um lar.
Ramiro ficava nervoso com os toques que Laetitia dava sobre a mão que a sustentava.
Cada instante ela a acomodava um pouco, esticava e movia. Ela não parecia perceber seu
desconforto, simplesmente se divertia, passava o tempo. Em um movimento, ele a apertou
contra seu corpo. Foi algo involuntário. O que mais queria era afastá-la e não atraí-la. Ou
era ela que o atraía a ele? Avançaram virtualmente colados. Ele sentia as nádegas de
Laetitia contra seu corpo, cravadas entre suas pernas, e um impulso, como se algo
despertasse, percorreu a zona onde Laetitia se apoiava e se movia com o delicado vaivém
do cavalo.
Ramiro parou. Não podia continuar assim, sem fazer uma pausa e propôs descansar e
comer algo. Talvez isso o fizesse esquecer o que era senti-la contra seu corpo.
Desceu do cavalo um tanto incômodo e procurou nos alforjes o pão que restava.
Entreteve-se procurando frutos e ela insistiu em acompanhá-lo.
—Serei mais rápido se for sozinho. —Queria ficar sozinho, tirá-la por um momento de
sua cabeça.
—Vamos, quero ir contigo - disse ela divertida. Parecia uma jovenzinha alegre que tinha
descoberto que gostava da companhia de alguém.
Finalmente, ela ganhou e o acompanhou. Procuraram entre as árvores distintos frutos.
Laetitia adorava maçãs e Ramiro preferiu tentar encontrar algumas frutas secas. Recolheu o
suficiente para satisfazer sua fome. Sabia que as amêndoas e as avelãs o alimentariam e
dariam energia.
Fizeram um fogo e esquentaram um pouco de pão. Os mantimentos estavam acabando e
a tarde se elevava no céu, não sem certo esplendor.

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Depois de comer, Laetitia começou a cochilar, como se um torpor se apropriasse de seu
corpo e ela mesma não pudesse controlar sua vontade. Ramiro a deixou descansar e se
sentou para refletir enquanto a observava. Podia ver a forma de seu corpo: como se
afundava a cintura depois de descer dos quadris, como voltava a alargar-se para albergar
seus seios que pareceram perfeitos e como seu rosto era hipnótico.
Quis limpar-se, sair dali. Não podia resistir à presença de sua companheira muito tempo
mais.
Fechou os olhos e escutou os sons do bosque. Concentrou-se na melodia que cantava
um pássaro e o procurou com a vista. Surpreendeu-se ao vê-lo. Era uma ave pequena, de
cor avermelhada e com o peito de um amarelo vivo. Seu canto soava tão intenso que, uma
vez que o identificou, não pôde deixar de escutá-lo, nem de cantarolar a melodia na
cabeça. Conhecia a espécie, mas não acreditava que pudesse encontrá-la fora d’Aragão.
Sempre tinha acreditado que se tratava de uma ave local, que não podia chegar a
Languedoc. Recordou sua infância, quando ainda vivia na Espanha, quando caminhava pelas
ruas de Zaragoza e fazia excursões com Domingo pelos subúrbios da cidade e conhecia os
pássaros da zona e os animais que se multiplicavam em seu entorno.
Laetitia despertou de sua madorna e ficou calada observando Ramiro que permanecia
em silêncio e com o olhar cravado nas árvores. Esteve um tempo sem dizer nada. Ele se
parecia com um cão que com a cabeça em alto farejava para localizar sua presa.
—O que faz?
—Escuto.
—Que escuta?
—O canto de um pássaro.
—Qual?
—Se te calar terá mais possibilidades de ouvi-lo.
—Shh!

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Laetitia prestou atenção e distinguiu a melodia que chamava a atenção de Ramiro.
Assinalou o pássaro e os dois ficaram enfeitiçados em como cantava a ave. Depois se calou
e desapareceu entre os ramos do bosque.
—Conhece o pássaro? Eu nunca o tinha visto - disse Laetitia com muita curiosidade.
—Sim. Pensei que só habitava a refloresta d’Aragão, de onde sou. Essa é a música que
escutei toda minha infância.
—Como se chama a espécie?
—A conheço como turtur, e é famosa por seu modo de cantar.
—Entendo por que. É muito belo. Tem quase um poder mágico que te absorve ao
escutá-lo.
—Em Zaragoza se dizia que quem pudesse cantar como o turtur, podia conquistar o
mundo. Não havia fera mais fera que não se rendesse a seus pés, nem guerra, nem ira que
não pudesse desfazer.
—Não parece difícil de acreditar.
—O problema é que seu canto é o reflexo de sua solidão.
—Não entendo.
—Explicarei. Conta à lenda que o turtur sabe que tem um par predestinado. Para
encontrá-la, deve sair de sua casa, do lugar onde nasceu e onde alcançou a vida adulta. É
uma viagem, mas também é uma busca. O turtur macho procura seu par através de seu
canto. Quando a fêmea o escuta, vai a ele e realizam um cortejo em que ambos os pássaros
cantam uma melodia perfeita, em que cada um tem seu rol. Vi muitos casais de turtur, e
todos pareciam que ensaiavam uma peça à perfeição, quando, em realidade, era a primeira
vez que a cantavam juntos. A melodia os acompanha toda a viagem de volta à casa que têm
que voltar.
—E o canto? Por que é tão triste?
—Canta para encontrar seu par. Mas continua cantando, enquanto não a tenha
encontrado. O que nós ouvimos é o hino mais perfeito à solidão. O turtur continua

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cantando todos os dias para encontrar seu amor destinado. Mas quanto mais tempo passa,
mais triste fica seu canto. Mais melancólico. O turtur não pode voltar para seu lar se não for
acompanhado da fêmea ideal, aquela que reconhece como sua alma gêmea. O que nos
parece tão belo, seu próprio canto, não é mais que uma forma dilaceradora de chamar ao
outro.
Laetitia ficou em silêncio, pensando. Olhava o pássaro e à paisagem em que estavam.
Nunca tinha escutado a história dessa ave e era evidente que não se afastou muito de sua
casa para chegar perto de Montaillou. Logo, observou Ramiro com certo cuidado. Tentava
armar um quebra-cabeça, de procurar uma semelhança.
—Parece um pouco com você. Você também quer voltar para seu lar e parece que não
encontra a maneira de fazê-lo.
Ele não disse nada. Levantou-se com delicadeza e, com ternura, conduziu Laetitia até o
cavalo e a ajudou a montar. Deviam continuar adiante. Incomodou-se que ela tivesse
acertado tão facilmente. Ele via a si mesmo como esse pássaro. Não tinha entendido
imediatamente. Os primeiros anos fora de Zaragoza tinham sido fascinantes: tinha a vida de
um soldado e tudo o que via era novo, distinto, o encantava. Podia ir de um povoado a
outro, de uma cidade a outra, de uma mulher a outra. Era muito jovem para pensar que
alguma vez se interessaria em voltar para sua casa. A morte de seu pai acalmou um pouco
seus ânimos, mas não conseguiu apaziguar. Continuou com sua vida. A batalha de Béziers
mudou as coisas. Era um soldado, mas a crueldade da Cruzada não figurava entre seus
princípios. Tinha salvado aquela mulher e sua filha e nunca mais tinha sabido nada delas.
Logo, a notícia que ele tinha possibilitado uma fuga correu entre a tropa e o encarceraram.
Desterraram-no, proibiram-no de voltar para sua pátria. Já não era um vassalo do Reino
d’Aragão. Esteve um ano preso no castelo de Carcasona até que voltou a jurar fidelidade.
Fidelidade a Montfort e seus planos. Jurou que seria para sempre um soldado. E um
soldado faz o que lhe ordenam.

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Montou ele também e continuaram a viagem. Voltou a pensar que era um soldado e que
cumpria com uma missão. Não tinha por que abrandar-se pelo que havia dito Laetitia, nem
pelo canto de um pássaro.
Entretanto, Ramiro continuou assobiando a canção do turtur e pensando nas palavras de
Laetitia. Havia muito caminho por percorrer.

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Capítulo 14

Escureceria em um par de horas e Ramiro queria chegar a Montaillou e entregar a


relíquia antes que se fizesse noite. Esperava solucionar os temas pendentes, os problemas
que tinham surgido quando o assaltaram, e cumprir com sua missão. Isso também
implicava fazer liberar às pessoas que o Abade tinha encarcerado injustamente. Depois,
planejava ir embora dali. Aceitar uma nova missão de Montfort, mas tratar de sair de
Montaillou. Laetitia recostava suas costas contra seu peito enquanto cavalgavam e essa
sensação nublava seu pensamento. O mesmo tinha ocorrido com a conversa sobre o turtur.
Ela conseguia afastá-lo de seus objetivos. O fazia pensar, tinha-o feito sentir-se invadido de
melancolia por não estar na Espanha. Cada vez que tinha começado a sentir saudades ou a
sentir que sua vida não funcionava, superava-o recordando que seu destino era ser
soldado, estar nas batalhas e não uma vida aprazível em outro lado. Depois,
indevidamente, voltava a pensar em Béziers e não podia acreditar que aquilo tivesse sido
um engano. Tinham-no castigado por isso e entendia as razões do castigo, mas não se
arrependia de ter salvado à mulher e sua pequena filha. Não podia ser errada aquela ação.
Entretanto, não havia tornado a fazer. Não tinha desobedecido nenhuma ordem mais.
Simplesmente, fazia seu trabalho, ganhava as batalhas e deixava as crueldades a Montfort.
Ele se retirava e não participava desses castigos exemplares. Prometeu não questioná-los e
tinha obtido. Era um soldado. Fazia seu trabalho. Entretanto, repetia a si mesmo muitas
vezes. Mais do que as necessárias para soar convencido. Mais que as necessárias para não
pensar, em seu íntimo, que algo estava mal com aquela vida. E cada vez que algo o fazia
encarar isso, seu desejo era o de fugir. Domingo fazia muitas vezes o trabalho de lhe
recordar quem era, de dizer que suas ações em Béziers mostravam tal qual era. E ele se
voltava a pensar, repetia isso como uma litania, como uma reza, que era um soldado e que
devia cumprir com o que lhe pediam.

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—Me conte da Espanha. —A voz doce e serena de Laetitia o surpreendeu e o arrancou
de seus pensamentos. Não queria falar com ela, não queria abrandar-se. Mas era
impossível não fazê-lo, não compartilhar algo com aquela moça que se aconchegava contra
seu peito com ternura e cuja voz podia competir com a beleza do canto do turtur.
—Que deseja que te conte? Alguma história bonita?
—Eu gosto das histórias bonitas - disse ela e soltou uma risada. Estava paquerando com
ele? Perguntou-se. Parecia que se ajustava bastante à descrição que tinha dado Miriam de
como fazer que um homem se interesse por ela. Nesse momento, Laetitia tinha respondido
a sua amiga que não queria saber nada dos homens, que seu caminho era o de uma
perfeita. Nunca se sabe, havia dito Miriam antes que Laetitia estalasse em uma série de
impropérios que divertiam sua amiga. Miriam gostava de fazê-la zangar. Entretanto, nesse
momento, no bosque, quando não faltava muito para chegar ao povoado, reconhecia que
estava paquerando com Ramiro e que não desgostava de tudo a ideia.
—Não conheço muitas. Fui dali muito menino. —Um sotaque de tristeza percorreu as
palavras de Ramiro.
—Bom, se não quiser, não precisa - sugeriu ela.
—Posso te contar uma história, sim. Mas não uma em que eu participei.
—Não importa. Conte-me. —Agora Laetitia soava contente.
—Havia uma vez um cavalheiro que formava parte da corte do rei Pedro II. Mas a vida no
castelo o aborrecia. Estava acostumado a passear muito pelos jardins e pela cidade. Era um
cavalheiro famoso e as mulheres da corte o acossavam. Lançavam sorrisos furtivos e
deixavam cair seus lenços como objeto de amor para que ele os recolhesse. Entretanto, o
cavalheiro não estava contente com essa vida cortesã. O Rei, preocupado por seu vassalo,
enviou-o em uma missão em uma cidade vizinha. Devia ficar ali alguns meses. O Rei
pensava que, em outra corte, talvez seu vassalo conseguisse uma esposa. O cavalheiro
aceitou a missão, como era seu dever, mas não estava feliz de ter que deixar sua vida em
Zaragoza, seus amigos e seus passeios pela cidade. A ideia de ser um embaixador do Rei

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não o adulava. Simplesmente, não foi feito para a diplomacia. Preparou-se para partir com
um pouco de angústia. Sabia em seu íntimo que Pedro II queria conseguir para ele uma
esposa na cidade vizinha, porque todos seus cavalheiros deviam formar uma família. Então,
Pedro II os premiava com algumas terras e podiam subir em seu exército. O cavalheiro era o
general mais importante de seu exército e continuava solteiro. Toda a corte falava disso.
Finalmente, escolheu um dia pela manhã para partir. Tinha tentado atrasar esse dia, mas já
não podia adiá-lo mais. Não queria despertar a ira do Rei. Despediu-se de seus amigos e
Pedro II se aproximou para saudá-lo. Disse-lhe que no caminho encontraria sua mulher e
que sua família seria uma das mais proeminentes do Reino d’Aragão.
»Montou seu cavalo e saiu da cidade. À beira do Ebro viu uma lavadeira que se ocupava
das roupas das senhoras. Reconheceu alguns dos vestidos, mas nunca tinha visto a moça
que pareceu tão formosa. Passou o mais perto possível dela para poder admirá-la e,
quando chegou ao caminho que devia percorrer para chegar à cidade vizinha, girou a
cabeça para ver a jovem lavadeira uma vez mais. Não soube então o que aconteceu, talvez
alguma coisa assustou seu cavalo, que começou a correr descontrolado, e saiu do atalho
para entrar em uma zona rochosa e cheia de árvores. O cavalheiro não podia controlar o
corcel e tentava cobrir o rosto para proteger-se dos ramos. Pensou que, se devia morrer,
estaria contente, porque tinha visto essa moça. O cavalo em sua carreira pisou em um
pequeno buraco e golpeou uma pata contra uma das pedras. Em seguida caiu. A sorte foi
tal que o cavalheiro ficou debaixo do animal.
»A lavadeira tinha visto tudo e correu para socorrê-lo. Conseguiu que o corcel se
levantasse e acompanhou o cavalheiro até o castelo. Teve que ficar de cama durante uma
semana e foi à lavadeira quem cuidou dele.
»Quando estava melhor, recebeu a visita do Rei. Gabou-se diante dele de ter acertado
com a predição. Não tinha se enganado ao dizer que no caminho conheceria uma mulher. E
esse era seu modo de dizer que aprovava a união com a jovem lavadeira. O cavalheiro

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agradeceu ao Rei que o liberou de ter que procurar esposa em outra cidade e
imediatamente propôs casamento à moça que tão bela lhe parecia.
—E? Não vai parar agora. Diga-me como terminaram.
—Casaram-se em pouco tempo.
—Tiveram meninos?
—Um. Um varão.
Depois sobreveio o silêncio. Ramiro ficou pensativo, como se a história continuasse, mas
em sua cabeça. Laetitia se comoveu com o que ele tinha contado. Já não pensava na
paquera inicial. Ou sim, continuava paquerando com ele, mas sem as regras que tinha dado
Miriam.
—Me diga Ramiro - disse com cautela— É esta uma história inventada?
—Não.
Não respondeu outra coisa e Laetitia se deu conta que ia ter que continuar perguntando
se queria saber mais.
—Conheceu os protagonistas, quando vivia em Zaragoza?
—Sim.
Ramiro continuava com os monossílabos e Laetitia morria de vontade de saber de quem
falava. A história a tinha comovido e queria saber tudo.
—Me diga quem eram.
—Meus pais. Minha mãe não tinha linhagem, era uma simples lavadeira e isso não
importou para meu pai.
—Sua mãe ainda vive?
—Morreu quando eu nasci.
Laetitia não disse nada mais. Sentia-se mal porque com suas paqueras tinha conseguido
pô-lo taciturno e triste. Não era seu objetivo, só queria que a viagem fosse mais suportável.
Por outro lado, a história a tinha emocionado de uma maneira que não pensava que as
histórias pudessem comovê-la.

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—Não se entristeça, por favor - disse ele.
—É muito bonita a história. —Laetitia soltou um ligeiro soluço.
—É um belo conto, sim. Mas forma parte do passado. Eu não penso muito nisso.
—Talvez devesse recordar todos os dias.
—Para que? Para me entristecer como você?
—Possivelmente a princípio te entristeça como o canto do turtur, mas logo reconhecerá
a beleza da história, da mesma maneira que a reconhece no canto da ave.
Ramiro não disse nada, simplesmente continuou cavalgando. Tinha contado a única
história que recordava de sua mãe e se sentia desprotegido. Como se estivesse no meio de
uma batalha e a armadura se quebrado em mil pedaços. Assim vulnerável estava frente a
ela. Propôs-se a continuar com a marcha e chegar ao povoado quanto antes possível. Não
queria demorar mais o trâmite da relíquia. Não queria mais conversas como essa, que o
deixavam exposto. Por outro lado, sentia-a diante dele, sentia-a contra seu corpo, sentada
entre suas pernas e seu instinto brotava como uma flor na primavera. Não era capaz de
conter o que acontecia. Os melhores soldados são os que não se precipitam, e ele se dava
conta que, nesse contato estreito, não estava podendo ser um bom soldado. Tinha-a tão
perto que era impossível afastá-la de seus pensamentos. Com delicadeza, cobriu com uma
mão o ventre de Laetitia e a deixou ali, exercendo uma suave pressão que o estreitava
ainda mais contra a moça.
Laetitia se preocupava com o silêncio de Ramiro. Não conseguia decifrar. Não entendia
por que ficou calado e se perguntava se Miriam conheceria algum modo para tratar os
homens, para fazer que não ficassem em silêncio. Prometeu afastar Miriam de seus
pensamentos e suas receitas sobre os homens. Ela queria ser uma perfeita. Os homens não
tinham lugar em sua vida.
Laetitia sentiu a mão que Ramiro apoiou com delicadeza em seu ventre e, sem pensar,
pousou a sua sobre a dele. Deixou-a aí. Seus dedos eram como uma manta curta sobre a

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grande mão de Ramiro. Gostou dessa imagem. Uma manta, como a da noite anterior em
que tinham dormido juntos.
Escutavam o murmúrio do arroio que estava mais perto de Montaillou. Ramiro acelerou
a marcha. Não seriam mais de duas horas, se conseguisse manter o ritmo. O bosque se
tornava frondoso e era o lugar ideal para os caçadores. Estavam acostumados a entrar até
aí e preparar as armadilhas para alguns animais menores como coelhos ou lebres. Cavavam
um poço e o cobriam com folhas e pasto. Quando o animal caía na armadilha, os caçadores
o apanhavam e o punham em uma jaula. Ramiro estava a par deste tipo de truques e devia
prestar atenção, mas a presença de Laetitia o havia desconcentrado, tinha feito com que
ele baixasse a guarda e não se fixou no caminho enquanto guiava ao cavalo.
Não reparou em um dos buracos do atalho. A pata do animal entrou totalmente na
armadilha para as lebres e se dobrou sobre si mesmo. Todos caíram, embora nem Laetitia
nem Ramiro ficassem presos sob o animal.
Passado o primeiro momento de susto, levantaram-se e comprovaram que estavam
bem, só com alguns machucados sem importância. O cavalo não podia levantar-se. Com
muito esforço, Ramiro o ajudou a ficar em pé. Não podia galopar. Mal podia avançar muito
lentamente, mas sob nenhum conceito ia ser capaz de aguentar o peso de duas pessoas.
—Deveremos continuar a pé - anunciou Ramiro— O cavalo nos atrasará, mas poderemos
avançar. Quando chegarmos ao povoado, mandarei que cuidem dele.
—Eu poderia ajudar.
—Não. Agora o importante é chegar a Montaillou. Seguiremos até o arroio, não está
longe e passaremos a noite ali.
Caminharam em silêncio e não muito depois chegaram ao arroio. Ramiro acompanhou o
cavalo para beber água e logo o atou em uma árvore e enfaixou a pata com tecido de sua
roupa. Estendeu a manta a Laetitia que a estendeu sobre o chão, depois de tê-lo limpado
das pedras.
—Vou procurar lenha para preparar um fogo.

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A luz do dia era cada vez mais tênue. Tinha que se apressar se não quisesse que a noite
chegasse sem ter a iluminação de uma fogueira. Recolheu alguns ramos que estavam perto
da beirada do arroio. Estava sob o sol e isso os tinha secado, apesar de estar quase em
contato com a água. Agachou-se para levantar um lenho grosso. Ia necessitar mais de um
desse tamanho para que o fogo durasse toda a noite. O sol se ocultava cada vez mais rápido
e soube que tinha que se apressar. Levantou a vista e, subitamente, viu a flor. Achou que
estava enganado e continuou com a busca da lenha. Mas não pôde evitar voltar a olhar e
estava ali, erguida entre duas pedras no meio do arroio, orgulhosa, branca, antiga e
desafiante. Ramiro não podia acreditar. Laetitia havia dito que já estava resignada, que não
poderia encontrar outra flor mais além daquela que tinha perdido na água, quando ele a
conheceu. Que teria que esperar um ano para fazer o elixir que ia decidir sua vida. Ramiro
observava a flor sem saber o que fazer. O arroio era o suficientemente largo para que fosse
um problema cruzá-lo e a água devia estar gelada, já que descia com intensidade do degelo
da montanha. Pensou em dar a volta, terminar de recolher os lenhos, voltar para o
acampamento improvisado, dormir e levantar-se no dia seguinte para chegar a Montaillou
o quanto antes possível. Isso foi o que fez. Reuniu a quantidade suficiente de lenha e alguns
frutos que os ajudariam para jantar algo, já que não restava mais comida porque não
tinham previsto passar a noite ali. Empreendeu o caminho de volta.
Parou em seco e soltou o que tinha nas mãos. Voltou correndo para onde tinha visto a
flor. Duvidou uma vez mais. E mergulhou no arroio.
Era mais fundo do que tinha imaginado. A água chegava até seu peito não muito longe
da beirada. Teve que nadar um pouco até chegar até onde a flor emergia entre duas rochas.
Agarrou-se à pedra que estava molhada e pensou. A corrente era forte e teria que nadar
uns metros. Arrancou a flor em um impulso e a sustentou bem alto. A correnteza era mais
forte e a luz se foi quase completamente. Custou muito nadar e manter o braço fora da
água. A correnteza o arrastou vários metros e ele tragou um pouco de água que o fez tossir.

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Agitou seu braço livre e esperneou de um modo um tanto ridículo, mas se aproximou da
beirada. Quando acreditou que estava chegando, esticou-se e se agarrou à raiz de uma
planta para sair. Entretanto, a raiz se quebrou e todo o peso de Ramiro se inundou na água,
depois de escorregar com os musgos das pedras do fundo.
A flor, entretanto, manteve-se fora da água. Sabia que se tocasse na água, suas
propriedades se arruinariam. Ficou em pé como pôde e se aproximou da beirada. Apoiou a
flor no chão, o mais longe possível do arroio e fez força com as duas mãos para sair da
água. Juntou os lenhos com a mão direita e os acomodou sob seu braço. Na outra mão
levava a flor como um troféu, como o prêmio mais importante de todas as suas batalhas.
Chegou perto de Laetitia e a viu tiritando de frio, zangada. Ela o observou de cima abaixo
e conteve uma recriminação.
—Onde esteve? O que te aconteceu? —perguntou ao vê-lo empapado. Ele ocultava a
flor com a mão atrás das costas.
—Nadando, já vê.
—Eu estou aqui, morta de frio e você decidiu tomar um banho - disse Laetitia com ironia.
Um sorriso malicioso iluminou o rosto de Ramiro.
—Bom, tive vontade e mergulhei. Deveria ter estado onde eu estava, com o barulho do
arroio nos ouvidos, com a água antiga passando a meu lado. Era irresistível.
—Mas eu estava aqui, na escuridão e sozinha.
—Trouxe a lenha. E já expliquei isso, não pude resistir. — Entregou alguns lenhos e os
outros deixou cair no chão. —Vá, prepara o fogo que tenho um pouco de frio agora que se
foi o sol.
Laetitia aceitou a contra gosto. Ramiro ainda conservava uma mão nas costas e não lhe
mostrava a flor.
Preparou a fogueira e a acendeu. Ramiro se aproximou do fogo e deixou que o calor
começasse a secar suas roupas.

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—Trouxe algumas frutas. Estão entre os lenhos que ficaram no chão. Pensei que podiam
nos ser de utilidade, porque não temos nada para jantar. Pegue-as, por favor.
—Deixe de me dar ordens.
—Por quê? Sou eu o que se ocupou de tudo, enquanto você estava aqui sem fazer nada.
—Não podia fazer mais que te esperar! Se tivesse me contado que ia demorar porque
queria se banhar, então eu teria me ocupado do jantar. Mas quando foi não disse nada de
se demorar no arroio.
—Vamos, pegue os frutos que quero terminar de me secar.
Laetitia voltou a protestar, mas obedeceu. Quando se afastou um pouco do lugar,
Ramiro depositou a flor sobre a manta, onde estavam as coisas dela. Ele tirou a casaca e a
apoiou em um ramo, muito perto da fogueira para que se secasse. Parou diante das chamas
para poder secar-se. Laetitia voltou e ficou quieta, observando-o. Tinha visto seu torso nu,
mas então ele era um doente que convalescia no hospital. Agora estava ali, não como um
paciente, mas sim como um homem. Guardou a compostura e avançou.
—Preparado, senhor. Já está servido?
—Não de tudo. Pegue para mim uma nova casaca dos alforjes. Estão ali, junto às mantas.
—Algo mais? —disse ela irônica.
—Se me ocorrer algo mais, te farei saber isso.
Ela o olhou com fúria.
—Isto é o último que faço. Não sou seu escudeiro.
—E me alegro por isso.
Aproximou-se da manta e mexeu nos alforjes. Encontrou uma casaca entre suas mãos. A
jogou e Ramiro teve que esticar-se para que o objeto não caísse no fogo. A casaca agitou o
ar em seu voo. Algo se moveu entre as mantas e Laetitia notou. Quis ver o que era
intrigada. E viu a flor.
Tomou entre suas mãos e a observou longamente. Era o que ela procurava. A flor que
necessitava para preparar seu elixir. Com isso seu destino ficaria selado.

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—Estava entre umas rochas, no meio do arroio. —A voz profunda de Ramiro a tirou de
seus pensamentos.
—Por isso estava empapado.
—Nunca pensei que fosse acreditar na história do nado.
Laetitia sorriu. Agora se dava conta de como tinha sido ingênua.
—Obrigado.
—Não pude deixá-la passar. Sabia o que a flor significava para você.
—Conhecemo-nos com esta flor, não é verdade?
—Conhecemo-nos por ela e me parece bem tê-la buscado agora. Tudo volta para o seu
lugar. Você me devolveu a relíquia e eu sua flor. Estamos como antes de nos conhecer.
—Não. Não é assim. As coisas não voltam para o princípio, uma história entre duas
pessoas não se desenreda como uma corda.
Ramiro a olhou com os olhos acesos. O fogo soava em um crepitar ardente atrás deles e
ele se aproximou e lhe acariciou a bochecha com doçura. O contato com a pele dela o fez
dar um pulo. Um mal perceptível salto para trás. Mas logo se arrependeu de sua reação e
se aproximou da mão que se estendia. Apoiou sua bochecha direita sobre a palma de
Ramiro. Deixou cair o peso de sua cabeça sobre sua mão aberta. Apoiou-se em Ramiro e ele
a abraçou. Ainda não havia vestido a casaca seca e ela pôde sentir seu peito nu, seu
abdômen que pressionava contra ela. Suspirou e se separou dele com delicadeza.
—Não acha estranho que o cavalo tenha se machucado?
—Por quê? Foi um erro, não prestei atenção no caminho.
—Porque é similar à mesma história que me contou antes. A de seus pais.
Ramiro não disse nada. Voltou a abraçá-la e ela cruzou seus braços ao redor do pescoço
dele. Parecia obstinada como um náufrago a uma madeira que flutua no mar.
—O cavalo se machucou talvez para que eu pudesse encontrar a flor. E assim você pode
preparar seu elixir e confirmar que seu caminho é o de uma perfeita.
—Tem razão.

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—Entretanto, me parece um engano. Você não foi feita para ser uma perfeita.
Laetitia se separou dele como se tivesse se queimado. Olhou-o confundida.
—Não entendo por que diz isso.
Ramiro esticou seu braço com muito cuidado e voltou a acariciar-lhe a bochecha. Ela deu
um passo para trás.
—Se fosse uma perfeita, não sentiria as coisas que sente quando te toco.
—Diga homem sábio, o que sinto?
—Um comichão que se estende por todo seu corpo. Não sabe onde vai nascer, então é
incapaz de controlá-lo. Só sabe que começa perto de seu ventre e se expande em círculos
por todos os lados: em suas mãos, em seu peito, em sua garganta que parece que vai te
deixar muda, em seus olhos, em suas pernas, em suas costas. É tão intenso que quer que
termine e é tão prazeroso que deseja que não termine nunca.
Ramiro descrevia exatamente suas sensações e não teve a coragem de contradizê-lo.
—Como sabe? Como conhece o que acontece comigo?
—Porque eu sinto o mesmo. Estas coisas se sentem a dois.
Laetitia temeu o que pudesse acontecer. Esperava com intriga fazia tempo, mas também
a atemorizava.
—Não tenha medo - ordenou com suavidade Ramiro.
—Outra vez adivinhou - disse Laetitia com voz trêmula.
Ramiro se aproximou o mais possível dela e a beijou. Beijou-a com intensidade, mas com
calma. Sentou-se sobre a manta e a sentou sobre seus joelhos. Laetitia se abraçou a ele e
passou a mão por seu cabelo, com uma carícia circular. Ramiro sorriu. Gostava de seus
olhos azuis observando-o, como se tivesse que tomar uma decisão. Voltou a beijá-la e com
muita doçura acariciou sua língua com a sua. Com muita calma sentiu seus lábios e a forma
que tinham. Foi consciente disso. Queria poder reconhecê-la, que a boca de Laetitia fosse
uma estampagem indelével. Ela retribuiu um beijo ávido que Ramiro serenou com ternura e
paciência. Tinham toda a noite pela frente.

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Capítulo 15

Pôs suas mãos ao redor dos ombros dele e se apertou o mais possível contra seu corpo.
Ele se entregou a ela; deixou-a fazer e sentiu como Laetitia intensificava o beijo que já
vinham dando. Foi uma sensação nova a que percorreu o corpo dela; sentia-se atrevida
introduzindo sua língua na boca dele. Ficou parada entre suas pernas, enquanto ele estava
sentado sobre um tronco caído, por trás da manta que tinham posto no chão. Tomou seu
rosto entre as mãos e ele fixou seus olhos nos dela. Nunca a tinham olhado de tal modo e
isso a fez sentir-se mulher. A respiração dele se tornou mais profunda e mais rápida; ela
também estava agitada e sentia suas costas cobertas de suor. Ramiro a abraçou pela
cintura e voltou para sua boca. Passou seus lábios pelos da moça, então o beijo se tornou
exigente e ambos pareciam exaustos, quando se separaram uns centímetros logo depois
desse longo beijo. Ela apoiou sua testa contra a dele e respirou agitada.
Laetitia mordeu o lábio inferior e tentou dizer algo, mas não pôde. Brincava com a mão e
a passava pelo torso nu dele.
—Nunca havia te tocado assim.
—Não é verdade - disse ele e riu cúmplice.
—Tinha visto? Esse gemido foi de propósito?
Um sorriso foi à única resposta.
—Nunca havia te tocado assim - insistiu ela— Quer dizer, não contigo me observando
com os olhos abertos.
Ele tomou a mão da moça e a acompanhou em seu percurso por seu peito, e lentamente
foi descendo por seu abdômen. Ela compreendeu que esse era o modo que ele desejava ser
acariciado e se alegrou que ele a conduzisse; ela não saberia como fazer.
—Laetitia, quer continuar?
Ela compreendeu tudo o que essa pergunta encerrava. E não duvidou.

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—Sim, Ramiro.
Ela teve então a certeza que ele saberia o que fazer como tratá-la.
Ramiro subiu as mãos até as coxas de Laetitia por debaixo de seu vestido e a aproximou
mais ainda a seu corpo, pressionando com suavidade para que ela sentisse o contato com
sua virilha. Um comichão percorreu todo seu corpo imediatamente. Algo que ela
desconhecia, mas que era extremamente prazeroso. Ramiro ficou de pé, e começou a lhe
beijar o pescoço; foi descendo por cima da roupa de Laetitia até que chegou à zona de seus
seios. Mordiscava brandamente o tecido, que se umedecia pelo contato com sua boca. Essa
umidade sobre seu corpo fez que os mamilos dela se endurecessem até doer. Essa resposta
dela o avivou. Ele retornou à boca de Laetitia. Ficou de pé e a tomou entre seus braços,
beijando-a com paixão, sentia com suas mãos como o tecido de seu vestido se molhava na
zona das costas, o que delatava uma grande excitação nela. Agachou-se um pouco até
tomar o vestido pela barra. Foi levantando lentamente e, enquanto o tirava, deslizava suas
mãos contornando o corpo de Laetitia. Puxou do tecido até que o tirou por cima da cabeça.
Pôde observar sua nudez e ficou deslumbrado, era muito mais bela do que jamais tinha
imaginado.
A brisa da primavera que estava chegando alagou seu corpo e sua pele se esticou e
respondeu arrepiando-se. Ramiro a guiou até a manta e os dois se deitaram ali.
Ele continuou beijando-a na boca e ela se deixou beijar, embora reconhecesse a
impaciência de seu companheiro e a de seu próprio corpo que pedia a gritos continuar,
embora não tinha certeza com o que. Só sentia uma impaciência que se manifestava em
calafrios e comichões que percorriam seu corpo e a faziam tremer entre os braços de
Ramiro. Não podia controlar seus gemidos, como tampouco ele era capaz de governar sua
respiração agitada no pescoço dela. Ele pareceu dar-se conta, e se ocupou de seu pescoço.
Beijou-a ali onde continuou arrancando gemidos. Depois descreveu uns graciosos arabescos
sobre seu corpo com os beijos que lhe dava do pescoço até entre seus seios. Eram
caminhos curiosos que Laetitia desejava olhar, mas quando ele voltava a pôr seus lábios

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sobre sua pele, não podia sustentar a cabeça levantada e a deixava cair para trás, com um
suspiro longo e profundo.
Ramiro tinha apoiado uma mão em sua cintura, e Laetitia não pôde deixar de evocar as
vezes que ele a tinha segurado ali quando andavam a cavalo. Estava fascinado então e
agora, sem roupa que impedisse o contato, sentia-se muito melhor. Ramiro continuava
entretido com seu pescoço, com seus ombros, com o nascimento de seus seios. Puxou-a
pelas nádegas e a apertou contra si. Ela sentiu a potência do membro de Ramiro que
parecia querer arrebentar as calças que o continham. Sem pensar, o segurou também pelas
nádegas e abriu um pouco as pernas, como pôde. Finalmente, passou uma perna por sobre
as dele, o que a aproximou o mais possível.
—Tire isso. —Pediu entre suspiros.
Depois se ruborizou. Não sabia de onde tinha vindo esse impulso de ordenar algo ou de
enroscar-se nele com suas pernas.
—Não esperava que pedisse agora — confessou ele, surpreso.
Tirou as calças sem nenhuma dificuldade e sua masculinidade ficou livre, em todo seu
esplendor. Laetitia não pôde conter sua curiosidade. Tinha visto homens nus, mas não eram
mais que pacientes. Eram outros olhos os que observaram a Ramiro.
Ele voltou a segurá-la pela cintura e a apertou contra seu corpo. Ela o rodeou com sua
perna, de novo, deitados de lado e muito juntos.
Beijaram-se na boca com ardor e impaciência. Ele se entreteve em seu pescoço e subiu
até sua orelha. Sussurrou-lhe algumas palavras que ela não chegou a entender, palavras
que eram como uma carícia a mais que Ramiro fazia; uma carícia que dizia que se sentia
dele e que não podia deixar de saborear sua pele e de deleitar-se com sua figura.
Ramiro não duvidou e retomou seu errático atalho de carícias e beijos por seu pescoço,
seus ombros, seu peito. Tomou um de seus seios com a mão e colocou um mamilo entre
seu dedo indicador e médio. Laetitia estremeceu. Lambeu a ponta que sobressaía rosada

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entre seus dedos. Logo apoiou seus lábios e lambeu levemente. O gemido que soltou
Laetitia foi profundo e grave. Seu corpo se esticou e a pele se tornou mais sensível.
Ramiro ficou ali uns instantes, mas introduziu uma mão entre ambos e acariciou Laetitia
entre suas pernas. A sensação foi muito mais potente e o gemido tão agudo, que ela se
assustou de si mesma. Ele continuou acariciando-a ali. A sensação que percorreu o corpo de
Laetitia foi maravilhosa.
—Um comichão - repetiu ela. Assim havia descrito o que sentia quando ele a acariciava.
—Mas muito mais potente. —Adivinhou o que sentia. A confiança de Laetitia no que ia
fazer Ramiro foi absoluta nesse momento. Ele sabia o que pensava, antecipava-se a ela; ao
que seu corpo queria. Isso a tranquilizou. Desconhecia com exatidão o que viria, mas
confiava em que seu corpo lhe indicaria o que fazer e o que não. E que Ramiro saberia guiá-
la.
A curiosidade a empurrou a querer saber mais dele; a tocá-lo. Queria mais. Pôs a mão
entre seus corpos. Acariciou seu membro com acanhamento, a princípio. Queria saber o
que ele sentia. E ele respondeu com um rouco gemido. Rodeou-o com sua toda sua mão,
que mal podia contê-lo. Acariciou-o com uma inocência que deslumbrou Ramiro. Ele a
deixou fazer, mas estava gostando muito e havia muito caminho ainda pela frente. Não
queria pensar só em seu prazer, mas também no de Laetitia.
—Espere um pouco.
—Por quê?
—Cada coisa tem seu tempo. Já chegaremos a esse momento.
—Que momento? —perguntou com ingenuidade. Ramiro compreendeu que Laetitia não
entendia a que estava se referindo e decidiu atuar em vez de dar uma longa explicação.
Acomodou-a com delicadeza sobre a manta, para que ficasse completamente de barriga
para cima e não de lado. Ficou observando-a com a cabeça apoiada em seu cotovelo. A mão
que ficava livre a usou para acariciar o corpo de Laetitia. Logo voltou a carga com os beijos.
Ela o esperava em sua boca ou em seu pescoço. Inclusive em seus seios aguardava recebê-

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lo. Mas ele se centrou em seu abdômen e logo desceu por seu ventre. Desceu lentamente
com sua boca pega à sua pele. Laetitia abriu as pernas instintivamente e deixou que ele se
metesse em sua virilha. Começou a beijá-la ali com certa morosidade, com calma. Não
queria precipitar-se. Justamente o contrário, desejava que ela desfrutasse de cada carícia
que ia fazer com sua língua.
Os movimentos de Ramiro ali abaixo a faziam sucumbir em um delírio de prazer, os
calafrios e contrações de seu abdômen se repetiam um após outro, sem cessar. Gemia e
seus suspiros se faziam mais profundos, porque sentia que o ar não bastava para cobrir o
redemoinho de sensações que se aglutinavam em seu interior, que se irradiavam desde sua
virilha, onde Ramiro trabalhava em excesso em lhe agradar.
Laetitia abriu as pernas o mais que pôde para que ele pudesse acariciá-la e beijá-la com
comodidade. Tomou entre seus dedos os cabelos dele e acariciou a cabeça que parecia
imperturbável, sacudida apenas pelo movimento rítmico de sua língua.
Ramiro viu como o corpo de Laetitia ficava rígido e então se elevou formando um tenso
arco cujo ponto mais alto era os quadris e o ventre. Ramiro se elevou também para seguir
com sua boca à feminilidade de Laetitia que lhe escapava. Logo, caiu um pouco cansada,
mas com a intuição que havia muito mais para conhecer e que não se privaria de
aprendizagem nenhuma.
Ramiro sentiu o toque que Laetitia infligia a seus cabelos, quando uma de onda de prazer
a alagava. Gostava de saber que tinha desfrutado das carícias que sua língua tinha
proporcionado. Gostava de saber que ele tinha arrancado aqueles gritos. Entretanto, havia
mais. Ele queria tudo com ela e a urgência a transmitia seu próprio corpo excitado.
—Um torvelinho - disse ele. E ela assentiu ainda entre gemidos e com a boca aberta.
Mordia o lábio inferior cada vez que recordava o que ele tinha feito. E as palavras de
Ramiro eram exatas: um torvelinho se apropriou dela, enquanto a língua dele brincava ali
abaixo. Era a sensação mais potente que já tinha experimentado. Queria ficar com os olhos

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fechados e esperar que a noite se ocupasse de arrulhá-la, mas ele tinha prometido mais. E
seu corpo sabia que faltava algo, intuía, desejava-o.
—Está segura que quer isto?
—Sim. —A resposta foi tão contundente que surpreendeu a si mesma. Não conhecia o
que viria, não o tinha contado sua amiga Miriam, nem Blanche. Curava às pessoas e
conhecia os corpos de todos, mas não entendia nada da união desses corpos. De todos os
modos, respondeu sem duvidar um segundo. O que tivesse que vir que viesse. Queria sabê-
lo, experimentá-lo. E queria que fosse Ramiro que a fizesse descobri-lo.
Ele foi elevando-se com beijos, acomodando-se para entrar em Laetitia. Ela sentiu a
pressão do membro de Ramiro em sua entrada e compreendeu tudo instantaneamente. Ele
duvidou por uma fração de segundo.
—Vamos, Ramiro. —Laetitia estava convencida do que queria. Queria ele. Desejava o ter
para si, o mais perto possível, a proximidade mais intensa. Tinha-lhe dado a oportunidade
de escolher quem ser, quando tinha lhe dado a flor. Nesse preciso momento, ela queria ser
dele.
—Talvez doa um pouco.
—Não importa. Já não importa - disse com doçura. O único que importava eram eles dois
ali, juntos. Ele estava sobre ela, apoiado em seus dois braços. Laetitia o beijou no peito,
aquele peito que tanto tinha gostado. Primeiro com ternura, mas logo depois de uma forma
tão sensual que Ramiro tremeu.
E se introduziu nela.
Foi uma investida profunda e rápida, em um só movimento. Ela gritou sob o corpo do
homem que agora sim a possuía e estremeceu de dor. Ramiro começou a mover-se
imediatamente. Com um ritmo suave e pausado para que ambos os corpos pudessem
reconhecer-se, sentir-se, se conhecer. A dor foi se apagando e o prazer a envolveu em todo
seu esplendor. Sentia-se avassalada pelo que experimentava. Foi uma inundação que se
apoderou dela, enchendo cada curva de seu corpo, cada centímetro de sua pele. Queria

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articular alguma palavra entre seus gemidos, mas tinha ficado sem fala. Só podia dizer o
nome dele.
Ramiro a escutava falar seu nome e fazia mais forte com cada embate. Começou a
acelerar o ritmo de seus ataques. Adorava estar dentro de Laetitia, sentia-se tão bem que
tinha que conter-se.
Ela elevou seus quadris para aproximar-se dele, queria que o contato entre ambos fosse
perfeito, que o estímulo aumentasse. Ramiro sorriu sem que ela pudesse vê-lo, gostava que
procurasse fazer crescer o gozo. Ele se sentia vencido pelo prazer, derrotado no corpo
daquela moça que não se comparava a nenhuma com a que tivesse estado jamais.
Começou a mover-se com maior velocidade. Entrava e saía com investidas rápidas e
fortes. Laetitia gemeu com mais força e ele a sentiu estremecer sob seu corpo. Queria
poder beijá-la ao mesmo tempo, queria poder senti-la contra seu peito, queria poder lhe
dizer quanto gostava do que estavam fazendo.
—Laetitia, meu amor...
Essa simples declaração fez que ela procurasse estreitar-se a ele. Beijou-o no peito.
Elevava seu rosto e o beijava para ocultar as lágrimas que tinham brotado. Ele sentiu a
umidade de seus olhos.
—Continua Ramiro, não te detenha. Sou tão feliz...
Ele recomeçou com os movimentos e o fazia cada vez com mais força. Ela gemia e dizia
seu nome em voz alta. Adorava tê-lo ali, sobre seu corpo, lhe dando um prazer tão grande
que não sonhava que existia sequer.
Ramiro se recostou completamente sobre ela, apoiou-se em seus dois braços e agora se
encarapitava sobre Laetitia, sustentado por seu antebraço que formava um ângulo reto
com a manta. Colocou o braço que ficava livre entre ambos os corpos e procurou as dobras
úmidas de Laetitia.
Cortou a respiração dela quando ele começou a acariciar seus clitóris ao mesmo tempo
em que se introduzia nela cada vez mais violentamente. Laetitia sentia que se aproximava

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de um final. Um final diferente do que havia sentido quando Ramiro a tinha beijado entre
as pernas. Este era muito mais poderoso. Sentia que seu corpo tremia de uma vez que
ficava tenso. Seus sentidos não lhe respondiam. Queria olhá-lo, mas não tinha a força para
manter os olhos abertos. Estava entregue ao prazer que lhe dava, ao prazer que se
expandia por seu corpo com uma temperatura que a fazia voar.
Seu orgasmo se desatou e todo seu corpo se esticou em um grito. Dizia o nome de
Ramiro, uma infinidade de vezes, enquanto lentamente podia voltar a abrir os olhos e vê-lo.
Encheu-o de beijos no ombro e no peito e não se surpreendeu quando ele se levantou
pouco a pouco.
Ramiro estava perto do êxtase. Ajoelhou-se frente a ela e colocou as pernas de Laetitia
sobre seus ombros. Inclinou-se um pouco para frente e começou a mover-se com violência.
Sentia perto sua liberação. Segurava-a pela cintura como tantas vezes tinha feito quando
cavalgavam; só que agora ele podia ver seu rosto enquanto se movia dentro dela.
Laetitia o observava encantada por ver como ele gozava e, de repente, compreendeu
que a calma que havia sentido não a tinha prevenido para o vendaval que seguiu. Todas as
sensações voltaram a repetir-se em uma fração de segundo. Outra vez tensão, outra vez os
músculos endurecidos, outra vez o ar que parecia abandoná-la. Disse o nome de Ramiro e
ele o de Laetitia, enquanto se derramava dentro dela. Viu-o estremecer-se e foi feliz pelo
orgasmo dele, pelo que ela também tinha experimentado nesse momento. Foi feliz, porque
juntos tinham sentido o mesmo.
Ramiro ficou um longo momento quieto, com os olhos fechados. Parecia que sua
descarga não terminava. Logo abriu as pernas dela e se desabou sobre seu corpo. Beijou-a.
Beijou-a intensamente. Quando quis sair de dentro de Laetitia, ela o segurou pelas nádegas
e pediu em um sussurro.
—Ainda não.
Ficaram enlaçados um longo momento, beijando-se, saboreando a pele um do outro.

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Finalmente, ele se acomodou ao lado dela. Laetitia custava regular o ritmo de sua
respiração.
—Está bem?
—Sim. Sinto meu corpo de uma maneira que nunca antes tinha experimentado. Parece
que estava no ar, mas, de uma vez, sinto-me mais na terra que nunca.
Ela se aconchegou contra o peito dele e brincou enquanto o beijava. Tinha descoberto
que isso o excitava, e não era uma arma que fosse deixar de utilizar com facilidade.
Ele tomou seu rosto entre as mãos e a beijou. Ela fechou seus olhos e lhe deu pequenos
beijos sobre as pálpebras. Depois deixou que Laetitia apoiasse sua cabeça sobre seu largo
peito e que dormisse. Uns minutos depois, ele a cobriu e dormiu também.

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Capítulo 16

Queria que ela despertasse e poder beijá-la. O céu era de um azul intenso e o calor da
manhã o deslumbrava. Parecia que o dia agradecia por terem amanhecido juntos.
Também queria não ter que voltar nunca para Montaillou, onde ele teria que ser
novamente um soldado e ela, talvez, uma perfeita. Onde a vida entre ambos podia se
tornar difícil, se, como supunha, Montfort pensava invadir o povoado e transformá-lo em
um lugar exemplar e de peregrinação. Ramiro duvidava muito da fé de seu senhor. Sabia
que servia estrategicamente para ele instalar um pequeno exército perto das terras do
senhor de Foix, que era seu principal rival. De todos os modos, Ramiro era consciente que
os que iam sofrer por essa briga política eram os Cátaros que tinham padecido todas as
crueldades de Montfort em sua luta pela ascensão ao poder.
Queria que ela despertasse e poder enchê-la de beijos e não ter que retornar nunca, mas
não havia outra opção. Tinham que levar a relíquia e libertar aqueles que tinham sido
encarcerados injustamente. O Abade cumpria as ordens de Montfort e resultava quase tão
cruel como seu senhor.
—No que pensa? —Laetitia tinha despertado fazia um instante e o viu concentrado em
suas reflexões.
—Dormiu bem?
—Muito bem. No que pensa?
—Em que talvez não queira voltar.
—Não vejo por que diz isso.
—Porque passei muito bem contigo aqui. Porque no povoado não teríamos esta
liberdade.
—Não acredito que ninguém no povoado fale mal de nós ou nos julgue.

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—O Abade fará. E como formo parte de sua guarda encontrará o modo de te atacar. Que
é seu modo de me atacar.
—Então nos veremos em segredo até que as coisas se acalmem.
Não queria contradizê-la. Restava pouco tempo para estarem juntos. Ramiro a segurou
pela mão e a fez ficar de pé. Laetitia ruborizou. Quis cobrir-se com a manta, porque ainda
estava nua. Entretanto, ele impediu que o fizesse. Tomou-a em seu braço e a levou até o
arroio. Ele também estava nu.
Na água, ele lavou os restos de sangue que ficavam nas pernas de Laetitia. A evidência
de sua noite de amor.
Laetitia o contemplou. Observou-o de acima abaixo. Quando tinham feito amor, não
tinha podido observá-lo com tanta atenção, não tinha podido concentrar-se mais que nas
sensações. Agora, com a luz da manhã, podia vê-lo, podia reconhecer cada parte do corpo
de Ramiro que tinha lhe dado prazer. Todo o esplendor de seu corpo estava aí, para ela.
Quis beijá-lo como ele tinha feito com ela. Quis tomá-lo em sua boca e que ele gozasse da
mesma maneira que ele tinha arrancado seus primeiros gemidos à noite anterior.
Ramiro encontrou um lugar onde parar, elevado sobre uma base de pedras na qual o
arroio não fosse tão profundo. A água, diferente de quando procurou a flor, mal
ultrapassava suas coxas. Laetitia se aproximou e lhe deu um beijo e logo outro e outro.
Tomou seu membro em sua mão e o acariciou com doçura, enquanto brincava com sua
boca e seus lábios. Esperou até que se sobressaísse por completo da água, erguido,
orgulhoso. E começou a descer pelo corpo de Ramiro. Beijava seu peito, seu abdômen de
músculos que formavam um desenho. Ali deixou sua mão, enquanto que com sua boca
seguia baixando e o pôde ter dentro dela. Não sabia muito bem como fazer o que estava
fazendo, mas compensava sua imperícia com o desejo de satisfazê-lo.
Ele jogou a cabeça para trás e reprimiu vários gemidos que podiam soar contundentes.
Acariciou o cabelo dourado de Laetitia e a guiou para que fosse mais efetiva. Precisava
encontrar o equilíbrio entre seu prazer, mas sem perder o controle. Ela seguia agitada, sem

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querer deter-se. Foi ele quem a interrompeu. Tomou-a pelo queixo e se inclinou para beijá-
la na boca que estava um pouco torcida.
Logo a fez ficar de pé. Ela procurou sua boca, mas Ramiro não permitiu. Virou-a de
maneira que ficasse de costas para ele. Laetitia apoiou suas mãos sobre a beirada e separou
as pernas. Ele se colocou atrás dela. Entrou em seu corpo com suavidade, mas se moveu
dentro dela energicamente. Os gemidos de Laetitia não se fizeram esperar e em seguida
começaram a ser mais fortes e mais intensos. Ramiro saiu por um momento e voltou a
entrar. Laetitia sentiu dessa vez, uma leve moléstia, uma pequena dor. Os movimentos de
Ramiro, entretanto, eram tão velozes e violentos que sucumbia de prazer. Ele tinha uma
mão apoiada em um ombro dela e a outra em um de seus seios. Sentiu a carícia ali, onde
sua sensibilidade se extremava. E sentiu, uma vez mais, o orgasmo que explodia desde seu
interior. Saboreou aquele momento prévio a estalar e logo gemeu com tanta força que
tudo parecia tremer. Então, ele também se liberou em um grito e caiu recostando-se sobre
as costas de Laetitia.
Inundaram-se na água e se abraçaram.
Secaram-se ao sol em poucos minutos e logo se trocaram e caminharam junto ao cavalo
para empreender a volta.
Laetitia se sentia contente. Tinha entregado a ele todo seu corpo. Agora também queria
que soubesse tudo dela, os medos que guardava de seu passado, a história que tinha
contado a poucas pessoas.
—Nasci em Béziers. Minha mãe era dali. Não conheço meu pai.
Ramiro ficou impactado pela confissão. Ele tinha estado em Béziers e as lembranças
daquela matança ainda o atormentavam, mas também tinham mudado o curso de sua
história como guerreiro. Pelo que tinha feito, tinha padecido no cárcere e tinha jurado
nunca mais interferir nas decisões de seus superiores. Teve medo do que ela pudesse lhe
contar.

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—Talvez o fato que não conhecesse meu pai me tenha feito querer buscá-lo em todos os
homens que chegavam à cidade: os comerciantes, os camponeses, os que desempenhavam
algum ofício. Todos podiam ser meu pai e, é obvio, nenhum deles era. Acredito que meu
desejo de ser perfeita vem dai. Uma perfeita permanece afastada do contato com os
homens e eu sentia que eram os homens os que tinham feito mal a minha mãe. Um homem
em especial.
Ramiro a escutava com atenção. Compadecia-se do que tinha passado Laetitia quando
menina.
—Em 1209, durante o que se conheceu como a “matança de Béziers”, minha mãe e eu
estávamos na cidade. Não havia um só lugar onde esconder-se dos cruéis ataques. Esteve
ali?
—Participei do assédio, mas não entrei na cidade - mentiu Ramiro. Não podia lhe
confessar sua história. Não podia dizer que tinha querido esquecer durante anos sua
participação naquela batalha. Esse fato o enfrentava com seu destino de soldado. Tinha
desejado conhecer a flor e o elixir que podia preparar Laetitia nesse dia então, para não ter
que enfrentar a cada momento uma encruzilhada.
—Minha mãe tentou me ocultar, mas não conseguiu que passássemos despercebidas
por uns mercenários que quiseram queimar o lugar em que estávamos. Minha mãe se opôs
e a feriram perto da cintura. Sua ferida e a dela eram similares.
E Ramiro começou a se inquietar com a lembrança do que tinha visto em Béziers.
—Um homem corpulento apareceu então. Era alto ou me parecia isso. Eu tinha apenas
dez anos e todos os homens eram grandes para mim. Deu ordem aos mercenários que não
nos seguissem nem minha mãe nem a mim.
Ramiro se reconheceu no relato. Esperava poder ter alguma dúvida, esperava que a
história trocasse repentinamente.

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—Ajudou-nos a sair da cidade. Não escutei seu nome, porque falou com minha mãe.
Lembro do elmo que cobria seu rosto. Era um elmo prateado que tinha uma divisão no
meio do rosto, como dois arcos pintados de vermelho.
Já não cabiam dúvidas. Esse tinha sido seu elmo em todas as Cruzadas até Béziers. Ali o
tinha perdido. A ferida, as circunstâncias, a descrição do elmo. O rosto de Laetitia que
sempre lhe tinha parecido familiar, agora se revelava com claridade ante ele.
—O que foi feito de sua mãe? —perguntou.
—Cavalgou até me pôr a salvo em Montaillou, mas não cuidou de sua ferida. Às vezes
me parece irônico pensar que hoje seria capaz de curar uma ferida como a que ela tinha.
Nesse dia então, só atinei em sustentar sua mão. Tinha dez anos e a vi morrer.
Ramiro a abraçou nesse momento. Desejava abraçá-la, mas também fugir. Béziers tinha
sido seu único engano como soldado e tinha pagado caro. Prometeu não voltar a pensar
nisso, não voltar a questionar as ordens que lhe davam, não voltar a salvar ninguém porque
sua consciência pedisse. Ele era um cruzado, um guerreiro de Deus e não podia desafiar
esse poder. Assustava-o saber que cedo ou tarde haveria uma batalha em Montaillou e que
ele já tinha decidido que lado ia estar.
Quando chegaram ao povoado, Laetitia ficou no lar e Ramiro se dirigiu à Abadia para
entregar a relíquia. Despediu-se com um beijo, comovido por sua confissão. Entretanto,
nem bem pôs um pé fora do lar, sentiu que estava a quilômetros de distância dela.

Os três homens frearam ante a porta do escritório do Abade. Fizeram-no tão


precipitadamente que se chocaram entre si. Golpearam, e uma voz os autorizou a entrar.
Ali estavam Wolfgang e o inevitável Marcabru.
—Esperava há muito tempo sua presença, senhores — disse sem elevar a voz o Abade.
— Queríamos lhe trazer a relíquia.
—E o têm feito?
—Não - disse o chefe.

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—Mas sabemos quem a tem. —apurou-se a falar o do capuz.
—Quem?
—Ela - soltou o pequeno.
—Ela?
—A formosa - assegurou outra vez o pequeno.
—Sim, a formosa, a que pode curar às pessoas - completou a descrição o do capuz.
—Referem-se à Laetitia — interveio Marcabru.
—Já vejo. E como ela a obteve?
—Vimos quando ele a deu.
—Ele?
—Sim, ele - disse o pequeno um pouco vexado pelas perguntas de Wolfgang— O
gigante.
—O soldado - atravessou o chefe— que esteve ferido. O ferimos nós — comentou
orgulhoso.
—Eu.
—Eu te ajudei.
—Basta! —A voz do curandeiro interpretava os desejos do Abade.
—Eles dois se conheciam de antes?
—Não sei. Só vimos que a beijou e que introduziu uma caixa em seu vestido. Nesse
momento, não soubemos o que pensar e o assaltamos para lhe roubar a relíquia, como
você nos tinha ordenado. Mas resultou que não estava com ele e a moça tinha
desaparecido. Logo a buscamos no povoado e tentamos sequestrá-la no dia dos jogos.
Queríamos que nos guiasse até a relíquia.
—Mas apareceu o gigante. E nos impediu.
—À relíquia?
—Não, à formosa - disse o pequeno, definitivamente cansado das perguntas.
—Vimos se beijarem enquanto fugíamos - contou o do capuz.

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—Agora, nos dará o que merecemos?
—Sem lugar a dúvidas. Uma semana de arresto.
—Não! —exclamaram os três em uníssono.
—Então não haverá outra coisa.
—Mas a recompensa...
—A recompensa era se vocês recuperassem a relíquia. E não a vejo por aqui.
Disse aos homens que se retirassem. Decidiu que deviam alojar-se na Abadia e formar
parte de seu conselho.
—Faz dois dias que Laetitia se ausentou do povoado e Ramiro da tropa.
—Sei. Foram procurar a relíquia.
—Teremos que libertar os prisioneiros.
—Não importa. Os acusaremos de heresia mais tarde. E será Ramiro quem deve executar
o castigo exemplar. —O Abade sorriu ao dizer isto.
—O que fará com ela?
—Nada. Deixar que enfrente Ramiro. Fazer que briguem. Depois de tantos beijos, algo
deve haver entre eles. O demônio adota sempre a forma de uma mulher.
—Não vai prendê-la? Não vai fazer que a castiguem?
—Não. Ela é suficientemente estúpida para organizar uma resistência a nossa lei. E isso
nos dará motivos suficientes para destruir os Cátaros desta cidade. Fazer uma nova
Cruzada. O motivo ela dará. E o Conde nos agradecerá poder entrar em ação dessa maneira
e conseguir de novo os favores da Igreja.
—Acredita que Ramiro enfrentará Laetitia? Acredita que não obedecerá?
—Não está em posição de desobedecer.

Ramiro caminhou os quilômetros que separavam o lar da Abadia. Sentia-se pesaroso. A


relíquia tinha um peso simbólico que fazia mais difícil a caminhada. Seu cavalo parecia não
poder mais e ele esperava que o pudessem curar no estábulo do velho castelo.

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Ocupou-se em primeiro lugar do animal, deixou-o a cargo dos monges que tinham que
velar pelos animais da Abadia.
Suas pessoas, que acampavam a beira do castelo, festejaram sua volta, embora não
tinham compreendido os motivos de sua ausência. Não teve tempo de explicar. Queria
apresentar-se ante o Abade e tirar de cima o peso da relíquia.
Golpeou a porta do escritório do Wolfgang. Sua pesada mão fez retumbar a madeira. O
som era opaco, escuro e parecia o ruído metálico que fazem os grilhões ao fechar-se. A voz
que saiu de dentro, convidando-o a entrar, tampouco pôde despojar-se de uma
estampagem de fechamento e maldade.
—Adiante.
—Bom dia, senhor.
—Adiante, adiante. Estranhei sua longa ausência.
—Saí do povoado para completar a missão que me trouxe a Montaillou, já que minha
saúde me permitia isso.
—Entendo. E a completou?
Ramiro já não tolerava continuar ali. Queria sair da cidade, voltar para Carcasona, voltar
a ser um soldado cruzado trabalhando para a cristandade, e não um guarda-costas de um
Abade inventado, em um povoado onde iam fabricar uma guerra para os interesses de
Montfort e sua ambição de poder.
—Eis aqui a relíquia. Devia trazê-la em um primeiro lugar, mas fui assaltado. Consegui
escondê-la no bosque antes que me atacassem, quando senti a presença dos homens.
—Entendo.
—Minha ausência foi porque fui procurar o lugar onde a tinha deixado. Demorei mais do
que o previsto, porque meu cavalo pisou em uma armadilha de caçadores de lebres e
machucou uma pata. Tive que voltar a pé.
O Abade inspecionou a caixa que estava um pouco amassada e onde faltavam algumas
pedras preciosas. A parte da Santa Cruz estava dentro e a tirou. Era um pedaço de madeira

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escura, torcida e em um aparente estado de decomposição. Ramiro temia que, se o Abade
a manipulasse muito, a madeira se faria em migalhas e só ficasse um vestígio de pó.
—Acondicionaremos a caixa e amanhã a exibiremos para as pessoas do povoado. Falarei
com os fiéis para que lhe rendam culto. Fez um trabalho formidável, Ramiro.
O Abade estava despedindo-o, entretanto ele não tinha intenções de retirar-se.
—Acontece algo? Fica algum tema por falar?
—Sim, senhor. Dos prisioneiros. Foram capturados injustamente, não tinham roubado a
relíquia.
—Como sabe que não foram eles os que ordenaram te assaltar?
—Porque os que me atacaram saíram de Carcasona, passaram por Puivert e me
agrediram antes de chegar aqui. Evidentemente, eram pessoas que conheciam a missão
desde a capital do viscondado e, por interesses escuros, queriam apropriar-se da relíquia.
—Reconheceria a esses homens?
—Sem uma sombra de dúvida. Se os visse, os castigaria.
—Não entendo uma coisa, Ramiro. Por que cumpriu a ordem de capturá-los, então?
Agora me pede sua liberação, mas você mesmo foi seu carcereiro.
Ramiro tentava conter sua fúria. O Abade o desafiava. Apertou um punho ao lado do
corpo. Um simples murro serviria para destroçar o rosto de Wolfgang.
—Sei. Sou um soldado, não questiono as ordens de meus superiores. Você dispôs isso se
apoiando nas evidências que tinha.
—Já vejo.
—E eu trouxe novas evidências. Além disso, cumpria com minha tarefa original, que era
que a relíquia estivesse em Montaillou.
—Sei, sei.
—Então, libertará as pessoas?
—Me deixe pensar. Alguns deles são hereges e não deveria...
—Mas então deve ter outro processo, não o de roubo de uma relíquia.

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—Talvez tenha razão, mas o Senhor os pôs na prisão.
—Eu os pus na prisão? - gritou Ramiro em uma explosão. Não podia desafiar a
autoridade do Abade e menos a de Deus, a quem o religioso invocava— Desculpe.
—Compreendo sua preocupação. Verei o que se pode fazer. Tentarei ser benévolo desta
vez. Amanhã quero que todos possam admirar a relíquia e a levarei ao povoado. Seria uma
boa ocasião para uma reconciliação entre irmãos.
—O agradeço.
—É a você a quem devemos agradecer. —Wolfgang sorriu.
Ramiro se virou, depois da correspondente saudação, e caminhou até a porta.
—Em poucos dias chegará nosso Conde, Simón de Montfort. Quero que a guarda esteja
pronta para recebê-lo e protegê-lo com as honras que merece.
Ramiro não disse nada. Talvez, depois da visita do Conde, pudesse voltar para Carcasona
e esquecer-se das relíquias, do povoado de Montaillou, pelo que tinha feito em Béziers e
que ainda o perseguia. De Laetitia seria mais complexo esquecer-se, mas com trabalho e
levando a vida ordenada de um soldado o obteria. Missão após missão conseguiria dissipar
o que sentia por ela. Ele tinha escolhido seu caminho fazia muitos anos e não queria
desviar-se.

Os três homens permaneciam ocultos na Abadia. Wolfgang decidiu fazer uma visita,
embora não do todo cordial.
—Senhores.
Os três ficaram de pé. Estavam atirados em uns beliches. Conversavam das coisas que
tinham vivido. O menor se queixava porque sentia saudades de sua camponesa adorada. O
do capuz insistia em que o chefe fazia uma boa mulher.
—Senhores - repetiu o Abade— acredito que o melhor é que os encarcere.
—Por quê?
—O que fizemos?

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—Somos inocentes.
—Não fizeram nada que não me contaram já.
—Recebemos a ordem de atacar Ramiro da parte de Simón de Montfort. Só cumpríamos
com nosso trabalho.
—Ramiro é um herói para as pessoas do povoado - os cortou o Abade— Ninguém quer
vê-lo atacado.
—Mas nós cumpríamos com uma ordem.
—Sei. Já não repitam mais isso. —Wolfgang se exasperava ante os três— Ele está aqui e
pode reconhecê-los. Se os encontrar, os matará. É assim simples. Se estiverem
encarcerados, não se atreverá a tocá-los.
Os três se abraçaram entre si e deliberaram em voz baixa.
—Está bem - disseram em uníssono.
O Abade pediu a Marcabru que os levasse a prisão. Depois que deixou ali os homens
perguntou ao Abade:
—O que vamos fazer com eles?
—Sabem muito. Em um par de dias teremos que eliminá-los.
—Quem quer que o faça?
—A Ramiro virá bem desforrar-se.
Os dois riram.

A ordem de liberar aqueles que tinham sido encarcerados injustamente chegou pela
tarde. Ramiro ordenou a sua tropa que transferisse os detentos ao povoado. Cada um dos
homens subiu um recluso por cavalo e os conduziram até suas casas. Ramiro levou Blanche.
—Laetitia me ajudou muito - disse ele.
—É uma boa moça. Talvez esteja um pouco doída por tudo o que aconteceu em seu
viver. Mas sempre esteve ali por nós. —Blanche falava com cautela, não conhecia de tudo o
homem que a transportava.

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—Seu compromisso com o lar e com a comunidade é admirável.
—Às vezes se esquece de sua própria pessoa. Como se custasse estar em contato com
outras coisas, com as que o mundo pode lhe oferecer.
—Não acredito que faça tão mal. As coisas que oferece o mundo podem machucá-la.
—Não. Não é assim. Só podem feri-la os covardes.
Blanche desceu do cavalo e o saudou. Tinha medido cada uma de suas palavras e
esperava que tivessem o efeito desejado nele. A mulher tinha a habilidade de conhecer as
pessoas e sabia o que acontecia na cabeça de Ramiro. Também imaginava o que podia ter
acontecido entre ambos. Os rumores que tinham viajado juntos tinham chegado ao cárcere
da Abadia e ela os tinha visto dançar na festa de primeiro de abril.
Blanche se reencontrou com Laetitia. Olhava seu rosto esperando que a jovem lhe
confiasse o que tinha acontecido, mas ela preferiu reservar-se. De todos os modos, ela
estava radiante e seu aspecto não fez mais que confirmar as suspeitas que a mulher tinha
em seu coração. Já haveria tempo de falar. Agora queria festejar sua volta.
Espontaneamente as pessoas de Montaillou saíram às ruas. Ninguém queria ficar em
suas casas. O reencontro com a comunidade daqueles que tinham sido capturados se
transformou em um evento público.
Os músicos foram convocados. Todos aceitaram sacrificar seus animais e uma festa foi
improvisada. Não tinha a pompa da de primeiro de abril, mas era alegre e, frente ao
cansaço de todos pelos últimos dias, a felicidade se impôs no povoado.
Os habitantes aclamaram Ramiro e Laetitia. Eram os heróis da noite. Tinham restituído
as coisas a sua ordem, a seu lugar natural.
Formou-se uma roda, um novo círculo na praça. Mas desta vez não se tratava de um jogo
que ia acontecer. Os recém libertados se abraçavam publicamente uns com outros, com
seus familiares e seres queridos, entre si e com os de outras famílias. Sempre tinham sido
uma comunidade unida e o demonstravam sem problemas. Miriam abraçou sua amiga:
—Está radiante.

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—Já te contarei.
—Isso quer dizer que abandonou a ideia de ser perfeita?
—Isso quer dizer que te contarei o motivo de minha felicidade.
Depois, insistiram em que os heróis da noite se abraçassem e, ante a presença de seus
soldados, Ramiro se abraçou com Laetitia. Não tinha medo que os soldados comentassem
algo ao Abade. Eram seus homens de confiança e nunca falariam do que ele não tinha
permitido.
Fundiu-se com Laetitia em um longo abraço. Olharam-se nos olhos com ternura e não
necessitou mais explicações para ninguém. Miriam entendeu tudo. Blanche confirmou o
que já supunha.
Depois chegou o baile, mais comida e, novamente, danças até quase a madrugada.
Quando os soldados empreenderam a volta, logo depois que cada habitante se foi à sua
casa, Ramiro montou seu novo cavalo pensando nas palavras de Blanche.
Só os covardes podiam machucar Laetitia.

Enquanto voltavam para a Abadia, Domingo ficou ao lado de Ramiro e fez um gesto para
que os outros soldados se atrasassem. Queria falar a sós com ele.
—Nunca te vi olhar para uma mulher assim.
—É só uma moça - respondeu um Ramiro pouco convencido de suas palavras.
—Não, não é para você.
—É a menina de Béziers - confessou o guerreiro a seu escudeiro.
—E isso muda as coisas? Muda o que sente?
—Não, sim. Não sei. Não sei o que sinto.
—Ela sabe quem é você?
—Não disse.
—Deve querer te agradecer pelo que fez.

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—Mas eu já não sou essa pessoa. Paguei muito caro meu engano em Béziers. Sou um
soldado de Deus, por favor. Não tenho que julgar o que é justo e o que não.
—Não é um engano que tenha salvado sua mãe e ela.
—Olhe como terminou. A mãe de Laetitia morreu no dia seguinte e ela sofreu todos
estes anos. E, além disso, agora...
—Agora o que?
—Montfort está a caminho e tomará esta cidade e fará que todos os Cátaros paguem
com seu sangue e eu não poderei impedi-lo.
—Por que não?
—Porque sou seu vassalo, porque recebo suas ordens, porque não posso as questionar.
Fiz uma promessa quando saí do cárcere. Aconteça o que acontecer, eu devia recordar que
era tão só um soldado. Que faço a vontade de Deus. Que vou de batalha em batalha e esse
é meu destino.
—De batalha em batalha, de lugar em lugar, de mulher em mulher. Sem nunca nada a
que aferrar-se.
—Esse sou eu. Esse é meu destino.
—Então, por que sonha como um turtur que busca de seu par para voltar para seu lar?
Então, por que deixa que Laetitia te afete? Sabe Ramiro? Tem razão, é um soldado. Mas
brigou as batalhas erradas.

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Capítulo 17

Ramiro esteve de manhã encarregado de transportar o Abade e à relíquia ao povoado.


Tratava-se de uma apresentação em sociedade e Wolfgang queria toda a pompa, queria
poder provar que tinha um povoado devoto das tradições cristãs.
Ramiro mandou Domingo avisar da situação. Sabia que o Abade estaria observando e
investigando a cada um e que, se algum não se apresentava ou não mostrava a suficiente
devoção para a relíquia, tomaria represálias que fariam ver as detenções como um jogo
infantil.
Domingo correu para avisar Blanche. Tinham que simular a perfeição uma suposta fé
católica. A mulher assentiu e começou a organizar tudo para que no povoado se
mostrassem comovidos pela presença do que para ela era um pedaço de madeira.
—Nem mais, nem menos. O valor é algo que nós atribuímos - disse o ancião escudeiro.
—Ele virá?
—Refere-se a Ramiro? —A mulher assentiu— Sim, claro, está encarregado de cuidar do
Abade.
—Virá vê-la?
—Isso eu não sei.
Produziu-se um silêncio entre ambos.
—Ela o está esperando.
—Posso imaginar. Só que ele não sabe ou não quer saber.
—Então é um covarde.
O ancião não disse nada e voltou a montar seu cavalo para voltar para a Abadia.
Entendia o ponto de vista de Blanche e, em parte, compartilhava-o. Mas já tinha tentado
fazer que ele entrasse em razão e não havia maneira de abordá-lo. Ramiro parecia
envolvido em seu trabalho e não se importava com nada mais.

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Os preparativos se concluíram ao finalizar a manhã. Ramiro informou o Abade que
estava tudo preparado para transportar a relíquia ao povoado.
—Ramiro - o chamou o Abade antes que pudesse alcançar a porta.
—Sim, senhor.
—Tenho algo que te mostrar.
Guiou-o até onde estava a zona das celas na Abadia e mostrou os três homens que
padeciam o cárcere por decisão do Wolfgang.
—Reconhece-os?
—Sim. São os homens que me assaltaram - respondeu Ramiro com a maior naturalidade
do mundo.
Wolfgang o chamou à parte, um pouco longe da cela, e sussurrou ao seu ouvido.
—Logo poderá se vingar deles.
—Eu não quero me vingar. Não procuro uma revanche pessoal.
—Disse que os castigaria.
—Que paguem pelo que fizeram. Isso não é uma vingança. Há uma diferença entre essa
palavra e o termo justiça.
O Abade se irritou com a atitude de Ramiro. Incomodava-o que, além de não ser
vulnerável a seus pedidos, pretendesse lhe dar lições de moral.
Foi procurar Marcabru, queria saber se a outra parte da operação estava preparada.
—Sim, já está tudo preparado.
—Perfeito.
—Amanhã há esta hora terá todos seus hereges.
—Necessito dos hereges para ganhar meu prestígio frente à Simón de Montfort. Ele vem
com seu exército invadir um povoado de infiéis e eu quero lhe dar isso.
—A ação militar será desproporcional, mas servirá para que a Igreja recompense o
Conde.

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—A ação militar será desproporcional, mas terão um inimigo. Um inimigo que nos
proverá Laetitia. Já verá meu querido Marcabru.
—As armadilhas e incriminações já estão preparadas.
—Então, não nos demoremos a partir. Procurarei o pedaço de madeira, perdão - disse o
Abade risonho— a relíquia.

A comitiva era imponente enquanto se aproximava a cavalo até o povoado. A relíquia ia


rodeada de quatro cavaleiros e custodiada pelo Abade em pessoa. Os aldeãos não tinham
visto nunca tal desdobramento militar. Nem sequer o dia das detenções tinham sido tantos
os soldados que tinham descido e irrompido no casario.
A marcha foi solene até a praça, o centro de reuniões da população. Os soldados
rearmaram o soalho para o Abade que era muito baixo e não podia ser visto de longe.
—Hoje é um dia especial na vida deste povoado - disse o Abade em um de seus habituais
discursos que aborreciam a todos.
Ramiro procurou Laetitia com o olhar e se tranquilizou que estivesse ali. Tinha medo que
ela tivesse decidido não ir à veneração da relíquia e se expusesse inutilmente a um castigo
exemplar. Parecia que as palavras de advertência de Domingo tinham dado resultado.
—Montaillou recebe hoje a consagração mediante uma relíquia. Uma parte da Santa
Cruz em que foi crucificado Nosso Senhor Jesus Cristo. A presença deste objeto santo
dignifica e enaltece a fé que os vizinhos deste nobre povoado têm em Deus e em seu filho
Jesus cristo.
Os “amém” foram ditos meio surdos e fora de tempo, mas estiveram, mesmo que
Wolfgang não os esperasse.
—Todos devemos venerar sua presença, pois é sua presença a que nos trará paz e
prosperidade como comunidade, como pessoas e a glória eterna que representa este
símbolo do calvário daquele que morreu por nós.

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Ramiro escorregou por entre os guardas e tentou mesclar-se entre a multidão. Era muito
alto para passar despercebido, mas não se importava. Precisava conversar com Laetitia.
—É nosso dever como cristãos nos afastar da tentação daqueles que com discursos e
falsas promessas nos prometem uma vida distinta da que Nosso Criador planejou para nós.
Aqueles infiéis que não acreditam na palavra de Cristo, nem em sua morte, pois negam o
material.
O Abade se referia indubitavelmente aos Cátaros, e todos os que professavam aquela fé
em Montalliou sentiram um calafrio e uma angústia que não manifestaram de um modo
visível, mas sim, invisíveis, percorreram os corpos dos habitantes do povoado. Deviam
dissimular porque sabiam que poderiam ser exterminados. Todos estavam a par que Simón
de Montfort, talvez o mais cruel dos líderes católicos, aproximava-se de Montaillou e
qualquer herege podia ser alvo de sua fúria.
Os monges que respondiam a Wolfgang se metiam como sombras nas casas e no lar
cátaro. Marcabru os coordenava e dava indicações dos quais incriminarem. O plano tinha
funcionado. Sabiam que Ramiro ia avisar os habitantes para que não faltasse nenhum à
veneração da relíquia. Os que se ausentassem podiam ser suspeitados. Então, o povoado
inteiro tinha concorrido e deixado suas casas abandonadas. Esta situação permitia aos
monges introduzir-se nas casas com tranquilidade e plantar provas inventadas que tal ou
qual habitante era cátaro.
—Os ímpios não saberão reconhecer a imponente força da Santa Cruz. Mas aqueles que
se comovam ao beijá-la, são porque sabem que estarão beijando a Nosso Senhor.
Ramiro se colocou ao lado de Laetitia. Podia sentir seu aroma e a frescura de sua pele,
até sem tocá-la. Ela também tinha as mesmas sensações e tremeu por tê-lo tão perto,
porque o escutava respirar, porque estava tão próximo que já não podia evitar sentir-se
como a noite do bosque, quando tinham feito amor.
—Então, sem mais preâmbulos. Apresento a relíquia, a parte da Santa Cruz em que
sofreu Nosso Senhor.

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Entre os cidadãos de Montaillou se formou uma longa fila para mostrar sua devoção pelo
santo objeto. Cada um se inclinava ante o Abade e beijava seu anel de ouro. Logo,
avançavam para onde estava a relíquia custodiada por vários soldados. Inclinavam-se,
beijavam-na, diziam uma oração. Todos queriam parecer devotos.
Laetitia se preparou para formar parte da fila que avançava lentamente. Parecia
resignada, triste. Ramiro a deteve. Segurou-a pela mão em um movimento rápido e preciso.
Entrelaçou seus dedos com os dela. O contato durou apenas uns instantes, logo ela seguiria
o caminho para a relíquia. O contato durou apenas uns instantes, mas bastou.

A relíquia foi transferida ao final da tarde de volta à Abadia. Quando chegaram, o Abade
reuniu aos soldados.
—Senhores, felicito-os pelo êxito da missão. A relíquia está intacta e o povoado pôde
reconhecer seu valor.
Os soldados escutavam atentamente, embora suspeitassem das felicitações de
Wolfgang. Sempre tinham uma dupla intenção. Não o estimavam muito, viam-se forçados a
formar parte dessa guarda pela ordem de seu senhor.
—Meus homens...
—Nós não somos seus homens - interrompeu Ramiro.
—É verdade. Desculpem. Às vezes estou acostumado a me confundir. Meus
companheiros de fé. —Fez uma pausa para ver se havia aprovação geral a respeito da
maneira de nomear os monges— Meus companheiros de fé detectaram muitos farsantes
entre os habitantes.
—Farsantes?
—Farsantes. Gente que não professa a fé cristã, mas que tentou nos enganar com uma
falsa devoção. Que mentiram quando se inclinavam diante da relíquia, do símbolo do
calvário de Nosso Senhor.
—Como podem saber?

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—Por certos elementos encontrados nas casas destes hereges.
—Mas dessa maneira não têm oportunidade de redimir-se, de trocar suas crenças. —
Ramiro enfrentava o Abade, porque não podia acreditar no que estava escutando.
—Tiveram a oportunidade de ser sinceros frente à relíquia e não foram. Devem ser
castigados.
—De que maneira?
—Discutiremos amanhã, logo depois que os capturem.
—Não quero discutir sua autoridade...
—Então não o faça Ramiro.
—Mas me vejo obrigado a informar que não poderá ganhar a amizade dos habitantes
prendendo-os todas as semanas. Já bastante descrédito foi tê-los acusado de roubar uma
relíquia que não roubaram. Agora do que os acusa?
—Não discutirei minhas faculdades contigo, Ramiro. Amanhã direi quais devem capturar
e qual será o castigo.
—Matará, sei.
—Então já sabe. Amanhã te indicarei qual será o melhor método.
—Tampouco discutirei minhas faculdades. Eu escolherei os métodos e o lugar. Se tiver
que cumprir com meu dever, farei. Mas o farei a meu modo.

Ramiro caminhava de um lado a outro. Domingo o observava sem dizer uma palavra.
Conhecia o debate interno pelo que estava passando e entendia.
—Os matará! Isto é obra de Montfort. É sua obra. Castigos exemplares para que o
temam.
—Wolfgang é, claramente, o delegado de Montfort em Montaillou. E ele mesmo está
vindo para desfrutar da desgraça dos outros.
—Por que o faz?

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—Precisa afiançar seu poder. A Igreja o excomungou e a Igreja é o pilar de seus
domínios. Sabe que ele é considerado um invasor aqui no sul. Então tem que recuperar o
apoio do clero para poder consolidar seus domínios terrestres. Este lugar é uma forma de
provocar Foix que sempre foi seu inimigo. E é uma maneira de castigar uma heresia que
está servida, que é tão simples e inofensiva que resulta revoltante. Contra quem vai lutar
Montfort que está trazendo seu exército aqui? Contra camponeses e um lar dirigido por
mulheres?
—Tem razão, é vil o que planeja fazer.
—Talvez desloque seu exército para brigar contigo.
—Por que teria que brigar comigo?
—Porque te teme. Teme que possa escavar seu poder. A tropa é fiel a você.
—Mas eu não quero enfrentá-lo. Sou seu vassalo. Sou seu soldado.
—Não acredito que ele pense do mesmo modo. Mandou gente te matar e te roubar a
relíquia.
—Esses trombadinhas? Não acredito. Trabalhavam por sua conta.
Ramiro olhou de esguelha a Domingo. Ficou pensando no que havia dito. As peças
começavam a encaixar. Tinham-no enviado para poder assaltá-lo e tirá-lo do meio. Um
assassinato não alcançava a Montfort. Também queria desprestigiá-lo. Era seu estilo. A
relíquia era uma desculpa para dobrar os habitantes de Montaillou e recuperar seu
prestígio. O plano fechava por todos os lados e Ramiro soube que não era mais que uma
peça em um jogo. Não tinha querido ser outra coisa. Depois de Béziers prometeu não ser
mais que um soldado e, mesmo assim, não tinha podido evitar destacar-se. Não ansiava
outra coisa mais que passar despercebido e cumprir com seu destino de armas. Nada mais.
Algo parecia impedir-lhe
—Vão atacar o povoado - vaticinou.
—Com qualquer desculpa. O que fará você?
—Sou um soldado. Farei o que se espera de mim.

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Ramiro se dirigiu com passos rápidos à zona das celas. Precisava confirmar o que
acabava de descobrir, precisava terminar de ordenar os eventos das últimas semanas em
sua cabeça para decidir uma ação.
Encontrou aos três homens dormindo e tentou despertá-los com seu vozeirão. Mas mal
giraram sobre si mesmos e lhe deram as costas. Como se fosse uma moléstia. Golpeou,
então, os barrotes da cela com tal intensidade que obteve que os três ficassem de pé de um
salto.
Olhou-os de cima abaixo, como se passasse revista a sua tropa. Os três se formaram do
mais alto ao mais baixo e esperavam com a cabeça encurvada que ele dissesse algo.
—Quero saber as razões de meu ataque. Alguém deu a ordem? Foi por conta própria?
—Não temos que te responder. Não tem nenhuma autoridade sobre nós.
—É verdade. Tampouco eu tenho por que me conter. O Abade me ofereceu me vingar da
maneira que quisesse. Posso tomar o chefe e lhe arrancar os olhos. E ao do capuz lhe tirar
as orelhas. E ao menor obrigá-lo a casar-se com a camponesa que tanto gosta.
—Não o vejo mal - disse o pequeno e os outros dois quiseram lhe pegar.
—Mas castrá-lo primeiro.
—Não! —gritou— Isso sim que não. Direi tudo, mas não me castre, por favor.
—Escuto.
O chefe inchou seu peito com ar e se preparou para lhe relatar o que tinha acontecido.
Tentava soar solene.
—Durante muitos anos oferecemos nossos serviços especializados em pilhagem, roubos
e raptos. Quando um cavalheiro ou nobre pouco bonito na arte de resgatar donzelas
precisava ganhar prestígio, contratava-nos para que raptássemos à donzela em questão e
ele pudesse resgatá-la sem riscos. Também fazemos roubos a pedido, saques módicos e
outras atividades delitivas.
—Entendo. Não é um ofício diferente do de ferreiro ou carpinteiro.

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—Vejo que capta a essência de nosso trabalho. Prosseguirei então. —Fez uma longa
pausa, como se estivesse diante de um auditório que queria escutar o discurso mais
comovedor de suas vidas— Com nossa fama estendida por toda Languedoc e pelos anos de
trajetória que nos avalizam, o conde Simón de Montfort nos contratou para uma missão.
—Me roubar à relíquia.
—Matar você e roubar a relíquia — corrigiu o do capuz com um sorriso, feliz de poder
contribuir à conversa.
—Bom, este sucesso empana uma longa e irrepreensível carreira. —Ramiro preferia
divertir-se e imitá-los que sentir-se ofendido.
—É verdade. Demos é obvio que morreria, mas é evidente que a moça te salvou. Nossa
missão finalizava ao entregar a relíquia ao Abade. Cobraríamos nesse momento.
—Mas foi muito ardiloso e a passou à moça - disse o do capuz.
—E lhe roubou um beijo - interveio o pequeno— O que mais eu gosto de roubar são
beijos.
—Decidimos seguir à moça para chegar à relíquia e poder cobrar nosso pagamento.
—Mas eu intervi.
—Sim, você interveio e nos arruinou.
—Qual foi exatamente a ordem de Montfort?
—Desacreditar você e te fazer ficar em ridículo. Não te queria morto como um herói.
—Já vejo.
—Voltamos a ver o Abade quando compreendemos que não tínhamos chances de
recuperar a relíquia. Pensamos que se o informávamos que você e a moça a tinham, então
nos pagaria uma parte.
—E nos encarcerou.
—Disse-nos que desta maneira nos protegia de você.
—Amanhã, entretanto, os nomes dos três formarão parte da lista de pessoas que o
Abade condenou a morte.

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Os três tremeram. Escutavam-se como seus dentes batiam.
—E quem será nosso verdugo?
—Eu serei — disse Ramiro. Girou sobre si mesmo e partiu.

Laetitia escutou que a chamavam no meio da noite. Escutou a voz que acreditou
reconhecer e depois disse que estava sonhando, que ele aparecia em sonhos como tantas
outras vezes. Mas o som foi muito mais persistente do que pensava e, finalmente,
despertou.
—Laetitia, sai, por favor, preciso te falar. —Era, sem sombra de dúvidas, Ramiro que a
chamava.
A moça se levantou e foi até o pomar. Correu para ele e saltou para prender-se a seu
pescoço.
—Sentia saudades - disse enquanto o beijava nos lábios.
Ele mal pôde corresponder ao beijo. Sua cabeça estava em outro lado. Apenas a
sustentou e a ajudou a parar sobre a terra de novo.
—Devo falar com você.
—Não podemos falar mais tarde?
Ela tentou voltar a beijá-lo, mas era muito alto e não o alcançava se ele mesmo não
colaborasse com ela. Finalmente, sua resistência caiu e a beijou com intensidade. Era o que
mais desejava, mas não podia ceder todas as vezes que ela o pedisse. Conhecia o perigo do
que estava por acontecer.
—Espera — pediu, mas era quase um rogo— Precisamos falar.
—Bom. Diga-me.
—Amanhã o Abade me enviará para prender gente do povoado.
—Por que desta vez? Tem que fazê-lo?
—Não tenho opção. Enquanto estiver aqui, estou como seu vassalo. Encontrou provas de
heresia.

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—Mas é impossível. Todos veneraram a Santa Cruz.
—Sei. Ocupou-se de investigar as casas, enquanto as pessoas do povoado mostravam
sua devoção. Suponho que inventou desculpas. Simplesmente seus monges atestarão que
viram sinais de heresia.
—Aos quais pensa prender?
—Não sei. A verdade é essa. Não me disse isso. Mas penso que pode estar nessa lista.
Laetitia não teve medo. Abraçou-se a Ramiro sem pensar, supunha que ele a ajudaria,
que faria algo para protegê-la.
—Por que pensa que posso estar na lista?
—Eles sabem que você me ajudou com a relíquia. Não acredito que queiram que isso
seja conhecido. E a melhor forma de fazer é te incluir entre os que devo prender.
—Não pode fazer nada a respeito? Deve fazer algo.
—A ordem do Abade é primeiro prendê-los e então matá-los. Devo te avisar para que
fuja. Para que escape com Blanche e Miriam e todos seus amigos.
O rosto de Laetitia ficou tão pálido que parecia transparente. Não podia acreditar no que
escutava. A tranquilidade marcial com que Ramiro lhe comunicava o que aconteceria a
tinha irritado.
—Fugir? Aonde? Para que? Para que possa nos perseguir? —gritava cheia de fúria.
—Não te perseguirei.
—Porque não ordenaram isso. Se amanhã te ordenarem isso, fará. Como planeja me
prender... —Não foi capaz de continuar. Só a ideia que ele estivesse disposto a matá-la, a
horrorizava.
—Cumprirei com as ordens que me dão. Não se pode mudar o destino, você disse isso.
—Mas não bebeu nenhum elixir!
—Preciso por acaso? Eu não duvido a respeito de mim mesmo. O elixir é para quem está
em uma encruzilhada.

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Isso a fez estourar. Não podia acreditar que tivesse se enganado tanto. Que tinha
estragado tantos anos de preparação religiosa para estar com ele e que resultava ser a
pessoa oposta a que ela tinha amado.
—É um covarde. Sabe que o Abade não tem razão, mas executa suas ordens da mesma
maneira. Não é capaz de enfrentar isso. Sabe que Montfort sempre quis arrasar esta
comunidade e não fará nada a respeito.
—Eu...
—Não me diga que é seu destino ou que é um soldado. São desculpas.
Era a segunda vez que diziam isso em pouco tempo, mas ele sabia que não podia fugir de
quem realmente era. Tinha feito uma só vez, em Béziers, e tinha pagado caro. Agora não
tinha forças de enfrentar ninguém, não queria pensar o que estava bem e o que era mau.
—Se fugirem para Foix, ele as ajudará. Montfort não se atreverá a brigar com Roger
Raimundo de Foix.
—Não fugiremos! Não fugirei daqui! Este é meu lar. Não entende? Sou cátara. Para mim
a vida não tem valor. Mas o que faça aqui, neste mundo, pode me ajudar a não voltar, a
não reencarnar. E a dignidade é parte disso. Não fugiremos. Não somos covardes como
você.
Ramiro não tinha nada para responder. Não podia dizer nada contra o que Laetitia
pensava. Era seu credo e era antagônico ao dele.
—Só queria te avisar. Suponho, então, que nos veremos amanhã.
—Não olharei nos olhos de um covarde - gritou em seu rosto e, no fundo, tinha desejado
que ele reagisse e prometesse que a salvaria e que começariam juntos, de novo, em Foix ou
em qualquer outro lugar.
Ramiro não disse nenhuma só palavra. Empreendeu o caminho de volta pensando no
que ela que havia dito. Tinha-o chamado “covarde” várias vezes, mas tinha que ser valente
para animar-se a lhe romper o coração.

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Capítulo 18

Simón de Montfort guiava sua tropa para Montaillou. Avançava lenta, mas
inexoravelmente. Sabia que quando chegasse, teria que organizar um plano de ação e
escutar as palavras do Abade. Tinha sido uma excelente decisão colocar Wolfgang nesse
posto. Seu fiel confessor tinha ambições e sabia que uma Abadia e com a ajuda de um
poder político forte, podia projetá-lo como futuro bispo. Os últimos contatos que o Conde
tinha feito com o Arcebispo de Narbona tinham sido positivos. Tinha prometido cristianizar
Montaillou. Em troca obteria de novo os favores do Papa e seria um cristão restabelecido. A
excomunhão lhe pesava.
A tropa estava inquieta. Fazia meses que não havia lugares para brigar, infiéis que atacar
ou escaramuças das que defender-se.
Simón de Montfort não queria uma cidade já pacificada. Esperava uma resistência contra
a que brigar. Uma resistência que pudesse vencer com facilidade, mas não queria um
passeio de seu exército, mas sim que combatesse. Isso o tornaria um herói, não o contrário.
Necessitava uma luta. Precisava desfazer-se de Ramiro de Zaragoza. Uma boa batalha lhe
daria ambas as coisas. O Abade tinha prometido um enfrentamento que o faria ficar na
memória do povoado como o grande cristão que era.

O Abade convocou Ramiro de manhã bem cedo. Foi acompanhado de Domingo,


necessitava da opinião de seu escudeiro para poder pensar como proceder. Sabia que o
esperavam dias complexos. O exército de Montfort estava se aproximando e Ramiro sabia
que não significava uma boa notícia. Nem para o povoado, nem para ele. Sentia-se
ameaçado e o único caminho possível consistia em não ceder um centímetro sua posição.
Devia ser o melhor soldado de toda a tropa e talvez assim não o matassem. Talvez assim
conseguisse manter-se vivo e poder fugir dali.

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Golpeou a porta e escutou a voz do Abade que o chamava para que entrasse. Era uma
voz alta e nunca pensou que seu destino tivesse essa voz tão ridícula e pouco masculina.
Entrou. Esperavam-no Wolfgang e Marcabru para lhe dar as instruções.
—Entre. A lista já está preparada. Marcabru te dirá quem são as pessoas que deve
capturar. Como disse ontem, fará a seu modo.
—Perfeito.
Marcabru enumerou um a um os nomes dos camponeses. Ramiro conhecia todos e se
sentia um traidor por ter que atuar contra eles. Escutou com atenção. Estavam,
previsivelmente também, os três homens que o tinham assaltado.
—Suponho que te encherá de satisfação que se faça justiça - disse o Abade com um
sorriso irônico.
Ramiro não respondeu. Preocupou-se tão só em memorizar os nomes. Quando a lista
terminou, respirou aliviado. Não havia mulheres entre as pessoas e se surpreendeu que
assim fosse. Não disse nada.
—Como será o procedimento?
—Não haverá espetáculo, se a isso se refere.
—Explique.
—Prenderei às pessoas com a maior discrição e logo os levarei fora do povoado. Para o
bosque a caminho de Montégur. Ali os matarei e darei uma sepultura. Irei sozinho com meu
escudeiro. Não são tantos e estarão amarrados.
—Vou necessitar provas que estejam mortos.
—Tão pouca confiança lhe inspiro?
—Até Cristo deu provas de sua ressurreição. —Foi tudo o que disse o Abade. Invocar a
Jesus era apelar à máxima autoridade.
—Trarei seus corações. —Ramiro só pronunciou essas três palavras.
Dirigiu-se com Domingo para a porta, mas a mesma voz alta e ridícula o deteve.
—Não mencionou Marcabru, mas deve incluí-lo também.

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—A quem?
—A Xavier.
Ramiro se aproximou com dois passos da mesa e olhou diretamente nos olhos do Abade.
—Isso não estava no trato.
—Não fizemos um pacto. Eu cumpro com minha parte, que é administrar a justiça divina.
Você cumpre com a tua, que é executá-la.
Olhou-o com tanta intensidade que parecia que podia ferir Wolfgang com o olhar.
—Farei. —Foram suas únicas palavras.
Ramiro estava tão aborrecido que saiu da Abadia sem perceber que Domingo o seguia
um pouco agitado. Saiu do antigo castelo e caminhou para o lado oposto que acampava a
guarda do Abade.
—Espere. Espere Ramiro. —Domingo já não podia seguir o ritmo do soldado.
Deu a volta e alcançou o escudeiro. Ajudou-o a sentar-se sobre a ladeira da colina. Ao
longe se via o povoado de Montaillou.
—O que pensa? —perguntou Ramiro.
—Que vai haver uma batalha. Mas a batalha tem que ser fácil para que Montfort ganhe
sem problemas. É por isso que a lista não inclui mulheres. Só homens jovens. Pensam
deixar Montaillou o suficientemente desprotegido para atacar sem problemas, mas o
suficientemente guarnecido como para que se forme uma resistência.
—Isso foi o que disse Laetitia.
—Falou com ela?
—Acautelei-a. Pedi que fugisse.
—Não vai fugir.
—Disse isso. Vejo que a compreende melhor que eu.
—É uma mulher decidida.
—O que disse a ela?

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—Quis forçá-la para que se fosse. Que entendesse de uma vez. Disse que ia cumprir com
minha obrigação.
—Ela encabeçará a resistência. Todos gostam dela e acreditam no que diz. Não se
entregará facilmente.
Ramiro ficou em silêncio um bom momento. Pensou em todas as possibilidades que
tinha. Pensou em Laetitia e em como resolver a situação. Não encontrava uma maneira de
solucionar o conflito.
—Se fizerem uma resistência, vão necessitar muitos homens.
—É verdade. Pensa lutar com eles?
—Sabe que é impossível. Sabe que Montfort me quer morto. Não posso lhe dar uma
desculpa tão óbvia.
—O que fará?
—Prover de homens essa resistência.
Não foi necessário que explicasse mais. Domingo tinha compreendido o brilho no olhar
de Ramiro. Sorriu.
—Agora soa como alguém que começa a lutar as batalhas corretas.

Laetitia esteve inquieta toda a noite. Despertou Blanche antes que começasse a
amanhecer e a pôs a par da situação. Esperavam o pior para elas, mas nenhuma das duas
teve medo.
Comeram algumas frutas para o café da manhã. Esperaram até que as demais mulheres
do lar despertassem para comentar as novidades. Todas estiveram de acordo em
permanecer juntas.
Laetitia procurou sua marmita e decidiu que era o momento de usar a flor que Ramiro
tinha lhe dado. Tinha que preparar a poção com supremo cuidado. Qualquer engano, por
mínimo que fosse alteraria a poção e o elixir não daria resultado. Não queria esperar o
próximo ano. Pensava, entretanto, que já tinha resolvido sua encruzilhada, que já sabia que

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caminho tomar. Mas tampouco se enganava de tudo, sabia que a presença de Ramiro a
confundia, emocionava-a até os ossos, a fazia sentir-se diferente. Preparava o elixir com
cuidado, mesclando as ervas adequadas na proporção certa. Tinha que deixar macerar a
flor quatro dias na poção. Logo extraí-la e enterrá-la no bosque. Depois devia esperar um
dia com sua noite e, sob a luz de lua, beber a poção. Então tinha que optar. E o que
escolhesse seria irreversível.
Mas a religião tinha outros caminhos e ela queria seguir o atalho que tinha observado
durante anos. Reuniu Blanche e Miriam como testemunhas.
—Blanche, deve me dar a consolamentum. Tenho que retomar a via de uma perfeita.
Não sei o que acontecerá nestes dias. Mas se tiver que morrer - fez uma pausa pela
angústia que causava pensar nisso— mas se tiver que morrer, quero que seja com minha
consciência em paz.
—Não posso reafirmar algo que não se quebrou. Você, no que me diz respeito, continua
sendo uma perfeita. Não deixou de observar os preceitos da religião cátara.
Laetitia olhou a Miriam. Não sabia como começar a contar o que tinha feito com Ramiro.
—Blanche, durante a viagem para procurar a relíquia, me entreguei a Ramiro.
As duas mulheres ficaram caladas. Laetitia o havia dito sem vergonha nem
arrependimento. Não os sentia. Simplesmente, queria voltar para o caminho de sua
religião. Estava a par das implicâncias do que tinha feito, mas era algo que tinha desejado.
Não se importava a covardia de Ramiro. Em todo caso, não dependia dela. Tinha-o querido
com honestidade. Entregou-se a ele em um ato de amor e isso não podia ser questionado.
O que fizesse ele, por mais que doesse, estava fora de suas decisões e não podia fazer nada
para mudá-lo.
Blanche e Miriam se olharam com cumplicidade. Como se tivessem sabido de antemão
que esse seria o resultado da viagem. Não reprovavam o que tinha feito Laetitia.
Compreendiam-na. Ambas ficaram contentes por ela.

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—Como foi? —perguntou com acanhamento Miriam. Era difícil encontrar as palavras
adequadas, apesar de que as tinha procurado desde que Laetitia confessou. Não quis soar
torpe, nem brusca. Só queria saber mais de sua amiga.
—Foi maravilhoso. Nunca me senti assim antes. Houve momentos nos quais não
acreditei que pudesse caber em meu próprio corpo.
—É assim que se sente - coincidiu Miriam.
Blanche a abraçou e não disse nada. Deixou que Laetitia apoiasse a cabeça contra seu
ombro. E esperou. O pranto da moça não demorou muito em brotar. Chorava a fervuras
como se toda a força do degelo saísse de seus olhos nesse momento. Esteve assim um bom
momento. Blanche tinha compreendido a necessidade de Laetitia e se conteve tudo o que
precisou para desafogar-se.
Quando terminou, tinha o rosto torcido e os olhos vermelhos.
—Amanhã te darei a consolamentum. Hoje ainda é um dia com muitas atividades. Quero
ver o que acontece com as detenções.
Miriam se aproximou e lhe deu um abraço. Entendia o que acontecia a sua amiga.
—Tomou a decisão correta - sussurrou ao ouvido.
E as lágrimas voltaram a sair.

As detenções se realizaram em ordem. Os habitantes estavam acautelados e quase


nenhum resistiu. Começaram por Xavier na Abadia.
—E eu o que tenho feito?
—O Abade diz que é um herege.
—Mas não sou.
—Pouco importa Xavier. —Ramiro parecia determinado a cumprir com a tarefa que o
tinham encomendado.

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Foi detido logo depois dos três homens e os fizeram descer ao povoado com as mãos
amarradas e atadas a um dos cavalos. Todos o viram chegar e se indignaram, mas nenhum
se sentiu o suficientemente forte para reagir.
Os homens esperavam nas portas de suas casas e se entregavam sem dizer nada. As
mulheres, em troca, cuspiam no rosto dos soldados e tentavam detê-los. Agarravam-se as
roupas e as rasgavam. Os homens de Ramiro tinham a ordem de não as atacar e
suportavam estoicamente as agressões. Compreendiam o penoso que deveria ser para elas.
Avançaram por todo o povoado, não houve casa em que os monges não tivessem
deixado alguma evidência, em que não tivessem detectado alguma heresia. Todo o
vigamento de interesses, desde Montfort até o Abade, começava a desenredar-se nessa
ação que era prender os homens de Montaillou.
Ramiro cumpria com seu papel à perfeição. Era o líder da tropa e não tinha nenhum tipo
de comiseração ante os prantos das mulheres ou os duros olhares dos homens.
Todos sabiam que iam morrer, mas nenhum parecia disposto a expressar seu medo.
Aceitavam de bom grado o que tocava. Iam somando à comitiva que acompanhava os
soldados. Encadeavam-nos pelas mãos e os faziam partir.
Quando passaram perto do lar cátaro, Laetitia os esperava na porta. Viu que Xavier
formava parte dos homens que iam ser executados e não pôde conter sua fúria.
—É um covarde - gritou a Ramiro que não respondeu. —E um traidor - voltou a gritar.
—Não respeita nem a quem o salvou. —Laetitia estava vermelha da fúria e tão indignada
que os olhos já jogavam chamas.
Ramiro não se defendeu. Não disse nada. Olhou-a nos olhos, mas não se atreveu a
responder.
—Deixe-o - ordenou Xavier— Só cumpre com seu trabalho.
Ramiro escutava o que diziam e parecia imutável. Não queria que os insultos o
alterassem. Domingo, que ia atrás em seu cavalo, padecia com o que diziam a seu senhor,
mas compreendia a ira de Laetitia e das demais mulheres. Supunha que esta era uma

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batalha muito difícil para Ramiro, que nunca tinha combatido se não fosse com soldados,
de igual a igual, nesse jogo de xadrez no que se transformava a guerra.
Laetitia o olhou nos olhos enquanto o insultava, mas ele afastou o olhar. Não podia
sustentá-lo diante dela. Em seu interior, compreendia a fúria da moça. Tinha mudado
quando antecipou sua escolha de não enfrentar o Abade, mas sim de seguir suas ordens.
Ramiro pensava em Béziers e em como outra vez esse fato voltava para modificar seus
dias. Laetitia era aquela menina que ele tinha salvado. Recordava cada um dos castigos que
tinha padecido por ter libertado Helena e Laetitia. As torturas não tinham significado tanto
como a excomunhão. E não tinha sido a excomunhão em si que o tinha ferido. Em
definitivo, ele sabia, os religiosos davam e tiravam a comunhão de acordo com seus
interesses. O que o tinha marcado para sempre era ter sido expulso como vassalo de Pedro
II, ter perdido a possibilidade de brigar para o exército d’Aragão. Já não poderia voltar para
sua casa. Se o fizesse, faria-o como um pária, não como um soldado. Já não poderia visitar a
tumba de seus pais, em especial a de seu pai, que não conhecia. E a memória de seu
valoroso pai tinha sido manchada pela ação de seu filho. Tinha desobedecido à ordem de
um legado do Papa, tinha perdoado a vida de dois hereges. E apesar de tudo não se
arrependeu nunca de tê-las salvado. Como não se arrependia de ter tentado fazê-lo uma
vez mais, quando advertiu Laetitia que fugisse de Montaillou. E muito menos se arrependia
de tê-la feito sua mulher. Desejava-a com tal intensidade até nesse momento, quando ela o
insultava porque acreditava que era um traidor. Ele que a tinha salvado, embora seu
orgulho o impedisse de contar-lhe que a única traição que tinha cometido tinha sido contra
a memória de sua família. Estava orgulhoso disso, no fundo. Sabia que tinha feito o correto
e que esse dia, enquanto prendia os hereges que tinha selecionado o Abade, também fazia
o correto. Só que Laetitia não podia compreender.
Não ainda.

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Ela tinha olhado enfurecida para ele todo o dia. Algo em seu interior estalava
constantemente e tinha desejo de persegui-lo para gritar sua irritação.
Sentia-se traída da maneira mais vil. Vulnerável em sua confiança. E subestimada. Acaso
pensava ele que, porque era um grupo de mulheres, não podiam lutar para defender o que
pertencia a elas? Tinham tido que passar muitas penúrias para obter a independência que
tinham. Haviam feito muito esforço fazer que o Prior reconhecesse o direito a ter uma fé
própria e que as ajudasse. O Prior tinha dissimulado com enganos constantes ao
arcebispado a condição de cátaras. Elas tinham colaborado com ele e a comunidade tinha
crescido em paz e harmonia até a chegada do Abade. Não iam renunciar aquilo sem lutar.
Se Ramiro as achava umas mulheres indefesas, então não as conhecia. Talvez isso lhe
doesse mais que a previsível atitude dele de obedecer a seus superiores. Doía-lhe que
tivesse insistido com ela para fugir, mas ela não fugia. Em todo caso, tinha sido ele quem
estava escapando dela; pelo que sentia, pelo que tinha acontecido no bosque. Laetitia o
enfrentava. Até com a dor que isso tinha significado. Ela tinha contado a Blanche e a
Miriam e elas a tinham compreendido, tinham-na sabido entender.
Laetitia não pensava ficar imóvel frente a essa situação. Deviam organizar-se para que os
soldados não os exterminassem. Teria que tomar uma decisão para poder resistir ao ataque
que parecia iminente. Quando os soldados iam levando os homens presos, Laetitia
convocou uma reunião dos habitantes. Falou e os incentivou a resistir. Não valia a pena
viver para ser um instrumento das ambições de Montfort.
A resistência foi decidida por unanimidade.

A saída do povoado transformou o ânimo dos homens. Caminhavam cabisbaixos


empurrados pela força dos cavalos. Ramiro escolheu o caminho a Montségur, parecia o
menos transitado. Tampouco entraria por ali a tropa de Montfort, era um espaço dominado
por seu inimigo, o senhor de Foix.

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Via como os homens de Montaillou começavam a perder sua identidade,
transformavam-se em pequenas sombras errantes que seguiam a direção que impunham
os outros. Careciam de vontade para fazer qualquer coisa. Alguns falavam de suas mulheres
e se perguntavam o que seria delas e seus filhos. Nenhum se atrevia a dizer que tinha
medo. Mas todos estavam aterrorizados. Parecia humilhante ter que morrer por suas
ideias, morrer sem poder as defender sequer. Não tinham podido organizar-se, algo que
suas mulheres pareciam estar fazendo às maravilhas sem eles. A força que tinham perdido
tinha sido recolhida pelas mulheres de Montaillou para resistir ao invasor que estava por
chegar. Ninguém queria entregar-se. Os homens se arrependeram de sua docilidade.
—Nos mate agora - disse um sombrio Xavier. Não ficavam rastros do loquaz e alegre
homem que era— Para que nos fazer caminhar mais.
—Tudo há seu tempo, Xavier. Deve saber esperar.
Ramiro só dava respostas lacônicas. Não podia olhar à cara desses homens que
imploravam ao menos uma morte digna.
O caminho foi se fazendo e chegaram aonde começava o bosque. Ao longe se via a
fortaleza de Montségur. Ali residiam os perfeitos Cátaros que tinham escapado da cruel
espada de Montfort. A fortaleza estava em uma montanha tão alta que impedia o acesso
das tropas e os pacíficos perfeitos sabiam que ali podiam refugiar-se. Embora não sabiam
por quanto tempo mais, se os cristãos tomassem à estratégica Montaillou.
Os soldados desataram os prisioneiros do cavalo que os arrastava e os prenderam a uma
árvore. Um deles tentou correr, mas como estavam amarrados entre si, o que conseguiu foi
arrastar seus companheiros ao chão e receber alguns golpes do soldado que devia vigiá-los.
—Já basta - ordenou Ramiro, quando viu o que acontecia.
Os soldados extraíram as pás dos alforjes e as deram aos prisioneiros. Deviam cavar suas
próprias tumbas. Começaram a ingrata tarefa. Alguns se queixavam e resmungavam
insultos que os soldados se viam tentados a reprimir a golpes. A ordem de Ramiro,
entretanto, tinha sido contundente. Não deviam tocá-los mais.

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Pediu à tropa que voltasse para o povoado. Ele terminaria a tarefa.
—Mas Ramiro... —protestaram vários.
—Assim foi decidido. Eu serei o encarregado de eliminá-los. Domingo será meu
assistente. Ninguém mais. Não quero que ninguém mais carregue com a morte destas
pessoas.
—Poderíamos ajudar. É também nosso dever.
—A tarefa foi encomendada. E assim se fará. Peço que retornem. A Abadia está
desguarnecida e uma represália por isso poderia comprometer o Abade.
—Uma represália com mulheres e anciões - riram os soldados.
—Não duvidem da intensidade com que uma mulher pode vingar-se.
Os soldados partiram afligidos. As fossas estavam quase preparadas, e Ramiro e
Domingo se retiraram um instante para dentro no bosque. Uns curiosos uivos se escutavam
entre as árvores.
—O que irão fazer?
—Tenho medo - confessou um dos homens que, por sua vez, via uma maneira de se
desatar da árvore.
Junto às tumbas tinham preparadas umas cruzes de madeira. Cristã sepultura tinha
prometido.
—Xavier - chamou Ramiro— Você é padre. Peço que diga algumas palavras. Uma oração
para estes homens.
De repente viram o que Ramiro tinha ido procurar. Era uma jaula improvisada cheia de
lobos.
—Acha que isto servirá? —perguntou a Domingo.
—Estou convencido. Nem o melhor curandeiro poderia fazê-lo melhor.
Xavier se indignou.
—Não direi nenhuma oração. Nossas almas já estão salvas se pensa em nos matar como
os romanos aos mártires. Vejo que não tem a coragem de empunhar a espada você mesmo.

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Ramiro o olhou e não disse nada. Aproximou-se da jaula onde estavam os lobos.
Os uivos foram ouvidos em todo o bosque.

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Capítulo 19

—Trouxe os corações? —a voz fina e alta do abade parecia impaciente.


Ramiro tinha demorado mais do que o previsto em voltar para Montaillou. Tinha
passado quase um dia desde que se foi do povoado com os prisioneiros.
—Essa tua mania de fazer tudo em pessoa é o que te atrasou.
A voz de Simón de Montfort soava clara no quarto. A figura imponente do Conde se
aproximou lentamente. Não era um homem que atuasse precipitadamente, a não ser
justamente o contrário: calculava cada movimento, cada passo para aproximar-se de sua
presa capturada. Dava medo quando acariciava sua barba negra, porque estava planejando
sua próxima jogada e sempre era alguma ação cruel. Montfort não parecia ter remorsos,
nem misericórdia.
Ramiro se surpreendeu que o exército do Conde já estivesse em Montaillou, mas de
algum modo isso adiantava o tempo de seus planos.
—Senhor - disse e se postou para saudá-lo. Domingo o seguiu na reverência.
—Não é necessário tanta pompa, aqui estamos entre amigos.
Ramiro ficou de pé e soltou sobre a mesa a bolsa com os corações prometidos. Como
tinha demorado tanto, tinham entrado em estado de decomposição e cheiravam de uma
maneira espantosa.
O Abade os observou de longe e não quis os ter perto.
—Aí estão - comentou sorridente Ramiro.
—Leve-os daqui - ordenou Wolfgang a Marcabru.

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Ramiro supunha que iriam querer analisar se eram corações humanos, mas o grau
avançado de decomposição não ia permitir ter a certeza. O curandeiro enrugou o rosto em
sinal de desagrado e saiu do quarto.
—Continua sendo o mesmo audaz e, pelo que me contaram um herói cristão nesta
região.
Ramiro sorriu. Falava com ele como se não o tivesse visto em anos, quando não fazia
mais de umas semanas que o tinha condecorado em Carcasona. Logo fez uma reverência
para ocultar a risada que veio ao seu rosto. Compreendeu que Montfort falava não como a
alguém que não tivesse visto em anos, mas sim como a alguém a quem já dava por morto.
Divertia-se ter frustrado assim os planos do Conde.
—A presença de Ramiro foi necessária para que pudéssemos descobrir a heresia.
Primeiro sofreu uma tentativa de assassinato. Queriam apoderar-se da relíquia que trazia e,
quando achamos ter achado aos culpados, demonstrou-nos que não eram esses os hereges,
mas sim a conspiração estava muito mais estendida. Acredito que hoje podemos falar que é
necessário pôr um freio ao transbordamento que implica Montaillou.
—Para isso viemos, meu querido Wolfgang. Para isso viemos - sentenciou Montfort com
a tranquilidade de um monge— Contava-me que se formou uma resistência. É evidente que
a notícia de nossa marcha se infiltrou de algum modo. Não eram muitas pessoas que
sabiam dela. Isto nos mostra, então, que os habitantes do povoado são muito mais
agressivos do que supúnhamos, estão muito mais organizados do que acreditávamos e a
luta será perigosa.
Ramiro não disse nada.
—O que opina você? —disse o Abade.
—Opino que nenhuma batalha é fácil. Os habitantes conhecem muito melhor que nós o
terreno. Não pudemos fazer um reconhecimento extenso. Estivemos ocupados prendendo
inocentes.
O Abade recebeu o golpe e respondeu.

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—Nem tudo é o que parece. Xavier foi detido em primeira instância e, embora nos
equivocamos com o motivo da detenção, o tempo o mostrou como um herege.
—Com que provas? —Ramiro começava a exaltar-se e sabia que isso não era bom.
Domingo o tocou no braço e o sinal foi claro para ele. Não convinha responder.
—Acaso duvida das provas que estabeleci para o processo? —gritou desafiante,
Wolfgang.
—Por favor, cavalheiros - interveio Montfort— basta de rixas. Formamos um mesmo
bando.
Ambos se calaram, mas a discussão ficou flutuando no ar. Havia um clima tenso que
podia respirar-se e ninguém se atrevia a tomar a palavra de novo. Parecia um paiol de
pólvora que podia estalar com a primeira faísca que se acendesse.
Marcabru entrou na sala. Observou os rostos dos que estavam ali. Não soube se tinha
que falar ou não. Não sabia como podia cair o que tinha para dizer. Finalmente, Montfort, a
pessoa de maior status do lugar, disse-lhe:
—Diga de um vez o que veio dizer.
—Os corações que Ramiro trouxe são humanos.
Houve um longo silencio que se rompeu com a gargalhada do Conde.
—Felicito-te, moço. É um digno soldado de minha tropa. — Abraçou-o e Ramiro se
deixou abraçar. —Vem - ordenou Montfort— Vamos passar revista aos outros soldados.

Laetitia organizou a cerimônia como uma maneira de reunir o povoado. Queria ser de
novo uma perfeita, encontrar o caminho que tinha interrompido quando topou com
Ramiro. E tinha transformado essa cerimônia privada em algo público. Sabia que, dessa
maneira, os habitantes que ficaram em Montaillou se comoveriam por sua fé cátara e
teriam menos problemas em resistir ao ataque dos cristãos. Entretanto, Laetitia também
era consciente da poucas pessoas que havia no povoado. Tão só tinham ficado alguns
poucos homens que estavam doentes ou eram muito velhos para enfrentar um exército

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organizado. O resto era composto por mulheres e meninos. Nenhum tinha experiência na
arte da guerra.
Ninguém se via, apesar de tudo, intimidado. Animavam uns aos outros e debatiam
acaloradamente sobre qual era a melhor forma de repelir a invasão. Viam das árvores o
exército de Montfort. Dava medo observar tantos soldados cansados de viajar e com
vontade de um enfrentamento que os revitalizasse. Mas vigiá-los era uma maneira a mais
de defender-se, de poder planejar melhor uma estratégia. Todas as propostas se formavam
no lar cátaro e eram analisadas pelo conselho de mulheres que Laetitia encabeçava e
continuava com Blanche e Miriam.
A volta de Ramiro com os corações foi vista por um dos vigias. Um menino de não mais
de dez anos irrompeu no lar e comentou o que tinha visto. Rumorejava-se que os tinham
extraído vivos dos homens que tinham detido no dia anterior.
A fúria se apoderou de Laetitia.
—Não podemos deixar que esses homens façam o que queiram com nossa comunidade.
Já demonstraram a crueldade que são capazes.
—Tampouco podemos atuar através das irritações. Temos que elaborar uma estratégia
para sobreviver.
Laetitia concordou, mas não pôde evitar que os olhos se enchessem de lágrimas pelos
homens que tinham morrido.
—Odeio-o, sabe? É um assassino. Matou-os a sangue frio. Como pude me enganar
tanto?
—Não sei se te enganou, Laetitia. O tempo dirá. Por agora, só sabemos que é um
covarde.
—Mas os matou como a cães, como um animal selvagem do bosque.
—Saberemos dele no momento oportuno - a acalmou Blanche— Agora queria reunir às
pessoas no lugar para sua consagração. Estarão nos observando e saberão que estamos
unidos. Que aqui há uma resistência que não os teme. Logo veremos o que fazer.

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—Eu tenho uma ideia - interveio Miriam com um sorriso em seus lábios. Não a tinham
visto sorrir desde que Ramiro levou seu marido.
As mulheres foram para a praça. A mesma praça que tantas agitações tinha visto nos
últimos tempos. Da chegada do Abade até a festa da primavera. Da festa até a detenção e a
matança dos homens do povoado. Reuniam-se ali uma vez mais. Desta vez para a
consagração de Laetitia. Para unificar o credo de todo o povoado no credo da moça. Sua fé
seria a de todos. Seu caminho de perfeita, seria a via pela que todos obteriam a salvação.
A cerimônia começou com uma purificação. Laetitia estava de pé no centro da praça.
Tinha posto um vestido escuro, pesado e solene. Blanche se aproximou dela e falou:
—Estamos aqui para que receba o sacramento cátaro. A consolamentum marcará o
início de seu caminho como perfeita. Caminho que você mesma tinha iniciado
voluntariamente e do que, voluntariamente, afastou-se. Agora pede para voltar para ele.
Para isso se necessita que aceite a purificação que te ofereço.
Laetitia respondeu com seriedade:
—Sim, aceito-a.
—Também será necessário que nosso povoado, que todas as testemunhas aqui
presentes, comprometam-se a te aceitar como perfeita. Têm que estar convencidos de seu
arrependimento por ter se afastado de seu caminho e têm que acreditar com firmeza nos
preceitos de nossa religião.
Todos murmuraram uma aceitação. Logo alguém gritou um “viva” e o seguiram
imediatamente:
—Viva!
Blanche, depois de escutar a aprovação geral, procurou uma enorme bacia que estava
cheia com água gelada do degelo. Levantou-a bem alto com a ajuda de Miriam e a
derramou sobre a cabeça de Laetitia que começou a tremer como uma folha ao vento.
—Por meio desta água nova que provém do degelo te purifico. A água desceu até o
plano da montanha e em seu caminho recolheu as experiências que permaneceram

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cristalizadas quando era neve no alto da montanha. Assim como a vida renasce com a
primavera, desta maneira a água volta para a vida com o frescor do novo. É deste modo
que você voltará, renascida, a seu caminho de perfeita e que abraçará a fé de nossos pais e
se afastará do material. Nada mais efêmero e permanente de uma vez que a água que
cumpre um ciclo como a vida e volta a nascer. Nada mais efêmero e permanente de uma
vez que este ato de te molhar para que logo o sol seque a água de seu corpo. A purificação,
entretanto, permanecerá.
Não era habitual para as pessoas do povoado ver este tipo de cerimônias. Geralmente,
praticavam-na os perfeitos para ordenar a outros perfeitos e se fazia em privado. O fato de
torná-la pública tinha sido a estratégia de Laetitia para unir as pessoas de Montaillou e para
que os espiões de Montfort vissem o desdobramento de forças.
—Agora direi a consolamentum, nosso mais alto sacramento e aquilo que nos
transforma em crentes.
Todos ficaram em silêncio e escutaram com atenção as palavras de Blanche. Quando
terminou, a cerimônia tinha terminado. Uma Laetitia empapada parecia feliz pelo lugar que
a comunidade tinha outorgado a ela e por recomeçar seu caminho como perfeita.
Agora, só restava ainda desenvolver a estratégia para enfrentar um exército superior em
número e perito no combate.

Ramiro observou às tropas. Os homens se alegravam a sua passagem. Saudavam-no com


afeto. Muitos deles tinham sido instruídos por ele. Montfort sabia que não podia ficar
contra Ramiro nessa situação. Temia que os soldados se rebelassem contra sua autoridade
para seguir seu chefe e treinador.
—Guerreiros - gritou o Conde— Quero que reconheça em Ramiro de Zaragoza o novo
general desta tropa. Ele comandará a expedição que realizaremos aqui em Montaillou e nos
guiará no terreno que conhece melhor que nós. Por outro lado, a população do lugar o
teme e o reconhece como um líder de qualidades extraordinárias.

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Os soldados aplaudiram. Realmente gostavam de estar sob as ordens de Ramiro.
Continuou com Montfort passando revista às tropas. Estavam em um estado deplorável.
Tinham tido que brigar em vários lugares, em especial nos povoados ao leste de Carcasona,
porque Raimundo VII se elevava como uma ameaça para o Conde. Estavam cansados e
desorganizados e, como a guarda do Abade, tinham sido recrutados de distintos lugares e
senhores que não estavam muito convencidos nessa luta pessoal que levava adiante
Montfort.
Ramiro estudou com atenção os soldados. Havia muitos aos quais estimava realmente e
que tinham sido seus companheiros em inumeráveis batalhas. Esperava poder abrir seus
olhos e fazer que entrassem em razão. Tinha um plano, mas não sabia quantos podiam
querer o mesmo. Quantos se animariam a segui-lo.
Um vigia informou a respeito do que acontecia no povoado.
—Há uma espécie de celebração. Percorri os quilômetros até ali para ver de perto.
Praticaram um ritual estranho com uma moça.
—Como era ela? —perguntou Ramiro.
—Formosa. Loira, de olhos azuis, com uns lábios que seriam o sonho de qualquer um.
Os soldados começaram a fazer as piadas mais soezes que podiam ocorrer. Todos
queriam atacar o povoado e possuir a moça.
—Se for à metade de bonita do que você conta, então me casarei — disse um e todos
riram pela brincadeira.
Entretanto se calaram, quando viram a expressão séria de Ramiro.
—Que tipo de ritual?
—Uma espécie de purificação.
Ramiro soube que ela estava tomando a consolamentum novamente. Nunca tinha
escutado de um rito cátaro público, mas imaginou que seria uma estratégia para unir às
pessoas. Soube que não tinha muito tempo. Tinha que fazer sua jogada o quanto antes
possível. Estava seguro que em um par de dias ela beberia o elixir e tudo seria irreversível.

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As mulheres do povoado decidiram sem pensar duas vezes. Laetitia, ainda empapada
pela água do degelo que tinha significado o retorno ao caminho de uma perfeita, tinha
proposto e todas aceitaram.
—O Abade dependeu de nossos cultivos e granjas desde que chegou. Essa foi sua
estratégia para nos vigiar e para ganhar adeptos. Transformou-se no principal comprador
de nossos produtos, por isso não tem uma produção própria.
As mulheres assentiram, enquanto Laetitia explicava o plano.
—O exército de Montfort é muito numeroso e não trazem mantimentos. É óbvio que
procurarão um enfrentamento. Suponho que é parte de sua crueldade. Queriam que
houvesse uma batalha para que os histriões e biógrafos pudessem escrever a glória de
Simón de Montfort e seu escudeiro, Ramiro de Zaragoza. —Quando pronunciou o nome
dele sentiu um nó na garganta— Entretanto, para assegurar o triunfo, prendeu e matou
nossos homens. Quer dizer, atuaram como covardes.
Todos no povoado, os anciões, os meninos e as mulheres escutavam Laetitia
hipnotizados.
—Não poderão resistir muito sem mantimentos. Não conhecem bem a zona e as únicas
granjas com as que contam são as nossas. São muitos. De algum modo, não querem
arriscar-se a perder um combate, mas essa é precisamente sua debilidade.
Estavam espectadores para ver o que propunha Laetitia. A confiança que tinham na
moça parecia ser infinita.
—Devemos abandonar nosso povoado - disse por fim— É a decisão mais difícil e dura
que tomaremos em nossa vida, mas um êxodo nos garantirá a vitória. Nós saberemos
sobreviver e nos ocultar no bosque, mas eles não o farão sem mantimentos. Um
enfrentamento nos arruinaria, mas não uma retirada. Proponho que vamos daqui. Que
queimemos nossos pomares e granjas, que matemos os animais não possamos levar

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conosco. E que os deixemos sem nada. Não conseguirão sobreviver. Não poderão passar
fome e retornarão a Carcasona para não voltar.
Houve um festejo e uma gritaria pelo que parecia ser uma solução. Logo os rostos se
tornaram afligidos pela triste tarefa que tinham que realizar.
Começaram a selecionar tudo o que puderam das granjas e carregar seus cavalos com
mantimentos. Todo cavalo do povoado devia ser montado e não importava se era menino
ou ancião que o cavalgava. Iam repletos de mantimentos para poder sobreviver o maior
tempo possível.
Os animais foram subidos aos carros e outros foram atados aos cavalos que
encabeçavam a peregrinação. Os que não puderam ser transportados foram mortos ali
mesmo e cozidos para o grande último jantar antes de partir.
Comeram em silêncio, enquanto Laetitia e Blanche punham fogo no lar. Choraram ao vê-
lo destruído. Tinham passado anos construindo-o, melhorando-o. Tinham transformado-o
em um hospital para que a comunidade tivesse onde curar as doenças que surgiam. E,
entretanto ali estava. Consumido pelas chamas.
As outras granjas também arderam e seus donos choraram convencidos que era a única
possibilidade de salvar suas vidas.
Começaram a peregrinar para o bosque, iluminados pela única luz do fogo do que já
tinha sido seu povoado.

O fogo em Montaillou alertou os vigias. A notícia correu veloz, e consultaram Simón de


Montfort sobre o que fazer.
—Atacaremos agora.
Deu a ordem a Ramiro para que organizasse a tropa, e ele soube que seu momento tinha
chegado.
Parou diante dos soldados e começou um discurso.

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—Companheiros. Com alguns de nós lutamos juntos defendendo a causa cristã em mais
de uma ocasião. E a valentia sempre foi nossa característica. Lutamos cotovelo a cotovelo
contra inimigos ferozes, contra senhores vis que não reconheciam a supremacia de Deus
nestas terras e contra infiéis na outra parte do mundo, na Palestina.
Todos assentiram. Eram comuns estes discursos antes de um combate, mas não
entendiam muito bem aonde queria chegar.
—Esta situação que nos reúne agora é excepcional. Devemos deter a fuga de um
povoado que não quer render-se às ambições de nosso senhor. Que não quer submeter-se
a formar parte de uma história de crueldade e cobiça pessoal. Todos juraram defender
Montfort e serem seus vassalos. Mas o que acontece com nossas consciências? O que
acontece quando sabemos que não estamos aqui para defender o cristianismo, a não ser o
afã de poder de quem já tem suficiente?
A tropa começou a se inquietar com esse discurso. Parecia coerente o que Ramiro dizia,
mas não entendiam por que o ataque a Montfort minutos antes de uma batalha. Ramiro
montou seu cavalo, e a seu lado se posicionou Domingo.
—A coragem na luta vem de nossas convicções e não sou capaz de discernir quais são
minhas convicções agora. É este um exército que perseguem anciões e crianças? Somos
nós, os heróis de tantas batalhas, os que vamos enfurecer-nos com gente indefesa? Não
quero essa gloria para mim. Não acredito que o Senhor queira essa gloria para nós, seus
soldados.
Os guerreiros olhavam entre si, perplexos. Ramiro saiu em direção contrária ao povoado.
Antes de partir disse.
—Eu vou aos bosques, brigarei do lado dos justos. Os que quiserem me seguir podem
fazê-lo. Os que não, sigam Simón de Montfort. Veremo-nos no campo de batalha.
Golpeou com força as rédeas de seu cavalo e desapareceu na noite. A notícia de sua
deserção chegou aos ouvidos de Montfort que não podia acreditar no que escutava. Ficou
imediatamente à frente das tropas. Arreganhou o Abade.

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—Devia ter previsto isto. Devia saber que desertaria.
—Apaixonou-se. —Foi à única resposta por parte de Wolfgang.
—O que me importa? O teria matado. Não há lugar em minhas tropas para desertores.
Montfort ordenou o ataque a um povoado que já estava vazio. A um povoado que o fogo
já tinha levado tudo.
Ramiro cavalgava a toda velocidade junto a Domingo. Aproximava-se da zona do bosque
aonde supunha que acamparia Laetitia e suas pessoas. Pela primeira vez em sua vida soube
que estava brigando a batalha correta.

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Capítulo 20

Uma sombra se movia na escuridão do bosque. A sombra observava com atenção o


acampamento dos habitantes de Montaillou.
As pessoas estavam reunidas em torno do fogo, e todos tentavam dissimular o
nervosismo que sentiam. Cantavam algumas das canções que tinham cantado na festa da
primavera, riam com velhas anedotas até que a imagem de seu povoado em chamas
voltava a memória e começavam os prantos rasgados.
Acomodaram-se perto do primeiro arroio. Aquele lugar que tanto significava para
Laetitia. Caminhou com o passar do curso da água e procurou com uma tocha na mão as
pedras de onde tinha nascido à flor que Ramiro pegou para ela. Tinha o elixir consigo, mas
ainda não podia usá-lo. Devia esperar uma noite mais. Olhou longamente aquele lugar no
leito do degelo. Voltou a meter-se no arroio. Foi um ato reflito. Era de noite, mas a força da
água tinha minguado o suficiente para sentir-se segura. Tomou um banho. Outra
purificação. Necessitava. Precisava esquecer. Mas o arroio não servia para o esquecimento,
como ela desejava, a não ser justamente o contrário. Trouxe-lhe lembranças. Da noite que
passaram juntos. Da vez que fizeram amor dentro da água na manhã seguinte. Agarrou-se à
beirada e fincou as unhas na terra. Gostaria que tudo parasse como nesse momento. Que
nada mais tivesse mudado ali. Que a mesma cena se repetisse uma e outra vez.
Mas tanta coisa tinha mudado. Queria odiar Ramiro e não podia. Sua lembrança se
impunha cada vez com mais força. Estava na água por ele. Saiu zangada consigo mesma e
se secou como pôde. Tudo tinha mudado em sua vida e não acreditava de tudo que a
consolamentum desse resultado. Não se sentia com forças suficientes para ser perfeita de
novo. Mas ia lutar. Estava disposta a isso.
Uma sombra a seguiu com a vista. A roupa pegava ao corpo e a sombra também teve
lembranças da cercania do arroio. Da noite de amor que tinham passado juntos, de todos

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os momentos dessa viagem. Ramiro era uma sombra no bosque, mas sabia que mais cedo
que tarde devia enfrentar seu destino e aparecer entre as pessoas do povoado. Tinha
desertado do exército de Montfort para isso, mas sabia que ganhar a confiança de Laetitia,
de Blanche e das outras mulheres seria uma tarefa árdua. Esperou um tempo mais e se
aproximou com cautela do fogo. Escutou-as conversar.
—Entrou na água?
—Tinha que fazer. Queria saber que podia voltar para o lugar e não recordar.
—E?
—Não é tão simples, parece.
—Nada é. —Blanche estava acostumada a saber como fazer ver as coisas com claridade.
Compreendia-a sempre que acontecia algo.
—Sabe Blanche? Não sei o que será de nós. Teremos que resistir. Mas quando voltei a
entrar na água, até com todas minhas dúvidas e temores, recordei que fui feliz ali. Agora
tudo mudou, mas acredito que voltaria para esse lugar e faria as mesmas coisas.
—Ainda tem a flor?
—Não, já não. Preparei o elixir. Amanhã poderei bebê-lo. E todas as incógnitas se
esclarecerão.
A sombra escondida atrás das árvores fez um ruído e as mulheres a iluminaram com a
tocha.

Os soldados chegaram a um povoado desolado. Não havia ninguém ali, salvo alguns
animais mortos ou muito velhos para ser comidos. As granjas ardiam. Não ficavam cultivos
e os celeiros tinham sido esvaziados ou incendiados. Em todos os anos de luta, nunca
tinham visto tal desolação.
Os chefes estavam que rilhavam os dentes de fúria. Montfort parecia que ia estalar a
cada instante e não havia uma forma clara de obter que se acalmasse. O Conde se sentia
fraudado por Ramiro, embora não sabia de tudo por que. Tinha desertado, mas não o tinha

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enganado. A única possibilidade de engano era que não tivesse matado os homens de
Montaillou, que estivesse organizando alguma forma de resistência mais potente que a
fuga que tinham planejado as mulheres do povoado.
—Não devemos subestimar Ramiro - disse ao Abade— Está certo que esses corações
eram dos homens?
—Confio em Marcabru. Se ele disse, então é. Ninguém sabe tanto como ele.
—Está bem. Algo cheira mal. Ramiro não deserta para perder. Não vai se imolar sem um
plano e não consigo vê-lo com claridade.
Os soldados procuravam em todas as casas, mas não tinha ficado ninguém.
—Estão no bosque - sentenciou um dos guerreiros.
—Amanhã pela manhã atacaremos o bosque - gritou Montfort— Será o mais parecido a
uma batalha que faremos.
O Conde sabia que não podia brigar entre as árvores, que devia levá-los a um
descampado. Mas queria tirá-los de perto do arroio, tirar a possibilidade que tivessem da
água.
—Os homens estão descontentes - comentou Wolfgang.
—Estão. Seu líder, Ramiro, instou-os a rebelar-se. Devemos agir com cautela.

Alertadas pelo ruído, golpearam-no com paus até que caiu no chão. Laetitia tinha notado
a presença de uma sombra entre as árvores e tinha ordenado o ataque. Sua surpresa tinha
sido maiúscula, quando viu que o homem a quem atacavam era Ramiro. Ele não quis
defender-se e se deixou maniatar. Prenderam-no a uma árvore.
—Meu escudeiro está escondido. Peço que o deixem chegar aqui. Não fará mal, é só um
ancião.
Laetitia tomou uma tocha e foi em busca de Domingo. Em pouco tempo chegou com o
escudeiro e o fez sentar-se perto do fogo. O homem tinha frio e estava cansado. Precisava
comer.

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—Liberem meu senhor - disse, quando viu Ramiro preso a uma árvore e custodiado por
dois adolescentes.
—Está bem, Domingo - disse Ramiro— Sente-se e come. Eu falarei com quem
corresponde. Aceito suas condições e entendo por que me puseram aqui.
—Mas é um erro. Acaso não vamos ajudá-los?
—Me permita que discorde de você, Domingo, mas não sei de que maneira pode Ramiro
nos ajudar.
—Para isso viemos. Arriscamos-nos muito.
—Sabe o que penso? —Laetitia se mostrava incrédula— Penso que Montfort quis matá-
los e que tiveram que se refugiar no bosque. Não é verdade, Ramiro?
—Não! —gritou o ancião, mas se calou quando Ramiro pediu com um gesto.
—Responde! —exigiu Laetitia— Finalmente, Montfort ia concretizar seu desejo de te
matar. Recorda como nos conhecemos? Pois eu sim. Você foi atacado e eu te salvei a vida.
Esse ataque não podia ter sido encomendado por ninguém mais que Montfort. Agora que
concretizou sua ameaça teve que fugir. Mas não o fez antes. Não desertou quando se
tratava de procurar uma estúpida relíquia ou de aniquilar as pessoas de meu povoado.
Domingo sabia que não podia falar do tema. Ramiro fez um gesto com a cabeça e o
escudeiro entendeu.
—Sou um soldado.
—Quantas vezes te escutei dizer essa frase? Essa estúpida frase. É que não sabe dizer
nada mais? Cumpria com seu dever de vassalo, claro. Isso é mais importante que tudo.
Inclusive que a vida de gente inocente. Inclusive que sua própria vida. Pode deixar que
Montfort te assassine, mas terá a consciência tranquila de ter servido até o último dia,
verdade?
—Deixa-o falar - interveio Blanche, quando viu que Ramiro não tinha possibilidade de
defender-se.

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—Obrigado - disse ele com uma voz profunda— Laetitia sou um soldado. E cumpri com
meu destino. Nunca pensei que podia ser mudado, da mesma maneira que você não
aceitou mudar o seu. Hoje voltou a empreender o caminho de uma perfeita com sua
purificação.
—Como sabe?
—É meu ofício saber. Reafirma seu destino. Inclusive o fará bebendo um elixir para que
suas decisões se tornem irreversíveis. Recorda como nos conhecemos? Pois eu sim.
Procurava uma flor. Eu lhe dei ela tempos depois. É isso o que fará que conserve seu
destino. Que possa ser uma perfeita.
—Prefiro. Prefiro morrer nesta luta a ter me traído.
—Então entende o que me acontece. Ocorre-nos o mesmo. Não podia me trair. Agora
estou aqui. Desertei do exército de Montfort porque me quer morto, essa é a verdade. —
Fez uma pausa que pareceu eterna— Sinto tudo o que tenho feito a suas pessoas. Mas será
pior se não poderem lutar organizadamente. Quero ajudar. Conheço esse exército à
perfeição. Treinei a maioria dos homens ali. Necessitará de meus conhecimentos, se não
quiser perecer no bosque. Todos seus amigos morrerão.
—Por que tenho que acreditar em você?
—Porque me conhece e sabe de minha sinceridade.
—De sua sinceridade não sei nada. Enganou-me como enganou a todo mundo.
—Porque não tenho aonde ir. Porque poderia ter fugido para outro lugar e vim para cá.
Não me teriam procurado se tivesse conseguido chegar a Foix, por exemplo. Poderia
continuar sendo um soldado ali. Mas vim para este bosque onde está você. A este arroio
que foi nosso. —sua voz se entrecortou— Suponho que mudar meu destino.
—Eu não posso decidir sozinha. Preciso deliberar com meus companheiros para saber se
o permitimos nos ajudar, como diz, ou se não acreditam em sua palavra e o matamos agora
mesmo.
Domingo se sobressaltou ao escutar essas palavras, mas Ramiro estava tranquilo.

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Foram para um lugar afastado para deliberar. Ramiro nunca tinha visto Laetitia assim.
Via-a encerrada em si mesma. E cheia de rancor. Parecia que nunca ia poder chegar a ela.
Que nunca ia conseguir que o entendesse.
—Se fosse por ela me mataria agora mesmo.
—Talvez tenha seus motivos.
—Entendo-os, Domingo, mas queria poder explicar o que aconteceu.
—A ama? — Não duvidou ao responder que sim. —Então encontrará o modo que escute
e confie em você.
As deliberações terminaram e Laetitia se aproximou.
—O deixaremos ficar conosco e escutaremos seus conselhos.
—Obrigado.
—Mas deverá estar desarmado e será vigiado constantemente.
—Entendo.
Entregou suas armas e disse a Domingo que fizesse o mesmo. Aproximaram algo do que
tinham cozinhado e comeram com vontade.
—O que acha que devemos fazer? —perguntou Laetitia para provar a experiência de
Ramiro. Havia um pouco de sarcasmo em sua voz.
—Sair daqui.
—Mas é nosso refúgio!
—Amanhã pela manhã virão os homens de Montfort. Não poderão brigar conosco entre
as árvores, mas irão nos obrigar a sair para o vale. Se nos afastarem do arroio, não teremos
água.
—Podemos continuar até o outro arroio.
—É mais de um dia de caminhada e levamos muitas coisas - Ramiro falava como se
realmente fosse mais um da comunidade— Todos os animais nos atrasam para caminhar.
Convém nos afastar do arroio e tentar suportar sem muita água.
—Mas isso seria selar nossa morte.

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—Talvez não. Correm rios subterrâneos. Isso nos ajudaria a resistir. Não podemos sair a
campo aberto contra Montfort. E se ficamos aqui nos alcançarão e matarão a todos sem
mais.
—Então amanhã partiremos.
—A primeira hora —disse Ramiro e todos o reconheceram como um líder.

Laetitia não podia dormir pelo que ia acontecer no dia seguinte. Não gostava de fugir e o
vinha fazendo bastante frequentemente. Viu que Ramiro tampouco dormia e se aproximou
dele.
—O que te fez mudar de opinião? —perguntou.
—Refere-se a minha deserção do exército de Montfort?
Ela assentiu.
—Simplesmente, soube que um soldado deve brigar suas batalhas e não as alheias.
—Sofreram?
Referia-se a seus amigos do povoado. A Xavier, a quem sentia saudades com loucura. Ao
marido de sua amiga Miriam que tinha deixado órfãos a dois meninos.
—Não. — Produziu-se um silêncio que incomodou ambos. —Acreditaria em mim —
perguntou Ramiro— se te dissesse que não estão mortos?
—Não faça brincadeiras com a vida de meus amigos.
—Não é uma brincadeira.
—De você não acredito nada, Ramiro. Deveria acreditar nas palavras de amor que me
disse aqui mesmo?
—Sim.
—Pois eu não o vejo assim. Acreditarei que não estão mortos, quando os vir com meus
próprios olhos.

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Capítulo 21

Viram chegar uns soldados de Montfort. Laetitia ficou nervosa. Ramiro procurou uma
arma. As tinham confiscado, mas não deu tempo a ninguém para que o pudessem deter.
Correu e tomou uma de onde tinha visto que as guardavam. Ficou em guarda e protegeu
Laetitia.
—Ramiro, senhor.
—Escuto - disse ele sem baixar a guarda.
—Somos do exército de Montfort.
—Não, não é assim - interveio o outro soldado— Somos parte de sua tropa. Pensamos
no que disse de Montfort e naquilo que não valia a pena brigar pela ambição de alguém
que não tem medida.
—E?
Laetitia escutava atenta e não podia acreditar. Ao que parecia, Ramiro tinha desertado,
mas antes tinha falado a seus soldados para que o seguissem. Tinha explicado da cobiça de
Montfort e de como queriam castigar uma comunidade.
—E queríamos nos unir a você, se nos permitir isso.
—É a senhora quem decide - disse Ramiro e implicou Laetitia.
—Sempre está bem somar adeptos.
—Não somos nós sozinhos, há alguns homens mais.
Não chegavam a dez, mas para um grupo de mulheres, anciões e meninos que deviam
enfrentar um exército, verem-se protegidos por dez soldados foi uma sensação agradável.
—A tropa virá até aqui. Querem obrigá-los a afastarem-se da água, senhor. Montfort
está convencido que, dessa maneira, os obrigará a sair para brigar em algum descampado.
Não terá piedade de ninguém.

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—Sei. Por isso estamos partindo agora - disse Ramiro— Laetitia acorda todo mundo. Não
há tempo a perder.
As pessoas de Montaillou não podiam acreditar que tinham que padecer outro êxodo em
tão pouco tempo, mas não havia outra opção possível. Pelo menos, no momento, não
podiam fazer mais que fugir.
Levantaram o acampamento o mais rápido possível. Apagaram e tamparam as fogueiras.
Não queriam que a tropa que os seguia pudesse detectar exatamente onde tinham estado
porque, desse modo, seria mais fácil para eles segui-los.
Carregaram novamente os cavalos com comestíveis e os animais de curral foram postos
nos carros.
Ramiro ordenou aos soldados que fizessem fogueiras em outros lados e que levassem
restos de comida para lá.
Quando não havia força, tinha que ter manha e isso era o que Ramiro estava fazendo
nesse momento. Usando a manha até que tivessem a força.
Empreenderam a marcha. Os soldados estavam postados estrategicamente à frente, na
retaguarda e aos lados da marcha do grupo que avançava como um quadrado que se movia
com lentidão.
—Até onde iremos? —quis saber Laetitia.
—A um lugar intermediário. Não chegaremos ao outro arroio, porque estarão nos
aguardando.
—O que pensa fazer? Esperar que nos ataquem?
—Esperar os reforços que chegarão.
—Quando?
—Logo.
Laetitia se mostrava cética do que dizia Ramiro, mas não tinha mais opção que confiar
nele. Em definitivo, ele tinha feito que chegassem os soldados que era uma pobre defesa,
mas mais do que eles tinham antes. Pensou que podia estar tudo arrumado e que Montfort

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na realidade os tinha enviado de propósito e que agora se dirigiam a uma armadilha. Mas
pareceu pouco acreditável. Ramiro tinha arriscado sua vida, quando se aproximou até o
acampamento. E não tinha por que correr esse risco. Eles eram um alvo fácil para qualquer
exército que aparecesse para tal.
—Não é uma armadilha - disse ele e voltou a ler seu pensamento.
—Como sabe que pensei nisso?
—Porque acredito te conhecer.
—Me diga, então, por que não é uma armadilha.
Ramiro deteve a marcha por um instante. Disse aos outros que continuassem e ficou a
sós com Laetitia. Disse que subisse a suas costas, como se ele mesmo fosse um cavalo.
—Mas, o que acredita?
—Quer ver Montfort?
—Como?
—Subiremos nessa árvore e o verá chegar ao arroio.
—Sei subir sozinha.
—Então faz.
Subiram à árvore mais alta e se acomodaram sobre um ramo.
—Muitas vezes subi às árvores para procurar ervas para os preparados.
—Eu, em troca, sempre subi para isto. Para observar o inimigo. Olhe para ali - assinalou.
Ela observou com atenção.
—Vê-os?
—Sim. Ali estão. Parecem desconcertados.
—Estão.
—Acha que notaram a deserção dos soldados?
—Estou certo disso.
—O que farão se os encontram?
—Torturá-los até a morte.

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—Agradeço a valentia.
—Então lhes diga quando descermos daqui.
Desceram da árvore e alcançaram à caravana que avançava lentamente. Chegaram a
uma clareira dentro do bosque e acamparam novamente.
Os soldados cavaram para tentar encontrar alguns poços subterrâneos. Trabalharam um
par de horas e conseguiram obter água de vários lugares, embora um pouco profundos.
Custava extraí-la, mas podiam resistir vários dias sem que os poços se esgotassem.
Laetitia agradeceu aos soldados e mataram um porco em sua honra. Todos comeram
como se fosse uma festa, embora ainda sentissem um sabor amargo na boca.

Montfort chegou à zona aonde tinham acampado antes e não podia acreditar. Estavam
sempre adiante dele.
—Isto é obra de Ramiro - disse furioso.
—Tenta nos distrair - comentou Wolfgang, enquanto assinalava as distintas fogueiras.
—Não quer que saibamos aonde foi.
—Não há muitos lugares, verdade?
—Mas há muitas direções para procurar. Isso dará tempo a eles.
—Não daremos essa oportunidade.
Montfort ordenou deixar uma guarnição custodiando o arroio. Se voltassem, seriam
dominados em seguida. A quantidade de soldados de toda sua tropa merecia deixar um
destacamento importante ali.
O resto da tropa foi dividida em dois. Uma quantidade similar de soldados aos que
ficavam no arroio iria até o outro leito de água. Queriam cercá-los para que não pudessem
avançar nem voltar. Deveriam permanecer no bosque e lutar contra a sede.
A outra parte, a mais numerosa do exército de Montfort ia acampar na clareira que
estava fora do bosque. Para o outro lado estavam as geladas montanhas. Se quisessem sair,
deviam fazê-lo para esse vale e os emboscariam.

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—Estarão completamente rodeados. —sorriu Montfort enquanto empreendia a marcha.
—É uma boa estratégia.
—Não vejo a hora de matar meu antigo vassalo.
—É só questão de tempo - disse Wolfgang e sorriu como o demônio.

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Capítulo 22

—Wolfgang de Lubeck? Esse homem sim que é cruel. Não posso acreditar que o tenham
feito Abade de Montaillou. —quem falava era Raimundo VII de Tolosa.
—Sim, foi o que aconteceu. E hoje estão ali, tentando destruir o povoado. —Era Xavier
quem falava.
Estavam em Foix, no castelo de Raimundo Roger de Foix, junto a seu filho Bernardo de
Foix. Eles encabeçavam a resistência a Montfort.
—Montaillou está virtualmente em meus territórios.
—Os antigos senhores se aliaram a Montfort - particularizou Xavier.
—É verdade, mas o povoado está muito mais perto de meus domínios que de Carcasona
e do que antes pertencia aos Trencavel.
—Diz bem, querido Foix. Mas este flagelo que se chama Montfort atacou as terras de
todos nós. As de Trencavel, pela fraqueza de meu pai; as de minha família, por seus acordos
com a Igreja. Se até quis apoderar-se de meus domínios por parte materna em Provenza!
Raimundo VII era o legítimo herdeiro das terras que governava Montfort. Seu pai,
Raimundo VI, tinha perdido as terras porque a Igreja o considerava um herege e porque
não tinha tido guelra de recuperar suas terras. Montfort era senhor de Carcasona e Béziers,
terras dos Trencavel, vassalo de Raimundo VI e de Tolosa, capital dos territórios de
Raimundo.
Raimundo VII tinha sido educado em Aragão pelo rei Pedro II que o tinha transformado
em um moço de bem e em um cristão praticante. Pedro II tinha acordado com o Papa que
devolveria as terras de seu pai a Raimundo VII, quando este fosse capaz de tomar conta
delas sozinho.
A morte do Pedro II tinha mudado o panorama e as terras não iam ser restituídas
pacificamente a Raimundo VII. Não sem certa habilidade, o jovem nobre se instalou perto

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de Languedoc e das terras de seu pai. Vivia em Provenza, lugar de onde era oriunda sua
mãe e que lhe correspondia por direito próprio.
Montfort tinha ido até ali para brigar com Raimundo VII. Entretanto, isso tinha
incomodado à Igreja. O arcebispo Amaury o considerava algo fora do combinado e tinha
tirado o apoio.
—Então, diga-me, Xavier, que Montfort idealizou este plano de cristianização de
Montaillou para voltar a ser aceito como fiel da Igreja e ter autoridade sobre seus
territórios?
—Isso mesmo, senhor Raimundo. —Xavier cumpria com o que tinha pedido Ramiro no
bosque àquela tarde em que tinha perdoado sua vida. Tinha que ir até Foix e falar com o
senhor do lugar e convocar Raimundo VII. Isso tinha feito e agora punha os senhores a par
dos eventos ocorridos em Montaillou.
—E diz que Montfort nomeou Wolfgang de Lübeck como Abade para controlar melhor a
situação?
—É verdade.
—Resulta-me difícil acreditar como é evidente. O Conde, como gosta que o chamem,
tentou arrebatar minhas posses maternas. Pude repeli-lo com um exército muito pequeno.
São poucos, mas leais. Não como os de Montfort que são todos mercenários e sua lealdade
são ao dinheiro.
—E a Ramiro.
—É verdade. Muitos admiram tanto Ramiro de Zaragoza que o seguiriam até o fim do
mundo sem ver uma só moeda em troca - interveio Bernardo de Foix.
—Me conte mais, Xavier - pediu Raimundo.
—Wolfgang, nos últimos dias, mandou prender e assassinar a todos os homens do
povoado. Encomendou a Ramiro essa missão. Ele nos prendeu e nos levou sozinho junto a
seu escudeiro ao bosque que une com os caminhos para Foix e nos pediu que viéssemos
para cá para falar com Raimundo Roger de Foix e com você, senhor.

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—Já vejo. E isso estamos fazendo. Conversamos. Agora me diga: se Montfort já eliminou
os homens de Montaillou, posto que não saiba que Ramiro desobedeceu à ordem, para que
mobilizou sua tropa para lá?
—Simón de Montfort é um homem inteligente, senhor. Necessitava que se falasse disso
em todos os lados. Os únicos que se inteirariam que não havia homens com quem lutar
seriam seus soldados. Para todos os outros, ele seria um herói de guerra e paladino da
cristandade.
—Já vejo. No fundo, um covarde.
—E dos maiores.
—Me diga, então, para que veio. Porque não deve ser só para conversar.
—Ramiro me pediu que falasse com você e com o senhor —assinalou a Foix— e que os
convença a lutar contra Montfort. Deu-me instruções precisas de onde devem reunir-se
com ele e quando.
—Brigar contra Montfort não é algo do que deva me convencer - disse o senhor de Foix,
contente pela possibilidade de guerrear uma vez mais.
—É claro que não - opinou Raimundo VII— Mas quero me convencer que isto não é uma
armadilha de um engenhoso Ramiro que soube de minha presença aqui ou seja, tenta jogar
sujo.
—Ele disse que, se sua fama fosse merecida, você opinaria isso.
—Vejo, então, que mereço minha fama.
—Também isto - disse Xavier e estendeu um cilindro de tecido chamuscado— É o
estandarte de Ramiro.
—Conheço. É um estandarte famoso. Tem o leão de Montfort e as cores d’Aragão, onde
eu mesmo fui educado.
Raimundo VII estendeu o estandarte que Xavier tinha dado enrolado e viu as
queimaduras. O leão de Montfort não estava, só ficavam as cores d’Aragão.
—É prova suficiente para mim - disse— E para você, Foix?

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—Para mim também. Lembro que em uma batalha tínhamos conseguido arrebatar o
estandarte de Ramiro e que perseguiu a esses soldados durante quilômetros, até quase
nosso acampamento, com o risco que isso implicava, para recuperá-lo. Se o enviou aqui, é
um claro sinal de suas intenções.
—Adiante, então.
—Adiante - disse Xavier contente que a missão desse fruto.
Os senhores prepararam sua tropa e se puseram em movimento. Não tinham tanto
tempo para chegar ao lugar que tinha determinado Ramiro para o encontro.

Era quase o meio-dia, quando Ramiro começou a preparar seu cavalo. Os soldados
tinham extraído água suficiente para um dia e coberto os poços com tecidos e pedaços de
vestidos que as mulheres cortavam dos que levavam postos. Não podiam extrair água
demais, porque podia afetar suas propriedades se ficassem paradas todo o dia em baldes.
Laetitia ajudava com a comida e a bebida e ia daqui para lá assistindo todos os
problemas de todos que ela mesma tinha convocado. As pessoas no acampamento
começavam a impacientar-se, os meninos se voltavam difíceis de controlar e os anciões se
sentiam doentes.
Blanche e Miriam a ajudavam em tudo o que podiam, mas Laetitia sabia que era ela
quem tinha a maior responsabilidade, porque tinha sido sua ideia a de abandonar
Montaillou e logo seguir Ramiro até esse lugar afastado do arroio.
Viu que montava seu cavalo e gritou indignada:
—Aonde acha que vai?
—A uma reunião - respondeu ele, misterioso.
—Deixa-nos aqui. Qual é essa reunião?
—Laetitia, peço muito, se te pedir que confie em mim, mas pelo menos raciocine. É uma
mulher inteligente. Não abandonarei Domingo, e ele não vem comigo à reunião.
—É verdade - concedeu ela.

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—Por outro lado, devemos enfrentar a realidade. Não suportaremos muito mais tempo
aqui e em algum momento teremos que sair do bosque e lutar contra Montfort.
—Entendo isso também. Mas, o que tem a ver que vá a uma reunião?
—Não quero que se iluda com o que vou contar. Se tudo saiu bem, me reunirei com Foix
e com Raimundo VII nas montanhas.
—Por que diz “se tudo saiu bem”?
—Porque não fui eu quem marcou a reunião. Mandei um emissário e não tenho mais
notícias dele. Pedi que fizesse que os dois senhores se reunissem comigo nas montanhas.
Vou para lá. Com a ajuda de suas tropas, poderemos enfrentar Montfort.
—Tenho que acreditar?
—Tem outra opção?
—Não.
—Então, me deixe partir e chegar no horário. Voltarei de noite e será a primeira a saber
do plano de ação.
Ramiro não esperou uma resposta e começou a cavalgar. Estava atrasado e o caminho
para as montanhas se tornava íngreme e difícil de transitar. Tinha que estar atento que não
tivessem emboscadas que quisessem matá-lo. Dependia dos exércitos desses dois homens
para poder combater contra Montfort.

Os três homens esperavam escondidos ao pé da montanha. Aguardavam que Ramiro


passasse com tanta ansiedade que seus corpos pareciam fazer ruídos sem que pudessem
controlá-los.
—Chefe, acredita que verei minha camponesa? —perguntou o pequeno.
—Não sei. Cale-se agora. Devemos estar atentos para quando passar.
—Subirei a uma árvore para ver melhor e, se for necessário, saltarei em cima - disse o do
capuz.
—Vai rápido.

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Subiu com uma habilidade que foi invejada por seus companheiros e observou o
caminho. A figura de Ramiro se aproximava rapidamente.
—Aí vem. Todos a seus postos.
Ramiro não se deu conta que o observavam. Estava apressado e queria chegar à reunião.
Devia chegar à montanha e tomar o caminho da direita.
De repente, os três homens o interceptaram.
—Alto!
Deteve-se.
—Não os vi - disse Ramiro de seu cavalo.
—Viu chefe, disse. Se o tivéssemos emboscado assim aquela vez, então hoje o conto
seria diferente - sugeriu o pequeno.
—Claro... Estaríamos mortos! —respondeu o chefe e se dispôs a lhe dar uma cabeçada.
—Bom - os deteve Ramiro.
Os dois homens o abraçaram. O do capuz desceu da árvore a toda velocidade e o
abraçou também.
—Já, amigos.
Ramiro não sabia como fazer para tirá-los de cima.
—É que você é o único que foi bom conosco.
—Perdoou-nos a vida.
—Ajudou-nos.
—Tá. Tá. Não necessita tanta emoção. Agora, o que ocorreu com a reunião?
—Ah, sim - disse o pequeno— A reunião. Xavier nos pediu que o interceptássemos aqui.
No lugar previsto houve um desmoronamento de pedras e está inacessível. Acamparam em
uma clareira, por aqui perto.
—Vamos. Não há tempo a perder.

—Ramiro de Zaragoza, a lenda em pessoa se apresenta ante meus olhos.

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—Conde Raimundo.
—Serei Conde quando recuperar minhas terras que hoje Montfort conserva.
Ramiro compreendeu que Raimundo VII era tão inteligente como tinham comentado.
—Irá recuperá-las. A de amanhã será o início de uma série de batalhas. Tomaremos
Tolosa em pouco tempo.
—É otimista.
—Sou realista, senhor. Montfort foi brigar com você em Provenza. Não queria que saísse
dali. Temia que o fizesse.
—É verdade - interveio Bernardo de Foix.
—Por outro lado, não tem uma tropa leal. É cruel e manipulador e as pessoas não o
estimam. Eu mesmo pronunciei um pequeno discurso antes de desertar e dez soldados me
seguiram. Serão muitos mais, quando perder a batalha amanhã.
—Tem muita confiança.
—Confio nas pessoas de Montaillou, nos aguerridos soldados de Foix e na astúcia de
Raimundo VII.
—Agradeço - continuou Raimundo— Diga-me, o que obtém você com tudo isto?
—Certa tranquilidade.
—Se explique.
—Faz muitos anos, em Béziers, segui o que ditava minha consciência e ajudei duas
mulheres a escapar da cidade. Castigaram-me por isso. Impediram-me de voltar para minha
terra. Tive que ser vassalo de Montfort, porque foi o único que me aceitou. Prometi ser leal
e, embora não estivesse de acordo com seus métodos, cumpri com minha palavra. Agora as
coisas mudaram.
—Entendo.
—Em minha terra, Aragão, Pedro II nos ensinou a tolerância. Ele, Pedro, o rei mais
poderoso da zona, caudilho do cristianismo na luta contra os mouros, ensinou-nos a
tolerância. Aqui, em Languedoc, não há tolerância. Por essa intolerância, proibiram-me de

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voltar para meu lar. Quando terminar tudo isto, quando Montfort tenha devolvido até a
última terra ocupada, quero voltar para Zaragoza. E não como um pária, como seria agora,
mas sim como um soldado.
—Conte com isso - prometeu Raimundo— Sabe que me criei na corte do Pedro II. Desde
que morreu, há quatro anos, as coisas estiveram mais instáveis para nós os de Languedoc.
Os homens continuaram dialogando de tempos passados e, quando começava a
anoitecer, desenharam a estratégia para a batalha do dia seguinte. Ramiro interveio em
todas as decisões e se revelou um estrategista brilhante. Os outros homens, acostumados
guerreiros, olhavam-no assombrados. Tinham a certeza que iam vencer.

Já se tinha feito noite e Ramiro não tinha retornado ao acampamento. Laetitia notava
sua ausência. Não queria falar com ninguém do tema. Não tinha contado a Blanche, nem a
Miriam. Perguntou a Domingo se sabia algo, mas o ancião respondeu que não. Que Ramiro
não tinha comunicado nada.
Laetitia procurou o frasco onde guardava o elixir. Era a noite indicada para bebê-lo. A lua
brilhava como pedia a fórmula e ela estava disposta.
Pensou com atenção na encruzilhada em que estava. Tinha que tomar uma decisão e
logo ingerir a beberagem. Então, o que tivesse escolhido seria irreversível. Foi à decisão
mais difícil de sua vida. Mas quando levantou o frasco em alto e o líquido começou a correr
por sua garganta, soube que tinha sido a correta. Já não havia volta atrás.

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Capítulo 23

Xavier foi o primeiro a chegar ao acampamento. As pessoas dormiam e ele começou a


despertá-las e a chamá-las por seus nomes.
Abraçou Blanche.
Abraçou Miriam.
Mas foi Laetitia que parecia não poder soltar.
Ela se agarrou a ele e chorou em seu ombro.
—Oh, Xavier. Não sabia se estava bem. Ramiro me disse isso...
—E você não acreditou.
—É verdade. Onde está ele?
—Já chega.
Os homens de Montaillou foram aproximando-se do acampamento e reencontrando-se
com suas mulheres e famílias. Laetitia não pôde conter as lágrimas, quando viu o marido de
Miriam abraçá-la e beijá-la e, logo, elevar os dois pequenos e enchê-los de beijos e carícias.
A cena se repetia por todos os lados e a alegria tinha voltado para esse acampamento
definido pela tristeza.
—Senhores. —A voz de Ramiro se impôs aos murmúrios e sussurros— Basta de
suscetibilidades. Temos uma batalha amanhã e devemos seguir com o que planejamos.
Xavier preparou um fogo. Os homens armaram umas tendas de campanha que tinha
facilitado Raimundo VII para que dormissem mais cômodos e pudessem descansar.
Também havia mantas para todos e uma grande tenda que era onde ia dormir Ramiro.
Xavier se ocupou dos manjares que também tinha doado o jovem Raimundo e de
administrar o pouco vinho que tinham podido transportar.

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—O que é tudo isto? —perguntou uma sorridente Laetitia.
—Já o verá. Deixa que Xavier conte a história. Veio ensaiando todo o caminho —
respondeu Ramiro com um sorriso nos lábios.
Tudo parecia indicar que essa noite comeriam um grande banquete.
—Terão que estar fortes para a batalha - repetia Ramiro e a ninguém preocupava o que
pudesse acontecer no dia seguinte. Cada um era feliz nesse momento.
Reuniram-se junto ao fogo e Xavier começou com o relato.
—Quando saímos de Montaillou, fomos a um bosque no caminho de Montségur. Ramiro
nos levou até ali e nos fez cavar umas tumbas. Os soldados de Montfort nos vigiaram até o
momento em que só faltava nossa execução.
Os “oh” e “ah” se escutaram no bosque. Todos pareciam absorvidos pela história que
contava o padre.
—Ramiro fez com que os soldados se fossem. Só ficou ele, Domingo e nós que
esperávamos a execução. Foram para as árvores que estavam na cercania e apareceram
com uns lobos que tinham colocado em uma jaula. Todos nós olhamos atônitos. Então nos
perguntou se queríamos viver. E respondemos um “sim” em uníssono. E perguntou se
estávamos dispostos a combater Montfort, se nos deixasse viver. E respondemos de novo
um “sim” em uníssono.
Xavier fazia pausa, pronunciava as palavras lentamente, usava truques menestréis para
relatar sua história. Queria que a audiência prestasse atenção só a ele. E estava
conseguindo.
—Ande logo, Xavier - interveio Ramiro, divertido por aguar um pouco a festa— Devemos
combinar a estratégia e todos querem ir a nossas tendas.
—Já vai. Já vai. —Estava um pouco irritado— Depois de escutar o segundo “sim” - agora
falava em sussurros— Domingo começou a matar os lobos. Uivavam com um som
arrepiante. Pediram-nos que os ajudássemos a extrair os corações e os iam colocando em
uma bolsa. Logo enterraram os lobos nas tumbas que tínhamos cavado.

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—Há. Final feliz. —Ramiro desfrutava interrompendo-o.
—Mas a história não termina ai. Ficaram conosco toda a noite e nos contaram o plano
que tinham. Ramiro queria que eu fosse falar...
Todos assobiaram a arrogância de Xavier. Gostava de se mostrar importante.
—Bom Ramiro queria que todos os homens de Montaillou - fez uma pausa— assim está
bem? —perguntou e prosseguiu sem a resposta— fôssemos até Foix e convocássemos o
senhor Raimundo Roger de Foix, a seu filho e Raimundo VII, Conde de Tolosa, a participar
da batalha contra Montfort. Pediu-nos que o encontrássemos hoje na montanha atrás
deste bosque.
—Como sabia Ramiro que estaríamos aqui?
—Oh, isso - disse Xavier— Bom, ele já o tinha previsto. Já imaginava que vocês estariam
aqui.
—Por quê? —perguntou Laetitia a Ramiro— Você sabia tudo isto?
—Não, não sabia - respondeu Xavier por ele— Mas supunha. Descreveu-nos o que
aconteceria com bastante exatidão.
—Imaginei que isto aconteceria, quando Laetitia se negou a fugir e não brigar. Pressenti
então que deviam organizar um êxodo, se queriam debilitar Montfort e que se refugiariam
perto do arroio. Por outro lado, pareceu-me óbvio que Montfort quereria tomar os arroios
e deixá-los sem água. Assim soube que a montanha era um bom lugar para nos reunir. Além
disso, estamos perto do vale e ali poderá combater. Nisso o bosque é impossível.
Todos ficaram comovidos com a história de Xavier e com a inteligência de Ramiro. Não
tinha escapado nada.
—É por isso que não sabia se sua reunião teria êxito, quando hoje lhe perguntei isso?
—Não sabia com certeza se os encontraria. Mas devia ir. E ali estavam Foix e Raimundo
VII dispostos a nos ajudar e a brigar contra Montfort.
Laetitia se comoveu ao escutá-lo falar como um a mais da comunidade.

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—Bem. Agora comeremos - ordenou Ramiro— Logo, falaremos de como será o combate
de amanhã.
Comeram e beberam alegres. As esposas abraçavam seus maridos a quem tinham
acreditado mortos e choravam da emoção. Tudo estava acontecendo muito rápido e era
surpreendente. Os soldados que tinham desertado se abraçavam e cantavam junto com as
pessoas de Montaillou. O chefe e o homem do capuz pediram desculpas a Laetitia por
terem tentado raptá-la. Diziam que deviam gratidão a Ramiro.
—E o pequeno? —perguntou ela curiosa.
Os dois homens assinalaram uma tenda onde o pequeno estava encerrado com sua
camponesa no reencontro mais fogoso de todos.
A batalha estava minuciosamente planejada e assim fez saber Ramiro ao círculo de
pessoas mais próximas e influentes do acampamento. Ali estavam Xavier, Laetitia, Blanche,
Miriam e seu marido e Domingo.
—Faremos um ataque em quatro frentes. Os Foix, pai e filho, já devem estar
posicionados, para atacar as guarnições de Montfort em cada um dos arroios. São os
primeiros que devemos neutralizar, se quisermos que não venham em cima pelo bosque.
Escutarão um ataque no vale e se equilibrarão sobre nós. Ao amanhecer essas forças
inimigas deverão ser detidas. Confio em que Foix o fará rapidamente. São guerreiros
acostumados, tanto ele como seu filho, e não quererão perder a ação principal. Quando
tiverem dobrado os soldados dos arroios, avançarão sobre o vale pelos lados para atacar às
pessoas de Montfort. Raimundo VII levará sua tropa rodeando as montanhas e atacará pela
retaguarda o exército de Montfort.
»Nós deveremos começar o ataque cedo pela manhã e resistir. Devemos gerar uma
distração. Se confrontarmos diretamente, perderemos o combate. Não temos os homens
nem a força para fazê-lo. Somos poucos e muitos dos nossos não são soldados profissionais.
Confio em nossa capacidade de ação e em que os Foix chegarão logo para nos auxiliar.

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Todos se olharam quando Ramiro terminou de falar. Nenhum tinha medo. Todos sabiam
que podia ser assim e estavam contentes que assim fosse. Ramiro tinha dado uma
oportunidade de brigar pelo que acreditavam próprio e isso bastava.
—Dissemos em Montaillou que íamos resistir e faremos - disse Laetitia como uma
maneira de dar ânimos a seus pares.
A reunião parecia que ia levantar-se, mas Laetitia perguntou o que ela que devia fazer.
—Você ficará aqui. A tenda grande que usarei para dormir deve transformar-se em um
hospital de campanha. Precisamos poder curar a maior quantidade de homens, pois não
somos muitos. Encarregarei você junto às demais mulheres das provisões e dos cuidados.
—Eu quero estar no fronte —protestou ela.
—Não desta vez - respondeu ele— Nos jogamos muito. Necessito de você aqui para que
nos ajude.
O fogo foi se extinguindo e cada um se retirou para suas tendas para descansar. A
batalha seria árdua e perigosa.
—Laetitia... — Ramiro a chamou. Colocou-se em sua tenda que era a maior do
acampamento. Tão grande era, que Ramiro podia estar de pé ali sem tocar o teto. —Preciso
falar contigo.
Ela estava emocionada pelos eventos da noite. Não tinha acreditado, quando lhe havia
dito que seus amigos estavam com vida. Entretanto, ele tinha cumprido com sua palavra e
isso a deslumbrava. A emoção percorria seu corpo e tinha esperado o momento de poder
estar a sós com ele, de escutá-lo, de confirmar que ficavam coisas por dizer.
Aproximou-se da tenda em que ele tinha disposto seus aposentos e se sentou no chão.
Ramiro caminhava de um lado ao outro. Não sabia por onde começar.
—Faz oito anos participei do assédio a Béziers.
—Você estava ali?
—Sim. Por favor, me deixe falar. Acredito que só poderei te dizer isto, se o disser de uma
vez. Não sei se terei a coragem de outra maneira.

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Ela assentiu.
—Estive no assédio a Béziers e fui um dos primeiros a entrar na cidade. Muito a meu
pesar, devia controlar um grupo de mercenários que não eram mais que uns trombadinhas
sem escrúpulos.
Ela começou a ficar de pé, lentamente.
—A cidade era um caos e tudo parecia estar em chamas. A ordem do líder espiritual do
assédio, Arnaud Amaury, foi matar todo mundo. Os fiéis se salvariam pela graça de Deus.
Eu estava furioso por essas palavras e não podia acreditar em tanta crueldade por parte de
meus pares. Queimavam tudo o que encontravam e assassinavam sem distinções a
homens, mulheres e meninos.
»Quando vi vários mercenários que deviam responder à minhas ordens perseguir uma
mãe e sua filha, soube que devia atuar. Tinha um elmo que formava um arco ao redor de
meus olhos e esse arco estava pintado de vermelho.
Laetitia se aproximou dele e tomou sua mão.
—Ajudei à mulher e sua filha sem pensar nas consequências. Sem pensar que tempo
depois ia reencontrar com a que então era uma menina e me ia apaixonar perdidamente
por ela.
Laetitia escutou essas palavras e soltou umas lágrimas. Abraçou-o com força e ele a
separou docemente.
—Eu não podia saber que foi você quem me resgatou.
—Sei. E eu não podia lutar com isso. Deixe-me te contar, me deixe chegar até o final.
Deu-lhe um tenro beijo nos lábios, como se isso fosse uma poção para que as palavras
brotassem da boca de Ramiro.
—Depois de Béziers fui preso. Estive no cárcere e sofri torturas. Repudiaram-me em meu
país e deixei de ser vassalo do Rei d’Aragão. Jurei fidelidade a Montfort, que foi o único
senhor que quis me cobrir e fui seu leal soldado em cada uma de suas cruéis batalhas.
Sempre pensava em Béziers, quando via a mesma crueldade com a que Montfort dizia

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atuar para salvar a fé. Mas afastava esses pensamentos de minha mente, porque não
queria voltar a sofrer na prisão. E muito menos o desterro. Já não tinha medo à dor física,
mas não podia pensar em estar sem um lugar, sem uma missão, sem um destino. Disse
mesmo que era um soldado e que devia seguir as ordens e brigar as batalhas. Tarde
compreendi que essas eram as batalhas erradas.
Ela o abraçou novamente para lhe dar forças. Notava-se que custava seguir e lhe deu
ânimo lhe sussurrando palavras de fôlego ao ouvido.
—Não esperava me encontrar contigo quando vim para cá. Era apenas uma missão a
mais. Um trabalho a mais para poder passar o tempo. Tinha a esperança de poder voltar
para minha casa em Zaragoza algum dia e tudo o que fazia, fazia pensando em estar ali.
Logo te conheci e as coisas mudaram. Parecia essa flor única que cresce entre as rochas por
causa do degelo.
Agora, quem fez uma pausa foi ele.
—Assustei-me, quando descobri que era aquela menina que tinha salvado em Béziers.
Representava tudo àquilo do que tinha fugido. Não me arrependia de ter ajudado em
Béziers e nunca o fiz, mas pensava que essa ação era a que tinha me afastado de meu rumo
e que essa ação tinha me tirado a possibilidade de voltar para meu lar. Sentia-me um
turtur, um pássaro desesperado para voltar e, quando parecia estar perto de meu objetivo,
o passado voltava sobre mim como uma brincadeira amarga. Tinha um reconhecimento em
Carcasona e podia pedir para voltar, se cumprisse esta última missão que era a de levar a
relíquia a Montaillou.
Parecia esgotado, como se tivesse acabado o ar.
—O que te fez mudar de opinião?
—Não sei. Saber que minha batalha em Béziers tinha sido te salvar. Saber que não podia
brigar mais para os outros. Montfort estava me utilizando, quis me matar. Não podia ser
leal a uma ideia que não era a minha. Não podia ser leal a quem me traía, nem lutar com a
crueldade de um assassino, quando eu nunca fui. Acredito que compreender isso me fez

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mudar de opinião. Foi depois que te pedi que fugisse aquela noite. Então, soube que não
podia correr e te contar às coisas que tinham mudado em mim. Era muito arriscado. O
melhor era tentar lutar contra este invasor, como você mesma disse. E organizei esta
maneira de enfrentar o poderoso que nos submete. É curioso, sabe? Pela primeira vez,
sinto-me livre. Amanhã tenho uma batalha e não me sinto um soldado.
Ela o beijou e foi um beijo intenso, apaixonado.
—Laetitia, me deixe passar esta noite contigo. Quero esperar a luta já não como um
soldado, mas sim como um homem.
Voltaram a beijar-se com tal intensidade que quase não se deram conta que a roupa foi
caindo ao chão, sem que mediassem palavras.
Ele se recostou no chão, sobre a manta em que dormiria e ela o seguiu. Ficou sobre ele e
começou a beijá-lo.
—Acha que os outros estão fazendo o mesmo que nós?
—É o que ordenei.
—Já fala como soldado de novo.
—Pedi as tendas a Raimundo para que os casados pudessem estar a sós com suas
mulheres.
—E escolheu esta tão grande para você.
—Sim. Queria estar com minha mulher em nosso palácio.
—Sua mulher... —Laetitia ficou pensativa.
—Minha mulher eu disse.
—Eu também quero te contar algo - disse risonha.
—O que? —perguntou ele enquanto a beijava nos ombros.
—Esta noite pensei que não voltaria. Demorava mais do que o previsto e você tinha ido
ao meio dia.
—Sei.

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—Eu estava preocupada e bebi o elixir. Tinha que tomar uma decisão antes de fazê-lo e o
que decidisse não teria volta a trás.
—E o que foi o que decidiu?
—Que o que acontecer, eu quero ser sua mulher.
Abraçaram-se e começaram a beijar-se apaixonadamente. Já não disseram nada mais.
Seus corpos falaram por eles.

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Capítulo 24

Já amanhecia e Ramiro se preparou para a batalha. Alistou seus homens e se aproximou


até o final do bosque para observar as tropas de Montfort. A última noite tinha passado em
paz consigo mesmo, depois de contar tudo a Laetitia se sentia tranquilo e espaçoso, como
um doente que sai da cama depois de uma agonia.
Estudou o terreno e o plano de ação. Avançariam pelo bosque em direção ao segundo
arroio e apareceriam por esse lado para levar os soldados para esse setor. Só avançaria ele
e os homens de Montaillou e tratariam de emboscá-los levando-os para dentro, nas
árvores. Ali esperariam os soldados. Em pouco tempo devia chegar Bernardo de Foix para
auxiliá-los e seu pai também chegaria, só que do outro lado, abrindo um sulco nas filas de
Montfort.
Os soldados estavam subidos às árvores e podiam ver as guarnições postadas em ambos
os arroios. Era um dia claro e luminoso. A maioria das tropas nos arroios dormia. Escutaram
o passo silencioso e constante das pessoas de Foix de um e outro lado do bosque.
—Tome cuidado - disse Laetitia que se levantou junto com ele.
—Terei.
—Quando pensa atacar?
—Em uns momentos. Quando terminar de alimentar meus homens.
Laetitia encolheu os ombros com um sorriso.
—Pensei que seria um bom gesto preparar um café da manhã.
—Obrigado. Comerei algo também.
Deu-lhe um beijo no pescoço e, logo, outro nos lábios. Ela o abraçou e chorou um pouco.
—O que acontece?
—Sempre está indo, cada vez que tenho você comigo.

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—Não se preocupe. No final do dia retornarei e estarei contigo.
—Isso espero.
Despediu-se com outro beijo e viu que outros homens de Montaillou faziam o mesmo. O
pequeno dos três homens mal podia conter as lágrimas por deixar sua camponesa.
Caminharam no mais absoluto silêncio pelo bosque. Os soldados que tinham desertado
se esconderam quando Ramiro deu a ordem. Outros emergiram do bosque como uma
sereia o faz no mar. Os soldados de Montfort ficaram com a boca aberta, não podiam
acreditar no que viam.

Raimundo Roger de Foix atacou sem olhar. Os soldados que faziam a guarda frente ao
arroio foram capturados imediatamente. Não queriam matar ninguém, precisavam ganhar
soldados para sua causa.
Os outros despertaram sobressaltados. Nunca pensaram que teriam que lutar contra
uma formação organizada. Ficaram aí como uma custódia para um grupo de mulheres e
anciões que, provavelmente, voltariam para beber água.
Tentaram resistir em vão, porque Raimundo de Foix era um guerreiro acostumado e que
não estava acostumado a ter medo. E muito menos a um grupo de soldados jovens que
necessitavam de um líder firme para atuar.
Desceu de seu cavalo e brigou corpo a corpo com um par de soldados aos que derrotou
quase imediatamente. Os outros viram a ferocidade do senhor de Foix e a de seus soldados
e se renderam.
Todos foram capturados e ficaram sob custódia de um grupo de homens de Foix que
eram treinadores de soldados. Iam dar a eles uma possibilidade de abandonar Montfort.
Diziam que o Conde era um nobre do norte e que queria destruir os do sul.
Raimundo de Foix abandonou o lugar para ir ao vale. Pensava atacar às tropas que
estavam com Montfort o quanto antes.

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Ramiro cavalgou para os soldados que não podiam acreditar que se animasse a atacá-los.
Lançou um grito de guerra que resultou incompreensível e foi direto a um grupo de cinco
ou seis homens que não atinaram em mover-se. Atrás, seguiam alguns camponeses um
tanto esfarrapados que pareciam mais nervosos que agressivos.
—Chefe, ataquemos aos cavalos - disse o do capuz.
—Sim, vamos para lá. Enquanto os outros os distraem, faremos que os cavalos não
possam avançar.
O menor se escondeu entre a tropa e cruzou a grossa corda que os outros dois tinham
estendido diante dos cavalos previamente presa a uma rocha. Quando os soldados se
dispuseram a atacar, o pequeno esticou a corda e a atou ao tronco de uma árvore. Os
cavalos caíram e os soldados também. Uma segunda fila se dispôs a atacá-los e tropeçou
como a primeira.
Simón de Montfort não podia acreditar no que via. Tinha vontade de rir, mas dava tanta
raiva que fossem seus soldados os que faziam tal ridículo que enviou novas tropas,
enquanto as outras se levantavam e tentavam seguir Ramiro e suas pessoas.
O exército de Montfort olhava divertido a cena. Os do lado oposto diretamente riam.
Alguns o faziam tão forte que não escutaram que uma tropa se aproximava deles por trás.
Os outros, os que a viram, assustaram-se de tal maneira que paralisaram. Raimundo de Foix
cavalgava contra eles e brandia sua espada.

Bernardo de Foix repetiu a operação de seu pai sem maiores problemas. Entretanto,
quando iam capturar os soldados, um grupo escapou e atacou diretamente Bernardo que
caiu de seu cavalo. Levantou-se imediatamente e lutou corpo a corpo com eles, dobrando-
os com velocidade.
Era um perito na luta homem a homem e sabia que podia submeter a qualquer que
pusesse adiante.

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Sentou-se um pouco cansado à beira do arroio e bebeu um pouco de água. Logo propôs
seguir a marcha e avançar para o campo de batalha. Tinha que socorrer Ramiro que deveria
estar passando apertado.

Ramiro resistia sobre seu cavalo como podia. Estava divertido, de todos os modos. Via
que os soldados de Montfort estavam furiosos pela pequena mutreta da corda e isso o fazia
sorrir, enquanto brigava com ferocidade. Muitos soldados tinham desertado e se uniram à
briga, já que não tinham podido fazer que os de Montfort entrassem completamente no
bosque.
As pessoas de Montaillou, que mal tinham armas, escondiam-se atrás de algumas rochas
e nas árvores e atacava jogando pedras com suas mãos.
Os soldados se defendiam como podiam e Ramiro tinha conseguido os ter à raia. Quando
a cavalaria de Bernardo de Foix se aproximou para auxiliá-lo, passaram de se defender do
ataque para ganhar terreno sobre as tropas inimigas.
Simón de Montfort olhava sobressaltado como estavam atacando por ambos os lados.
Não tinha previsto. Pensava que o que tinha ido fazer em Montaillou era um passeio, uma
espécie de exibição de suas forças. De repente se via atacado e com um grupo de molestos
camponeses que faziam das suas agredindo sua avançada tropa. Observava sobressaltado
no meio de suas tropas.
—O que fazemos Conde?
—O que fazemos com o que?
— Com a batalha.
—Atacar. Defender-nos.
—São duas coisas distintas.
—Nos defender. Atacar.
—Atacar onde?
—No bosque. Irão proteger suas mulheres. Com isso nos recuperaremos.

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—Esperemos que não avancem sobre nossa retaguarda - disse o tenente.
Girou a cabeça e viu que de uma colina, o exército de Raimundo VII se dispunha a
avançar sobre a retaguarda que estava desguarnecida.

Raimundo VII tinha um longo trecho pela frente, quando saiu da base da montanha.
Devia rodear o vale sem ser visto, escondido entre as colinas e encontrar o ponto preciso
para avançar. Observou pessoalmente a batalha e se divertiu com o primeiro ataque de
Ramiro e aquela armadilha para os cavalos. Ria com vontade, quando os cavalos caíam um
após o outro.
Não podia ver as caras de assombro que tinha expressado Montfort, mas imaginava.
Odiava esse homem, porque tinha despojado seu pai de suas terras, porque o tinha
usurpado e o tinha obrigado a viver em Aragão e na Inglaterra depois.
Atacou para descarregar sua fúria pelo exílio que tinha sofrido. Desceu com todo o
impulso que pôde e se chocou com a retaguarda das tropas de Montfort. Seus homens
atacavam com ímpeto o exército de exibição que o Conde tinha reunido para sua glória.
Agora Montfort via como todos seus planos pareciam desmoronar-se. Não compreendia
qual tinha sido o engano. Montaillou era um povoado perdido que ninguém queria e servia
a ele como desculpa para recuperar seu poder. De onde tinha saído um ataque com
Raimundo VII exterminando sua retaguarda? Raimundo VII tinha sido confinado à Provenza,
ou isso acreditava. Tampouco tinha pensado que os Foix fossem defender um grupo de
mulheres. E muito menos que Ramiro de Zaragoza fosse escapar mais de uma vez da morte
que tinha imposto. Odiava esse homem que tinha a capacidade de fazer que seus inimigos
se tornassem seus amigos. Os três homens o queriam. Muitos de seus soldados tinham
mudado de lado. E Ramiro tinha adivinhado cada um de seus movimentos.
Montfort se sentia apanhado por Ramiro e desiludido consigo mesmo. Ele tinha visto o
potencial do jovem guerreiro depois de Béziers. Tinha-o tirado do cárcere e tinha
conseguido, por suas relações com Aragão, ações simples, mas efetivas, que o rechaçassem

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como vassalo e o tinha coberto como a um filho pródigo. Ele tinha obtido que o jogassem
d’Aragão para que não ficasse mais opção que aproximar-se dele e aceitar ser seu vassalo
incondicional. Logo, quando Ramiro se tornou muito popular, quis matá-lo. E falhou. Esse
tinha sido seu engano.
—Conde, o que fazemos?
—Escapar.

Montfort deixou a tropa à sua sorte e abandonou o campo de batalha. Pôde escapar
junto a Wolfgang e a uma guarda de fiéis a uma cidade amiga nessa mesma noite. Depois
voltou para Carcasona e começou a planejar sua vingança.
Ramiro viu os homens que tentavam entrar no bosque para atacar às mulheres e foi a
eles. Seguiam-no só os homens de Montaillou. A luta não foi fácil, mas conseguiram detê-
los. Ramiro virtualmente se bateu em duelo com alguns soldados e tratou de distrair o
resto. Seus amigos retornaram ao bosque para proteger às mulheres, enquanto ele e
Domingo tentavam distraí-los.
Fizeram que os seguisse para outro lugar do bosque, uma zona rochosa e estenderam
uma armadilha ali. Não seriam mais de cinco homens os que os seguiam. O resto já tinha
desistido ou tinha sido preso por Bernardo de Foix.
A armadilha funcionou e Ramiro conseguiu brigar corpo a corpo com dois soldados.
Parecia que tudo ia bem e que em alguns minutos mais estaria com Laetitia. Entretanto,
quando girou a cabeça para sua direita, viu que uma espada baixava sobre Domingo e
gritou de dor.

Os homens de Montaillou voltaram para o acampamento e se reencontraram com suas


mulheres e amigos. Logo, ao grupo se juntou Raimundo VII e os Foix para celebrar a vitória
e que a maioria dos soldados do exército inimigo tinha aceitado formar parte de uma força
de resistência. Raimundo VII queria que Ramiro os treinasse.

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—Onde está esse homem? —perguntou contente e com um cálice de madeira na mão,
disposto a brindar com vinho.
—Não veio com você? —perguntou Laetitia.
Nenhum pôde dizer nada e ela pôs-se a chorar.

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Epílogo

Zaragoza ainda estava longe, mas avançavam lentamente para cuidar de Laetitia.
Ramiro tinha voltado para o acampamento no dia da batalha. Tinha uma profunda ferida
em uma perna e levava Domingo consigo, que parecia desacordado.
Laetitia se equilibrou sobre Ramiro e perguntou se estava bem.
—Atende meu amigo, por favor - Ramiro pediu quase implorando.
Ela observou Domingo e virou a cabeça. Não havia nada para fazer.
Ramiro fechou os olhos. Enterraram Domingo nesse mesmo lugar. As mulheres
prepararam um arranjo floral para recordar o lugar.
Depois voltaram para Montaillou. Havia muito trabalho por fazer. Os soldados que
tinham desertado das filas de Montfort foram treinados no novo exército por Ramiro.
Também ajudaram a reconstruir o povoado queimado durante o êxodo. Montaillou passou
a formar parte dos domínios de Foix, e Raimundo de Foix e Raimundo VII, conjuntamente,
contribuíram com grãos e animais para que os habitantes não tivessem que sofrer pelas
colheitas perdidas durante o incêndio.
Xavier foi renomado Abade de Montaillou por acordo entre Raimundo VII e o Arcebispo
de Narbona. A convivência com o lar cátaro voltou a ser harmoniosa. O hospital ficou a
cargo de Laetitia, que a sua vez instruiu Miriam nas artes de curar, porque pensava seguir
Ramiro na retomada dos territórios de Languedoc.
Xavier e Blanche às vezes brigavam, mas ele terminava sempre dando razão à mulher e
todos se divertiam com as discussões.

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Montaillou não tinha nenhuma relíquia, mas teve que abrir uma estalagem para albergar
os peregrinos que se aproximavam para conhecer o lugar onde tinha ocorrido a epopeia
que derrotou Montfort.
Depois de treinar os soldados, Ramiro e Laetitia se uniram às tropas de Raimundo VII e
procuraram recuperar Tolosa. Em 12 de setembro de 1217 tomaram a cidade e foram
recebidos com gritaria. O pai de Raimundo, o legítimo Conde, foi restituído.
Montfort automaticamente começou o assédio à cidade de Tolosa. Durou dez meses.
Finalmente, em 25 de junho de 1218, uma pedrada matou Simón de Montfort. As crônicas
diziam que a pedra tinha sido lançada de uma muralha por umas mulheres. As pessoas da
cidade sabiam que tinha sido Laetitia.
Depois da morte de Montfort, os territórios de Languedoc passaram a seus legítimos
donos. Raimundo VII reconquistou as terras de seu pai e voltou a ser senhor não só de
Tolosa, mas também de Béziers e Carcasona.
A tolerância também retornou à região e Cátaros e cristãos viveram em harmonia por
muitos anos. A Igreja voltava à carga a cada tanto, mas as lutas tinham sido tantas e tão
cruéis, que ninguém queria saber delas.
Quando a retomada de Languedoc terminou, Ramiro decidiu voltar para Aragão, sua
casa. O novo Conde de Tolosa fez que restituíssem seu nome e na corte do pequeno Jaime I
o aguardavam ansiosos, como se esperam aos grandes guerreiros.
Zaragoza ficava longe ainda e eles avançavam lentamente. O chefe e o do capuz
formavam a avançada caravana que Ramiro e Laetitia tinham formado para viajar até a
cidade aragonesa.
O pequeno e sua mulher camponesa guiavam um carro no que, entre almofadões,
encontrava-se Laetitia. Não era o mais cômodo, mas sim o mais seguro. A viagem era longa
e o estalo continuado podia afetar o bebê. Ela sabia.
Zaragoza ficava longe, mas cada vez mais perto deles.
—Me diga esposa, acha que poderemos ir mais rápido?

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—Não. Não acredito. Deve estar menos ansioso.
Ramiro, como um turtur, finalmente voltava para sua casa com sua mulher. Estava
ansioso para chegar a seu lar. E tinha medo que seu filho se adiantasse. Queria que o
menino nascesse espanhol.

Fim

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Ebooks distribuídos sem fins lucrativos, de fãs para fãs.
A comercialização é estritamente proibida.

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