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Ebook Desporto
Ebook Desporto
Desporto e lazer:
uma realidade incontornável
Lisboa
2021
Edição Vítor Rosa
Paginação ---
ISBN 978-2-492054-00-6
Compreender o desporto (ou uma prática desportiva) é perceber o sistema de relações que ele
estabelece com a cultura e a sociedade que lhe dá sentido. Na multiplicidade das suas formas
e na variedade das suas funções, o desporto escapa a uma definição inequívoca, na medida em
que é objeto de um incessante processo de legitimação social, incluindo a importância
institucional. O desporto penetra múltiplos setores da vida social dos indivíduos.
Desde 2019 que temos vindo a colaborar como cronista no jornal desportivo A Bola, no Espaço
Universidade. Nesse ano foram publicadas 74 crónicas, tendo sido divulgadas, posteriormente,
num livro digital, com o título “O desporto em análise”. Os leitores interessados podem ter
acesso a ele no seguinte endereço:
https://zenodo.org/record/3598430#.XphdDUBFzIU
Vítor Rosa
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O futebol e os meios de comunicação social: um feliz
casamento de conveniência
8
Desporto: um fenómeno social total
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Mesa-Redonda: a comunicação no futebol profissional
Enquanto fenómeno social, o desporto impregna a vida quotidiana dos homens e das mulheres
do século XXI. Divertimento aristocrático na origem, a prática desportiva conheceu, desde o
século XIX, um crescimento prodigioso e continua a ser um dos fenómenos sociais mais
marcantes da nossa época. A sua prática democratizou-se amplamente e envolve quase todos
os indivíduos. O desporto é um tema importante nos meios de comunicação social e o
espetáculo desportivo explica, em grande parte, o interesse que tem como um fato social. No
âmbito da ReLeCo (comunidade de aprendizagem e de investigação) “Educação Desportiva,
Corpo e Ética”, integrada no CeiED/ULHT, vamos organizar uma Mesa-Redonda,
subordinada ao tema “Comunicação no Futebol Profissional”, no dia 10 de fevereiro de 2020,
pelas 17h30, no CeiED/ULHT, Edifício U, Sala U.0.8 (Avenida do Campo Grande). O
Professor Doutor Manuel Antunes da Cunha, da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Católica Portuguesa – Braga, é o orador convidado, e a moderação estará a cargo
do Professor Doutor Fernando Borges, do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. A entrada é livre, mediante inscrição para (email). Contamos consigo
neste evento.
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O desporto, o “soft power” e a mediatização
O conceito de “soft power” foi inventado nos EUA e foi colocado em prática antes da
conceptualização teórica de Joseph Nye, no início dos anos 1990. Neste sentido, não é
estranho que este país se tenha dotado de uma diplomacia desportiva. Um bom exemplo da
diplomacia desportiva é o Qatar. Investiu na organização de competições internacionais no
seu território, no desenvolvimento do desporto internamente (academias, centros desportivos,
campeonatos profissionais, infraestruturas), na sponsorização de múltiplas competições ou
entidades desportivas, na compra de direitos televisivos de competições estrangeiras, etc. A
diplomacia desportiva é concebida, conceptualizada, animada e dirigida pelo poder central e a
família reinante. Os investimentos desportivos respondem a interesses racionais a longo prazo:
necessidade de diversificação económica, modernização do país, mas igualmente político, ou
seja, procura de reconhecimento internacional, a fim de consolidar o lugar do país no tabuleiro
de xadrez mundial.
Os meios de comunicação social e a globalização fizeram do desporto um elemento poderoso.
A televisão criou um estádio, cujas capacidades de acolhimento são ilimitadas. Num mundo
onde a informação é cada vez mais expandida, a proeza desportiva tornou-se a forma mais
eficaz para suscitar popularidade e atratividade. As vitórias desportivas são uma forma de
continuar a guerra por outros meios. Nem todas as práticas desportivas servem para o
espetáculo. O futebol moderno, criado em Inglaterra no século XIX, tornou-se um desporto
universal que conquistou o mundo. O desporto não pode viver e se desenvolver sem dinheiro
e sem mediatização. Na realidade, a televisão (mas não só) impõe novas hierarquias, tanto ao
nível da disciplina praticada, como dos atletas.
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A ESEL-IPLUSO promove uma formação pós-graduada em
“Educação Desportiva, Corpo e Ética
12
O futebol em análise
13
âmbito da ReLeCo “Educação Desportiva, Corpo e Ética”, integrada no CeiED/ULHT,
vamos organizar uma Mesa-Redonda dedicada à “Comunicação no Futebol Profissional”, no
dia 10 de fevereiro de 2020, pelas 17h30, no Edifício U da ULHT. Contamos com a sua
presença! A Entrada é Livre.
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O processo de civilização aplicado ao desporto
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O estigma do fato de treino
Em conversa com uma pessoa amiga sobre educação física e desporto, fui chamado a atenção
para o “estigma do fato de treino”. Alguns professores de educação física sentem-se diferentes
por andarem de fato de treino no seu dia a dia nos estabelecimentos de ensino. Contaram-me
também um episódio caricato: num almoço de convívio escolar um aluno cumprimentou
todos os seus professores, exceto o professor de educação física. Chamado a atenção, o aluno
disse que estava habituado a ver o professor de fato de treino, e não de outra forma, daí a
dificuldade no reconhecimento do mesmo. Perante o fato, o professor em causa ficou muito
aborrecido. A que se deve este estigma? O ensino da educação física em Portugal, apesar das
honrosas iniciativas, tardou a se generalizar. Foi desvalorizado! A disciplina e os professores
foram considerados com um estatuto “periférico”, sobretudo em relação a outras disciplinas
(português, matemática, história, físico-química, etc.). Muitos encaixaram socialmente ser os
“parentes pobres” do ensino ou uma espécie de “segunda linha” de educadores. Quando
alguém fala de educação física e desporto, não sendo da área, mas que estuda profundamente
o fenómeno, muitos professores, que se consideram “herdeiros” da temática, chateiam-se e
amuam. Outros, porque estão em lugares de poder, até impedem o alavancar de importantes
iniciativas. A criação de vários cursos na área da educação física e desporto, com ou sem
qualidade, trouxeram uma divisão na classe e uma desorientação conceptual, metodológica e
deontológica. A formação, no ensino superior (universitário e politécnico), tem dado origem
a tensões e conflitos. Era importante fazer-se um estudo científico, procurando averiguar
como os professores de educação física e desporto, de diferentes escolas de formação, são
percecionados pelos alunos, pelos professores de outros grupos disciplinares e por
funcionários da escola.
16
Narrativas de migração: desporto e entretenimento
Em 2018, a França venceu o campeonato do mundo de futebol masculino. Foi uma das equipas
europeias mais etnicamente mistas. Kylian Mbappe, uma das estrelas da seleção francesa,
nasceu nos arredores de Paris, filho de pais dos Camarões e da Argélia. Mbappe, em resposta
à vitória, afirmou: “É a vida que queríamos, temos orgulho de fazer felizes os franceses”. O
seu companheiro de equipa, Paul Pogba, um muçulmano de ascendência guineense, comentou:
“É um sonho desde miúdo, espero ter deixado vocês orgulhosos”. Com milhares de seguidores
no Instagram, estes dois jogadores relataram as suas histórias, as jornadas que levaram ao
sucesso da equipa e os seus sentimentos de pertença nacional. A música inovadora e
emocionante de Stromae, um belga de ascendência congolesa e belga, também ganhou fama
mundial. A popstar tem milhares de seguidores no Instagram. Ele narra os aspetos da sua
história familiar de migração, da sua identidade belga e (complexo) sentimento de pertença
através da sua música e da autorrepresentação. Estes desportistas e ícone pop têm um enorme
impacto junto do público. Eles oferecem uma narrativa coletiva de migração muito diferente
das poderosas representações dos meios de comunicação social sobre os refugiados
empobrecidos que chegam a uma Europa generosa ou sobre os muçulmanos fanaticamente
religiosos com relações conservadoras de género que surgem desde 2000. É necessário
existirem projetos que identifiquem as ideias, os símbolos e as imagens que são repetidas(os)
nas histórias das figuras como Mbappe, Pogba e Stromae. É preciso estudar o potencial destas
narrativas (e de outras) para compreender as múltiplas e complexas perspetivas nas narrativas
de migração, concentrando-se nos desportos e no entretenimento.
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O desporto é mais do que o desporto
O homem desportivo não se pode reduzir ao “homo ludens”, caro a Johan Huizinga (1938),
para quem o jogo era uma ação livre e elemento motivador de cultura, a Guy Jacquin (1954),
acérrimo investigador dos aspetos educativos do jogo, e a Roger Caillois (1958), que lançou as
bases de uma sociologia a partir dos jogos. Segundo estes autores, a categoria de “prática
desportiva” seria aplicada a uma realidade universal e invariável, fundada em disposições
psicológicas e partilhadas por todas as culturas, que levariam o homem a se dedicar aos jogos
e aos desportos desde que as necessidades de sobrevivência estivessem satisfeitas. Norbert
Elias e Eric Dunning (1986) mostraram, de forma convincente, que é falso pretender que todas
as sociedades conheceram um conjunto de práticas que se poderiam qualificar de desporto e
que não podemos ligar os desportos contemporâneos, que a Inglaterra do século XVIII e
sobretudo do XIX viu emergir, dos ancestrais diretos e nos quais mergulhavam nas suas raízes.
Com a introdução do constrangimento da regra permite-se organizar competições ao nível
nacional e internacional, respeitando a igualdade de condições do confronto. A necessidade de
fixar e garantir a boa aplicação desta regulamentação conduz à criação de estruturas
administrativas (as federações nacionais e as instâncias internacionais). A “desportização” é o
processo pelo qual os jogos tradicionais foram submetidos a pressões visando-os a se
transformarem em desporto. O desporto tornou-se, assim, o novo terreno de confronto,
pacífico e regulado, dos Estados. É a forma mais visível de mostrar a bandeira, de existir aos
olhos dos outros e de estar presente no mapa do mundo. Quando a globalização parece apagar
as identidades nacionais, o desporto torna-se o meio identificável, na esperança de uma vitória
ou de uma proeza, de uma amplificação variável segundo os estatutos, as experiências
históricas e as expetativas relativas. O desporto é, atualmente, mais do que o desporto. É uma
manifestação das emoções, do prazer, das vibrações, dos momentos de desespero, de
fraternidade, de partilha, da geopolítica, etc. É também o palco de muitas manifestações de
racismo e de xenofobia.
18
O desporto escolar em Portugal
19
O contributo do desporto na inclusão social
20
2) O desporto como um meio de captar o público. Neste caso, os profissionais fazem do
desporto um instrumento, e não uma finalidade, permitindo um compromisso com o
acompanhamento social necessitando de outros suportes. Pode ser utilizado pelos
trabalhadores sociais junto de públicos jovens problemáticos.
3) O desporto como uma ferramenta de transformação do indivíduo. Esta perspetiva,
mais ambiciosa, consiste em levar o indivíduo a praticar uma modalidade desportiva,
suscetível de o transformar. Esta transformação pode incidir sobre:
a. O seu lugar social. Trata-se de integrar ou de inserir (o desporto pode inserir
profissionalmente);
b. As disposições sociais. Trata-se de educar, de socializar (o desporto pode ajudar
na reconstrução da autoestima, na relação com as regras, normas);
c. A conformidade com o que se espera do mundo social. Aqui, trata-se de
controlar ou disciplinar (o desporto pode ajudar na luta contra o desinteresse
profissional (temos as corridas promovidas pelas empresas, reforçando a coesão
das equipas).
21
O desporto e a sua autonomia
22
“Habitus” pugilísticos
Também conhecido por pugilismo, o boxe é um desporto de combate que se carateriza pela
arte de defender e atacar usando apenas os punhos. Na Inglaterra, o primeiro regulamento de
boxe surge em 1743. Face à brutalidade nos combates, que não é o que mais agrada a um
público no seu conjunto bastante aristocrático, é recomendado, em 1747, o uso de luvas e
aperfeiçoaram-se as regras. Um primeiro “campeonato do mundo” tem lugar em 1810, com
25 mil espectadores. A federação amadora de boxe é criada em 1884. O boxe masculino entrou
nos jogos Olímpicos em 1904. Relegado para segundo plano, o boxe feminino surge apenas
como desporto de demonstração. Praticamente invisível, só entrará, oficialmente, nos jogos
Olímpicos de Londres de 2012. 36 mulheres, em três classes de peso, competiram nestes jogos,
em comparação com os 250 homens em 10 classes de peso.
Existem vários estudos que têm como objeto de estudo o boxe, mas a análise etnológica de
Wacquant (2000) é certamente a mais rica sobre a construção dos “habitus pugilísticos”
masculinos no domínio do boxe inglês, num bairro negro de Chicago. O autor descreve a
importância das aprendizagens técnicas no processo de incorporação das normas e valores no
ginásio. De forma detalhada, descreve as relações entre o mundo fechado (o ginásio), o
universo pugilístico, a rua, o bairro e o gueto. De forma contrastante de um ambiente hostil,
o clube constitui uma ilha estável e ordena as relações sociais, onde os interditos são possíveis.
O ginásio não é apenas um espaço de confronto. Ele é protetor, permitindo escapar ao
quotidiano e à tentação de os praticantes viverem da ilegalidade. Este espaço regula a violência
e permite quebrar a rotina. Os pugilistas distinguem-se dos outros jovens do gueto pela
vantagem da integração social e pela ligação a uma família não decomposta e relativamente
intacta. Eles provêm de famílias de classes operárias, do sub-proletariado e exercem pequenos
trabalhos nos serviços. A grande maioria trabalhava como seguranças, canalizadores, pedreiros,
limpezas, nas fábricas. Wacquant colocou as luvas e descreve a aprendizagem das práticas, das
codificações e das normas implícitas, afastadas de um investigador branco que nunca antes
tinha praticado boxe e pertencia às classes sociais cultivas dos universitários.
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Mennesson e Clément (2009) prestaram especial atenção às mulheres nas práticas pugilísticas
violentas, reservada aos homens, até um período recente. Os autores procuram estudar este
universo das mulheres no boxe francês de 1997 a 2005. Para isso, realizaram trinta entrevistas
às pugilistas que participavam em competições de nível nacional e internacional. Para elas,
minoritárias neste espaço essencialmente masculino, a aprendizagem das técnicas pugilísticas
e o trabalho de “feminização” de aparência corporal são simultâneas. Os autores concluem
que a relação diferenciada com a prática do boxe (num estilo mais “hard” e noutro mais “soft”)
inscreve-se nas trajetórias escolares e sociais diferentes. São sobretudo mulheres originárias
das classes populares que aderiram ao estilo mais “hard”. As pugilistas “soft”, maioritariamente
em situação de sucesso escolar no ensino primário e secundário, começam o boxe pelos 20
anos ou mais e as pugilistas do estilo “hard”, muitas vezes confrontadas com o insucesso
escolar, iniciam o boxe com cerca de 15 anos. As primeiras descobrem por acaso os aspetos
estéticos da prática do boxe francês, as segundas começam a praticar esta modalidade para
exprimir o seu gosto pelo confronto e a sua combatividade.
Em Portugal, o boxe surgiu no início do século XX. Os primeiros duelos de boxe são
disputados a partir de 1909, suscitando interesse e curiosidade do público e dos adeptos da
modalidade, sobretudo nas grandes cidades. Pouco a pouco, vão-se criando alguns clubes
amadores, como, por exemplo, o Ginásio Clube Português, o Clube Arte e Sport, o Sport Cruz
Quebradense, o Clube Português de Recreio e Desporto. Da necessidade de se organizar e
regulamentar a “nobre arte”, é fundada, em 1914, Federação Portuguesa de Box (FPB). Após
o final da Grande Guerra de 1914-1918, o boxe populariza-se. Desde a sua implementação, o
boxe português tem tido os seus avanços e os seus recuos, nomeadamente ao nível do número
de praticantes. Se olharmos para as estatísticas da PORDATA, verifica-se que já nem se apura
os praticantes desta prática desportiva desde 2009 (cf. Figura 1). Constata-se a existência de
oscilações ao longo dos anos, atingindo o seu pico máximo, em 2008, com 478 praticantes.
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Figura 1: Evolução dos praticantes de boxe em Portugal, de 1944 a 2009
500
450
400
350
300
250
200
150
100
50
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Figura 2: Evolução do boxe em Portugal, por sexos, de 1996 a 2009
500
450
400
350
300
250
200
150
100
50
0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Homens Mulheres
Referências:
Mennesson, C., & Clément, J. P. (2009). Boxer comme un homme, être une femme. Actes de
la Recherche en Sciences Sociales, 179, 76-91.
Wacquant, L. (2000). Corps et âmes. Carnets ethnographiques d’un apprenti boxeur. Marseille:
Agone.
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Ser treinador desportivo nas artes marciais e desportos de
combate
Pelo Decreto-Lei n.º 105/72, de 30 de março, foi criada, em 1972, Comissão Diretiva das Artes
Marciais (CDAM). Este organismo, dependente do então Departamento Defesa Nacional,
tinha por missão atender às questões de segurança interna. As atribuições consistiam na
superintendência e controle do ensino, aprendizagem ou prática das artes marciais. Este
Decreto-Lei previa o sancionamento (prisão e multa) da prática não autorizada das artes
marciais. Depois de várias mudanças organizacionais e de ministérios, a CDAM viria a ser
extinta pelo Decreto-Lei 69/87, de 9 de fevereiro. Em 2007, fruto da minha investigação e da
consulta dos arquivos, escrevi um longo artigo científico sobre esta Comissão (Rosa, 2007). A
minha tese de doutoramento é, hoje, referenciada no Arquivo da Defesa Nacional (cf.
https://arquivo-adn.defesa.gov.pt/details?id=36035). Se debitamos à CDAM alguns
problemas criados no seio das artes marciais e desportos de combate em Portugal, ponhamos-
lhe crédito, em contrapartida, os benefícios que dela se recebeu em termos de formação dos
instrutores e/ou mestres. Fazendo uma retrospetiva sobre a credenciação dos instrutores das
artes marciais, especialmente as práticas de judo, karaté, aikido e taekwondo, verifica-se que a
década de 1980 representa um marco significativo de transformação no tocante à formação e
qualificação contínua dos instrutores destas modalidades em Portugal. Com a colaboração dos
então Institutos Superiores de Educação Física (ISEF), Lisboa e Porto, e inspirados no
trabalho desenvolvido neste domínio em países como o Reino Unido, a França, a Espanha, a
Itália, etc., a CDAM conseguiu promover durante alguns anos uma prática de formação,
adaptando-se à grande heterogeneidade da população-alvo, mas também à grande diversidade
de lugares e tempos de formação. Os objetivos definidos para essa formação eram os
seguintes: i) dotar os recursos humanos de competências técnicas, sociais, culturais, éticas e
pedagógicas; ii) demarcar o campo político e ético, ou seja, na expressão em desuso “separar
o trigo do joio”. Dito de outro modo, destrinçar quem de facto estava interessado em ensinar
as artes marciais de forma correta e profissional e quem era charlatão. Por outro lado, é o
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reconhecimento que apenas o conhecimento técnico específico de uma determinada arte
marcial não era suficiente para capacitar o praticante para a função de educador. Podemos
dizer que o principal contributo das ações de formação foi o dos treinadores terem a certeza
de serem “profissionais” não só aos seus próprios olhos, como também aos daqueles que os
viam do exterior. Para além de ser, evidentemente, um fator de valorização e de confiança em
si próprios, e de trabalho continuado de reflexividade profissional, a formação constituiu um
lugar de encontro e de intercâmbio, pois os participantes encontraram aí uma ocasião de se
conhecerem, de confrontarem as suas experiências, até mesmo de vencerem o isolamento
próprio das suas condições de trabalho e de vida. A realidade formativa hoje é outra. Com
uma validade de cinco anos, o “Título Profissional de Treinador/a de Desporto” (TPTD)
passou a ser o documento oficial que habilita e regula o exercício das funções de treinador(a)
em Portugal. A emissão do TPTD é da responsabilidade do Instituto Português do Desporto
e Juventude (IPDJ). A PORDATA disponibiliza alguns dados sobre o número de treinadores
de algumas modalidades desportivas em Portugal.
Referência:
Rosa, V. (2007). Encuadramiento legal e institucional de las artes marciales y deportes de
combate en Portugal. Revista de Artes Marciales Asiáticas, 2(4), 8-31.
28
Breve retrato histórico sobre artes marciais e desportos de
combate em Portugal
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O desporto na prisão: um pouco de liberdade
33
laboral foram as primeiras com 41,4% (n=115). O testemunho de um recluso, que foi
condenado a nove anos e meio de cadeia, é elucidativo do que se passa em muitos
estabelecimentos prisionais: “quando se fica em preventiva, nas instalações junto da polícia
judiciária de Lisboa, não existem condições para a prática desportiva. Aquilo não tem nada:
uma bicicleta estática e uma máquina de remos. O páteo é exíguo. Em outras instalações, as
condições são também precárias, os aparelhos de ginástica estão ultrapassados e cheios de
remendos, que vão sendo reparados pelos reclusos. Quem tem mais conhecimentos lá dentro,
utiliza os ginásios e muitos são discriminados. Para se utilizar o espaço, é preciso fazer-se uma
inscrição prévia, na medida em que existem várias classes. Quando o ginásio é gerido por um
professor de educação física, realizam-se uns campeonatos de futebol, andebol ou ‘crossfit’,
pois eles têm que justificar o ordenado. Algumas associações promovem internamente
workshops de ioga. Quando o ginásio é gerido por uma outra pessoa interna, é tudo mais
complicado. Os jogos de futebol são de evitar, pois existem picardias e é promotor de conflito
e de problemas, sobretudo para aqueles mais ‘picados’ que não têm fair-play. A prática de artes
marciais e desportos de combate são interditas, pois os guardas prisionais têm receio. Para
aqueles que fazem muitas horas de “ferro” (musculação), é complicado porque depois ficam
com muita fome e a comida dos estabelecimentos prisionais é péssima. É a lei da selva. O que
eles nos querem dar é medicação, para andarmos todos calmos e a dormir”. Será que a
conceção laudatória do desporto e dos seus poderes (educativo, pacificador, socializante, etc.)
no meio prisional suscitam algum debate na sociedade portuguesa? Será que a prática
desportiva pode ajudar a suportar a encarceração, oferecendo um espaço de descontração e de
sensação de liberdade? De acordo com as caraterísticas dos estabelecimentos prisionais
(muitos com sobrelotação crónica desde há muitos anos), e das instalações disponíveis, quais
são verdadeiramente as atividades desportivas “oferecidas”? Será que a prática desportiva no
meio prisional é uma recompensa oferecida para aqueles que não incomodam a ordem interna
estabelecida? A prática desportiva é somente lúdica ou serve para a convivência social
ordenada? Muitas questões que merecem resposta.
34
A ética, o desporto e o COVID-19
35
A socialização e as condições de formação para a profissão
de futebolista
Um sociólogo francês, Julien Bertrand, levou a cabo um estudo durante três anos num centro
de formação de um grande clube de futebol francês. O estudo foi publicado num livro em
2012, pela editora “La Dispute”, com o título “la fabrique des footballeurs”. A sua investigação
desconstrói a imagem do talento desportivo como um dom e do futebol como via privilegiada
de ascensão social dos jovens oriundos dos meios populares. O fato de ter levado a cabo
inquéritos em vários clubes permitiu-lhe reconstituir a “fábrica dos futebolistas”, descrevendo,
de forma precisa, as etapas da socialização profissional no seio de instituições dedicadas a
produzir (e a selecionar) a “elite” da modalidade desportiva. A formação de crianças e jovens
no futebol foi fortemente institucionalizada ao longo das últimas décadas. Os clubes
organizam a observação dos jogadores que têm qualidades desportivas. Tornaram-se a via
privilegiada de acesso ao mais alto nível. Esses centros de formação (Escolas Academias),
como temos em Portugal (Sporting e Benfica), podem se aproximar das “instituições totais”
(asilos, prisões), descritas pelo sociólogo norte-americano Erving Goffman, na medida em que
mergulham o indivíduo num espaço separado, cortado do mundo exterior (sistema de
internato). São verdadeiras “redomas” dotadas de espacialidade e de temporalidades
particulares, que engloba a quase-totalidade da existência dos seus membros e impõe-lhes
fortes constrangimentos. A socialização no seio dos clubes pode ser caraterizada pela sua
longevidade (o “aprendiz” compromete-se por vários anos), a sua intensidade (vários treinos
semanais), a sua seletividade e o seu caráter precoce. A análise de Bertrand é muito interessante,
pois é contra uma “visão natural” da carreira desportiva, que terá mais chances de sucesso pelo
simples produto de um determinismo biológico. De fato, aprende-se a ser futebolista. Fabrica-
se!
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O desporto e Georges Magnane (1907-1985)
“O primeiro herói que eu encontrei fora de um livro era um corredor ciclista”. É por estas
palavras que René Catinaud (1907-1985), mais conhecido por Georges Magnane, introduz o
seu romance “Les hommes forts”, publicado em 1942. Ele evoca o encontro com o desporto
e a fascinação pelos corpos robustos que nos cruzamos nas práticas desportivas. Magnane
estudou o desporto no contexto de três décadas: de 1930 a 1960. Decide de tomar o desporto
como objeto de estudo, abordando-o sobre o ângulo da sociologia. Em 1960, ele obtém um
lugar no CNRS (França) e trabalha junto de uma equipa de investigadores dedicados à temática
“Sociologia do Lazer e dos Modelos Culturais”. O autor apoia-se em várias monografias
realizadas pelos estudantes do Centro de Formação e de Estudos de Educação, da Escola
Normal Superior de Educação Física, etc. O seu estudo sobre as instituições desportivas
beneficiou da preciosa ajuda dos seus colegas. O dispositivo de inquérito e de pesquisa levado
a cabo por Magnane em torno do desporto é bastante estruturado. O seu ensaio “Sociologie
du sport” (1964), surge dois anos depois das obras de Joffre Dumazedier, “Vers une civilisation
du loisir”, e de Edgar Morin, com “L'Esprit du temps”, duas obras que se inquietam sobre a
massificação dos lazeres e da estandardização da cultura ligadas às transformações da
sociedade industrial e a extensão dos lazeres na vida quotidiana. A sua obra é a primeira do
género em França e constitui uma peça histórica interessante, que permite pensar o fenómeno
desportivo. A sua obra foi traduzida em várias línguas, nomeadamente o português. A obra de
Magnane abriu uma via para um conjunto de análises históricas, filosóficas e psicológicas, que
Jacques Ulmann (em 1965), Michel Boeut (em 1968) e Bernard Jeu (em 1977) continuaram
depois. A sua aproximação ao desporto, continua a ser considerada pertinente para alguns
sociólogos contemporâneos. Mas não se pode reduzir Magnane a um simples observador
crítico do fenómeno desporto. Ele viveu a “experiência desportiva” polivalente. Atleta,
professor de inglês, romancista, tradutor, cinéfilo, maçom do Grande Oriente de France
(iniciado na Loja “La Parfaite sincérité”, em 12 abril de 1935, em Marselha), Magnane quis-se
fazer de sociólogo. Um sociólogo original e em consonância com o seu tempo. Ele procurou
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compreender a sociedade e o sistema desportivo, através de um triplo olhar do homem de
letras, do sociólogo e do desportivo. No seu pequeno livro “Regards neuf sur les Jeux
Olympique” (1952), que não tem nada de sociológico numa primeira análise, coordenado por
Joffre e Janine Dumazedier, ele propõe uma contribuição intitulada “L'esprit olympique”. O
desporto é suscetível de produzir os melhores e os piores efeitos, enquanto representação de
um meio cultural. O autor está convencido do interesse social do desporto. Apesar da distância
temporal do seu livro “Sociologie du sport”, cremos que, num trabalho sério sobre o desporto,
não se poderá deixar de consultar a sua obra. O impacto da obra de Magnane pode-se apreciar,
retrospetivamente, em função de indicadores precisos, objetivos, e, por outro lado, baseado
em diversas fontes de informação. Para concluirmos, Georges Magnane, que não se
considerava como um autor de obras de sucesso, contribuiu para um novo “élan” da sociologia
francesa, nos anos 1960, permitindo individualizar domínios concretos da sociedade
contemporânea (sociologia do lazer, sociologia urbana, sociologia do trabalho, sociologia da
delinquência juvenil, etc.). A leitura do seu livro, que parece mais empírico do que científico,
conheceu um sucesso importante, em particular junto daqueles que se interessam (ou se
interessaram) pelo estudo do fato desportivo.
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Futebol: “a bagatela mais séria do mundo”
Uma bola, 22 jogadores. Duas equipas adversárias, mas não inimigas, metade de cada lado.
Fora das quatro linhas, ficam os adeptos(as) das duas equipas. Muitas vezes agrupam-se em
claques de apoio e, frequentemente, vestem-se a rigor com as camisolas, cachecóis, bonés e
gorros do clube que apoiam. Jogo criado em Inglaterra por homens e para homens, o futebol,
grande competição desportiva, é um produto de globalização. É uma indústria de
entretenimento que age intensamente na cultura e na economia dos países. O ambiente nos
estádios de futebol suscita reações contrastadas. Uns celebram a importância das multidões
que assistem aos jogos, outros denunciam a agressividade e a violência dos adeptos, outros
ainda exaltam a força emocional dos cantos e clamores que aí ressoam. Seja fator de atração
ou de aversão, o futebol, como espetáculo, raramente deixa indiferente os atores sociais. Entre
a glorificação entusiasta - e o entusiasmo é tal que se tornou a “bagatela mais séria do mundo”,
segundo Bromberger (1998) - e a condenação definitiva, entre a fascinação devota ou a
repulsão, o leque de atitudes e de opiniões são particularmente amplas. As bancadas e as
tribunas compõem um mosaico de microterritórios, mais ou menos visíveis e delimitados, mais
ou menos efémeros e instáveis, mais ou menos estruturados e organizados. São o local onde
se propagam as emoções mais profundas; basta olhar para os rostos para nos apercebermos
da multitude de expressões que animam e revelam a panóplia de sentimentos vividos: angústia,
alegria, cólera, desespero, injustiça, etc. Acolher um megaespectáculo de futebol, tem
investimentos avultados (infraestruturas, segurança, marketing, etc.). São também um meio de
promoção dos países, evidenciando a importância social, cultural e económica que os grandes
eventos desportivos assumem nas sociedades. Com o adiamento do Euro2020 para 2021,
devido à crise originada pelo coronavírus, perdeu-se tudo isto. Para já, as maiores vítimas pelo
adiamento são as federações nacionais. As fases finais das grandes competições são uma boa
fonte de receita.
39
Referência:
Bromberger, C. (1998). Football, la bagatelle la plus sérieuse du monde. Paris: Bayard.
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Mais desporto no feminino
41
igualdade e o progresso da liberdade em geral.
42
O desporto: um logro absoluto?
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testados, controlados, condicionados, infantilizados. Não nos contentamos a dirigir o seu
trabalho, como os alimentamos, os vestimos, são alojados, pensamos por eles. Submetidos a
pressões familiares, do público, do Estado, dos treinadores, dos dirigentes e agentes, o atleta
deve ganhar para que, de uma forma ou de outra, a sua “entourage” retire dividendos. Ao
observar os dirigentes influentes de certos clubes, rapidamente percebemos que reivindicam
uma boa parte do sucesso. São as vitórias por procuração. O atleta, se reduzido a uma máquina
de ganhar, com todos os riscos inerentes, torna-se um instrumento de avaliação permanente.
Mas, como diria Albert Jacquard, uma sociedade que só propõe à juventude a competição,
como a única moral de vida, é uma sociedade doente.
* Campo desportivo: noção definido por Pierre Bourdieu para dizer que é um espaço social, possuindo normas
próprias e relativamente autónomo do campo social global. Todo o campo – desportivo, económico, literário,
burocrático, jurídico, científico, etc. – é também um campo de forças com as suas relações de dominantes-
dominados e as suas desigualdades.
44
O desporto faz parte da cultura
Um dos traços caraterísticos da nossa sociedade contemporânea tem a ver com o lugar de
destaque que é dado ao desporto no nosso quotidiano. Ele faz parte do conjunto das formas
de viver, de sentir, de agir e de pensar de um grupo importante de cidadãos. É um
compromisso e/ou investimento corporal, fenómeno capaz de entusiasmar as multidões ou
de as fazer frustrar, vitrina institucional ou política, lugar de transações financeiras desmedidas,
fonte de conflitos e de derrapagens, etc. Assim sendo, podemos falar de uma cultura desportiva
como uma “ferramenta” de afirmação coletiva. A nível mundial, a difusão do desporto é
favorecida pelas diversas redes que participam para a expansão do comércio e da acumulação
de capital a partir de 1782. No final do século XIX e no início do século XX, a cultura
desportiva, com os seus valores e usos sociais, expande-se em toda a Europa, e para além desta,
a partir do berço da Revolução Industrial, a Grã-Bretanha. O capitalismo acentuou a
comercialização do desporto e deu-lhe uma legitimidade social. Num mundo movido a
dinheiro, dificilmente se concebe que ele escape a esta tendência geral. O casamento entre o
desporto e o dinheiro complexificou-se e transformou a imagem das estruturas económicas e
sociais. As grandes competições desportivas são objeto de apostas colossais na Internet. Na
obra “Sport: l’imposture absolue” (2014), Michel Caillet refere que “num deserto ideológico
que atravessa a sociedade moderna, o frenesim desportivo exerce uma função compensadora
evidente” (p. 141). Para o autor, “os defensores de um desporto-progresso, popular e
humanista, promovem um combate interessante, corajoso, mas patético, na medida em que
não se pode colher as rosas sem os espinhos” (p. 169). Não comungamos de um quadro tão
pessimista, na medida em que o desporto é uma visão do Homem, da sua finalidade de ação e
de liberdade.
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Gostos e não gostos desportivos
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eles(as) e estabelecer laços sociais a todos os níveis onde se exercem essas rivalidades.
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Imagens, símbolos e representações no desporto
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vida moderna.
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O visível e o invisível no karaté
O local onde se pratica karaté chama-se “dojo” (termo japonês). As decorações de estilo
oriental e os retratos dos mestres (“sensei”) fazem do dojo um lugar onde se mistura exotismo
e solenidade, e no qual um certo número de rituais ritmam a passagem dos praticantes. É o
lugar da “Via”. O karaté é uma arte marcial, como se diz vulgarmente. Para muitos, é uma arte
e para a compreender é preciso penetrar na cultura nipónica. É uma prática que oferece
técnicas corporais, mentais e espirituais. Muitos karatecas recusam-se a considerar a sua prática
de eleição como um desporto, mesmo se a forma de a ensinar se identifica exatamente com
ele. As artes marciais japonesas, do qual o karaté faz parte, saíram da cultura Samurai, que
marca o tempo da feudalidade japonesa que se estende dos séculos XII ao XIX. Na prática do
karaté encontramos um funcionamento muito hierarquizado, com iniciações, ritos, rituais e
mitos. As graduações fazem essa distinção, marcando um caminho de progressão. Para
compreender a especificidade da ritualidade do karaté, não se pode “economizar” na palavra
do treinador. É ele que conhece os termos técnicos japoneses, que os traduz em português
(no nosso caso), que assegura o respeito pelo local de treino, que dá um sentido à história das
artes marciais e, consequentemente, à cultura nipónica. O karaté é muitas vezes mistificado. A
magia que se opera depende muito dos treinadores, que não têm todos o mesmo carisma. É
preciso assistir aos treinos dos mestres japoneses para se sentir a força dos ritos, dos signos e
dos símbolos. Uma espécie de “rito religioso” se encontra na prática dos katas (formas que
representam a “memória” do karaté), que começam com uma saudação. Atualmente, retém-
se o aspeto visível das técnicas do corpo e a eficácia dos combates. Esquece-se que as técnicas
provêm de Okinawa, da China e, antes disso, da Índia, que se estudavam e eram transmitidas
nos mosteiros. O aspeto invisível das técnicas, que nos remetem para a interioridade do ser, é
preponderante e leva aos estados místicos. Os treinos de karaté são duros. E é na capacidade
individual de suportar a dor que se constrói a relação com o corpo.
O karaté ficou mais pobre, com o recente falecimento do mestre Raul Cerveira, com 76 anos.
Foi um dos fundadores da Federação Nacional de Karaté Portugal. Tive o privilégio de o
50
conhecer, de o entrevistar e de treinar com ele algumas vezes. Endereço as minhas sentidas
condolências aos familiares e amigos.
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O desporto-sistema e os seus valores
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o coronel Viktor Balck (considerado um dos pais do desporto sueco e defensor, desde a
primeira hora, do restabelecimento dos JO), de um notável neozelandês, Léonard Albert Cuff,
secretário da “New Zeland Amateur Athletic Association”, de um professor americano,
William Milligan Sloane (professor na Universidade de Princeton de Nova Jersey), de um
médico do Uruguai, o Dr. José Benjamín Zubiaur (reitor do Colégio Nacional do Uruguai), de
um aristocrata italiano, o conde Mario Luchesi-Palli (Vice Cônsul de Itália em Paris), de dois
ingleses, Charles Herbert (secretário da Amateur Athletic Association de Londres) e o Lorde
Ampthill (aristocrata), de um húngaro, Ference Kemény (diretor da Escola Real de Eger na
Hungria) e de um francês, Pierre de Coubertin (antigo secretário da USFSA), que arroga o
título de primeiro secretário do primeiro CIO. Nota-se uma importância da amizade franco-
russa relativamente à Inglaterra. Desde a sua promulgação, o CIO estabelece relações com o
“Bureau International de la Paix” (Gabinente Internacional Permanente para a Paz),
confirmando imediatamente a sua dimensão supranacional. Os primeiros jogos em Atenas em
1896 reafirmam as intenções do francês, que transformam progressivamente esta instituição
“democrática” num cenáculo aristocrático. A partir de 1896, Pierre de Coubertin dirige o CIO
com mãos de ferro em luvas de veludo, nomeadamente até 1925, data da sua demissão de
presidente do CIO, dando lugar ao seu sucessor, o conde Henri Baillet-Latour. Pierre de
Coubertin controlou o desenvolvimento das federações desportivas internacionais,
integrando-as progressivamente no CIO. Várias federações depois da Grande Guerra (1914-
1918) tentam adquirir a sua autonomia, contestando a liderança. A concorrência do desporto
feminino e do desporto da classe operária, subestimada antes da Guerra, deveria ser
controlada. Ela acaba por ameaçar o sistema olímpico, que decide reagir integrando-os, pois
foi incapaz de os eliminar. Sobre o plano dos valores, esta assimilação de federações autónomas
destabiliza um pouco mais a ideologia olímpica, que não hesita em atuar para salvar o que
poderia ser no plano simbólico. Sem chocar muito, os valores do desporto operário
ombreavam com os valores do desporto aristocrático. Nos anos 1930, a grande confusão reina.
Se o presidente do CIO está à frente de um sistema, ele não controla mais a sua evolução. O
desporto oferece, no âmbito dos valores, tudo e o seu contrário. A urgência de salvar esta
organização não governamental e o seu sistema de propaganda, incarnado principalmente nos
JO, faz esquecer o inicial ideal filosófico. Para evitar a implosão e/ou complots olímpico por
parte dos seus membros, o CIO mantém os critérios de recrutamento muito estritos. Os
principais membros representam as grandes potências ocidentais, a que se integram, entre as
duas Guerras, novas nações. Os países em via de independência não tinham nenhum direito
de pertencer à instituição olímpica. De forma geral, só as grandes potências reinam na Suíça,
53
fiéis ao princípio de Pierre de Coubertin, segundo o qual o CIO apoia-se prioritariamente nas
nações fortes. O desporto-sistema coloca em prática a visão de uma sociedade internacional
desigual. O CIO recruta os verdadeiros militantes, pronunciando a sua adesão de modo não
democrático, dado que nenhuma eleição é organizada. O CIO organiza uma instituição
internacional, fortemente hierarquizada, com as suas filiais, as suas organizações nacionais, as
suas publicações, as suas manifestações, as suas tradições e os seus ritos, que promove valores
que não são exatamente o seu reflexo.
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“O futebol no banco dos réus”
55
A importância do desporto de alto rendimento social
56
escolares; 3) promover a integração social e a tolerância, insistindo sobre o equilíbrio
psicológico e físico proporcionado pelo desporto; 4) ajudar na prevenção dos problemas de
violência. Em 2015, as Nações Unidas definiram 17 objetivos sustentáveis com uma agenda
ambiciosa, tendo em vista a erradicação da pobreza e o desenvolvimento económico, social e
ambiental à escala global até 2030. Ficou conhecida como Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável. Como atividade transversal a várias áreas sociais, o desporto
pode funcionar como uma ferramenta multidisciplinar de ensino e de promoção dos objetivos
sustentáveis. Com base na análise sociológica do desporto, tem sido nosso objetivo incentivar
a busca de conhecimentos, desenvolver a literacia e a capacidade de visão crítica sobre questões
contemporâneas, vista a centralidade do desporto na sociabilidade e no processo de inclusão
social. O interesse pelo desporto funciona como motivação para a permanência na escola e o
desenvolvimento de atividades pedagógicas que vão desenvolver a criatividade, o pensamento
crítico e a comunicação. Apesar de todo o retorno positivo que o desporto pode trazer para a
educação de jovens, em muitos casos a socialização em torno do desporto traz exemplos
negativos. A violência, o racismo e a homofobia são comportamentos presentes em grupos de
adeptos e expressos em recintos desportivos. Nesse cenário, ao invés de se afastar os jovens
do desporto, o que precisamos é trazer novas pessoas, novos olhares e novas ações ao desporto
para que os aspetos e comportamentos negativos possam ser deixados de lado e que o
desporto possa servir de ferramenta de inclusão e de transformação social.
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Relançar o desporto pós-desconfinamento
A crise sanitária ligada à Covid-19 colocou os cidadãos em casa e os países ficaram “fechados”.
Para além das incertezas que esta situação excecional provocou (e provoca), esta crise oferece
também um tempo de reflexão sobre a sociedade que queremos, coletivamente, construir
depois desta crise. O desporto, nas suas múltiplas dimensões (prática desportiva, espetáculo
desportivo, atividade económica), não se pode afastar deste questionamento. Algumas
preconizações (a curto, médio e longo prazo) poderiam ser tomadas em conta quer a nível
nacional, quer a nível europeu:
1. A curto prazo: relançar o desporto de forma partilhada e solidária. Na Europa o desporto
pesa 2,12% do PIB europeu e representa 2,72% de empregos. Neste sentido, é essencial
que o setor seja considerado como um elemento da retoma económica e que possa
beneficiar de todos os apoios colocados em prática para fazer face a esta pandemia. A nível
nacional: os atores desportivos devem beneficiar das medidas urgentes colocadas à
disposição; estabelecer um plano de relançamento do desporto numa perspetiva de longo
prazo (via fiscal, por exemplo); favorecer a convergência dos dispositivos de apoio;
assegurar uma comunicação fluída e acompanhar os atores, por forma a responder à grande
heterogeneidade de situações (associações desportivas, empresas privadas, etc.). A nível
europeu: reorientar alguns apoios financeiros, nomeadamente dos fundos estruturais de
investimentos europeus (FSE, FEDER), para ações que visem a promoção de bem-estar
dos cidadãos, pelo desporto e exercício físico.
2. A médio prazo: apoiar o desporto durante a fase de desconfinamento. O desporto
representa um importante instrumento de coesão social, suscetível de facilitar novas formas
de viver coletivamente e de acompanhar o processo de saída da crise. A nível nacional:
adaptar materiais de proteção às especificidades das disciplinas desportivas; propor, no
quadro escolar, um programa de educação e de higiene relativamente aos gestos de
segurança apropriados, adaptado segundo as idades (as associações desportivas deveriam
ser chamadas para desempenhar essas funções); encorajar a digitalização e a
58
individualização da oferta de serviços desportivos propostos pelos clubes, federações, e
privados; coordenar os calendários desportivos, evitando uma concentração de atividades
e locais de prática. A nível europeu: encorajar as boas práticas no âmbito do
desenvolvimento de ferramentas pedagógicas, mobilizando o desporto e a atividade física
na Escola; criar novas oportunidades de financiamento e apoiar as inovações técnicas e
sociais associadas à atividade física e desporto.
3. A longo prazo: promover o desporto na sociedade. A nível nacional: encorajar o desporto
para todos, nomeadamente para os mais frágeis socialmente; valorizar o estatuto do
voluntário (colocar em prática contratos de trabalho associativos, permitindo aos clubes
remunerar os voluntários com valores definidos e exonerados de impostos); desenvolver
ferramentas informáticas (as universidades e os politécnicos poderiam auxiliar); transformar
os espaços urbanos, para fazer das cidades, escolas, empresas, etc. ambientes de vida ativos,
combatendo o sedentarismo e a falta de exercício físico.
59
A prática desportiva e a Escola
Será que o atraso que se verifica na prática desportiva em Portugal é da Escola? As opiniões
valem o que valem. Alguns comentadores, dirigentes e políticos dizem que sim. Outros
respondem que não. A verdade é que muitos ignoram a realidade da escola (pública e privada).
A existência de alguma confusão sobre o que é o desporto e o que é a educação física também
não abona em nada. Sabemos que a escola, enquanto espaço de aprendizagem, pode dar um
contributo para a elevação da prática desportiva, mas não resolve todos os problemas
existentes. Não lhe cabe a ela formar “campeões” e “atletas”. Todavia, a prática desportiva
escolar pode dar um contributo, qualificando os jovens. O esforço tem que vir também dos
clubes desportivos. Mas muitos não conseguem atrair a juventude, que organizam o seu tempo
livre de outra forma. Os espaços de sociabilidade, os hábitos, os consumos e os gostos culturais
são outros. Determinados dirigentes de clubes precisam de compreender isso e deveriam se
adaptar-se novas realidades. Neste mundo globalizado, há práticas desportivas que não têm
interesse por parte dos jovens. Os estudos nacionais e internacionais, relativamente aos hábitos
desportivos, demonstram que determinadas variáveis (idade, género, escolaridade, estatuto
socioprofissional) são estruturantes da prática desportiva. Em termos tendenciais, podemos
dizer que: 1) os homens praticam mais desporto do que as mulheres; 2) os jovens praticam
mais desporto do que os mais velhos; 3) os que têm um nível de escolaridade mais elevado do
que os que têm um nível de escolaridade mais baixo; 4) os que detêm um estatuto
socioprofissional mais elevado do que os que detêm um estatuto socioprofissional inferior. O
argumento da “falta de tempo” entre os não praticantes, como a principal razão para não
praticarem uma modalidade desportiva, merece um estudo aprofundado em Portugal. Os que
dizem não gostar de desporto permite reforçar a ideia de que existe uma deficiente aculturação
dos valores da cultura físico-desportiva. Quando olhamos para os dados do Eurobarómetro
do Desporto e da Atividade Física (2017), verifica-se que participação desportiva portuguesa
é baixa, quando comparada com outros países da União Europeia. Em 2009, a percentagem
de portugueses que praticava exercício ou desporto regularmente era de 9%, diminuiu para
60
8% em 2013 e para 5% em 2017. O número dos que raramente ou nunca praticam estas
atividades (nos tempos de lazer) subiu de 66%, em 2009, para 72%, em 2013, e para 74%, em
2017. Estudos recentes referem também que muitos adolescentes não praticam exercício físico
suficiente. Portugal regista uma percentagem de 84,2% (em adolescentes, de ambos os sexos,
com idades compreendidas entre 11 e 17 anos). Ocupa, assim, o 74.º lugar da tabela de
classificação dos 146 países avaliados pela OMS (Organização Mundial de Saúde) entre 2001
e 2016. Dá que pensar…
61
O ensino da Educação Física e Desporto através das vídeo-
aulas: desafios e oportunidades
62
A procura do “ki”
Os japoneses utilizam muitas palavras e expressões compostas com a palavra “ki”. Alguns
exemplos: “está agradável”, referem que “o ki mantém-se bom”; “está bom tempo”, dizem “o
ki do céu é bom”; “ter força de caráter”, sublinham “ter o ki forte”. “Ele é uma evidência, que
escapa a uma reflexão especulativa. O ki é como o ar”, como refere o sociólogo japonês Kenji
Tokistu, no seu livro “La recherche du ki dans le combat” (2004, p. 8). Encontra-se
omnipresente na vida quotidiana nipónica, mas, se lhes perguntarmos, muitos não sabem
explicar claramente o que significa. O “ki” é uma forma linguística aplicada a um fenómeno
energético universal. Para um espírito racional, é difícil admitir os fenómenos do “ki” e a sua
existência. Não se vê. E se não se vê como é que é possível ter critérios objetivos para
sensações subjetivas? O único instrumento é o corpo humano. E este difere nos indivíduos.
Assim sendo, o método científico (com os critérios de cientificidade proclamados por Popper)
não se aplica aqui. Comecei a praticar karaté, estilo Shotokai, com 14 ou 15 anos de idade.
Mantive-me nesta prática, com algumas interrupções, até aos 38 anos de idade. Conheci vários
mestres/instrutores ou, numa linguagem mais desportiva, treinadores. Questões profissionais,
levaram-se a afastar progressivamente do exercício do combate. Durante muitos anos ouvi
falar do “ki” e da sua importância para se praticar uma arte de combate com eficácia. E isso
requer uma atitude de abertura intelectual. Aquele que se obstina a negar a existência do “ki”
não poderá explorar este domínio. E sabemos o quanto ele é importante na medicina chinesa,
que procura curar o corpo físico a partir do corpo energético e vice-versa. O homem concentra
em si múltiplas tensões: angústias, invejas, desejos, ódios… estas tensões são uma causa de
stresse, que amplifica o efeito de poluição interior. O que se passa no espírito reflete-se no
corpo e as tensões mentais tornam-se as causas de problemas somáticos. Muitos mestres de
artes marciais e desportos de combate recomendam exercícios para a livre circulação do “ki”
no corpo. O estado ideal é que ele circule livremente, sem nenhum obstáculo. O “ki” positivo
é assimilado a uma energia criadora, de nascimento e de vida. O “ki” negativo é a energia da
destruição, da deterioração, da morte. O “ki” negativo é associado ao mal e o “ki” positivo é
63
associado ao bem. Na elaboração do conceito de “ki”, os indivíduos dão-lhe um sentido. Mas,
esta energia, que faz parte do Universo, não é boa nem má.
64
A paixão e o fascínio da pesca
Descobri a alegria e o fascínio da pesca lúdica muito cedo. Era um jovem de 13 ou 14 anos.
Nunca me interessei pela pesca de mar. Foi sempre de barragem ou de lagoa. O olhar para a
água e a bóia a mexer (quando mexia) é algo que faz parte da minha juventude e memória.
Poucos peixes, sobretudo o chichito, arrepiavam a superfície. O ano passado fui a uma lagoa.
Voltei a deitar a linha à água. Não foi necessário fazer o warm-up, garantindo que todos os
músculos estão quentes e que as articulações poderão ser solicitadas. Deveria tê-lo feito, pois
uma pequena e teimosa carpa escapou-me. Não fiquei frustrado, mas sim feliz por estar a agir,
mantendo os olhos fixos na água. O prazer da pesca para mim não é apanhar peixes, mas de
ver os círculos de ondas suaves e o lançar da linha. O fascínio continua, mas a falta de tempo
(uma sociológica desculpa esfarrapada) roubou-me essa alegria. Setembro é um mês bom e
generoso no calendário de um pescador. Mas eu prefiro os meses de julho e agosto, secos e
tórridos, sobretudo na região do Alentejo. Os fins de tarde mais frescos são uma boa hipótese
para a pescaria. Pela manhã, cedo, também. Escolher o melhor local não é uma decisão fácil.
Mas quando escolhido, é tudo uma questão de vida ou de morte para lançar o anzol à água. A
minha dificuldade é sempre o de colocar o peso adequado na linha, por forma a que a bóia
não vá ao fundo. O isco é, quase sempre, feito de pedaços de minhoca. É um isco atraente e
apetitoso para o chichito. Considero-me um pescador paciente. Sou capaz de ficar horas
sentado, agarrado à cana, na esperança de um qualquer peixe abocanhar o isco. Irrita-me
quando os vejo a saltar, em acrobacias aquáticas, perto de mim. Algumas espécies têm esse
hábito e prazer. É o caso da carpa, por exemplo. As trutas, os barbos e os salmões também
são saltadores. Para além de ser um bom anti-stresse, a vantagem da pesca é nunca se saber
como ela se irá desenrolar. É tudo uma questão de sorte. É preciso lidar com o vento, o estado
da água, a proximidade de outros pescadores, a mania dos peixes, o barulho, entre outros
aspetos. Já apanhei muitos peixes. O cheiro deles nas minhas mãos não me incomoda. Há dias
expliquei a uma pessoa amiga a paixão e o fascínio da pesca. Não sei se ficou convencida, até
porque a pesca desportiva tem imensas regras. No site do ICNF – Instituto da Conservação
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da Natureza e das Florestas é possível encontrar muita informação para o seu exercício. Votos
de boa pescaria.
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Análise sociológica de práticas de combate dual em Portugal:
estudo de caso dos praticantes avançados do judo e do
aikido
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O impacto da COVID-19 no desporto
O planeta desporto foi impactado pelo coronavírus e pelas medidas de confinamento tomadas
em vários países do mundo. O desporto “business” sofreu particularmente pelo adiamento e
a anulação de várias competições a nível nacional e internacional. Com o adiamento dos Jogos
Olímpicos para 2021 toda a estrutura abanou. O jornal económico japonês, Nikkei, deplorava
um custo de 2,5 milhões de euros para a economia japonesa e os constrangimentos eram
múltiplos. Mais de 11 milhões de euros tinham sido investidos pelo Sol Levante para os Jogos.
Como dano colateral, Paris 2024 também é igualmente tocado pelo coronavírus. Eventos
desportivos muito esperados, como o Roland-Garros, foram adiados para finais de setembro
de 2020, trocando as voltas ao calendário. A Volta a França, que continua otimista, poderá ser
ultrapassada pela realidade. Prevista de 27 de junho a 19 de julho, irá para as estradas de 29 de
agosto a 20 de setembro. O fato de se anular ou adiar estes eventos desportivos coloca um
problema maior. Desaparece o brilho principal e as fontes de receitas das competições. Os
media também são prejudicados. O coronavírus não cessará de nos fazer pensar e de colocar
questões. Entretanto, e há falta de melhor, mais vale aproveitar o desporto sem espectadores
do que não haver evento nenhum. Em Portugal, algumas federações desportivas já vieram
dizer que as ajudas do Estado são muito escassas e solicitam medidas concretas. De facto,
reclamam apoios para a sobrevivência dos clubes e associações desportivas, salvaguardando
os postos de trabalho e a continuidade da atividade desportiva dos jovens. A elaboração de
um plano de apoio à atividade associativa é preciso. Os clubes e as associações desportivas são
centrais na vida de milhares de crianças e jovens e dos voluntários que os(as) fazem viver.
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Sílvio Lima (1904-1993): contributos para uma análise
filosófica e sociológica do desporto
Sílvio Vieira Mendes Lima (Coimbra, 5/02/1904 – 6/01/1993), mais conhecido por Sílvio
Lima, foi um investigador e docente universitário de renome. Começou a sua carreira de
docente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1929, tendo sido
interrompida em maio de 1935 pelo reforço repressivo do Estado Novo. Voltou a ensinar em
1942. Ensaísta, filósofo, psicólogo e epistemólogo, deu um contributo relevante no contexto
cultural português. Para aquilo que nos interessa, importa destacar que escreveu três livros
sobre o desporto: Ensaios sobre o Desporto (1937); Desporto, Jogo e Arte (1938) e
Desportismo profissional. Desporto, trabalho e profissão (1939). Outros textos sobre a
temática viram a luz do dia, através do jornal portuense “O Primeiro de Janeiro” e o “Diário de
Lisboa”. João Correia Boaventura (1924-2013), que teve funções dirigentes na Direção-Geral dos Desportos
(extinta em 1993), e que tive o privilégio de conhecer, escreveu que “o Prof. Sílvio Lima foi, neste século [XX],
o primeiro e único catedrático que desceu à análise filosófica e sociológica do desporto, dando-lhe a roupagem
digna de que já merecia”.
No primeiro livro “Ensaios sobre o Desporto” (1937), Sílvio Lima escreve contra o
regulamento de educação física dos liceus, publicado em 1932 (Diário do Governo n.º
90/1932, Série I, de 16/04), onde se condenavam e proibiam os jogos. Neste decreto-lei n.º
21: 100, do então Ministério da Instrução Pública, considerava-se que os desportos estavam
claramente fora do “génio do povo português” e que estavam na “presença da decadência
manifesta da espécie humana”, fazendo referência que determinados médicos tinham se
manifestado publicamente “contra o abuso da mania desportiva definindo-a como uma das
causas mais importantes do definhamento do nosso povo”. Na perspetiva deste académico, o
desporto tem uma função educativa e é um “dos agentes mais poderosos da democratização
social”. Exorta-nos a “amar o desporto, mas com clarividência séria e militante”. Com poucas
páginas, este livro contempla 7 ensaios, cujos títulos aqui transcrevemos: desporto e sociedade
(1); desporto e trabalho (2); a mulher portuguesa e o desporto (3); desportismo, espectarismo
70
e atletismo (4); a alma do desporto (5); carta a uma senhora que deseja saber nadar (6); o
desporto, o medo e El-Rei D. Duarte (7).
Com o êxito do primeiro livro, escreve um segundo sobre a temática: “Desporto, jogo e arte”
(1938). Nele, Sílvio Lima procura analisar as relações da arte com o jogo. Integra 6 ensaios: a
atitude moral, a atitude científica e a atitude desportiva (1); arte e jogo, jogo e arte (2); desporto,
guerra e pacifismo (3); cristianismo físico, cristianismo moral (4); desporto e ascese (5); o
desporto e a experiência na Idade Média (6). De forma resumida, podemos referir que o autor
continua a encarar o desporto como uma livre atividade humana, que se relaciona com outras
atividades (trabalho, arte, ciência, moral, religião, entre outras).
Sílvio Lima escreveu um terceiro livro sobre desporto: “Desportismo profissional: desporto,
trabalho e profissão (1939). Nesta obra procura analisar o jogo desportivo nas suas relações
com o trabalho e a vida profissional. Para Lima, o assunto não é “frívolo”. Se o desporto se
encontrava assente em estudos médico-higiénicos, faltava analisá-lo “filosoficamente”.
Escreve, no Prefácio, que “o desporto é uma questão grave (grave, quer dizer,
etimologicamente, pesada) que só parece leve aos de cabeça leve como o sabugo e o algodão”.
Coloca a questão se o desporto pode ser considerado uma profissão, se se pode tornar, caso
não o seja, e se é possível utilizar-se a fórmula “desportismo profissional”. A sua opinião é
clara: o desporto não é uma profissão, mas pode-se tornar. Ele é uma “nobre superfluidade”.
Assim sendo, na sua opinião, a fórmula é “absurda, contraditória e imoral”. Vai mais longe,
referindo que é a “ruína do próprio desporto; socialmente, um perigo ético”. Deveria
prevalecer o amadorismo. Não obstante, Sílvio Lima considera que o desporto apresenta uma
mais valia do ponto de vista económico e serve para corrigir os “vícios físico-mentais” da
profissão, num mundo cada vez mais moderno. A prosa de Sílvio Lima resume-se a considerar
o desporto como uma “magnífica escola”.
Estes três livros, que podem ser consultados na Biblioteca Nacional de Portugal, por exemplo,
não devem ser esquecidos na poeira do tempo. Sugerimos que os retire das prateleiras, os leia
atentamente e faça o seu próprio juízo sobre como interpretar o desporto.
71
As codificações sociológicas das práticas desportivas
As observações (de 1915 a 1918) de Bronislaw Malinowski (1884-1942), etnólogo polaco, nas
Ilhas Trobiand juntam-se às análises antropológicas realizadas por Marcel Mauss (1872-1950),
sobrinho de Émile Durkheim (1858-1917). Elas revelam que as trocas nas sociedades
tradicionais se organizam segundo um contrato geral e são, permanentemente, submetidos a
uma tripla obrigação: “dar-receber-devolver”. É o dom e contra-dom de que fala Marcel
Mauss. As partes envolvidas no contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que se
enfrentam e se opõem em grupo ou por intermédio dos seus chefes, ou pelos dois ao mesmo
tempo. O que eles trocam são delicadezas, festins, ritos, danças, etc. Estas prestações e
contraprestações, aparentemente voluntárias pelas oferendas, são, no fundo, obrigatórias.
Os sociólogos não estiveram envolvidos nas operações de codificações das práticas
desportivas. Eles limitam-se a registar essas práticas nas sociedades, mas as operações de
recenseamento não são apenas simples constatações de realidades pré-existentes, prontas a ser
“contadas” como tal. A descrição da realidade social é sempre prescritiva, sobretudo quando
ela parte do Estado ou das entidades delegadas, com a responsabilidade de gerir essas práticas.
Podemos então perguntar qual é a autonomia das práticas desportivas? Evocando o trabalho
de codificação, poderemos pensar que aceitamos uma definição do tipo construtivista, isto é,
a de que o desporto se reduz a uma construção, multiforme e indefinida, de uma atividade que
se apoia no uso agonístico-lúdico. O desporto seria, então, uma realidade exterior das
interpretações dos dirigentes, dos treinadores e dos praticantes. Apoiados em Malinowski e
Mauss, recusamos esta ideia. O desporto é uma invenção cultural. As práticas desportivas
mobilizam o corpo dos indivíduos que, em função do contexto histórico e social, e do trabalho
de codificação realizado pelas entidades envolvidas, acumulam significados mais abertos e mais
diversos.
72
Comparação dos sistemas desportivos contemporâneos nas
suas relações com outros campos e espaços sociais
74
Será que o fair-play é a essência do desporto?
Eric Arthur Blair, conhecido pelo pseudónimo Georges Orwell (1903-1950), escritor,
jornalista e ensaísta inglês, disse que o “verdadeiro desporto não tem nada a ver com o fair-
play. É cheio de ódio, de invejas, de não respeito das regras e do prazer sádico em olhar para a
violência. Por outras palavras, é a guerra sem tiros”. É num artigo publicado na revista inglesa
“Tribune”, de 14 de dezembro de 1945, que Georges Orwell mostra, com uma força
devastadora, o caráter falacioso dos discursos sobre a nobreza do desporto. “Eu fico sempre
estupefacto ao ouvir as pessoas dizerem que o desporto favorece a amizade entre os povos
(…). Ao nível internacional, o desporto é abertamente um simulacro de guerra”. Estas palavras
têm que ser colocadas no seu contexto histórico, mas, de facto, algumas verdades
antropológicas essenciais não devem ser esquecidas. Por um lado, o desporto tem uma relação
nativa com o confronto. Por outro lado, tem (ou teve) uma função social de preparação para
a guerra, estimulando e fortificando o corpo para o combate, ou seja, o tal “rebronzeamento
da raça”, nas palavras de Pierre de Coubertin. A esta função junta-se a necessidade de criar os
laços entre os membros de uma comunidade, pela exaltação de uma identidade coletiva. Num
outro texto, “Massacres por uma bagatela”, publicado na revista “Quel corps ?”, n.º 30-31,
junho de 1986, o filósofo Patrick Tort lembra que o “desporto tem duas lógicas: uma lógica
de guerra e uma lógica de paz, e que a prática moderna do desporto não conseguiu evoluir no
sentido da paz, apesar das declarações públicas mais universalistas e aparentemente mais
afastadas do nacionalismo. “O desporto é uma guerra em miniatura”, reitera Michel Caillat,
sua obra “Sport : l’imposture abolue” (2014) . A transgressão é a regra, a falta inteligente é,
muitas vezes, saudada. Ao contrário do que disse o filósofo Bernard Jeu (1929-1991), no seu
livro “Le sport, la mort, la violence” (1975), a morte não é apenas simbólica e a violência
limitada ou codificada. Ela pode ser real, como já aconteceu várias vezes. O futebol, o desporto
mais popular, tem atingido por algumas catástrofes. Os estádios são locais propícios para a
expressão de agressividade, de frustração e de afirmação identitária. Num universo
concorrencial, o atleta, preparado física e mentalmente, deve estar motivado e ser dominador.
75
Ele cultiva o “eu” (narcísico) e fixa os seus pensamentos num objetivo: ganhar. A violência,
para muitos autores, é a essência do desporto e não o fair-play, isto é, o respeito pelas regras e
pelo adversário.
76
O dinheiro no desporto: amadorismo e profissionalismo
A questão é legítima e qualquer um de nós poderá colocá-la: será que o dinheiro é um problema
no desporto? Nas práticas desportivas como o futebol, o basquetebol, o ténis, o golfe, as
corridas de automóveis, o ciclismo, entre outras, podemos pensar que sim. Quanto maior for
o cálculo económico desta atividade humana, podemos dizer que maior é o risco de fazer
desaparecer a cultura desportiva, caraterizada pela incerteza fundamental produzida pela
competição entre iguais e pela lógica de identificação que liga uma equipa ou um clube a um
determinado território. A dopagem, a corrupção e a violência não são fenómenos novos no
desporto. No entanto, eles agravaram-se nas últimas décadas. O olimpismo constrói-se no
final do século XIX contra o nascente profissionalismo e contra as derivas pressentidas do
desporto-espetáculo. Ora, o dinheiro permite engendrar uma vantagem, não permitindo
organizar a competição entre dois atletas iguais: o profissional recebe um rendimento que lhe
permite treinar, enquanto o amador trabalha para ganhar a vida ou ocupa-se de outras
atividades. A presença do dinheiro choca a moral aristocrática desse tempo, que considera o
desporto como uma atividade desinteressada e de alto valor educativo. O olimpismo pretende
construir, assim, uma contra-sociedade, que seria, no fundo, a imagem idealizada da sociedade
moderna. Na realidade, ele coloca em prática um sistema desportivo onde a igualdade é entre
os melhores, traduzindo-se pelo caráter socialmente exclusivo dos clubes e as interdições feitas
aos operários de entrar nas associações desportivas. E isso leva à separação do desporto
amador e do desporto profissional. Esta filosofia é sustentada ao mesmo tempo que a
democratização do desporto ao longo do século XX, pela intervenção, em nome de diversas
conceções de interesse geral, dos Estados, dos municípios ou das igrejas. A partir dos anos
1930, e depois a Guerra Fria, a competição política entre os totalitarismos e as democracias,
assim como a vontade de colocar em evidência a grandeza nacional graças ao desporto,
concorre para o desenvolvimento do desporto-espetáculo e da profissionalização dos seus
atores, esbatendo as fronteiras que parecem evidentes entre amadorismo e profissionalismo.
77
A competição é “natural”
A Sociologia tem tido grandes avanços nas últimas décadas, nomeadamente pela ênfase
crescente da análise histórica. Isso não significa uma mera aplicação da perspetiva sociológica
ao passado, mas, sobretudo, uma forma de contribuir para uma melhor compreensão das
instituições sociais do presente. Recuemos então à década de 1990. Numa entrevista dada um
pouco antes da sua morte, numa espécie de balanço científico, o conhecido biologista francês
Henri Laborit (1914-1995), que dirigiu a revista “Agressologie”, de 1958 a 1983, declarou:
“para mim, a competição é obscena. Ela é a origem da infelicidade do homem” (Sport et Vie,
novembro de 1994). Omnipresente em todos os domínios de atividade (económica, política,
religiosa, educativa, desportiva, artística, etc.), a competição é considerada como o
comportamento normal das relações humanas. Tornou-se uma espécie de inconsciente social.
Como se julga “natural”, e que se aceita como o motor necessário e inelutável da ação,
promove a não colocação de questões sobre a sociedade e encerra a possibilidade de se
imaginar o que pode significar um mundo sem competição. Como alertava o sociólogo Émile
Durkheim (1958-1917), os seres humanos veem-se a si próprios como indivíduos livres nas
opções, mas, na realidade, os seus comportamentos são determinados pelo mundo social. A
perspetiva competitiva é inerente ao desporto, mas o imperialismo da competição não é
evidente e não é universal. O espírito de competição é determinado por um sistema social.
Conscientemente ou não, ao pretender-se que a competição é inata, os desportistas, praticantes
e espectadores, culturalizam a natureza. Eles arrogam a competição social para justificar um
dado estado cultural. A competição desportiva é uma injunção social, culturalmente
interiorizada pelos seres humanos. No nossa sociedade, homens e mulheres devem se entregar
aos “jogos” concorrenciais e sujeitarem-se a uma classificação para beneficiar da gratidão geral.
Com a mania do número e do valor associado, a competição impõe-se como modelo
dominante de legitimação do sucesso e até como ética de vida. Apesar da sua cruel seleção, e
as suas implacáveis consequências, a competição é julgada por muitos como sã e formadora.
Nada deve impedir a “corrida” dos melhores e os incessantes confrontos. A máxima “o
78
essencial é participar”, atribuída a Pierre de Coubertin, é uma ilusão. No livro “La Concurrence
et la mort” (La Découverte, 1995), o jornalista Philippe Thureau-Dangin”, ex-diretor
do “Courrier International” e ex-presidente da “Télérama”, refere que “quando o principal
artesão do olimpismo moderno afirma que ‘o essencial é participar’, não se pode ver neste
slogan uma consolação para os vencidos. Trata-se de empurrar cada um de nós para entrar no
jogo da concorrência (ou da competição desportiva)”. Será, então, que uma sociedade sem
competição é irrealista? Para que serve ser mais forte do que o outro? O que nos traz de mais
valia bater o recorde do mundo? Uma sociedade que propõe apenas a competição como a
única moral de vida é uma sociedade doente.
79
Desporto e lazer: um espelho das sociedades
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O desporto e as empresas
Hoje em dia, é banal verificar-se a aproximação entre a prática desportiva e as empresas. Mas
nem sempre foi assim. Com a profissionalização desportiva, houve uma aproximação das
organizações desportivas com as lógicas empresariais (Barbusse, 2009). Podemos situar este
fenómeno, consoante os países, a partir da década de 1980. Ao caraterizarmos a
instrumentalização do desporto por determinadas empresas, podemos constatar que ele serve,
internamente, em quatro domínios que pertencem à função de recursos humanos: o
recrutamento, a formação, a comunicação interna e o desenvolvimento social. O desporto,
enquanto “ferramenta” e modelo, é visto como uma forma de mobilização do pessoal e um
meio de melhorar a sua performance económica. No entanto, um exame detalhado sobre a
“oferta” permite verificar que a instrumentalização do desporto pelas empresas é muito frágil.
Algumas empresas podem “oferecer” aos seus trabalhadores a prática regular de atividades
físicas e desportivas ou podem colocar à disposição espaços para o efeito (no seio da empresa
ou fora dela, recorrendo a parcerias com clubes ou ginásios). A prática desportiva permite
manter o corpo em forma e de ser mais resistente ao esforço, logo para o trabalho. Ele pode
ser também “prescrito” numa perspetiva de gestão do stresse. Tanto no plano físico, como
mental, o desporto é considerado como uma fonte de equilíbrio pessoal, traduzido na fórmula
latina “mens sana in corpore sano” (mente sã num corpo são), atribuída ao poeta romano
Juvenal. Para além das virtudes físicas e mentais, é preciso não esquecer que existem as virtudes
simbólicas. Ao examinar o caso da Adidas, o sociólogo Julien Pierre (2006) revela que a oferta
desportiva é interpretada pelos trabalhadores, em particular os dirigentes, como uma vantagem
social que funciona segundo um processo de “dom coercitivo”. O desporto na empresa
permite, de facto, aumentar a coesão interna, com a criação de redes informais, de identificação
comum, etc. Não existem em Portugal muitos estudos sobre a importância do desporto nas
empresas.
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Referências bibliográficas:
Barbusse, B. (2009). Entre sport et entreprise, une attirance réciproque. L’expansion management
review, 134(3), 10-19.
Pierre, J. (2006). Le recours au sport chez Adidas. Effets des discours et des pratiques
managériales sur l’implication des cadres. STAPS, 74(4), 69-74.
82
O alpinismo: chegar ao cume… da sua forma
O alpinismo é uma atividade desportiva que exige uma boa condição física e conhecimentos
técnicos. A ascensão em montanha, picos e rochas escarpadas ou similares implica uma
rigorosa preparação e o respeito absoluto das recomendações de segurança, por forma a evitar
acidentes. A imprensa escrita tem por hábito informar que são muitas as pessoas que são
socorridas em montanhas, muitas vezes pela falta de preparação. Surgido no século XIX, sob
influência de turistas britânicos, o alpinismo evoluiu bastante, integrando outras práticas
desportivas: a caminhada, a escalada em paredes rochosas ou de gelo, ski fora da pista, entre
outras práticas. Cada uma destas práticas desportivas exige um treino físico, material específico
e, claro, conhecimentos técnicos específicos. O alpinismo é uma prática que faz trabalhar o
corpo e a cabeça. A caminhada pode ser benéfica para o sistema cardiovascular, a luta contra
a diabetes, o excesso de peso e a prevenção da osteoporose. A escalada, outro elemento
essencial do alpinismo, solicita os músculos, em particular os abdominais, o sistema
cardiovascular, mas também a “souplesse” das articulações e o sentido de equilíbrio. Os
benefícios do alpinismo não se reduzem apenas aos aspetos físicos. Ele contribui, igualmente,
para o “desenvolvimento” do sangue-frio, a perseverança, a resistência ao sofrimento físico, a
entreajuda e o espírito de equipa. No caso dos adolescentes, pode contribuir para o sentido da
responsabilidade, na capacitação da avaliação do risco e uma maior confiança em si mesmo.
Sem as quedas, que podem ser mortais, o alpinismo pode comportar alguns riscos: o mal das
montanhas pode surgir a partir dos 2.000 metros de altitude. É devido à baixa quantidade de
oxigénio disponível na atmosfera. Traduz-se por dores de cabeça, vertigens, fatiga exagerada
e sufocamento. A descida para baixa altitude torna-se urgente. As entorses surgem
frequentemente nos terrenos acidentados e quando o organismo está cansado. Os músculos
das pernas são solicitados, podendo haver lesões. Os pés a pelar podem ser devido a um
calçado mal-adaptado. E, sem esquecer, as queimaduras solares, sobretudo quando as nuvens
escondem o ardor do sol.
83
Quando se olha para as estatísticas sobre as práticas desportivas em Portugal, verifica-se que
juntaram campismo e montanhismo. Campismo não é uma prática desportiva.
84
O desporto profissional americano
85
clubes e dos estádios são os mesmos. Se é eficaz do ponto de vista económico, o modelo
americano não poderá ser transporto, devido às questões culturais e jurídicas, integralmente
na Europa.
86
O desporto é educativo
Na sua obra Le sport contre l’Éducation physique (1925), Georges Hébert, oficial da marinha,
mostra-se um tanto ou quanto pessimista. Com discernimento, ele nota alguns dos perigos
físicos, morais e sociais do desporto. No entanto, a sua lucidez não o leva a colocar em causa
a lógica da sua prática. Noventa e cinco anos depois, as interrogações do pai do método dito
natural, método que visa o aperfeiçoamento moral e físico do indivíduo através da prática
desportiva, continuam atuais. Em fevereiro de 2013, Valérie Fourneyron, ministra francesa do
desporto, da juventude, da educação popular e da vida associativa, refere que “é preciso
preservar o desporto, a nossa paixão, a nossa ferramenta de educação, dos erros e dos males”.
Afirmar que o desporto é um vetor essencial da formação física, e um absoluto meio de
educação, que modela a vontade e a inteligência, é permitir uma aparência de verdade
demonstrada. Desde a sua origem, a prática desportiva é qualificada de inestimável
instrumento de adestramento do animal humano e os treinadores são referenciados por terem
uma “alma de domadores”. Mais do que nos bancos de escola, é nos estádios que se adquire
as virtudes indispensáveis: vigor, resistência, gosto pelo esforço, audácia, abnegação, sangue-
frio, ordem, disciplina, docilidade, fair-play, modéstia, simplicidade, altruísmo, indulgência.
Retocado, aqui ou ali, pelos escritores e intelectuais, este discurso convence todos os sufrágios.
Num artigo no Monde de l’Éducation, datado de junho de 1998, o conhecido filósofo francês
Michel Serres (1930-2019) convida-nos para uma estranha lição: “nada pode resistir ao treino,
cuja ascese dos gestos poucos naturais promove as virtudes necessárias de concentração, de
coragem, de paciência, de domínio da angústia (…). O atleta que faz batota ou mente não
encontra nem inventa, tal como o atleta de salto em altura não mente nem faz batota com a
barra. Esta regra de ferro vira as costas a todos os usos das sociedades profissionais, políticas,
mediáticas, universitárias que coroam os bandidos”. O tema recorrente do caráter educativo
do desporto assenta, muitas vezes, num positivismo cultural que considera que a lei natural da
organização das sociedades e das relações humanas é a competição. De referir também que a
87
educação física e o desporto são duas realidades inicialmente distintas, que se vão interligar
lentamente quando se concebe as “funções educativas” do desporto.
88
A televisão e o desporto
89
acionistas das cadeias de televisão viram-se para o desporto. O número de eventos desportivos
internacionais também aumentou. A sociedade contemporânea tornou-se uma civilização de
imagens. A mundialização das relações financeiras entre o desporto e a televisão decorrem
também do decréscimo do tempo de trabalho, do aumento dos lazeres, do aumento do
consumo desportivo, onde se inclui a TV, da progressão das despesas em publicidade de apoio
desportivo e do aumento dos direitos de retransmissão na maior parte dos países da economia
mundial.
Na Europa, os modos de consumo atuais do desporto são o resultado de uma desregulação
administrativa que levou ao abandono do monopólio público sobre as emissões de televisão.
A modificação legislativa conjugou-se com a revolução tecnológica e do desenvolvimento
intenso da concorrência no mercado, que evoluiu no sentido de uma cartelização. O
agrupamento das cadeias na mesma organização criou um cartel de procura, encarregados de
negociar os direitos com múltiplos organizadores de espetáculos desportivos, provocando
uma descida de preços. De referir, igualmente, que a forte penetração da televisão no desporto
profissional tem dois impactos profundos: 1) ela transforma o seu modelo de financiamento;
2) cria um desequilíbrio financeiro entre os clubes, que, por sua vez, têm desequilíbrio
desportivo. Estamos perante um círculo vicioso.
90
Os “outsiders” desportivos
Howard Saul Becker, sociólogo americano, escreveu um livro muito interessante sobre os
“Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio”, em 1963, fornecendo bases teóricas importantes
para a teoria da rotulagem. O termo “desvio”, na sociologia americana, tem um sentido mais
abrangente do que delinquência e dos comportamentos que transgridem as normas aceites por
um determinado grupo social ou por uma determinada instituição. Sabemos que todos os
grupos sociais instituem normas e esforçam-se por as aplicar, pelo menos em determinados
momentos ou em certas circunstâncias. As normas sociais definem as situações e os modos
de comportamentos apropriados: algumas ações são prescritas (o que é “bom”) e outras são
interditas (o que é “mau”). Quando um indivíduo transgride uma norma em vigor, ele pode
ser visto como alguém particular, em que não se pode confiar. O indivíduo, na perspetiva de
Becker, pode ser considerado “estrangeiro” (outsider) ao grupo. Mas o indivíduo que é
etiquetado assim pode ver as coisas de uma outra forma. Ele pode não aceitar a norma segundo
a qual o julgam e pode recusar ou negar a competência ou a legitimidade daqueles que o fazem.
Os transgressores podem estimar que os julgamentos são estrangeiros ao seu universo. Isto
pode aplicar-se em muitos domínios, nomeadamente o desporto, que se tornou uma atividade
social de primeira importância. Dou um exemplo concreto: os ciclistas que se dopam podem
considerar que somos “outsiders” ao seu universo, pelo que não aceitam o nosso julgamento.
As pessoas que fumam haxixe podem considerar que aqueles que não fumam nada têm a dizer
sobre o assunto. E isso também se pode aplicar ao primeiro-ministro, António Costa, quando
defende o seu apoio à recandidatura do presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, e que isso,
afinal, não tem “rigorosamente nada” a ver com a sua vida política ou funções.
Para muitos, o desporto é portador de valores humanistas, com princípios éticos e virtudes
morais. O sucesso do desporto parece natural e nada incomoda as consciências. Mas, na
realidade, existe um desfasamento entre a realidade e a teoria. Uma organização desportiva
não pode ser analisada como um conjunto transparente, que muitos dirigentes querem que ela
seja. Ela é um reino de relações de poder, de influência, de mercadoria e de cálculos. Os agentes
91
sociais, na terminologia do sociólogo francês Pierre Bourdieu, com as suas liberdades e
racionalidades, com os seus objetivos e as suas necessidades, são “construções” e não
entidades abstratas. E sabemos muito bem que os agentes sociais raramente assumem
objetivos claros e ainda menos projetos coerentes. Normalmente, eles são múltiplos, mais ou
menos ambíguos, mais ou menos explícitos, mais ou menos contraditórios. Ao longo do
tempo, eles mudam as ações, rejeitando umas e descobrindo outras, num caminho
caminhando, com imprevistos e reajustamentos. Nesse sentido, o seu comportamento é ativo.
E mesmo se constrangido ou limitado, o seu comportamento não é determinado. Um
comportamento tem sempre dois aspetos: um ofensivo, que procura agarrar as oportunidades,
tendo em vista melhorar a sua ação; e outro defensivo, que é manter e alargar a sua margem
de liberdade, logo a sua capacidade de agir. A globalização do fenómeno desportivo confirma
a existência de um mito e a sua celebração cíclica proíbe a cada um dos agentes sociais a
verdade do desporto moderno, apesar das evidências e dos escândalos que se acumulam. O
desporto não pode ser um substituto, sobretudo quando muitos cidadãos passam por grandes
dificuldades e a quem é necessário propor soluções concretas.
92
O “gym” de boxe e a gestão do capital-corpo
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tradicionais eficazes. Aprender a boxear é modificar o esquema corporal e a relação com o
corpo. Interioriza-se uma série de disposições mentais e físicas, que fazem do organismo uma
máquina (inteligente, criadora e capaz de se autorregular) de dar e receber golpes de punho. A
nobre arte é paradoxal, na medida em que é ultra-individual, cuja aprendizagem é forçosamente
coletiva. No fundo, o “gym” está para o boxe como uma igreja está para a religião: é uma
comunidade moral, um sistema solidário de crenças e de práticas. O livro de Wacquant é uma
referência para quem quer estudar e perceber o boxe.
94
O olimpismo: entre a filosofia e a religião
Vários autores (James Mangan, Peter Mac Intosh, Richard Holt, Jean-Marie Brohm, por
exemplo), já demonstraram que o nascimento do desporto moderno na Inglaterra vitoriana
não poderá ser dissociado das questões económicas e políticas da época. Quando reafirmam
a ligação explícita entre o desporto moderno e a ideia de progresso, estão, no fundo, a referir
que o desporto, desde a sua origem, é um facto social total. O maquiavelismo de Pierre de
Coubertin, que faz dele o “reitor” do olimpismo moderno, reside na faculdade de saber o
pragmatismo das instituições dos pedagogos anglicanos do fim do século XIX e as
reminiscências da cultura helénica desta época. Na sua origem, o desporto britânico estava
despido do humanismo explícito e menos ainda helénico. Em 1883, quando se recolhe junto
do túmulo do reverendo e educador Thomas Arnold (1795-1842), diretor da Rugby School
(1828-1841), o barão Pierre de Coubertin confessará que rendia homenagem à “pedra angular
do império britânico”, ou seja, o sistema educativo inglês, que sem ajuda de muitos anglicanos,
nunca teria ensinado aos membros da sociedade britânica a crer em Deus e a jogar ao futebol.
De facto, Pierre de Coubertin descobre em Inglaterra o que faltava, segundo ele, à sociedade
francesa. E o que faltava? Faltavam os valores morais associados às qualidades físicas. Desta
forma, músculos e inteligência deveriam andar de par, contrariamente às escolhas das
universidades francesas. Segundo o jovem observador (ele tem vinte anos quando realiza a sua
primeira viagem a Inglaterra), o desporto britânico apresentava muitas virtudes e convinha
ensinar as futuras gerações. Ao criar o conceito de olimpismo, Pierre de Coubertin defende
um conjunto de valores que têm um carácter elitista, religioso e universal. Neste quadro
preciso, as noções de democracia e de liberdade rimam com a promoção do homem do ponto
de vista corporal, intelectual, estético e moral. A segunda fonte de inspiração de Coubertin é a
Antiguidade Grega, com a sua visão mítica de uma educação harmoniosa que desenvolvia o
espírito e o corpo. A influência é manifesta com a transformação da célebre devisa de Juvénal:
“mens sana in corpore sano” (mente sã em corpo são) em “mens fervida in corpore lacertoso”
(um espírito ardente num corpo treinado). Coubertin fala de uma religião atlética. E, para ele,
95
o olimpismo é a base de uma educação desportiva generalizada, que deveria ser acessível a
todos. Numa mensagem radiofónica, difundida em 1936 (cf.
https://www.ina.fr/audio/PH106001133), não hesitou em lembrar longamente as
características essenciais do olimpismo. O desporto oferecia a ocasião de religar os homens
em novas bases ideológicas. O humanismo de Coubertin pode ser qualificado de utopista.
Prisioneiro do seu “habitus de classe”, ele funda o olimpismo sobre uma conceção muito
particular de democracia. E teve sempre a preocupação de inscrever o desporto na evolução
das relações internacionais.
96
Que modelo económico para os clubes, associações e
federações desportivos(as)
Os recursos financeiros dos clubes, das associações e das federações desportivos(as) são
constituídos, essencialmente, por:
• Quotizações: trata-se da adesão dos membros relativamente ao funcionamento das
estruturas. São muitas vezes necessárias para poder beneficiar dos serviços propostos.
• Receitas: podem vender produtos, serviços ou propor atividades. Essas receitas são
muitas vezes de origem privada, mas podem ser também dos serviços públicos.
• Financiamento público: o Estado (e outras instituições estatais) apoia, concedendo
subvenções públicas. São atribuídas para financiar ações e projetos.
• Mecenato e dons: as empresas, como os particulares, apoiam. Os incentivos fiscais
contribuem para desenvolver o modo de financiamento.
Em Portugal, não existe um estudo técnico-científico sobre o modelo económico dos clubes,
das associações e das federações desportivas. O mesmo se passa para se saber o número de
trabalhadores que empregam oficialmente. Estes estudos eram necessários para se ter uma
ideia da evolução do modelo económico no desporto no seu conjunto, colocando em
evidência as grandes tendências existentes. Numa crónica de jornal (Negócios, 13.10.2020), o
Presidente do Comité Olímpico de Portugal, José Manuel Constantino (JMC), sublinha que
“o financiamento público ao desporto é garantido em cerca de 70% pelos municípios. Em
Portugal (dados de 2018) é ligeiramente superior (73%). Se nos municípios o apoio cresce,
existe “um desinvestimento das políticas governamentais”, explica JMC.
O setor desportivo oferece uma resposta única a uma necessidade social. A necessidade é
claramente identificada: praticar desporto, e as atividades dos clubes e das associações
respondem a esta necessidade. No entanto, a diversificação crescente das atividades destas
estruturas organizacionais pode colocar em causa esta questão. O modelo de financiamento
97
através dos fundos públicos e privados leva a uma certa autonomia, à capacidade de projeção
e uma liberdade de ação, mas tende também para o sentido da esfera mercantil, o que leva a
algumas fraquezas: risco de enfraquecimento do compromisso voluntário, risco de
fiscalização, afastamento das pessoas, etc. Um inquérito eletrónico deveria ser colocado em
prática para todos os clubes, associações e federações desportivos(as), procurando as suas
respostas relativamente ao seu modelo económico, na esperança de que as respostas pudessem
ser válidas para efeitos de tratamento estatístico. Claro que uma amostra nacional
representativa poderia facilitar o trabalho. Nesta altura de pandemia pela Covid-19, um estudo
desta natureza era bem-vindo.
98
“O conhecimento do desporto é a chave do conhecimento da
sociedade”
99
olimpismo moderno. O seu sucesso foi a oportunidade e a faculdade de transformar o velho
em novo, mas também do conhecimento aprofundado dos arcanos do poder público da época.
Os anos passam e a relação de forças continua entre o Comité Olímpico Internacional (CIO)
e as federações desportivas internacionais e entre os homens do CIO e os regimes políticos.
Independentemente de se tratar de países democráticos ou de regimes totalitários, o uso
político do desporto não oferece grande contestação. E conhecê-lo é conhecer a sociedade.
Referências:
Coubertin, P. (1912). Revue olympique, décembre, 179-181.
Elias, N. (1994). Sport et civilisation. La violence maîtrisée. Paris: Arthème Fayard.
100
O desporto: um mundo fantasiado face às realidades
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Para uma desmistificação educativa do desporto
Considerando que todos os indivíduos são um produto de uma educação, esta é decisiva ao
longo da vida e apoia-se numa pluralidade de atividades. O desporto assenta sobre um
conjunto amplo de valores e reveste uma dimensão educativa incontestável. No entanto, se
educar pelo desporto é uma evidência partilhada coletivamente, a diversidade de expetativas
que estão associadas leva a uma certa confusão. Uma educação que pretende ensinar regras,
por forma a programar e a prever certos atos, cai num certo condicionamento. Mais do que se
limitar à questão da imposição de valores, que alguns chamam de “integração”, a educação
desportiva – como todas as outras formas de educação – deve privilegiar a confrontação dos
jovens à diversidade de valores que compõe a prática desportiva, por forma a libertar e a torná-
los responsáveis pelos seus atos e pelos seus comportamentos. Os valores devem ser
interiorizados conscientemente. A crença de que um poder mágico do desporto, apresentado
como um espaço de reciclagem, do qual todos os praticantes saem virtuosos, é imaginária. A
educação pelo desporto deve: 1) construir-se em torno de valores claramente definidos; 2)
trabalhar sobre a sua assimilação voluntária e consciente; 3) apoiar-se sobre um desporto em
que se percebe os interesses, mas também os limites. Os valores desportivos não devem ser
considerados como objetivos ou como condutas que se podem prever ou avaliar, mas como
quadros sociais a construir, organizando os comportamentos de cada um. O desporto não é
apenas uma prática. Ele é também uma ética. Por isso, a aplicação de uma ética pelo desporto
é indispensável. Só assim se pode esperar que o desporto seja um espaço educativo. Depois
desta crise pandémica (Covid-19), os partidos políticos, com a participação da sociedade civil,
deveriam promover uns “Estados Gerais sobre o Desporto” em Portugal, pensando no futuro.
103
Para uma desmistificação educativa do desporto
104
Educar pelo desporto
A educação legitima-se pela transmissão de saberes e funda-se em valores. Pela sua diversidade,
fazer um inventário parece-nos muito difícil. Tomando como referência a classificação do
filósofo francês Oliver Reboul (Les valeurs de l’éducation, Paris, 1992), três categorias de valores
emergem: 1) aqueles que se consideram como sendo os objetivos da educação,
designadamente os valores para os quais ela prepara e que variam segundo as sociedades e as
culturas. Neste sentido, uns privilegiam a integração no meio social, outros a autonomia
individual, o espírito crítico e o sentido de responsabilidade; 2) os valores indispensáveis na
organização de uma educação. Se a obediência, o respeito pelos mais velhos ou o espírito de
disciplina foram durante muito tempo privilegiados, atualmente a atenção vai para a iniciativa,
a criatividade ou a livre cooperação; 3) privilegia-se nesta terceira categoria os valores que
servem de critério de julgamento. Para uns, é preciso privilegiar ainda mais a capacidade de
iniciativa, o desenrascanço ou o espírito de equipa, enquanto que para outros é preciso
aumentar a capacidade de reprodução de conhecimentos, o respeito pela troca de informações
ou atingir um determinado nível de performance.
Os valores associados ao desporto, quando ele é organizado num quadro educativo, são
diversos. Eles promovem um sentido, definindo as condições de exercício e de
reconhecimento social. O fato de se educar não implica naturalmente valorizar certos valores,
mas releva de uma escolha em função das missões atribuídas pela educação desportiva. Se é
certo que o desporto se inscreve numa perspetiva educativa, as diferenças, ou as fortes
divergências, podem caraterizar os fins da prática desportiva, em função dos estatutos dos
intervenientes, dos modos de prática (profissional/amador, associativo/livre, etc.). Mas o
“efeito camaleão” não está muito longe e não ajuda a promover a clareza. Todas as tendências
podem se reagrupar em torno do campo desportivo sem que se partilhem os mesmos valores.
De qualquer forma, ele é considerado como uma atividade benéfica, é utilizado para lutar
contra as indelicadezas, participa na formação para a cidadania ou serve para integrar os jovens
105
com maiores dificuldades, que são, em geral, os mais interessados por uma prática desportiva
ou pelos seus espetáculos. Os projetos de educação pelo desporto apresentam uma grande
diversidade de formatos de ação, dependem das finalidades procuradas e dos
constrangimentos sociais e organizacionais.
106
Desporto e valores
O interesse pelo desporto tem vindo a ganhar, ao longo dos tempos, um importante
significado social, sobretudo nas sociedades ocidentais (industrializadas), assim como se tem
assistido a uma diversificação nas formas de estar e de participar neste espaço social. O
desporto, desde o início da sua história, foi associado a valores (fair-play, solidariedade,
autoestima, respeito pelo próximo, etc.), tendo em vista a promover a sua prática. A sua
existência foi estabelecida sobre pressupostos, tornando-se um mito. Para demonstrar o seu
interesse e justificar a sua legitimidade, os promotores do desporto procuram apresentar a
prática como um elemento de bem-estar individual e coletivo. Muitos discursos relativos ao
desporto não economizam palavras laudatórias sobre para que ele serve e o que vale. As
competições internacionais são sempre momentos importantes para relembrar a sua natureza
e exorcizar a sua prática. Mais do que um simples jogo ou uma atividade de divertimento ou
de performance, o desporto deve ser compreendido a partir dos benefícios que pode
promover, sobretudo para aqueles que o expõem, o admiram, o praticam ou o organizam.
Longe das teorias deterministas, que consideram a prática desportiva exclusivamente
dependente das suas componentes objetivas (motrícias, fisiológicas, etc.), convém abordar o
lugar social do desporto por intermédio das mais-valias associadas. Produto de uma história
que coloca os valores no centro do seu projeto universal, o desporto é regularmente associado
às funções que os atores sociais lhe atribuem. Investido de missões e de ideais, a sua prática
reveste-se de uma importância considerável para todos aqueles que procuram transformar o
homem e a sociedade. A representação social de um “desporto +” é claramente dominante,
deixando pensar que nada pode incomodar uma prescrição desportiva naturalmente
estabelecida. Permitindo validar a legitimidade e condenar a ilegitimidade, os valores
associados ao desporto constituem uma escala para julgar a sua utilidade. Afirmar que o
desporto provoca excessos, violência, rejeição das diferenças, reforço do individualismo ou
imoralidades de certos comportamentos desportivos, não significa que o desporto não tem
107
valor, mas, pelo contrário, que o desporto é portador de valores que convém precisar para
clarificar este fenómeno e dar-lhe a importância merecida. Ao se aceitar a realidade, não nos
devemos fechar numa beatitude submissa que associa os princípios sedutores, desfasados ou
contraditórios da sua prática. Um exame sobre o desporto como ele é, e não como deveria ser,
torna-se indispensável para se ter uma ideia dos incidentes de percurso. Se não é possível
contestar a existência desportiva, parece-nos primordial questionar a sua natureza.
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As artes marciais e a Comissão Diretiva das Artes Marciais
(CDAM)
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interno: “considero que poderá ser feito um artigo que desfaça todas as insinuações que
ultimamente têm vindo a lume, mas não se deve dar o ar de que se está a responder, a fim de
se evitar polémica desnecessária” (Proc. 10.02, de 12/11/74). Numa outra informação interna
da CDAM (n.º 2, Proc. 10 de 7/02/75), é referido que “a chave do controlo dos praticantes
das artes marciais, encontra-se exactamente no controle estreito dos seus agentes de ensino”.
Desta forma, “a repressão aqui é não só ineficaz, como agravante, o remédio é usar o próprio
mal, mas de forma racional e controlada”. Os praticantes, por seu turno, também manifestam
o seu descontentamento com a ação da CDAM. Transcrevemos aqui o excerto de uma carta
enviada para esta Comissão, datada de 21/12/1976: “Mais uma vez me dirijo a V. Exas
lamentando sinceramente a inoperância que infelizmente eu constato na existência dessa
comissão e pergunto Porquê, e para quê existe a comissão? Será que o ministério da defesa
criou um organismo morto para justificar o ganho de mais uns cobres para elementos
componentes dessa comissão? Se a comissão é inoperante, porque existe? É uma vergonha
que uma comissão que existe há cerca de três anos ainda não tenha apresentado um trabalho
válido, bom, também de militares de carreira não se pode esperar muito, primeiro as
promoções! Como estamos em época de boa vontade, V. Exas não poderiam se faz favor pôr
cobro às palhaçadas que continuam a fazer-se no nosso país à sombra dessa comissão?”. Com
o passar dos anos, a CDAM foi sendo afeta a vários ministérios. Pelo Decreto-Lei n.º 507/80
de 21 de outubro, foi reintegrada no Ministério da Educação e Ciência (MEC). Por força do
Decreto-Lei n.º 507/80 de 21 de outubro, foi transferida para o Ministério da Qualidade de
Vida (MQV). Com o Decreto-Lei n.º 279-A/85 de 19 de julho passou a ficar dependente da
Presidência do Conselho de Ministros. Com o mal-estar externo, passou a existir também um
mal-estar interno. Num despacho (n.º 9-1-MEC/86), assinado pelo então ministro da
Educação e Cultura, foi proibida a realização de uma reunião do Conselho Consultivo da
CDAM, que teria lugar no dia 07 de junho de 1986. Da convocatória fazia parte a troca de
impressões sobre a “interferência insólita da DGD [Direção Geral dos Desportos], com
repercussões no funcionamento da Comissão”. No entender do ministro “as determinações
que a D.G.D. tem transmitido à CDAM o são em execução de decisões do Ministro, sendo
inaceitável que se convoquem as associações de artes marciais para discutir as orientações
ministeriais em relação à CDAM”. A CDAM viria a ser extinta em 1987 (DR I Série n.º 33, de
9 de fevereiro de 1987, com o n.º 69/87). A parte introdutória vem esclarecer que:
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▪ “A repressão do ensino incorrecto não é preocupação exclusiva das artes marciais,
mas sim comum a todas as modalidades desportivas e formativas;
▪ A disciplina da prática desportiva vulgarmente designada ‘artes marciais’ deverá ser,
preferencialmente, prosseguida através de mecanismos de auto-regulamentação, à
semelhança do que sucede com as restantes modalidades desportivas, através das
respectivas federações;
▪ Neste sentido, justifica-se, quer para as artes marciais, como para os restantes
desportos de combate, uma adequada preparação dos agentes de ensino, o que já
se encontra previsto no Decreto-Lei n.º 98/85, de 4 de abril, e no Decreto-Lei n.º
163/85, de 15 maio;
▪ Assim, carece de sentido a manutenção do apertado regime de condicionalismo
actualmente vigente, bem como do regime de sancionamento penal que lhe é
inerente, pelo que se impõe a sua revogação”.
Ficaram assim expressas as razões que levaram o Governo de então a extinguir a CDAM, e a
transferir para a Direção Geral dos Desportos (DGD) todos os direitos e obrigações de que
era titular, bem como todos os bens móveis que lhe estavam afetos.
Referência
Rosa, V. (2007). Encuadramiento legal e institucional de las artes marciales y deportes de
combate en Portugal. Revista de Artes Marciales Asiáticas, 2(4), 8-31.
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Os jogos olímpicos e os tempos modernos
“Os jogos olímpicos constituem o espaço necessário para a emulação muscular da juventude,
o concurso quadrienal onde são coroadas as performances individuais da elite. Eles não devem
sofrer nenhum constrangimento: o seu caráter e a sua autonomia impõem-se. Mas, no domínio
da educação, o desporto deve ser considerado como uma alavanca poderosa e ao mesmo
tempo delicada, que não deve ser manobrada por qualquer um e de qualquer maneira” (Pierre
de Coubertin, La Suisse, 3 de abril de 1928). Colocada aqui em evidência, com esta declaração
Pierre de Coubertin (1863-1937), que na altura já não era Presidente do Comité Olímpico
Internacional (COI), organização não-governamental, precisa um pouco mais o significado da
sua obra e do seu compromisso. Desde os seus 20 anos de idade, despendendo a sua energia
e dinheiro, ele tenta convencer os seus contemporâneos dos benefícios possíveis de uma
prática desportiva codificada, colocando em evidência os valores consubstanciais. O desporto,
que ele preconiza como uma atividade relacionada a um constrangimento social,
contrariamente ao jogo, tem duas componentes: educativa e política. Com efeito, o desporto
parece ter resolvido uma equação: partindo da igualdade de oportunidades, o desporto produz
uma desigualdade de estatutos. Desde o fim do século XIX, este paradigma parece ser
admitido por todos, provoca reações tanto hostis como favoráveis e prova que os valores que
a opinião atribui ao desporto não são concordantes com o desenvolvimento efetivo das
práticas desportivas. A forma como foi progressivamente instituída a universalidade do
desporto e das inerentes questões políticas e ideológicas, leva a que seja necessário
compreender em que medida as grandes manifestações desportivas, e em particular os jogos
olímpicos, inicialmente concebidos para celebrar o ideal de Coubertin, foram
progressivamente transformados em “feiras de músculos”, onde os valores do olimpismo
surgem cada vez mais ultrapassados face às novas realidades desportivas. Se o olimpismo
participa nas crenças coletivas, cada um deve ter a capacidade de distinguir os valores supostos
e os valores reais do desporto moderno. Em 1990, ou seja, um século depois da renovação
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dos jogos olímpicos, o COI define o olimpismo como uma “filosofia de vida, exaltando e
combinando um conjunto equilibrado de qualidades do corpo, da vontade e do espírito.
Aliando o desporto à cultura e à educação, o olimpismo quer-se como criador de um estilo de
vida fundado na alegria do esforço, do valor educativo do bom exemplo e do respeito pelos
princípios éticos universais” (Carta Olímpica, 1990). A evolução dos valores do desporto
durante o século XX parece rejeitar esta visão idealista, ao ponto de nos perguntarmos se o
mito olímpico não participa, de forma evidente, à cegueira coletiva. E, como diria José
Saramago, no seu Ensaio sobre a Cegueira, “a pior cegueira é a mental, que faz com que não
reconheçamos o que temos à frente”.
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Doutorado em Educação Física e Desporto, Ramo Didática da EFD, pela Faculdade de Educação Física
e Desporto da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (FEFD-ULHT) (2017), Vítor
Rosa é, desde 2019, Investigador Integrado no Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e
Desenvolvimento (CeiED), no âmbito do projeto PISA – “Uma história de sucesso? Portugal e o PISA
(2000-2015)” (ref.ª PTDC/CED-EDG/30084/2017). Concluiu o Pós-doutoramento em Sociologia no
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte) (2020). Licenciou-se em Sociologia e em
Turismo, pela Universidade de Évora, e em Investigação Social, pela Universidade Moderna. É pós-
graduado em Administração Pública e Desenvolvimento Regional na Perspetiva das Comunidades
Europeias, pela Universidade de Évora, e em Sociologia, pelo ISCTE-IUL, e obteve o mestrado em
Demografia e Sociologia da População, pelo ISCTE-IUL. Foi docente e investigador na Université Paris-
Ouest Nanterre La Défense (França), UFR STAPS (Unité de Formation et de Recherche – Sciences et Techniques
des Activités Physiques et Sportives (2015-2016), na Académie de Versailles (2017-2018) e na ULHT (2013-
2017). Foi ainda investigador bolseiro FCT no Centro de Investigação em Sociologia e Antropologia –
Augusto da Silva da Universidade de Évora (2010-2011) e Investigador Integrado e Secretário da Mesa
do Plenário de Investigadores do Centro de Pesquisa e Estudos Sociais (CPES), da ULHT. É autor de
um número alargado de comunicações e publicações nacionais e internacionais. Colabora como membro
científico e editorial de diversas revistas científicas nacionais e internacionais e de outras publicações.
Tem participado em diversos projetos de investigação.
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