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Filtros de selfie que afinam nariz e

rosto incentivam racismo e cirurgias


plásticas entre jovens
Fabiana Moraes

“EU QUERO  acordar parecendo Cindy Crawford”. A frase, uma


referência à supermodelo norte-americana que dominou
revistas, anúncios e retinas ao redor do planeta durante a
década de 1990, seria até certo ponto banal não fosse por um
detalhe: foi proferida pela própria Cindy. Ela, que costumava
espantar-se com as fotografias de si publicadas nas Elles e
Vogues da vida, sinalizava que desconhecia aquela mulher vista
como perfeita após todo o tratamento nas imagens que a
deixavam ainda mais magra e tonificada, sempre com a pele
lisa e os ângulos do rosto marcados.
Mas, se ali as modificações no corpo e os retoques mais
profissionais vinham das mãos de poucas pessoas que
dominavam os softwares de edição de imagem, hoje há uma
vasta oferta de filtros com grande capacidade de modificar
narizes, preencher lábios, aumentar os olhos, reestruturar o
rosto, clarear/escurecer a pele e definir maxilares – tudo isso
em apps fáceis de baixar no celular. Além disso, a Meta (dona
do WhatsApp, Facebook e Instagram) oferece não
simplesmente filtros, mas ferramentas de criação de
modificação corporal, possibilitando que usuárias e usuários
personalizem as mudanças digitais e ainda vendam os filtros e
máscaras  para outras pessoas que desejam aquela
personalização para si. Ou seja, a possibilidade de um rosto
único – como é o de todas e todos nós – é subvertida: a ideia é
ficarmos quase todos com a mesma cara.
Um dos programas mais populares é o Spark AR Studio,
software gratuito criado pelo Facebook que oferece desde
efeitos pré-definidos à criação de projetos do zero.
Anteriormente, a função era liberada somente para marcas
famosas e celebridades, justamente os “grupos” que não só
detinham maior controle sobre manipulação das próprias
imagens como também se capitalizavam (e ainda se
capitalizam) com a enorme atenção recebida. No YouTube,
diversas pessoas ensinam os múltiplos usos do Spark AR, que
vão da criação de animações (orelhas sobre a cabeça, perguntas
flutuantes, partículas brilhantes, etc.) até as procuradas
distorções faciais – com as quais é possível fazer, virtualmente,
“verdadeiras” cirurgias plásticas.
Um exemplo é a criadora de conteúdo Larissa Rodrigues, que
disponibiliza diversos tutoriais baseados no Spark AR
mostrando como conseguir, virtualmente, uma “pele perfeita”,
além de truques de maquiagem que alongam cílios e tornam
bochechas e lábios corados (o famoso lip tint). A youtuber
demonstra de maneira bastante didática, por exemplo, formas
de tornar o rosto e o nariz mais fino. Também anuncia que
vende seus filtros por preços módicos através de contatos por
e-mail (a coluna enviou mensagem para a criadora, mas até o
fechamento deste texto, não houve resposta). Dicas parecidas
com as de Larissa são vistas também em canais como os
de Lorraine Pinheiro Lopes e o Spark AR Tutoriais em
Português: neles, filtros de cor, limpeza de pele e outras formas
de alteração nas imagens são muito comuns.
Assistindo os vídeos nestes três canais – que trago apenas
como exemplos randômicos, pois há dezenas de outros na
mesma linha ensinando a utilizar o software – percebi como
entre as primeiras dicas está justamente afinar o rosto e o
nariz, o que nos leva a pensar como questões de raça e peso
corporal também estão fortemente presentes nesses conteúdos
(em um dos vídeos do Spark AR Tutoriais em Português, o
apresentador já começa avisando: “como fazer um nariz fino e
não ficar bugando. Esse vai ser um dos principais assuntos de
hoje”). Uma outra característica presente em diversos outros
vídeos no YouTube ensinando a realizar deformações: a
maioria é apresentado e comentado por pessoas jovens,
demonstrando uma mudança paradigmática em relação à
questões como plástica e idade, algo que vai extrapolar o
ambiente virtual.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica estima um aumento
de 177% no número de procedimentos estéticos e
reparadores realizados no país entre 2008 e 2018 – só os
adolescentes de até 18 anos realizam cerca de 115 mil cirurgias
plásticas por ano, um número que tende a subir cada vez mais.
A dermatologista Gisele Saraiva, membro da Associação
Brasileira de Dermatologia, tem acompanhado esse fenômeno
de perto: ela conta que hoje é mais procurada por pessoas
muito jovens, várias delas com menos de 20 anos, buscando
mudanças na aparência. O aumento de lábios e intervenções no
ângulo da mandíbula e no nariz são os hits. A relação com as
redes sociais é grande: diversos pacientes a buscam mostrando
no celular as imagens de si criadas após o uso de filtros. “A
realidade está muito distorcida, o paciente de 20 anos e o de 50
anos têm a mesma aparência nos vídeos. É impossível para
nós, na área de medicina, conseguir fazer isso no real e mesmo
aceitar intervir no rosto de uma pessoa muito jovem”, conta
ela, cujo consultório está em Recife. Em São Paulo, o clínico
geral Antônio Bruno Neto, há anos especializado em
procedimentos estéticos-dermatológicos, também percebe uma
relação entre a popularização de filtros estéticos nas redes
sociais e a chegada de gente muito jovem em seu consultório.
Segundo ele, muitos são do mercado da publicidade, da moda e
da beleza querendo parecer ter ainda menos idade.
O uso hard dos filtros que promovem uma espécie de
“harmonização facial” (outro fenômeno nacional relacionado
às redes sociais) foi barrado pelo Instagram/Facebook em
2019: ali, a empresa divulgou um comunicado informando que
iria retirar do Spark AR os filtros associados à cirurgia plástica
e, a partir de uma nova política de responsabilidade, novos
filtros do gênero iriam passar por uma revisão mais apurada
até serem aprovados. Isso porque os relatos sobre a relação
entre redes sociais e dismorfia corporal (também casos de
suicídios) aumentaram consideravelmente – e isso já antes da
pandemia, quando olhar para nós mesmas nas telas se tornou
mais comum.
Algumas pesquisas evidenciam esse fenômeno:
um estudo realizado entre cirurgiões da Academia Americana
de Plástica Facial e Cirurgia Reconstrutiva (AAFPRS, na sigla
em inglês) mostrou que, em 2019, 72% deles foram procurados
por pacientes que queriam realizar procedimentos para ter
uma melhor aparência em selfies, um aumento de 15% em
relação à pesquisa feita em 2018. Para se ter ideia da explosão,
apenas 13% das pessoas apresentaram a mesma motivação em
2013.
Mas a retirada dos filtros de cirurgia plástica não mudou tanta
coisa lá pelos Stories da vida: é possível encontrar diversos
vídeos com dicas sobre como driblar os impedimentos do
Instagram, como vemos no vídeo do canal de Larissa
Rodrigues “como criar filtro de plástica (deformações) QUE
APROVA pra instagram story Spark Ar”. Alguns destes
criadores possuem enorme relevância na criação de realidades
aumentadas, a exemplo de Jeferson Araujo, com 954 mil
seguidores no Instagram e que, no ano passado, desenvolveu o
filtro Cruella. O trabalho foi um sucesso e chamou atenção da
Disney, que comprou o filtro na ocasião do lançamento do
filme homônimo. Hoje dedicando-se mais aos filtros artísticos
e/ou de humor (como o ótimo Rampage, que tatua o corpo e
rosto de quem o usa), Jeferson também produzia tutoriais de
cirurgia plástica: em um divulgado em 2019, ele segue a
cartilha padrão e ensina os usuários a afinar o nariz. Durante a
pandemia, a rinoplastia superou a lipoaspiração entre os
procedimentos mais procurados. Em um país de maioria negra,
no qual um fenótipo (características observáveis) muito
comum é o de pessoas com narizes arredondados ou chatos,
esse fenômeno é bastante revelador. Me parece que passa não
somente por questões da dismorfia, mas da própria
autonegação.
Os “rostos perfeitos” conseguidos ao custo de softwares e
exibidos nas redes sociais é uma questão central nas políticas
de visibilidade: o que os filtros também nos mostram é a
repetição de formas específicas de ser em detrimento de
outras. Crítica e conhecedora profunda desse cenário, a
arquiteta e maquiadora Magô Tonhon, da consultoria
LGBeauté (criada ao lado de Rapha Cruz), vem trabalhando
com a ideia de beleza cidadã. Em 2017, criou as hashtags
#SinalizaORetoque e #PelePossível justamente para fissurar a
falsa perfeição vendida por imagens manipuladas e ainda
pressionar criadoras e criadores de conteúdo a informarem as
modificações. Ela chama atenção para o impacto destas várias
“correções” de imagem em nosso imaginário. “Sobretudo
porque elas firmam um ideal de beleza e mobilizam discursos,
hoje com mais abalos que antes, que fundamentam racismo,
misoginia, transfobia, capacitismo, etc.”
O ativismo de Magô está conectado a uma decisão francesa
que, desde 2017, transformou o artigo L2133-2 do Código de
Saúde Pública na França em lei: com ele, fotografias retocadas
usadas comercialmente passaram a conter avisos indicando as
alterações. Sem isso, as empresas podem pagar uma multa de
30% do investimento na campanha. No Brasil, tramita no
Congresso o Projeto de Lei N.º 10.022/18 , já aprovado pela
Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática
da Câmara dos Deputados, que obriga a identificação de
retoques digitais de modelos em imagens publicitárias. A
proposta, que teve relatoria da deputada Sâmia Bomfim (Psol),
ainda será analisada pelas comissões de Defesa do Consumidor
e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Magô, uma mulher transgênera, sublinha que a difusão de
imagens manipuladas precisa ser tratada, como na França,
como questão de saúde pública, e situa essa necessidade
também a partir de uma experiência pessoal. “Durante a minha
transição, no meu renascimento, era importante tornar minha
pele habitável para mim mesma, uma pele de mulher que tem
passado, repleta de marcas, poros, texturas irregulares, como
qualquer outra. As imagens que eu via no Instagram eram
muito diferentes da realidade e aquilo gerava uma frustração
muito grande, uma sensação de inadequação. Minha campanha
nas redes provocou reações negativas, bloqueios, boicotes, me
prejudicou um pouco porque eu estava tentando entrar no
mercado como maquiadora. Há uma visão medíocre das áreas
da beleza e da moda em achar que meu trabalho é uma recusa
ao retoque, quando eu estou chamando atenção para a recusa
na sinalização destes retoques”.
Nesse fenômeno formado por desejo, mercado e filtros, vale
pensar na esperada popularização, também no ambiente
virtual, de corpos e rostos que pouco circulavam no ambiente
midiático, principalmente de forma positiva. Perfis de pessoas
gordas relacionadas à área da beleza, por exemplo, são
seguidos por milhares, a exemplo da empresária Mel Soares e
da influenciadora Ju Romano. Esse paradoxo, no entanto, não
deixa também de ter alguma conexão com a questão dos filtros.
“Acho perigoso alguns discursos de afirmação que ganharam
notoriedade, me parece que vão pelo mesmo trilho que
justificam outros filtros. Não tento disputar um conceito de
beleza do dia pra noite, aquilo que foi entendido como feio
durante séculos não vai ser simplesmente belo agora”, reflete
Magô, sublinhando a importância de uma fala que também
vem de fora dos grandes palcos. “A margem também é uma
posição, e pessoas trans e travestis ocupam essas margens. É a
partir dela que vamos construir beleza”.

Um fosso entre real e virtual


Há de se chamar atenção ainda para uma problemática: como
já foi sugerido anteriormente pela dermatologista Gisele
Saraiva, os procedimentos estéticos frequentemente não
conseguem, é claro, atender via botox ou bisturi aquilo que é
construído à base de software. Esse é um dos desafios mais
delicados dessa ordem virtual-real sem fronteiras bem
demarcadas e é preciso lidar diariamente com as expectativas
irreais das pessoas que procuram modificações no corpo. “A
paciente chega ao seu consultório com uma foto cheia de filtro,
emagrecida ali, aumentada acolá, e diz ‘olha, doutora, eu
queria que você me deixasse desse jeito’. Você tem que parar e
conversar. É o tipo de paciente que está confusa, muito
influenciada pelo que se joga nas mídias sociais. A gente tem
que fazer acompanhamento até mesmo psicológico”, conta.
O fosso mal coberto entre real e virtual também é constante no
consultório do médico Antônio Bruno. “As pessoas com 60
anos levam até a mim fotos com filtros ou até mesmo imagens
delas com 18 anos. Querem ficar daquele jeito. Eu já mostro na
hora que aquilo é impossível, a idade da pele é outra, ela
passou por vários processos de perda de hormônio, de
elasticidade.” Como era de se esperar, o aumento na procura de
procedimentos estéticos e a popularização dos mesmos tem
gerado efeito rebote: multiplicam-se notícias sobre rostos e
corpos deformados e ainda as mortes principalmente de
mulheres, como mostrou a tese do dermatologista Érico Di
Santis, da Unifesp, que evidencia a falha de notificações desses
óbitos. “Hoje, atendo cerca de dois pacientes por dia para
corrigir erros. Existem muitos paramédicos sem conhecimento
científico abusando de intervenções, injetando produtos em
áreas proibidas. Eu sempre gasto muito tempo durante a
consulta para mostrar que aquilo ali não é real, é ilusão”, diz
Gisele.
https://theintercept.com/2022/04/19/filtros-selfie-cirurgias-plasticas-jovens/

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