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FORMAÇÃO DE PROFESSORES
UMA VISÃO MULTIFACETADA
Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Chanceler:
Dom Altamiro Rossato
Reitor:
Ir. Noberto Francisco Rauch
Conselho Editorial:
Antoninho Muza Naime
Antonio Mario Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Jayme Paviani
Luiz Antônio de Assis Brasil
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano Zilles (presidente)
Vera Lúcia Strube de Lima
Diretor da EDIPUCRS:
Antoninho Muza Naime
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DE MATEMÁTICA:
UMA VISÃO MULTIFACETADA

Helena Noronha Cury (ORG.)


Antonio Vicente Marafioti Garnica
Circe Mary Silva da Silva
Dalcídio Moraes Cláudio
Márcia Loureiro da Cunha
Marlene Correro Grillo
Tânia Cristina Baptista Cabra1

u
EBIPUCRS

Porto Alegre, 2001


O EDIPUCRS
1" edição: 2001

Capa: AGEXPP-FAMECOSPUCRS
Preparação dos originais: Eurico Saldanha de Lemos
Editoração e composição: Suliani - Editografia Ltda.
Revisão: da organizadora
Impressão e acabamento: Gráfica EPECÊ

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F723f Formação de professores de matemática: uma visão multi-


facetada I organizado por Helena Noronha Cury. -Porto
Alegre : EDIPUCRS, 2001.
190 p.

1. Professores - Formação Profissional 2. Matemática -


Enisno 3. Professores - Desempenho Profissional I. Cury,
Helena Noronha 11. Título

CDD 370.71

Ficha Catalográfica elaborada pelo


Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra


sem autorização expressa da Editora.

EDIPUCRS
Av. Ipiranga, 6681 -Prédio 33
Caixa Postal 1429
90619-900 -Porto Alegre - RS
Brasil
Fone@: (51) 320.3523
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E-mail: edipucrs @pucrs.br
Introdução ............................................................................. 7

1 A formação dos formadores de professores de Matemática:


quem somos, o que fazemos, o que poderemos fazer?
Helena Noronha Cury ...................................................... 11

2 Prática docente: referência para formação do educador


Marlene Grillo ................................................................. 29

3 É necessário ser preciso? É preciso ser exato?


"Um estudo sobre argumentação matemática" ou
"Uma investigação sobre a possibilidade de investigação"
Antonio Vicente Marafioti Garnica ................................. 49

4 Lógica da intervenção didática


Tânia Cristina Baptista Cabra1 ....................................... 89

5 A História da Matemática e os cursos


de formação de professores
Circe Mary Silva da Silva ................................................ 129

6 As novas tecnologias na formação


de professores de Matemática
Dalcídio Moraes Cláudio e
Márcia Loureiro da Cunha .............................................. 167
Os cursos de formação de professores vêm sofrendo uma série
de modificações decorrentes das novas políticas educacionais brasi-
leiras, especialmente com o advento da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei nV394196) e das Diretrizes Curriculares
para os Cursos de Licenciatura.
O Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior e o
Exame Nacional de Cursos têm apontado problemas que precisam
ser solucionados e as mudanças, dependendo da Instituição de En-
sino Superior, podem envolver grade curricular, metodologias de
ensino, corpo docente ou carga horária de prática de ensino, entre
outros aspectos.
As propostas de modificações, implantadas ou a implantar,
são apresentadas à comunidade acadêmica em diversos momentos,
especialmente nos Encontros de Educação Matemática, nacionais e
regionais. Além disso, discussões sobre o tema são geradas a partir
de livros, artigos publicados em periódicos da área, dissertações e
teses.
São vários os ângulos sob os quais as Licenciaturas em Ma-
temáticas são enfocadas e os múltiplos olhares vêm contribuindo
para que as mudanças sejam bem fundamentadas e criem, efetiva-
mente, condições para que os novos licenciados atendam às deman-
das da sociedade, em termos de um ensino de Matemática mais
moderno e qualificado.
Trabalhando em cursos de formação de professores, há muitos
anos, um grupo de docentes reuniu-se para oferecer algumas contri-
buições para as modificações que vêm sendo exigidas pelo Ministé-
rio da Educação, pelas próprias IES e pela sociedade. Do esforço
resultou este livro, que tem a intenção de mostrar uma visão multi-
facetada sobre o tema.

Introdução 7
Os autores exercem a docência em cursos de Licenciatura de
Universidades públicas ou privadas, envolvendo-se, ainda, com
atualização e aperfeiçoamento para professores em serviço, pesqui-
sas, participações em Comissões de Carreira, orientações de mes-
trandos e doutorandos.
ANTONIOVICENTEMARAFIOTIGARNICAé bacharel em Ma-
temática, mestre e doutor em Educação Matemática pela UNESP de
Rio Claro, tendo concluído estágio de pós-doutorado junto à India-
na University-Purdue University, em Indianapolis, Estados Unidos.
Suas pesquisas focam aspectos gerais da formação de professores
de Matemática, com especial ênfase àquela que ocorre em cursos de
Licenciatura. Também atuou como professor em cursos de alfabeti-
zação, nas séries do ensino fundamental e médio, e em várias ativi-
dades de atualização de professores em serviço. Recebeu, em 1995,
o Prêmio Moinho Santista Juventude em Ciências da Educação.
Atualmente é professor do Curso de Licenciatura em Matemática
da UNESP de Bauru e do Curso de Pós-Graduação em Educação
Matemática da UNESP de Rio Claro.
CIRCEMARY SILVADA SILVAé graduada em Matemática pe-
la PUCRS, mestre em Matemática pela UFF e doutora em Educa-
ção Matemática pela Universidade de Bielefeld, Alemanha. Seus
interesses de pesquisa englobam a História da Matemática, as rela-
ções da História da Matemática com a Educação Matemática e a
formação de professores. Atualmente, leciona Prática de Ensino no
curso de Licenciatura em Matemática da UFES e é coordenadora e
professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, da mesma
Universidade. É vice-presidente da Sociedade Brasileira de História
da Matemática, entidade que foi fundada em março de 1999.
DALCÍDIOMORAESCLAUDIOé bacharel em Matemática pela
UFRGS e doutor pela Universidade de Karlsruhe, Alemanha. Sua
pesquisa dá-se na área de Matemática da Computação. Recebeu em
1998 o prêmio de Pesquisador Destaque no Rio Grande do Sul dado
pela FAPERGS - Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande
do Sul, da qual é o atual diretor científico. É professor da Faculdade
de Matemática da PUCRS e atua como docente e orientador no
curso de Pós-Graduação em Ciência da Computação da mesma
Universidade.
8 Formação de professores de Matemática
HELENANORONHA CURYé licenciada e bacharel em Matemá-
tica pela UFRGS, mestre em Educação e doutora em Ciências
Humanas-Educação, também pela UFRGS. Seus interesses de pes-
quisa envolvem análise de erros em Matemática, concepções e
crenças sobre Matemática e uso de computadores no ensino dessa
disciplina. Trabalha em cursos de Licenciatura em Matemática,
desde 1970, tendo lecionado na Faculdade Porto-Alegrense de
Educação, Ciências e Letras e no curso promovido pelo convênio
PREMEN/UFRGS/SECRS. Desenvolveu, também, atividades com
professores de Ciências e Matemática da rede pública e privada, no
Centro de Treinamento de Professores de ciências do Rio Grande
do Sul e atuou como docente e coordenadora de projeto no Progra-
ma de Apoio ao Melhoramento do Ensino de Ciências, no convênio
CAPEStFAPERGS. Participou da experiência de implantação
do Primeiro Ciclo da UFRGS, em 1972, atuando como docente e
assessora da disciplina "Introdução ao Pensamento Matemático"
e do Projeto de Implantação, Assessoria e Aperfeiçoamento ao
Padrão Referencial de Currículo, promovido pelo convênio
PUCRS/SECRS. É professora da PUCRS desde 1973, nos cursos
de Engenharia e de Licenciatura em Matemática.
MÁRCIALOUREIRO DA CUNHAé graduada em Matemática pe-
la PUCRS. Como bolsista de Iniciação Científica, atuou em pesqui-
sas sobre o uso do computador no ensino de disciplinas matemáti-
cas na Faculdade de MatemáticafPUCRS. Seus interesses de pes-
quisa estão direcionados ao uso de novas tecnologias no ensino de
Matemática nos níveis fundamental e médio. Atualmente, leciona a
disciplina de Matemática no ensino médio e na educação de jovens
e adultos e ministra oficinas sobre o uso de software no ensino des-
ta disciplina.
MARLENE CORRERO GRILLOé licenciada em Pedagogia, mes-
tre em Métodos e Técnicas de Ensino e doutora em Educação.
Desenvolve pesquisas na linha de formação de professores e
educação continuada, estudando a prática pedagógica numa
perspectiva reflexiva e investigativa. É professora titular da
PUCRS, atuando como docente em cursos de Graduação e Pós-
Graduação (mestrado e doutorado) na Faculdade de Educação.

Introdução 9
TÂNIACRISTINABAPTISTA CABRALlicenciou-se em Matemá-
tica pela UFRJ, atuou em projetos envolvendo formação de profes-
sores de Matemática pelo Centro de Ciências da FAPERJ, em mo-
nitorias pelas secretarias de educação municipal e estadual, em
orientações de escolas e no 1" segmento do primeiro grau. No Esta-
do de São Paulo, atuou como docente em curso de magistério, ob-
teve o título de mestre em Educação Matemática pela UNESP, Rio
Claro, tendo defendido a Dissertação "Vicissitudes da aprendiza-
gem em um curso de cálculo". Fez o doutorado em Didática pela
USP, São Paulo, defendendo a Tese "Contribuições da Psicanálise à
Educação Matemática: a lógica da intervenção em processos de
aprendizagem". Atualmente é professora-pesquisadora na UNESP,
vinculada ao Departamento de Matemática - Campus de Bauru - e
ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática - Cam-
pus de Rio Claro. Faz parte da equipe que coordena o Grupo de
Pesquisa-Ação em Educação Matemática, UNESP-Rio Claro e
coordena o GPA & Seminário em Educação Matemática e Psicaná-
lise, UNESP-Bauru. A linha de pesquisa de atuação é "Análise dos
condicionantes da sala de aula e intervenção pedagógica" cuja ênfa-
se é "Condicionantes do engajamento do sujeito em situações didá-
ticas: discurso, poder e desejo". As investigações têm lugar na co-
nexão Educação Matemática e Psicanálise. Faz formação em Psica-
nálise de diretriz freudo-lacaniana. É membro da Escola Brasileira
de Psicanálise - Seção São Paulo. É sócia-fundadora da SBEM.
Um pouco das vivências desse grupo de professores vai ser
apresentada nos capítulos que se seguem. Esperamos que essas
contribuições sejam ponto de partida para novas discussões, por
parte de colegas das diversas IES que têm cursos de Licenciatura
em Matemática e de seus alunos, sobre os quais recai a responsabi-
lidade de fazer com que a Matemática se torne uma disciplina para
a qual se voltem, entusiasmados, os olhares dos estudantes.
Os Autores
Porto Alegre, outubro de 2000

10 Formaçáo de professores de Matemática


A FORMAÇÃO DOS FORMADORES
DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA:
QUEM SOMOS, O QUE FAZEMOS,
O QUE PODEREMOS FAZER?
Helena Noronha Cury

"Professor, strictu sensu, é um formador de formadores"


Pedro Demo

Os primeiros cursos de formação de professores foram criados


no Brasil pela USP, em 1934. A partir dessa data até a década de
70, as licenciaturas eram oferecidas nas Faculdades de Filosofia.
Nas licenciaturas em Matemática, os docentes que lecionavam
as disciplinas de Matemática Pura ou Aplicada, ainda que tivessem
experiência com o ensino básico, não extemavam suas preocupações
com a formação pedagógica dos licenciados pois, em geral, conside-
ravam que sua responsabilidade era com os conteúdos matemáticos a
serem apresentados. Deixavam, assim, aos colegas que lecionavam
disciplinas didático-pedagógicas, a tarefa de discutir todos os aspec-
tos do processo de ensino-aprendizagem de Matemática.
A partir da reforma universitáxia criada pela lei 5.540, os cursos
de Licenciatura em Matemática, pelo menos nas grandes Universida-
des públicas ou privadas, ficaram lotados nos Institutos de Matemáti-
ca e os docentes das disciplinas específicas começaram a se sentir
mais diretamente envolvidos com a formação dos licenciandos.

A formação dos formadores de professores de Matemática 11


No entanto, uma discussão mais aberta sobre os problemas
desses cursos e a possibilidade de externa dúvidas e criticar vários
aspectos das licenciaturas só foram surgir a partir dos anos 80,
quando investigações sobre o ensino de Matemática foram geradas
nos cursos de Pós-Graduação e os pesquisadores, em congressos,
cursos, palestras ou artigos, foram expondo sua inconformidade
com a situação vigente nos cursos de formação de professores.
Os questionamentos que apontamos no título deste capítulo
têm origem na indagação de Fiorentini (1994), no painel apresenta-
do no I1 Encontro Gaúcho de Educação Matemática: "quem forma
o professor formador de professores?" (p. 46).
Os docentes dos cursos de Licenciatura em Matemática são,
em geral, licenciados e bacharéis formados, na maior parte das ve-
zes, pelos próprios cursos nos quais lecionam ou por outros da
mesma cidade ou região. Assim, discutir sua formação é discutir
aspectos desses cursos.
As primeiras considerações sobre o tema remetem às origens
dos cursos, que no Rio Grande do Sul foram criados na década de
40 com o conhecido "esquema 3+17',existente em todas as licencia-
turas e que consistia em três anos de Bacharelado e um ano de Es-
pecialização em Estudos Pedagógicos.
Os primeiros professores das disciplinas matemáticas desses
cursos eram, em sua maioria, engenheiros pois, não havendo Licen-
ciatura em Matemática, os mestres tinham que ser aproveitados dos
cursos já existentes, a Academia Militar e a Escola Politécnica, esta
formadora de engenheiros e bacharéis em Ciências Físicas e Mate-
máticas. Esses ljioneiros, com sólida bagagem de conhecimentos na'
área, mas, em geral, sem formação pedagógica específica, valoriza-
vam extremamente o conteúdo matemático em detrimento dos mé-
todos de ensino (Cury, 1993).
Sabemos que os alunos, em qualquer curso ou nível de ensino,
são, em geral, influenciados pelas opiniões e posturas de seus mes-
tres. Assim, os licenciados formados nas décadas de 40 e 50 possi-
velmente assumiram as concepções desses mestres pioneiros, con-
cebendo a Matemática e seu ensino a partir de suas opiniões, das
experiências que tiveram como alunos e das influências sociocultu-
rais que também apontavam para a valorização do conteúdo. Entre

12 Formação de professores de Matemática


esses licenciados, encontram-se muitos docentes dos cursos de Ma-
temática-das décadas de-50,-6Ch-70aue-estenderaressaSidéias
até os dias de hoje.
O conjunto de influências sofridas pelos professores faz parte
da concepção dominante em cada época, que, no caso da Matemáti-
ca, tem sido principalmente a absolutista. Segundo essa visão, "o
conhecimento matemático é feito de verdades absolutas e representa
o domínio único do conhecimento incontestável" (Ernest, 1991, p. 7).
Dessa forma, quando falamos em formação dos docentes, estamos
pensando, não só nos cursos que fizeram mas no conjunto de idéias
que moldaram suas práticas.
Nos últimos anos, várias pesquisas realizadas com professores
de ensino fundamental, médio ou superior (Ponte, 1992; Guimarães,
1993; Cury, 1994; Silva, 1996; Thompson, 1997; Sztajn, 1998; Mo-
ron, 1999) mostram que, muitas vezes, há uma grande diferença entre
as concepções e crenças dos professores sobre a Matemática e o seu
discurso frente à comunidade matemática e aos próprios alunos. Face
às grandes pressões representadas pelas suas experiências de ensino,
pelos modelos de professores que tiveram e até pelas expectativas da
sociedade, os docentes de Matemática, ainda que concordem com as
modificações apontadas para o ensino dessa ciência, não conseguem,
na sua prática, assumir posturas diversas daquelas há longo tempo
introjetadas.
O modelo de profissional aceito pela comunidade parece ter
uma influência muito grande sobre a prática, sobrepujando tudo aqui-
lo que o professor possa ter discutido em seus anos de formação,
relativamente ao ensino de sua disciplina. Bazzo (1998), ao discutir
questões didático-pedagógicas do ensino de Engenharia, comenta a
preferência dos alunos por docentes com experiência profissional, em
detrimento de seus conhecimentos sobre ensino-aprendizagem. O
autor acrescenta, ainda, que:
"Se num curso superior o aluno busca, além dos conhecimen-
tos técnicos, da formação intelectual e do status que o título deve lhe
conferir, também um símbolo idealizado de profissional a quem imi-
tar, é nesse modelo de professor que ele vê materializadas as suas
expectativas. Dessa forma, o carisma da competência profissional
acaba por prevalecer sobre a formação didático-pedagógica - seja
ela formal ou informal" (p. 251).

A formação dos formadores de professores de Matemática 13


Os professores de Matemática, expostos à visão absolutista
dessa ciência durante sua formação e herdeiros do autoritarismo
com que alguns de seus mestres se colocavam em relação à mesma
- não aceitando interpretações diferentes das suas e reforçando a
submissão do aluno às regras impostas - tendem a repetir essa pos-
tura e moldam a imagem do professor rígido e da ciência "dura".
Essas atitudes formam, então, estereótipos que têm afastado gera-
ções de alunos da possibilidade de apreciar a beleza da Matemática,
de desenvolver o raciocínio lógico e crítico a que ela nos capacita.
Na formação dos docentes de Matemática, portanto, destaca-
mos, inicialmente, a excessiva valorização dos conteúdos matemáti-
cos em seus cursos de origem, aliada, em geral, a uma concepção
absolutista dessa disciplina.
Após sucessivas mudanças nos currículos dos cursos de Licen-
ciatura em Matemática, por determinações do Ministério da Educa-
ção ou por decisões das próprias Instituições de Ensino Superior
(IES), chegamos a uma estrutura que, em geral, privilegia as discipli-
nas matemáticas nos primeiros semestres do curso, tanto as do currí-
culo mínimo do Conselho Federal de Educação como outras que
variam de Instituição para ~nstitui~ão.' Nos últimos semestres, são
introduzidas as disciplinas pedagógicas - Psicologia Educacional,
Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental ou Médio, Didá-
tica e Prática de Ensino -, acrescidas de outras que supostamente
fazem a ponte entre a área específica e a pedagógica, como as que se
referem à Metodologia do Ensino da Matemática.
Não questionamos, nos currículos atuais, a existência dessas
disciplinas de ligação entre conteúdos e métodos - extremamente
importantes para os futuros mestres - mas o pressuposto de que as
outras disciplinas, tanto as matemáticas quanto as pedagógicas, pos-
sam ser trabalhadas isoladamente.
Essa visão compartimentada do conhecimento gera problemas
para a aprendizagem, pois os alunos, ao considerarem que os conteú-
dos das disciplinas não estão relacionados entre si, não se permitem
usar procedimentos já conhecidos de uma matéria em novos proble-
mas de outra. Para ilustrar o fato, vamos apresentar uma situação
hipotética.
I
A estrutura em questão é anterior às mudanças já realizadas por algumas IES a partir
das sugestóes de novas Ditrizes Curriculares, atualmente ainda em análise pelo MEC.

14 Formação de professores de Matemitica


Em uma aula de Geometria, por exemplo, um determinado
professor utiliza uma metodologia ativã, fazenaõ com que os estu;
dantes manuseiem materiais concretos para descobrirem as proprie-
dades dos entes geométricos. O teorema de Pitágoras é experiencia-
do de várias maneiras e os alunos podem verificar a propriedade
que costumam "recitar" de cor.
A seguir, um outro professor, de Geometria Analítica, por
exemplo, transmite o conhecimento pronto, já estruturado, solici-
tando aos alunos que realizem exercícios repetitivos, tais como a
aplicação da fórmula da distância entre dois pontos.
Se os professores não mostram a relação entre os dois conteú-
dos citados, nem propõem problemas que levem o aluno a pensar
sobre o tema e concluir que a fórmula da distância entre dois pontos
baseia-se no teorema de Pitágoras, talvez a ponte entre as duas
áreas não se estabeleça.
Quando um terceiro professor, procurando fazer uso de uma
abordagem metodológica mais moderna, enfoca alternadamente os
aspectos geométrico e analítico de um determinado conteúdo que
envolve os constructos citados, pode surpreender-se com as pergun-
tas dos alunos: "o Sr. está se referindo à matéria dada pelo profes-
sor X ou pelo professor Y?".
Será tão difícil relacionar os conteúdos matemáticos? Os pro-
fessores deveriam ter um domínio dos pressupostos básicos de cada
disciplina lecionada no curso de Matemática, para encontrar exem-
plos de uma área que possam ilustrar os conceitos de outra. E, além
disso, deveriam conhecer metodologias variadas, para escolher
aquela que mais se adapta a um determinado conteúdo. A Geome-
tria, por exemplo, não se sustenta só com o apelo ao visual; é ne-
cessário demonstrar as propriedades. O conhecimento de uma fór-
mula apenas pela fórmula também não é adequado, pois precisamos
entender a razão pela qual a utilizamos e conhecer sua origem.
Outra face desse mesmo problema é o desconhecimento, por
parte de muitos professores das disciplinas da área pedagógica, dos
problemas específicos do ensino de conteúdos de Matemática supe-
rior. Mesmo que alguns desses professores sejam licenciados em
Matemática, não há contato entre os docentes das duas áreas, como
se as disciplinas existissem isoladamente. Dessa forma, os professo-

A formação dos formadores de professores de Matemática 15


res de Metodologia do Ensino de Matemática ou de Didática preo-
cupam-se apenas com os conteúdos do ensino fundamental ou mé-
dio e não se reúnem com seus colegas das disciplinas "puras" para,
juntos, repensarem os problemas do ensino de conteúdos de Mate-
mática superior.
Gonçalves e Gonçalves (1998) apontam a necessidade dessa
integração entre as disciplinas das duas áreas, afirmando que:
"...se toma indispensável que estes professores, formadores de pro-
fessores, trabalhem para estabelecer, quando possível, a relação e-
, xistente entre as disciplinas de conteúdos específicos e as de conteú-
dos pedagógicos, bem como entre aquelas de conteúdos específicos
e conteúdos pedagógicos que fazem parte dos cursos de formação.
Temos consciência de que esta última articulação só será possível a
partir do momento em que hajá, por parte dos professores dos depar-
tamentos de conteúdos específicos e os da faculdade de educação,
clareza dos objetivos do curso e do perfil do profissional que estão
formando, não considerando uma disciplina mais relevante do que
outra" (p. 118-119).
Portanto, os autores referem-se não só às disciplinas que fa-
zem a ponte entre as áreas como àquelas que especificamente traba-
lham com os aspectos pedagógicos dos conteúdos matemáticos.
O segundo item que queremos destacar na formação dos do-
centes que atuam nos cursos de Licenciatura em Matemática é o
distanciamento entre as áreas específica e pedagógica, presente na
maior parte dos cursos de Licenciatura, aliado à compartimentaliza-
ção do conhecimento, identificada, em geral, tanto nesses cursos
como nos de Bacharelado em Matemática.
Já opinamos que o professor da Licenciatura em Matemática
deve ter um conhecimento abrangente sobre os conteúdos das dis-
ciplinas do curso. Mas o corpo de conhecimentos dessa ciência
atualmente é muito grande, como em qualquer outra, e os docentes
não conseguem ter uma visão global de todas as disciplinas para
fazer as pontes entre os diversos conteúdos. Além disso, os profes-
sores, mesmo trocando de disciplina periodicamente, não conse-
guem se atualizar e lecionam, muitas vezes, uma Matemática "an-
tiga".

16 Formação de professores de Matemdtica


A generalização do uso de calculadoras e computadores, por
exemplo; já desatualizou-uma série de-conteúdos-ensinados-em-todos
os níveis de ensino, mas muitos professores (e livros-texto) insistem
em repeti-los, em aulas que poderiam ser aproveitadas para desen-
volver outros conteúdos e capacidades.
D'Ambrósio (1993) cita as habilidades de modelar um proble-
ma em linguagem matemática, de analisar dados, de questionar, de
conjecturar, de levantar hipóteses, de testá-las e de justificar as con-
clusões obtidas, como as que serão requeridas para o século XXI. Se
essas habilidades são importantes para o aluno de qualquer nível de
ensino, com maior razão o são para o professor e, especialmente,
para o docente universitário, que tem a responsabilidade de formar os
futuros licenciados. No entanto, as temos efetivamente bem desen-
volvidas?
Vasconcelos (1996), ao tecer considerações sobre as capacida-
des que deveriam ser desenvolvidas pelo professor universitário, cita
o conhecimento profundo do conteúdo que ensina, o senso crítico
para compreender a realidade que o cerca e a realização de pesquisas.
A análise dos dados, o questionamento, o levantamento e a testagem
de hipóteses, por exemplo, são atividades que envolvem todas as três
capacidades acima indicadas. Porém, concordamos com a autora
citada quando diz que, na prática, os docentes, em geral, têm no má-
ximo duas delas bem desenvolvidas.
Se o professor de um curso de Licenciatura não mostra, na sua
prática, que é capaz de "pensar por conta própria", de produzir co-
nhecimento ao invés de copiá-lo, então seus alunos, futuros professo-
res de Matemática, também não se sentirão motivados a modificar
sua atitude de meros copiadores/reprodutores do conhecimento pron-
to.
Demo (1999) é bastante duro ao criticar a falta da prática de
pesquisa em nossa universidade. Segundo ele,
"...(a) grande maioria dos professores não faz o essencial que os de-
fine. Apenas dão aulas, copiadas, repassadas como cópia, recebidas
pelo aluno como cópia da cópia. Não se justifica tempo integral ou
dedicação exclusiva só para ensinar . É falsa a desculpa de que se
necessita de tempo considerável para preparar aula, porque preparar
aula só pode significar incorporá-la na pesquisa. Quem tem atitude
de pesquisa está em constante estado de preparação" (p. 135).

A formação dos formadores de professores de Matemática 17


O mesmo autor também fala nas habilidades necessárias ao
professor universitário que efetivamente se preocupa em superar a
atitude de mero reprodutor do conhecimento. Além da constante
atualização e da capacidade de conjugar teoria e prática, aponta
a "construção auto-suficiente de projeto pedagógico criativo"
(p. 154).
Atualmente muito se fala em projeto pedagógico para os cur-
sos, para as Unidades, para as IES, até pela exigência da nova Lei
de Diretrizes e Bases (LDB) em seu artigo 12. Mas a elaboração,
pelo professor, de seu próprio projeto, ou seja, a estruturação de
objetivos, conteúdos, métodos e procedimentos avaliativos para
uma determinada disciplina, fundamentados em um conhecimento
profundo do assunto, dos alunos e da realidade na qual o curso está
inserido e ancorados em resultados de pesquisa próprias, deve ser
exigência anterior às ditadas pela lei. De que adianta um projeto
pedagógico extremamente bem elaborado mas imposto "de cima
para baixo"?
Falise (1992) considera que, para "construir já, a partir de ho-
je, o amanhã que eu quero" (p. 10), há uma exigência fundamental:
o projeto da Universidade deve ser, "ao mesmo tempo, projeto cole-
tivo e lugar de convergência da maior quantidade possível de proje-
tos pessoais" (p. 13). Somente dessa forma poderíamos ter um pro-
jeto pedagógico que efetivamente fosse posto em prática, porque
não teria sido elaborado a partir de pressupostos teóricos alheios à
Unidade em questão, mas seria composto por todas as idéias co-
muns aos projetos individuais.
Ao sugerir que o professor ancore o ensino nas suas pesquisas,
não pretendemos a extinção das disciplinas tradicionais, fundamen-
tais para qualquer curso de Licenciatura em Matemática, como
Álgebra, Geometria, Análise. Acreditamos que esses conteúdos
devem ser ensinados, mas não como uma "cópia", não como uma
mera repetição do que já está escrito nos livros-texto. Eles devem
ser enfocados a partir dos problemas que o docente pesquisa e na
solução dos quais utiliza os conhecimentos de qualquer uma dessas
áreas da Matemática. Dessa forma o aluno estará aprendendo, não
só o conteúdo matemático, como a postura de pesquisador, pois o
mestre estará, também, ensinando a produzir conhecimento.

18 Formação de professores de Matemática


Consideramos, então, que um terceiro ponto a ser levado em
consideração na-discussão sobre a formação-dos-docentespara a
Licenciatura em Matemática é a necessidade de pesquisas, de forma
que o ensino esteja ancorado no conhecimento produzido pelo pró-
prio docente.
Já comentamos a desatualização de muitos professores face às
novas tecnologias e este parece ser um problema a mais na capaci-
tação dos docentes dos cursos de Licenciatura em Matemática. A
forte ênfase nas demonstrações de teoremas, considerada por mui-
tos como a "verdadeira" Matemática, faz com que alguns docentes
tenham uma certa "reserva" em relação às calculadoras e computa-
dores e relutem em modificar seus comportamentos, ainda que
premidos pelas circunstâncias.
Kenski (1996) comenta que mudaram os papéis do professor
nessa nova sociedade tecnológica em que estamos vivendo. Tradi-
cionalmente, a escola (e a Universidade, com maior razão) era o
"1ócus privilegiado do saber" (p. 131) e o professor era o detentor
do conhecimento. O processo de comunicação baseava-se na
transmissão de idéias, fatos, regras e raciocínios. Os alunos copia-
vam as informações recebidas, transformando tudo em texto escrito,
anotando as palavras proferidas pelo professor, descrevendo as
experiências realizadas, os gráficos plotados, etc.
Mas os estudantes, inseridos nessa nova sociedade em que os
meios de comunicação de massa imperam absolutos, têm outras
percepções para cores, imagens, sons. Seus raciocínios não são tão
lineares, nas suas análises entram componentes afetivos e intuitivos.
Porém, será que apenas os jovens estão mudando e se adaptando às
novas realidades? Certamente que não!
Kenski (1996) aponta muito bem essa contradição: o profes-
sor, fora da sala de aula, está recebendo as mesmas influências des-
sa nova realidade mas, em sala de aula, muitas vezes age como se
negasse a existência de outras possibilidades para a comunicação. E
é a mesma autora que sugere: professores e alunos precisam apren-
der a conversar, a falar sobre suas dificuldades, a aprender uns com
os outros, em uma troca benéfica para ambas as partes.

A formaçáo dos formadores de professores de Matemática 19


Face às experiências realizadas com o uso de computadores
para o trabalho com funções e gráficos-- como vemos em Palis
(1995) e Silveira (1998), entre outros - acreditamos que o encontro
de aluno e professor na frente de um computador, conversando
sobre as dificuldades de aprendizagem e as limitações dos software,
pode ser uma fonte de novas descobertas e oportunidades para uma
maior aproximação entre eles, o que, sem dúvida, tem consequên-
cias benéficas para a relação professor-aluno.
Uma quarta observação sobre a docência nos cursos de forma-
ção de professores de Matemática, portanto, está ligada à necessi-
dade de adaptação do docente às novas ferramentas computacionais
utilizáveis no ensino.
A partir das modificações no sistema de ensino superior brasi-
leiro, com as exigências da LDB e do Ministério de Educação e
Cultura referentes à avaliação dos cursos segundo critérios que
incluem titulação dos professores, novos fatores vieram se agregar
aos problemas já detectados na formação do corpo docente dos
cursos de Licenciatura.
Atualmente, com maiores exigências para o ingresso ou per-
manência nas universidades, os docentes são incentivados a con-
cluir mestrados e doutorados, na maior parte das vezes em suas
áreas específicas. Assim, entre os professores que lecionam em
cursos de Licenciatura em Matemática, temos uma grande percen-
tagem de mestres e doutores em Matemática Pura e Aplicada e
alguns poucos titulados em Educação ou Educação Matemática.
Essa predominância da área da Matemática faz com que o
maior modelo para os futuros licenciados seja o dos docentes das
disciplinas de Cálculo, Álgebra, Geometria, Álgebra Linear, Análi-
se Matemática, que distinguem a Matemática dos outros cursos de
Licenciatura. Mas como é, em geral, a prática desses professores?
Por valorizarem excessivamente o conteúdo matemático, conside-
ram, muitas vezes, que o mais importante é "passar" uma grande
quantidade de conteúdos, premidos, também, pelos programas e
cronogramas a cumprir. Esquecem-se, no entanto, de que estão
lecionando em cursos de formação de professores e não de bacha-
réis em Matemática.
Gonçalves e Gonçalves (1998) salientam muito bem este fato:

20 Formação de professores de Matemática


"Parece-nos necessário que os professores, principalmente os
formadores de professores, que se especializam em nível de mestra-
do e doutorado em suas disciplinas de conteúdos específicos, tomem
consciência de que são profissionais da educação, e que têm, além
da realização de sua pesquisa em sua especialidade, o que não está
aqui em discussão, necessariamente, a função de formar um outro
tipo de profissional que não será um pesquisador em um conteúdo
específico, mas que terá como objetivo o ensino de determinada ma-
téria no ensino fundamental e médio" (p. 118).
Os cursos de Mestrado e Doutorado em Matemática não cos-
tumam oferecer estudos nas áreas de Ensino e de Psicologia da
Educação, que permitiriam aos futuros docentes um conhecimento
mais aprofundado de aspectos do processo de ensino-aprendizagem
e do desenvolvimento cognitivo. Quando os pós-graduandos têm
oportunidade de fazer cursos nessas áreas, isso ocorre em caráter
optativo, como por exemplo a disciplina de Teoria e Prática do
Ensino Superior, oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS para todos os cursos de Pós-Graduação dessa
Universidade.
O reduzido número de créditos em disciplinas desse tipo, no
entanto, não permite o aprofundamento das discussões que surgem
em aula, no saudável convívio dos pós-graduandos da Universida-
de. Mesmo interessados em debater aspectos que reconhecem fun-
damentais para suas práticas como docentes universitários, esses
alunos, premidos pelas exigências de seus programas, não cursam
outras disciplinas que poderiam Ihes dar um melhor embasamento
pedagógico.
Em outras IES, e a PUCRS é um dos casos, há cursos de atua-
lização pedagógica para os docentes que ingressam na Universida-
de, oferecidos pelo Setor Didático Pedagógico. Porém, da mesma
forma, os novos mestres e doutores, oriundos, em sua maioria, de
cursos de Bacharelado, ainda que fascinados pelas possibilidades
que se lhes descortinam na área do ensino, não têm tempo (nem
hábitos) para aprofundar leituras na área, nesse início de carreira
em que precisam preparar, pela primeira vez, aulas para as mais
variadas disciplinas.
Novamente concordamos com Gonçalves e Gonçalves (1998),
pois "as universidades parecem não perceber que os problemas do

A formação dos formadores de professores de Matemática 21


ensino superior podem ter causas na formação de seus docentes" (p.
124). Não basta insistir na titulação se esta não propiciar, também,
o debate sobre as questões educacionais da área na qual o docente
está completando Mestrado ou Doutorado.
Sofrendo influências variadas em sua formação acadêmica e
não discutindo aspectos do processo de ensino-aprendizagem de
Matemática, especialmente as questões relacionadas com o ensino
de Cálculo e Álgebra, disciplinas que têm altos índices de reprova-
ção, mesmo em cursos de Licenciatura em Matemática, os docentes
pós-graduados tendem a se acomodar em uma prática modelada por
tendências tradicionais e muitas vezes almejam voltar-se totalmente
para a pesquisa. Que capacidades e habilidades tem esse profissio-
nal para o trabalho em um curso de formação de professores de
Matemática? Em que momento esta pergunta é feita pela Universi-
dade?
Balzan (1996) considera que ainda estamos vivendo, no Bra-
sil, uma situação como a apontada nas conclusões de conferência
promovida pelo American Council on Education, há 50 anos: "O
professor universitário é o único profissional de nível superior que
entra para uma carreira sem que passe por qualquer julgamento de
pré-requisitos em termos de competência e de experiência prévia no
domínio das habilidades de sua profissão" (p. 53).'
A quinta observação que elencamos em nossa discussão sobre
a formação dos formadores de licenciados é a falta de oportunidade
de conhecer novas tendências nas áreas de Educação, Educação
Matemática e Psicologia Cognitiva, o que tem dificultado aos do-
centes recém-titulados a modificação de suas práticas, para adequá-
las às necessidades dos alunos e da sociedade atual.
Um fator crucial, que não pode ser esquecido nas discussões
sobre cursos de Matemática (ou mesmo de qualquer outra área) é a
avaliação da aprendizagem. Como os docentes avaliam seus alunos,
que serão os futuros professores de Matemática? Ou seja, qual é o
modelo de avaliação que os licenciandos recebem?

Gonçalves e Gonçalves (1998), citando projetos desenvolvidos por algumas IES


para a melhona da capacitação pedagógica de seus professores, também relembram
esta conclusão apontada por Balzan.

22 Formação de professores de Matemática


No processo de avaliação da aprendizagem matemática, utiliza-
do habitualmente, em qualquer nível de ensino, estamos acostumados
a corrigir provas, que são instrumentos individuais de avaliação, e o
fazemos separadamente das outras atividades desenvolvidas pelo
grupo, durante as aulas ou como tarefas extraclasse. Essa avaliação
não leva em conta o processo de chegar à solução, não usa os erros
dos alunos como subsídios para compreender suas dificuldades.
Quando corrigimos uma prova, estamos avaliando um compor-
tamento que já é passado. Muitas vezes, um aluno só se dá conta de
algum erro cometido em uma questão ao comentá-la com os colegas.
A avaliação em cima das respostas da prova está dando a informação
sobre as reais capacidades do aluno? Seguramente, não!
Na interação social, o aluno pode amadurecer certas funções
cognitivas latentes (atenção, raciocínio indutivo, raciocínio dedutivo,
capacidade de generalização) e o auxilio representado pela conversa
com os amigos pode levá-lo a compreender, em um rápido instante,
algum conceito fundamental para a resolução da questão.
Portanto, o erro cometido já é passado, pois aquela compreen-
são, adquirida instantes após a prova, já levaria o aluno a acertar uma
questão semelhante, se ela lhe fosse proposta a seguir. Com essas
observações, estamos evocando idéias de Vygotsky, que definiu zona
de desenvolvimento proximal como:
"...a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de problemas, e o nível
de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de
problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes" (1989, p. 97).
Quando um aluno, que solucionou de forma errada um pro-
blema, procura apoiar-se no conhecimento de um colega mais expe-
riente, há uma espécie de tutelagem, desenvolvendo habilidades
latentes nesse convívio social.
Também há em Vygotsky a crítica ao ensino orientado para o
desenvolvimento que já foi atingido, pois "não se dirige para um
novo estágio do processo de desenvolvimento, mas, ao invés disso,
vai a reboque desse processo" (1989, p. 100). Baseado no conceito de
zona de desenvolvimento proximal, o autor propõe uma "nova fór-
mula", ao considerar que "o bom aprendizado é somente aquele que
se adianta ao desenvolvimento" (Ibid., p. 101).

A forrnaçáo dos formadores de professores de MaternAtica 23


O ensino que não leva em conta a aprendizagem mediada pelo
convívio social e baseia a avaliação somente em provas individuais,
está apenas considerando o desenvolvimento já atingido. A "nova
fórmula", para o docente dos cursos de Matemática, consiste em
propor problemas, tarefas, desafios que exijam o esforço conjunto
dos alunos, "empurrando-os" para patamares mais altos de pensa-
mento.
Com esse propósito, a análise dos erros enquanto estão sendo
cometidos, na resolução dos problemas propostos, permite ao profes-
sor ter uma visão mais abrangente das dificuldades e necessidades do
grupo, de modo que as atividades de ensino planejadas permitam aos
estudantes, como grupo e como indivíduos, desenvolverem as fun-
ções cognitivas ainda não completamente amadurecidas (Cury,
1994).
A avaliação não deve ser dirigida ao conhecimento estático,
mas ao conhecimento em mudança, pois a habilidade de modificar
estratégias de resolução de problemas será uma das mais exigidas,
não só do futuro professor de Matemática como de qualquer outro
profissional do século XXI.
Preocupa-nos, portanto, como último ponto a ser destacado, o
tipo de avaliação da aprendizagem que é, em geral, utilizada pelos
docentes formadores dos futuros professores de Matemática, espe-
cialmente pela possibilidade de que esse modelo rígido seja copiado
pelos licenciandos, reproduzindo, em um círculo vicioso cruel, a
idéia de que avaliar é julgar, é condenar, é punir.
Algumas modificações que vêm sendo feitas no ensino superior
brasileiro vão, com certeza, ter implicações importantes para os cur-
sos de Licenciatura em Matemática. A nova Lei de Diretrizes e Ba-
ses, ainda não suficientemente discutida e entendida pelas IES, trará
mudanças para os currículos dos cursos, acarretando adaptações dos
docentes ao novo contexto, pois a exigência de um maior número de
horas de Prática de Ensino, por exemplo, mostra que a ênfase no
conteúdo matemático terá que ser relativizada.
Também as novas Diretrizes Cuniculares para os cursos de
Graduação, em fase final de análise pelo MEC, vão cooperar para as
transformações desses cursos, apontando um perfil de professor que
difere, em muitos aspectos, do profissional hoje graduado pela Li-
cenciatura em Matemática.

24 Formaçáo de professores de Matemática


Outro elemento de "desacomodação" no contexto das licen-
ciaturas em Matemática é a sua inclusão no Exame Nacional de
Cursos, promovido pelo Sistema de Avaliação do Ensino Superior
Brasileiro. A titulação dos docentes, a dedicação - parcial ou exclu-
siva - ao curso, o número de professores horistas e os resultados
das provas aplicadas aos formandos poderão indicar a necessidade
de fazer ajustes nas grades curriculares, na metodologia de ensino
ou nos programas das disciplinas dos cursos de Matemática.
Mas, antes de quaisquer mudanças que venham a ser
implementadas por determinação das políticas governamentais para
a Educação, propomos a criação de grupos de estudos em cada Li-
cenciatura em Matemática, com docentes das áreas específica e
pedagógica, dispostos a discutir, não só os problemas do curso,
mas, também, suas concepções sobre a natureza da Matemática, seu
ensino e aprendizagem.
Acreditamos que todos os cursos universitários necessitam de
uma revitalização das práticas de seus docentes, muitos desses
avessos a mudanças e considerando-se "prontos", em uma atitude
essencialmente positivista. Ramos (1999) apresenta uma experiên-
cia realizada com professores de Química, que avaliaram seu de-
sempenho docente a partir de depoimentos de alunos, em um pro-
cesso reflexivo que proporcionou o crescimento dos sujeitos.
A opinião do autor, a partir da experiência citada, é de que:
"A participação dos professores em grupos organizados, para
compreender, para refletir sobre as práticas docentes dos envolvidos,
teorizando-as, pode contribuir para o desenvolvimento profissional
desses professores, em função das mudanças que se desencadeiam
no seu pensar e no seu fazer" (p. 258).
Também Gonçalves e Gonçalves (1998) sugerem pesquisas
em ensino de Matemática, Física, Química, etc., realizadas por gru-
pos de docentes e alunos das respectivas licenciaturas, para subsidi-
ar as suas reflexões sobre as atividades como educadores.
Bazzo (1998) também imagina ações que possam desencadear
reflexões sobre a educação científico-tecnológica, sugerindo a "cria-
ção de grupos de estudo permanentes, que reúnam, em seus qua-
dros, pesquisadores com visão interdisciplinar e holística" (p. 299).

A formaçao dos formadores de professores de Matemática 25


Nos grupos de estudo para as Licenciaturas em Matemática
que estamos propondo, seriam discutidos os mais variados temas,
desde História e Filosofia da Matemática, passando por debates
sobre conteúdos das disciplinas básicas, até trocas de idéias sobre
Metodologia do Ensino da Matemática e sobre avaliação. Esses
grupos seriam formados por professores do curso de Licenciatura
em Matemática de uma determinada Instituição ou mesmo de Insti-
tuições diversas, assessorados por especialistas em cada uma das
áreas debatidas. Os encontros de professores teriam o objetivo sub-
jacente de incentivar a reflexão sobre as concepções e práticas vi-
gentes nos cursos atuais.
Assim como a comunidade matemática está envolvida no pro-
cesso social de criação da Matemática, na medida em que cada
conhecimento criado por um indivíduo é passado à comunidade que
o critica e reformula, tornando-o público, de forma a ser internali-
zado pelos indivíduos da comunidade e gerar novos conhecimentos,
também uma comunidade de Educação Matemática - o grupo de
professores de um curso de Licenciatura em Matemática, no caso -
deveria envolver-se no processo de ensino e aprendizagem dessa
disciplina, abrindo espaços para que cada indivíduo possa trazer
suas experiências de ensino e discuti-las com o grupo, de tal forma
que as concepções subjacentes venham à tona e sejam criticadas;
dessa maneira, cada indivíduo poderia conscientizar-se das incoe-
rências de sua prática, e o grupo poderia aproveitar a experiência
discutida para reformulá-la e reaplicá-la, gerando novas experiên-
cias que seriam novamente debatidas (Cury, 1994).
Discutimos alguns aspectos da formação de formadores de
professores de Matemática, apontando problemas e sugerindo pos-
síveis ações para resolvê-los ou pelo menos minimizá-10s. Nosso
objetivo, com este texto, é desencadear debates sobre as idéias
apontadas, permitindo que outras visões sobre o tema possam des-
cortinar novas facetas para o trabalho a ser desenvolvido nos cursos
de Licenciatura em Matemática.

26 Formação de professores de Matemática


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28 Formação de professores de Matemática


PRÁTICA DOCENTE: REFERÊNCIA
PARA FORMAÇÃO DO EDUCADOR
Marlene Grillo

Introdução

Tentar explicações definitivas que subsidiem a formação pro-


fissional do educador é aventurar-se num terreno sinuoso com limi-
tes imprecisos, apoiando-se em suposições e hipóteses provisórias,
numa tarefa a priori reconhecida como inconclusa.
Estudos que apresentam tais explicações acabam sendo alvo
de críticas, esbarrando na dificuldade de identificação das necessi-
dades formativas do professor e conseqüentemente comprometendo
a configuração do tipo de professor de que se necessita. Isso porque
as demandas em relação a ele emergem de combinações variadas de
fatores complexos e inter-relacionados, muitas vezes com enfoques
pontuais que impedem posicionamentos mais definitivos e acentu-
am o caráter de provisoriedade e de insuficiência da possível res-
posta.
Qualquer estudo sobre a formação do professor concretiza-se
num movimento de mão dupla em relação a uma comunidade espe-
cífica, nela se origina e a ela retorna, abrindo-se sempre ao próprio
contexto cultural, razão por que o conhecimento sobre a formação
docente é mutável e situacional.

Prática docente: referência para formação do educador 29


Modelos explicativos da vida da sala de aula

Nas últimas décadas vem-se observando um intenso movi-


mento de investigação sobre a vida da sala de aula e sobre os pro-
cessos de ensino que nela têm lugar. Há um entendimento de que o
estudo das relações estabelecidas entre os fatores que incidem sobre
o ensino possibilita derivar normas de intervenção pedagógica,
ampliando o conhecimento sobre a formação docente (Gimeno
Sacristán e Pérez Gómez, 1998).
Originam-se daí diversos modelos, ou paradigmas, que tentam
explicar a dinâmica da sala de aula, onde é dado destaque à ação do
professor, visto sob perspectivas diferenciadas. A diversidade de
modelos explicativos, até mesmo a sua proliferação, ainda que com
pouca influência na prática, não significa confusão ou superficiali-
dade teórica e decorre da diferença de valores, interesses, teorias
implícitas e pontos de vista dos investigadores. Cada modelo sugere
um enfoque específico para a formação do professor e de certa for-
ma diferencia-se de um modelo anterior, algumas vezes tentando
reconciliar inconsistências ou suprimindo lacunas, outras, agregan-
do novos elementos ao conjunto configurado.
Gimeno-Sacristán e Pérez Gómez (1985, 1998) que, entre ou-
tros autores, têm sistematizado esses estudos, falam em quatro mo-
delos substantivos explicativos. Em estudos iniciais (1985), usaram
a palavra paradigma, mas, em trabalhos mais recentes, afirmam "ser
difícil considerar que os modelos tenham alcançado o grau de im-
plantação geral dentro da comunidade científica, como sugere o
termo paradigma, segundo a proposição de Kuhn" (1998, p. 70).
São os seguintes os modelos referidos:
O modelo presságio-produto
O modelo processo-produto
O modelo mediacional centrado no professor ou no aluno
O modelo ecológico.
1

Esses modelos obedecem a uma certa cronologia, com início


aproximadamente nos anos sessenta, mas não há um período defi-
nido de duração, nem são identificados seus limites temporais ou
espaciais.

30 Formação de professores de Matemática


O primeiro modelo, presságio-produto, dá destaque às carac-
terísticas físicas, psicológicas e sociais do professor. Sua personali-
dade é a variável absoluta aplicável a todo ensino, todo aluno e todo
conteúdo. Trata-se de um modelo reducionista que ignora qualquer
esquema conceitual e desconsidera outras variáveis igualmente
presentes.
O modelo processo-produto é experimentalista: estuda as re-
lações entre o comportamento do professor em aula ou mesmo a
interação entre o professor e os alunos e os resultados da aprendi-
zagem, como resposta à ação docente. Também é reducionista, "é
uma grotesca simplificação, uma caricatura do funcionamento do
real" (Pérez Gómez, 1985, p. 1I), na medida em que, considerando
o docente como fator causal do comportamento e rendimento do
aluno, despreza a possibilidade de que os alunos também influam
no comportamento do professor ou mesmo, que ambos sejam in-
fluenciados por outros fatores.
Críticas a esse modelo apontam ainda a desconsideração de
aspectos não-observáveis, como intenções e significados de com-
portamentos e de processos cognitivos de professores e alunos,
bem como a abstração do contexto que serve de cenário ao próprio
modelo.
O paradigma mediacional surge preocupando-se com o signi-
ficado do que acontece em sala de aula e com o que e como pensam
professores e alunos. O enfoque principal desse modelo fundamen-
ta-se no papel ativo do ser humano em seu processo cognitivo, cen-
trando-se prioritariamente ou no aluno ou no professor.
No primeiro caso, no paradigma mediacional centrado no alu-
no, valoriza-se o conhecimento que ele já possui, sua afetividade, a
forma como percebe a instrução e o próprio professor, e como in-
terpreta o que lhe é ensinado. O comportamento do professor, ainda
que não seja determinante como nos modelos anteriores, não é ig-
norado, pois influi nos resultados da aprendizagem, ativando o pro-
cessamento da informação pelo aluno (Contreras Domingo, 1989).
O paradigma mediacional centrado no professor estuda a me-
diação cognitiva docente. É, então, o seu pensamento que lhe pos-
sibilita conhecer e diagnosticar uma situação específica, processar
informações e tomar decisões.

Prática docente: referência para formação do educador 31


Entre as críticas apresentadas a esse modelo, a mais veemente é
a pouca consideração das variáveis contextuais, o que é contemplado
no modelo ecológico.
Este modelo assume os principais pressupostos do mediacional,
no que se refere à reciprocidade de influências entre professor e alu-
nos, ao processamento de informações, à consideração de significa-
dos subjacentes. Acrescenta ainda a necessidade de se integrarem tais
fatores em redes mais amplas de influências e de significados, rela-
cionando meio-ambiente, comportamento individual e coletivo.
Só é possível entender ações do professor e dos alunos se inter-
pretadas à luz das solicitações do ambiente da sala de aula, cujo sig-
nificado é gerado na interação e no intercâmbio entre objetivos, pes-
soas, grupos e instituições. É por isso que o paradigma ecológico
deixa clara a insuficiência de se estudarem comportamentos docentes
ou procedimentos de ensino isoladamente, pois todo fator que incide
sobre o ensino ou a aprendizagem é situacional, com carga social ou
política, que o grupo define em negociação explícita ou implícita.
Esse mesmo paradigma deixa também clara a necessidade de se
desenvolver um ensino interativo que se constitui a partir das expe-
riências e saberes dos alunos, incentiva a socialização de vivências
individuais, abre espaços nos conteúdos previamente determinados
para estudar e debater experiências sociais ou científicas atuais mui-
tas vezes divulgadas pela mídia antes mesmo de se transformarem
em saber escolar (Leal e Selles, 2000), revitaliza conteúdos progra-
máticos (aparentemente desinteressantes) através da descoberta de
sua validade na vida de fábricas, empresas, centros comunitários,
vilas, museus, entre outros.
Tais exigências definem o professor como um pesquisador em
sala de aula e, numa visão mais ampliada, um cidadão crítico, políti-
co e transformador da educação e da sociedade.
Este modelo sugere duas direções complementares para a for-
mação de professores:
O possibilitar-lhes a aquisição de instrumentos intelectuais
que auxiliem na melhor compreensão das situações com-
plexas da sala de aula
R comprometê-los em atividades de caráter comunitário pa-
ra estabelecer vínculos entre a escola e a realidade social
em que atuam (Imbemon, 1994).

32 Formaçáo de professores de Matemática


O último modelo analisado amplia, portanto, os requisitos pa-
ra a formação do professor: indica que esta formação transcende o
mero compromisso acadêmico, agregando o comprometimento
político e social com a comunidade. Somente dessa forma é que o
professor poderá integrar em seu projeto pedagógico valores e cul-
tura do meio em que se insere, coerente com sua condição de pro-
fissional crítico e reflexivo que é ou virá a ser, e construindo prin-
cípios mais consistentes para sua condição de educador.
A referência aos modelos explicativos, neste texto, tem so-
mente o objetivo de recordar aspectos, no nosso entendimento, mais
significativos de cada um deles, ainda que de forma bastante sim-
plificada. '
Tais modelos apresentam uma complexidade crescente, com
possibilidade de chegar a explicar de maneira mais satisfatória a
dinâmica do ensino, ainda que se reconheça que todos, de alguma
forma, são passíveis de críticas.
As variáveis encontradas nesses modelos - independentes, de
processo e dependentes - em estudo há mais de quarenta anos, são
ainda consideradas nas pesquisas atuais, embora com tratamentos
diferenciados: o professor, enquanto pessoa e profissional e sua
prática, a organização e a seleção de conteúdos e de procedimentos,
a interação na sala de aula, a ação na comunidade são vistas, hoje,
no conjunto do cotidiano docente como integrantes de um todo em
permanente interação, e não isoladamente ou com alguma priorida-
de sobre as demais variáveis.

Contribuições possíveis de práticas docentes


bem-sucedidas

Tentando contextualizar esses fatores no cenário da formação


de professores, optamos por estudar o processo de ensino partindo
do que falam os docentes a respeito de sua prática.
Na impossibilidade de se prescreverem recomendações "cer-
tas", entendemos ser a reflexão sobre a docência bem-sucedida uma

Para um estudo mais aprofundado sobre paradigmas de ensino, recomendamos


a leitura de Gimeno, J. e Pérez Gómez, A. 1985 e 1998.

Prática docente: referência para formação do educador 33


forma provável de cada professor (re)construir um conhecimento
particular que por sua vez venha a subsidiar a melhoria de sua pró-
pria prática.
Pesquisando fatores influentes na prática pedagógica junto a
docentes de ensino superior exitosos, foram apontados vários ele-
mentos, encontrados nos paradigmas acima descritos. Apenas para
melhor compreensão didática, neste texto, tais fatores são agrupa-
dos em:
Cl características pessoais e profissionais representadas, nes-
te estudo, por domínio do conhecimento, respeito mútuo,
gosto pela docência e exigência
O espaço da sala de aula e interação professor-aluno
O competência profissional explicada por saber e saber fazer
O abertura ao contexto social e político.

Características pessoais e profissionais

Os docentes citam características pessoais e profissionais com


unanimidade, sem no entanto separá-las, concordando com Canário
(1991) e Cunha (1989) entre outros, que as apontam como fatores
de importância no ensino e afirmam ainda ser difícil e até mesmo
inútil separá-las de forma rígida. O professor, ao mesmo tempo em
que se desempenha como docente, revela-se como pessoa. "Dize-
me como ensinas, dir-te-ei quem és e vice-versa" (Nóvoa, 1997, p.
30) é o que afirma o autor citado, esclarecendo que essa frase fará
horror a todos os que se esforçam em racionalizar o ensino e pro-
curam controlar a priori fatores aleatórios e imprevisíveis do ato
educativo.
Ainda segundo o mesmo autor, a identidade do educador se
constrói sobre um equilíbrio entre características pessoais e profis-
sionais, do que se conclui ser possível desvendar a totalidade da
pessoa analisando-se sua prática. Tal prática, portanto, traz sempre,
de alguma maneira, a marca do professor. Até mesmo a simples
seleção de um conteúdo transcende o meramente instrucional. A
opção do docente ao priorizar um conteúdo em detrimento do outro
é no mínimo uma forma de deixá-lo mais fortalecido. E isto é sem-

34 Formação de professores de Matemática


pre baseado em valores, interesses e expectativas pessoais e profis-
sionais. Igualmente, a maneira de tratar tais conteúdos é bastante
particular, pois é ainda o professor que pode encontrar formas pra-
zerosas ou não de tratar assuntos tediosos. Os possíveis limites
entre características pessoais e profissionais, portanto, ou são muito
tênues ou não existem.

Domínio do conhecimento

Cada característica apontada pelos docentes entrevistados re-


veste-se de um significado mais profundo do que o verbalizado. O
domínio do conhecimento incluído nas características apontadas
não acontece isoladamente e se faz acompanhar por outras caracte-
rísticas, conforme nos mostra a manifestação de um professor:
"[ ...I penso que os alunos apontariam domínio de conteúdo. Eu não
me canso de repetir que, se eu sei, vou ensinar; se não sei, vou estu-
dar junto com eles. Se ainda assim não souber, vou procurar quem
entende mais do assunto. É, no mínimo, uma questão de responsabi-
lidade. Mesmo que eu vá desgastar a minha imagem por perguntar
para alguém, se ele conhece mais aquele assunto do que eu, jamais
deixo de perguntar. Este aspecto de ser honesto é muito forte, não
ficar enganando aos outros e a mim mesmo [...I."
Esta fala destaca autenticidade, honestidade, valores do pro-
fessor e expressa um posicionamento ético. A docência exige um
comportamento ético explícito pois o professor age com consciên-
cia profissional, cumprindo compromissos com o conhecimento,
com o aluno e com a sociedade.

Segurança

Outra característica que identificamos na indicação do domí-


nio de conteúdo é segurança transmitida aos alunos e de certa forma
se relaciona com a honestidade analisada anteriormente.
Novamente valemo-nos de palavras de um professor:

Prática docente: referbncia para formaçáo do educador 35


"[ ...I como eu desenvolvo um ensino muito crítico e me preocupo
com que os alunos critiquem o ensino, em conteúdos formativos e
informativos, eu me exponho muito e só se expõe quem tem segu-
rança pelo domínio do conteúdo. E os alunos percebem essa segu-
rança ao criticarem os temas objetos de estudo [...I."
O professor, cuja segurança decorre do domínio do conteúdo,
representa uma autoridade docente, legitimada pelo reconhecimento
dos alunos. É uma autoridade que vem da vivência cotidiana e não
da instituição superior. Exige coragem do professor para se expor e
correr riscos, especialmente por oportunizar manifestações e críti-
cas dos alunos.
Ainda é o domínio do conhecimento do professor sustentado
pela segurança que possibilita a ocorrência de discussões e críticas
produtivas entre alunos e professor. Não é raro, por despreparo do-
cente, ocorrerem digressões calcadas em casuísmos e improvisações,
perdendo-se um tempo precioso que poderia ser dedicado ao ensino e
à aprendizagem.

Respeito mútuo

O respeito mútuo é outra característica indicada pelos professo-


res, entendida como necessária entre professor e aluno e entre aluno e
aluno. Fundamenta-se na aceitação de individualidades com suas
limitações, fraquezas e divergências. Isso vai exigir do professor, por
um lado, que garanta liberdade e segurança ao aluno para fazer per-
guntas, às vezes irrelevantes, para responder e, até mesmo, errar. Por
outro lado, que provoque situações de desequilíbrio, de conflito cog-
nitivo, e de desinstalação do aluno, as quais combatem sua passivi-
dade e sua acomodação.
O docente ainda expressa respeito pelo aluno conforme orienta
discussões, dispõe-se a ouvi-lo na defesa de seus argumentos e aco-
lhe opiniões divergentes. O aluno, por outro lado, sente-se mais res-
ponsável por ver acolhidas suas contribuições, e mais solidário ao
respeitar as contribuições de seus colegas. "Se isto não acontecer,
afirma uma professora, se os alunos não aprenderem a discutir e a
respeitarem a posição dos colegas, estou certa de que estamos fa-
lhando".

36 Formação de professores de Matemática


Outros professores também se manifestam favoravelmente a
esse aspecto, corroborando o que afirmamos:
"[ ...I os alunos não podem ficar achando que os colegas são incapa-
zes e suas opiniões não valem. O respeito à opinião dos outros é
uma aprendizagem necessária [...I."
"[ ...I jamais busco um conflito pessoal. Pode-se buscar o conflito de
idéias mas o de pessoas, que surge do desrespeito, deve ser evitado.
Isso explica a grande participação de meus alunos [...I."
O respeito na docência ainda é externado não só em atitudes
respeitosas socialmente aceitas, mas através de outros indicadores
como o preparo do professor, o planejamento e a organização do
ensino, a seleção de material didático em termos de relevância do
conteúdo para os alunos, de correção lingüística, clareza e legibili-
dade do material apresentado. Os alunos se sentem desrespeitados
pelo professor desorganizado, sem a devida preparação, e que utili-
za material ultrapassado e confuso.
A reciprocidade desejável no respeito não significa identidade
de valores, idéias ou ações, o que anularia individualidades; tampou-
co se estabelece por determinação do professor, por conivência ou
imposição. Faz parte da própria condição do processo educativo o
aluno saber que o professor o respeita pelo que ele representa e que
respeitar o outro é também um componente de sua aprendizagem.

Gosto pela docência

O gosto pela docência, entusiasmo e mesmo paixão são consen-


so dos professores e expressam a opção por um projeto de realização
pessoal, um percurso de livre escolha que influem na história de vida
de cada docente, conforme se expressam alguns:
"[ ...I a docência entusiasma mais o gosto pela vida, porque os jovens
é que vão oferecer desafios e eu acho que o homem sem desafios pá-
ra de viver e passa a ser sobrevivente [...]."
"[ ...I é com o aluno que eu me realizo. Há dias que eu saio pensan-
do: não é o salário que me gratifica. É alguma coisa de relação pes-
soal, de relação mágica que existe entre as pessoas de significado
humano [...I."

Prática docente: referência para formação do educador 37


O entusiasmo se manifesta ainda sob outro enfoque. Não se
restringe apenas ao desempenho do próprio docente, mas ao de
alunos ou ex-alunos. O professor se entusiasma também quando vê
testemunhada a autonomia intelectual de um aluno ou ex-aluno, o
saber caminhar sozinho, que dispensa o professor, o que é exempli-
ficado nas palavras de dois professores: .
"[ ...I a grande gratificação de um genuíno professor é ser um dia en-
sinado por aqueles a quem um dia ensinou. Esta é a minha gratifica-
ção maior. Fico extremamente satisfeito quando na minha equipe
chamam um especialista que é meu ex-aluno [...I."
"[ ...I me gratificou muito assistir a uma aula de uma estagiária, onde
os alunos trabalhavam de cabeça baixa, atentos todo o tempo. Eu vi
ali o fruto de meu trabalho r.. ]."

Exigência

Outra característica apontada por todos os professores é o alto


nível de exigência com que desenvolvem sua prática. Recusar-se a
exercer esta exigência é omitir-se de uma ação pela qual se é res-
ponsável. Ser exigente impõe ao professor autoconfiança e segu-
rança que fazem o aluno aceitar de forma compreensiva as exigên-
cias que Ihe são feitas: questionamentos, direções e intervenções.
É importante ressaltar que em todas as manifestações de com-
portamentos exigentes dos professores encontra-se a rejeição pela
figura do professor "bonzinho", referindo-se àquele que trata bem
os alunos, jamais os repreende, nada exige, mas também nada ensi-
na. Esta é uma preocupação explícita nas manifestações dos docen-
tes:
"[ ...I eu me policio muito para não ser o professor bonzinho, para
não estabelecer uma relação paternalista, que faz com que o aluno
fique esperando as coisas prontas [...I."
"[ ...I eu sempre digo que não sou um professor bonzinho, que eu
posso até brigar no bom sentido; o que eu quero é que o aluno che-
gue ao final do curso e diga 'aquele professor fez o que tinha que fa-
zer conosco', e não 'aquele professor devia ter-me ensinado e não o
fez; foi um professor bonzinho e na hora eu achei muito bom'."

38 Formação de professores de Matemática


A análise de todas as manifestações dos professores sobre ca-
racterísticas pessoais e profissionais vem demonstrar o sentido de
totalidade do seu comportamento, pois essas características, como
já dissemos anteriormente, sempre estão relacionadas umas às ou-
tras. Assim, para o aluno aceitar a exigência do professor é necessá-
rio que o respeite como pessoa e como profissional, que reconheça
seu domínio de conteúdo e que nele encontre segurança, corrobo-
rando as palavras de Nias (1989, p. 73): "o professor é uma pessoa
e parte importante desta pessoa é o profissional".

O espaço de sala de aula e a interação

Outro fator importante apontado pelos docentes é o espaço da


sala de aula e a interação que nela ocorre. A sala de aula é uma
fonte inesgotável de atualização porque é assentada no cotidiano
que se constrói e se reconstrói dinamicamente, obrigando a revisões
e inovações.
A interação que ocorre em sala de aula é mais do que um en-
contro professor-aluno em torno de uma tarefa de aprendizagem: é
uma relação pedagógica com base em propostas educacionais, mo-
delos sociais e interesses e expectativas dos envolvidos. A interação
tem sempre um sentido de reciprocidade: professor e alunos intera-
gem em níveis de relações humanas; toda relação humana supõe
comunicação e esta traz consigo cognição e afetividade. Entretanto,
segundo Postic (1991), na comunicação que ocorre pelo diálogo
pedagógico, com freqüência o professor realiza uma comunicação
ao aluno, em lugar de estabelecer uma comunicação com o aluno, o
que pode comprometer ou desestabilizar o clima favorável. Este
reflete o entendimento que professor e aluno têm do processo, ge-
ralmente com influência muito forte do professor.
Nas respostas dos docentes é possível perceber-se que mesmo
entre estes o entendimento sobre a inter-relação não é o mesmo.
Sem dicotomizar a questão, estabelece-se um continuum que se
movimenta desde a valorização do aspecto afetivo até o aspecto
técnico. Alguns professores consideram a relação professor-aluno
primordial, fundamental, o que vem em primeiro lugar. Para esses

Prática docente: referência para formação do educador 39


professores, o aluno necessita sentir o apoio afetivo que lhe dá se-
gurança pessoal. Outros, mesmo aceitando a importância da relação
afetiva, não a consideram uma exigência prioritária. Sem negar uma
função de apoio, atribuem-lhe um caráter mais técnico:
"[ ...I eu tiraria do enfoque central a relação professor-aluno. Faz par-
te da maturidade do aluno aceitar que nem todo professor vai ser
simpático e mesmo assim pode ser um bom profissional [...I."
Neste sentido, entende-se que nem sempre a relação pode ser
agradável ou fácil, porque a aprendizagem exige empenho e impõe
desafios. Não se trata de reduzir-se o nível de exigência para
estabelecer uma relação prazerosa. O papel do professor é sempre o
de auxiliar o aluno a descobrir o seu projeto de realização e os
caminhos para percorrê-lo, traduzido na organização de situações
de aprendizagem adequadas, no acompanhamento do aluno, na
observação do seu desempenho. Aí reside o apoio técnico. O que
não se questiona, enfim, é que a interação professor-aluno é sempre
perpassada por funções de apoio afetivo ou técnico, ou de ambos,
porque elas não se excluem.
Entretanto, o reconhecimento da importância do professor e
da relação professor-aluno não pode obscurecer a razão principal da
presença de ambos numa sala de aula - a prática educativa, o ensi-
no e a aprendizagem de conteúdos, valores e atitudes - sem a exa-
cerbação do paradigma processo-produto que reduzia ao mínimo a
interferência da pessoa do professor em favor de uma racionalidade
técnica calcada em competências pré-determinadas.

Competência profissional

O cuidado com o que e como ensinar está presente na prática


de professores entrevistados, numa valorização equilibrada que
sustenta a competência profissional. Estudos recentes (Perrenoud,
1999; Mello, 1999, entre outros), aprofundam tal conceito na pers-
pectiva apontada pelos docentes. Para ser professor, segundo os
autores e também os entrevistados, não basta saber o que ensinar,
mas também como ensinar.

40 Formação de professores de Matemática


Perrenoud (1999, p. 7) define competência como o "agir efi-
cazmente~em~um~determinado_tipo_desituação,oiado-em-conhe-
cimentos, mas sem limitar-se a eles". Mello (1999, p. 3) define a
competência como "organizadora da relação entre conhecer e agir.
Para constituir-se não prescinde da dimensão da prática ou ação a
fim de que, além do conhecimento, sejam mobilizados afetos e
intenções envolvidos na prática e os valores necessários à tomada
de decisão para agir."
Ser competente, portanto, é bem mais do que conhecer para
agir. Implica ainda o julgamento das ações que estão sendo desen-
volvidas, e seu ajustamento a situações imediatas e aos propósitos
que se tem em mente (Bocchese, 2000, p. 4), o que apresenta uma
clara relação com o paradigma mediacional centrado no professor.
Os docentes demonstram seu compromisso com o que ensi-
nam empenhando-se em se manterem atualizados, participando de
cursos, seminários, eventos científicos e realizando pesquisas de
diferentes modalidades. É uma visão mais ampla da docência como
se lê nas palavras que seguem:
"[ ...I ser professor não é apenas dar aulas. É estudar e pesquisar
permanentemente e envolver-se com questões de educação que
transformam o professor em participante em todas as oportunidades
que a educação apresenta. Tudo o que envolve o sistema educacio-
nal deve fazer parte da trajetória do professor. Para isso é necessário
atualização [...I."
A abertura à atualização revela docentes sensíveis às mudan-
ças contextuais, as quais influem de forma substantiva nos conteú-
dos, significados, propósitos, com implicações na prática pedagógi-
ca. O professor se sente obrigado a acompanhar tais mudanças,
participar delas e mesmo provocá-las, renovando-se continuamente.
A atualização dos professores tem repercussões positivas nos
conteúdos e procedimentos de ensino, reforçam o entendimento de
saber inacabado e de professor como um constante aprendiz, estu-
dando sempre e obrigando-se a revisar o conteúdo que ensina, vali-
dando-o com base em novos estudos e no conhecimento produzido
por pesquisas, sem o que corre o risco de levar aos alunos um ensi-
no desvitalizado.

Prática docente: referência para formação do educador 41


Ao mesmo tempo em que valorizam o que ensinam, os entre-
vistados-voltam-se igualmente-para o como ensinar estimulando a
atividade do aluno, numa época em que se tornou modismo despres-
tigiar aspectos técnicos como se fosse a técnica que impedisse uma
ação docente crítica e reflexiva. Neste particular estão explicitando
seu entendimento de competência profissional, buscando o equilíbrio
nas questões sobre o que e como ensinar.
Essas são questões para as quais não existem fórmulas prontas,
que dêem conta da complexidade da sala de aula. É necessário intui-
ção e reflexão para agir frente a situações divergentes que se suce-
dem a cada momento. E a ação e reflexão exigidas não prescindem
da formação técnica docente. Entretanto, supervalorizar a técnica
como um valor absoluto é desviar a atenção de dimensões essenciais
da prática educativa para aspectos secundários e periféricos, e subes-
timar a capacidade reflexiva e criativa do professor.
Qualquer exagero nesse sentido pode acarretar prejuízos irrecu-
peráveis: estar preso a receitas e prescrições rígidas implica correr-se
o risco de uma prática descontextualizada, congelada e alheia à histó-
ria. Realizar atividades livres de orientações, a curto prazo levam ao
espontaneísmo e à improvisação, descaracterizando a intencionalida-
de da prática educativa.
Essa realidade vem reforçar a corrente de investigação centrada
nos processos de pensamento dos professores que os conceptualizam
como profissionais racionais que constroem sua ação de forma refle-
xiva, elaboram juízos, tomam decisões num contexto complexo e
incerto (Shavelson, 1985).
Escolher a decisão a ser tomada sobre o atendimento ou não a
prescrições, controlar a situação nova ou imprevista são ações ineren-
tes ao próprio ato de ensinar que afirmam a autonomia do professor.

Abertura ao contexto social e político

Os professores demonstram consciência social e política ao


desenvolverem um ensino aberto à realidade, buscando integrar o
cotidiano às atividades, possibilitando o conhecimento contextual e
culminando, se possível, com ações concretas na comunidade, con-
forme se manifestam alguns:

42 Formação de professores de Matemática


"[ ...I tenho que chegar à questão política pela via técnica. Eu tenho
uma-posição-clara-e-elessabemdisso.Porqu~a1uno vai di-
zer: esse professor é um panfletário ativista e não quer trabalhar o
conteúdo. Essa é a maneira mais consistente de o aluno entender que
tudo que ele faz tem conseqüências políticas. Ele precisa ver o co-
nhecimento como instrumento de participação r...]."
"[ ...I se estou estudando a questão da produção de energia térmica e
como isto acontece numa termelétrica, eu não deixo de fazer uma
análise da questão ambienta], social, ecológica, de empregos e sub-
empregos [...I."
Ao desenvolverem pesquisas com os alunos sobre o contexto
e problematizarem aspectos sociais, os docentes assumem respon-
savelmente a tarefa educativa, numa perspectiva mais ampla: apro-
fundam o conteúdo a ser ensinado, e encorajam a intervenção no
social. Buscam assim corrigir uma lacuna observada com freqüên-
cia entre os estudantes que se formam, sem nenhum contato com a
prática concreta. Especializam-se à base de leituras e verbalismos
vazios desenvolvidos em aula.
A formação acadêmica vai além do conhecimento que a leitura
proporciona. Um processo de ensino restrito à transmissão cumpre
apenas a função de conservação. Para exercer também a função trans-
formadora é preciso abertura, confrontação com a realidade, pois esta
dá credibilidade à teoria estudada, conforme diz um professor:
"[...I quando a gente extrapola os muros da universidade, levando
criticamente a prática pedagógica para a vida, os alunos descobrem a
validade do que estudam e o fazem com mais compromisso [...I."
Faz parte ainda do compromisso político dos professores a
ampliação dos horizontes dos alunos, auxiliando-os a se reconhece-
rem como cidadãos históricos.
Ainda que valorizando os conteúdos programáticos estabele-
cidos, os docentes não se subordinam a eles; são sensíveis a aconte-
cimentos sociais, científicos, tecnológicos, políticos e econômicos
relevantes que mobilizam a comunidade e não perdem oportunida-
des de trazê-los para a sala de aula, abrindo espaço para questiona-
mentos e discussões. Mesmo que pareça um desvio de conteúdos ou
até perda de tempo, há um retorno muito valioso em termos de for-
mação política.

Prática docente: referência para formação do educador 43


O aproveitamento didático desses conteúdos - que poderiam
chamar-se de "não-programáticos" ou mesmo Yconteúdos-de vida
humana" - abre horizontes, vitaliza a prática, constituindo funda-
mentos da aprendizagem de participação e de cidadania.

Sínteses das reflexões e conclusões provisórias

Este texto foi construído numa tentativa de apontar perspecti-


vas para a formação de professores, iniciantes ou não, uma vez que
tal formação é sempre um empreendimento com certezas no início e
incertezas quanto à sua conclusão.
Revisamos modelos substantivos de explicação de ensino ou
paradigmas, examinando diferentes leituras da vida da sala de aula,
detendo-nos nos vários elementos apontados como influentes nos
modelos configurados.
Nessa revisão encontramos o professor de forma destacada,
com interpretações variadas sobre tal destaque, segundo o entendi-
mento dos autores dos vários modelos.
No modelo presságio-produto, o professor é visto como o
ponto central, com suas características pessoais. O segundo modelo,
processo-produto, descentra-se dessas características pois o que
passa a explicar o ensino é o que faz o professor com sua compe-
tência técnica. O paradigma mediacional prioriza a presença do
aluno e de sua atividade na construção de sua aprendizagem, num
equilíbrio com a figura do professor, um profissional que reflete,
julga, toma decisões, superando o enfoque de características pes-
soais ou competência técnica. Por último, o modelo ecológico, mar-
co mais compreensivo e abrangente da sala de aula, reúne os vários
estudos numa síntese integradora e inclui um elemento relevante até
agora muito pouco considerado - a realidade contextual- e define,
por decorrência da abertura ao contexto, um novo professor crítico,
político e transformador.
Com as certezas de que os avanços do conhecimento não
ocorrem abruptamente mas por aproximações sucessivas; de que,
para se construir algo novo, supostamente melhor, não é necessário
destruir o antigo, mas buscar o que já foi feito e que serviu de ponto

44 Formação de professores de Matemática


de partida para o estágio em que nos encontramos, intentamos bus-
~ ~ n a s p r á t i ~ s a e p r o ~ e s apara
p õ iapontar
o novas periiecti-
vas de formação docente.
Verificamos que os elementos dos modelos explicativos, acei-
tos em sua época, estão ainda hoje presentes na vida da sala de aula,
integrando-se dinamicamente, formando cenários diversificados e,
se reinterpretados, podem se tomar uma nova explicação para a
docência, sempre com validade para "o aqui e o agora".
Resultante do diálogo com os professores sobre sua prática,
algumas sínteses podem ser apresentadas:
O o professor participa do processo de ensino com caracte-
rísticas pessoais e profissionais. Busca, além disso, com-
petência profissional (que é mais do que competência téc-
nica) entendida como "o saber e o saber fazer em situa-
ção" (Perrenoud, 1999);
O a imprevisibilidade das situações de ensino o obrigam a
refletir, tomar decisões, julgá-las continuamente, sensível
que é às solicitações do contexto em que atua, chegando a
agir sobre ele para melhor conhecê-lo e transformá-lo;
O aluno, entendido como um ser ativo e integrado à prática
do professor, participa, questiona e é questionado, com-
promete-se em tarefas que fazem parte de seu processo de
aprendizagem;
O os professores e os alunos ocupam o espaço da sala de au-
la, numa interação solidária, baseada na afetividade e na
cognição;
O a realidade contextual é referência obrigatória para o pro-
fessor desenvolver uma prática reflexiva, crítica e trans-
formadora;
O compromisso político do professor se operacionaliza ao
incluir a realidade contextual na atividade docente, com
vivências concretas abertas à comunidade, estimulando a
participação e a formação da cidadania do aluno.
Tentar concluir qualquer estudo sobre formação de professo-
res com prescrições sistematizadas é contradizer afirmações iniciais
ou negar aquilo em que acreditamos. Sabemos também da impossi-

Pratica docente: referbncia para formação do educador 45


bilidade de contemplar o conjunto de necessidades da formação
docente, o que inviabiliza ainda mais qualquer esforço-para apre-
sentar recomendações conclusivas. Preferimos falar em sugestões
que, aceitas ou não por outros docentes, podem se tornar objeto de
questionamento, de crítica, provocar a curiosidade e levar a uma
tentativa de adaptações, chegando, quem sabe, à construção de um
novo modelo mais confiável, mais real, porque fruto de uma elabo-
ração particular, testemunhado pela validade da relação teoria-
prática.
Não é um empreendimento imediato com prazo marcado para
terminar. Exige do professor alguma forma de engajamento tanto
mais forte quanto mais vier ao encontro de seu projeto pessoal, de
necessidades sentidas e do grau de investimento na sua atividade
profissional.

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petência do professor, como se constrói? Mimeo. PUCRS, Porto Alegre, 2000.
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46 Formação de professores de Matemática


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GIMENO SACRISTÁN, J., PÉREZ GÓMEZ, A. ~a ensefianza: su teoria y su
práctica. Madrid: Akal, 1985.

Prática docente: referência para formação do educador 47


É NECESSÁRIO SER PRECISO?
É PRECISO SER EXATO?
"Um estudo sobre argumentação matemática"
ou "Uma investigação sobre
a possibilidade de investigação"
Antonio Vicente Marafioti Garnica

Introdução

Esta introdução foi, naturalmente, produzida depois de todo o


texto ter sido elaborado. E, providencialmente, inicia-se com um
alerta: não sacralizemos o escrito. Pensemos no livro, no artigo, no
manifesto, no panfleto, como uma forma de circulação de idéias,
um compartilhar de pensamentos. Assim concebendo, estas anota-
ções foram geradas mais como uma proposta de pesquisa futura do
que como cristalização de uma investigação já terminada.
Iniciamos este capítulo, porém, com uma retomada do que, até
o momento, tem sido nosso principal foco de atenção na pesquisa
em Educação Matemática: a linguagem.
Ao estudo das formas de linguagem - natural e artificial - en-
contradas nas salas de aula de Matemática temos nos dedicado. No
começo, auscultamos as possibilidades de leitura do texto escrito,
como o manual didático, para, depois, percebendo que o estilo da
Matemática poderia ser caracterizado pela prova rigorosa, num
ambiente formalizado, partirmos para o estudo das demonstrações.

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 49


Sendo a pesquisa atividade de procura - não ponto de chega-
da -, nos deparamos com a necessidade de estudar outras formas de
argumentação, menos formalizadas do ponto de vista matemático,
que ocorrem em momentos de ensino e aprendizagem. Algumas
perplexidades, sempre existentes mas pouco elaboradas sistemática
e conscientemente, tomaram vulto durante os estudos que, no mo-
mento, estarnos desenvolvendo como professor visitante na Indiana
University-Purdue University ~ndianápolis.'É este o motivo pelo
qual incluímos, no corpus do texto, um breve esboço das atuais
linhas norteadoras da Educação nos Estados Unidos da América:
uma visão panorâmica do contexto educacional que, embora inicial,
já nos permite perceber a proximidade dos norteadores que regem,
em Educação Matemática, tanto a política educacional americana
quanto a brasileira. Uns poucos relatos recolhidos em salas de aula
de curso de formação de professores para a escola elementar são
explicitados para que, a partir deles, possamos estabelecer a propos-
ta de pesquisa, no final desse capítulo.
É essa, pois, a seqüência iniciada com o próximo tópico, em
que tratamos a questão da linguagem sob um olhar de natureza
filosófica, para continuar o percurso até a proposta de trabalho aci-
ma anunciada.

Linguagem, Matemática e Educação Matemática

A comunicação da experiência vivida é surpreendente porque


paradoxal, conflituosa. A plenitude do que vivenciamos, o nosso
olhar sobre o mundo é, reconheçamos, uma experiência intransferí-
vel. Mas, no entanto, podemos nos referir às coisas com as quais
convivemos e, na tentativa de romper a solidão própria do humano,
lançamo-nos no exercício de comunicar a experiência experiencia-

I
Curiosamente, um dos momentos em que se pode perceber a gestação da idéia
desenvolvida neste capítulo ocorreu quando discutíamos dificuldades próprias da al-
fabetização em ~íngu~estrangeira e cértas particularidades da atividade de tradução.
Tentávamos, então, explicar a quase impossibilidade de uma tradução que, em cer-
tos casos, preservasse toda a beleza da criação poética, para o que demos como
exemplo a conhecida frase de Fernando Pessoa que inspirou, também, o título desse
estudo.

50 Formação de professores de Matemática


da. E algo de misterioso ocorre pois, a cada instante da vida, rom-
pemos essa incomunicabilidade da experiência: algo fica no que
comunicamos para o outro. Fica um sentido. Ficam fagulhas de
compreensão com as quais reconstroem-se, cada um ao seu modo,
as experienciações. Viver como seres da linguagem não é, pois,
uma luta vã, embora se.ja necessário reconhecer os limites de nossas
possibilidades. Se somos eternos encarcerados nas malhas da lin-
guagem somos, também, pela linguagem libertados. E nos manifes-
tamos no mundo.
Essa nossa manifestação no mundo ocorre de várias formas.
Há um equívoco, próprio do senso comum, em pensar a linguagem
já como linguagem escrita ou falada. Conquanto a escrita tenha
permitido ao humano o sabor de muitas de suas conquistas - a pró-
pria noção de "cultura" pode ser a ela creditada2 -, o registro de
caracteres gráficos é um elemento recente na história da humanida-
de e, portanto, não pode responder por todo o processo comunicati-
vo. Embora nossa intenção, aqui, seja a de uma investigação sobre a
linguagem matemática - sendo que, para isso nos deteremos em
formas de comunicação essencialmente vinculadas à escrita - nossa
concepção de linguagem engloba as mais diversas formas de mani-
festação, que já se iniciam com o próprio estar-se jogado no mundo,
passando, por exemplo, pelo escrito, pelo oral, pelo gestual e pelo
pictórico.
Mais do que investigar a linguagem matemática - o que cer-
tamente exige um estudo, mesmo que rápido, de seus estilos e for-
mas discursivas - nossa intenção é investigar a linguagem matemá-
tica no contexto da sala de aula. Essa alteração de foco é extrema-
mente significativa, posto que se mudam, além das regiões de co-
nhecimento, as manifestações e concepções, esboçando-se, obvia-
mente, um novo campo para o debate político. Por mais que se
afirme que o campo científico deve caracterizar-se pelo livre e pú-

Alguns trabalhos de Paul Ricoeur são, sob nosso ponto de vista, essenciais para a
compreensão das questões relativas ao texto e sua interpretação. Dentre esses, duas
obras têm especialimportância: os dois Ensaios de Hermenêutica (Ricoeur, 1986) e
Du texte à 1 'action (Ricoeur, 1986) e O discurso da Açúo (Ricoeur, 1988). Na pers-
pectiva histórica sobre a escrita são também extremamente significativos os traba-
lhos publicados sob a vertente da História Nova. Em especial, citamos o volume
Memória e História da Enciclopédia Einaudi, em sua versão portuguesa.
- - -- - - - - - -

É necessArio ser preciso? É preciso ser exato? 51


blico escrutínio, sabe-se que muitas das esferas da ciência estão,
ainda, no domínio do privado. A Matemática, pensada como prática
científica, certamente está dentre as formas de conhecimento que,
por inúmeras razões, encapsulam-se na privacidade. Sua linguagem,
sua forma de comunicação, talvez seja um dos elementos mais pos-
santes a exigir e defender essa privacidade e, na tentativa de des-
vincular-se do mundano (uma das características do pensamento
formal), detém-se a grupos restritos, em formas específicas e cifra-
das de ação.
"Ação" é, também, um dos termos que nos serão muito caros.
Pois a própria Educação, em seus estudos teóricos (dos quais esse
artigo não é exceção), exercita-se paradoxalmente num rompimento
com o cotidiano. A linguagem da pesquisa em Educação, tanto
quanto a linguagem da pesquisa em Matemática, não é uma forma
"simples" de comunicação: também ela se veste com conceitos
próprios e constrói argumentações pautadas nesses conceitos que,
não poucas vezes, são obscuros ao grande grupo externo ao meio
em que as teorias são produzidas. Ocorre que a Educação - e fala-
mos especificamente, aqui, de Educação Matemática - realiza-se
numa prática, numa ação de comprometimento e vinculação com o
mundo, o que, no senso comum, chamamos de "o mundo real", sem
as divagações filosóficas usuais quando o termo "realidade" entra
em cena. Isso credencia a Educação Matemática como uma área de
conhecimento teórico-prático, que ocorre exatamente no campo de
interseção dos avanços teóricos que visam à prática e são possíveis
a partir dessa mesma prática, num processo de retroalimentação.
Por esse motivo, nossa estratégia, nesse capítulo, é a de vincular,
tanto quanto possível, a trama teórico-filosófica a exemplos concre-
tos, coletados em salas de aula "reais", embora saibamos do risco
de tal iniciativa poder ser tomada como artificial na elaboração de
um estudo que se pretende teórico-prático.
O território teórico-prático exige reconhecimento. É necessá-
rio esboçar certas linhas divisórias, certos modos típicos de ação.
No campo da prática, buscando investigar a linguagem matemática
em suas potencialidades e seus limitantes, algumas considerações
são importantes, embora óbvias em sua maioria. A primeira consta-
tação, já previamente esboçada, diz respeito à manifestação da Ma-

52 Formação de professores de Matemática


temática no mundo, que se dá em duas grandes frentes: a "científi-
ca" e a "pedagógica". É exatamente essa a manifestação que nos
permite falar em uma prática ("científica") matemática e uma abor-
dagem teórico-prática à Matemática (a Educação Matemática) co-
mo formas distintas - mas conectadas - de compreensão do mundo.
A manifestação do discurso "científico" da Matemática dá-se,
fundamentalmente, na pesquisa, na construção do conhecimento
matemático, como feita por seus profissionais. Nisso incorporam-se
outras manifestações, das quais são fundamentais: a produção do
conhecimento matemático em estado nascente, a discussão sobre o
conhecimento produzido - que se dá entre os pares de comunidade
científica, oral ou textualmente, possibilitando reelaboração, embo-
ra restrita ao grupo, do que foi inicialmente gerado - e, finalmente,
sua divulgação - preponderantemente via textos especializados,
publicados em veículos específicos e dificilmente abertos a reelabo-
rações, mas sugerindo possibilidades de serem complementados.
Colocam-se, nessa manifestação do discurso científico, o oral e o
escrito. A mediação do oral servirá não só como forma de veicula-
ção do escrito, mas terá, no grupo restrito de especialistas no qual
se dá a comunicação da produção, a função de explicitar intuições
primeiras (que são não-discursivas em sua gênese) ocultadas pelo
texto que é discurso fixado, concretizado, pela escrita.
Há que se reiterar a curiosa e contraditória especificidade de
uma linguagem - a matemática - preponderantemente escrita que,
embora se pretendendo formal, dicotomizando radicalmente semân-
tica e sintaxe, necessita, ainda, do apoio da linguagem natural para
a comunicação das idéias. A linguagem natural, sendo frequente-
mente escritura e oralidade, interfere nas pretensões formais e for-
ça, assim, a natural vinculação entre forma e conteúdo tão ardua-
mente defendida como domínios separados numa linguagem artifi-
cial cuja gramática é definida pela Lógica.
Por um outro lado, vemos que a manifestação do discurso pe-
dagógico da Matemática dá-se nas inúmeras e divergentes situações
de ensino e aprendizagem, dentre as quais a prática educativa da
escolaridade formal tem sido hegemônica - e talvez, equivocada-
mente - focada nos trabalhos dos quais temos tido referência.
Mesmo que aqui estejamos focando a linguagem matemática em

- - - - - -- - -

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 53


cursos universitários (especificamente, veremos em breve, os cur-
sos de formação de professores de Matemática nas licenciaturas)
deve-se reconhecer a pluralidade das formas de ensino e aprendiza-
gem de Matemática, além das que ocorrem intramuros na institui-
ção escolar. Mesmo a pesquisa em Educação Matemática tem in-
corrido nesse equívoco de não considerar, em suas abordagens,
formas alternativas de ação, culturalmente legítimas e essenciais
para o entendimento dos modos de argumentação acerca dos obje-
tos matemáticos. A "Educação" tem sido, não raras vezes, equivo-
cadamente tomada como "escolaridade formal" e, decorrente disso,
a "Educação Matemática" é concebida como o estudo das formas
de apropriação do conteúdo matemático em salas de aula. Conceber
"Educação" como a luta pela atribuição de significados, como nos
ensinava Joel Martins, permitindo a ampliação do atual panorama,
parece ser essencial.
No discurso pedagógico da Matemática - o campo de uma
Educação Matemática - interagem posturas, metodologias, didáti-
cas, textos e oralidade, "esferas" obviamente não disjuntas. Interes-
sados nas formas de tratamento da linguagem matemática em cur-
sos formais de licenciatura, nos restringiremos, aqui, à busca de
similaridades e divergências entre essas duas formas de manifesta-
ção discursivas da Matemática: a pedagógica e a "científica", se-
guindo, muito de perto, o trabalho de Seiji ~ a r i k i . ~
Como elementos de reconhecimento mútuo, temos que ambos
os discursos pautam-se na construção do conhecimento matemático
plasmada na comunicação, na negociação oral de significados e na
mediação desempenhada pelo texto escrito. E nesses mesmos ele-
mentos encontramos as divergências entre os discursos: a comuni-
cação entre os especialistas, na prática científica, restrita a um gru-
po fechado, funda-se na competência de conteúdos e no domínio
absoluto da linguagem própria da área. A comunicação na prática
pedagógica, ao contrário, é rica em pluralidades: contextos educati-
vos distintos são distintos mundos, comportando pessoas distintas
quer seja em relação aos conteúdos, quer seja quanto ao domínio
linguístico - natural ou formal - envolvido, havendo diferentes

Hariki, 1992.

54 Formação de professores de Matemática


vivências contextuais em jogo (vivências essas que a pertença a um
grupo, na prática científica, trata de abrandar, partindo de uma
"homogeneidade" entre os filiados). Há significativa diferença na
qualidade das mensagens enviadas em cada um desses grupos: no
discurso científico, são tratadas formas de Matemática em estado
nascente; no pedagógico, trabalha-se com uma Matemática já soli-
dificada, disponível, intensivamente reproduzida. Também é distin-
ta a mediação feita pelo texto: sua função, na prática científica, é de
divulgação, escoamento de produção; na prática pedagógica, a fun-
ção precípua é a da interiorização. A natureza dos textos envolvidos
difere relativamente, embora caracterizem-se, ambos, pelo modo
apresentacional, sendo negligenciadas as formas de apreensão de
conceitos, as trajetórias para obtenção de resultados: o "caminho
das pedras", em suma. Mas os textos didáticos são quase-formais,
enquanto textos científicos são radicalmente formalizados.
Embora esse estudo introdutório sobre os discursos científico
e pedagógico estabeleça, mesmo que apoucadamente, elementos
para análise mais demorada, o essencial para nossos propósitos não
foi claramente explicitado: trata-se do tráfego de concepções exis-
tente entre os domínios científico e pedagógico.
Na sala de aula de Matemática, posturas e valores, próprios do
campo da pesquisa, insinuam-se, são reproduzidos, fortalecidos e
legalizados. Há um deslizamento da prática científica para a prática
pedagógica da Matemática, prevalecendo o discurso científico so-
bre o discurso pedagógico, como pertinentemente apontado no tra-
balho de Maria Regina Gomes da ~ i l v a . ~
Nesse deslizamento de concepções, parece ser natural que a
forma de argumentação utilizada para garantir a validade do conhe-
cimento matemático seja, hegemonicamente, a prova rigorosa, a
demonstração formal. Ela é o foco de convergência dos olhares
quando da gestação, geração, análise e avaliação do conhecimento
matemático, quer seja na prática científica, quer seja na prática
pedagógica desenvolvida, principalmente, nos cursos superiores.

4
Silva, 1993.

E necessário ser preciso? É preciso ser exato? 55


Curiosamente, em artigo de 1970,~Morris Kline, debatendo-se
contra a implantação do que foi então chamado Matemática
Moderna, e aparentemente contradizendo essas nossas afirmações,
defende que a visão da abordagem dedutiva e formal como sendo
a essência da Matemática é uma consideração equivocada que

Kline, 1970. Desse artigo, por dar suporte à nossa trama argumentativa, citamos
algumas considerações sobre os motivos pelos quais, segundo o autor, tomar o mé-
todo dedutivo como modelo pedagógico é uma distorção:
"Primeiro ponto: a Matemática é uma atividade cujo primado é da atividade criativa,
e pede por imaginação, intuição geométrica, experimentação, adivinhação judiciosa,
tentativa e erro, uso de analogias das mais variadas, enganos e trapalhadas. Mesmo
quando um matemático está convencido de que seu resultado é correto, há muito pa-
ra ser criado até encontrar a prova disso. Como Gauss afirmou: 'Tenho meu resulta-
do, mas ainda não sei como obtê-lo'. Todo matemático sabe que trabalho árduo /.../
é necessário e o sentido da realização deriva do esforço criativo. Construir a forma
dedutiva final é uma tarefa chata. A lógica não descobre nada, nem o enunciado de
um teorema nem sua prova, nem mesmo a construção de formulações axiomáticas
de resultados já conhecidos /...I Há um outro motivo pelo qual a versão lógica é uma
distorção. Os conceitos, teoremas e provas emergem do mundo real./ .../ a organiza-
ção lógica é posterior. De fato, se for pedido a um aluno realmente inteligente que
cite a lei comutativa para justificar, digamos, 3.4=4.3, ele muito bem pode pergun-
tar: 'Por que a lei comutativa é correta?'. De fato, nós aceitamos a lei comutativa
porque nossa experiência com grupos de objetos nos diz que 3.4=4.3 e não o contrá-
rio. /...IA insistência na abordagem dedutiva engana o aluno ainda de outro modo.
Ele é levado a acreditar que a matemática é criada por gênios que começaram pelos
axiomas e raciocinaram diretamente desses axiomas para os teoremas. O aluno sen-
te-se humilhado e desconcertado, mas o professor, prestativo, está totalmente prepa-
rado para demonstrar-se como um gênio em ação. Talvez a maioria de nós não ne-
cessite ouvir como a Matemática é criada, mas parece ser útil atentar para as pala-
vras de Félix Klein: 'Você pode ouvir de não-matemáticos, especialmente dos filó-
sofos, que a Matemática consiste exclusivamente em traçar conclusões a partir de
premissas claramente enunciadas; e que, nesse processo, não faz diferença o que es-
sas premissas significam, se são verdadeiras ou falsas, desde que elas não se contra-
digam. Mas alguém que tenha produzido Matemática falará algo bem diferente. De
fato, aquelas pessoas estão pensando somente na forma cristalizada na qual as teo-
nas matemáticas são apresentadas ao final de um processo. O investigador em Ma-
temática ou em outra ciência, entretanto, não trabalha nesse rigoroso esquema dedu-
tivo. Ao contrário, ele faz uso essencial de sua imaginação e procede indutivamente,
apoiado por expedientes heurísticos. Pode-se dar numerosos exemplos de matemáti-
cos que descobriram teoremas da maior importância que eles mesmos não puderam
provar. Poderíamos, então, nos recusarmos a reconhecer isso como uma enorme rea-
lização e, em referência ao que foi dito acima, insistir que isso não é matemática?
/...I nenhum julgamento de valor pode negar que o trabalho indutivo da pessoa que
primeiro anuncia um teorema é, ao menos, tão valoroso quanto o trabalho dedutivo
daquele que primeiro o provou. Pois ambos são igualmente necessários, e a desco-
berta é a pressuposição de sua conclusão posterior'."

56 Formação de professores de Matemática


(apoiado em Félix Klein) ele credita aos filósofos e não aos mate-
máticos. Kline pretende, com sua possante retórica e apoiado em
exemplos históricos extremamente esclarecedores, restabelecer o
primado da intuição nos processos de criação do conhecimento
matemático, advogando para que essa atenção à intuição seja levada
às salas de aula como proposta pedagógica. Mas a contradição,
segundo cremos, é apenas aparente, pois as práticas hegemônicas
estão presentes, diluídas em várias manifestações claramente per-
ceptíveis. Não convivemos com os Lagranges, Poincarés e Weils
que dão suporte aos exemplos de Klein. Convivemos com profis-
sionais que em seu trabalho diário, bem nos mostram pesquisas
recentes, desenvolvem e reproduzem a ideologia da certeza mate-
mática como certeza absoluta, do método dedutivo como redento-
rista e da concepção de que a excelência do conteúdo, por si, garan-
te a prática pedagógica. No mais, convivemos com os vetores da
mesma ideologia que, em meados da década de 60, intituiu a abor-
dagem pedagógica que, nesse artigo, é alvo do autor.
Disso, chegamos ao que é o tema central desse nosso texto: as
formas de argumentação acerca do conteúdo matemático utilizadas
em programas de licenciat~ra.~
Algumas questões podem nortear nossa investigação: que é a
prova rigorosa? Por quais caminhos iniciou sua presença, hoje do-
minante, na produção de conhecimento matemático? Há outras
possíveis formas de argumentação sobre a validade das afirmações
em Matemática? Quais (e por que) resistências têm sido enfrentadas
para a utilização de modos alternativos de justificar?

Argumentação e Prova Rigorosa

No léxico, tanto quanto no jargão matemático, prova e demons-


tração são tidos como sinônimos: é a argumentação que atesta a ve-
racidade ou autenticidade; o que dá garantias; é testemunho, processo

Este tema tem estado sob nosso olhar, de forma mais sistemática, desde os estudos
para o doutorado (Gamica, 1995). Parte desse trabalho, especificamente o levanta-
mento bibliográfico realizado, está publicado em Gamica, 1996. Nossas considera-
ções, aqui, são retomadas desse mesmo material.

É necess8rio ser preciso? É preciso ser exato? 57


de verificação da exatidão de cálculos ou raciocínios; é dedução que
mantém a verdade de sua conclusão, apoiando-se em premissas ad-
mitidas como verdadeiras. Em Matemática, "Prova" ou "demonstra-
ção" sempre vêm, implícita ou explicitamente, adjetivados: são rigo-
rosas. A necessidade ou não de uma tal adjetivação dependerá, em
muito, dos aspectos focados: para uns - os matemáticos chamados
"puros" - uma prova é, já, prova rigorosa. Para outros, o rigor estabe-
leceria, entre as várias provas matemáticas possíveis, aquelas herdei-
ras diretas do programa estabelecido por Euclides, n'Os Elementos,
no terceiro século antes de Cristo. O programa euclideano, plasmado
numa concepção platônica, assegurado e elevado ao status de essen-
cial ao fazer matemático opera, principalmente, pelo formalismo,
concepção que mais do que qualquer outra abordagem, intervém no
fazer cotidiano da sala de aula e na própria produção científica em
Matemática. A noção de prova é um dos principais eixos pelo qual
trafegam as concepções sobre Matemática. Nesse eixo são engendra-
dos tanto o caráter rnítico da Matemática, quanto uma proliferação
desmedida da ideologia da certeza, as significações unívocas de seus
conceitos e seu caráter de eternidade espaço-temporal. A formaliza-
ção do texto matemático, operando pela tentativa de exclusão do
sentido, causa para este sentido, na verdade, uma "morte em morató-
ria", mas legaliza ideologias e mitos frequentemente danosos ao en-
sino e à aprendizagem de Matemática. Em ~avalle'vemos, com mais
clareza, aspectos dessa afirmação:
"I...1 o texto formalizado será dominável, certo, tranqüilizador e ri-
goroso. A formalização se apresenta sempre como elaboração, re-
manejamento de um discurso espontâneo, natural, ingênuo, centrado
na intuição da presença do objeto. I...! Uma 'palavra', segundo a ex-
pressão de Bourbaki, é um signo no texto inicial, isto é, totalidade de
um significante e de um significado. O que é signo para o matemáti-
co em sua prática primeira torna-se forma vazia na formalização de
seu texto. /...I O ponto capital em tudo isso é que a forma não supri-
me o sentido, ela não faz senão empobrecê-lo, afastá-lo, conservá-lo
a sua disposição. Crê-se que o sentido vai morrer, mas é uma morte
em moratória: o sentido perde o seu valor, mas guarda a vida, da
qual a forma do mito vai nutrir-se. I...! A Matemática torna-se mítica
quando procura fundar-se pela exclusão do sentido" (p. 193-202).

Lavalle, apud Luccioni, 1977.

58 Formação de professores de Matemdtica


O programa euclideano, fundante da formalização que moder-
namente se cristalizará com a Axiomática de Hilbert, está visceral-
mente vinculado à transformação da Matemática em ciência hipotéti-
co-dedutiva. Duas são as explicações mais frequentemente dadas a
essa transformação. ~ r s a c trata
' dessas duas teses, gerando, por exclu-
sões e complementações, uma terceira. A tese clássica sobre os moti-
vos para o surgimento da prova rigorosa - conhecida como "externa-
lista" por não envolver diretamente a produção de conhecimento ma-
temático - é dada na afmação de que, naturalmente, ocorreria, na
Matemática então produzida, a aplicação das regras do debate argu-
mentativo que governava a vida política na cidade grega, a pólis. Por
outro lado, a tese intemalista, cuja pergunta é "qual problema (mate-
mático) tomou necessária a demonstração?' - considera como gera-
dor da transformação o obstáculo enfrentado com a questão da irra-
cionalidade. Em relação a essa tese, duas faces devem ser considera-
das: uma análise num quadro aritmético e outra num quadro geomé-
trico. No primeiro, constata-se que o número 2 não admite raiz qua-
drada racional, enquanto que na abordagem geométrica constata-se a
impossibilidade da diagonal do quadrado admitir partição comum
com seu lado. A incomensurabilidade, porém, é impossível de ser
constatada única e exclusivamente a partir do traçado gráfico. Pela
figura, acreditar-se-ia na possibilidade da partição comum. Assim, as
provas da irracionalidade no domínio aritmético implicam o uso do
raciocínio por absurdo. Não se pode, entretanto, precisar o grau de
abstração e a necessária axiomatização do conceito de número utiliza-
da, mas essas considerações permitem a Arsac elaborar uma nova
tese, dupla: (a) sem o problema da irracionalidade a transformação da
Matemática em ciência hipotético-dedutiva não se daria, mesmo na
sociedade grega; e (b) num outro contexto social, mesmo se confron-
tados com o mesmo problema, a Matemática não teria se transforma-
do como ocorreu na Grécia.
Concordando com a tese de Arsac, voltamos, então, a esclare-
cer o que entendemos por concepção platônica da Matemática, posto
que o programa euclideano, pelo qual se sistematizou definitivamen-
te a matemática em seu modelo hipotético-dedutivo, recupera e po-
tencializa a concepção de que os objetos - e no caso os objetos ma-

Arsac, 1987.

É necessário ser preciso? E preciso ser exato? 59


temáticos - sejam vistos fundados no Realismo, existentes no mundo
perfeito das perfeitas formas. Importante sobre o tema, na literatura
nacional, é o trabalho de Luís Márcio Pereira ~ m e n e s ,no ~ qual os
fundantes da concepção platônica são explicitados e analisados tanto
em livros didáticos quanto no discurso de professores, esclarecendo,
por fim, o porquê desse modelo platônico poder ser considerado ele-
mento essencial para a compreensão do fracasso do ensino e da
aprendizagem da Matemática.
Ainda não temos caracterizado, de modo preciso, o que se
chama, hoje em dia, de Matemática Platônica, ou a Matemática feita
sob uma ótica realista. ~ a v i s "nos dá alguns indicativos:
"O século XX ainda não delineou o que, de modo genérico,
chamamos de 'Matemática Platônica'. Alguns de seus princípios são
os que seguem:
- a crença na existência de certas entidades matemáticas ideais I.../;
- a crença em certos modos de dedução;
- a crença de que se uma afirmação matemática faz sentido,
então ela pode ser provada como verdadeira ou falsa;
- a crença de que, fundamentalmente, a Matemática existe se-
parada dos seres que a fazem /.../
Embora tais crenças tenham sido questionadas por matemáti-
cos do porte de Kronecker, Godel, Borel, Brower, Weyl e, mais re-
centemente, Bishop, as crenças platônicas continuam a reger o dia-a-
dia da Matemática. /...I Numa série de conferências sobre Matemáti-
ca não-platônica, um comentário típico era: 'Bem apresentado... mas
irrelevante. Voltemos ao nosso (platônico) quadro negro...'. Como a
prática é realizada por uma comunidade, mesmo que o rei esteja nu,
tudo estará bem se toda a corte assim também estiver..." (p. 252).
A Matemática, aqui vista como um conjunto de práticas so-
ciais e seus agentes, caberá legislar sobre o processo de validar (ou
não) afirmativas sobre os objetos matemáticos. Os matemáticos dizem
pautar-se, para isso, num cânone extremamente rigoroso que engloba
definições e normas de ação consistentes e coerentes, pois ditadas pela
Lógica Matemática. Esse parârnetro de rigor, porém, pode ser contes-
tado. Temos em ~ a n n a uma
" dessas contestações:

10
Imenes, 1989.
Davis, 1972.
'I Hanna, 1989.

60 Formação de professores de Matemática


"O desenvolvimento da Matemática e os comentários dos ma-
temáticos praticantes sugerem que se aceita um novo teorema quan-
do alguma combinação dos seguintes fatores está presente:
- eles compreendem o teorema, os conceitos nele incorpora-
dos, seus antecedentes lógicos e suas implicações, e nada existe que
sugira que ele não seja verdadeiro;
- o teorema é significativo o suficiente para ter implicações
em um ou mais ramos da Matemática (e, então, é importante e útil o
suficiente para garantir estudo e análise detalhados);
- o teorema é consistente com o corpo dos resultados matemá-
ticos aceitos;
- o autor tem uma reputação impecável como expert na área à
qual se refere o teorema;
- existe um argumento matemático convincente (rigoroso ou
não) para ele, de um tipo que já tenha sido encontrado antes;
O papel da prova no processo de aceitação é similar ao seu
processo de descoberta, as idéias matemáticas são descobertas por
um ato de criação no qual a Lógica Formal não está diretamente en-
volvida. Elas não são derivadas ou deduzidas, mas desenvolvidas
num processo cuja significância para o corpo existente da Matemáti-
ca e seu futuro potencial são reconhecidos pela intuição informal.
Embora a prova seja um pré-requisito essencial para a publicação,
ela não precisa ser nem rigorosa nem completa. I.. ! os matemáticos,
mesmo os matemáticos ideais, são hábeis para fazer e conhecer Ma-
temática somente por participarem de uma comunidade matemática"
(p. 21-22).
O processo de validação do conhecimento matemático é, por-
tanto, a se aceitar as argumentações dos autores citados, nitidamen-
te social, não envolvendo, na prática, a rigorosa exatidão d o modelo
lógico-formal. É u m trabalho interno, ideológico, d a comunidade d e
profissionais historicamente encarregada da produção desse conhe-
cimento.
Esse modus operandi d a comunidade matemática foi estudado
por Silva,12que investiga as intrincadas relações existentes n a esfera
d a prática científica, esclarecendo como se d á a criação, aceitação,
homologação e divulgação dos resultados em Matemática. Quando
12
O trabalho de Maria Regina Gomes da Silva, já citado, tanto quanto os outros refe-
renciados nesse texto, merecem leitura completa. Certamente nossos excertos não
são suficientes como sumário dessas-
-
obras.

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 61


trata do "círculo" pensamento (individualidade), tutela, a autora
mostra como a certeza matemática é preservada. Desse trabalho, a
seguinte afirmação, que complementa as disposições de Hanna, foi
extraída:
"O trabalho com Matemática é um ato de verificação interna
no sentido em que a validação de uma determinada afirmativa, ou o
encadeamento/interconexão de elementos das ou para as afirmativas,
dispensam, em última instância, referências outras, de natureza ma-
terial (pessoas, bibliografia, experimentos, etc). Ultrapassados os de-
senvoIvimentos iniciais para o desenrolar da tarefa, a continuidade
do trabalho depende do aluno [orientando] ter adquirido ou não o
esquema de verificação na situação determinada pela especificidade
do trabalho (estudo), passando, 'aluno-orientador-grupo de especia-
listas' a um nível de cumplicidade que se constituirá como um grupo
em si na medida em que exercerem um esforço para impedir o desli-
ze dos significantes matemáticos" (p. 219).
Interessante notar que essa cumplicidade desenvolvida na co-
munidade matemática - na qual, na verdade, centramos nosso olhar
por sua especificidade, que aqui é nosso tema, mas que se observa
em todas as esferas o chamado "meio científicow-permite até que o
formalismo, que deveria caracterizar essa produção, seja negligen-
ciado. Em seu artigo de 1972, já citado, ~ a v i safirma,
'~ com o aval
de muitos revisores e consultores conceituados, que muitos dos
teoremas divulgados em periódicos científicos são falsos por se
apoiarem em resultados (falsos) não-provados ou provados, com
lacunas suficientemente grandes para comportar incorreções. O tão
defendido formalismo parece ser, portanto, algo meramente retóri-
co, ou algo cuja materialização, na verdade, é a própria comunidade
científica que, paradoxalmente, encontra norteadores outros, sociais
e informais, para balizar sua produção.
Um estudo mais aprofundado sobre a linguagem matemática e
a prova rigorosa, apoiado num maior número de referências biblio-
gráficas, nos tiraria do eixo central da proposta para este texto. Os
textos já indicados nas notas de rodapé poderão suprir essa lacuna
para que, com o que até aqui foi desenvolvido, possamos focar mais
13
Estamos nos referindo, aqui, novamente ao texto publicado no The American Ma-
thematical Montly.
-

62 Formação de professores de Matemltica


diretamente a Matemática em situações de ensino e aprendizagem e
certas formas de argumentação desenvolvidas. Uma síntese de
compreensões que vem de um estudo bastante panorâmico do que
até agora foi publicado sobre a prova rigorosa em Matemática e
Educação Matemática, pode ser esboçado em sete itens:I4
R a prova rigorosa é elemento fundamental se pretendemos
compreender como funciona o discurso matemático e co-
mo são engendradas as concepções que permeiam a sala
de aula de Matemática sendo, por isso, tema importante à
Educação Matemática;
O no que se refere à questão do chamado "rigor matemáti-
co" os estudos publicados parecem não conceber a possi-
bilidade de um rigor alheio à Matemática dita "formal",
desenvolvida na esfera acadêmica, mesmo criticando e
tomando tais possibilidades em suas limitações. Ou, de
outro modo, não são vistas como "rigorosas" argumenta-
ções informais ou etno-argumentações;'5
O o surgimento da prova, à época dos gregos, e mesmo sua
formalização amplamente divulgada no mundo contempo-
râneo, carecem de estudos históricos mais apurados.16 É
necessária uma arqueologia da transformação da Matemá-
tica em ciência hipotético-dedutiva;
O a utilização da Informática para desenvolver provas ainda
é questão altamente polêmica, cercada de paradoxos que
focam validade, teoria e prática;
O várias são as referências bibliográficas que tratam de me-
todologias para a utilização das provas em salas de aula,
embora elas possam ser vistas como estudos comparti-
mentados, sem um elo de ligação forte ou claro o suficien-
te para amalgamá-las num projeto comum, com uma teo-
ria consistente que lhes sirva de fundamentação;

Seguimos aqui Garnica (1995 e 1996),já citados.


Mais adiante trataremos dessas "etno-argumentações".
Mais do que a dificuldade inerente aos levantamentos históricos, deve-se ressaltar
uma certa aversão que a ciência contemporânea - mais notadamente as ditas "ciên-
cias exatas" - tem manifestado em relação a estudos dessa natureza.

E necessario ser preciso? É preciso ser exato? 63


O a prova rigorosa é engendrada, executada, verificada e, fi-
nalmente, validada por critérios nitidamente sociais, afir-
mação esta que rompe com os aspectos do formalismo
que deveriam caracterizá-la;
O quase inexistem trabalhos que tratam especificamente da
questão da prova rigorosa no contexto da formação de
professores de Matemática.

Argumentação e formação de professores


de Matemática: um novo projeto

Falta-nos, agora, situar essas considerações no contexto da


formação de professores. Nossas primeiras investigações sobre o
assunto nos levaram a compreender que a prova rigorosa, sendo
elemento fundamental para entender a prática científica de Matemá-
tica, seria também fundamental nos cursos de formação de profes-
sores, não como mero recurso técnico, mas numa abordagem críti-
ca, que possibilitasse uma visada panorâmica nos modos de produ-
ção e manutenção da ideologia do conhecimento absoluto para que,
a partir disso, pudessem ser produzidas formas de tratamento alter-
nativas às argumentações sobre os objetos matemáticos em salas de
aula reais. Consideramos, então, a partir da análise de discursos de
professores atuantes em cursos de Licenciatura, que a afirmação
sobre a importância da prova rigorosa para formar professores de
Matemática era, de certo modo, relativa, pois possível de ser inter-
pretada segundo dois olhares divergentes. A esses olhares chama-
mos de "leitura técnica" e "leitura crítica".
Cada uma dessas leituras indica uma concepção própria, um
panorama particular. Mesmo a noção de verdade, nessas duas pers-
pectivas, é distinta. Na proposta técnica, a verdade é concebida como
"adequação", ou seja, a verdade da sentença "espelhando" a realida-
de do mundo, uma verdade absoluta e inquestionável, herdeira dos
modelos platônicos aos quais já fizemos referência. Por outro lado,
na vertente crítica, a verdade aproxima-se muito da verdade enquanto
"des-velamento" do mundo, um procurar eterno, uma "verdade" que
se constrói no caminho da procura pela verdade: trajetória, não che-
gada. Procura,
- não adequação.

64 Formação de professores de Matemática


Os distintos olhares ligam-se, também, a distintas áreas do
chamado conhecimento científico. Pareceu-nos que a proposta téc-
nicaI7 ligava-se diretamente à prática científica da Matemática en-
quanto a leitura crítica estava mais vinculada aos esforços que a
Educação Matemática, como área de conhecimento científico
emergente, vem desenvolvendo.
Disso tudo, uma proposta mais diretamente perceptível foi a
de que algumas disciplinas dos cursos de graduação seriam adequa-
das para um estudo crítico sobre a prova rigorosa e o fazer do pro-
fessor. Os cursos de Lógica Matemática, por exemplo, poderiam
cotejar abordagens formais e não-formais sobre os conceitos mate-
máticos e procurar, a partir disso, traçar propostas alternativas para
argumentar sobre Matemática em sala de aula.'' Colocou-se, então,
ênfase bastante forte nas pesquisas de iniciação científica com alu-
nos de cursos de graduação e em materiais didáticos alternativos.
Essa trama de compreensões nos pareceu suficiente no mo-
mento em que terminamos o trabalho de doutorado. Como compre-
ensões nunca são definitivas, sempre podendo ser reabertas, reela-
boradas e aprofundadas à luz de nossas vivências, nos voltamos
àquelas diretrizes e, num campo de perspectivas novas, retomamos

17
Nosso trabalho cuidou de esboçar um tratamento filosófico detalhado acerca dos
termos "técnica" e "crítica" na tentativa de evitar os significados estereotipados, do
senso comum, que tendem a atribuir valores positivos à crítica em relação à técnica
(esta última quase que invariavelmente concebida do ponto de vista da repetição en-
fadonha, da reprodução em série, num roteiro de ausência de criatividade). Não se
pretendeu estabelecer um critério valorativo de um olhar em detrimento do outro
mas, sim, caracterizar diferentes formas de ação e, obviamente, campos conceituais
distintos.
18
Na verdade, tal proposta poderia ser caracterizada como uma intervenção emergen-
cial no atual quadro das Licenciaturas brasileiras. No Brasil (Cf. Bernardo, 1989) as,
Licenciaturas, seguem mais de perto o modelo - equivocado - das Escolas Normais
(do século XIX) do que aquele sugerido com a criação da USP, nossa primeira uni-
versidade, em 1934. Temos defendido que, atualmente, os cursos universitários para
formação do professor têm se guiado por propostas "frankensteinianas": cum'culos
são concebidos como programas, e mudanças curriculares, como conseqüência, são
montagens e desmontagens no quadro de disciplinas, que são inseridas ou retiradas,
em colagens mal-acabadas, segundo necessidades imediatas e particulares, com o
objetivo de "repensar" os cursos. Não se concebe, ainda, a necessidade fundamental
de uma guinada no panorama global dessa formação, instituindo, por exemplo, pro-
jetos pedagógicos consistentes, a partir do qual as disciplinas - e sua condução - se-
riam definidas.

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 65


a questão sobre a argumentação matemática em salas de aula reais.
Confessamos que, mesmo à época da apresentação formal do traba-
lho, ficamos apreensivos acerca de algumas considerações feitas
pelo Professor Ubiratan D'Ambrósio, nas quais afirmava que deve-
ria haver um cuidado muito grande para que, mesmo um trabalho
de natureza crítica como pretendia ser o nosso, não caísse numa
defesa do eurocentrismo. Hoje compreendemos melhor as preo-
cupações de D'Ambrósio. Certamente elas nos indicavam a neces-
sidade de maior ousadia quanto ao tratamento da linguagem
matemática em sala de aula. Até então, mesmo que para uma
proposta crítica, focávamos a questão "como, a partir da prova
rigorosa, engendrar uma análise à prática da Matemática e sugerir
abordagens alternativas?" como ponto de partida para a ação. Na
verdade, a crítica possível era a prova rigorosa como ponto de
partida de um processo. Retomando essas considerações, pensamos
em perseguir uma proposta mais ousada do ponto de vista da ação:
como compreender as formas de argumentação relativas aos
conteúdos matemáticos que, efetivamente, ocorrem em sala de
aula? Certamente a prova rigorosa é - ou pode ser - uma dessas
formas, mas há outras que, certamente, temos negligenciado e,
agora, pretendemos retomar como projeto de pesquisa.
Assim, o que segue nesse capítulo são os contornos iniciais de
uma nova etapa de pesquisa que deverá, por sua própria natureza e
pela natureza da área de conhecimento na qual se insere - a Educa-
ção Matemática -, estar visceralmente ligada à prática desenvolvida
em centros de formação de professores de Matemática, no dia-a-dia
das salas de aula.
Aqui se faz necessário um parêntese para delinearmos qual é,
atualmente, o contexto no qual estamos imersos e do qual recolhe-
mos nossos primeiros dados.

O "novo" contexto

Como professor visitante, na Indiana University Purdue-


University Indianapolis (IUPUI) temos acompanhado as aulas do
curso de formação de professores para a escola elementar (elemen-

66 Formação de professores de Matemdtica


tary teachers). Nos Estados Unidos, ao contrário do que ocorre no
Brasil, mesmo a formação para os professores do início da vida
escolar é feita nas universidades. A disciplina em questão - Math
forfuture elementary teachers - é oferecida pela Escola de Educa-
ção e trabalha os conteúdos de Matemática básica seguindo a ver-
tente da resolução de problemas19a partir das indicações da do-
cumentação oficial para a formação de professores.20 Os alunos
trabalham em grupos, em três sessões semanais de duas horas. Ao
final de cada uma dessas sessões uma tarefa e um journa12' são exi-
gidos para a aula seguinte.
Parece-nos pertinente esboçar, numa visada panorâmica, os
norteadores básicos dos documentos que regem o ensino e a apren-
dizagem de Matemática nos Estados Unidos, visto que nossas ob-
servações provêm de salas de aula imersas nesse contexto educa-
cional.
Os Curriculum and Evaluation Standards for School Mathe-
matics - documento básico para o ensino e aprendizagem de Mate-
mática nas escolas - foram gerados a partir das questões propostas
por um outro documento (A Nation at Risk: the imperativefor edu-
cational reform), publicado, em 1983, pela National Commission
on Excellence in Education. Esses standards da educação escolar
americana são divididos em quatro grandes categorias, sendo a
19
Massingila e Lester, 1998, é o texto adotado em sala de aula.
20
Há, nos Estados Unidos, documentação similar (mas anterior) aos nossos Parâme-
tros Curriculares Nacionais. Os chamados Curriculum and Evaluation Standards for
School Mathematics (publicados em 1989) e os Assessment Standards for School
Mathematics (publicados em 1995), para a área de Matemática, muito conhecidos
no meio internacional da Educação Matemática, são elaborados pelo NCTM (Na-
tional Council of Teachers of Mathematics) e serviram como um dos fundantes para
a elaboração de nossos PCNs. Seguindo os primeiros standards, o NCTM publica,
em 1991, documentos que, naturalmente, tornam-se norteadores para cursos de for-
mação de professores de Matemática (Professional Standards for Teaching Mathe-
matics).
21
Há grande quantidade de literatura recente, nacional e internacional, de boa qualida-
de, sobre os journals no processo de ensino e aprendizagem de Matemática. Sinteti-
camente, journals são diários nos quais, de forma dissertativa, os alunos argumen-
tam sobre a resolução de um problema ou um determinado tema geral. Os diários
devem ser lidos pelo professor e devolvidos ao autor. Acompanha-se, assim, o de-
senvolvimento cognitivo dos alunos, posto que, nas argumentações dissertativas,
obstáculos e facilidades de aprendizagem, ao resolver determinada tarefa, ficam re-
gistrado~.
- - - - - -

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 67


"Resolução de Problemas" a primeira delas, seguida por "comuni-
cação", "raciocínio" e "conexões". Massingila e ~ e s t e sintetizam
r~~
essas disposições:
"Atenção especial é dada aos quatro norteadores principais
que perpassam todos os níveis de ensino. O primeiro deles é a 'reso-
lução de problemas'. Especificamente, os alunos devem estar envol-
vidos com a solução de problemas desafiadores e ligados ao mundo
real. Os alunos não devem somente aprender a resolver problemas
mas, além disso, devem aprender Matemática via resolução de pro-
blemas l.../.O segundo desses norteadores principais é 'comunica-
ção', pois 'saber Matemática' será de pouco valor se não soubermos
comunicar suas idéias. O terceiro norteador indicado pelo NCTM é
'raciocínio'. Entre outras coisas, 'raciocínio' refere-se à habilidade
de pensar em determinado problema e, a partir disso, cuidadosamen-
te avaliar toda e qualquer solução a ele proposta. O quarto norteador
trata da 'elaboração de conexões'. Compreender Matemática está di-
retamente vinculado à habilidade de perceber conexões entre as vá-
rias idéias matemáticas, e entre as matemáticas 'escolar' e 'cotidia-
na'."
Os Assessment Standards for School Mathematics, último dos
documentos publicados, retoma algumas disposições já presentes
no documento de 1989, focando, de modo específico e mais abran-
gente, a avaliação. Nele, seis parâmetros principais são propostos:
"Matemática", "aprendizagem", "eqüidade", "abertura", "coerên-
cia" e "~ariedade".~~Muitas discussões ainda são feitas para se de-
finir, com mais clareza, os conteúdos "importantes" de Matemática
a serem avaliados. Talvez o standard "Matemática" queira referir-
se a estruturas fundamentais da disciplina, ao instrumental mais
diretamente ligado à solução de problemas "reais". O segundo nor-
teador estabelece a avaliação como parte integral da aprendizagem,
ao invés de ser uma instância dela apartada, chamando-nos a aten-
ção para a continuidade e globalidade do processo educativo. Se-
gundo Massingila e Lester,

LL

23
Obra já citada.
O termo "inference" utilizado nos Standards parece ser melhor traduzido, nessa
situação, como "variedade" ou "multiplicidade".
-

68 Formação de professores de Matemática


"Idealmente, a avaliação deveria proporcionar a todos os alu-
nos a oportunidade de mostrar do que são capazes. Na prática, entre-
tanto, os testes padronizados tradicionais têm sido uma barreira para
alunos de determinadas origens, classes econômico-sociais, grupos
étnicos ou gênero. A 'eqüidade' torna-se uma questão ainda mais sé-
ria quando sabemos que as avaliações têm servido para rotular alu-
nos ou negar-lhes acesso a disciplinas, programas ou empregos".
A "abertura" do processo avaliativo refere-se ao modo secreto
que tem caracterizado as formas de avaliação, rígidas e unicamente
controladas pelo professor. Exige-se, também, "coerência" da ava-
liação com as práticas e métodos desenvolvidos no processo de
ensino e aprendizagem. O sexto e último norteador, "variedade",
indica a necessidade de serem considerados múltiplos e distintos
instrumentos e momentos para a elaboração de uma avaliação glo-
bal que, reunindo aspectos advindos dessas "avaliações parciais",
possibilite uma melhor compreensão e interpretação do processo de
aprendizagem do aluno.
Os Teaching Standards foram elaborados dado que somente um
bom currículo, como proposto pelos standards anteriores, não seria
suficiente para a reversão do quadro. Uma das indicações centrais
nesse documento de 1991 parece ser a mudança de ênfase quanto ao
trabalho do professor: de "portador do conhecimento" ele deve tor-
nar-se "facilitador da aprendizagem". Há, ainda, outras propostas de
alteração, tanto no ambiente físico das salas de aula, quanto em rela-
ção a posturas a serem desenvolvidas. Propõe-se o trabalho coopera-
tivo, o uso do raciocínio e da verificação para determinar (colaborati-
vamente) o que é ou não correto - mudando a natureza de uma fun-
ção que clássica e equivocadamente tem estado nas mãos do profes-
sor. A testagem de procedimentos e hipóteses geradas pelos alunos e
a intensificação na utilização de conjecturas e explorações na resolu-
ção de problemas deve ocupar o espaço dos algoritmos mecanizados
e das memorizações. Seis são, especificamente, os indicativos do
Professional Standards for Teaching Mathernatics. Seguindo ainda a
síntese de Massingila & ~ e s t e r , 'podemos
~ resumi-los como segue:
Atividades fundamentais (o professor deve propor atividades basea-
das nos interesses e experiências dos alunos, partindo do conheci-

24
Obra já citada.

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 69


mento prévio disponível; atividades que mostrem a Matemática co-
mo produção humana, que comprometam e motivem os alunos, pro-
movam a comunicação, desenvolvam a compreensão e o raciocínio e
auxiliem os alunos a fazer conexões e a desenvolverem um pano de
fundo coerente para as idéias matemáticas apresentadas); o papel do
professor em relação ao discurso (o professor deve propor questões
que elucidem, engajem e desafiem os alunos, deve ouvir cuidadosa-
mente suas idéias e questioná-los (oralmente e por escrito) para pro-
mover a clareza do pensamento e das justificativas dadas, deve trazer
à cena o que for julgado essencial nas argumentações dos alunos,
escolher o momento oportuno para ater-se à linguagem e à notação
específica e, cuidadosamente, decidir quando e como deve dar in-
formações, esclarecer questões e apresentar modelos); o papel do
aluno em relação ao discurso (o professor deve motivar os alunos a
ouvir, responder e questionar, a iniciar questões e problemas, fazer
conjecturas e apresentar soluções explorando exemplos e contra-
exemplos, tentar convencer a eles mesmos e aos outros da validade
de suas propostas, representações, soluções ou conjecturas); instru-
mentos para a valorização do discurso (para promover e valorizar o
discurso em sala de aula, o professor deve aceitar e encorajar o uso
de calculadoras, computadores, materiais concretos, figuras, diagra-
mas, tabelas e gráficos, termos e símbolos - convencionais ou inven-
tados -, metáforas, analogias, histórias, hipóteses escritas, explica-
ções e argumentações, apresentações orais e dramatizações); ambien-
te de aprendizagem (para criar um ambiente que permita ao aluno
desenvolver e potencializar seu conhecimento matemático, o profes-
sor deve gerenciar o tempo das atividades, prover as salas com mate-
riais didáticos adequados, ousar correr riscos intelectuais ao levantar
questões ou formular conjecturas, firmar sua competência matemáti-
ca validando e apoiando idéias argumentativamente); análise do en-
sino e da aprendizagem (o professor de Matemática deve engajar-se
em atividades que avaliem sua prática, observando, ouvindo e cole-
tando informações sobre os estudantes, para avaliar seu aprendizado,
examinando os efeitos das atividades propostas, o discurso dos alu-
nos e o ambiente de aprendizagem, fazendo planos de curto e longo
prazos, descrevendo e comentando o aprendizado de seus alunos para
eles próprios, para seus pais e autoridades escolares).

70 Formaçáo de professores de Matemática


Uma coleta (inicial) de dados
e (sugestões de) análise

Observamos as aulas quando estavam sendo discutidos os tó-


picos "Frações" e "Geometria". O exemplo com que aqui começa-
mos é referente ao primeiro tópico. O problema é o da "Padaria do
~ e n n ~ " Deve-se
.'~ encontrar modos alternativos para a divisão de
um bolo retangular em oitavos. Os alunos apresentam a solução de
seus grupos, desenhadas em transparência, para toda a sala, com o
que se discutem as estratégias e sua validade. Em seguida, acres-
centa-se um complicador: é possível dividir o bolo retangular em
oitavos, tendo também a cobertura do bolo igualmente distribuída?
As ferramentas formais, como seria de se esperar pela própria
natureza do problema - e em geral dos conteúdos trabalhados nas
disciplinas para a formação do professor para a escola elementar -,
restringem-se aos cálculos aritméticos básicos com números intei-
ros e racionais. Além disso, faz parte das intenções do curso im-
plementar formas alternativas de tratamento ao conteúdo matemáti-
co, desenvolvendo, criticando e aplicando materiais didáticos diver-
sificados.
Voltemos nosso olhar, agora, para as soluções dadas pelos gru-
pos de alunos e as argumentações a elas referente^.'^ Os esquemas
25
Benny's Bakery problem: "Each day Benny makes severa1 rectangular sheet cakes
which he cuts into eighths. He sells 118 of a sheet cake for $ 1.59. As part of a promo-
tional campaign for his store, he wants to cut his sheet cakes into eighths in a different
way each day. Customers who suggest a new way to cut the cakes into eighths win a
free piece of cake each day for a week." E a situação-problema complementar:
"Would it be possible for Benny to cut his sheet cake so that customers would be gua-
ranteed to receive the same amount of cake AND the same amount of icing?'. A pri-
meira parte do problema está proposta no Cumculum and Evaluation Standards for
school Mathematics (Addenda Series, grades 5-8), de 1994. Questões complementares
bastante interessantes estão propostas nesses volumes especiais dos Standards.
26
Muitas podem ser as formas de análise de argumentações. No atual panorama, os
trabalhos de Erna Yackel podem servir como referência. Em seu artigo "Explanation
as Interactive Accomplishment: a case study of one second-grade mathematics
classroom", de 1997, a autora estuda explicações de crianças segundo um viés só-
cio-psicológico, fundamentando-se, para as análises, nos trabalhos de Krumrnheuer
(in Cobb e Bauersfeld, 1995) e Yackel e Cobb (1996). Krummheuer, por sua vez,
apóia-se nos trabalhos do filósofo Stephen Toulmin. Uma síntese da obra de Toul-
min referente à argumentação pode ser encontrada em van Eemeren et ai., 1996. Es-
se nosso artigo, de natureza assumidamente exploratória, parte de um pressuposto

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 71


gráficos apresentados pelos grupos foram rearranjados para nossa
análise, não sendo essa, portanto, a seqüência em que ocorreram
durante a aula em que o problema foi discutido.
Pudemos observar que as primeiras soluções, de todos os gru-
pos, foram as que poderíamos chamar de "esperadas", ou "co-
muns". São mais "contidas" do ponto de vista da criatividade, mais
"racionais" ou, pelo menos, mais facilmente justificáveis do ponto
de vista formal, por vezes tão diretas que prescindiam mesmo de
justificativa.
Ressaltamos, entretanto, que em nenhum momento uma ar-
gumentação forma1 foi elaborada. Em alguns dos esboços (por
exemplo as figuras de números 4, 17 e 11 do anexo 1) pode-se notar
que a divisão de formas planas "ao meio" é puramente intuitiva,
deixada mais a cargo das mãos habilidosas do confeiteiro do que às
mãos precisas do matemático. O mesmo pode ser percebido em
cortes mais ousados (figura 2, p. e.). Já nos esboços de número 7,
10 e 16, por exemplo, embora a habilidade prática talvez provenien-
te de uma técnica manual apurada seja o argumento para a validade
da solução, podemos perceber claramente uma "lei de formação": a
dos excessos e perdas equilibrando-se. Notemos que o mesmo re-
curso é ponto de partida para argumentações formais extremamente
mais "sofisticadas" do ponto de vista matemático do que o proble-
ma em questão. Ou seja, também na abordagem geométrica clássica
que fará surgir o conceito de integral definida, a área sobre a curva
é obtida a partir de um equilíbrio entre excessos e perdas de áreas
retangulares (cujas bases tenderão a zero, quando a norma da parti-
ção for a menor possível, isto é, quando o número de subdivisões
"tender" ao infinito ...).
Outra lei de formação utilizada (nem sempre com a devida
correção) é a das divisões e subdivisões sucessivas. Exemplos disso
são as figuras de número 3, 8, 14, 15, 17, 19, 23 e 24. A exatidão
das divisões fica prejudicada quando se trata de dividir triângulos (4
e 17, por exemplo) ou outras figuras, quando se busca apoio 'em
paralelograrnos ou mesmo triângulos (exemplos 6 e 12).

diferenciado, valendo-se de nossa experiência com análises segundo referenciais fe-


nomenol6gicos, ainda que esses referenciais, nesse trabalho, não se concretizem em
sua plenitude.

72 Formação de professores de Matemática


Nada foi elaborado, nas argumentações dadas, sobre a compa-
ração de áreas de diferentes figuras. No esboço 12, por exemplo,
qual afirmação sustentaria que a área dos triângulos é equivalente
às áreas das metades do paralelogramo?
O processo de divisão e subdivisões ocorre claramente, tam-
bém, nos exemplos 15 e 24, dados pelo mesmo grupo. Algo porém
os diferencia dos demais. Inclui-se, nas argumentações, a "realida-
de" da proposta. Bolos são tridimensionais e, portanto, admitem
outros cortes ... Essa solução "vinculada à materialidade do bolo"
não havia aparecido até então. E, como é natural, questões surgem:
não é o problema, segundo as diretrizes educacionais, um problema
"relacionado à realidade"? Partindo disso, soluções dessa natureza
(e aquelas ancoradas na habilidade do confeiteiro, por exemplo)
devem ser aceitas como válidas. Situação desse mesmo teor ocorre
quando, na parte complementar do problema, envolvidos em tentar
dividir o bolo em oitavos, de modo tal a que cada fatia coubesse a
mesma quantidade de cobertura, um aluno afirma: "Mesmo que
todos os cálculos estejam certos, nunca teremos certeza de que,
realmente, o confeiteiro distribuiu de modo perfeitamente homogê-
neo a cobertura sobre o bolo".
Mais tarde, quando trabalhando nos exercícios iniciais do tó-
pico "Geometria", as imposições materiais - que indicam conflitos
- também surgem de forma explícita. Solicitados a construírem
triângulos, dadas as medidas dos três lados, detecta-se que: (1) se-
gue-se unicamente a estratégia da "tentativa e erro"; (2) o compasso
não é utilizado e, também por conta disso, (3) são construídos
triângulos impossíveis. Seria necessária uma pesquisa mais deta-
lhada para compreender certas situações referentes a essa atividade,
o que não é nosso objetivo nesse artigo. Mas pode-se perceber que,
aparentemente, o critério de legitimidade de um esboço (correto)
em relação a outros (incorretos) ficou com a autoridade da profes-
sora. Afinal, o que faz o compasso (que também se utiliza do grafi-
te, da mão humana e, portanto, está também sujeito a imprecisões)
ser mais "adequado"do que a régua? Na verdade, não são compasso
e régua que justificam a veracidade da afirmativa a que se pretendia

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 73


chegar,27 mas uma elaboração mental, de natureza aritmético-
geométrica. O dado material, portanto, instala uma crise - proposi-
tal - que ele próprio não pode resolver (por que não pode existir um
triângulo com ângulos quase inexistentes, mas "satisfazendo" a
medida dos lados, como solicitado?) e a argumentação correta aca-
ba sendo feita num outro domínio, o das idéias, onde estão, já em
princípio, abstraídas as propriedades palpáveis, visíveis, do objeto.
Curioso lembrar, aqui, a conhecida história de Kasper Hauser,
o adolescente criado distante da chamada "vida civilizada". Levado
aos cientistas que pretendiam estudar criatura tão interessante, um
dos testes a ele proposto foi o conhecido problema que, em uma de
suas inúmeras formas de apresentação, fala da estrada bifurcada. Na
bifurcação, dois guardiões. Um deles, ao contrário do outro, só
dizia verdades, e guardava a estrada que deveria ser seguida. Po-
dendo fazer somente uma pergunta a um dos dois informantes, de-
ve-se descobrir a estrada que leva ao caminho desejado. A solução,
do ponto de vista lógico, é que se deve perguntar a qualquer um dos
dois o que o outro diria se lhe fosse perguntado qual o caminho
correto. Obtida a resposta, deve-se tomar o caminho contrário. Con-
frontado com tal enigma, Kasper Hauser dá uma solução ao mesmo
tempo interessante e engraçada. Diz ele: "Eu perguntaria a qualquer
um dos dois: você é um sapo?" Ao contrário do que esperavam os
cientistas, o adolescente não participa do jogo do qual, segundo o
olhar dos qualificados juízes, deveria participar. Ele não se insere
no contexto da lógica sistematizada, matemática, rígida e dá a res-
posta segundo sua lógica natural. Supondo que o problema seja um
problema real, Kasper Hauser dá a ele uma resposta real, não codi-
ficada por padrões científicos.
Muitos dos encaminhamentos que vemos surgir na sala de au-
la são de mesma natureza, embora confundam-se com as argumen-
tações "esperadas", as argumentações "desejáveis" para uma sala
de aula de Matemática. O aluno, via de regra, tem respondido se-

27
Tentando construir triângulos de lados (3,5,2), (6,2,3), (3,10,4)e (7,4,6) pretendia-se
estabelecer a proposição "Num triângulo qualquer, a soma da medida de dois dos
seus lados é sempre estritamente maior que a medida do outro lado". O conflito em
sala de aula ocorre exatamente durante a discussão do caso em que a igualdade se
verifica.

74 Formação de professores de Matemática


gundo os cânones que pensa ser aqueles que o professor segue. Ele
responde o que o professor quer ouvir. Isto porque a escola cuida de
desenvolver uma forma de pensamento "correto", hegemôrnico,
mesmo que esse pensamento não seja aquele de que, naturalmente,
o aluno se utiliza. Pensa-se em Matemática nas aulas de Matemáti-
ca, sendo dispensados quaisquer justificativas que não participem
desse jogo. Quando muito, essas justificativas são dialogicamente
encaminhadas (pelo professor) para a via da resposta que se deve
dar: a resposta aceita. Somente se percebermos nossos Kaspers
Hausers poderemos elaborar atividades para nossas salas de aula, de
modo a desenvolver a tão clamada "habilidade de resolver proble-
mas diretamente ligados à realidade", sugerida por todos os do-
cumentos de que se tem notícia sobre ensino de ~atemática."
Uma outra consideração refere-se à solução de número 1, da-
da por um dos grupos. Durante sua argumentação, a aluna vê seus
24 avos como oitavos. Certamente há, nisso, um equívoco concei-
tual? mas nos deteremos, aqui, na natureza da argumentação por

28
Uma outra situação, disparada por um problema sugerido em sala de aula, pode
contribuir para esclarecer essa relação entre "realidade" e atividades de ensino. O
problema em questão trata de uma das grandes paixões americanas: o basquete. A
derrota do Pacers num dos jogos da NBA serviu como tema de uma atividade para
um curso de verão do programa de formação para professores da escola elementar:
"Em seu último jogo o Pacers conseguiu o placar de 95 pontos. De quantas maneiras
diferentes esse total de pontos poderia ter sido obtido?'. A questão, cujo objetivo é
discutir conceitos iniciais de probabilidade, permite uma variada gama de aborda-
gens, em diferentes níveis de ensino, desde a construção de tabelas e outros recursos
gráficos, até a percepção de leis de formação de seqüências numéricas (chegando à
solução da soma finita dos termos de uma progressão aritmética) e de critérios de
paridade para números inteiros. Fora da sala de aula, informalmente, o problema foi
apresentado a Sam, garoto de 12 anos, filho de uma das professoras. Percebeu-se o
interesse na questão mas algumas das situações, matematicamente corretas, que fa-
ziam parte da solução (95 cestas de um ponto cada, por exemplo) não foram aceitas
como possibilidade pois não encontravam suporte em referenciais reais e, portanto,
29
não eram julgadas válidas.
A aluna, que aqui chamaremos A, tem um enorme obstáculo a enfrentar para ultra-
passar essa falha conceitual. Esse enfrentamento é dialogicamente tentado pela pro-
fessora:
Professora: Quais são seus oitavos? Aluna A (apontando para "seus" 24 avos):
"esses!" Uma outra aluna, B, interfere: "Não, para ter o bolo dividido em oito partes
você deve pegar três desses pedaços de cada vez" ... levanta-se e pinta um oitavo do
bolo, mostrando o processo. A professora, voltando-se para A: "Então, quais são
seus oitavos?', ao que A, novamente apontando para os 24 avos, responde: "esses!"

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 75


ela desenvolvida. A professora interfere: "Se alguém compra um
pedaço desse bolo (e aponta para um oitavo apresentado por outro
grupo) e, num outro dia, compra um pedaço do seu, pelo mesmo
preço, certamente ficará um pouco aborrecida, você não acha?". E a
resposta: "Pode até ser mas, com os "meus" oitavos, o confeiteiro
terá um lucro muito maior".
Nisso, parece imperar mais a força do lucro do que, propria-
mente, a coerência do tamanho das partes de um bolo dividido em
oitavos. Há, é claro, nesse exemplo, uma ligação com aqueles sobre
os quais falávamos anteriormente: aqueles em que alguma determi-
nação material, real, forte, sobressai na solução do problema. A dife-
rença é que, aqui, a natureza dessa determinação é claramente per-
ceptível: os jogos do mundo capitalista. O maior preço pelo menor
pedaço, a maximização - injusta - do lucro, a potencialização do
valor pelo menor esforço.
Novas possibilidades de abordagem, sempre mais variadas, à
questão das formas de argumentação, ocorrem quando é trabalhada a
complementação do problema: continuamos a querer o bolo cortado
em partes iguais mas, agora, procuramos também dividir igualmente
a cobertura. Logo de início, os alunos percebem que com um bolo
que tivesse a forma quadrada seria fácil. Surge, então, a questão: se o
bolo de Benny é retangular, por que não pode ser quadrado? Há
questionamentos. Os retângulos são quadrados? Os quadrados são
retângulos?
Parece ser o momento adequado para uma nova iniciativa: a
discussão das definições em Matemática. Primeiramente, de modo
informal, a professora discute com os alunos o que seria uma defi-
nição e solicita deles um journal com a questão: "Defina uma me-
lancia". O exercício serve como um motivador para que, na próxi-
ma aula, comecem a ser discutidos conteúdos de Geometria, num
estudo sobre as definições matemáticas.
Reproduzir todas as definições e todos os diálogos seria, aqui,
desnecessário e um tanto quanto enfadonho, mas algumas conside-
rações gerais podem ser esboçadas.

Duas são as constatações evidentemente imediatas: B, ao tentar ensinar, mostra e fa;


la. E A, mesmo tendo "visto" e "ouvido", não entende e, portanto, não aprende. E
sobre isso a máxima de que "Ensina-se ouvindo, aprende-se falando". O diálogo ci-
tado no corpus do texto ocorre depois desse da nota de rodapé.

76 Formação de professores de Matemática


É interessante notar que os alunos têm mais dificuldade em
definir uma melancia do que uma circunferência. Poucas são as
tentativas frustradas para se definir a circunferência como "o con-
junto de todos os pontos equidistantes de um dado ponto". É inte-
ressante, portanto, perceber, na prática, como a Matemática impede
o deslizamento dos significantes: a melancia depende do olhar que
a vê, do paladar de quem a sente, das preferências de quem a des-
creve. Não existe "A" melancia, mas "melancias", em concretudes
de diferentes formas, melancias-matéria, melancias disponíveis no
mundo. As formas matemáticas são, em princípio, idealizações -
"idealidades" é o termo que Husserl utiliza para caracterizar as
formas geométricas.30Existe "0" triângulo, "A" circunferência.
Objetos ideais - ou idealidades matemáticas - podem ser lidos
distintamente. Por um lado a visão platônica, a partir da qual se
afirma que os objetos matemáticos, independentemente da elabora-
ção humana, preexistem no mundo das formas perfeitas, disponí-
veis imperfeitamente em materialidades variáveis. Por um outro
lado, segundo nossa compreensão, a husserliana: as idealidades são
formadas a partir de um processo cultural, histórico, humano, de
depuração de fatores não-essenciais, não-"operacionalizáveis", uma
trajetória de "idealização".
Como entendemos, há nisso a formação de dois mundos dis-
tintos, irreconciliáveis, num dos quais está o fazer humano, em suas
múltiplas perspectivas, lutando por estabelecer significados claros
(mas não-unívocos) aos objetos. As idealidades, como resultantes
de um processo de depuração, estão em formação, em processo
iniciado a partir do mundo e são possibilidades de se compreender
o próprio mundo de forma mais sistemática, orgânica. Do outro, o
mundo platônico: a forma preexistente ao humano conhecimento da
forma, a perfeição à qual se adaptam as mundanas imperfeições.
Essa "higienização" das formas ideais serve bem ao propósito
da prática matemática. Desconsiderando as nuanças de naturezas
histórica e filosófica, as definições tratam de domesticar o existen-
te, servem como jaulas para o significado-presa. Orbitamos, portan-
to, num "entre". A teoria filosoficamente estabelecida, fundada, e a
30
Confira-se, por exemplo, 'The origin of Geometry' in Husserl, 1970 e "Sobre 'A
origem da Geometria"' in Bicudo, 1990.

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 77


prática que dispensa a fundamentação ou funda-se em si própria.
Por conta dessa inter-região, talvez fosse mais sensato nos referir-
mos a "Matemáticas" no tratamento das argumentações em sala de
aula.
Dificilmente se encontrarão, no trabalho cotidiano do profes-
sor da escola elementar, formalizações sofisticadas do ponto de
vista matemático. Haverá sempre, obviamente, em qualquer nível
de trabalho com Matemática, uma formalização naturalmente exi-
gida pela disciplina: alguns símbolos específicos, algumas regras de
formação, uma gramática que - mesmo quando não-rigorosa - de-
pende de uma alfabetização específica: a alfabetização matemática.
Mas, nesse viés - e reforçamos que essa diferenciação tem como
objetivo o trabalho com formas de justificação e não um trunca-
mento ideológico de níveis de ensino ou conteúdos matemáticos -
parece necessário estabelecer duas formas distintas de argumenta-
ção frequentemente empregadas nas salas de aula: as justificações
serniformais e as formais. O termo "formal" participa, aí, obvia-
mente, por ser o trabalho com a Matemática escolar naturalmente
envolto com sistematizações outras que aquelas dadas unicamente
pelo cotidiano e pela linguagem natural. Há uma forma própria de
ser da Matemática. Esse trabalho tem, porém, instâncias diferencia-
das e poderá ser mais ou menos "elaborado" do ponto de vista da
linguagem formal. A distinção dar-se-á pautada em critérios seme-
lhantes aos que distinguem um discurso pedagógico e um discurso
científico da Matemática, do que já tratamos. Para as matemáticas
que ocorrem fora do sistema escolar, as etnomatemáticas, uma ou-
tra categorização, ainda, precisa ser pensada. Se não há um trabalho
com a linguagem artificial da Matemática, o termo "formal", como
o aplicamos aqui, perde seu sentido. Poderíamos, nesse caso, cha-
mar a essas justificações de etno-argumentações ou argumentações
não-formais. Caberá à pesquisa em Etnomatemática elaborar essa
idéia aqui apenas esboçada.
Argumentações semiformais são, por exemplo, sob nossa con-
cepção, as que ocorreram na sala de aula à qual fazemos referência
nesse texto. Há uma participação orgânica, essencial, da linguagem
natural e de elementos do dia-a-dia dos argumentadores. Também
das argumentações formais a linguagem natural participa. Negar

78 Formação de professores de Matemática


isso seria negar todo um trabalho anterior quando afirmávamos,
junto com muitos autores, sobre uma interconexão vital entre lin-
guagem materna e linguagem matèmática e que, nessa intercone-
xão, deveriam ser buscados elementos para a revitalização semânti-
ca de uma linguagem que se pretende puramente sintática: um pro-
jeto de vinculação essencial ao ensino e à aprendizagem da Mate-
mática. Mas na prática usual, a linguagem formal tem servido para
a mera tradução dos códigos matemáticos, fortalecendo a formali-
zação ao invés de dar a ela uma referência mais significativa, mais
próxima 2s vivências do aluno.
É no estudo das argumentações formais sobre conteúdos de
uma Matemática também altamente formalizada que devem ser
investigados os limitantes e potencialidades das provas rigorosas,
por exemplo. No caso dos contextos semiformais ou não-formais
encontraremos suporte mais viável para análise no contexto sócio-
cultural-econômico-linguístico de quem argumenta e não em estu-
dos sobre a aplicação de regras lógicas ou raciocínios dedutivos.
Talvez seja isso, também, um possível indicador da necessidade de
demarcação: por um lado, os raciocínios indutivos como formas
mais frequentes de ação em certos modos de produção de justifica-
tivas e, por outro, a exigência de deduções em outras.
Por tratar-se de uma "investigação sobre a possibilidade de
investigação", esse texto não pode - nem deve - ser demasiada-
mente fechado. Podemos, porém, indicar algumas compreensões
que parecem decorrer de nossas análises até aqui desenvolvidas:
O estudo das argumentações sobre conteúdos matemáticos po-
de ser visto sob diferentes perspectivas. Para tanto, toma-se necessá-
rio falarmos em diferentes formas de argumentação, ou de modos
diferenciados - mas coexistentes nas salas de aula - para o estabele-
cimento de justificações.
Numa Matemática formalizada que, na prática, segundo a lite-
ratura disponível, caracteriza-se como uma Matemática Platônica, o
modo de argumentação, por excelência, é a prova rigorosa ou de-
monstração formal, envolta em paradoxos, mas com o objetivo de
firmar, definitivamente, a veracidade das afirmações matemáticas.
Dirige-se mais à prática profissional e científica de geração de co-
nhecimento matemático, devendo ser relativizada e mais estudada
quanto a sua forma de utilização em salas de aula.

É necessário ser preciso? E preciso ser exato? 79


As argumentações semiformais que ocorrem em salas de aula
pautam-se, indiscutivelmente, no contexto sócio-cultural-político e
no domínio da linguagem natural. Confundem-se as facetas do ope-
racionalizável e do não-operacionalizável nos objetos "matemáti-
cos". Na verdade, os chamados objetos matemáticos, no caso do
domínio semiformal, são, também eles, intuitivos, ligados à concre-
tude das experiências cotidianas e, portanto, desligados da "des-
materialização" que, classicamente, caracterizaria tais objetos.
Qualquer projeto ou estudo que se pretenda um motivador de
aprendizagem matemática operando pela ligação com a vida coti-
diana3' deve ter em seu panorama essa incompatibilidade^' de uma
liguagem estilizada, artificial, matemática com os aspectos da coti-
dianidade: há um limite para a formalização se a proposta tiver o
princípio da "realidade" como fundante, sendo que essa fronteira
coincide com os elementos desenvolvidos pela Alfabetização Ma-
temática. Isso, portanto, parece apontar para a possibilidade de ha-
ver um conflito estrutural entre "matematização" e "realidade" que
necessita ser investigado. Ultrapassar essa "incompatibilidade"
deve ser, no fundo, o projeto fundante dessas iniciativas."
31
E, segundo pensamos, esse parece ser um dos principais norteadores dos Parâmetros
31
Cumculares brasileiros tanto quanto o é dos Standards americanos.
Na verdade, há uma questão de fundo, há muito debatida, sobre a realidade das
teorias matemáticas. Algo deve haver para que teorias, formal e abstratamente ela-
boradas, comportem aplicações como, por exemplo, as que são tematizadas na Ma-
temática Aplicada (também essa nomenclatura, como já pudemos observar em tra-
balhos anteriores, bastante artificial, mais de natureza política que relativa aos obje-
tos matemáticos). Em nosso contexto, porém, algo desponta de modo muito claro:
se concebermos a Matemática meramente como uma linguagem (numa abordagem
herdeira do Nominalismo, mas ainda muito presente), "Ensino de Matemática" e
"'realidade' cotidiana" são, certamente, conflitantes.
É óbvio que a Matemática necessita de uma linguagem. Com alguma concessão
poderíamos até mesmo afirmar que a Matemática E uma linguagem, mas não só
uma linguagem. Essa diferença é fundamental para nossa argumentação. Natural-
mente, uma alfabetização específica quanto à linguagem matemática é fundamental
para compreendermos o mundo em que vivemos (e seguem aqui os exemplos co-
muns dos gráficos, tabelas, sistemas de numeração, geometria básica, porcentagens,
medidas, etc.) e, portanto, para compreendermos a Matemática em situações reais.
Ocorre que nessas "situações reais" a Matemática desenvolve-se mais como instru-
mento, do ponto de vista prático, do que como linguagem especificamente. E isso só
será percebido se distinguirmos, de um lado, uma Matemática concebida como lin-
guagem, do ponto de vista formal, sistematizado, artificial, própria da prática cientí-
fica e, do outro lado, um discurso pedagógico de Matemática, o que tentamos carac-

80 Formação de professores de Matemática


As argumentações não-formais e semiformais, por estarem
mais próximas do modo como cotidianamente nos relacionamos
com as coisas - tecendo comentários, elaborando justificativas,
procurando fundantes - devem estar presentes nos cursos de forma-
ção de professores de modo privilegiado. Tanto quanto a presença
da prova rigorosa é necessária para uma análise do modo de produ-
ção do conhecimento matemático, as argumentações não-formais o
são por participarem efetivamente do dia-a-dia das sessões escola-
res e de ensino e aprendizagem informais. A prova rigorosa, dis-
cutida criticamente, inclusive, auxiliará no estabelecimento da im-
portância da presença sistemática de justificativas de outras nature-
zas na formação do professor de Matemática.
Há, nessas considerações um elemento especial, para o qual a
pesquisa em Educação Matemática tem, quando muito, timidamen-
te apontado: os comumente chamados "modos de raciocínio".
Parece natural que argumentações semiformais sejam essen-
cialmente indutivas, pois pautadas no conhecimento cotidiano dos
objetos e suas relações: o início pela particularidade procura a sis-
tematização mais abrangente, um contexto mais geral. "Oposto" a

terizar no início desse artigo. É insuficiente pensar a linguagem sem definir os "es-
paços" de uma prática científica (no qual a linguagem prescinde de ligações com a
realidade) e de uma prática pedagógica (no qual as aproximações com o cotidiano
têm sido temática fundamental) e, portanto, conceber Matemática como linguagem
é, no mínimo, lacunar e insuficiente para a Educação Matemática. Na verdade, se-
gundo pensamos, embora sejam fundamentais para as salas de aula as questões que
tratam de aspectos da realidade (pois é necessário organizar uma forma de ação para
a prática pedagógica), essas mesmas questões são uma caricatura da realidade, uma
pseudoligação com o cotidiano: são pretensamente reais e, portanto, configuram-se
num "sistema de motivação". E a motivação, bem sabemos, é externa: alguém (no
caso, o professor) deliberadamente decide motivar alguém (no caso, o aluno) par?
alguma coisa (no caso, aprender matemática fazendo conexões com a realidade). E
necessário reforçar, portanto, a necessidade das iniciativas comuns à Modelagem
Matemática, onde a problematização da realidade parte dos alunos. Seriam esses,
então, problemas "reais", cotidianos, parte do "sistema de desejos" ao contrário da-
quele "sistema de motivação". Roberto Ribeiro Baldino e Tânia Cabral, valendo-se
de fundantes emprestados da Psicanálise, discutem isso com profundidade em al-
guns de seus trabalhos. Assim, segundo percebemos, o conflito "linguagem
matemática-aplicação à realidade" poderá ser ultrapassado, possivelmente, com as
iniciativas próprias da Modelagem (ou Modelação) Matemática. Isso nos parece
análogo à necessidade de se ter a pesquisa-ação, em suas várias vertentes, como
essencial para a investigação em Educação Matemática como área de conhecimento
teórico-prática.

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 81


isso, o raciocínio dedutivo é o que caracteriza a produção científica
de Matemática, ciência hipotético-"dedutiva": nos enunciados glo-
bais as particularidades são fatalmente explicadas. A criação mate-
mática, entretanto, parece orbitar num espaço intermediário, entre
indução e dedução. Tanto quanto os artigos mais recentes, anteri-
ormente referenciados, quanto o texto clássico de ~ a d a m a r dnos
~~
indicam isso. Parece haver uma região indefinível, intuitiva - e,
portanto, não-discursiva - na qual se dá a gênese do pensamento
matemático. Nesse espaço intermediário ocorre como que uma
espécie de contínuo trafegar de idéias, ora gerais, adequadas a espe-
cificidades, ora particulares, adequando-se a generalidades. Essas
formas de raciocínio, ou modos de argumentação ou, ainda, formas
válidas de inferência - a dedução e a indução - são conhecidas
desde os gregos e estão presentes em todos os processos de mate-
matização. Há, porém, uma terceira forma, pouco auscultada, pouco
comentada, sobre a qual a literatura disponível nos indica um autor-
chave: Charles Sanders ~ e i r c e . ~ ~

A importância do impreciso
e a potencialidade de algumas incertezas

"How often is imagination the mother of truth?"


(Sherlock Holmes in The Valley of Fear)
Nosso contato com o mundo, em grande parte das vezes, é fei-
to probabilisticamente. A exatidão não coordena nossas ações coti-
dianas e é recente, na história da humanidade, essa frenética procu-
ra pela precisão, motivada pelos avanços científicos. "A medida é
algo bom" passou, ideologicamente, a significar "Só é bom o que
pode ser medido". Mas na cotidianidade comportamo-nos probabi-
listicamente, imprecisamente, por aproximação. E externamos
idéias, damos palpites, fazemos previsões, mais frequentemente
baseados no conhecimento que temos do mundo do que, propria-
mente, no conhecimento "científico" disponível. Essa instância da
33
34
Hadamard, 1947.
Neste texto, nossa referência básica sobre o trabalho de Peirce é Eco e Sebeok,
1988.

82 Formação de professores de Matemática


descoberta de modo incerto, não-planejado, "adivinhado", está in-
timamente relacionada com o que Peirce chama de "abdução", ou a
terceira - e principal, segundo ele - forma de inferência, de argu-
mentação, a reger nosso processo cognitivo.
Mas é necessária certa cautela: não são meras adivinhações,
que vêm do nada, os pontos de partida para conhecermos o mundo
e para podermos, sobre ele, tecer afirmações e projeções. Nossa
mente forjou-se num processo gradual e lento, segundo as leis da
natureza, e a vivência que temos do e no mundo nos possibilita
conjecturar e, um pouco mais, conjecturar com uma boa dose de
certeza: diagnosticamos e prognosticamos.
Segundo Peirce, "a dedução depende da confiança que temos
em nossa habilidade de analisar o significado dos signos nos quais
ou pelos quais pensamos; enquanto a indução depende da confiança
no fato de que uma seqüência de um dado tipo de experiência não
mudará ou cessará sem indicação alguma antes de seu final. Já a
abdução depende de nossa esperança em, mais cedo ou mais tarde,
adivinhar as condições sob as quais um dado fenômeno apresentar-
se-á." Para o autor, é mesmo impossível ao humano qualquer forma
de ação mental, seja ela válida ou não, sem que se utilize a dedução,
a indução e a abdução.
Certamente a abdução, na concepção de Peirce, envolve o im-
preciso, o inseguro, o incerto na enunciação de normas gerais, em-
bora a abdução não nos dê garantia de sucesso quanto aos resulta-
dos dessa predição. A abdução inicia-se pautada em fatos sem
qualquer teoria prévia como fundante, embora esteja sempre pre-
sente um sentimento de que alguma teoria é necessária para expli-
car determinados fenômenos que nos são surpreendentes.
Por conta dessa teoria, vários são os trabalhos que tecem
comparações entre as teorias de Peirce e os métodos empregados
por Sherlock Holmes, o célebre detetive de Arthur Conan Doyle.
Há uma instância imprecisa - mas segura até certo ponto, pois fun-
dada na experiência, nas vivências e no bom senso - que permite ao
investigador, juntados os indícios disponíveis no panorama do cri-
me, prever o culpado e, checadas as possibilidades e verificados os
detalhes, tornar público seu nome e seu motivo. E mesmo no mo-
mento da coleta de indícios, alguma forma de inferência - também

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 83


ela não-clara, possivelmente não-discursiva, imprecisa - indica
quais são e quais não são bons elementos para a explicação do cri-
me. Em ~ r u z z i ,por
~ ~ exemplo, vemos que "pela abordagem de
Holmes, as considerações lógicas (mais dedutivas) e as empíricas
(mais indutivas) estão em constante inter-relação. I.../ Embora
Holmes frequentemente refira-se a 'deduções', e k s raramente apa-
recem em seu método. As inferências comuns de Holmes não são
também induções. Mais exatamente, Holmes consistentemente de-
senvolve o que C. S. Peirce chama 'Abdução'. /.../ As abduções,
como as induções, não são auto-suficientes como as deduções e, por
isso, precisam ser externamente validadas. Peirce, algumas vezes,
chama as abduções de 'hipóteses' e, no sentido contemporâneo,
isso é o que a conclusão representa na abdução: uma conjetura so-
bre a realidade que necessita de alguma testagem para validação."
O processo de argumentação sobre os objetos matemáticos,
sendo argumentação, não escapam às teorias de Peirce. Não esca-
pam, então, aos "momentos abdutivos" cuja concepção, convenha-
mos, está muito próxima às considerações de Hadamard sobre a
gênese do conhecimento matemático. O conceito de 'abdução' ten-
do enorme sincronia com a necessidade de uma "ciência do impre-
ciso", da qual já nos alertava ~ o l e sou , ~a ~
necessidade de se atribu-
ir maior importância aos fenômenos não-exatos do mundo, exige,
cada vez mais, investigação em Educação Matemática.
Esqueçamos o positivismo do método de Holmes, relativize-
mos a importância do rigor matemático em determinadas formas
(válidas) de justificação e nos detenhamos no que parece ser uma
abordagem frutífera ao estudo das argumentações em Matemática: a
teoria de Peirce.
Da seguinte afirmação de Peirce, extraída de um diálogo fictí-
cio entre ele e ~ o l m e s , temos
~' indícios de boas possibilidades para
essa nossa proposta de investigação:
"To discover that we know through the combination of three
fundamental forms of inference is to take a necessary but not fully
sufficient step toward the development of a scientific method. The
35
36
Truzzi, in Eco e Sebeok, já citado.
Moles, 1995.
37
Cf. Bonfantini e Proni, in Eco e Sebeok, já citado.

84 Formação de professores de Matemática


three kinds of argument have been known and explained since the
times of the Greeks. I.../above all, I stress the importance of the
function of abduction, of hypothesis. By emphasizing against the
Cartesian tradition, that a11 our knowledge has a hypothetical basis,
on the other hand I highlight its intrinsic fallibility but on the other I
proclaim the need resolutely to put abduction on the control room of
cognitive process in general and above a11 in the scientific process,
for its only by means of hypotheses new and bolder abductions, that
we can discover new truth, however approximate and provisional;
its only by means of new hypotheses that we can widen our vision of
the real and discover new avenues of experience, propose new mate-
rial for the test bench of experimentation."
Fica sugerida, então, a possibilidade de uma investigação que,
até certo ponto, já julgamos encaminhada. Com isso, deve-se cons-
tituir um programa de pesquisa. As conseqüências disso, certamen-
te, ficarão para possíveis próximos capítulos.
Finalmente, devemos agradecer o apoio de Beatriz D'Am-
brósio, Vicki Walker, Sue Mau e Dorival Rodrigues, sem o qual
esse estudo não teria sido possível. Vicki Walker, além do suporte
intelectual e afetivo, colaborou trazendo os discos de Rhythm'n
Blues que foram nossa trilha sonora.
Indianápolis
Primavera de 1999

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É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 85


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86 Formaçáo de professores de Matemática


Anexo

É necessário ser preciso? É preciso ser exato? 87


Tânia Cristina Baptista Cabra1

Que uma coisa exista realmente, ou não, pouco importa.


Ela pode perfeitamente existir no sentido pleno do termo,
mesmo que não exista realmente.
Toda existência tem, por definição, algo de tão improvável que, com efeito,
a gente fica perpetuamente se interrogando sobre sua realidade.
JacquesLacan
O Seminário, Livro 2

Introdução

A dificuldade na aprendizagem do saber específico denominado


Matemática tem preocupado professores e pesquisadores de diversas
áreas do ensino fundamental e do ensino médio. Nesses últimos anos,
temos testemunhado que a aprendizagem em nível de ensino superior
também tem provocado nos educadores matemáticos um grande
estado de preocupação.
Observações mais cuidadosas mostram que ao nos debruçar-
mos, sobre a didática relativa ao ensino de Matemática, ainda que
pesem as divergências que possam haver a respeito do que no campo
é significado como didática, encontramos o aluno que erige barreiras
para se engajar na aprendizagem. Quando assumimos compromissos
relativos à sala de aula, não há dúvidas sobre a complexidade da
tarefa de fazer com que um aluno produza um saber relativo ao saber
instituído, à medida que pensamos, principalmente, como se apren-
dem conteúdos relacionados à análise matemática.

Lógica da intervenção didhtica 89


Entrando na especificidade dos conteúdos que constituem dis-
ciplina como Cálculo Diferencial e Integral, é consenso que o ma-
nejo de muitos conceitos tratados nessa matéria requer do aluno a
habilidade de lidar com representações formais, associadas às de-
monstrações formais, consideradas duas das principais característi-
cas do pensamento matemático avançado. Em razão disso, algumas
pesquisas são organizadas em torno de descrições e análises das
dificuldades - especiais ou não - de alunos em processo de apren-
der Matemática. Anais e revistas especializadas em Educação Ma-
temática, por exemplo, mostram que inúmeras investigações, tendo
por objetivo diminuir o número de reprovações e o abandono esco-
lar, têm tratado de assuntos como análise de encaminhamentos di-
dáticos, levantamento e qualificação de erros, estudo de propostas
pedagógicas, análise de grades curriculares, entre outros. Esses
temas desdobram-se em outros tantos: análise de livros didáticos,
confecção de jogos e materiais concretos, elaboração de livros pa-
radidáticos, proposição de oficinas e atividades paracurriculares,
propostas de reorganização do sistema que compreende avaliação e
seleção escolares, etc. Para abordar essas e outras questões busca-se
auxílio de disciplinas como História e Filosofia da Ciência, Socio-
logia, Psicologia (cognitiva, comportamentalista, sócio-interacio-
nista, etc.), Lingüística, etc. Além disso, subjazem às propostas de
trabalho, como fundamentos, ainda que não seja de maneira explíci-
ta, concepções filosóficas, epistemológicas e pedagógicas. As in-
quietações trazem à baila todo um sistema axiológico que dirige as
escolhas do investigador. Das inquietudes concernentes aos aspec-
tos relacionados com estratégias para resolver problemas, caracteri-
zação das representações e concepções dos alunos, emergem traba-
lhos e debates que versam, de modo geral, sobre os chamados as-
pectos cognitivos.
Para introduzir a questão principal deste artigo, é preciso acei-
tar a seguinte assertiva: há efeitos produzidos que não se encaixam
nos quadros teóricos que basicamente tratam dos aspectos cogniti-
vos, pelo modo como certas relações são estabelecidas em classe.
As análises permitem afirmar que no ensino tradicional de
Matemática o professor é colocado na, ou assume a, posição de

90 Formação de professores de Matemática


saber tudo -4 o mestre por essência. O aluno, na posição comple-
mentar, deve saber como-responder,é o aprendiz.-Desselugar, são
sustentada= ações do mestre, porquanto se exige do aluno que ele
responda à demanda institucional veiculada pelo saber instituído
(Baldino e Cabral, 1997; Cabral e Baldino, 1998). Cabe perguntar.
O trabalho de sala de aula deve ser assim instituído? O aluno pode
ficar nessa posição, se, como professores, queremos que ele apren-
da? De que outro processo aluno e professor podem tomar parte?
Do saber instituído, quais são os efeitos produzidos sobre o aluno?
O aluno quer se engajar em um processo de modificação?
Essas são questões que merecem ser debatidas a partir de uma
outra epistemologia. Para isso, não sem alguma pretensão, neste
trabalho, responderei pela leitura que faço e que é sustentada na
teoria psicanalítica de orientação freudo-lacaniana. Assim, para
sustentar o debate teórico apresentarei e interpretarei dois casos de
aprendizagem de Matemática em nível universitário.

A apresentação de dois casos

Para orientar o leitor com relação à apresentação e à interpre-


tação dos casos de sala de aula, a partir da posição sustentada na
conexão Educação Matemática-Psicanálise, duas questões devem
ser constituídas: (i) Qual é a maneira escolhida pelo aluno para lidar
com os princípios estabelecidos como científicos? (ii) Qual é a 1ó-
gica de uma intervenção sobre o processo de aprendizagem para
levar o aluno a se confrontar com suas escolhas preferenciais?

Lógica da intervenção didática 91


Caso "MAS: 'pensei do jeito antigo.. . ' a maneira
preferencial de justificar'"

MAS frequentava a disciplina de Cálculo Diferencial e Inte-


gral I' e sabia que tinha "dificuldades". Não entendia muito bem a
matéria nas aulas regulares. Em razão da prática didática, sustenta-
da por um contrato de trabalho proposto, por escrito, pelo profes-
sor (P) da disciplina, em acordo com os alunos, MAS frequentava
as sessões de recuperação paralela (RP). Sua participação nas RP's
contava pontos que influíam em sua nota bimestral. Em uma certa
sessão MAS compareceu, junto com três colegas que não precisa-
vam tomar parte nessa atividade. Um deles pediu que fosse tratado
o assunto "ponto crítico de uma função". Essa questão abarca a
noção de limite e traz à baila as concepções espontâneas infinitesi-
mais. O professor pediu que MAS fosse ao quadro e falasse sobre o
conteúdo matemático ponto crítico, colocando, ao mesmo tempo, à
sua disposição, o livro-texto de Cálculo3 usado nas aulas regulares.
MAS estava pouco à vontade naquela situação, pois nada dizia.
Após um tempo em silêncio, ela reproduziu a definição em voz alta:

pi
um ponto (número) c do domínio de uma
função f é ponto crítico de f se ou
f '(c) = O ou f '(c) não existe . O profes-
sor foi ao quadro e propôs que ela mar-
fig. 1
casse no gráfico de uma função (fig. i) os
pontos críticos e justificasse. MAS não
teve dúvidas com relação aos pontos a e
b, entretanto, hesitou em marcar o terceiro, Diante da vacilação
da aluna, o professor interveio na situação. P: "Por quê?". MAS:

' Esse caso foi publicado na revista Zetetiké, ano 3, n. 3, 1995, sob o título "Ensino
Remedial em Recuperação Paralela" e retomado em minha Tese de Doutorado Con-
tribuições da Psicanálise à Educação Matemática. A análise proposta na revista Ze-
tetiké é distinta da que é apresentada aqui, pois são abordados outros aspectos,
igualmente interessantes, para se repensar a sala de aula de Matemática. "MAS" é o
nome dado à aluna.
Essa disciplina foi ministrada para o Curso de Informática da UNESP, do qual MAS
era aluna.
O livro-texto adotado pelo professor, em acordo com a própria turma, foi o Cálculo
com Geometria Analítica, v. 1 , de Earl W. Swokowski.
As respostas de MAS nos gráficos estão assim assinaladas: -----

92 Formação de professores de Matemática


"Porque a derivada é zero". P: "O que é a derivada para você?".
MAS: "É o ~oeficiente~angrrlar"~P7'~COefiCiente angular de quê?".
MAS: "Da tangente". P: "Qual é a reta tangente em c?"
A cena desenrolou-se,

4f /
--.-. -..-. a partir daí, na dialogicida-

fessor
de
(figs.mediada
implantou
2, 3 e 4) em
porque
desenhos
contradi-
o pro-
/'./a
ções que podiam ser evi-
denciadas por MAS, caso
C
fig. 3 fig. 4 soubesse lidar com a defi-
flg. 2 nição em questão. Entre-
tanto, MAS deu sempre as
mesmas respostas. Diante dessa insistência, o professor mostrou-se

ponto. Virou-se para MAS e pediu a


ela que descrevesse como traçar a
tangente. MAS respondeu: "A reta
{p -7..-..-
desamparado, pois voltou-se para os alunos e perguntou como deve-
ria prosseguir para levá-la a reconhecer a reta tangente. Como não
houve resposta do grupo, o professor
desenhou uma curva e marcou um
P

toca a curva. A reta não corta a curva.


A reta toca a curva num ponto só". A
i
introdução de contra-exemplos (figs. 5 'g. fig. 6
e 6) visando a desequilibrar as respos-
tas não levou MAS a produzir novos sentidos. O professor tomou o
livro e mostrou a MAS a definição de derivada: se uma função f é
definida em um intervalo aberto, contendo a , então a derivada de f
f(a+h)-f(a)
em a , simbolizada por f '(a) é dada por f '(a) = lim
h+O h

,d
desde que o limite exista. O professor
perguntou: "O que isso significa para
você?". MAS fez um desenho (fig. 7) en-
quanto falava "...a derivada é a variação
/. de y pela variação de x " e escrevia

fig. 7
f'(a) = (a h) - (a)
+ .O professor in-
h

Lógica da intervenção didática 93


sistiu que MAS trabalhasse com a definição associada ao modelo
geométrico. Isso levou-a a apresentar justificações, cujos significan-
tes são próprios de um desenvolvimento de princípio, envolvendo a
passagem de uma reta secante ao limite. O professor respondeu com
novas problematizações (contra-exemplos), o que deixou MAS emba-
raçada e incerta; ela "confundiu" significados como reta suporte e
segmento de reta, que aparecem na noção geométrica de reta tangente.
A maneira de MAS pensar não sobreviveu aos abalos provo-
cados pelo professor, quando ele lhe apresentou nova situação de
conflito. Por fim, MAS "corrigiu" a fórmula da derívada onde ela
"esqueceu" o limite. MAS explicou a situação de tal forma que
convenceu a todos de que ela estava "pensando corretamente", pois
ao ser questionada a respeito do ponto d, introduzido quase no fim
da sessão, ela afirmou: "É crítico". - "Por quê?", perguntou o pro-
fessor. MAS respondeu de pronto e com firmeza: "A derivada é
zero". O professor olhou para MAS. Avaliou algo e interveio com
nova indagação: "OK, mas.. . você pensou do jeito antigo ou do
jeito novo que você aprendeu hoje?'. MAS respondeu de maneira
acanhada: "Do jeito antigo.. .". O professor decidiu intervir de outra
maneira: "É preciso que você pense do jeito novo. Pode fazer de
cabeça. Olhe para lá e diga por que o ponto d é crítico". MAS per-
cebeu-se surpreendida: "A derivada é zero.. .". O professor encer-
rou a sessão tecendo comentários sobre a atuação de MAS.

Análise do caso
A análise proposta, ainda que muito localizada por se referir a
uma sessão particular, permite dizer alguma coisa sobre a maneira
preferencial de MAS se relacionar com o saber instituído e, ao mes-
mo tempo, enredar algumas palavras, mesmo que não sejam definiti-
vas, a respeito da condução e sustentação do processo de aprendiza-
gem em jogo.
Início da sessão: tempo de silêncio, tempo de espera de MAS.
Ela poderia ter elaborado alguma coisa, já que estava ciente do con-
trato de trabalho (contrato pedagógico5)para participar de uma sessão

Uso contrato de trabalho nos termos em que ele funciona em Vicissitudes da


Aprendizagem em um Curso de Cálculo (Cabral, 1992b). Nessa dissertação, o

94 Formação de professores de Matemática


de recuperação paralela (RP). MAS conhecia a regra fundamental da
RPrestárdimte dóqúZquadro ?5;3Gl%EtiudK téràéverbalizar o que está
pensando ou fazendo. Entretanto, não o fez. Ela, por certo, ainda que
não soubesse, em termos matemáticos, produzir uma resposta, ao
menos, poderia ter começado pela definição ou iniciado pelo desenho
do gráfico de uma função onde indicaria os pontos críticos. Como
essa sessão ocorreu quase no final do semestre letivo, era de se espe-
rar que MAS começasse a trabalhar por conta própria, que ela deter-
minasse seu ponto de partida; esperava-se que ela propusesse uma
questão que quisesse estudar. Nas RPs, segundo o contrato de traba-
lho combinado, o aluno tem um espaço particular que pode usar do
jeito que quiser para trabalhar suas dúvidas, perguntas, questões,
certezas; trata-se do espaço reservado para se falar sobre o que se
pensa não saber. Em resumo, o aluno dispõe de um tempo do profes-
sor e de outros alunos para se fazer ouvir.
MAS preferiu permanecer calada e aguardar uma sugestão. Ela
esperou que o professor lhe indicasse o momento de ir ao quadro e,
sobretudo, esperou ouvir uma palavra, uma sugestão, ou qualquer
coisa que a tirasse daquela situação que lhe causava um certo descon-
forto. Houve uma recusa inicial da aluna em querer trabalhar, pois ela
sabia da condição de participar das RPs que pode ser resumida pelo
aforismo enfatizado no contrato de trabalho: é falando que se apren-
de e é ouvindo que se ensina. Ou seja, MAS recusou, de início, a
posição de falante.
Em seu tempo de espera, a aluna tentou se dirigir ao professor
como mestre. Contava com uma palavra que a aliviasse; esperava,
assim, uma significação para a cena de onde sua angústia havia e-
mergido: "Veja, você não sabe ou talvez até tenha esquecido; afinal,
o assunto foi visto nesse semestre e ainda não houve tempo para
entendê-lo bem. Não tem importância, pode deixar que eu dou a
resposta. Fique tranqüila que eu enuncio a definição". Este seria o
evento que normalmente ocorreria em uma classe onde se ensina
Matemática. Antes, marca-se uma distância entre professor e aluno
para depois esta separação ser reforçada com afirmações como esta:
"Você não sabe? Então sou eu que falo isto, pois sou eu que sei".

contrato de trabalho se mostra em uma articulação construída sobre bases marxistas


onde o conceito de tempo de trabalho é destacado como fundamental para analisar
as relações de ensino e de aprendizagem.

Lógica da intervençáo didática 95


MAS apostava na situação tradicional tanto que, apesar das
regras para colocar o aluno em posição de trabalhar, ela esperou
silenciosamente, indicando estar desamparada. A imagem de uma
pessoa frágil, miúda, delicada assentava-lhe tão bem, pois era esta
roupagem que a fazia ser reconhecida pelos colegas como uma
espécie de mascote da turma. No ensino tradicional de Matemática
há sempre uma desculpa para poupar o aluno de enfrentar as situa-
ções de mal-estar, de angústia, fato que não ocorreu na sessão de
RP e que em vários momentos desalentou MAS.
A suposição de saber. De certo modo, o aluno supõe que o
professor tenha um saber e MAS presumiu que o professor tivesse
um saber sobre sua situação de desamparo que requeria proteção.
Ciente de certos limites com relação ao campo psicanalítico, é pos-
sível dizer que houvesse um efeito de transferência apenas por ha-
ver identificações em jogo. Como seria essa situação? Se o profes-
sor tivesse confortado MAS, como de modo geral ocorre, ele teria
entrado no circuito terapêutico, próprio do ensino tradicional, revi-
gorando seu pedido de compaixão - "Estou incomodada, diga-me o
que eu devo fazer para sair dessa situação" - mantendo o lugar da
identificação imaginária, onde MAS se mostra como aquela aluna
tímida, confusa, que não sabe e precisa que alguém lhe diga como
deve ser feito, como deve responder corretamente. Esse recurso de
que o aluno lança mão o coloca a salvo de querer entender, de que-
rer enfrentar questões relativas a sua própria aprendizagem. Entre-
tanto, o professor recusou sustentar esta posição.
Seria o tempo de suspensão do processo de aprendizagem, ca-
racterizado pelo efeito de alienação de MAS no saber do professor,
em que se estabelece a relação de determinação da identificação
imaginária sobre o eu de MAS.
A condução possível do processo: o professor barrado. Ao
contrário do que ocorre em classes tradicionais de ensino, o ato de o
professor emudecer em certos momentos é considerado significati-
vo para a sustentação do processo de aprendizagem, por permitir
sua continuação. No caso de MAS, o professor não forneceu a defi-
nição e tampouco a leu para a aluna. O professor, com um simples
gesto, cedeu seu livro a MAS e pediu para ela procurar a definição.

96 Formação de professores de Matemática


Ele não dispôs do poder de identificação, que a Instituição tradicio-
nalmentelhe~onfere~ao-recusar o-pedido-decomiseração da aluna
- "O que você pensa que eu sei sobre sua situação?". O professor
assumiu a posição do Outro, porém, falhado - A . O professor não
tem a resposta que MAS quer, ele não detém a verdade sobre a
condição que faz com que a aluna se apresente frágil, ignorante.
Esse é o tempo de abertura do processo de aprendizagem por ope-
ração sobre uma demanda, em que se procura causar uma separação
de MAS com identificações que advêm de pedido de conforto e de
o professor dever saber tudo.
Este movimento, por se referir ao processo de aprendizagem,
por estar situado no âmbito em que ocorrem processos pedagógicos,
é o próprio deslocamento da transferência pedagógica no imaginá-
rio para a transferência pedagógica no simbólico, uma vez que
estão em jogo os elementos sobre os quais o professor operou para
levar MAS a trabalhar. Este jogo relativo ao processo de aprendiza-
gem indica a transferência pedagógica de saber.
Durante um tempo, a sustentação do processo de MAS foi fei-
ta por desequilíbrios constantes: situações de conflito cognitivo.
Entretanto, MAS manteve-se irredutível em sua posição, porquanto
respondia sempre do mesmo modo. Não elaborava nada novo, não
se perguntava por que justificava sempre da mesma maneira, não se
responsabilizava pelo modo como formulava suas respostas. Isto
levava MAS a dizer "não sei".
Na resistência há um saber. Por outro lado, o dispositivo usa-
do pelo professor perdeu eficácia, uma vez que MAS se mostrou
irredutível em sua maneira de responder. A insistência e as repeti-
ções produzidas por MAS revelavam que ela não dava tratos ao que
o professor supunha que ela estivesse vendo: uma contradição que,
no entanto, não era dela. MAS recusava a posição de sujeito supos-
to saber algo. Entretanto, MAS sabia algumas coisas, sim, pois as
respostas entrecortadas - P: "O que é a derivada para você?'. MAS:
"É o coeficiente angular". P: "Coeficiente angular de quê?". MAS:
"Da tangente" - apontavam para um lugar, o espaço das concep-
ções adquiridas, anteriormente, nos bancos escolares em que o alu-
no aprende a responder supostamente do modo como o professor
quer ouvir.

Lógica da intervenção didática 97


Tudo isto leva a constatar que há resistências perpassando o
processo de aprendizagem da aluna. Em primeira instância, pode
parecer despropositado, mas cabe a indagação: esta maneira de
responder revela, portanto, que a aluna não queria nada? O ensino
tradicional diria que sim. Atestaria sem esboçar a menor ponta de
dúvida, que essa aluna não queria nada com nada. Entretanto, direi
não, pois MAS tentou fazer funcionar o jogo, cujas regras ela
aprendeu ao longo de sua escolaridade: oferecer respostas que se
supõe que o outro queria ouvir e que até, certo momento, seriam
consideradas corretas do ponto de vista do conhecimento matemáti-
co em questão, se não fossem os "desprezíveis" momentos de hesi-
tação revelarem algo a mais - MAS titubeou em marcar o ponto c,
como crítico, no gráfico inicialmente apresentado.
Na sala de aula tradicional, em que o professor determina a
maior distância possível entre ele e o aluno, essa vacilação passaria
ao largo no processo de ensino. Seria tomada como natural, pois se
suporia que a aluna ainda não estava adequadamente preparada para
responder ou que teria simplesmente "esquecido". Um fato como
este não reteria a atenção do professor, não seria significativo para
o processo de ensino; para o professor tradicional seria um nada em
meio a tanta ignorância demonstrada pela aluna.
Quando se assume a posição de perguntar por que a aluna age
assim, enfrentamos o limiar da educação impossível, pois não há
respostas sem importância quando se está conduzindo um processo
de aprendizagem. A resistência de MAS pode ser interpretada como
estando relacionada com não querer saber, exatamente porque ela
fazia sempre do mesmo modo; MAS mostrava não querer se de-
frontar com o que a levava a incessantemente responder de um
certo jeito. O que impedia MAS de se fazer uma questão a respeito
de seu modo de lidar com Matemática?
Assim, demover MAS desta posição não é a mais simples das
tarefas. Há um indicativo do impossível da educação, aqui também,
quando nos deparamos com a questão: é possível fazer querer
aprender? Em certos momentos, por conta das respostas aos enca-
minhamentos didáticos, a resistência deixa de estar do lado da aluna
e passa a estar, sim, do lado do professor. É necessário modificar as
manobras didáticas. No estudo do caso, essa resistência fica clara

98 Formaçáo de professores de Matemática


na passagem em que se pode observar a insistência do professor em
fazer com que-a aluna trabalhasse com uma definição, e ela relutava
a se dedicar a isto, socorrendo-se de esquemas.
De certo modo, o efeito desta intervenção equivale a um efeito
terapêutico, uma vez que o professor deixou de conduzir o trata-
mento para dirigir as respostas de MAS. O professor deixou de
fazer MAS trabalhar para tentar corrigir as soluções da aluna. Caiu
a sustentação do processo de aprendizagem de MAS em que ela é
que devia produzir questões e respostas. O professor supria MAS
com significações prontas, livrando-a da tarefa dolorosa de ter de
trabalhar para produzir um saber; o professor trabalhou para MAS.
Isso a levou a conservar seus vínculos antigos, pois apareceu uma
contradição entre a reprodução, no quadro, do que lera no livro e o
enunciado em sua fala. A fala de MAS denunciou que não havia
qualquer alusão à palavra limite, nem no desenho (fig. 7), nem no
que foi falado ". ..a derivada é a variação de y pela variação de x ",
f(a+h)-f(a)
nem na fórmula f '(a) = que pode ser entendida
h
como signo.
Esta cena.. . Um esquecimento? Por certo, tentar-se-ia retratar
essa cena como um momento de esquecimento da aluna. Outra
maneira do ensino tradicional poupar o aluno de enfrentar uma
questão. A suposição de esquecimento, em casos como este, seria
uma "leitura ingênua" do evento, se acreditássemos haver leituras
assim. Todavia, aprende-se algo a partir da Psicanálise. Essa cena
retrata o momento em que a fala desliza, um lapso claro, cometido
pela aluna, de que o professor pode tirar proveito para intervir. Não
se trata de esquecimento porquanto a aluna não detinha o conceito
de derivada. Ela não poderia ter esquecido algo que jamais reteve
na memória. A mudança de condução do professor mostrava que-
rer-se que a definição funcionasse para a aluna como princípio de
justificações acerca da tangente à curva. Entretanto, as respostas de
MAS denunciavam algo além do que se costuma significar. Havia
um saber, sim, constatado à medida que ela desenrolava argumen-
tos. Nas justificativas MAS mostrava, para qualquer professor de
Matemática com bastante conhecimento, qual "esquema" ela tinha
escolhido e insistia em usar para responder "corretamente". Tra-

Lógica da intervenção diddtica 99


ta-se do modelo de tangente geométrica a uma curva dada6 que,
assim, se nucleava cada vez mais, para apreender situações novas,
em vez de se desequilibrar diante das situações colocadas, ou diante
da leitura do texto.
Um sintoma se estrutura nas repetições. A nucleação do mo-
delo se estruturava tal como um sintoma para MAS. Essa insistên-
cia em responder de certo modo, o núcleo que ganha força à medida
que abrange novas situações, pode ser concebida como a maneira
preferencial de a aluna justificar. Tal maneira revela uma estrutura
de sintoma, pois algo não cessa de se repetir. De outro modo, po-
demos interpretar que a aluna não subjetivou sua posição diante dos
vínculos antigos. Os desequilíbrios cognitivos não a deslocaram de
sua posição de sustentar sempre a mesma maneira de justificar e,
muito menos, levaram-na a se perguntar por que fazia sempre tudo
igual ... Todavia, explorar os "erros" de MAS através do ato de
simbolizar pela fala, nesta reflexão que diria ser um diagnóstico
pedagógico elaborado a posteriori, coloca à disposição do educador
matemático condições para descobrir os momentos em que um
aluno estabelece as condições para negar o princípio com o qual
trabalha. Isso é revelado na passagem em que MAS vai ao livro,
repete o que nele está escrito para, em seguida, "esquecer" e, diante
de nova situação, declarar: "pensei do jeito antigo".
Mobilizações como efeitos de interpretações... selvagens. Para
finalizar a análise do caso, dois momentos, parece, podem iluminar
esta elaboração sobre o evento. Após muito trabalho, em um pri-
meiro tempo, MAS respondeu corretamente, mas, segundo ela
mesma, pensando do jeito antigo, referindo-se, claramente, ao mo-
delo geométrico. Em um último tempo, ao fim da sessão da RP,
coincidência ou não, a interpretação do professor, sobre a fala que
permitia trazer ao simbólico esse jeito de a aluna lidar com Mate-
mática, leva MAS, afinal, tomada de surpresa, a responder que con-
segue pensar de um novo jeito, em referência à definição. A condu-
ção do processo de aprendizagem foi retomada através da interpre-

De passagem, recordo que esse modelo os próprios gregos usaram, como mostra o
seguinte trecho: "Euclides define a tangente a um círculo como sendo uma reta que
encontra o círculo em apenas um ponto e não o corta" (Baron, 1995: v. 1, p. 53).

100 Formação de professores de Matemática


tação, elaborada de maneira um tanto quanto selvagem, como ÚIti-
mo~recurso,_pois,_afinal,produziumefeitodesuresa em MAS,
diante de si própria.
Atrever-me-ei dizer que a sessão de RP foi suspensa fora do
circuito terapêutico, pois o exame dos últimos efeitos, frutos de
intervenções feitas pelo professor, mostrou que ocorreu uma aber-
tura ao final do episódio: MAS elaborou algo a respeito de seu
jeito de pensar. Como toda modificação implica, necessariamente,
retomada de escolhas, este evento, embora aqui não esteja descri-
to, conduziu a um fechamento, a uma paralisação da aprendiza-
gem de CDI em outro momento, ainda, neste percurso de forma-
ção da aluna.
Insisto em que a leitura que aqui sucede sobre o caso, realizada
no momento em que as luzes da sala onde houve a constituição de
um processo de aprendizagem já haviam sido, há muito, apagadas,
apenas mostra situações que pode enfrentar um professor ao tentar
criar as condições para que um aluno possa trabalhar e produzir.
Ouvir, por certo não é a mais fácil das tarefas.

Caso "para quem me mostro?


imagens que são invertidas"

Esse outro caso ocorreu em uma sessão de estudos paralelos


(EP), na mesma Instituição de Ensino Superior, mencionada ante-
riormente. À diferença do primeiro, esse caso refere-se ao trabalho
desenvolvido com alunos do Curso de Licenciatura em Matemática e
uma aluna de Mestrado em Educação Matemática. Ele foi registrado
em vídeo e transcrito. Dessa história serão colocadas em evidência
três alunas, por duas razões. A primeira é que elas produziram um
diário em que transcreveram o vídeo e descreveram suas inquieta-
ções. A segunda razão, é que as três alunas mantiveram-se engajadas
nesta sessão de estudos paralelos sobre Análise Matemática, com o
mesmo orientador, durante um ano. O terceiro motivo refere-se ao
fato de que esse trabalho começou quando as três alunas procuraram
a orientação de um professor que sabiam ter posição diferente dos
demais, em relação à aprendizagem de Matemática, na Instituição em
que estudavam. Duas delas queriam realizar estudos que modificas-

Lógica da intervenção didática 101


sem sua formação em andamento. A outra aluna, já formada, buscava
uma maneira de rever sua formação adquirida na mesma Instituição.
Todas manifestavam insatisfações com o que tinham aprendido, ou
com o que estavam aprendendo. Esse fato é marcado pelas próprias
alunas: "Ficamos um bom tempo discutindo o que era definição".
Como o professor, nesse caso, era o mesmo sujeito do caso anterior,
a sessão de estudos paralelos foi regida por idêntico princípio: o alu-
no fala, explica, enquanto o professor intervém com perguntas que
geram situações conflitantes.
Nessa sessão foi desenvolvido o tema limite, relativo à Análise
Matemática segundo a teoria de Weierstrass, matéria considerada de
difícil compreensão, tanto por exigir manejo da lógica matemática
como por ser necessário que o aluno esteja disposto a aceitar alguns
princípios, os quais direcionam o desdobramento de resultados. A
primeira providência do professor foi saber o que vinha das alunas
quando elas eram remetidas ao significante limite. Ele ouviu com
atenção o que as falas dessas alunas anunciavam: "O limite conver-
ge", "O limite se aproxima", "O limite tende a um valor". Essas res-
postas são conhecidas e esperadas. Essa era a situação inicial, uma
situação de repetição. Aquelas alunas tinham aprendido, no circuito
das identificações, fomentado pelo ensino tradicional, as respostas
que deveriam dar ao ouvirem o significante limite. Estavam assujei-
tadas à posição do mestre; quando questionado sobre o que significa-
vam, esses termos, segundo as próprias alunas, pareciam "estranhos".
Foi daí que veio à baila o significado da palavra definição: "Para nós,
definir consistia em caracterizar muito bem certo objeto". Estavam
alienadas a um saber que não foi construído por elas, mas, sim, to-
mado de empréstimo da fala atravessada de seus professores e refor-
çado em alguns livros. Todas as concepções exibidas por estas alunas
são problemáticas se pensadas a partir do ponto de vista da formali-
zação do saber instituído; não podem ser consideradas corretas. En-
tretanto, era com esses elementos que as alunas deveriam trabalhar
para modificar suas posições iniciais. O desafio do professor era
fazer com que elas produzissem um novo significado, dado em ter-
mos de quantificadores lógicos e proposições, que receberia o nome
"definição". Por fim, seu desafio maior era conduzir e sustentar os
processos de aprendizagem em jogo, de cada uma das alunas, em
particular.

102 Formação de professores de Matemática


O fragmento do texto produzido por esse grupo de alunas elu-
cida algo~para~nós;~elasqróprias~nomeararamaro~aso~A concepção
de definição, como descrição completa de um objeto dado".
Ficamos um bom tempo discutindo o que era definição e uma
de nós afirma novamente que a definição descreve as propriedades
de um objeto já existente. Até que o professor nos fez pensar no
batismo.
P: Quando uma criança nasce, as pessoas escolhem um nome
para ela, certo?
A: Sim, é claro.
P: Quando definiram que seu nome era Ariana, não olharam
para você e disseram: Ah, esta é uma Ariana. Tem cara de Ariana,
tem cheiro de Ariana, só pode se chamar Ariana. (Rimos).
P: Alguém tem que combinar o nome da criança alguma vez.
No início achamos um tanto confusa e estranha a maneira co-
mo o professor conduzia nossas reflexões e não conseguimos, de
maneira alguma, achar que o "batismo" era um ato semelhante à
definição. Pensávamos, como os nossos nomes poderiam definir as
nossas pessoas? Uma de nós tentou definir um cachorro "poodle"
mas foi infeliz, porque não deu todas as características para que o
ouvinte pudesse descobrir qual era a raça do cachorro que estava
definindo. Para nós, definir consistia em caracterizar muito bem
certo objeto.
P: Você está definida pelo seu nome? Alguém que não conhe-
ça você, quando lê seu nome "Ariana Santana" pode saber, por
exemplo, a cor de seus olhos? Ou tem de olhar para você para saber
isso, para saber se é alta ou baixa, etc.? Então, o nome só define
para onde se deve olhar para saber as propriedades do objeto. Dada
uma definição e um teorema vocês vêm alguma diferença?
Quatro pessoas dizem que sim e duas dizem que não.
P: Qual a diferença entre estes termos: definição, teorema e
axioma?
Ele pediu que juntássemos dois que achássemos mais pareci-
dos e separássemos o terceiro. Cinco juntam axioma e definição e
apenas um junta definição com teorema. Ninguém junta axioma e
teorema, separando-os de definição.

L6gica da intervenção didática 103


P: Vocês nunca notaram que as definições se referem a um
nome e os teoremas não? E que os axiomas são proposições cuja
veracidade é combinada no início?
Não havíamos percebido ainda o que significava uma defini-
ção. Sabíamos que todas essas coisas eram diferentes, mas no en-
tanto, no livro, não conseguíamos identificar quando se tratava de
um e quando se tratava de outro. Aos poucos fomos observando as
diferenças e só então entendemos porque o batismo era equivalente
a definição.

Análise do caso
A promessa de trabalho... Primeiro tempo: tempo de insatisfa-
ção, de queixas, de busca de algo que não sabiam nomear mas que
incomodava. Tempo de elaboração de uma promessa de trabalho
em que as alunas passaram de uma demanda passiva de conheci-
mento para o voto de assumir compromisso de elaborar algo sobre
o saber instituído. O trabalho foi iniciado pelas alunas com a marca
de suas insatisfações. Elas tinham aprendido um nome durante as
aulas regulares7 mas estavam insatisfeitas com o que "havia sido
ensinado a elas".
Surpreender para provocar. .. Segundo tempo, tempo de pro-
vocação: "Quando uma criança nasce, as pessoas escolhem um
nome para ela, certo? [...I Alguém tem que combinar o nome da
criança alguma vez". As alunas são surpreendidas: "No início
achamos um tanto confusa e estranha a maneira como o professor
conduzia nossas reflexões". Ao menos, nessa sessão, elas saíram do
circuito das identificações. A transferência pedagógica imaginária
foi transformada em transferência pedagógica simbólica, levando
essas alunas a tomarem outra posição. Estranharam, mas aceitaram
o desafio de elaboração e se propuseram uma questão: "[ ...I e não
conseguimos de maneira alguma achar que o "batismo" era um ato
semelhante à definição". Implicaram o professor e a si mesmas no
' A disciplina de Análise Matemática estava sob a condução regular de outro profes-
sor, do qual o professor que conduziu as sessões de orientação tinha postura bastante
diferente. O professor da disciplina regular aparentemente acreditava que os alunos
poderiam aprender Matemática ouvindo exposições claras. Já o segundo professor
fez uso do aforisma que põe o aluno na posição de falante.

104 Formação de professores de Matemática


processo. "Que ele quer?". "Que devemos perseguir?'. Esse mo-
mento em queas-alunas acharam estranha-a conduçãcdo professor
através da indagação, possibilitou um distanciamento entre a de-
manda inicial - D (demanda simbólica) - e um "querer saber", fora
do campo cognitivo. Com isso, saíram atrás de alguma coisa que
supuseram estar ligada às concepções que tinham: "Pensávamos:
como nossos nomes poderiam definir nossas pessoas? [...I Uma de
nós tentou definir um cachorro 'poodle' [...I Para nós, definir con-
sistia em caracterizar muito bem certo objeto". O professor incitou
as alunas a falarem e exerceu a arte de escutar.
Talvez tenha havido modificação das concepções que ali cir-
culavam, apesar de parecer estranha a ação do professor. De certo
modo, as alunas se deixaram levar por questões, as quais, a partir
daí, conduziram-nas a conclusões sobre seus modos de lidar com o
saber específico. É possível que tenham elaborado um saber provi-
sório, porquanto concluíram algo, ao menos, temporariamente:
"Sabíamos que todas essas coisas eram diferentes; no entanto, no
livro não conseguíamos identificar quando se tratava de uma e
quando se tratava de outra." A conclusão a que chegaram, saber que
aquelas coisas com que estavam lidando eram diferentes, impres-
siona, pois é sabido que não é assim que, via de regra, os alunos
procedem em seus estudos, em suas experiências de aprendizagem.
Essas alunas anunciaram um saber, em construção, que as implicou
na continuação desse trabalho, por um longo período.
É preciso observar que o empenho das alunas nos estudos pa-
ralelos não implicava o recebimento de qualquer menção acadêmi-
ca. Não havia reconhecimentos, não havia notas, não havia aprova-
ções ou reprovações. Tratava-se de um trabalho que, em princípio,
se propuseram a realizar, movidas, parece, por suas insatisfações,
por queixas relacionadas à maioria de seus professores. Denuncia-
vam, constantemente, a maneira como os demais professores "igno-
ravam" suas dificuldades, até que decidiram mudar sua participação
nesses eventos. Fizeram uma promessa de trabalho, empenharam
suas palavras durante um certo tempo. As circunstâncias das ses-
sões de estudos paralelos puseram em movimento um querer saber,
pois as alunas se dispuseram a responder por suas ações, ao menos,
nesse momento.

Lógica da intervenção didática 105


Voltar à posição inicial: o sujeito resiste. Entretanto, toman-
do-se o professor que continuou orientando os trabalhos, por mais
um ano, como fonte de informações, ele relata em seus apontamen-
tos - diário do professor sobre os muitos eventos em que toma parte
- que as alunas voltaram às posições inicialmente apresentadas. Isto
é, retomado o trabalho após um ano, segundo o professor, era como
se elas nada tivessem feito.
Na história desse grupo consta que houve um abandono por
todas as participantes, depois de certos episódios. Um deles é rela-
tivo à exposição que as alunas fizeram para a Instituição, acerca das
elaborações produzidas no grupo. Por fim, o gmpo se desfez total-
mente após um ano e tanto de trabalho conduzido semanalmente.
Isto, sim, é deveras bizarro, quando se compara o desenlace de um
percurso com tudo o que o antecedeu. É preciso recolher os elemen-
tos intervenientes ao longo do processo que não foram examinados
na ocasião. Que aconteceu?
Algo insiste e não cessa de se apresentar. Ao mesmo tempo em
que as alunas participavam das sessões de estudos paralelos, elas
estavam cursando a disciplina Análise Matemática, em nível de gra-
duação, e desenvolviam estudos em nível de iniciação científica com
outros professores. Por esses estudos, uma delas era agraciada com
auxílio financeiro - bolsa PET - como forma de reconhecimento
institucional pelo trabalho que estava sob orientação-geral de uma
coordenação exercida por uma professora titulada do Departament~.~
Também é preciso enfatizar que os registros mostram que as
alunas, sempre que encontravam espaço, astuciosamente se queixa-
vam da maneira como os outros professores "ignoravam" suas difi-
culdades e seus progressos. Reclamavam de uma falta de atenção que
queriam obter dos professores. Davam a entender que estavam sendo
discriminadas intelectualmente, quando tinham seus trabalhos com-
parados com os de outros colegas de iniciação científica que toma-
vam parte de outros grupos de estudos. O que se mostra é que as
alunas se queixavam dos exames a que eram submetidas. Enfim, de

É sabido que a concessão de auxílios são vinculados à avaliação periódica que a


Instituição faz a respeito do desempenho que o aluno alcança; se o desempenho é
satisfatório, segundo os critérios considerados pela coordenação, então o aluno faz
jus a manter a bolsa concedida.

106 FormaçFio de professores de Matemática


15 em 15 contas, no final do terço rezado, a mesma história era con-
tada;-Gracejo-fortuito?-Não. Indico o fato d e u m t c r e p e t i t i v o ter
encontrado espaço para não cessar de se apresentar. As alunas apos-
taram que o professor aceitaria que elas estendessem seus tapetes de
reclamações a respeito de outros professores, de outros colegas, dos
olhares que as contemplavam.
Os olhos para os quais elas se vestiam. O professor não ques-
tionava as alunas sobre o que lhes permitia demandar, o que coloca-
vam como sendo da ordem de suas necessidades: atenção para suas
queixas. A preocupação do professor, em verdade, dirigida para a
possibilidade de as alunas reorganizarem seus conhecimentos mate-
máticos sobre Cálculo Diferencial e Integral e Análise Matemática,
impediu que ele atentasse para o circuito da repetição que estava
instaurado. As queixas relativas ao ensino não foram trabalhadas; às
alunas não foram postas as condições para trazer ao simbólico o que
ia pelo circuito das identificações imaginárias. As estratégias didáti-
cas e pedagógicas postas em funcionamento visavam, sobretudo, a
produzir deslocamentos das alunas relativamente às explicações que
davam, como de fato deveria ser. Entretanto, atuar no campo das
afirmações cognitivas não foi suficiente no caso dessas alunas. Os
sinais de mudança ficaram encobertos pelo circuito da repetição,
foram afastados pelo querer e poder reclamar para nada produzir,
para fazer com que o mestre trabalhasse, vindo em seu socorro. Esta
consideração pode ser fundamentada a partir das informações forne-
cidas pelo professor a respeito do seguinte episódio.
No ano seguinte ao trabalho de que parte aqui foi exibida e ana-
lisada, duas alunas voltaram a retomar os estudos paralelos. Os con-
teúdos que deveriam ser tratados diziam respeito à disciplina Topo-
logia, a qual se alinha junto ao Cálculo e à Análise Matemática. Elas
tinham procurado o professor e manifestado interesse em continuar
as sessões. Foi marcado o mesmo horário, à noite, por ser convenien-
te a todos.
No primeiro encontro, relatou o professor, apareceu uma das
alunas, no horário combinado, mas sem qualquer material em mãos.
Chegou dizendo que, apesar de ter-se a disciplina iniciado naqueles
poucos dias, já havia uma lista de exercícios para ser resolvida. Uma
pequena queixa não faz mal.. . Aparentemente, seu modo de ser não

Lógica da intervenção didática 107


tinha mudado. Depois de colocarem o professor a par do assunto que
estavam estudando em Topologia, decidiram começar, resolvendo
um exercício sobre relação de equivalência. Perguntada à aluna qual
era a definição, o professor observou que sua posição em relação à
maneira de lidar com Matemática não se tinha modificado, pois ela
tentava ligar pedaços do exercício que lhe pareciam significativos.
Pelo descrito, não é incorreto dizer que, na fala da aluna, signi-
ficantes se perfilavam, indicando que estava ausente aquele que per-
mitiria a organização da cadeia. Faltava aquele que permitiria que a
aluna desse o sentido matemático a tudo. Então, onde tinha ido parar
todo o trabalho do ano anterior em que esta mesma aluna havia pro-
duzido textos, diários, e até uma exposição feita para outro professor
avaliar? Que aconteceu com o efeito da condução de sessões sema-
nais de estudos paralelos, em que os significantes apareciam lineari-
zados como se queria?
Continuando o relato, o professor observou que somente cerca
de meia hora depois apareceu a segunda aluna. Para os padrões de
trabalho do professor ela estava bastante atrasada e, tal como a pri-
meira, não trouxera qualquer material, nem livros, nem caderno. Ao
final de uma conversa, foi-lhes dito que seria necessário começar
consultando o livro onde se encontrava a definição. Isso foi o sufi-
ciente para que arnbas se dirigissem à biblioteca, que estava aberta,
para pegar emprestado o livro-texto do curso. Segundo o relato, não
se demoraram tanto. Tinham trazido o livro.. . errado! Ambas haviam
tomado emprestado o segundo volume do livro de Topologia. Enga-
no bastante significativo.
Mostra-se uma imagem invertida... O professor apontou a pe-
ripécia das alunas e indicou que elas não poderiam continuar as
reclamações; levantou-se e disse que, naquele dia, os trabalhos
estavam encerrados. Acrescentou ainda que, quando elas tivessem
outra idéia sobre a realização do trabalho em estudos paralelos, o
procurassem.
O que lemos aqui é que o espaço para as alunas poderem re-
clamar lhes tinha sido retirado de modo abrupto. As alunas pressenti-
ram que suas reclamações não poderiam mais ter lugar, que só o
trabalho é que deveria acontecer, pois, dias depois, o professor foi
procurado e elas lhe disseram que tinham mudado seus projetos e que
não mais participariam do estudo paralelo.

108 Formação de professores de Matemática


Da promessa à ação há um desvão: o lugar do desejo. Onde es-
t á - o d e s e j u d e ~ u e ~ d a r ? ~ M d e e a K d ~ d G e j o e ~aprender?
erer
As alunas cederam no desejo de modificar suas maneiras de justificar,
diante de ter de enfrentar a possibilidade de não mais poder reclamar.
O professor mostrou para as alunas o espelho com suas imagens, mas
não era as que elas imaginavam que fossem. Viram imagens inverti-
das daquelas que elas lançaram: não era o que queriam ver.

Ser professor é ser provocador

A grande dificuldade para todo pesquisador que trabalha na co-


nexão Educação Matemática-Psicanálise é a tentativa de generaliza-
ção e, simultaneamente, o movimento de ter de barrar o universal
como padrão a ser seguido. Não há padrões, bem sabemos, nem
mesmo na sala de aula. Mas é preciso provocar esse deslocamento do
particular para o universal, do um para o múltiplo. É preciso escrever
sobre o particular para saber se é possível, por exemplo, conduzir
processos grupais. Para tanto, comecemos por pensar acerca do pa-
pel, em classe, disso que chamam Matemática.
Como disciplina, essa organização denominada Matemática
funciona, tanto através de princípios, quanto através de modelos. Em
razão disso, no campo da didática, é fato que, de um lado, há o pro-
fessor procurando desenvolver as definições como princípios que
organizam o formal, enquanto que, por outro lado, ao mesmo tempo,
o aluno tenta juntá-las informalmente ao núcleo das concepções ante-
riormente adquiridas. Os modelos intuitivos, anteriormente adquiri-
dos, funcionam como obstáculos ao desenvolvimento dos princípios
formais (Bachelard, 1980). Esse embate é conhecido por alguns pro-
fessores de Matemática. O diálogo professor-aluno toma-se conversa
sem nexo onde cada um finge entender o que o outro diz. A lingua-
gem desliza, provocando significações que não são aquelas que se
queria ouvir. Porém, tanto no ensino tradicional quanto em certas
investigações que se posicionam contrárias a ele, apenas o aspecto
cognitivo do processo que envolve ensino e aprendizagem é releva-
do. De modo geral, atua-se somente pelo lado do ensino. Desse ponto
de vista fica impossível detectar os deslizes naturais da fala: a respos-
ta certa é tudo o que conta.

Lógica da intervenção didática 109


Entretanto, é possível atuar do lado da aprendizagem, dirigin-
do o processo. Isso significa que o sujeito aprendente deve advir ao
se colocar o aluno na posição de falante. Nos dois casos relatados, o
professor inaugurou cada sessão de maneira inédita. Procurou cons-
truir situações em que a suposta divisão da Matemática - princípios
versus modelos - pudesse ser trabalhada pelos alunos através de
situações conflitantes. Todavia, há uma condição para que essas
surpresas tenham eficácia do ponto de vista da didática: é preciso
que o próprio aluno leve em conta a maneira como está se relacio-
nando com a Matemática. Em outras palavras, o aluno deve falar
sobre sua relação com o saber específico para que venha a produzir
novos significados.
Portanto, se a condução da sala de aula, no que diz respeito
aos processos de aprendizagem, depende das posições em que fa-
lante e ouvinte se colocam, necessariamente, então, deve-se buscar
um deslocamento, centralizando o processo, não na Matemática,
mas, sim, nas falas que ali ocorrem. Essa reflexão leva a alargar a
concepção que circula entre professores e pesquisadores com res-
peito à organização denominada Matemática. Da posição de educa-
dora matemática de orientação psicanalítica direi que o que ocorre
em sala de aula é uma estrutura de discursos, numa clara alusão ao
trabalho de Jacques Lacan, onde ele pensa o movimento da clínica
através de quatro discursos - discurso do mestre, discurso da histé-
rica, discurso do objeto e discurso universitário.
Para dar consistência a essa posição é necessário, antes de
mais nada, que, em uma classe onde certas proposições são enun-
ciadas, saiba-se distinguir quais falas são caracterizadas como ma-
temáticas, pois, afinal, é disso que temos de tratar enquanto profes-
sores de Matemática. Uma dada fala pode ser caracterizada como
matemática pela sobreposição de determinações filiação, consenso
e finção.
Para dizer algo a respeito dessas determinações, é preciso par-
tir de uma concepção do entendimento para, em seguida, dialetizá-
la: para o entendimento, ou senso comum, a Matemática é a Mate-
mática. Todos admitem que se sabe do que se está falando quando
se fala "dela", que as determinações desse objeto estão presentes
claramente na consciência. Porém, continuando, a concepção se-

110 Formação de professores de Matemática


gundo a qual a Matemática teve seu nascedouro na Grécia Antiga
produz-fa1as;xuja-detminaçãremet~~~filiãçãõ de discursos, à
tradição da cultura ocidental. Não se coloca em questão que enun-
ciar o teorema de Pitágoras é uma fala matemática. Entretanto, foi a
associação dos sujeitos em torno dessas falas que constituiu o que,
hoje, se conhece como a comunidade dos matemáticos, ou a prática
científica da Matemática. Portanto, as falas podem ser ditas mate-
máticas quando se filiam a tal tradição histórica (diacronia); porém,
também podem ser consideradas matemáticas quando agentes so-
ciais sustentam acordos com respeito ao reconhecimento do que é
ou não produção matemática. Essa determinação conduz ao consen-
so atual (sincronia) do que ocorre na comunidade dos matemáticos.
Quais problemas estão "abertos"? Quais problemas podem "dar
doutorado"? Que distingue a Matemática aplicada da pura? Por fim,
a terceira determinação é a função da fala, é o estatuto da fala no
discurso que procura obliterar a enunciação, evitar a dialética. Nes-
sa determinação, as falas são matemáticas se elas têm a função de
evitar a perda de objeto na cadeia significante. Essa função é a que
se pode denominar propriamente rigor matemático. A forma do
rigor atual (sincronia) desenvolveu-se como tentativa (sempre frus-
trada?) de completarnento de uma certa falta através de verdadeiros
desfiladeiros históricos, como a teoria de Weierstrass, a obra de
Cantor-Dedekind, as teorias dos conjuntos, o teorema da incomple-
teza de Godel, culminando nas tentativas enciclopedistas de Russel
e de Bourbaki. A missão do professor de Matemática é a escuta das
falas eivadas de tais determinações.
A partir desse quadro, junto com as informações sobre o que
ocorre na condução e sustentação de processos psicanalíticos na
vertente freudo-lacaniana, relativamente à fase da significação e,
tomados de empréstimo elementos do gráfico do desejo (Lacan,
1989; Zizek, 1992), é possível articular uma conceituação que pos-
sa ser apropriada à lógica da intervenção didática (Cabral, 1996 e
1998). Essa lógica da intervenção deve levar o professor a se ocu-
par com o processo de aprendizagem, não com o aluno. Já não se
tratava da centralidade da Matemática; agora, tampouco se trata de
centralidade do aluno (afetividades, motivações, etc.) mas, sim, da

L6gica da inte~ençãodiddtica 111


centralidade da aprendizagem, que envolve professor, aluno e Insti-
tuição. Essa mesma lógica não pode renunciar a ter de considerar o
processo de aprendizagem à luz de sua estrutura discursiva, onde o
sentido das falas matemáticas é função de determinações. Assim, na
experiência de aprendizagem o momento destinado ao tempo de
insatisfação do aluno é tomado como precioso, pois o sentido de
sua fala aparece no discurso que contextualiza essa fala. Ora, uma
vez que o sujeito aprendente advém, surge, mostra-se, na enuncia-
ção, há também o tempo de operar sobre a suposição do aluno a
respeito de o professor saber tudo.
As intervenções didáticas e pedagógicas são dispositivos cla-
ramente artificiais cuja finalidade é provocar a demanda do aluno
em querer saber, produzir um curto no circuito das identificações,
onde se pede para aliviar as angústias que denunciam o não querer
saber. É preciso lembrar que os casos aqui apresentados são situa-
ções particulares referentes à condução e sustentação de processos
de aprendizagem de alunos diante de um espelho onde eles não
querem saber que ser para o outro já é ser para si (Zizek, 1992). É
essencial deixar que apareça o que pode mover o aluno a fazer
questão sobre seu modo de produzir significados. A pergunta que
deveria advir do trabalho realizado pelo aluno seria: "Por que penso
assim? Por que sempre respondo dessa maneira?". Querer saber
seria a nova posição do sujeito frente ao que parece ser a sua verda-
de. A manobra didática deve provocar o aluno; levá-lo a expressar
suas insatisfações, relativas, não só aos conceitos que tem, mas,
também, à maneira como ele toma parte em seu próprio processo de
aprendizagem. É o aluno quem deve trabalhar para sair de sua posi-
ção de nada querer saber. Por isso, os artifícios montados devem
visar ao processo, devem se afastar da centralidade do aluno. É
possível supor que isso tenha condições de ocorrer, em princípio,
face à responsabilidade que o aluno passa a assumir com respeito às
perspectivas de "fracasso" que, de certa maneira, podem ser consi-
deradas já determinadas no horizonte profissional de ser professor
no ensino tradicional.
O ensino tradicional opera-se à semelhança das psicanálises
de base terapêutica, cujos pilares são, como apontou Jorge Forbes,

112 Formação de professores de Matemática


em conferência proferida na USP,' o bom senso, a irresponsabilida-
d e e-o controle-exercido-peloterapeuta~Assim,noensinotradicio-
nal conforma-se o aluno, sabe-se do bem de cada um, ajusta-se o
aluno aos comportamentos esperados, dão-se significações, pro-
vêm-se explicações claras e objetivas, a transferência é reduzida a
um afeto, etc. O efeito é o reforço dos processos identificatórios: o
objetivo é produzir um aluno à semelhança do mestre. Assim, con-
tinuando-se a não admitir a inevitabilidade de "falhas" na formação,
o resultado não pode ser outro em termos pedagógicos: há um re-
forço do fracasso como sintoma na cultura e o aluno, futuro profes-
sor, aprende a reproduzir a única experiência que teve.
Na lógica da intervenção didática, o que se refere aos meca-
nismos artificiais desenvolvidos pelo professor ao longo do proces-
so, aproveitamento das hesitações, que, via de regra, são negligen-
ciadas, ganha importância, pois dá lugar a possíveis encaminha-
mentos que podem ser eficazes na condução para a produção do
saber do próprio aluno sobre seu modo de significar. Porém, para
isso, exige-se que o professor desenvolva as escutas diferenciais
que se restringem às falas matemáticas no âmbito da sala de aula.
As justificações reveladas nas falas do aluno, suas concepções so-
bre este ou aquele conceito, muitas vezes adquiridas, algum dia, nos
bancos escolares por onde passou, são relativas a esquemas prefe-
renciais de lidar com o saber instituído. É preciso escutar o que as
justificações dizem. De maneira geral, o entendimento as liga às
descrições de representações (visuais ou não) ou às imagens concei-
tuais. Entretanto, as justificações provêm de imagens muito mais
fortes do que definições conceituais vistas em sala de aula e que se
quer que o aluno tenha como concepção própria.
O artifício de provocar desequilíbrios pode produzir desloca-
mentos no aluno quando a eles é ajuntado o trabalho de verbaliza-
ção das justificações em jogo e de pontuação sobre elas. O aluno,
ao repetir esquemas, reforça-os para incluir novas situações. As
concepções iniciais, formadas em situações muito particulares,
funcionam como obstáculo que deve ser ultrapassado em sentido
dialético: ultrapassar um obstáculo não é recalcá-10, mas, sim, supe-

Série de conferências proferidas no Seminário "Sintomas Tratáveis e Sintomas


Intratáveis", no Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 1997.

Lógica da intervenção didática 113


rá-10 com conservação; o velho é incorporado ao novo, com trans-
formação de essência. A repetição, em termos da clínica, na neuro-
se, revela que o que é excluído do simbólico retorna sob a forma de
sintoma. Em termos da sala de aula, esse retorno fica evidente na
persistência do obstáculo, repetição, que leva ao erro, pois por mais
que o professor diga ou mostre ao aluno que seu esquema não fun-
ciona, ele insiste em usá-lo. Portanto, a intervenção didática deve
prever o desenvolvimento da concepção trazida pelo aluno. É preci-
so desenvolvê-la até o ponto em que a concepção seja explicitada
nas sínteses, para que o próprio aluno possa reconhecer em que
circunstâncias ela fracassa. Porém, para que isso ocorra, é preciso
que ele queira saber, não "da Matemática", mas de si mesmo.
No que concerne à discussão das questões referidas até aqui,
não seria possível deixar de tratar do objetivo da pulsão, o gozo,
que, no âmbito da aprendizagem, está junto às justificações. O su-
jeito aprendente leva a marca que garante e sustenta sua identifica-
ção. Como conseqüência, a aprendizagem requer uma reorganiza-
ção da estrutura de gozo; essa reorganização deve ser entendida
como modificação das justificações preferenciais que o aluno ela-
bora, evidenciadas em sua maneira de lidar com o saber específico.
Como dissertado anteriormente, na repetição de fracassar, na insis-
tência em responder do mesmo modo, isso que se estrutura tem o
retorno assegurado.
É útil, então, interpretar por que, na história, as concepções
científicas triunfaram sobre as concepções abandonadas. Equivale a
dizer que a fala dos sujeitos que as sustentavam deslizava menos. A
didática deve prever a síntese das conclusões como trabalho de
simbolização do aluno, que reconhecerá que sempre existirá alguma
coisa que não pode ser tratada - há uma incompletude com relação
ao saber instituído.
Partindo do princípio de que há efeitos de intervenções didáti-
cas e pedagógicas em um campo que não se pode definir como
essencialmente cognitivo, pode-se tratar a questão relativa ao fe-
nômeno transferência. É em Lacan que o emprego do termo trans-
ferência pedagógica pode ser sustentado com o conforto necessário
para analisar as situações de sala de aula

114 Formação de professores de Matemática


"[ ...I De cada vez que essa função [investir alguém de sujeito
suposto saber] pode ser, para o sujeito, encarnada em quem quer
que seja, analista ou não, resulta da definição que venho lhes dar
que a transferência já está então fundada" (Lacan, 1988b, p. 220)
[sem grifo, no original].
Por ter relacionado a transferência com a realidade psíquica é
que Lacan pode afirmar que se trata da atualização da realidade do
inconsciente. Com isso, fica restabelecido o conceito de transferên-
cia, ao retirar-lhe a idéia vulgar de identificação como que denotan-
do traços ideais de imagens a serem imitadas. Essa concepção é
falaz porque o engano é de duas ordens: por se supor que o traço
identificador seja visível e por se supor que ele seja sempre uma
marca de prestígio (Zizek, 1992). Em outras palavras, embora pare-
ça desagradável, a identificação bem pode se referir ao que se con-
sidera uma deficiência. O outro equívoco a que somos levados diz
respeito ao fato de ignorar que o papel desempenhado pelo sujeito
no processo de reconhecimento é dirigido para alguém, para um
certo olhar. A questão é saber que olhar está presente. Usando con-
ceitos hegelianos, indica-se que o jogo imaginário de ser para um
outro deve ser trabalhado na análise, para que o neurótico histérico
reconheça esse processo de alienação. Na teoria psicanalítica, es-
tá-se tratando da diferença entre identificação imaginária e identifi-
cação simbólica, ou da suposição de se estar imitando, em nível da
semelhança para saber que se está identificando em nível do inimi-
tável". Assim, falar em transferência pedagógica em sala de aula é
partir do circuito das identificações; é isso que torna admissível a
leitura dos casos de aprendizagem.
Assim, cabe indagar: para que olhos o aluno se mostra? Res-
posta que, parece, só o aluno pode dar a conhecer à medida que
trabalha, à medida que produz um saber sobre esta sua condição. O
aluno é constituído em sujeito por identificar-se com uma certa

'O Essa diferença é magistralmente marcada por Zizek ao analisar uma ocorrência
externa à clínica: o filme em que Woody Allen responde pelo papel de um sujeito
que tenta ser como Humphrey Bogart - identificação imaginária. A identificação
simbólica só é levada a cabo quando o personagem de Allen repete a cena final de
despedida de Casablanca: "[ ...I assumindo uma certa 'missão', ocupando um certo
lugar na rede simbólica intersubjetiva (sacrificando uma mulher em nome da amiza-
de...)" [1992: 1091.

Lógica da intewenção didatica 115


imagem, através de traços que se lhe apresentam como formadores
do "bom aluno", que sabe responder o que o professor quer; é a
identificação imaginária. Ele se identifica com algo que a escola
apenas referenda como conhecimento vazio, pois basta obter o re-
conhecimento sem precisar esforçar-se para tal. O trabalho sobre a
transferência pedagógica deve produzir uma ressignificação dessa
expressão "bom aluno". Uma vez que estamos circunstanciados,
"ser bom aluno em Matemática" é saber, não só lidar com uma
disciplina, mas, sobretudo, saber que relações de produção aí estão
implicadas e que conseqüências elas trazem quando se atua diante
de outros. Saber que há uma função social e ideológica posta em
andamento no circuito das identificações imaginária e simbólica
encontradas, principalmente, em sala de aula de Matemática, onde o
olhar do Outro - professor, diploma que traduz reconhecimento de
pertença, sair-se bem em provas, modos de falar, nome institucio-
nal, família, não querer estar em classe, como responder, etc. -
como código simbólico e sincrônico, determina o papel a ser de-
sempenhado pelo aluno. Reconhecer que existe uma missão ideoló-
gica de uma classe social na qual se inscreve é a identificação sim-
bólica.
O funcionamento da lógica da intervenção mostra ser necessá-
rio atuar na articulação circular entre identificação imaginária de
alienação e identificação simbólica de assumir uma missão, con-
forme foram descritas. Desse trabalho há um resto que leva o aluno
a se perguntar por algo; lugar em que se situa a questão do desejo.
Assim, a indagação sobre "ser bom aluno" deveria levar o aluno a
querer aprender. Entretanto, por que nem sempre isto acontece?
Falta algo que se revela exatamente quando a questão do desejo é
aberta. É preciso dar conta de saber como uma significação é pro-
duzida pelo aluno retroativamente regulada pelo código simbólico e
revelar como o campo da significação é atravessado pelo gozo
pré-ideológico, eshuturado na fantasia social. Com relação ao pri-
meiro, dever-se-ia perguntar pelos traços significantes do código
simbólico com que o aluno procura identificar-se. Com relação ao
segundo, dever-se-ia perguntar que lógica de gozo perpassa as
insistentes justificativas que o aluno investe em suas respostas.

116 Formaçáo de professores de Matemática


Retomando-se os dois episódios acima escritos, há passagens
em que se nota que aquilo que permitiu a inauguração do trabalho
foi, enfim, o que provocou sua paralisação. Foi descrito como o
aluno responde mecanicamente, reproduz palavras que ouviu ou
que viu. O aluno, ao tentar responder da posição de bom aluno,
chega a ponto de executar as tarefas escolares de modo burocrático.
Nessa investida de responder ao professor, o aluno reproduz o dis-
curso daquele que ele vê como mestre sem realizar a sua própria
produção pessoal. É preciso que através dos mecanismos artificiais
da intervenção didática, ao menos, se possam produzir deslocamen-
tos de ser para o outro para saber que se é para si. É preciso ir da
alienação à separação.
Com um pouco mais de atenção dirigida para o que acontece
em sala de aula tradicional, nota-se que o professor reforça algumas
imagens, considera-se modelo de produção de conhecimento e julga
louvável que se repita esse mesmo modelo. Não é espantoso quan-
do se ouve "formam-se iguais"? Este procedimento e a relação que
por ele se estabelece entre professor e aluno constituem o fenômeno
de alienação. Há impedimento da elaboração do trabalho pelo alu-
no, é um jogo em que este busca fornecer a resposta que o professor
quer ouvir, reforçando a relação: "Como devo responder para satis-
fazê-lo?'. Sugerir ao aluno modos de resolver um problema, indicar
a ele como e o que deve ser feito instaura um processo de adaptação
do aluno à imagem do outro que sabe (professor - mestre). Por
vezes, como foi dito, impede o aluno de continuar trabalhando.
Neste ponto entra-se na discussão do fenômeno da resistência
que, de modo geral, é atribuída ao aluno. Entretanto, o professor
também resiste à medida que é ele quem insiste em repetir seu dis-
curso, sem, ao menos, ancorá-lo no do aluno: esse é o caminho da
doutrinação científica. O resultado é temporariamente satisfatório do
ponto de vista cognitivo; porém, nas primeiras situações um pouco
diferentes, as respostas inicialmente dadas pelo aluno emergem, de-
saparecendo os vestígios da "aprendizagem", característica da per-
manência de uma concepção. Assim, a transferência pedagógica
pode revelar que certas situações são instituídas pela projeção e iden-
tificação de um sujeito ao outro. Tal identificação termina provocan-
do a paralisação da aprendizagem e o trabalho sobre ela deve visar a
provocar uma nova abertura.

Lógica da intervenção didática 117


Reverter um tal quadro não é a mais fácil das tarefas; aliás,
poder-se-ia dizer que esta é a tarefa constante do professor: possibi-
litar aberturas, saber que se sucedem novos fechamentos para voltar
a intervir e provocar mais aberturas. Um processo de aprendizagem
só se torna sustentável, incluindo sempre o fenômeno da transferên-
cia pedagógica; se o professor deslocar seu interesse para as ocor-
rências de mudanças significativas do aluno é que está trabalhando.
Desse modo, o aluno tem uma chance de perceber que são suas
justificações, produzidas em certo ambiente, que dão ao professor a
dimensão do que foi ensinado. Dissipam-se idéias sobre o que é
certo ou errado, para efetuar-se uma escolha, ainda que considerada
inadequada quando comparada à organização do conhecimento em
questão. Colocar um processo em andamento não elimina dificul-
dades, decepções, angústias, desconforto. Aprofundar cada proble-
ma novo é tarefa que parece não ter fim, pois depende de muitas
reorganizações do aluno. Desse modo, é preciso que o aluno queira
passar a se deixar atravessar pelas angústias, pois esse estado de
angústia nada esconde.
Nas situações em que o aluno se dispõe a produzir, em que o
aluno se dispõe a enfrentar suas angústias, há indicações de mo-
mentos de abertura. De algum modo, o aluno, sem muitas conside-
rações, reconhece estar implicado nos esquemas que repetidamente
utiliza. Ou seja, por motivos diferentes, ele, em certas passagens,
decide perseguir uma questão. Entretanto, os casos analisados reve-
lam que são momentos que, em seguida, voltam a se fechar. Insisto
que a idéia é fazer com que o aluno se ponha certas questões: "Por
que o que respondi foi entendido assim?". Essa concepção é oposta
àquela que supõe que o processo de aprendizagem possa ser susten-
tado ao se motivar o aluno. A posição do professor como provoca-
dor é essencialmente diferente do papel que desempenha o profes-
sor tradicional. O controle sobre o aluno, mecanismo tão caro ao
ensino tradicional, não tem lugar. O professor é levado a depor suas
expectativas específicas. O professor não trabalha mais para o aluno.
Nos casos relatados, para sustentar os processos de aprendiza-
gem, não dirigir as respostas do aluno em termos de certo e errado,
o professor utilizou as intervenções didáticas diferenciais. Como
mecanismo artificial de condução de processos de aprendizagem, a

118 Formação de professores de Matemática


intervenção diferencial incide sobre as justificações que, em nível
de saber, determinam um conhecimento. Tal processo não estaria
completo sem a idéia de pontuação, isto é, intervir no processo de
modo que o aluno se veja remetido a algum ponto de sua própria
cadeia. Nos casos apresentados, alguns artifícios foram utilizados:
repetir uma fala do aluno, ficar calado, ceder um livro, fazer uma
interpretação, criar um conflito, etc. Manobras que, como na clínica
psicanalítica, devem provocar o aparecimento do sujeito. O papel
específico do professor na experiência de aprendizagem deve ser o
de provocar o aluno com questões, com informações, com propos-
tas de novas situações e, sobretudo, som intervenções didáticas
apropriadas. Porém, dos mesmos casos, apreende-se que estas estra-
tégias nem sempre produzem efeito de abertura.
Viram-se momentos em que alunos se negaram a continuar
trabalhando. Isto é, nada do que se faz em termos de ensino é con-
trolável. O que deu resultado em um certo momento pode não fun-
cionar em outro imediatamente seguinte. Os episódios narrados
mostraram essas passagens. Nesses casos o aluno era levado a re-
conhecer cada contradição até admitir estar numa situação na qual
não via saída. Isso significa que seu modo preferencial de justificar
é exposto e seu funcionamento local mostra-se insatisfatório. As
concepções iniciais, em alguns casos, puderam ser postas em sus-
penso; em outros, não.
Nas situações, observou-se que o professor tentou fazer com
que o aluno, que estava a sua frente, trabalhasse, ao colocá-lo na
posição de falante. Em razão do que foi visto, afirmo que a expres-
são das maneiras preferenciais de o aluno justificar e, portanto, por
que não dizer de um certo gozo, é um verdadeiro trabalho sobre
conteúdos que se perfilam diante dele, indicando-lhe a que esque-
mas está assujeitado - concepções, idéias e representações. A inter-
venção didática sobre a fala pode indicar, para o próprio aluno (elou
para o professor) o que é da ordem de suas escolhas ou das afirma-
ções em jogo, os mecanismos de suas articulações e as repetições
de certos modos de pensar. Esse manejo leva à desmontagem do
que se tem como verdade, através de questões formuladas a partir
de dúvidas a respeito dessa certeza. Em muitos casos esses eventos
são acompanhados de tropeços da fala, de esquecimentos que sina-

Lógica da intervenção didática 119


lizam a instalação de algo imponderável para o aluno - não se su-
porta a ignorância, por um lado e, de outro, não se suporta o não
querer saber que se sabe. Entretanto, é só depois que o aluno dá
mais outros tantos passos que se evidencia o que pode estar situado
na ordem da elaboração particular.
Com relação aos significantes que se perfilavam, como se
mostrou em certas passagens, remonto a algumas considerações da
teoria de Ferdinand de Saussure que inspiraram Jacques Lacan a se
pronunciar teoricamente sobre a clínica. Sabe-se que o arbitrário do
signo designa o fato de não haver relação natural possível entre um
significante e um significado. Daí decorre que um significante ne-
cessita de outro significante para que significações sejam produzi-
das. Instigada, então, pelo que se tem ouvido de alunos, palavras
pertencentes ao campo da Matemática, que flutuam livremente,
sem, aparentemente, qualquer ligação umas com as outras, pergun-
to: não está ausente um significante que, diante de tudo o que o
aluno discorre, produziria a significação desejada? Que significante
é esse? Quem dá esse significante quando se está tratando dos as-
pectos relativos à operação de ensino e processo de aprendizagem?
(O) Que se ouve? Tomar esse significante sempre emprestado da
Matemática - certo ou errado? - produz efeitos bem conhecidos.
Haverá, entretanto, outro desejo a partir do qual a marcação de
outros significantes produza efeitos de aprendizagem mais eficazes
ou, quem sabe, um outro fracasso?
É preciso ouvir com atenção, dizia Freud, mas uma atenção
que seja flutuante e que não determine o que aquele que fala deve
dizer: "Não, está errado, é assim que se faz", "Sim, você está certo,
não é problema seu, seu professor é que não lhe ensinou direito". A
escuta se constitui, então, como a complementação da posição do
aluno, sujeito falante, em que o professor pode ser surpreendido
pelo modo singular de o aluno organizar seu conhecimento. A escu-
ta põe o professor em posição de estar atento às afirmações enun-
ciadas. Todo este trabalho incide sobre os modos preferenciais de
justificar, relativos às concepções trazidas pelos alunos e às manei-
ras de dar significação ao saber que se está produzindo.
As pontuações feitas pelo professor funcionam como artifícios
que provocam o efeito de retroação na fala do aluno, isto é, elas

120 Formação de professores de Matemática


atualizam o discurso diante do qual ele é levado a pôr em dúvida
suas certezas. Algo aí ocorre: no ponto em que existe uma signifi-
cação construída retroativamente, o aluno pode ser demovido de
sua condição de "inércia". A pontuação ou interpretação, em senti-
do pedagógico, nos casos em que um processo de aprendizagem
está em curso, é um efeito de intervenções didáticas sobre algo que
é enunciado e faz emergir o que, em princípio, não se queria dizer:
a enunciação. É aí que emerge o sujeito aprendente. Em certo sen-
tido, a pontuação interpela o aluno, indicando sua posição relativa a
seus esquemas preferenciais: aquilo que os funda. Portanto, não é
sem razão, como se notou, que, diante de certas intervenções, o
aluno se mostre perturbado ou, mesmo, cometa um engano, supu-
nha ter-se enganado, demonstre esquecimentos: algo escapa. Nesse
momento, o efeito é uma indicação da divisão do aluno e de que
alguma coisa relativa ao processo o coloca na posição de se ver em
conflito.
Pode-se presumir que se produz um conhecimento que ultra-
passa o sentido do próprio evento e remete a algo fundamental - o
mecanismo de produção e seus condicionantes. A maneira de o
aluno produzir o saber específico, através de confronto de imagens
e evitando a exploração lógica de princípios ou definições permite
interpretar eventos, como o "esquecimento" das definições e con-
ceitos,- a resposta "sem explicações", a repetição de certos esque-
mas, a "confusão" entre idéias, tão comuns em classe.

Quadro geral de questões e polêmicas

Os casos acima apresentados e as análises feitas mostram as


dificuldades que são encontradas quando tentamos construir condi-
ções que levem um aluno a modificar sua posição com relação a sua
própria aprendizagem. Embora não seja discutido aqui, não se pode
esquecer que nos trabalhos didático e pedagógico, com as chamadas
disciplinas duras, a complexidade aumenta, por envolver o proble-
ma do crédito que o aluno almeja. Observa-se que, para alcançar o
crédito necessário para a passagem de um ciclo a outro, o aluno
desenvolve esquemas ad hoc relacionados a certos conceitos, em

Lógica da intervenção didática 121


prejuízo de saber trabalhar com princípios. Essa questão, discutida
por um grupo de educadores matemáticos que trabalham o tema
avaliação, é polêmica, pois diz respeito ao contrato de trabalho (ou
contrato didático, nos termos dos didaticistas franceses) explícito e
implícito com o qual o professor organiza sua classe.
Uma vez que foi indicada a questão da obtenção de crédito, não
se pode deixar de mencionar o grupo institucional como parte dos
condicionantes de reconhecimento e de aceitação do aluno, elemento
que se relaciona com o circuito das identificações. Para isso, a orga-
nização da sala de aula, visando à aprendizagem como modificação
do sujeito, é feita em pequenos grupos. É no ambiente grupal que o
aluno se vê diante de ter de fazer uma escolha que diz respeito ao
modo como ele deseja se envolver no trabalho de aprendizagem. É
preciso que haja um compromisso firmado desde o início do percurso
acadêmico.
Nesse ponto, é possível falar a respeito das situações conflitan-
tes que se é levado a viver como professor. Em um curso tradicional
lidamos com a demanda de ter de "dar" aulas expositivas para turmas
superlotadas. De modo algum pode-se dizer que está havendo apren-
dizagem. Mas há ensino, sem dúvida, pois, como professores cum-
primos o programa estabelecido pela Instituição, aplicamos provas
como recursos de "avaliação" para, posteriormente, separarmos os
alunos que não "sabem" daqueles que "sabem" resolver certos pro-
blemas. Quando perguntamos aos alunos que conceitos aprenderam
em aula, ao final da exposição ou no dia seguinte à aula, eles respon-
dem: "professora, isso é difícil, mas se a senhora der o problema,
então, a gente sabe resolver". Na verdade, eles estão declarando que
aprendem a resolver-problemasparecidos com os que eles encontram
resolvidos no livro ou que são resolvidos pelo professor durante uma
aula.
Isso é resultado do único trabalho que pode ser feito com uma
classe enorme: aulas expositivas onde o professor aprende cada vez
mais e onde poucos alunos têm alguma condição de trabalhar por
conta própria. Em um trabalho assim, não é possível atingir o aluno
que precisa de atendimento específico, pois ele continuará construin-
do esquemas para resolver provas e passar de ano. Poucos serão
aqueles que, de fato, prosseguirão os estudos aprofundados na área
que escolheram.

122 Formação de professores de Matemática


É difícil o trabalho que se vem desenvolvendo, no sentido de
estabelecer condições que favoreçam a emergência de processos de
aprendizagem de Matemática, posto que as condições institucionais
não corroboram os objetivos didáticos e pedagógicos para modifi-
cação do ensino. Assim sendo, quando neste trabalho trato da "lógi-
ca da intervenção didática", em última instância, está presente não
só o tema aprendizagem, como também é colocado em foco o tema
formação do professor.
Da perspectiva da intervenção diferencial, a questão da difi-
culdade de aprendizagem do aluno é tratada como sendo da ordem
do desencontro. O que se observa, em classe, é que há um hiato
entre as intenções encontradas nas declarações de querer aprender e
as estratégias desenvolvidas. Esse fenômeno discursivo estrutural é
indicado através de indagações. O aluno declara querer aprender,
entretanto suas ações demonstram que quer o crédito escolar. Como
explicar esse fenômeno? O aluno não sabe o que faz? Por que o
aluno age assim quando o professor quer apenas ensinar?
As relações de sala de aula estão atravessadas pela subjetivi-
dade. Em outros termos, é possível apreender o que de subjetivo
interfere em classe quando o professor está ensinando Matemática.
Outras questões que orbitam em redor dos processos de ensino e de
aprendizagem são articuladas e discutidas a partir de significantes
tais como ideologia, posição da Instituição e seus efeitos pedagógi-
cos, demanda familiar, demanda do aluno, a sala de aula como cul-
tura, diferença entre avaliar e conferir crédito para passar de um
nível a outro, organização da classe em grupos operativos, etc. Des-
se modo o quadro institucional onde as interpretações de casos têm
lugar é de extrema importância porque constitui, de certo modo, o
quadro do Outro. Esse quadro global que retrata o acompanhamen-
to longitudinal de uma classe de Matemática em uma universidade
pública foi sendo construído ao longo do próprio processo de inves-
tigação que não tem fim, que se renova, a cada encontro, com uma
nova classe.
O tratamento do circuito das representações na Instituição faz
parte das interpretações que são feitas a respeito da constituição do
reconhecimento do sujeito por seus pares. É necessário abordar a

Lógica da intervenção didática 123


sala de aula de Matemática como uma cultura onde demanda de
pertença social é o motor das ações do aluno: construção de ideais a
serem seguidos. Tem-se ciência de que a grande dificuldade que se
encontra em trabalhos cuja metodologia é alternativa ao tradicional
refere-se à demanda de passar de ano. Tal demanda é feita pelo
aluno e coloca o professor na posição de mestre ou todo saber, ima-
gem a ser seguida e imitada. Nos casos apresentados ficam eviden-
tes as tentativas do aluno de postergar o confronto com o pior de
seu processo, uma vez que seu desejo está em obter crédito para
passar sem aprender, sem trabalhar, sem querer enfrentar o estado
de angústia a que toda experiência de aprendizagem necessariamen-
te leva.
Há, ainda, a questão de haver burla do aluno em relação às re-
gras estabelecidas em classe para conseguir um diploma - enganar
o professor. Essa situação pode ser traduzida como tirar vantagem
da situação em beneficio próprio, mas é preciso ir adiante da cons-
tatação e articular essa questão ao movimento global que exclui
uma parcela grande de alunos do sistema educativo.
Nessa trajetória, indicar a importância de explicitar a diferen-
ça entre conhecimento e saber é primordial para as interpretações
das circunstâncias em que os casos de aprendizagem em Matemáti-
ca se estabelecem, pois o conhecimento é referente à cognição e o
saber diz respeito ao movimento da clínica psicanalítica. Introduzo,
então, a questão: que elementos do inconsciente irrompem no pro-
cesso de aprendizagem? Essa pergunta faz sentido pois, mormente,
acentua-se a subjetividade na aprendizagem, mas há uma retenção
do olhar sobre certos mecanismos "controláveis" como memória e
abstração. Ora, Freud mostrou como o inconsciente irrompe na
clínica; assim, a interpretação de sonhos, os chistes e os atos falhos
são elementos que podem subverter o olhar sobre a memória e a
abstração.
Outro aspecto que pode ser investigado nos casos de aprendi-
zagem diz respeito às idéias que o aluno elabora acerca das situa-
ções traumáticas experienciadas (formação edipiana). O caso de
uma aluna cujo primeiro professor de Matemática foi seu pai é
mencionado na Tese de Doutorado (Cabral, 1998). Através de um

124 Formação de professores de Matemática


acompanhamento longitudinal, foi possível levantar o problema ao
abordar o sintoma fazer uso insistente da borracha, mesmo em si-
tuações em que a resposta matemática dada pela aluna estava corre-
ta. A dificuldade do professor, em casos como esses, é fazer com
que o aluno possa simbolizar suas concepções sobre as diversas
relações em que é inscrito como sujeito na cultura.
O impossível da educação deve estar sempre presente para o
professor, suas ações devem ser dirigidas por esse saber que con-
cerne à dificuldade de seu trabalho (o professor barrado).
Outra polêmica interessante que pode ampliar o quadro de in-
terpretação dos eventos de uma sala de aula é saber se é possível, a
partir do discurso universitário, falar sobre o saber. Não se pode
esquecer que o conhecimento é pensado como sendo da ordem das
buscas de certezas, da ordem da racionalização, da tentativa de
fazer calar o inconsciente, enquanto que o saber é entendido como o
que permite colocar em questionamento as certezas do sujeitos; o
saber é da ordem do inconsciente.
Assim, algumas questões podem ser estabelecidas para dirigir
nossos olhares de inconformidade com o fracasso escolar: Que
professor de Matemática será formado, quando a Instituição estimu-
la práticas docentes cujo efeito pedagógico incentiva o licenciando
a deixar de lado ter de enfrentar as dificuldades advindas de seu
modo de trabalhar com a organização do conhecimento? Como
compreender o quadro da reação da Instituição escolar aos proces-
sos de intervenção? É sempre possível desenvolver possibilidades
para intervir na Instituição e provocar modificações locais que re-
sultem em condições que levem o aluno a imergir no processo de
aprendizagem? Como esperar que o professor possa manobrar dis-
positivos de intervenção que provoquem mudanças? É necessário
que o professor seja um analista? É necessário que o professor pas-
se por uma experiência de análise? O que significaria para a docên-
cia abordar um saber que não se sabe? Em última instância, é pos-
sível intervir na cultura de tal forma que sejam produzidos agentes
modificadores da própria Instituição em que se atua?

Lógica da intervenção didática 125


Palavras finais

A partir dessa abordagem, como conseqüência, algumas obser-


vações devem ser feitas para a condução de um processo de
aprendizagem que não pode ser confundido com o processo psicana-
lítico:
saber instituído - conhecimento matemático - faz parte
dos elementos com que o aluno obrigatoriamente tem de
lidar em seu processo de aprendizagem;
como é o saber instituído que está em jogo, a escuta que o
professor faz é uma escuta diferencial;
portanto o professor jamais ocupará a posição de analista
em classe e, por conseguinte, o aluno jamais poderá ser
tratado como analisando;
Não se trata de estabelecer o processo de aprendizagem como
uma estrutura análoga ao processo da análise. É preciso estar ciente
de que, nesse caso, não se escapa às restrições que um dos domínios
impõe ao outro. Estamos lidando com o campo do ensino e da
aprendizagem de disciplinas específicas, a partir da posição de pro-
fessores informados pelo campo psicanalitico. É inegável que, em
ambos os domínios, lida-se sempre com as certezas e as tentativas
de as abalar, trata-se com a sustentação da palavra e a construção
do que será a verdade para aquele que ensina e para aquele que
aprende.
Para fechar esse trabalho: De certo modo, foram abordadas as
angústias do professor ao lidar com processos de aprendizagem, e,
principalmente, com a responsabilidade que tem com relação à for-
mação de alunos. Foram mencionadas, ainda, as angústias que se
experimenta ao enfrentar novas teorias para compreender o que se
faz em termos de docência; trata-se de um grande desafio para cada
um de nós diante do esforço de deslocamento que se tem de fazer
entre áreas. É certo que a entrada em campos como a Psicanálise só
pode ser feita quando há uma questão pessoal em jogo. A partir daí
tudo se faz mais simples, pois o sujeito passa a ser dirigido pelo dese-
jo e não mais pelas identificações que lhe são impostas. Ademais,
pouco se sabe a respeito de como o aluno aprende, até porque certas
contingências nos obrigam a esquecer nosso próprio aprendizado.

126 Formação de professores de Matemhtica


Isso nos toma incompletos, não se sabe tudo. Nada se pode normati-
zar com respeito às reações do aluno, à insistência que ele se relacio-
ne com os vários saberes, por mais que se tente delinear e seguir seus
modos de pensar. Suas respostas ainda nos são imprevisíveis em
muitos aspectos. Podemos, apenas, estabelecer diretrizes para ter
condições de projetar atividades didáticas e pedagógicas. Devemos
explicitar, para nós mesmos, nosso imaginário sobre o saber instituí-
do. Recusar que há o bom senso e que é possível exercer o controle
do que se diz e do que se faz, é ter de aceitar que resta apenas a res-
ponsabilidade, o empenho da palavra. A produção de uma outra po-
sição subjetiva talvez possa ser conseguida ao recusarmos a dar sig-
nificações para suturar as falhas do aluno, encontradas nas afirma-
ções que mais ouvimos: "não sei", "não aprendi", "meu colégio foi
fraco", "tenho problemas para aprender" ... É um grande desafio,
pois não há certeza de ser possível sustentar processos de aprendiza-
gem, uma vez que está em questão o aluno querer enfrentar suas
angústias. Lidar com o impossível da educação é lidar com o fazer
desejar, e, como se sabe, nem todos podem ou querem enfrentar aqui-
lo que diz respeito ao real (Cabral, 1992a, 1992b, 1998).

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128 Formação de professores de Matemática


A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA
E OS CURSOS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Circe Mary Silva da Silva

Introdução

Quais são as funções particulares da História da Matemática


como uma disciplina ou atividade componente de um currículo de
Matemática, visando à formação de professores?
Aparentemente trata-se de uma questão de resposta simples.
Mas não podemos nos iludir ou contentar com uma análise rápida
da questão. Estamos frente a uma problemática complexa e que nos
conduzirá a reflexões teóricas, na tentativa de respondermos com
lucidez e bom senso. Uma visão um tanto ingênua sobre o papel da
História da Matemática atribui a esta uma função quase mágica,
como se o seu domínio ou a sua aplicação possibilitasse a resolução
de todos os sérios problemas envolvidos no processo ensino-
aprendizagem da Matemática.
A resposta à questão acima está intimamente relacionada a
nossa própria concepção de Matemática. Se a encararmos como
uma ciência quase auto-suficiente, pronta e acabada e acreditarmos
que existam duas castas de pessoas: aquelas que a dominam e ensi-
nam e uma outra que é instruída pela primeira, dificilmente, haveria
espaço para a História da Matemática no processo de ensino-
aprendizagem. Mas, se por outro lado, a encararmos como apenas
uma das muitas formas de conhecimento, ou ainda, como um tipo

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 129


de manifestação cultural ou atividade humana mais geral, então, a
história desse conhecimento reveste-se de significado e estudar a
História da Matemática é uma forma de entender melhor as relações
do homem com o conhecimento matemático dentro de um certo
contexto cultural.
Para examinarmos a questão, num primeiro momento, apre-
sentaremos algumas discussões sobre o tema em nível nacional e
internacional. Num segundo momento, faremos um retrospecto
histórico da situação da disciplina no País. Numa terceira etapa,
apresentaremos opiniões de estudantes e professores sobre a rele-
vância da disciplina História da Matemática nos cursos de formação
de professores no Brasil. Concluiremos com algumas reflexões e
sugestões para todos aqueles estão atuando nesses cursos e se preo-
cupam com a formação dos docentes.

Discussões gerais sobre a História da Matemática


em nível nacional e internacional

Um dos currículos de Matemática mais antigos, de que temos


conhecimento, é aquele da Faculdade de Matemática da Universi-
dade de Coimbra, proposto em 1772. O elenco das disciplinas
incluía: Geometria, Álgebra, Geometria Analítica, Cálculo Diferen-
cial e Integral, Mecânica, Física e Astronomia. Os conteúdos pro-
postos deveriam seguir uma ordem de apresentação em que os as-
pectos da História da Matemática estivessem inseridos, como uma
forma de introdução da disciplina. O professor iniciaria a disciplina
de "Geometria" fazendo um resumo da história, começando "Desde
a origem da Matemática até o século de Thales e Pitágoras, desde a
fundação da escola alexandrina até a era cristã, da era cristã até a
destruição do império grego, deste até Descartes, de Descartes até o
presente tempo" (Estatutos, 1772, v. 3, p. 169).
Percebendo as limitações que tal proposta teria na prática,
uma vez que os alunos poderiam ainda não dispor dos pré-
requisitos matemáticos para entender a história desse conhecimen-
to, o seguinte alerta era feito:

130 Formação de professores de Maternhtica


"este resumo será proporcionado à capacidade dos estudantes, de
sorte que os disponha e anime para entrarem no estudo com gosto.
Por isso não entrará o lente na relação circunstanciada dos desco-
brimentos [...I porque não pode ser entendida, senão quem tiver es-
tudado as mesmas ciências, e então não lhe será necessária a voz do
mestre, para se instruir na história" (Estatutos, 1772, p. 170).
A medida que os alunos avançassem no curso, recomendava-
se que se fossem instruindo na história; a razão para isso era assim
justificada:
"a primeira coisa a fazer quem se dedica a entender o progresso das
Matemáticas é instruir-se nos descobrimentos antecedentemente fei-
tos, para não perder tempo em descobrir, pela segunda vez, as mes-
mas coisas, nem em trabalhar em tarefas e empresas já executadas"
(Estatutos, 1772, p. 170).
É difícil sabermos se essas recomendações foram ou não colo-
cadas em prática e, se a História da Matemática começou a ser en-
sinada ainda no século XVIII, em Portugal. Todavia, é claro que se
toma muito difícil abordá-la em algum nível de profundidade, sem
que tenhamos um suporte de conhecimentos matemáticos específi-
cos.
A lei biogenética, formulada pelo alemão E. Haeckel, afirma
que "a ontogênese recapitula a filogênese", o que, em outras pala-
vras, quer dizer que o indivíduo repete as principais etapas do de-
senvolvimento humano. Em Pedagogia a lei básica é análoga. Her-
bert Spencer em sua obra Educação intelectual, moral e fisica de
1885, formulou o seguinte argumento:
"A educação das crianças deve harmonizar-se, quer no modo
quer na ordem, com a educação do gênero humano considerado his-
toricamente. Por outras palavras, o genesis da inteligência no indiví-
duo, deve seguir o mesmo curso do genesis da inteligência da raça.
Logicamente, este princípio pode ser considerado como já expresso
por implicação, porque estes dois processos de evolução devem con-
formar-se as mesmas leis gerais da evolução acima descritas, e, por-
tanto, concordar uma com a outra" (Spencer, 1885, p. 122).
Em 1913, uma visível e forte influência dessas idéias ocorreu
no trabalho de Benchara Brandford. Ele representou num esquema
a evolução da Matemática comparando-a com a evolução do ho-

A História da Matemática e os cursos de forrnaçáo de professores 131


mem, nas suas diferentes fases de aprendizado. Esse esquema foi
publicado na Mathematical Gazette e reproduzido por John Fauvel
no periódico For the learning of mathematics, em 1991. Fauvel
acredita que o modelo proposto por Benchara é muito inocente e
difícil de ser sustentado, embora ele tenha sido considerado, na
época, um modelo poderoso e útil.
Outro defensor do método biogenético foi o matemático Félix
Klein (1849-1925). Ele acreditava que esse método deveria ser
utilizado no ensino da Matemática, bem como no ensino de qual-
quer disciplina. Argumentava:
"se deveria conduzir a juventude, levando em conta sua natural ca-
pacidade e disposição [...I seguindo o mesmo caminho pelo qual a
humanidade tem ascendido desde seu estado primitivo até os altos
cumes do conhecimento científico" (Klein, p. 399-400).
Segundo Ferreira, o princípio genético foi um fator norteador
do ensino da Matemática, mas após a Segunda Guerra Mundial este
foi expulso das correntes educacionais.
Por ocasião do I11 Congresso Internacional de Matemática, em
1904, na cidade de Heidelberg, na Alemanha, surgiu uma recomen-
dação forte para a introdução da História da Matemática como dis-
ciplina indispensável à formação de professores:
"Considering, that the history of mathematics nowadays con-
stitutes a discipline of indeniable importante, that its benefit - from
the directly mathematical viewpoint as well as from the pedagogical
one - becomes ever more evident, and it is, therefore, indispensable
to accord it the proper position within public instruction"' (Schu-
bring, 1999, p. 1).
Segundo Schubring, uma recomendação semelhante a esta já
aparecera em eventos anteriores. Todavia, pouco se sabe sobre a
implementação de tais recomendações. Alguns matemáticos, entre
eles Félix Klein, continuaram a dedicar alguma atenção à História

Considerando que, nos nossos dias a História da Matemática constitui-se numa


disciplina de inegável importância, e que seu benefício - tanto do ponto de vista di-
reto da Matemática como do pedagógico - torna-se mais e mais evidente, é, portan-
to, indispensável outorgar-lhe uma posição própria na instrução pública. (tradução
livre).

132 Formação de professores de Matemática


da Matemática, e a recomendá-la no ensino. Todavia, Klein chama-
va a atenção para a falta de conhecimentos históricos por parte dos
professores, o que dificultava a propagação do método biogenético.
Com o fim de combater essa lacuna, ele utilizou muito a História da
Matemática na obra que escreveu Matemática elementar desde um
ponto de vista superior, publicada originalmente em alemão. Assim
se expressava:
"[ ...I tive muito gosto em deter-me em considerações históricas em
muitas passagens dessas lições; assim pode-se ver quão lentamente
se formam todas as idéias matemáticas, como surgem de uma forma
confusa, que poderia dizer-se a partir de procedimentos, e só depois
de um longo desenvolvimento chega a tomar a força rígida e crista-
lizada de uma exposição sistemática" (Klein, p. 400).
O historiador Dirk Struik justifica a relevância do estudo da
História da Matemática como uma forma de entendermos melhor as
crenças de estudantes e professores de Matemática. Essa disciplina
tem, segundo Struik, as seguintes funções:
O satisfaz o desejo de muitos de nós de sabermos como as
coisas em Matemática se originaram e se desenvolveram;
O o estudo de autores clássicos pode oferecer uma grande
satisfação em si mesmo, mas também pode ser um auxi-
liar no ensino e na pesquisa;
O ajuda a entender nossa herança cultural, não somente
através das aplicações que a Matemática teve e ainda tem
na Astronomia, na Física e em outras ciências, mas tam-
bém devido às relações com campos variados como a Ar-
te, a Religião, a Filosofia e as técnicas artesanais;
O proporciona um campo onde o especialista em Matemáti-
ca e os de outros campos da ciência podem encontrar inte-
resse comum;
O oferece um pano de fundo para a compreensão das ten-
dências em Educação Matemática no passado e no presen-
te;
O podemos ilustrar com historietas o seu ensino, para torná-
10 mais interessante.

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 133


O historiador Otto Becken elege a história como uma entre as
cinco componentes necessárias para uma melhor compreensão dos
conhecimentos matemáticos:
R Resolução de problemas, modelagem e aplicações.
R Habilidades técnicas - com o uso das calculadoras e com-
putadores.
R Compreensão de conceitos - argumentação, justificação e
provas.
O Habilidades de comunicação - com linguagem e símbolos
- notação e etmologia.
O Cultura e História - epistemologia.
Ele afirma que há necessidade dessas componentes estarem de
forma balanceada no currículo da escola. Assim, habilidades técni-
cas, compreensão de conceitos, resolução de problemas, ferramen-
tas de tecnologia e insights históricos deveriam estar relacionados,
de maneira razoável, às áreas de conteúdos específicos. No currícu-
lo, os conteúdos específicos dividem-se em quatro áreas: Geome-
tria, Álgebra, funções e probabilidades. Dessa forma, a componente
Cultura e História tem como metas: o desenvolvimento de alguns
temas principais do desenvolvimento das quatro áreas específicas; a
explicação de desenvolvimentos históricos de um conceito ou teo-
rema matemático-chave; as raízes da Matemática nas diferentes
culturas; a importância para a nossa cultura técnico-científica; as
qualidades estéticas da Matemática e a relação entre Matemática e
Arte.
Assim sendo, segundo Becken, o currículo proposto pela Uni-
versidade de Oslo considera as dimensões cultural e histórica da
Matemática muito mais como uma parte integradora das próprias
áreas específicas do que como uma inspiração.
Na Itália, segundo a historiadora Fulvia Furunghetti, há uma
longa tradição nos estudos de História da Matemática. Ela cita,
inclusive, que há uma orientação no currículo nacional, para uma
abordagem segundo uma perspectiva histórica, desde a série cor-
respondente aos alunos de 11 a 14 anos de idade. Para essa série há
a seguinte observação no currículo: "O professor deve orientar os
estudantes para uma primeira reflexão sobre a dimensão histórica

134 Formação de professores de Matemática


das ciências" (Furunguetti, 1995). Já para os alunos do ensino mé-
dio, correspondente às idades de 14-16 anos, a orientação é de que
"os estudantes devem ser capazes de colocar uma perspectiva histó-
rica naqueles momentos significativos da evolução do pensamento
matemático" (Furunguetti, 1995).
Todavia a autora argumenta que, embora existam estas inten-
ções fortes no currículo nacional oficial, nem sempre há uma prepa-
ração adequada dos professores na área de História da Matemática.
Podemos comparar essa situação com o caso brasileiro, afirmando
que não basta que os parâmetros curriculares nacionais (PCN)
apontem sobre a importância da utilização dessa disciplina em sala
de aula, sem que tenhamos professores preparados para tal. Furun-
ghetti afirma, ainda, que a constatação da falta de preparo dos pro-
fessores não é mera opinião, mas apoia-se em dados. Nos cursos de
capacitação que tem oferecido aos professores, nos últimos anos,
ela solicita aos participantes responderem a um questionário e uma
das questões é a seguinte: "Quais os matemáticos que têm dado
contribuições relevantes ao desenvolvimento da Matemática? Liste
de dois a cinco nomes". Os resultados que emergem mostram que a
cultura histórica dos professores está muito relacionada à sua práti-
ca escolar, e, por esta razão, os nomes de Pitágoras e Euclides apa-
recem numa posição destacada. Concordamos com a autora, porque
já realizamos enquete semelhante com professores em cursos de
especialização em Educação Matemática e obtivemos resultados
análogos; o matemático mais mencionado foi Pitágoras, seguindo-
se Euclides, Tahles e Arquimedes, pessoas essas que fazem parte da
História da Matemática na antiguidade.' Dificilmente emergem
nomes de matemáticos do século XX e nenhum nome de mulher
Matemática é referido.

A lista completa de nomes de matemáticos citados pelos professores pesquisados


por Furunghetti é a seguinte: Pitágoras, Euclides, Leibniz. Gauss, Lagrange, Russell,
Einstein, Newton, Descartes, Laplace, Hilbert, Euler, Boyle-Meriotte, Venn, Bour-
baki, Riemann, AI-kwarizmi, Thales, Cantor, Cauchy, Bernoulli, Lombardo-Radice.
Em contrapartida, aqueles nomes citados pelos professores brasileiros são os seguin-
tes: Pitágoras, Thales, Euclides, Arquimedes, Descartes, Newton, Legendre, Einste-
in, Polya, Hilbert, Félix Klein, Gauss, D'Alembert, Fermat.

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 1 35


Retomando a Fauvel, segundo ele, não é difícil encontrarmos
boas razões para justificar o uso da História no ensino da Matemá-
tica. Ele aponta algumas dessas razões:
O Ajuda a aumentar a motivação para a aprendizagem.
O Dá 2Matemática uma face humana.
O Mostra aos alunos como os conceitos são desenvolvidos,
auxiliando sua compreensão.
O Muda a percepção dos alunos sobre a Matemática.
O Fornece oportunidades.
Li Ajuda a explicar o papel da Matemática na sociedade.
Todavia, segundo o autor, a utilização da História da Matemá-
tica em sala de aula não é tarefa fácil. Há necessidade de se incluir
na formação do professor, na área de Educação Matemática, tanto a
História da Matemática quanto uma prática para o seu uso em sala
de aula. Aqui, é importante fazer a distinção entre usar a História da
Matemática no ensino da Matemática e ensiná-la como um objeto
de conhecimento. O simples estudo dessa disciplina não fornece ao
professor condições para introduzi-la em sala de aula, como uma
ferramenta auxiliar no ensino da Matemática.
Antonio Miguel(1997) afirma que tem sido muito comum nas
discussões sobre as potencialidades pedagógicas da História da
Matemática encontrarmos argumentos positivos, que reforcem o
seu uso, muito mais do que argumentos questionadores. Um desses
argumentos questionadores diz respeito à ausência de literatura
adequada. Para Grattan-Guinness - o uso da História da Matemáti-
ca em sala de aula seria difícil para o professor, devido à falta de
livros especializados que possam dar subsídios para as aulas.
Os outros argumentos contestadores seriam: a natureza im-
própria da literatura disponível, o elemento histórico como um fator
complicador, que em vez de facilitar a aprendizagem, acabaria por
dificultá-la ainda mais para os alunos e a ausência, na criança, do
sentido de progresso histórico. As questões levantadas por Miguel
são pertinentes e merecem ser discutidas pelos pesquisadores de
Educação Matemática, com o intuito de buscar soluções para resol-
ver os problemas e também como uma forma de entender melhor as
limitações da utilização da História da Matemática em sala de aula.

136 Formação de professores de Matemática


Segundo Grattan-Guinness, a História da Matemática deve ser
necessariamente uma componente no ensino da Matemática em
nível universitário, mas não necessariamente em nível das escolas
do ensino fundamental e médio. Nessas escolas ele acredita que sua
função é inútil. Ele apresenta um argumento psicológico para essa
inutilidade e ineficiência: "mesmo pondo de lado os inevitáveis
assuntos técnicos envolvidos, as crianças têm pouco ou nenhum
sentido do progresso histórico..." (apud Miguel, p.98). Concordan-
do ou não com Grattan-Guinness, a questão é que as pesquisas so-
bre a utilização da História da Matemática nas escolas é ainda inci-
piente. As referências a essa disciplina são extremamente escassas
nos livros didáticos utilizados nas escolas tanto do ensino funda-
mental quanto do médio. Alguns autores de livros-texto a utilizam
como anedotas ou lendas, retratando o matemático como um perso-
nagem curioso ou bizarro, muito mais para divertir o aluno do que
para contribuir para a sua aprendizagem.
O matemático brasileiro Leopoldo Nachbin (1922-1993), em
palestra proferida na Quinta Conferência Interamericana de Educa-
ção Matemática em 1979, apontava um argumento reforçador para
o conhecimento de História da Matemática pelo professor. Foi atra-
vés do seu estudo que ele constatou que
"os alunos estão em companhia muito ilustre ao cometer erros, ou
seja, que determinados deslizes que os alunos podem praticar hoje já
haviam ocorrido em textos de eminentes matemáticos de outrora.
Naturalmente, o ponto da questão aí é que aquilo que deve ser fácil
para nós hoje, pode ter sido muito difícil para matemáticos de gera-
ções anteriores" (Nachbin, 1996, p. 106).
Ele conta uma experiência por que passou quando era aluno do
matemático italiano Gabrielle Mammana, em 1939. Seu professor foi
condescendente quando ele cometeu um equívoco, devido a um ra-
ciocínio precipitado sobre a convergência uniforme. Esse episódio
marcante em sua vida fez com que, posteriormente, na condição de
docente, ele se tomasse mais compreensivo quando seus alunos apre-
sentavam dificuldades em entender certas sutilezas Matemáticas e
mesmo com aqueles que nunca as entenderam. O erro passou a ser
visto por Nachbin como algo natural, fazendo parte de um processo.
As sutilezas Matemáticas só começam a ser relevantes quando já

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 137


passamos por um processo evolutivo e o nosso espírito já alcançou
um certo nível de amadurecimento. Como diz Grattan-Guinness,
muitas vezes nós damos respostas a perguntas que os alunos não
formularam e esperamos que eles entendam isso.

Histórico no Brasil

Até o momento, pouco se conhece sobre a história dessa disci-


plina no Brasil. Quando começou o interesse pela História da Mate-
mática no Brasil? Quais são as relações dessa disciplina com a Edu-
cação Matemática? Qual a sua importância nos cursos de formação
de professores? Qual a possibilidade da História da Matemática tor-
nar-se uma disciplina significativa nos cursos de formação de profes-
sores de Matemática?

A História da Matemática nos livros-texto

Temos alguns registros esparsos da História da Matemática em


livros-texto do século passado. Em 1884, no livro intitulado Curso
Elementar de Matematica - Arithmetica dos irmãos Aarão Reis e
Lucano Reis, verificam-se várias referências à História da Matemáti-
ca em notas de rodapé. Isso não era muito comum nos livros-texto da
época.
Os assuntos abordados, nas notas de rodapé, eram, em geral,
curtas referências biográficas de matemáticos como: Viète, Condor-
cet, Harriot, Recorde, etc., ou explicações sobre a origem de termos
ou notações.
"A palavra potência é devida a Diophante, célebre matemático
da antiguidade, que floresceu, no século IV da era cristã, em Ale-
xandria, e ao qual deve a humanidade os primeiros lineamentos ge-
rais da álgebra, mais tarde coordenados e sistematizados pelo ilustre
Viète do século XVII" (Reis, 1892, p. 127).
Em 1892, Eugenio Raja Gabaglia escreveu um longo comen-
tário sobre a obra de Aarão e Lucano, no Jornal do Comércio e que
foi incorporado à segunda edição da obra que surgiu em 1894. Ga-
baglia criticou algumas notas históricas:

138 Formação de professores de Matemática


"[ ...I Entre os aperfeiçoamentos comuns às diversas partes deste tra-
balho, há um que convém especificar: é um pequeno e simples esbo-
ço biográfico, espalhado em notas por todo o livro, sobre os mate-
máticos cujas descobertas auxiliaram o progresso da aritmetica; é de
sentir, porém, o que demonstraremos com exemplos, que idéias pre-
concebidas e fontes pouco seguras tenham infelizmente induzido a
enganos e injustiças que estão em desacordo com a imparcialidade,
que é talvez a virtude principal do historiador. [...I Em relação à ori-
gem atribuída aos diversos sinais de operações, cumpre-me dizer:
1" que os sinais + e - antes de usados, em 1522, por Cristovão Ru-
dolff se encontram em 1489 na Aritmética Mercantil de Widman;
29 que o sinal x foi empregado no mesmo ano (1631) por Hamot e
por Outghtred; 39 que Hoefer não tem razão - o que aliás não é raro
- quando diz que usou-se expoente pela primeira vez em 1585 em
Simão Stevin, pois em 1572 Bombelli já usou sinal para expoente
[...I" (Gabaglia, apud Reis, p. xi).
O mesmo crítico da obra dos autores antes referidos, foi o au-
tor do primeiro livro dedicado à História da Matemática - Eugenio
Raja Gabaglia, professor do Colégio Pedro 11, no Rio de Janeiro.
Ele foi publicado em 1899. Trata-se de uma obra sobre a Matemáti-
ca egípcia, que analisa principalmente o texto do Papiro Rhind. O
autor estudou as obras de historiadores europeus sobre o Papiro
Rhind, principalmente o livro de Eisenloch intitulado Ein mathema-
tisches Handbuch der alten Aegypter, que foi publicado em Leipzig
em 1877. Vale lembrar que este tema era de conhecimento recente,
inclusive na Europa, e a sua divulgação estava começando a acon-
tecer nos demais países.
Os primeiros artigos de Gabaglia surgiram no Jornal da Escola
Politécnica, no Rio de Janeiro, em 1897. Posteriormente, esses arti-
gos foram transformados em livro. Os assuntos do livro incluíam o
histórico do Papyro Rhind, bem como o conteúdo do Papyro Rhind,
a aritmética do Papyro, a álgebra do Papyro, a geometria do Papyro
e a etimologia do vocábulo pirâmide. Além dos estudos sobre a
Matemática egípcia, Gabaglia escreveu outros artigos sobre a His-
tória da Matemática.
Em 1902, surgiu a obra Curso Elementar de Matemática: Á1-
gebra, do positivista Aarão Reis, professor da Escola Politécnica do
Rio de Janeiro. O autor optou por incluir as referências históricas

A História da Matemática e os cursos de formaçáo de professores 139


em notas de rodapé. Já na primeira página, quando introduz as no-
ções elementares, inclui longo texto sobre a origem da palavra Á1-
gebra. Nas páginas seguintes, continua abordando a evolução da
Álgebra, a introdução das notações e fazendo referências a obras
sobre a História da Matemática, como a de Moritz Cantor Vorle-
sung uõer Geschichte der Mathematik. Nessas notas apresenta tam-
bém curtas biografias: D'Alembert, Lagrange, Newton, etc. Algu-
mas vezes as notas de rodapé são tão extensas que quase se confun-
dem com o texto propriamente dito. O livro apresenta um número
expressivo de notas de rodapé.
Em 1911, no livro Lições de Álgebra Elementar de Joaquim
Lisboa, também professor do Colégio Pedro 11, encontramos refe-
rências à História da Matemática em notas no final de capítulos.
Uma dessas notas, no capítulo sobre polinômios, ocupa cinco pági-
nas, e assim como na obra de Aarão procura dar uma visão da evo-
lução da Álgebra e dos matemáticos que trabalharam para o seu
desenvolvimento. O autor enfatiza muito a história das notações
algébricas.
Vários anos após, em 1929, Manuel Amoroso Costa publicou
o interessante livro As idéias fundamentais da Matemática, primei-
ro livro a abordar sistematicamente questões sobre a Filosofia da
Matemática. Nessa obra, o autor faz também algumas incursões na
história da Matemática.
Em 1930, na obra Curso de Matemática, escrita pelos profes-
sores: Euclides Roxo, Cecil Thiré e Mel10 e Souza, composta de
cinco volumes, dedicada ao ensino ginasial, vê-se uma grande pre-
ocupação de incluir a História da Matemática, entre os conteúdos.
Os autores tiveram a preocupação de esclarecer no prefácio do pri-
meiro volume a razão da sua inclusão no texto:
"Sem fugir ao programa oficial, que seguimos pari passu, pro-
curamos abordar as diferentes partes da Aritmética, Álgebra e Geo-
metria, em conjunto, com simplicidade e máxima clareza, sem a
confusão de assuntos. Fizemos acompanhar cada capítulo de um pe-
queno trecho de leitura capaz de despertar no jovem estudante o in-
teresse pelos diversos fatos da História da Matemática e pela vida
dos grandes sábios que colaboraram no progresso dessa ciência"
(Roxo, Thiré e Souza, p. xiii).

140 Formação de professores de Matemática


Os temas históricos abordados aparecem sempre no final de
cada capítulo, com o título "leitura". Além disso, várias observa-
ções e referências bibliográficas aparecem em notas de rodapé.
Vale ressaltar, que alguns dos textos de leitura não foram escritos
pelos autores. Uns tratavam-se de traduções e outros foram solicita-
dos a professores,"ue escreveram as notas especialmente para o
livro-texto.
Este é o livro didático mais fortemente impregnado de Histó-
ria da Matemática que identificamos. A partir daí, as referências
históricas são escassas ou inexistentes nos livros-texto.
A crença de que a história da Matemática contribui para
despertar e aumentar o interesse do aluno pela Matemática pode ser
vista no texto do Decreto 19.890 de 1931, da reforma do ensino
secundário:
"E, por fim, com o intuito de aumentar o interesse do aluno, o
curso será incidentalmente entremeado de ligeiras alusões a proble-
mas clássicos e curiosos e aos fatos da História da Matemática, bem
como a biografia dos grandes vultos desta ciência" (Decreto 19.890,
1931, apud Miorim, p. 96).
Se de fato tais sugestões chegaram a ser implementadas, não
temos condições de assegurar.
Não temos registro de outras obras dedicadas exclusivamente
à História da Matemática até 1968, quando surgiu o livro de Hélio
Carvalho d' Oliveira Fontes, outro professor do Colégio Pedro 11,
intitulado No Passado da Matemática. Essa obra é quase desconhe-
cida, e, como o livro de Gabaglia, está esgotada. Dificilmente pode
ser encontrada nas bibliotecas das universidades brasileiras.
O livro de Fontes é o resultado de várias palestras que proferiu
nos cursos de Altos Estudos do Colégio Pedro 11. Os temas aborda-
dos referem-se principalmente à Matemática no Egito e Babilônia:
contagem, sistemas de numeração, operações matemáticas, valores
aproximados, problemas do segundo grau, geometria na Mesopotâ-
nia e frações. Particularmente interessantes são os textos sobre a

Alguns autores que colaboraram com as notas históricas foram: Antenor Nascentes,
Escragnole Dona, Manuel Amoroso Costa, Pedro A. Pinto, Leonel Franca, Agliber-
to Xavier, Gomes Teixeira.

A História da Matemhtica e os cursos de formação de professores 141


Matemática indígena, em que autor inclui o sistema de contagem
dos índios bakairis do Xingu, pesquisados pelo alemão Karl von
Steinen, dos índios bororós do Mato Grosso e dos índios kaiagan-
gues do Rio Grande do Sul.
Segundo o autor, para contar grãos de milho, o baikiri começa
agrupando-os de dois em dois. "O primeiro par é contado com faci-
lidade pois há dois nomes de número: tokale = um e ahage = dois.
Levanta o dedo mínimo da mão esquerda, dizendo: tokale; e após, o
dedo seguinte dizendo: ahage" (Fontes, 1969, p. 10) Os números
até seis são obtidos pela combinação dessas palavras. Assim, te-
mos:
1 = tokale
2 = ahage
3 = ahage tokale
4 = ahage ahage
5 = ahage ahage tokale
6 = ahage ahage ahage
"Ao chegar ao número seis, o bakairi inverte as mãos, levanta
os dedos da mão direita na mesma ordem que levantara os da es-
querda, [...I limitando-se a repetir a palavra mera, que significa este.
Manifesta-se o pensamento aritmético através da mímica, estabele-
cendo-se uma correspondência entre os objetos e os dedos" (Fontes,
p. 10).
Segundo o autor, os dedos constituíram o primeiro ábaco que
o homem utilizou. Além disso, os artelhos foram e continuam a ser
utilizados por muitas tribos. Os aborígines brasileiros de língua tupi
contam, também, com o auxílio dos dedos e artelhos. O seguinte
quadro foi extraído da página 19 e mostra a correspondência entre
os números na língua tupi e portuguesa.

142 Formação de professores de Matemática


Quadro 1
Os números n a língua tupi

Fonte: Fontes, 1969, p. 19.

O destaque dado, aqui, à obra de Fontes tem uma razão de ser.


Este é o único livro de História da Matemática, escrito por autor bra-
sileiro, que apresenta a Matemática indígena não apenas de tribos
estrangeiras, mas também de brasileiras. Infelizmente a obra de Fon-
tes não inclui referências bibliográficas, o que dificulta muito o aces-
so às fontes que o autor utilizou. De qualquer maneira, esta obra pu-
blicada pela Fundação Getúlio Vargas mereceria ser reeditada devido
ao seu inegável valor.
Os livros didáticos destinados ao ensino da Matemática nos
cursos superiores dificilmente incluíam notas históricas entre os con-
teúdos apresentados. Uma das raras obras, na década de sessenta, a
incluir tais notas foi a de Luiz Henrique Jacy Monteiro intitulada
Elementos de Álgebra. No capítulo 111, o autor apresenta várias notas
históricas referentes aos conceitos e resultados sobre os números
inteiros: o surgimento dos números de Mersenne; as contribuições de
Euclides, Gauss, Zermelo e Lindemann para o teorema fundamental
da Aritmética; o conceito de máximo divisor comum em Euclides;
problemas diofantinos; o conceito de congruência com Gauss em
1801; os números perfeitos segundo Euclides e Cataldi; as contibui-
ções de Fermat, Descartes, Mersenne, Lucas, Lehmer, Riesel e Hur-
witz para a teoria dos números.

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 143


No início da década de setenta, surgiu o livro de Leopoldo
Nachbin intitulado Zntrodu~ãoà álgebra. Nele o autor relata que
essa obra fora originalmente divulgada em forma de apostila. Em
1951, ele ministrou, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e na
Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, cursos de Álgebra
para estudantes universitários e professores do ensino secundário. A
redação de suas notas de aula foram transformadas em apostilas que
passaram a ser utilizadas em várias instituições de ensino do País. O
estilo que ~ a c h b i nassumiu difere de outros livros-texto de Álge-
bra. Trata-se de um texto com comentários esclarecedores de defi-
nições, com exemplos simples e contendo, na introdução de cada
capítulo, um resumo da evolução da teoria a ser desenvolvida. Se-
gundo suas palavras, "[ ...] procurei ser intuitivo, informal, correto e
claro[ ...I procurando imitar a ordem histórica no que ela tem de
bom, como se o leitor estivesse redescobrindo a Matemática"
(Nachbin, 1971, prefácio). Esse estilo, infelizmente é raramente
encontrado nos livros modernos.
Nos atuais livros-texto para o ensino da Matemática, a história
aparece raramente, e quando aparece, ela está em notas de rodapé
ou destacada como uma anedota.

A História da Matemática nos currículos de gradua~ão

Em 1934, quando foi criado o curso de Matemática na mais


tradicional universidade brasileira, a Universidade de São Paulo
(USP), curiosamente, estava previsto no cum'culo, a disciplina de
História da Matemática. Não conseguimos, até o momento, desco-
brir se ela realmente chegou a ser ofertada e, se isso aconteceu, até
quando ela permaneceu no currículo.
Em 1968, por ocasião de uma reforma curricular no Instituto
de Matemática (IME), a disciplina História da Matemática passou a
fazer parte do elenco de disciplinas obrigatórias do currículo da
licenciatura de Matemática da USP. Todavia, como relata Elza
Gomide, a oferta dessa disciplina passou por várias dificuldades. A
primeira delas foi a ausência de bibliografia em língua portuguesa e
a segunda e fundamental, a falta de professores preparados para

144 Formação de professores de Matemática


ministrá-la. Para sanar a primeira dificuldade, Elza Gomide tradu-
ziu o livro History of Mathematics de Carl Boyer, que foi editado
em 1972. Essa obra passou a ser utilizada como livro-texto na dis-
ciplina de História da Matemática, ofertada na USP.
Em 1985, membros da Socidedade Brasileira de Matemática
(SBM) e da Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Compu-
tacional (SBMAC) reuniram-se para tratar de assuntos referentes ao
ensino de graduação e política universitária. Emitiram um documento,
sugerindo um currículo mínimo para a licenciatura em Matemática,
com as seguintes disciplinas: Cálculo Diferencial e Integral; Geomehia
Analítica; Álgebra Linear; Estruturas Algébricas; Física; Cálculo das
funções de uma variável complexa; Equações Diferenciais Ordinárias;
Análise Real; Geometria Euclidiana; Álgebra e Aritmética elementa-
res; Probabilidade e Estatística; Computação. Nesse elenco mínimo,
não aparece a História da Matemática. Entretanto, lê-se: "recomenda-
se fortemente a inclusão de uma das seguintes optativas: História da
Matemática, resolução de problemas e modelagem matemática" (p.
5). As ementas das disciplinas pertencentes ao currículo mínimo
foram descritas, mas para as optativas sugeria-se que deveriam "ser
estabelecidas conforme a disponibilidade e o interesse de docentes
capacitados a ministrá-las em cada instituição" (p. 7). Algumas
universidades seguiram a sugestão da SBM, reformulando seus currí-
culos e incluindo a disciplina História da Matemática. Um bom e-
xemplo disso é a Universidade Federal do Espírito Santo, que oferece
120 horas desta disciplina, no elenco das obrigatórias. A sugestão da
SBM representou um momento de conquista da importância da His-
tória da Matemática no curso de formação de professores. Gostar'a-
mos de salientar, aqui, o prestígio dessa Sociedade entre os professo-
res de Matemática, que procuram seguir suas sugestões, muito mais
talvez do que as oriundas do próprio MEC.
Atualmente existem mais de 130 cursos de licenciatura e ba-
charelado em Matemática, distribuídos entre as diferentes Institui-
ções de Ensino Superior (IES), no Brasil, quer sejam públicas ou
privadas. A maioria desses cursos de formação concentra-se na
região Sudeste (52%). Os currículos das licenciaturas e bacharela-
dos obedecem aos conteúdos mínimos previstos pelo Ministério da
Educação (MEC), mas diferenciam-se significativamente na oferta
de disciplinas.

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 145


Gráfico 1

Distribuição dos Cursos de Matemática por Região

5% Norte

Fonte: Dados coletados pela autora.

A fim de traçarmos o perfil da presença da História da Mate-


mática nos currículos dos cursos de Matemática, no Brasil, estamos
buscando informações através dos currículos das IES. Em 1998,
fizemos uma pesquisa através da aplicação de um questionário,
contendo perguntas diretamente ligadas às seguintes questões: qual
a importância da disciplina a História da Matemática no currículo?
quais as dificuldades para ofertar a disciplina? qual a bibliografia
recomendada? qual a bibliografia existente na biblioteca da institui-
ção?
Até o momento, coletamos 28 cum'culos de Instituições das
seguintes regiões do País.

146 Formaçao de professores de Matemática


Gráfico 2

Distribuição das IES pesquisadas por região do pais

42% Sudeste

Fonte: Dados coletados pela autora.

Dessas IES, 16 oferecem a disciplina História da Matemática:


13, como obrigatória e três como optativa. As demais IES não ofe-
recem a disciplina. A História da Matemática aparece com diferen-
tes denominações; além da usual, encontra-se: Evolução do pensa-
mento matemático; História das ciências exatas; Evolução da Ciên-
cia e Matemática, Tópicos de História da Matemática, Evolução da
Matemática. Em geral, ela é oferecida no final do curso, com uma
carga horária que varia entre 45 a 120 horas.
A maioria das IES, no Brasil, são da iniciativa privada. Toda-
via, relativamente à História da Matemática, ela aparece mais fre-
quentemente no currículo das IES públicas. Doze das IES que ofe-
recem a História da Matemática nos cursos de formação de profes-
sores são universidades públicas e quatro são privadas.
Considerando os dados coletados até o momento, pode-se
afirmar que houve unanimidade quanto à pergunta sobre a impor-
tância da disciplina História da Matemática - ela é muito importante
na formação de professores e, portanto, deveria ser obrigatória nos
currículos. Entre as dificuldades apontadas para oferta a disciplina

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 147


encontramos: falta de professores qualificados para ministrar a dis-
ciplina e dificuldade-de-acesso à bibliografia-e-outros materiais para
o ensino. Relativamente à questão da bibliografia existente nas
bibliotecas, as respostas são variadas. Duas IES admitiram possuir
muitos livros de História da Matemática, as demais variaram entre
suficientes, poucos ou não sabiam a quantidade deles.
Quanto aos pré-requisitos para a disciplina, eles diferem signi-
ficativamente. A maioria dos currículos não os prevê. Aqueles que
os exigem variam entre uma disciplina de Lógica Matemática, In-
trodução à Teoria dos Números, Análise ou Álgebra, enquanto que
uma das IES exige especificamente a disciplina de Álgebra I1 -
anéis e polinôrnios.
Entre as IES que oferecem a disciplina História da Matemáti-
ca, analisamos algumas ementas elou programas, e pudemos
constatar uma diversidade muito grande quanto a objetivos elenca-
dos e conteúdos previstos. A título de ilustração, vamos apresentar
os objetivos elencados por duas instituições: USP e UFRJ.
"Apresentar e propiciar aos alunos uma reflexão sobre a inser-
ção cultural da evolução dos conceitos da Matemática elementar na
história da humanidade" (Catálogo de graduação, IME-USP, 1997).
"Através do estudo da história do pensamento científico e ma-
temático, habilitar o aluno a reconhecer as características da evolu-
ção da ciência em geral e da Matemática em particular, especialmen-
te no que concerne à construção das teorias, desde os problemas que
as motivaram até a sua completa formalização" (UFRJ).
Os conteúdos das ementas variam sensivelmente. Algumas
ementas são muito detalhadas, como aquela da Licenciatura em
Matemática da USP, e outras são sucintas, como os da UFRGS.
Mas, na maioria dos casos, a ênfase é dada à história dos conteúdos
da Matemática elementar, sendo que a Matemática dos séculos XIX
e XX é relativamente pouco abordada.
Algumas instituições citam a bibliografia recomendada. Encon-
tramos os seguintes autores e títulos: Bell, E. T. Men of Mathematics;
Bell, E. T. The development of Mathematics; Boyer, C. A History of
Mathematics; Kline, Mathematical Thought from Ancient to Modern
Times; Aranha, M. L. Filosofando - Introdução à Filosofia; Boyer,
C. História da Matemática. Curiosamente, há muitas referências a

148 Formação de professores de Matemática


obras escritas e m língua inglesa, parecendo haver um desconheci-
mento-das-obras-similares já-traduzidas-porautores-brasileirose
mesmo aquelas produzidas por autores brasileiro^.^
Vale a pena examinar a lista de livros de História d a Matemá-
tica acessíveis e m língua portuguesa e espanhola:
AABOE, A. Episódios da historia antiga da Matemática. Rio de Janeiro:
Sociedade Brasileira de Matemática, 1984.
ALEXANDROV, A., KOLMOGOROV, A., LAURENTIEV et al. Lu Ma-
tematica: su contenido, métodos y signijkado. Madrid: Alianza, 1976.
ASHURST, F. G. Fundadores de las matematicas modernas. Madrid:
Alianza, 1982.
BARON, M., BOS, H. J. Curso de História da Matemática: origens e
desenvolvimento do cálculo. Brasília: Editora da UnB, 1985.
BAUMGART, John. Tópicos de História da Matemática para uso em sala
de aula. São Paulo: Atual, 1992.
BEKKEN, O. Equações de Ahmes até Abel. Rio de Janeiro: USU, GE-
PEM, 1994.
BELL, E. T. Historia de las matemáticas. México: Fondo de Cultura Eco-
nomica, 1985.
BOCHNER, S. E1 papel de lu Matemática en e1 desarrolo de lu ciencia.
Madrid: Alianza, 1991.
BOYER, C. História da Matemática. São Paulo, Edgard Blucher, Edusp,
1974.
. Tópicos de História da Matemática para uso em sala de aula.
São Paulo: Atual, 1992.
BOURBAKI, N. Elementos de historia de las matematicas. Madri: Alian-
za, 1976.
CASTRO, F. M. A Matemática no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp,
1992.
COSTA, M. As idéiasfundamentais da Matemática e outros ensaios. São
Paulo: Grijaldo, 1971.
DANTZIG, T. Número: a linguagem da ciência. Rio de Janeiro: Zahar,
1970.
DIEUDONNÉ, J. A formação da Matemática contemporânea. Lisboa:
Dom Quixote, 1990.
EVES, H. Zntrodução à História da Matemática. Campinas: Editora da
Unicamp, 1995.

Veja nas referências bibliográficas de meu artigo no Caderno CEDES 40, em que
apresentei uma resenha de livros escritos em língua portuguesa e espanhola.

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 149


. História da geometria. São Paulo: Atual, 1992.
FONTES, H. C. O. No passado da Matemática. Rio de Janeiro: Fundação
-- -
- Gettilio VargãSJY697 -

FREGE, G. Os fundamentos da aritmética. Lisboa: Imprensa Nacional1


Casa da Moeda, 1992.
GALARDA, L. et al. A evolução do cálculo através da história. Vitória:
EDUFES, 1999.
GARBI, G. O romance das equações algébricas: a história da álgebra.
São Paulo: Makron Books, 1997.
HILBERT, D. Fundamentos de lu geometria. Madrid: Publicaciones de1
Instituto Jorge Juan de Matematicas, 1953.
IFRAH, G. História universal dos algarismos. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1997. 2 v.
LINZ, R. História da Matemática. Blumenau: Ed. FURB, 1999. v. 1.
NEWTON, I. Princ+ios matemáticos de lu filosofia natural. Madrid:
Alianza Universidad, 1987.
PIAGET, J., GARCIA, R. Psicogênese e história das ciências. Lisboa:
Dom Quixote, 1987.
RADICE, L. L. A matemática de Pitágoras a Newton. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.
RIBNIKOV, K. Historia de las Matemáticas. Moscou: Mir, 1987.
SILVA, C. P. A Matemática no Brasil: uma história de seu desenvolvi-
mento. Curitiba: Editora da UFPR, 1992.
SILVA, C. M. S. A Matemática positivista e sua difusão no Brasil. Vitó-
ria: EDUFES, 1999.
SINGH, Simon. O último teorema de Fermat. Rio de Janeiro e São Paulo:
Record, 1997.
STEWART, I. Os problemas da Matemática. Lisboa: Gradiva, 1995.
STRUIK, D. História concisa das Matemáticas. Lisboa: Gradiva, 1989.
TAHAN, Malba. As maravilhas da Matemática. Rio de Janeiro: Editora 1983.
WESTFALL, R. A vida de Isaac Newton. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1995.
Embora a listagem acima deixe entrever que existe um núme-
ro razoável de obras publicadas em português e espanhol, é bom
deixar claro que elas não são facilmente encontráveis em livrarias e
mesmo bibliotecas. Algumas delas estão esgotadas e só podem ser
obtidas em boas bibliotecas. Para o leitor em geral, o acesso a essa
bibliografia continua sendo difícil e ele muitas vezes desiste do
estudo devido à escassez de fontes.

150 Formação de professores de Matemática


A maioria das IES consultadas respondeu que a disciplina de
Históriada-Matemática-deveweroferecida nos cursos de licen-
- -

ciatura; poucas foram aquelas que responderam que, além da licen-


ciatura e bacharelado, a disciplina deveria ser oferecida nos cursos
de mestrado.
A maioria dos cum'culos distingue as disciplinas em: obriga-
tórias e opcionais. Entre as obrigatórias, quase que como uma regra
geral, estão disciplinas como: Álgebra, Cálculo Diferencial e Inte-
gral e Geometria. As disciplinas optativas variam muito, dependen-
do de cada curso, entre elas pode estar a História da Matemática,
Topologia ou Cálculo Avançado.

Quadro 2
A disciplina de História da Matemática
nos currículos das licenciaturas em IES, no Brasil

A História da Matemática e os cursos de forrnaçao de professores 151


Universidade Nordeste Pública
Estadual de
Feira de
Santana
PUCRJ Sudeste Privada
informa ão
' Além de uma disciplina obrigatória, há uma oferta de outra optativa, com duraçáo de 60 horas.
Fonte: Dados coletados pela autora

Esse é um quadro que permite mostrar a situação da disciplina


nas IES que a incluem no currículo. Ele não retrata a situação geral
da disciplina nos cursos, uma vez que esses ultrapassam uma cente-
na em todo o País.
Em 1996, o Ministério da Educação (MEC) iniciou uma ava-
liação nacional dos cursos de graduação do País. Este exame, reali-
zado no final do curso, passou a ser conhecido como "Provão". Em
1998, foi realizado o primeiro exame para os cursos de Matemática

152 Formação de professores de Matemática


do país. Entre os conteúdos avaliados, além daqueles específicos de
M a t e m á t i c a ; - e s t â t r i t m i n ~ 1 u i d 0 ~ t ~ c m m proble-
õ~~e
mas, modelagem e História da Matemática. A exigência do tema
História da Matemática surpreendeu a muitos estudantes e professo-
res porque essa disciplina não estava incluída nos conteúdos míni-
mos exigidos pelo MEC para os cum'culos de Matemática.
Nos atuais Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC, para a
disciplina de Matemática, no ensino fundamental, observa-se uma
recomendação no sentido de que o professor procure apresentar os
conceitos, dentro de uma visão histórica. São elencados quatro re-
cursos para se "fazer Matemática" na sala de aula: 1) resolução de
problemas; 2) História da Matemática; 3) tecnologias da informa-
ção: calculadoras e micro-computadores; 4) jogos.
Especificamente à História da Matemática os parâmetros
afirmam:
"A História da Matemática, mediante um processo de transpo-
sição didática e juntamente com outros recursos didáticos e metodo-
lógicos, pode oferecer uma importante contribuição ao processo de
ensino e aprendizagem em Matemática. Ao revelar a Matemática
como uma criação humana, ao mostrar necessidades e preocupações
de diferentes culturas, em diferentes momentos históricos, ao estabe-
lecer comparaCões entre os conceitos e processos matemáticos do
passado e do presente, o professor tem a possibilidade de desenvol-
ver atitudes e valores mais favoráveis ao aluno frente ao conheci-
mento matemático. [...] Em muitas situações, o recurso à História da
Matemática pode esclarecer idéias Matemáticas que estão sendo
construídas pelo aluno, especialmente para dar respostas a alguns
porquês e, desse modo, contribuir para a constituição de um olhar
mais crítico sobre os objetos de conhecimento."
Todavia, essa referência à História da Matemática é muito va-
ga. O texto procura justificar o "porquê" de usá-la, mas não respon-
de à questão crucial para o professor que é o "como" usar a História
da Matemática em sala de aula. O livro-texto que o professor utiliza
em sala de aula raramente inclui tópicos referentes a essa disciplina.
Os dados coletados, até o momento, deixam entrever que es-
tamos ainda numa situação inicial sobre a compreensão da proble-
mática - Relações entre a História da Matemática e a Educação

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 153


Matemática. Algumas contradições são visíveis como: a exigência
do conhecimento da História da-Matemática,mos~examesnacionais
para os futuros professores de Matemática e a falta deles nos conte-
údos mínimos do MEC; a recomendação de utilização da História
da Matemática nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemá-
tica e a falta de preparação dos professores para fazerem uso efetivo
desse conhecimento em sala de aula.

O que pensam os professores e estudantes


de Matemática sobre a relevância da disciplina
História da Matemática nos cursos
de formação de professores?

Por ocasião do III Seminário Nacional de História da Matemá-


tica, em março de 1999, foi levantada esta questão aos participan-
tes. Dos 129 que responderam à avaliação, 46 eram estudantes de
graduação e 83 professores de Matemática do ensino fundamental,
médio e superior. Destes, 90% responderam à pergunta, e com ex-
ceção de uma pessoa, julgaram que esta disciplina é importante à
formação do futuro professor, justificando-se a sua inclusão no
cum'culo.
As respostas à questão foram categorizadas da seguinte ma-
neira:
O Sua relevância está vinculada a uma melhor compreensão
da própria Matemática (32%)
O É relevante porque pode ser aplicada em sala de aula (27%)
O Sua importância está vinculada à formação do professor
(26%)
O É essencial ou fundamental, mas não justificou sua resposta
(14%)
O Motivadora da pesquisa (1%)
A fim de explicitar o enquadramento das concepções de estu-
dantes e professores quanto ao papel da História da Matemática nos
cursos de formação de professores, vamos apresentar essas catego-
rizações com as próprias afirmações registradas pelos participantes.

154 Formação de professores de Matemática


Sua relevância está vinculada a uma melhor compreensão
da própriamatemática.
- -

Aqueles que defendem essa opinião, acreditam que o conhe-


cimento do passado dessa ciência ajuda a atender à situação presen-
te. Além disso, a compreensão de sua história seria essencial para
compreender a própria Matemática, para perceber a sua humanida-
de e o seu significado. Segundo as opiniões manifestadas:
"Fundamental, pois sem a qual a Matemática fica cega e de-
sempenha um papel de cálculos sem significado".
"É fundamental, afinal como estudar algo sem antes saber a
sua história?"
"Contextualizar historicamente o que estudamos hoje, sua im-
portância para o desenvolvimento da Matemática".
"Importantíssima, pois o saber de onde vem e como começa tu-
do, concretiza e aprimora a idéia da Matemática como humanidade".
"Somente a partir do conhecimento da história conhecemos de
fato a Matemática".
"É muito importante para estabelecer uma relação do passado
com o presente e fazer previsões para o futuro".
"Considero importantíssimo, pois o prazer do ser humano em
fazer bem qualquer atividade está no conhecimento histórico do pro-
cesso de construção do saber".
"É de extrema importância, pois com a história, os conteúdos
não aparecem desvinculados".
Percebe-se nessa fala de alunos e professores um enfoque evo-
lucionista da História da Matemática. Os resultados do passado
devem ser conhecidos e trazidos para o presente como uma forma
de entender melhor esse presente. Conforme Smiik, "O evolucionis-
ta vê a Matemática, e as ciências em geral, como um estado preli-
minar de uma viagem contínua de descobertas, começando no pas-
sado e continuando até os dias de hoje, criando sempre sabedoria e
entendimento crescentes". (Struik, 1985, p. 200)

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 155


É relevante porque pode ser aplicada em sala de aula.
A relevância é atribuída à possibilidade de aplicação-desse
conhecimento em sala de aula, quer seja como uma fonte motivado-
ra para introduzir novos conceitos, quer seja para despertar o inte-
resse pela matéria ou para entender os obstáculos epistemológicos
enfrentados pelos alunos.
"É um auxílio na explicação dos tópicos em sala de aula, au-
menta o interesse do aluno no aprendizado da Matemática".
"Penso ser de extrema importância o conhecimento da evolu-
ção dos conceitos matemáticos para que o professor compreenda e
tente superar os obstáculos que seu aluno enfrenta no aprendizado
da Matemática. Sem formação histórica não é possível compreender
que determinados conceitos não são óbvios ao aluno, uma vez que
pode ter levado séculos a evolução destes conceitos."
"Importantíssima, pois o fato de se conhecer a origem do que
se aprende e do que será ensinado, ajuda ao entendimento, na real
abordagem dos conceitos matemáticos".
"Concordo com Hans Wussing, a História da Matemática deve
ser levada a sério, pois a disciplina Matemática é a disciplina que
mais depende de sua história para o aprendizado de conceitos".
"Entendo que ao conhecermos a origem dos cálculos matemá-
ticos, daremos mais significado ao ensino-aprendizagem dos com-
teúdos".
"É muito importante pois os professores devem transmitir o
conhecimento matemático do modo como ele se deu, facilitando a
aprendizagem".
"É interessante saber além do que se ensina, até mesmo para
procurar meios de incentivar aqueles a quem vai ensinar".
"É uma disciplina importante pois a História da Matemática é
um artifício para o professor prender a atenção do aluno".
"Conhecendo a História da Matemática, os professores terão
condições de realizar um trabalho mais fundamentado com seus alu-
nos".

156 Formação de professores de Matemática


Sua importância está vinculada à formação do professor.
~HistÓ~&da-Mâtemáti~a-~~u~tifi~~iar~)modi'~~p1inainte~
grante do currículo do curso de formação do professor na medida
em que ela fundamenta os conteúdos matemáticos, mostra os por-
quês e complementa a formação do profissional. Para alguns, a
disciplina auxiliaria a mudar a própria concepção de Matemática
que os cursos de Matemática transmitem e permitiria que os mes-
mos alcançassem uma visão geral sobre a disciplina que irão ensi-
nar.
" A História da Matemática possibilita, dentre outras coisas,

uma visão histórica da Matemática em contraposição à visão tecni-


cista-formalista hegemônica que predomina no currículo".
"Fornecer ao profissional elementos que façam a ponte entre
os conteúdos e o momento histórico, as necessidades que geraram
aquele conhecimento".
"Muito importante, porque um professor que se forma em Ma-
temática e não tem nenhuma formação sobre a história da ciência,
como pode dar aula?"
"Desde que bem ministrada é mais um fator para a formação
de um bom profissional".
"De muita importância pois, como lecionaremos uma discipli-
na sem conhecer a sua história?"
"Máxima. Deveria ser prioridade para a formação dos profes-
sores".
"A considero fundamental, dando uma visão geral ao futuro
professor da evolução histórica da Matemática e levando a uma
maior compreensão dos conteúdos que irá ensinar".
"Acredito ser muito importante além de saber o quê, que o
professor saiba o como, o onde e o porquê."
"Completa a formação do professor, pois é a base de todo o
conhecimento".

A História da Matemática e os cursos de formaçáo de professores 157


É essencial
O fato de um percentÜal é x p ~ s G v ó t i 3apntado aHistória da
Matemática como essencial ou muito importante e, ao mesmo tem-
po não ter justificado sua acertiva, pode indicar que estamos viven-
do uma época de modismos. As pessoas tomam conhecimento de
que alguns pesquisadores acreditam que a História da Matemática é
importante, mas não chegam a refletir suficientemente sobre o as-
sunto e já assumem uma posição de concordância, como se fosse
moderno assumir essa postura.
Motivadora da pesquisa
A potencialidade de a História da Matemática motivar a pes-
quisa foi apontada por um número muito reduzido de pessoas.
"Como encorajamento de estudo e pesquisa e produção mate-
mática".
"Seria importante ser incentivada a pesquisa em diversas fon-
tes, com temas variados pelos alunos".

Conclusões

Considerando o exposto até o momento, vamos tentar


apresentar uma resposta à questão levantada no início desse texto.
Elencaremos quatro funções da componente histórica nos cursos de
formação de professores:
O Função diretamente relacionada ao conhecimento da His-
tória da Matemática.
O Função metodológica e epistemológica.
O Função utilitária visando ao uso da História da Matemáti-
ca em sala de aula.
O Função diretamente ligada ao conhecimento da história da
Educação Matemática.
A primeira função teria como objetivo proporcionar aos futu-
ros professores conhecimentos do passado da Matemática, pro-
curando mostrar como a Matemática evoluiu ao longo dos séculos.

'1 58 Formação d e professores d e Matemática


A segunda função ampliaria a compreensão da Matemática - -

queseri~;itmIlhada~1a~la.
A terceira função visaria a proporcionar condições aos futuros
professores de dominar métodos e técnicas de como usar a discipli-
na em sala de aula.
A quarta função estaria voltada para uma compreensão maior
da história da Educação Matemática como campo profissional.
Parece que os argumentos reforçadores sobre as potencialida-
des da História da Matemática são suficientemente fortes e nos
permitem concluir que é importante incluí-Ia como um dos compo-
nentes no guia curricular dos cursos de formação do professor de
Matemática.
Nas situações em que há a oferta da disciplina nos cursos de
Matemática, o docente responsável pela sua execução, em geral não
tem formação adequada. Trata-se, normalmente, de um autodidata
que aprecia a História da Matemática e que se dispõe a ministrar a
disciplina, para preencher a falta do especialista na área. Segundo
Piazza, a compartimentalização do ensino de graduação traz conse-
qüências sérias, e uma das expressões dessa compartimentalização
é que muitos professores não estão preocupados em implementar
um projeto de curso, mas sim em ministrar disciplinas:
"Nesses casos, o que é ensinado nem sempre - ou, talvez, ra-
ramente - é o que seria relevante para a formação do profissional e,
às vezes, nem mesmo é o que está previsto nos objetivos da discipli-
na, mas é, frequentemente, o que o professor sabe, quando não, o
que prefere ensinar" (Piazza, 1997, p. 23).
Outro elemento dificultador na oferta dessa disciplina é a es-
cassa bibliografia em língua portuguesa. As bibliotecas dispõem de
um número reduzido de livros que abordam a História da Matemá-
tica geral, pouquíssimos livros que tratam de tópicos especiais e
raríssimos periódicos.
Em geral, os livros-texto de História da Matemática pressu-
põem que o leitor tenha um certo conhecimento de Matemática,
sem o qual sua leitura toma-se extremamente penosa. Assim, se
quiséssemos utilizar os livros-texto já disponíveis, precisaríamos
que a disciplina de História da Matemática não fosse ofertada no
início do curso, conforme é usual na maioria das IES consultadas

A História da Matemática e os cursos de formaçáo de professores 159


(vide quadro 3). Para Grattan-Guinness, um livro didático que fosse
escrito em uma linha histórica deveria ser possivelmente-o-livro
mais difícil do mundo (apud Miguel, 1997, p. 97). Trazendo a
mesma situação para a sala de aula, poderíamos dizer que a intro-
dução de um conceito seguindo todos os passos da sua história,
seria a aula mais longa e enfadonha do mundo.
A tentativa de reconstituir um contexto histórico de um pro-
blema matemático original demandaria um esforço muito grande e
um tempo enorme que talvez em nada contribuísse para a aprendi-
zagem do conceito, principalmente quando o aluno estivesse apenas
se iniciando no assunto e não tivesse ainda suficiente maturidade
para olhá-lo sob diferentes ângulos.
As discussões sobre o momento certo de inserir a História da
Matemática no currículo têm ocorrido frequentemente. Embora
muitas pessoas pensem que o modo ideal de introduzir o futuro
professor de Matemática na história seja por meio de seu uso em
cada disciplina do curso, para o historiador Victor Katz essa pro-
posta é um tanto irrealista uma vez que a maioria dos cursos univer-
sitários não usa a história em seu ensino. Então, seria muito mais
realista que os futuros professores a aprendessem em um curso
independente.
Apresentamos, a seguir, algumas sugestões para a implemen-
tação da História da Matemática em cursos de formação de profes-
sores ou cursos de capacitação de professores:
O Cada vez mais os pesquisadores em História da Matemá-
tica sentem a necessidade de um trabalho cooperativo; da
mesma forma o professor de Matemática interessado na
história dessa disciplina deve trabalhar em cooperação
com o professor de História ou Filosofia devido à estreita
ligação entre as áreas. O historiador pode ser um excelen-
te aliado do professor de História da Matemática auxilian-
do-o em questões metodológicas específicas: como buscar
as fontes, como utilizar fontes primárias, como analisar
dados, como armazenar informações, etc.
O Os cursos de História da Matemática muitas vezes são
ministrados de forma muito expositiva, sem exercícios ou
alguma iniciação em pesquisa. Seria interessante que as

160 Formação de professores de Matemática


aulas dessa disciplina não fossem somente teóricas, mas
que-oportuitizasse~a~al~no~realizar-exer~ícios,-parti~i-
par de seminários, fazer pequenas investigações em torno
de um tema de interesse, que tivessem um breve contato
com algum tipo de fonte primária e pudessem redigir al-
gum texto.
O futuro professor de Matemática está sempre preocupado
com a sua prática. Como ele irá utilizar os conteúdos que
está recebendo no cotidiano da sala de aula? Ele tem um
interesse real na ligação entre a teoria e a prática. Por isso,
deve vivenciar atividades que o preparem para essa práti-
ca. É necessário dar condições aos futuros professores de
adquirirem métodos e técnicas de como usar a História da
Matemática em sala de aula. Alguns bons periódicos co-
mo a revista Educação e Matemáticas têm incluído entre
seus artigos História da Matemática para uso em sala de
aula.
As referências bibliográficas são importantíssimas para
um estudo em História da Matemática. O professor deve
fornecer ao aluno uma listagem de obras que abordem es-
sa temática e estimulá-lo a pesquisar em diferentes fontes,
incluindo-se os periódicos, jornais, enciclopédias, dicioná-
rios biográficos e a Internet6.
Quais as estratégias de que o professor pode lançar mão
para utilizar fontes primárias na sala de aula?
A utilização de fontes primárias na sala de aula requer alguns
cuidados especiais, principalmente com a definição clara dos obje-
tivos propostos, a adequação às necessidades discentes, a escolha
de textos e autores pertinentes.

Revista da Associação de Professores de Matemática. Escola Superior de Educação


de Lisboa, Portugal.
Alguns endereços na internet que abordam a História da Matemática são:
http://www.mat.uc.ptJ-jaimecs
http://www.apm.pt
http://athena.mat.ufrgs.br/-portosil/histona.html
http://www-groups.dcs.st-and.ac.uk

A História da Matemática e os cursos de formação de professores 161


A seleção dos assuntos e autores a serem trabalhados em sala
de-aula deve ser criteriusa. Os assuntusescolhidos-precisam-estar
relacionados com os interesses dos alunos, com a disponibilidade
de textos na língua materna (ou a possibilidade de serem traduzidos
pelo professor ou alunos) e adequados aos objetivos que o professor
se propõe a atingir.
Para introduzir os extratos de textos de fontes primárias em
sala de aula, sugerimos algumas estratégias: direta e indireta. De-
nomina-se estratégia direta aquela em que o professor apresenta
diretamente o texto, sem outra preparação anterior; e, indireta, a-
quela em que há uma preparação anterior:
O Estratégia direta ao texto: tem como objetivo provocar um
"choque" no aluno, levando-o diretamente à fonte origi-
nal. Após a leitura, o professor conduzirá o processo, ins-
tigando o aluno com uma série de perguntas, previamente
estabelecidas, ou solicitando que o próprio aluno formule
questionamentos a partir do texto. O objetivo dessa estra-
tégia é provocar o aluno e levantar uma polêmica em tor-
no do tema.
O Estratégia indireta, via resolução de problemas: o profes-
sor apresenta ao aluno um problema não-rotineiro, desa-
fiador, que desperte a curiosidade e a necessidade de apro-
fundamento do assunto. A ~ Ó So ,professor apresenta o ex-
trato de texto original como uma forma de auxiliá-lo na
resolução do problema ou como uma forma de mostrar
como matemáticos resolveram a questão.
O Estratégia indireta, via fonte secundária: o professor co-
meça a trabalhar com fontes secundárias, com os Iivros
clássicos sobre a História da Matemática geral, procuran-
do despertar no aluno o interesse sobre um determinado
assunto, problema ou autor. O extrato de texto original
surge como uma complementação e aprofundamento no
assunto.
O Estratégia indireta, via autores: o professor inicia mos-
trando como a Matemática se insere no contexto da socie-
dade de uma determinada época e, juntamente com os
alunos, descobre os nomes dos matemáticos que se desta-

162 FormaçFio de professores de MatemAtica


caram. Os alunos selecionam um ou mais autores e tentam
~ o D n ~ ~ m a i o r d ~ o r m ç õ e ~ ~ o t r r e - q u e l e ( s ~
autor(es). Somente após ter despertado o interesse pelo
personagem, o professor apresenta um extrato de texto
daquele autor e o trabalho culmina com a análise do texto
original.
O Estratégia indireta via livro didático: o professor seleciona
um tema que se encontra no livro-texto usado em sala de
aula. Questiona sobre a abordagem que o autor deu a esse
assunto. A seguir, apresenta outro livro-texto ou extrato
de texto de livro didático raro e propõe a comparação en-
tre eles. Desperta, assim, a curiosidade do aluno para que
ele sinta o desejo de saber quem introduziu aquela teoria
ou conceito, formulou ou resolveu aquele problema, pela
primeira vez. Desta forma, o extrato de texto original sur-
ge naturalmente e é trabalhado para aprofundar o que foi
usado, inicialmente, em sala de aula.

Conclusões

Na crença da importância da História da Matemática nos cur-


sos de formação de professores, concluímos apresentando duas
possibilidades de abordagem dessa disciplina. Pode-se optar por
uma abordagem da história que privilegie somente a evolução dos
conceitos ou teorias, numa ordem cronológica, sem mencionar o
contexto sociocultural subjacente. Neste caso, haveria uma preo-
cupação maior em valorizar os resultados, antes do que entender
como e por que estes se fizeram necessários. Seria como descrever
um cenário, em que o destaque não seria dado aos personagens,
mas sim às ações desses personagens. A Matemática, dessa forma,
torna-se uma criação meio mágica, concebida por seres superdota-
dos, despida de seu caráter social e cultural.
Outra possibilidade a ser adotada, é uma abordagem que mos-
tre a evolução da Matemática dentro de um contexto sociocultural,
que nos permita uma melhor compreensão de nossa herança cultu-
ral. Uma história construída por seres humanos, com seus momen-

A História da Matemática e os cursos de formaçáo de professores 163


tos de genialidade, momentos de insucessos, de trabalho árduo,
mostrando exemplos-de -pessoas-que dedicaram suas-vidas-à-busca-
de soluções de problemas os mais variados possíveis: daqueles
surgidos das necessidades do dia-a-dia a outros, totalmente teóricos,
fazendo, assim, crescer o campo de conhecimentos matemáticos.
Enfim, mostrar a face humana dessa área do conhecimento.

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164 Formação de professores de Matemática


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A História da Matemática e os cursos de formação de professores 165


AS NOVAS TECNOLOGIAS
NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DE MATEMÁTICA
Dalcídio Moraes Cláudio
Márcia Loureiro da Cunha

Introdução

Os programas oficiais das diferentes disciplinas componentes


do cum'culo dos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Matemá-
tica começam a fazer referência à utilização de ferramentas compu-
tacionais que possibilitam um melhor entendimento de fórmulas e
conceitos, permitindo um raciocínio mais realista dos problemas
matemáticos que ocorrem cotidianamente.
A informatização dos currículos é, hoje, uma realidade em
países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ela busca um acesso
mais rápido ao conhecimento, moeda de transação do próximo mi-
lênio. Em breve, o grau de analfabetismo de um povo terá também
esta variável como um de seus componentes.
Podemos considerar que um dos grandes objetivos do apren-
dizado de Matemática é propiciar a análise de situações da vida
real, através de modelos que permitam sua interpretação, resolução
e simulação.
O uso do computador, neste contexto, vai permitir que o
aprendizado não se limite à classe de problemas bem-comportados
(situações ideais), mas também à dos problemas mais realistas,
onde novas tecnologias de informação e comunicação já deixaram

As novas tecnologias na formação de professores de Matemática 167


de ser modismo e fazem parte das necessidades diárias de um bom
profissional. Deste modo, o uso dessas tecnologias deve ser parte
integral dos programas de Matemática, o que se torna um desafio,
pois requer uma atualização contínua dos professores dessa disci-
plina.
Uma Educação Matemática de alta qualidade - e isso inclui o
uso de novas tecnologias - deve ser a essência do conhecimento
efetivo numa sociedade baseada na informação.

Software e Internet

No que diz respeito ao uso de computadores no ensino, visan-


do à formação de um profissional mais atualizado e consciente, di-
versas opções se oferecem, como, por exemplo, CABRI-GEOMETRE
para o uso em Geometria e MAPLE, MATHEMATICA, DERIVE, etc.
para trabalhar com Cálculo Numérico, Cálculo Diferencial e Inte-
graI e Álgebra.
Todos esses são software de uso geral, que devem ser usados
de forma adequada à realização de experiências matemáticas, à
simulação de situações do dia-a-dia, à obtenção de propriedades e
relações entre elementos e conjuntos.
Ao lado desses sofmare, surge um novo paradigma de ensino
que, através de recuperação de informações de fontes altamente
distribuídas, via INTERNET, propicia condições favoráveis a uma
análise da forma como o conhecimento é transmitido e construído.
Embora os efeitos de exposição não-controlada dessas informações
ainda não sejam conhecidos, a riqueza de dados encontrados é
compensadora. Deve-se, no entanto, ter-se o cuidado de oferecer ao
estudante um ambiente adequado para coleta e representação dessas
informações. Esta tarefa está em processo de construção e, no
Brasil, pode-se citar, como exemplos, os trabalhos realizados na
PUCRS, na UFRJ, na UFRGS e UCP, entre outros.'

' Os sites em que essas expressões estão apontadas são, respectivamente,


www.mat.pucrs.br, www.dmm.im.ufrj.br, www.mat.ufrgs.br, www.cpd.ucp.brllamc

168 Formação de professores de Matemática


O uso da Internet e de software comerciais e de domínio pú-
blico visa a permitir uma maior interatividade entre aprendiz-base
de dados e objetiva, como resultado, um maior domínio do conteú-
do apresentado (entendimento dos conceitos e aplicações).
A possibilidade de apresentação de gráficos coloridos, bem
traçados e facilmente manipuláveis, pode ser utilizada para visuali-
zar situações-problema propostas por alunos, ou mesmo para res-
ponder a seus questionarnentos.
Conceitos abstratos certamente não deixarão de ser abstratos
com a utilização de recursos computacionais. Mas, mesmo nessas
situações, poder-se-á recorrer a alternativas, tais como:
Ci Simulações;
Ci induções de conceitos abstratos, a partir de exemplos vi-
suais e dinamicamente alteráveis;
O provas de teoremas e comprovação de resultados, prati-
camente, através do uso de recursos computacionais.
Deve-se observar que tais alternativas não são excludentes. A
comprovação de resultados através de computadores não é novida-
de, sendo amplamente utilizada em diversas áreas da pesquisa cien-
tífica:
O Simulações são utilizadas, frequentemente, para embasar
decisões econômicas e gerenciais em empresas, mesmo
sabendo-se que os resultados fornecidos por estudos de tal
natureza ainda não são ótimos;
O A obtenção de números primos de grande magnitude é
fundamental para o desenvolvimento de algoritmos de
criptografia. Recentemente, por exemplo, Roland Clark-
son descobriu que 23.021.377-1 é primo. Este número tem
909.526 dígitos e levou 46 dias para ser calculado num
Pentium 200 MHz. O Prof. Clarkson trabalhou na Cali-
fórnia State University Domingues Hills.'
As novas tecnologias vão, aos poucos, incorporando-se ao
dia-a-dia da sala de aula e por isso devem ser tratadas, testadas e
estudadas nos cursos de Licenciatura em Matemática. Tal prática

Este assunto pode ser visto em: http://www.rnersenne.org/primo.htm

As novas tecnologias na formação de professores de Matemática 169


faz com que professores e alunos se sintam preparados e motivados
para o seu uso, o que permitirá, aos futuros licenciados, uma melhor
preparação para suas atividades no ensino fundamental e médio.
Considera-se que o uso de novas tecnologias computacionais
permite um acesso quase ilimitado ao conhecimento disponível em
todo o mundo. Com isso, tem-se a possibilidade de fazer com que
alunos e professores revisem e monitorem individualmente suas
tarefas, o que enseja e encoraja, nos dias atuais, a realização de
mudanças nos papéis desempenhados por docentes e discentes, nas
salas de aula.

A Situação Atual

Analisando-se a realidade existente, hoje, em escolas e uni-


versidades pode-se constatar que não há, salvo raríssimos casos, um
esforço institucional que encoraje a utilização de novas tecnologias.
Este uso está na dependência direta do entusiasmo do professor,
apesar da dificuldade representada pela distribuição da carga horá-
ria. O professor não se sente à vontade para esta prática, e, em vir-
tude dessa pouca familiaridade, ele não compreende a sua impor-
tância dentro do atual contexto em que atua. Isso se refere não ape-
nas ao uso de computadores, mas, também, ao uso de boas calcula-
doras gráficas, como, por exemplo, a Texas-TI 92, que incorpora
facilidades gráficas, manipulação algébrica (versão do DERIVE),
Geometria (versão do CABRI 11), Calculo Diferencial e Integral,
Estatística, gráficos em 2D e 3D e Álgebra Matricial, a um preço
compatível com os recursos de muitas escolas e, sem dúvida, de
maior parte das universidades. Essas calculadoras são quase desco-
nhecidas em nossas instituições de ensino, mas farão parte das ne-
cessidades educacionais para os próximos cinco anos.
Neste fim de século, uma das grandes contribuições que deve
ser oportunizada a alunos e professores é a de definir e entender a
desmistificação do ensino com papel e lápis. Um novo profissional
de ensino precisa, urgentemente, ser preparado e isso exige uma
mudança imediata nos atuais currículos, visando a que o estudante
tenha uma real compreensão do que está fazendo, com a participa-

170 Formação de professores de Matematica


ção cada vez menor daquele professor "detentor do conhecimento".
É necessária uma revisão, em geral, das metodologias de ensino,
pois muitos dos métodos são desnecessários e a essência da teoria é
perdida. É preciso fazer com que os alunos pensem matematica-
mente e saibam usar as ferramentas disponíveis para a construção
do conhecimento.
Uma atual e interessante discussão foi desenvolvida, recente-
mente, por Henry e Clements (1999),3sobre o uso de computadores
em sala de aula, mostrando que, embora a nova tecnologia tenha
que ser utilizada, é fundamental uma mudança de atitude institucio-
na1 que permita aos professores incorporarem, de forma construtiva,
esse novo paradigma à sala de aula.
A metodologia tradicional, de transmissão do conhecimento a
estudantes receptores, está mudando, pois o uso de novas tecnolo-
gias faz com que o professor seja menos atuante, apenas gerencian-
do seus estudantes na construção do conhecimento matemático.

Alguns exemplos de aplicações do MAPLE

Para exemplificar a concepção de um ensino apoiado nas no-


vas tecnologias, serão apresentados alguns exemplos do uso do
MAPLE V na disciplina Cálculo Diferencial e Integral.
A questão a ser abordada pode ser, por exemplo, a determina-
ção do domínio de uma função. Sabe-se que em sala de aula ou em
exercícios extraclasse nada de muito complicado pode ser pedido,
pelo excesso de manipulação algébrica envolvido em certas resolu-
ções. Serão consideradas as funções definidas abaixo, das quais se
deseja o domínio de definição.

henry@ait.fredonia.edu

As novas tecnologias na formaçáo de professores de Matematica 171


Mesmo que um estudante tenha claro o conceito de domínio,
ele vai ter sérios problemas para determinar, apenas com lápis e
papel, o domínio da função G. Em MAPLE as soluções seriam:

Poder-se-ia, em seguida, solicitar ao aluno a discussão do re-


sultado, para verificar se ele entendeu a manipulação algébrica rea-
lizada pelo software.
Um outro fato interessante é quanto ao gráfico de funções.
Aqui, se pode observar, claramente, a importância do conceito,
compreensão e intuição, versus "decoreba" e falta de imaginação.
Um exemplo importante deste fato ocorre ao se esboçar, com
x 2 -1
o MAPLE, o gráfico de f ( x ) = -no intervalo [-3,3]; obtém-
x-1
se a figura abaixo, na qual não se identifica a descontinuidade em
x = 1.

172 Formação de professores de Matemática


É o caso, então, de discutir com os alunos a razão pela qual o
software tem esta resolução. Esse também é um bom momento para
mostrar aos alunos que os resultados apresentados por um programa
nem sempre serão confiáveis, provando, assim, a necessidade do
conhecimento dos conceitos matemáticos envolvidos em um pro-
blema, ao utilizar-se uma ferramenta computacional, para poder-se
analisar e julgar as respostas obtidas.
Um exemplo interessante da mistura da teoria com a prática
pode ser visto quando, após terem sido trabalhados os conceitos de
técnicas de integração e resolvidos alguns exemplos mais simples
x2 + 4
em sala, defronta-se com integrais do tipo
(x2+ 1)3.(x2 + 2)2
Sabe-se que é viável a resolução dessa integral algebricamente, mas
isso daria muito trabalho e exigiria pouca criatividade. Deixando,
portanto, o trabalho "braçal" para a máquina, pode-se resolver,
assim, o problema, em MAPLE

A partir do resultado obtido, o aluno poderia fazer a derivada,


testando a resolução dada pelo sojhvare.
A grande vantagem desta abordagem é que a gama de possibi-
lidades dos diferentes exemplos tratados é vastíssima. Se o conceito
tiver sido entendido, a análise dos erros computacionais será obser-
vada e estes, corrigidos.
O trabalho do matemático será, entre outros, o de entender e
organizar as equações, muito mais do que manipulá-las, o que vai
exigir um amplo domínio dos conceitos matemáticos e conhecimen-
tos básicos de Informática.

As novas tecnologias na formação de professores de Matemática 173


A conclusão clara é que o estudante precisa ter uma idéia cor-
reta das definições e conceitos. As aulas teóricas têm que se con-
centrar nestes pontos, deixando para o computador (calculadora) a
realização das tarefas que exigem apenas cálculos e depois, a partir
dos resultados apresentados, devem ser feitas análises teóricas dos
mesmos.
O perigo existente não é o de se usar as novas tecnologias
computacionais no ensino e sim o de serem, elas, deixadas de lado,
pois um ensino nelas apoiado tende a aumentar o poder de concen-
tração e o estímulo dos estudantes, permitindo uma maior abran-
gência no universo de funções estudadas, valendo-se de recursos
como sons, cores , etc., que facilitam e, muitas vezes, propiciam o
entendimento dos conceito^.^

O uso de tecnologias no ensino de Matemática

Didaticamente, o professor pode optar entre dois perfis diante


do uso do computador no ensino: usá-lo como uma máquina trans-
missora dos conhecimentos para o aluno, ou como um auxiliar na
construção desses conhecimentos pelo aluno.
Optando pelo primeiro perfil, ao professor cabe apenas o pa-
pel de colocar na máquina as informações que o seu aluno precisa
saber e utilizar o computador na forma de tutorial, ou seja, como
um "virador de páginas eletrônico" (Valente, 1995, p. 41-49). O
docente também pode valer-se dos software do tipo exercício e
prática, que fantasiam, eletronicamente, as folhas de exercícios.
Assim, ele estará, apenas, informatizando a educação tradicional
que forma indivíduos carentes de criatividade, de pensamento críti-
co, passivos e com poucas possibilidades de sucesso na sociedade
atual.
Mas se o professor se enquadra no segundo perfil, ele terá vá-
rias questões para refletir e muitas características para reforçar ou,

Uma idéia interessante pode ser vista em: http://www.bham.ac.uMctimath/, em que


uma turma conecta-se via Intemet e a partir dos questionamentos de um instrutor,
apresenta diversas soluções para certo trabalho e produz soluções muito mais ricas
do que as obtidas em sala de aula.

174 Formação de professores de Matemática


até mesmo, acrescentar à sua conduta. Em primeiro lugar, para
possibilitar ao aluno construir seu conhecimento, é preciso que o
professor escolha um tipo de software adequado para isso, como as
linguagens de programação, os processadores de texto e os bancos
de dados. É imprescindível que o professor tenha um profundo
conhecimento do conteúdo que trabalhará e do software que adota-
rá. Além disso, ele deve estar sempre interagindo com o aluno,
questionando seus resultados, interpretando seu raciocínio e apro-
veitando os erros cometidos como forma de explorar os conceitos
que não ficaram bem esclarecidos. Assim, esse professor estará,
claramente, utilizando o computador como uma ferramenta inteli-
gente, enquanto ele desempenha um papel de facilitador entre o
aluno e a construção do seu conhecimento.
Mesmo com todo o contexto político, social e econômico
"exigindo" o uso de computadores no ensino, isso não significa que
esta decisão deva ser tomada prematuramente, pois, para que isto
ocorra, é imprescindível que as escolas já tenham definido seus
objetivos e estratégias didáticas adequadas para esta mudança e que
tenham disponíveis todos os recursos físicos necessários (número
de máquinas compatível com o número de alunos). Também é de
fundamental importância que os professores sejam preparados,
antes de iniciar qualquer atividade com o computador, que tenham
competência para determinar as estratégias de ensino que utilizarão,
que conheçam as potencialidades e as restrições do software por ele
escolhido e que tenham claros seus objetivos ao adotar tal software.
No início das pesquisas sobre o uso da Informática no ensino
de Matemática, a imagem que se tinha deste tipo de trabalho e que
era amplamente divulgada caracterizava-se mais pelo aspecto ideo-
lógico do que pelo aspecto racional. A preocupação inicial era a de
convencer a todos que o uso do computador só traria benefícios ao
ensino de Matemática, desconsiderando, assim, as possíveis difi-
culdades que a implantação desta prática poderia desencadear.
Atualmente, baseados em diversas pesquisas realizadas nessa
área, pode-se ter uma visão mais clara e sensata do que representa a
inserção da ferramenta computacional no ensino da Matemática. É
de conhecimento dos professores que, para utilizar tal ferramenta,
não basta apenas tê-la em mãos. É necessário saber manuseá-la,

As novas tecnologias na formação de professores de Matemática 175


explorá-la, ter consciência de suas potencialidades e, principalmen-
te, ter um planejamento didático pedagógico adequado para que ela,
realmente, atue na construção do conhecimento matemático do
aluno.
Por ser a Matemática a disciplina que, em geral, mais desperta
a antipatia dos estudantes devido a sua dificuldade de entendimen-
to, um aspecto que pode ser ressaltado, quando do uso do computa-
dor no seu ensino, é o estímulo que ele representa para o aluno. O
fato de o computador estar presente em algumas atividades de Ma-
temática aumenta, consideravelmente, o interesse do aluno pelo
estudo da disciplina. Este já pode ser visto como um aspecto positi-
vo da utilização de um software no ensino dessa ciência, embora
não deva ser este o principal objetivo a ser considerado.
Pela participação em encontros, congressos e simpósios, regi-
onais e nacionais, pôde-se observar que grande parte dos trabalhos
que são desenvolvidos sobre o uso da ferramenta computacional, no
ensino de Matemática, ocorrem mais no nível superior de ensino do
que nos níveis fundamental ou médio. Talvez, porque os trabalhos
nesses níveis não sejam tão divulgados, ou porque não haja muito
incentivo a pesquisas desse gênero.
Os trabalhos desenvolvidos no ensino superior de que se tem
conhecimento devem-se, principalmente, à preocupação com o
baixo desempenho dos alunos e aos altos índices de reprovação
constatados nas disciplinas matemáticas da maioria dos cursos de
Graduação. Também atribui-se a importância do uso do computa-
dor no ensino de Matemática às exigências do mercado de trabalho,
que constantemente é modificado, em função de novas tecnologias.
Para os graduandos também cabe ressaltar a necessidade de conhe-
cer e saber utilizar alguns software futuramente úteis à sua profis-
são.
A utilização de uma ferramenta computacional permite ao a-
luno desligar-se um pouco da "execução de algoritmos e procedi-
mentos demorados" (Palis, 1995, p. 25) específicos da Matemática,
para preocupar-se mais com a resolução dos problemas elaborados
que envolvam conceitos importantes, representações gráficas e
cálculos numéricos complicados, que só se tornam possíveis com o
uso desta ferramenta.

176 Formação de professores de Matemática


O computador também possibilita que o aluno trabalhe na
forma-de-projetos,-fazend~-simulaçõe~experimentosobservando e-
analisando resultados, realizando cálculos e testando hipóteses.
Enfim, introduz o aluno na pesquisa científica. Porém, para que
todo este trabalho tenha um significado real para a construção do
conhecimento matemático é imprescindível que seja acompanhado,
ou finalizado, com a formalização dos conceitos envolvidos nas
atividades.
O computador também permite facilidades para os docentes,
que podem valer-se de software gráficos para elaborar e ilustrar os
recursos didáticos (transparências, apresentações no datashow,
textos), corrigir exercícios e elaborar e implementar aulas práticas.
Muitos dos relatos das atividades de pesquisa em andamento
tratam da implantação de software gráficos no ensino de funções de
uma variável real, pois o número de software existentes que se apli-
cam a esta finalidade é grande e este é um conteúdo pouco compre-
endido pelos alunos, no ensino médio e superior.
Neste caso, os software mostram-se muito úteis, visto que de-
senham rapidamente gráficos de funções, que, para serem feitos à
mão, tornam a tarefa difícil. Um dos poucos problemas encontrados
e que muitas vezes o estudante não questiona os
resultados fornecidos pelo computador, que nem sempre correspon-
dem corretamente à tarefa solicitada, como no caso das funções.
Novamente, convém lembrar do papel fundamental da constante
formalização do conhecimento matemático, para que o aluno tenha
condições de avaliar e criticar a eficiência da ferramenta computa-
cional que tem em mãos e utilizá-la apropriadamente.
Um projeto atualmente em fase de implantação - é o MEL'
(Matemática Elementar). O MEL está sendo desenvolvido nas disci-
plinas matemáticas ministradas para o curso de Bacharelado em
Informática da PUCRS. As disciplinas que fazem parte do projeto
são: Cálculo Diferencial e Integral de uma Variável Real, Cálculo
Diferencial de Várias Variáveis Reais, Geometria Analítica e Álge-
bra Linear.
Durante todo o tempo de implantação, o projeto tem se mos-
trado eficaz, no que tange ao desempenho e motivação do aluno

Mais informação sobre o MEL em Moraes, Cunha e Cláudio (1997).

As novas tecnologias na formapão de professores de Matemática 177


frente ao estudo da disciplina. Aqui o computador é utilizado no
intuito desan~asdificttldadestra~idas~dwnsfn~médio-e de facili-
tar a compreensão dos conteúdos específicos de cada disciplina.
Para isso, adota-se o softwure matemático de computação algébrica
MAPLE V, na forma de ferramenta, tutor e tutelado, de acordo com
as necessidades dos professores e dos alunos, durante o curso. Co-
mo ferramenta, o MAPLE é utilizado, pelo professor e seu grupo de
bolsistas, na ilustração dos conteúdos das transparências, na elabo-
ração e implementação das aulas de laboratório e estudos dirigidos
e na correção de exercícios e problemas elaborados. Pelo aluno, o
sofhuare é usado na resolução das atividades de laboratório e na
verificação das respostas de exercícios.
Como tutor, o MAPLE é utilizado, pelos alunos, na resolução de
estudos dirigidos. Na forma de tutelado, o aluno vale-se do software
para o desenvolvimento dos projetos de pesquisa propostos como
trabalho de um semestre.
Para a execução destas atividades, os alunos têm acesso aos la-
boratórios de Informática da Universidade, onde encontram a versão
completa do MAPLE, mas para aqueles que desejam trabalhar em
casa, também está disponível para download de domínio público na
W e b -juntamente com todos os materiais das disciplinas que com-
põem o MEL - uma versão de demonstração do MAPLE que, por ter
esta característica, apresenta algumas limitações de uso.
Embora o número de trabalhos de pesquisa sobre a utilização
do computador no ensino de Matemática seja cada vez maior - no
que diz respeito à sua prática - há uma certa carência de trabalhos
que analisem os efeitos, favoráveis ou não, provindos dessa implan-
tação.
Apesar da grande demanda em termos de utilização de recursos
computacionais no ensino, existem muito poucos estudos e resulta-
dos de pesquisas sobre o desempenho e a efetividade de sofhuare
educacionais, o que toma necessária a análise dos produtos existen-
tes. Muitos desses, disponíveis no mercado ou de domínio público,
são de baixa qualidade, o que é compreensível. A escassez de discus-
sões sobre qual conteúdo trabalhar, de que maneira e quem deve
desenvolvê-los, gera, muitas vezes, programas que não se adaptam às
necessidades do professor e, muito menos, às dos alunos.

178 Formação de professores de Matemática


Para se escolher um software que contribua para a melhoria
d~essode~~eKd~eve=sclevar~m-eontíivári-o~
fatores relevantes sobre a sua qualidade. O ideal seria se cada pro-
fessor tivesse condições de desenvolver ou adaptar um software de
acordo com as suas expectativas, mas como isso é praticamente
impossível - devido à falta de conhecimentos necessários à criação
desses recursos - é fundamental que ele aprenda a analisar progra-
mas prontos.
Para revisar bibliografia contendo informações sobre análise e
classificação de software educacional (Cunha, 1999), buscou-se os
trabalhos de Rocha e Campos (1993) e Behar (1993).
Ao propor um maior uso das novas tecnologias computacio-
nais nos cursos de Licenciatura em Matemática, tem-se que analisar
quais os melhores sofmare, dentre os disponíveis atualmente no
mercado.
O objetivo, aqui, não é o de fazer uma resenha de todos os
software existentes e sim o de tecer comentários práticos baseados
no uso desses pacotes. A solução de problemas abstratos, utilizando
a manipulação de símbolos matemáticos ou a representação gráfica
em 2D ou 3D, pode ser realizada em software que se obtém gratui-
tamente via INTERNET ou em software comerciais cujos preços
variam, em função do uso individual ou coletivo. A situação que se
tem hoje é a de que os software comerciais MAPLE, MATHEMATICA,
MATLAB, DERIVE, etc. têm maior facilidade e rapidez no uso. O
MAPLE V, por exemplo, é o software é utilizado nas disciplinas ini-
cíais de CáIculo e Álgebra Linear na PUCRS e tem se mostrado
uma excelente ferramenta.
A seguir são apresentados os critérios que foram utilizados pa-
ra analisar os software selecionados:
1. Instalação - se o programa é de fácil instalação.
2. Entendimento - se o programa é de fácil entendimento pa-
ra quem vai utilizá-lo, se é auto-explicativo.
3. Manuseio - se o programa apresenta facilidade no manu-
seio, não exigindo conhecimentos computacionais anterio-
res.
4. Linguagem - se a linguagem utilizada no programa é ade-
quada para o público ao qual é destinado.

As novas tecnologias na formação de professores de Matemática 179


5. Aparência - se a interface do programa é agradável, atra-
- - tiva e-apresentainformações bem distribuídas.
6. Eficiência - se o programa responde em tempo hábil,
quando solicitado.
7. Adequação - se o programa é adequado ao currículo escolar.
8. Edição - se é possível editar algumas partes do programa,
acrescentando novos dados ou programando atividades.
9. Integração - se o programa apresenta facilidade de entro-
samento com outros recursos didáticos.
10. Impressão - se o programa permite a impressão das telas
apresentadas.
11. Modularidade - se o programa apresenta estruturas indepen-
dentes, possibilitando o uso de apenas alguns módulos.
12. Se existe um dispositivo de ajuda.
13. Se há a possibilidade de o usuário recorrer a um dispositi-
vo de ajuda, em qualquer ponto do programa.
14. Se essa ajuda é específica.
15. Seqüência - se a progressão do usuário dentro do progra-
ma é seqüencial e coerente com o desempenho por ele
apresentado.
16. Exploração do conteúdo - se os conteúdos são explorados
através de problemas ou exercícios que estimulam o de-
senvolvimento do raciocínio matemático.
Os sofmare abaixo relacionados e ilustrados estão disponíveis
na Intemet, nos sites indicados.

Software: Yfunx
O programa é destinado à construção de gráficos e análise de
funções do tipo Y=F(X), calcula integrais (numericamente e grafi-
camente) de várias maneiras. Este programa também calcula volumes
de sólidos de revolução (por discos e cilindros), a área da superfície
destes sólidos e pode-se usar o método de Newton ou da Bissecção
para encontrar zeros de funções polinorniais. Possibilita a visualiza-
ção da tangente em todos os pontos de uma função, mostrando, a
cada ponto, a equação da reta e suas coordenadas.
Endereço para download:
http://archives.math.utk.edu/software/msdos/calculus/jkyfunx/.html

180 Formação de professores de Matemática


Figura 1
_Visualização~da~tela~do~Yfunx.

Software: Winplot
Este programa permite que se construam gráficos a partir de
funções elementares. Possibilita que se construam gráficos em duas
e três dimensões e ainda que se trabalhe com operações de funções.
Endereço para download: http://www.exeter.edu/-rparrisl

Figura 2
Visualização da tela do Winplot.

E~ie Equa i i e w Qne I w o Fins Misc !ieip


1

As novas tecnologias na formação de professores de Matemática 181


Software: Graphmatica
Este software permite
-
a-construção
-- --
de gráficos de funções
element=s, com a opção de se trabalhar com coordenadas polares,
cartesianas e em escalas logarítmicas.
Endereço para download:
http://www8.pair.com/ksoft/index.html

Figura 3
Visualização da tela do Graphmatica.

- -- -- -
Filc and prlnting operations; cxit
--- -- --..

Software: MuPad Light


Programa similar ao MATHEMATICA e MAPLE. Possibilita o
trabalho com álgebra linear, gráficos de funções (em 2D e 3D),
derivação, integração, etc.
Endereço para download:
http://www.ime.usp.br/-leo/free.html

182 Formação de professores de Matemática


Figura 4
Visualuização da tela do MuPad Light.
- - - - - - - - - - -

Software: Mathlabl
Programa que permite a construção de gráficos de funções,
incluindo derivação de integração (na mesma tela).
Endereço para download:
http://www .ime.usp.br/-leo/free.html
Figura 5
Visualização da tela do Mathlab 1.
Software: Twiddle 1.36
Este programa faz gráficos de funções y=f(x), possibilitando a
-- --

determinação de wâmetros a, b, c contidos na lei da função.


Endereço para download:
http://archives.math.utk.edu/azmath.html

Figura 6
Visualização da tela do Twiddle 1.36.

Software: Algebrax
Programa de exercícios de múltipla escolha sobre conteúdos
de pré-cálculo.
Endereço para download:
http://archives.math.utk.edu/software

Software: Rurc
Programa de exercícios de múltipla escolha. Possui diversas
versões diferenciadas pelo conteúdo e o nível de ensino ao qual se
destinam.
Endereço para download:
http://archives.math.utk.edu/azmath.html

184 Formação de professores de Matemática


Software: Wingeom
L ~ f t w a r e - q u e p e r m i t construções-geométricas-bidimensionâise
e
tridimensionais.
Endereço para download: http://www.exeter.edul-rparrisl

Figura 7
Visualização da tela do Wingeom.

Software: Compasses and Ruler Geometry Program


Programa de Geometria que permite construções geométricas
em duas dimensões.
Endereço para download:
http://www.ime.usp.br/-leo/free.html

Figura 8
Visualização da tela do Compass and
Ruler Geometry Program.

As novas tecnologias na formação de professores de Matemática 185


Sofware: Cabri-Geometry
. Software-para construções~geométricas.A ~ ~ c o n s t r u ç õ esão
s
feitas a partir do conhecimento das propriedades geométricas das
figuras.
Endereço para download:
http://www.ti.com/calc/docs/cabri.htm

Figura 9
Visualização da tela do Cabri-Geometry

Sclcdons. n

PONTEIRO

No anexo 1, são apresentadas as tabelas de análise dos software.

Considerações finais

A partir das observações feitas e dos software apresentados,


podemos concluir que há diversas possibilidades para o uso de novas
tecnologias no ensino fundamental ou médio. Restringimos a seleção
de software àqueles basicamente gráficos ou geométricos, que pro-
porcionam uma rica exploração em termos de simulação, resolução
de problemas, dedução e comprovação de resultados. No entanto,

186 Formação de professores de Matemática


ainda existe um grande número de programas educativos disponíveis
no mercado ou na Internet, tais como os jogos, que abordam conteú-
dos matemáticos adequados ao currículo escolar, inseridos em uma
situação em que o aluno explora conceitos e progride através do seu
desempenho e de suas estratégias, sem a necessidade da interferência
do professor.
Dentre os software aqui listados, consideramos que o GRAPH-
MATICA é o mais indicado para iniciar um trabalho com o computa-
dor, introduzindo o estudo e a análise de gráficos e funções reais.
Essa sugestão baseia-se no fato de ser um programa de fácil manu-
seio para usuários que não possuem muitos conhecimentos computa-
cionais anteriores.
Outra proposta acessível para iniciantes nessa prática é utilizar
o CABRI-GEOMETRY para trabalhar os conceitos fundamentais de
Geometria Plana e construir polígonos, utilizando suas propriedades.
Atualmente, cresce o interesse dos docentes em utilizar recur-
sos tecnológicos no ensino de Matemática, mas, em muitos casos,
essa ainda é uma realidade muito distante, não só por falta de infra-
estrutura das escolas mas, fundamentalmente, pela falta de capacita-
ção dos professores.
Esse despreparo dos profissionais deve-se, em grande parte, à
carência de informações e experiências vivenciadas pelo licenciando
durante sua Graduação. Em muitos cursos de Matemática, ainda é
precário o uso e aplicação de recursos tecnológicos no ensino de
conteúdos específicos dessa área. Além desse aspecto, também é
importante ressaltar a falta de incentivo ao professor interessado em
utilizar o computador em sala de aula, pois não lhe é facilitado, fi-
nanceiramente, o aperfeiçoamento profissional e não há disponibili-
dade de carga horária destinada exclusivamente ao preparo de tais
atividades, no caso de docente já capacitado. E quem tem certa expe-
riência na utilização de rnicrocomputadores no ensino está consciente
do grande número de horas necessárias para a elaboração de ativida-
des, nas quais o computador contribua efetiva e significativamente
para a construção do conhecimento, pelo aluno.
O novo profissional do ensino de Matemática deverá ingressar
no mercado de trabalho com uma bagagem importante de experiên-
cias com o uso de computadores, seja com sofnuare de computação
algébrica e simbólica, como o MAPLE V, seja com programas mais

As novas tecnologias na formaçáo de professores de Matemática 187


simples e acessíveis. Se tiver contato, desde o início do curso, com os
recursos tecnológicos existentes, utilizando-os para aprender conteú-
dos, visualizar gráficos, preparar aulas práticas, elaborar estratégias
de utilização de um software, participar de pesquisas científicas, ao
concluir o curso esse futuro professor estará capacitado a trabalhar
com o computador em sala de aula, nas diversas modalidades de uso.
Provavelmente este não é o perfil da maioria dos profissionais
graduados em cursos de Matemática, em nosso País. Mas, para que
uma mudança se efetive, é preciso que os cursos diversifiquem ou
modernizem seus currículos e, ainda, que os licenciandos estejam
conscientes de suas possibilidades de exigir uma formação superior
de qualidade, bem como de suas próprias contribuições para a melho-
ria do ensino de Matemática em qualquer nível.

Referências bibliográficas

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aprendizagem computadorizado: estudo de caso. Porto Alegre, 1993. Disserta-
ção (Mestrado em Ciência da Computação) - Centro de Pós-Graduação em Ci-
ência da Computação: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993.
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Matemática computacional. Porto Alegre: DC Luzzatto, 1987. 194 p.
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Alegre: PUCRS, 1999. Monografia de conclusão de curso de Licenciatura em
Matemática, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
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ensino de disciplinas de cálculo. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE INFORMÁ-
TICA, 2, 1997, Santa Maria. Anais. Santa Maria: FAFRAJRS, 1997, p. 53-57.
MORAES, Maria C. Informática educativa no Brasil: um pouco de história. Em
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PENNEY, David, EDWARDS, C. Henry. Cálculo com geometria analítica. Rio de
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VALENTE, José A. Informática na educação: conformar ou transformar a escola.
Perspectiva, v. 13, n. 24, p. 41-49, ju./dez. 1995.

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