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ENSINO A DISTÂNCIA

LICENCIATURA EM

Eliane Santos Raupp


Giselle Cristina Smaniotto

PONTA GROSSA / PR
2011
CRÉDITOS

João Carlos Gomes


Reitor

Carlos Luciano Sant’ana Vargas


Vice-Reitor

Pró-Reitoria de Assuntos Administrativos Colaboradores em EAD


Ariangelo Hauer Dias - Pró-Reitor Dênia Falcão de Bittencourt
Jucimara Roesler
Pró-Reitoria de Graduação
Graciete Tozetto Góes - Pró-Reitor Colaboradores de Informática
Carlos Alberto Volpi
Divisão de Educação a Distância e de Programas Especiais Carmen Silvia Simão Carneiro
Maria Etelvina Madalozzo Ramos - Chefe Adilson de Oliveira Pimenta Júnior
Juscelino Izidoro de Oliveira Júnior
Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância Osvaldo Reis Júnior
Leide Mara Schmidt - Coordenadora Geral Kin Henrique Kurek
Cleide Aparecida Faria Rodrigues - Coordenadora Pedagógica Thiago Luiz Dimbarre
Thiago Nobuaki Sugahara
Sistema Universidade Aberta do Brasil
Hermínia Regina Bugeste Marinho - Coordenadora Geral Colaboradores de Publicação
Cleide Aparecida Faria Rodrigues - Coordenadora Adjunta Maria Beatriz Ferreira - Revisão
Elenice Parise Foltran - Coordenadora de Curso Sozângela Schemin da Matta - Revisão
Eloise Guenther - Diagramação
Colaborador Financeiro Paulo Henrique de Ramos - Ilustração
Luiz Antonio Martins Wosiak
Colaboradores Operacionais
Colaboradora de Planejamento Edson Luis Marchinski
Silviane Buss Tupich Joanice Kuster de Azevedo
João Márcio Duran Inglêz
Maria Clareth Siqueira
Mariná Holzmann Ribas

Todos direitos reservados ao Ministério da Educação


Sistema Universidade Aberta do Brasil
Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processos Técnicos BICEN/UEPG.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA


Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância - NUTEAD
Av. Gal. Carlos Cavalcanti, 4748 - CEP 84030-900 - Ponta Grossa - PR
Tel.: (42) 3220-3163
www.nutead.uepg.br
2011
APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL

A Universidade Estadual de Ponta Grossa é uma instituição de ensino


superior estadual, democrática, pública e gratuita, que tem por missão
responder aos desafios contemporâneos, articulando o global com o local,
a qualidade científica e tecnológica com a qualidade social e cumprindo,
assim, o seu compromisso com a produção e difusão do conhecimento,
com a educação dos cidadãos e com o progresso da coletividade.
No contexto do ensino superior brasileiro, a UEPG se destaca tanto
nas atividades de ensino, como na pesquisa e na extensão Seus cursos
de graduação presenciais primam pela qualidade, como comprovam os
resultados do ENADE, exame nacional que avalia o desempenho dos
acadêmicos e a situa entre as melhores instituições do país.
A trajetória de sucesso, iniciada há mais de 40 anos, permitiu que
a UEPG se aventurasse também na educação a distância, modalidade
implantada na instituição no ano de 2000 e que, crescendo rapidamente,
vem conquistando uma posição de destaque no cenário nacional.
Atualmente, a UEPG é parceira do MEC/CAPES/FNED na execução
do programas Pró-Licenciatura e do Sistema Universidade Aberta do
Brasil e atua em 38 polos de apoio presencial, ofertando, diversos cursos
de graduação, extensão e pós-graduação a distância nos estados do
Paraná, Santa Cantarina e São Paulo.
Desse modo, a UEPG se coloca numa posição de vanguarda,
assumindo uma proposta educacional democratizante e qualitativamente
diferenciada e se afirmando definitivamente no domínio e disseminação
das tecnologias da informação e da comunicação.
Os nossos cursos e programas a distância apresentam a mesma
carga horária e o mesmo currículo dos cursos presenciais, mas se utilizam
de metodologias, mídias e materiais próprios da EaD que, além de serem
mais flexíveis e facilitarem o aprendizado, permitem constante interação
entre alunos, tutores, professores e coordenação.
Esperamos que você aproveite todos os recursos que oferecemos
para promover a sua aprendizagem e que tenha muito sucesso no curso
que está realizando.

A Coordenação
SUMÁRIO

■■ PALAVRAS DOS PROFESSORES 7


■■ OBJETIVOS E EMENTA 9

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
■■ SEÇÃO 1- CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O QUE É ENSINAR A
11
LÍNGUA PORTUGUESA 17
■■ SEÇÃO 2- ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: CONCEITOS E
PERSPECTIVAS DE ENSINO 34
■■ SEÇÃO 3- ALFABETIZAR LETRANDO: ALTERNATIVAS DE AÇÃO 47

CFORMAÇÃO
ONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA PARA A
DO PROFESSOR ALFABETIZADOR 55
■■ SEÇÃO 1- CONCEPÇÕES DE LÍNGUA/LINGUAGEM 57
■■ SEÇÃO 2- AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM 67
■■ SEÇÃO 3- FONÉTICA E FONOLOGIA APLICADAS À ALFABETIZAÇÃO 78
■■ SEÇÃO 4- VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO 96
■■ SEÇÃO 5- ENSINO DA ORTOGRAFIA 111

M ÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO:
ASPECTOS HISTÓRICOS E PEDAGÓGICOS 127
■■ SEÇÃO 1- MÉTODO, METODOLOGIA OU PROPOSTA DIDÁTICA? 129
■■ SEÇÃO 2- MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO SINTÉTICOS 135
■■ SEÇÃO 3- MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO ANALÍTICOS  145

■■ PALAVRAS FINAIS  155


■■ REFERÊNCIAS 157
■■ ANEXOS 163
■■ NOTAS SOBRE OS AUTORES 167
PALAVRAS DO PROFESSOR

Queridos(as) estudantes, este livro trata de uma questão


importantíssima: a aprendizagem da língua escrita. Você certamente já
observou que estamos vivendo em um mundo cada vez mais letrado, o
que exige de nós práticas de leitura e de escrita diversas e em diferentes
contextos. A escrita é cada vez mais um instrumento socialmente
valorizado e necessário para a nossa participação efetiva e consciente na
sociedade.
Por essa razão, é preciso garantir que todos aprendam, de fato, a ler
e a escrever.
Sabemos o quanto é importante que os profissionais da área da
educação conheçam com profundidade seu objeto de trabalho. Precisamos
estar preparados para formar leitores e usuários competentes da escrita.
E você, como futuro educador, precisa ter conhecimentos teóricos
que possam subsidiar com segurança a sua prática.
Ao organizarmos este material, portanto, tivemos o cuidado de
selecionar uma ampla e atualizada bibliografia, a fim de possibilitar uma
visão consistente do que é ensinar língua portuguesa, de sua estrutura
e de seu funcionamento enquanto sistema linguístico. Para isso, nos
pautamos nos pressupostos da ciência da linguagem – a Linguística –
ciência que trouxe inúmeras contribuições para o ensino, pois, ao longo
de seu desenvolvimento, esclareceu diversas questões relacionadas ao
ensino-aprendizagem da língua materna, do ponto de vista científico,
como as que são neste livro apresentadas: concepções de língua e de
linguagem, variação linguística e ensino, ortografia, alfabetização e
letramento, como ensinar e como aprender.
Alfabetizar letrando é a perspectiva deste livro. Queremos contribuir
para a reversão das estatísticas que têm revelado uma triste realidade: a
falta de habilidade com a leitura e com a escrita.
Queremos motivá-los a formar leitores e escritores de uma língua
maravilhosa, pois é por meio dela que nos constituímos sujeitos neste
mundo e deste mundo. É por meio dessa língua maravilhosa, a língua
portuguesa, que conseguimos nos comunicar, dizer o que pensamos
e interagir com o outro. Temos um objeto de trabalho importantíssimo
nas mãos: a língua materna, precisamos nos capacitar para ensiná-la
adequadamente e garantir que nossos alunos a desenvolvam e a utilizem
com eficiência e segurança em toda e qualquer situação.

Um grande abraço e sucesso a todos(as)!

Professoras Eliane e Giselle


OBJETIVOS & EMENTA

Objetivos
Objetivos gerais:

• Reconhecer a influência dos fatores sociais sobre a linguagem, entendendo


a leitura e a escrita como práticas sociais que participam da constituição
histórica do sujeito;
• Buscar propostas de intervenção no processo de ler e escrever que
estejam mais próximas dos usos sociais, culturais e efetivos da leitura
e da escrita e, portanto, mais prováveis de se estabelecerem como
instrumentos de formação da consciência crítica.

Objetivos específicos:

• Refletir sobre as diferentes concepções de linguagem que determinam as


práticas no ensino da língua materna;
• Discutir sobre os conceitos e procedimentos de alfabetização e letramento;
• Conhecer as contribuições que a Linguística, em suas diferentes áreas
(Psicolinguística, Sociolinguística, Linguística Textual, Fonética/Fonologia,
Análise do Discurso, entre outras) proporcionam para o estudo do
funcionamento da linguagem e do processo de ensino e aprendizagem
da língua;
• Compreender o sistema de escrita do português e sua aquisição e
desenvolvimento pelo aprendiz;
• Analisar propostas metodológicas de ensino de leitura e escrita,
observando as que estejam mais próximas dos usos sociais, culturais e
efetivos da língua.

Ementa
Alfabetização e letramento. Contribuições da Linguística ao ensino da língua
portuguesa nas séries iniciais. Métodos de alfabetização: aspectos históricos e
implicações pedagógicas.
UNIDADE I
Alfabetização
e letramento

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Refletir sobre o que é ensinar a língua portuguesa;

Entender as especificidades da alfabetização e do letramento;

Compreender o que é alfabetizar letrando.

ROTEIRO DE ESTUDOS
SEÇÃO 1 – Considerações iniciais sobre o que é ensinar a língua
portuguesa

SEÇÃO 2 – Alfabetização e letramento: conceitos e perspectivas


de ensino

SEÇÃO 3 – Alfabetizar letrando: alternativas de ação


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Observe as reportagens resumidas a seguir:

Brasil tem segundo maior índice de analfabetismo


da América do Sul - 28/09/2007 - 10h05

O que fazer para acabar com o analfabetismo? Opinie.

A queda de 29,1% na taxa de analfabetismo entre 1996 e 2006


não foi suficiente para tirar o Brasil do incômodo penúltimo
lugar no ranking de alfabetização na América do Sul. Segundo
dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
divulgados nesta sexta-feira, o percentual de brasileiros que não
sabem ler e escrever é inferior apenas ao da Bolívia, onde a taxa
de analfabetismo foi de 11,7% em 2005.
Em relação a todos os países latino-americanos e caribenhos, o
Brasil também vai mal no quesito: tem o 9º pior índice do grupo.
[...]
O contingente de analfabetos no Brasil acima de 15 anos, 14 milhões
de pessoas, coloca o país no grupo das 11 nações com mais de 10
milhões de não-alfabetizados, ao lado do Egito, Marrocos, China,
Indonésia, Bangladesh, Índia, Irã, Paquistão, Etiópia e Nigéria.
O grupo é considerado prioritário para a Unesco (Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que criou
programa de metas de erradicação de analfabetismo até 2015.

Disponível em http://noticias.uol.com.br/educacao/ultnot/ult105u5900.jhtm

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Brasil tem 16 milhões de analfabetos
04 de junho de 2003 • 09h50 • atualizado às 20h44

O Brasil tem atualmente cerca de 16 milhões de analfabetos e


metade deste número está concentrada em menos de 10% dos
municípios do país, mostrou uma pesquisa divulgada hoje pelo
Ministério da Educação (MEC). Para o MEC, apesar de não serem
inéditos, os dados do “Mapa do Analfabetismo” são “alarmantes”.
No Brasil existem 16,295 milhões de pessoas incapazes de ler e
escrever pelo menos um bilhete simples. Levando-se em conta
o conceito de “analfabeto funcional”, que inclui as pessoas com
menos de quatro séries de estudo concluídas, o número salta para
33 milhões.
Em apenas 19 das 5.507 cidades brasileiras o total da população
frequentou a escola por pelo menos oito anos. O estudo, realizado
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
(Inep), indica que aproximadamente oito milhões de analfabetos
do país se concentram em 586 cidades brasileiras, com as maiores
taxas aparecendo nas capitais. Só na cidade de São Paulo, campeã
em números absolutos, são mais de 383 mil pessoas. No Rio de
Janeiro, são quase 200 mil.
[...]
No começo do ano, a meta determinada pelo governo era de
alfabetizar 3 milhões de pessoas em 2003, com um orçamento de R$
278 milhões. Mas convênios do MEC com municípios, Estados e
organizações não-governamentais poderiam alcançar este ano até
4,2 milhões de pessoas atualmente analfabetas, se houver fundos.
“Agora temos que correr atrás do dinheiro”, disse o secretário.

Disponível em http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI110852-EI994,00.html

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UNIDADE I
Universidade Aberta do Brasil

Analfabetismo reduz, mas taxa ainda é desafio para o Brasil


18 de novembro de 2010 • 10h36 • atualizado às 12h02

O analfabetismo no Brasil ainda é um dos grandes problemas sociais


que devem ser enfrentados no País, segundo análise da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009, divulgada
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nesta quinta-
feira. O estudo aponta que a população brasileira apresenta uma
elevada taxa de analfabetismo, inclusive se comparada à de outros
países da América Latina, como Equador, Chile e Argentina. Porém,
os dados mostram que houve uma redução deste número e que a
queda da taxa tem sido constante desde o começo da década de
1990, fazendo esse índice recuar para cerca de 9,7%, em 2009.

Entre 1992 e 2009, de acordo com o relatório, a taxa de


analfabetismo foi reduzida em 7,5 pontos percentuais. O número
total de analfabetos no Brasil, porém, permaneceu praticamente
o mesmo nos últimos anos, girando em torno de 14 milhões de
pessoas. Segundo definição internacional, o grau de analfabetismo
de uma população é medido pela taxa de pessoas com 15 anos ou
mais que não sabem ler e escrever um bilhete simples.

O estudo também aponta que a região Nordeste teve a maior redução


na taxa de analfabetismo, passando de 32,7% em 1992 para 18,7%,
em 2009, o que representa um decréscimo superior à verificada nas
demais regiões. Apesar da melhora, a região ainda apresenta um
índice que é quase o dobro da média brasileira e que está bastante
acima das taxas do Sul e do Sudeste, que não ultrapassam 6%. O
indicador pode ser explicado pelo fato de o Nordeste concentrar
53% do total de analfabetos brasileiros na faixa etária analisada.

Tanto no Nordeste quanto no Brasil como um todo, cerca de 90%


dos analfabetos estão na faixa etária de 25 anos ou mais, sendo que
a maior concentração recai sobre a população acima de 40 anos,
16,5%.

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Na população rural, a taxa de analfabetismo é cinco vezes maior
que na urbana, com índice de 22,8% de analfabetos. A população
negra também concentra mais analfabetos (13,4%) em relação à
branca (5,9%). Mas a análise do Ipea destaca que a velocidade
da redução da taxa tem sido maior para os negros: em média 0,76
ponto percentual ao ano, contra 0,27 ponto percentual ao ano para
os brancos.

Em relação às faixas etárias de 15 a 17 anos houve redução da


taxa de analfabetismo de 8,2% em 1992 para 1,5% em 2009. Entre
a população de 18 a 24 anos a redução foi de 8,8% para 2,1%
nesse mesmo período. E embora o número de analfabeto ainda
seja grande na faixa etária de 40 anos ou mais, esta foi a que teve
a maior redução, caindo de 29,2% para 16,5%. O relatório também
indica que a renda é um elemento determinante no analfabetismo,
mostrando que taxa entre os mais pobres (18,1%) é nove vezes
superior à verificada entre os mais ricos (2%).

Disponível em
http://noticias.terra.com.br/educacao/noticias/0,,OI4798210-EI8266,00-analfabe
tismo+reduz+mas+taxa+ainda+e+desafio+para+o+Brasil.html

Não é necessário que você leia integralmente cada uma dessas


reportagens para ficar ciente dos assuntos abordados. A leitura das
manchetes já é suficiente para esclarecê-los e validar a emergência de se
garantir a verdadeira alfabetização para todos.
Bem sabemos que em relação ao lema “alfabetização para todos”
há ainda muito o que fazer, e nós, professores, precisamos continuar nos
mobilizando e buscando alternativas para formar verdadeiros cidadãos
leitores e escritores.
O que pretendemos é instigar em vocês o interesse em adquirir uma
postura investigativa, crítica, reflexiva e autônoma diante do processo
ensino-aprendizagem da língua materna. Uma língua que falamos de
maneira tão natural e espontânea que chega a nos parecer desnecessário
o seu estudo sistemático e aprofundado.

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UNIDADE I
Universidade Aberta do Brasil

Agora, observe as cenas no quadro abaixo e reflita:


Como as pessoas estão se comunicando?

Como você pode verificar, elas se comunicam por meio da língua


oral ou escrita por meio da língua materna. Nossa língua materna está por
toda a parte e em todas as situações de nossa vida. Desde que nascemos
estamos imersos num universo de infinitas mensagens. Verifique o que
diz a professora e linguista Irandé Antunes em seu livro “Muito além da
gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho”:

Uma das constantes universais é a estreita relação que as pessoas mantêm com
a linguagem, diante da qual alimentam crenças, fazem conjeturas, assumem posturas e
atitudes. Muitas vezes, sob inspiração de mitos e suposições fantasiosas. Poucas vezes,
certamente, sob o controle da observação e da investigação científica.
(ANTUNES, 2007, p.19).

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Em vez das “suposições fantasiosas”, criticadas por Antunes (op.
cit.), queremos instaurar uma atitude de análise criteriosa da linguagem,
por acreditarmos que tratar de alfabetização requer conhecimento
profundo – científico – de seu objeto mediador e foco de trabalho: a língua
e a linguagem.
Nesta unidade, você irá conhecer os objetivos e a importância desta
disciplina e refletir sobre os conceitos de alfabetização e letramento,
necessários para a sua formação.
Você será motivado a compreender a língua portuguesa na
perspectiva da ciência da linguagem e, com isso, poderá esclarecer o
porquê de se ensiná-la e quais os pressupostos teóricos que sustentam o
processo ensino-aprendizagem.
Esperamos que ao final da unidade I você possa ter compreendido
algumas questões importantíssimas para a sua atuação profissional.

SEÇÃO 1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O QUE É
ENSINAR A LÍNGUA PORTUGUESA

Se a língua é foco do processo ensino-aprendizagem, é necessário


conhecê-la com profundidade; é necessário conhecer sua estrutura e seu
funcionamento.

Você sabia que há uma ciência que estuda a constituição das


línguas? Você sabe o nome dessa ciência?
Essa ciência é denominada Linguística.

Conhecer os pressupostos da ciência da linguagem é fundamental


para compreender, não somente a constituição estrutural e funcional da

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UNIDADE I
Universidade Aberta do Brasil

língua, mas também o quê, o como e o porquê de se ensinar a língua


materna para seus falantes natos. Você irá estudar a respeito dessa ciência
na unidade II, bem como sobre os conceitos de língua e de linguagem e
suas implicações para o ensino.
Por ora, cabe salientar que a língua permite aos seres humanos a
comunicação, melhor ainda dizer: a interação.
Ação entre
sujeitos

A língua nos permite o exercício da linguagem e é por meio da


linguagem que nos constituímos como sujeitos (seres que agem) no
mundo, construímos e reconstruímos nossa história e fazemo-nos
presentes e atuantes no mundo, interagindo com as pessoas e com tudo
o que nos cerca.

...a língua não pode ser vista tão simplistamente, como uma questão, apenas, de
certo e errado, ou como um conjunto de palavras que pertencem a determinada classe e que
se juntam para formar frases, à volta de um sujeito e de um predicado.
A língua é muito mais que isso tudo. É parte de nós mesmos, de nossa identidade
cultural, histórica, social. É por meio dela que nos socializamos, que interagimos, que
desenvolvemos nosso sentimento de pertencimento a um grupo, a uma comunidade.
(ANTUNES, 2007, p. 22).

A partir das considerações de Irandé Antunes, dispostas no quadro


acima, podemos perceber que a linguagem é de fundamental importância
na escola, porque é, antes de tudo, fundamental fora da escola, e não o
contrário.
É muito importante que o professor alfabetizador compreenda a
linguagem nessa dimensão, pois a linguagem é, o tempo todo, o seu objeto
de trabalho. O professor tem de ensinar a língua porque ela permite o
exercício da linguagem e porque essa linguagem é fundamental fora da
escola; ela é importante para a vida e por toda a vida.

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Observe a tira abaixo e reflita sobre o que ela nos comunica :

É preciso que a escola proponha ações educativas com a linguagem


que façam sentido, que sejam, de fato, significativas e importantes para a
inserção do aluno no mundo letrado, e não vazias de sentido, como bem
expressa a tira.
A esse respeito, Antunes (2007), parafraseando versos de Fernando
Pessoa, alerta para o sem-sentido com que muitas vezes a linguagem é
vista na escola. Leia e confira:

Pobre língua escolar!


Tantas vezes fora de voz e
tão cheia de não ser nada!

Triste poema, não?

Certamente, você já pôde perceber que estamos procurando


apresentar-lhe a língua e a linguagem como fenômenos científicos,
que envolvem elementos que vão além da dimensão grafo-fonêmica.
A língua é um fenômeno que engloba aspectos gráficos, sonoros e
estruturais, mas também muitos outros (inclusive cognitivos) que
precisam ser compreendidos e considerados durante o processo de
ensino-aprendizagem.

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UNIDADE I
Universidade Aberta do Brasil

Antes, porém, de tratarmos desse fenômeno tão importante que é


a língua queremos compartilhar com vocês alguns conceitos essenciais
que irão esclarecer os pressupostos da disciplina e a importância do
entendimento do que sejam a alfabetização e o letramento; para isso,
vamos iniciar com algumas considerações:

Observe o que diz Luiz Carlos Cagliari, professor de fonética e


fonologia e doutor em Linguística:

Primordialmente, a alfabetização é a aprendizagem


da leitura e da escrita. (CAGLIARI, 1997, p. 8).

Tomando essa afirmação como base, pensar em alfabetização é


pensar em ensino-aprendizagem de uma língua, pois, para ler e escrever,
Um sistema representa
é necessário conhecer o sistema linguístico dessa língua, certo? E, no
um conjunto organizado
em que um elemento nosso caso específico, habitantes do Brasil, é preciso conhecer o sistema
se define pelos outros.
linguístico da língua portuguesa.
A língua é, portanto,
um sistema de signos.
Cada signo se define
Leia, abaixo, o que mais nos ensina Cagliari (1997):
em relação aos demais.

Uma criança de 7 anos que entra na escola para se


alfabetizar já é capaz de entender e falar a língua portuguesa com
desembaraço e precisão, nas mais diversas circunstâncias. (p. 16).

Qualquer criança que ingressa na escola aprendeu a


falar e a entender a linguagem sem necessitar de treinamentos
específicos ou de prontidão para isso. Ninguém precisou arranjar
a linguagem em ordem de dificuldades crescentes para facilitar
o aprendizado da criança [...] Ela simplesmente se encontrou no
meio de pessoas que falavam e aprendeu. (p.17).

O professor destaca que a criança, ao iniciar seu processo escolar,


já conhece a língua materna, já fala essa língua, já a utiliza em diversos
contextos de comunicação; já é, portanto, um falante nativo dessa língua.

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Verifique o que Cagliari (1997) esclarece a respeito:

Quando se diz que a criança já é um falante nativo de uma


língua, significa que ela dispõe de um vocabulário e de regras
gramaticais. (op. cit., p.18).

Obs. Regras gramaticais próprias, internalizadas e que não


nos permitem a possibilidade de construir Mariou para Maria,
por exemplo; mas que nos permitem, por associação, flexionar
determinadas classes de palavras, como os verbos.

Uma característica da fala da criança que chama a atenção


do adulto é o fato de ela generalizar regras [...] É quando a
criança diz eu fazi, em vez de eu fiz, como eu vendi, comi, etc.
Qualquer manifestação linguística, desde a mais tenra idade, tem
vocabulário e regras” (op. cit. , p. 19).

O interessante disso é que a língua que ela conhece (e usa) é uma


língua real, ou seja, uma língua que ela, de fato, utiliza (e ouve) em suas
comunicações diárias com os pais, irmãos, amigos e consigo mesma, ao
refletir interiormente acerca das situações que a circundam.
Portanto, ensinar a escrita:

impõe necessariamente que a escrita seja relevante


à vida [...] que as letras se tornem elementos da
vida das crianças, da mesma maneira como, por
exemplo, a fala. Da mesma forma que as crianças
aprendem a falar, elas podem muito bem aprender
a ler e a escrever. (VYGOTSKY, 1989).

Certa vez, uma criança de 3 anos olhou para o


número de sua casa e disse: - Mamãe, ali tem o meu
nome?

Esse fato pode parecer estranho para quem não conhece o processo
de aprendizado da linguagem escrita infantil, mas é extremamente
compreensível para quem o conhece.

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UNIDADE I
Universidade Aberta do Brasil

O que podemos perceber nesse episódio?


Essa criança já demonstra entender uma função essencial da língua:
designar coisas; demonstra saber também que essa simbologia possui
caracteres, códigos e que serve para escrever, registrar.
O que ela ainda não distinguiu foi a diferença entre a língua
portuguesa, feita de símbolos gráficos, e a matemática, feita também de
símbolos, porém numéricos; o que, sem dúvida, irá fazer em breve, pois
isso é o que ocorre durante o processo de aprendizagem e de relação
entre linguagem e pensamento, segundo Vygotsky.
Para entender melhor, leia o quadro abaixo:

A relação existente entre pensamento e linguagem oral não se dá de forma mecânica.


O processo de articulação entre ambos é unitário e sua relação é simultânea: pensamento e
linguagem não constituem dois movimentos distintos, no processo global de desenvolvimento
do indivíduo. Ao contrário, eles compõem essa totalidade, sendo determinantes e
determinados por ela.
A palavra é um signo social e seu significado, para a criança, é inferido nas situações
reais de interação e interlocução. Exposta ao meio social em que a linguagem circula, a
criança dela se apropria, sem necessidade de um conhecimento formal de gramática de sua
língua. (GARCIA, 1997, p. 56).

Se o aluno já sabe português, vamos ensinar o quê? (CAGLIARI,


1998).

O a e i o u somente?

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Nosso aluno pode saber “algumas coisas, mas não sabe outras”,
ressalta Cagliari (1997). Por essa razão, o ensino de língua portuguesa
para os alunos deve, de modo geral, mostrar os usos que a linguagem
humana tem e como os alunos devem fazer para entender ao máximo esses
usos nas modalidades escrita e oral da língua e em diferentes situações.

[...] o professor de português deve ensinar aos alunos o que é uma língua, quais as
propriedades e usos que ela realmente tem, qual é o comportamento da sociedade e dos
indivíduos com relação aos usos linguísticos, nas mais variadas situações de suas vidas
[...] A escola, tradicionalmente, tem se apegado a umas tantas coisas a respeito da língua e
julgado que isso é tudo. (op. cit., 1997, p. 28).

A criança que se inicia na alfabetização já é um falante capaz de entender e falar


a língua portuguesa com desembaraço e precisão nas circunstâncias de sua vida em que
precisa usar a linguagem. Mas não sabe escrever nem ler. Esses são os novos usos da
linguagem para ela, e é isso que ela espera da escola. (op. cit.,1997).

De acordo com o professor e linguista Luiz Carlos Cagliari, é muito


importante que, na escola, se ensine a língua para esses usuários nativos
na perspectiva de seus usos reais, cotidianos e não como se esta fosse uma
“língua estrangeira”, uma língua que a criança nunca fala, nunca ouve e
nunca usará, uma língua artificial e sem vida que ela só vê, usa e escreve
na escola, uma língua, portanto, com fins meramente “pedagógicos”, só
para “ensinar” e “aprender” o “português”.

[...] a aula de português é sempre aula de língua, de linguagem, de comunicação.


(FONSECA e FONSECA, 1977).

[...] um espaço onde a criança tenha contato com a leitura e a escrita. Onde possa
pensar sobre o que representa e de que modo se comunica através da escrita. Onde a leitura
e a escrita possam ser usadas com sentido. (GARCIA, 1997).

É, pois, sempre espaço de interlocução, múltiplas situações e de contato com a


pluralidade de discursos verbais e não-verbais. Não lemos apenas livros, mas tudo o que

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UNIDADE I
Universidade Aberta do Brasil

nos cerca. Ensinar Língua Portuguesa, nessa dimensão, é (ou deveria ser) ensinar o aluno a
ser um usuário desenvolto da língua oral e da língua escrita, nas diversas situações de uso e
registro. A aula de Língua Portuguesa é – ou deveria ser – o espaço da palavra, o espaço do
confronto entre sujeitos que leem e se leem, escrevem e se escrevem, na medida em que,
ao se perceberem sujeitos da história, utilizem a linguagem como possibilidade de leitura e
escrita do outro e de si mesmo, marcando verbalmente sua história através da palavra.

Durante muito tempo, o objetivo do ensino de língua materna esteve


centrado na codificação e decodificação da língua, já que esta era vista
como um sistema a serviço da comunicação (você verá mais detalhes na
unidade II). Alterações foram ocorrendo e a formação de uma diferente
concepção de língua e de linguagem fez surgir uma série de respostas
para a pergunta:
Para que se dá aulas de português a falantes nativos de português?
Em outros termos:
Qual o objetivo de ensinar uma língua que o aluno já conhece e
utiliza?

Essa indagação, feita por diversos estudiosos, é discutida no livro de


Luis Carlos Travaglia (1998, p.17) e o próprio autor, alicerçado em diversas
áreas do conhecimento – linguística, psicolinguística, sociolinguística,
pedagógica e sociológica - reflete sobre quatro possibilidades de resposta:

• Desenvolver a capacidade do usuário de empregar


adequadamente a língua nas mais diversas situações de
comunicação.
• Levar o aluno a dominar a norma culta e a variedade escrita da
língua.
• Levar o aluno ao conhecimento da instituição social que é a
língua, ao conhecimento de como ela é constituída e de como
ela funciona.
• Ensinar o aluno a pensar e a raciocinar.

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
De acordo com o que estivemos discutindo até aqui, das quatro respostas apresentadas
por Travaglia, qual deve ser considerada como objetivo prioritário para o ensino de língua
materna?

Se você respondeu que é a primeira resposta, acertou!

É consenso que o objetivo fundamental do ensino de língua


materna é desenvolver a competência comunicativa dos usuários da
língua (falante, escritor/ouvinte, leitor), ou seja, “a capacidade de o
falante empregar adequadamente a língua nas diversas situações de
comunicação”. (TRAVAGLIA, 1998). Esse é o alvo.

Você deve estar se perguntando, e a gramática?


E a norma culta?

hhhhh?
hhh?

É bom frisar que o propósito de propiciar ao aluno o domínio da


norma culta não é abandonado; rejeitar essa possibilidade seria negar o
direito à cidadania, pois, invariavelmente, essa é a modalidade linguística
usada pelo grupo do poder da sociedade, e, por essa razão, eleita como
padrão. (FIAD e CARBONARI, 1985, p. 34). Também não se está dizendo
que se deve abandonar o ensino de gramática; o que se quer dizer é que
se deve repensar a questão do para quê e do modo como se deve ensinar
“gramática”.

O que se quer reforçar é que o objetivo é abandonar o ensino de


língua sem sentido ou apenas para tentar fixar por meio de memorizações
e treinos os seus grafemas e fonemas, unindo-os sílaba a sílaba para formar

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UNIDADE I
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palavras soltas e descontextualizadas, de maneira artificial e fora de


propósito; significa, igualmente, o abandono do ensino de nomenclaturas
e classificações gramaticais sem que se compreendam suas verdadeiras
funções e possíveis (e impossíveis) junções nos diferentes contextos.

A partir do quadro abaixo, o que significa priorizar o desenvolvimento da competência


comunicativa do aluno que vive imerso em sociedades cada vez mais letradas?

A imagem desse quadro pretende chamar a sua atenção para a


existência dos mais variados tipos de textos que circulam socialmente..
Portanto, desenvolver a competência comunicativa do aluno significa
afirmar a necessidade de promover no espaço da sala de aula o encontro
com a diversidade textual
que existe tão profusamente
fora dela. Necessariamente,
portanto, significa propiciar
no âmbito da sala de aula
o encontro com as diversas
situações de leitura e produção
de textos.

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
É preciso realizar a abertura da aula para a pluralidade de discursos,
recomendaram Fonseca e Fonseca, isso já em1977.
Discurso – toda
Podemos levantar uma série de razões para atividade comunicativa
de um locutor,
concordar com os autores citados acima, entre elas: numa situação
de comunicação
• o acesso aos diversos discursos se dá por meio das determinada,
englobando não só um
• práticas sociais de leitura e de escrita cotidianas; conjunto de enunciados
• o acesso aos diversos discursos nos aproxima da linguagem e por ele produzidos em
tal situação [...] como
• do estilo vocabular de outros produtores. também o evento de
sua comunicação.
Somente essas duas razões já seriam suficientes para justificar o (TRAVAGLIA, 1998, p. 67).

trabalho com a diversidade de textos em sala de aula.

Observe agora o texto que segue, produzido por uma criança em


processo de alfabetização:

A menina que adorava o seu passsarinho.Era uma vez uma menina. Um dia ela foi
passear no parque. Aí ela chegou em casa, aí não encontrou o seu passarinho. Aí ela foi
na rua procurar ele. Aí ela o achou ele ela foi para casa.
(In: GARCIA, 1997, p.102).

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O que esse texto, retirado do livro “Revisitando a Pré-escola”, nos


revela?

Entre tantas revelações destacadas pela autora do livro, destacamos


e sintetizamos as seguintes:

• Mesmo que a criança não domine o código convencional da


escrita, é capaz de utilizá-lo com sentido em seus textos.
• A criança constrói conhecimentos sobre a linguagem escrita, na
medida em que se vale de conhecimentos que já possui para
realizar antecipações, elaborar hipóteses, realizar experiências,
confrontando o conhecimento anterior com os novos dados que
a experiência textual lhe fornece.
• A criança aprende por meio da mediação com os outros e com
os textos.
• Aprender a linguagem escrita é compreender seu significado e
Texto – unidade linguística funcionalidade por meio da interação entre leitor e texto.
concreta (perceptível
pela visão ou audição),
que é tomada pelos
usuários da língua (falante, Os textos são concebidos como lugar de entrada para “o diálogo
escritor/ouvinte, leitor), do aluno com a infinidade de outros textos” (GERALDI, 1997). Essa
em uma situação de
interação comunicativa perspectiva dialógica entre texto e leitor possibilita ao aluno a condição
específica, como uma de leitor e produtor contínuo de textos, se lhe for propiciado o contato
unidade de sentido e
como preenchendo uma contínuo com eles.
função comunicativa Afinal, somos todos leitores e escritores em nossa vida diária, pois
reconhecível e reconhecida,
independentemente da a escuta é também uma forma de leitura e a fala não deixa de ser uma
sua extensão. (KOCH e forma de escrita, quando se dita o que se quer dizer, por exemplo.
TRAVAGLIA, 1989, p. 8-9).

Vamos refletir sobre a importância desse contato com textos?

Esse contato requer, favorece e desenvolve mais duas outras


importantes capacidades:

a) A competência gramatical ou linguística: capacidade que todo


usuário da língua tem de formar sequências linguísticas gramaticais
próprias e típicas da língua em questão. Essa capacidade está ligada ao
que Noam Chomsky chamou de “criatividade linguística”, capacidade de
gerar um número infinito de frases gramaticais.

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UNIDADE I
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
A competência gramatical ou linguística de uma língua não é
garantia para a constituição da competência comunicativa, porque não
leva em conta os fatores extralinguísticos envolvidos na sentença, nem
leva em consideração os papéis que os indivíduos desempenham no ato
da comunicação, função social do texto, intencionalidade etc.
Faz-se necessária, portanto, uma outra capacidade: a competência
textual.

b) A competência textual: capacidade de produzir e compreender


diversas modalidades de textos, em variadas situações de interação
comunicativa. Como se sabe, os textos não são iguais uns aos outros.
Existe uma infinidade de textos, diferentes entre si.

Se você tem dúvidas sobre isso, olhe para o seu lado e observe a
quantidade e a variedade de textos que estão a sua volta: folder, panfleto
de supermercado, manual de instrução, notícia do jornal falado ou
impresso, contos e crônicas, poesias, músicas, receitas culinárias, este
livro que você lê agora, as letras e as imagens nos sites de Internet, as
imagens e as letras dispostas nos programas de TV, as falas no rádio que
você ouve... Ufa! Há muitos outros ainda.
Desse modo, tem-se que a competência gramatical ou linguística
e a competência textual favorecem a competência comunicativa, porque
quanto maior o contato com diversos textos, a partir de práticas reais de
leitura e de escrita, maior o contato com diversas formas linguísticas e
textuais: vocabulários, formas de expressão, de estrutura, composição,
enfim, diferentes gêneros de textos, o que favorece o desenvolvimento
da capacidade de compreensão e de produção de textos, verdadeiro alvo
do ensino de língua materna.

A escola, criando espaços para a manifestação da expressão infantil, garante à


criança o direito de dizer a sua palavra, e é dizendo a sua palavra através da escrita que a
criança vai paulatinamente construindo conhecimentos sobre esta modalidade de linguagem,
usando-a com sentido e funcionalidade e, através dela, expressando sua subjetividade e
afirmando sua pessoa.
Ao construir conhecimentos sobre a linguagem escrita, a criança vai progressivamente
construindo uma maestria, que, para além das suas insuficiências ortográficas, permite-lhe
usar este novo código com sentido e funcionalidade. (GARCIA, R.,1997, p.105 e 106).

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Nessa perspectiva, os textos são importantes porque são meios de


acesso às diferentes modalidades de linguagem e, como produto concreto
de uma atividade entre pessoas, tem papel instaurador de sentidos, que
se efetivam durante a participação do leitor, no momento da leitura: “é
para o outro que se produz o texto” (GERALDI, 1997c, p.102); o outro
precisa, portanto, compreendê-lo (construir-lhe um sentido) e quem
produz o texto espera ser compreendido.
Leia a tira bem-humorada abaixo e observe como em toda a
situação que envolve um texto (oral ou escrito) sempre há necessidade de
entendimento entre quem o produz e o outro que o recebe; caso contrário,
não há interação (comunicação) entre os participantes da situação
comunicativa:

Fonte: ABAURRE, 2000

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Observe também, a partir do humor da tira a seguir, como não
basta conhecer o sistema linguístico, identificando grafemas e fonemas, é
preciso compreender o contexto em que esses elementos linguísticos são
empregados, compreender as intenções de produção, entendendo seu
sentido e funcionalidade.

Fonte: Folha de S. P, ano 2009

1. Cada quadro abaixo contém uma produção de texto infantil seguida da avaliação
da professora. Leia atentamente cada uma dessas produções e reflita: o que a professora
priorizou ao avaliá-las? Você concorda com as avaliações feitas? Por quê?

Texto 1 Texto 2

O sapo O sapo

O sapo é muito bonito Na fazentda o meu avô tem um açude


Ele pula para lá e para cá. jcheio de sapinhos. Eles adoram ficar
O sapo tem a pele enrrugada e é muito nojento. cantando tdurandte a noite.
O sapo é verde. nNa fazentda tem sapos diferentes.
O sapo vive na água e na terra. aAlguns são verdes, outros marrons e
Muitas pessoas têm medo dele. outros pintadinhos e jcheios de pverrugas.
O sapo é o marido da sapa. Mamãe e vovó morrem de medo deles.
O sapo adora meter a língua no mosquitinho. Vovô diz que alguns são perigosos porque
pode jogar veneno na gente.
(A/ Parabéns! Tudo certinho!) Eu não tenho medo de sapos.
gGosto de ver eles comendo os bichinhos
que v fiçam na horta da vovó.

(B/ Atenção na ortografia!)

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Texto 3
Produção de texto
(valor: 0,5) Nota 0,1
Agora é a sua vez de criar uma história que um dos personagens seja um fantasma.
Imagine uma situação engraçada, repleta de sustos e fortes emoções.
Lembre-se de que o seu texto deve ter começo (apresentação da história), meio
(desenvolvimento dos fatos) e fim (desfecho).
Parágrafos, pontuação e ortografia correta são fundamentais.
Obs. Segue o texto produzido pela aluna com algumas reconstituições apenas para
facilitar a sua leitura:

Era uma vez um leão, um tigre e uma girafa. Eles viram um filhote de guaxinim morto,
então, quando deu 23h30m eles foram para o cemitério levar o filhote de guaxinim e ficaram
lá até 24h30m quando foram e se perderam.
_ Um macaco, que bom! - disse o tigre!
_ A girafa desconfiada, disse: _ Não sei não... Então ela disse: _ Ele é tão magro é
quase invisível.
Então, o macaco apontou o caminho (de volta). No dia seguinte, foram procurar o
macaco mau (e ou mas) não o encontraram.

2. Observe a palavra “fogo” nas ilustrações a seguir. Podemos dizer que, nas situações
abaixo, essa palavra é um texto? Por quê?

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SEÇÃO 2
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: CONCEITOS
E PERSPECTIVAS DE ENSINO

Nesta seção, iremos abordar as seguintes questões:

• O que é alfabetização?
• O que é letramento?
• Por que a compreensão desses conceitos é necessária?
• Quando podemos dizer “meu aluno está alfabetizado”?
• Quando podemos dizer “meu aluno está sendo letrado”?
• Qual a importância da alfabetização?
• Qual a importância do letramento?

Vamos começar apresentando um conceito sobre alfabetização


bastante diferente do tradicional:

Leia e reflita:

“...alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu


contexto, não numa manipulação mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que
veicula linguagem e realidade” (PAULO FREIRE, 2008).

Esse conceito de alfabetização regida por uma relação dinâmica nos


faz lembrar o pensamento de Rousseau, filósofo suíço, escritor, teólogo
político do século XVIII e grande precursor da reforma pedagógica
contemporânea.

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Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Leia o pensamento de Rousseau no quadro abaixo e observe em que
medida estes pensamentos se aproximam:

Rossseau ressalta que a criança não é um adulto em


miniatura, tem sua própria história, é um ser concreto e real, que
desde cedo constrói suas próprias experiências. A criança deve
crescer aprendendo a prever, julgar, raciocinar, ser suficiente
para si mesma. A educação deve ter início desde o nascimento e
primeiro contato com o mundo, com os homens e com as coisas,
por meio da experiência organizada. Além disso, Rousseau
nos alerta para a massificação a que o homem está sujeito na
sociedade, condenando os métodos que se baseiam apenas na
memorização. Ele ressalta a importância de trabalhar conteúdos
relacionados com a vivência da criança e propõe o trabalho como
meio de levá-la a um conhecimento útil à vida.(ELIAS, 2000).

Para Rousseau, a educação tem o poder de despertar a curiosidade


e o interesse da criança para ela própria chegar ao conhecimento.
Retomemos alguns trechos de seu pensamento:

[...] A criança deve crescer aprendendo a prever, julgar,


raciocinar, ser suficiente para si mesma.
[...]
[...] a importância de trabalhar conteúdos relacionados
com a vivência da criança [...]

O que podemos concluir a partir desses pensamentos?

De imediato, verificamos uma postura que privilegia a construção


de conhecimentos que devem ser, de fato, vivenciados, experimentados
e refletidos pelo aprendiz. E mais ainda, é possível perceber uma
defesa à autonomia, à independência em relação a essa construção de
conhecimentos, uma visão contrária à perspectiva tradicional de ensino e
de alfabetização, que, durante muito tempo, reduziu as práticas de leitura
e de escrita às meras associações de sons e de letras para a construção

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de palavras ou frases curtas, geralmente (ou quase sempre) dissociadas


das situações reais dos aprendizes. Uma linguagem, portanto, dissociada
da realidade. Uma alfabetização em que se objetivava basicamente
a associação de letras e fonemas. O alvo era a aquisição do sistema
linguístico e não o seu desenvolvimento.

Qual é a diferença?

A aquisição do sistema linguístico não garante o desenvolvimento


da competência comunicativa, ou seja, não garante o emprego
adequado da língua em diversas situações e contextos, pois falta ainda
a competência textual, o conhecimento de como funcionam os diversos
textos que circulam a nossa volta, de como as suas intenções de produção,
produtores, veículo de divulgação, etc. influenciam em sua estrutura e
composição. A capacidade linguística não é a única necessária para se
apreender os sentidos de um enunciado.
Sendo assim, a alfabetização é apresentada por diversos
pesquisadores, entre eles Magda Soares (2008), não como uma habilidade,
mas como um conjunto de habilidades.
Estudar esse processo de “natureza complexa e multifacetada”,
segundo Soares (op. cit.), requer considerar as diferentes perspectivas que
envolvem o processo: a psicológica, a psicolinguística, a sociolinguística
e a propriamente linguística.
Leia no quadro a seguir um breve resumo de cada uma dessas
facetas, a partir das considerações de Soares (2010, p. 18 a 21):

Perspectiva psicológica – sob essa perspectiva, estudam-se os


processos psicológicos considerados necessários como pré-requisitos para
a alfabetização e os processos psicológicos por meio dos quais o indivíduo
aprende a ler e a escrever.
Durante longo período, as pesquisas na área da psicologia centraram-
se nas questões relacionadas aos aspectos psicológicos da alfabetização,
como esquema corporal, estruturação espacial e temporal, discriminação
visual e auditiva, psicomotricidade e nas questões fisiológicas e neurológicas
do processo, enfatizando-se as relações de inteligência (QI) e alfabetização.
Tais focalizações resultaram em justificativas para o fracasso escolar, como
a falta de “dom”, de “QI” ou de “aptidões físicas” para aprender. O foco,
então, passou a ser o “como se ensina”, na tentativa de sanar o fracasso.

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Como todas as ciências evoluem em seus estudos, as abordagens
cognitivas passaram a ser o foco de análise da psicologia em relação à
alfabetização. Nesse momento, as contribuições de Piaget, Emília Ferreiro
e Vygotsky passaram a ser decisivas para o entendimento de como a criança
aprende, qual é o processo de aprendizagem da leitura e da escrita e quais
são os processos mentais desencadeados ao aprender. O foco passou a ser
“como as crianças aprendem”.
Perspectiva psicolinguística – relaciona-se com a perspectiva
psicológica, de modo a se confluírem. Dedica-se à análise da maturidade
linguística para a aprendizagem da leitura e da escrita, à relação entre
linguagem e memória, à interação entre a imagem visual e a não visual
no processo de leitura, à determinação da quantidade de informação que
é apreendida pelo sistema visual quando a criança lê, por exemplo. São
inúmeros estudos.
Perspectiva sociolinguística - nessa perspectiva, a alfabetização é
entendida como um processo estreitamente relacionado com os usos sociais
da língua. Questões como: variação linguística, norma padrão, norma culta,
relação entre a modalidade de língua oral e a modalidade de língua escrita,
conceito de erro, passam a ser foco de interesse. As pesquisas advindas dessa
área trouxeram inúmeras contribuições para a alfabetização, pois passou-se
a observar que o processo não é o mesmo nas diferentes regiões do Brasil, e
também a atribuir razões dialetais para o fracasso escolar, já que as crianças
das classes menos favorecidas apresentavam dificuldades bem maiores de
compreensão da língua escrita padrão que lhes era apresentada. O respeito
às variedades linguísticas geográficas e situacionais passou a ser requerido.
Perspectiva linguística – na perspectiva linguística, a ênfase nos
estudos que reforçavam o entendimento de que a escrita não é transposição
da fala, mas sua representação, foram de grande importância.
A não existência de correspondência unívoca entre o sistema fonológico
e o sistema ortográfico representou um avanço no modo de compreender a
relação entre fonemas e grafemas. Por exemplo: escrevemos Estou na mesa,
mas podemos ouvir: Estô na mesa (e o som do s de mesa será o de z); Geléia
e Goiaba têm a mesma letra inicial, mas os sons são diferentes. Escrevemos
Te amo, mas podemos ouvir Ti amu. Ou seja, a perspectiva linguística
contribui para a compreensão de que o processo de alfabetização envolve um
progressivo domínio de regularidades e irregularidades e o reconhecimento
de que língua e ortografia são fenômenos bem distintos.

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Por não se considerar o caráter multifacetado da alfabetização, ela


foi entendida, durante muito tempo, apenas como um processo específico,
ou seja, um processo de domínio dos princípios alfabético-ortográficos
na perspectiva da automatização. Priorizava-se, então, o ensino e não
a aprendizagem. Em outros termos, priorizava-se investigar como o
professor ensina (ou deveria ensinar) e não como a criança aprende (ou
deveria aprender).
Tradicionalmente, portanto, entendia-se que o papel da escola em
relação à aprendizagem da leitura e da escrita limitava-se ao ensino do
sistema alfabético de escrita, ou seja, alfabetizar, no sentido tradicional
do termo, era instrumentalizar o aluno a conhecer e utilizar o alfabeto da
língua.

Revisitando alguns Os conceitos dispostos ao lado são do dicionário Aurélio e foram


conceitos:
apresentados por Magda Soares em diversos seminários com o intuito
ANALFABETISMO: estado
ou condição de analfabeto; de conduzir a reflexão sobre a alfabetização em direção ao sentido de
ANALFABETO: que não
letramento.
conhece o alfabeto, que não
sabe ler e escrever; De acordo com os conceitos do quadro apresentado, analfabeto
ALFABETIZAR: ensinar a
é aquele que é privado do alfabeto, ou seja, aquele que não conhece
ler e a escrever. É tornar
o indivíduo capaz de ler e o alfabeto, que não sabe ler nem escrever, e alfabetização é a ação de
escrever;
alfabetizar, de tornar “alfabeto”.
ALFABETIZAÇÃO: ação de
alfabetizar.
(In SOARES, 2010, p.30 e 31).

Para você se aprofundar nas questões discutidas acerca do tema, recomendamos:


SOARES, M. Alfabetização: um tema em três gêneros. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2010.

Ora, se alfabetizar é a ação de propiciar o domínio do sistema


linguístico de uma língua, e esse domínio é algo desejado e necessário
em sociedades cada vez mais imersas em textos escritos, por que o termo
alfabetização tem sido tão discutido e, às vezes, até incompreendido?
Soares (2008) destaca que, sem dúvida, a alfabetização é um
processo de representação de fonemas e grafemas mas é também um
processo de compreensão/expressão de significados. Não podemos
ignorar essa dupla função.

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UNIDADE I
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No entanto, essa duplicidade de conceitos gera dúvidas, discussões
e diferentes pontos de vista, principalmente porque quando se fala em
domínio do sistema de escrita, há dois fatores a se considerar, e que serão
aprofundados na unidade II:

1. A língua não é um mero código de transmissão de


informações;
2. A linguagem é um fenômeno social, estruturado de forma
dinâmica e, para entendê-la (e produzi-la), é necessário
compreender não somente seus grafemas e fonemas, mas
todos os elementos extralinguísticos envolvidos e que
constituem seu sentido.

A questão da alfabetização tem sido muito discutida devido a


diversos fatores: o fracasso da alfabetização no Brasil, o fracasso na
constituição de leitores e usuários competentes da língua escrita e o fato
de que a aquisição desse sistema de escrita não confere diretamente ao
sujeito a capacidade de inserção no mundo letrado, pois, para isso, será
necessário o desenvolvimento dessa capacidade.
Soares (2010, p. 15) ressalta que nem etimologicamente nem
pedagogicamente o termo alfabetização pode designar tanto o processo
de aquisição da língua escrita quanto o de seu desenvolvimento.
Etimologicamente, o termo alfabetização não ultrapassa o significado
de “levar à aquisição do alfabeto”, ou seja, ensinar o código da língua
escrita, ensinar as habilidades mecânicas de ler e escrever.

Qual o problema desse conceito?

Na realidade, nenhum. Ocorre que, por não se compreender a


linguagem como um evento comunicativo, discursivo, ou seja, produto
de um processo de interação entre sujeitos, uma série de equívocos foi
acontecendo no processo de ensino da língua.
Priorizou-se o ensino-aprendizagem do sistema grafo-fonêmico, que
visava à leitura e à escrita de sílabas, palavras e frases descontextualizadas,
desprovidas de sentido. Essa prática transformava o processo de

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alfabetização em uma atividade de e com a linguagem sem sentido


(conforme apresentado no início dessa unidade), desconsiderando-se os
seus aspectos contextuais e sua função principal: a interação intencional
entre as pessoas.
Entender a alfabetização unicamente como o ensino-aprendizagem
Tecnologia da da mecânica, da “tecnologia da escrita”, implicou reduzir a leitura à
escrita - Sistema
capacidade de decodificar os sinais gráficos, transformando-os em
alfabético de
escrita. “sons”, e a escrita à capacidade de codificar os “sons” em sinais gráficos –
atividades automatizadas e vazias de significação, habilidades mecânicas
somente.

O fato de conhecermos o sistema alfabético e ortográfico de uma língua nos faz


competentes no uso escrito dessa língua? A análise de palavras e frases fora de seus
contextos reais garante a compreensão de seu sentido?

Observe o que diz a professora Sônia Santos:

Atualmente sabe-se que, embora necessário, o conhecimento


das letras não é suficiente para tornar alguém competente no uso
da língua escrita [...]
A escola deve continuar o desenvolvimento da criança nesse
processo, evitando as práticas que a tornam alfabetizada, com
conhecimento do código, mas incapaz de compreender o sentido
dos textos.
Disponível em:
http://www.formacaocontinuada.proex.ufu.br/eixo1/E1_arquivos/
alfabetizacao_letramento.pdf

O que se quer ressaltar aqui é a importância de se alfabetizar, ou


seja, de se ensinar a aprender o sistema da língua escrita, mas também, a
de se praticar atividades de leitura e de escrita em diversas situações em
que esse sistema linguístico esteja sendo, de fato, utilizado como forma de
interação entre pessoas. Devemos ensinar uma língua realmente utilizada

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por seus usuários (estudá-la em diversas situações reais, analisando-a e
entendendo-a) e não uma língua artificial, uma língua só para ensinar.
Veja abaixo como a professora e linguista, Irandé Antunes,
ironicamente, apresenta a questão:

A descontextualização com que tais palavras e frases são


vistas tira de foco o sentido, tira de foco a significação do que é
dito. Daí a gente dizer que Vovó vê o ovo, mesmo quando nenhum
contexto justifique que se diga isso. Diz-se só para treinar. Mas
quando é que na vida real, a gente fala só para treinar? Numa
sessão de fonoaudiologia?
(ANTUNES, I. 2009, p. 99).

Pensar dessa forma, nos conduz a uma perspectiva de ensino-


aprendizagem da língua materna tendo em vista não somente seus
elementos estruturais – letras e fonemas – mas sua função social.

Afinal, para que serve a língua materna?

Para nos comunicarmos, certo?

E como nos comunicamos nas sociedades atuais?

Por meio da linguagem escrita, não é? E para que serve a escrita?


Você já pensou nisso?

Ora, para nos comunicarmos, interagirmos com alguém! Parece


que voltamos ao início deste bloco de perguntas, certo?

Tudo o que se escreve neste mundo tem uma função social.


Ninguém escreve para ninguém e ninguém escreve sem um motivo. Mais
interessante ainda é que mesmo pessoas não alfabetizadas, ou seja, que
não dominam o sistema de escrita, participam, direta ou indiretamente,
de situações em que a leitura e a escrita se fazem presentes.

Observem as crianças e confirmem que, mesmo antes da entrada


delas na escola, já estão inseridas em um universo de linguagens escritas.
Todas essas crianças já presenciaram, em maior ou menor frequência,

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seus pais, avós, irmãos mais velhos, babás ou titios em situações de


comunicação em que a linguagem escrita esteve envolvida, por meio
de bilhetes, contas de telefone, de água, de luz, contracheques, listas de
compras, talão de cheques, torpedos de celulares, convites de aniversário,
casamento etc.

Você já presenciou alguma cena em que a criança reconhece o nome de seu


achocolatado (ou outro produto) preferido, mesmo sem saber ler e escrever esse nome de
modo convencional e sistemático?
Você já presenciou alguma criança passando os dedinhos sobre as letras de um
texto (geralmente livrinho de histórias), contando uma história como se estivesse lendo as
palavras, mesmo sem saber ler e escrever de modo convencional?
Você já presenciou alguma criança “rabiscando” alguma folha de caderno, utilizando
uma forma gestual muito parecida com a de um adulto, numa tentativa de simular uma escrita
convencional?

Com certeza você disse “sim” para algumas questões (ou para
todas) do quadro “Para refletir”.
Isso acontece porque essas crianças vivenciam a leitura e a escrita
no seu dia a dia. Elas sabem que a língua escrita serve para alguma
coisa (ou seja, tem função social) e, mesmo sem saber ler e escrever
convencionalmente, essas crianças já conhecem as funções sociais da
língua escrita.
No livro “Letramento: significados e tendências” de Mello e Ribeiro
(2004, p. 23), os autores ressaltam que muitos dos analfabetos adultos
também conhecem as peculiaridades e as funções da escrita. Pedem, por
exemplo, para alguém ler uma carta, uma conta, uma propaganda, um
panfleto que receberam e até tecem comentários avaliativos sobre o teor
do texto. Pedem também para alguém escrever uma carta ou um outro
texto por eles, ditando-lhe o conteúdo, de acordo com suas intenções.
Essas pessoas não são alfabetizadas, no sentido específico do termo,
mas participam de eventos em que a leitura e a escrita estão presentes,
ou seja, participam de eventos de letramento, práticas em que a leitura e
a escrita estão em situação real, social.
Essa perspectiva nos conduz a uma outra concepção de leitura e
de escrita. Agora não mais apenas como um processo de decodificação e

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codificação, mas como um processo que envolve dois fenômenos diferentes
e complexos, pois é constituído de uma multiplicidade de habilidades,
comportamentos e conhecimentos: a perspectiva do letramento.

Mas, o que é mesmo o letramento?

...é palavra recém-chegada ao vocabulário da Educação e das


Ciências Linguísticas: é na segunda metade dos anos 80, há
cerca de apenas dez anos, portanto, que ela surge no discurso
dos especialistas dessas áreas.
[...]
O que explica o surgimento recente dessa palavra? Novas
palavras são criadas (ou a velhas palavras dá-se um novo sentido)
quando emergem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de
compreender os fenômenos.
[...]
Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender
a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo
social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado
da escrita.
(SOARES, 2010, p. 15 a 18).

Para Vygotsky (1984), o letramento representa o


coroamento de um processo histórico de transformação e
diferenciação no uso de instrumentos mediadores. Representa
também a causa da elaboração de formas mais sofisticadas do
comportamento humano que são chamadas “processos mentais
superiores”, tais como: raciocínio abstrato, memória ativa,
resolução de problemas etc.

Vejamos porque Vygotsky relaciona o letramento aos chamados


“processos mentais superiores”, citados acima.

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Revisitando Leia ao lado com atenção e observe como os conceitos de


alguns conceitos
letramento diferem dos conceitos de alfabetização apresentados
A palavra letramento anteriormente.
é uma tradução
para o português Verifique que nesses conceitos não se mencionam apenas a
da palavra inglesa mecânica, a tecnologia do ler e do escrever, o aprender o sistema da língua
literacy: condição
de ser letrado, no escrita, mas mencionam-se o ensinar e o aprender as práticas sociais da
sentido original, de ter leitura e da escrita.
habilidade de ler e de
escrever.
O que isso faz mudar?
LETRAMENTO:
resultado da ação de
Faz mudar a concepção do que seja ensinar a língua materna, do
ensinar e aprender
as práticas sociais da que seja uma pessoa alfabetizada e uma pessoa letrada.
leitura e da escrita.
Para Soares (apud CARVALHO, 2007, p. 66), essa diferença reside
O estado ou a
condição que adquire na extensão e na qualidade do domínio da leitura e da escrita. Uma
um grupo social ou
pessoa alfabetizada conhece o código alfabético, domina as relações
um indivíduo como
consequência de grafofônicas, ou seja, sabe que sons as letras representam, é capaz de ler
ter-se apropriado
palavras e textos simples, mas não necessariamente é usuário da leitura
da escrita e de suas
práticas sociais. e da escrita na vida social.
(SOARES, 2010, p.
Pessoas alfabetizadas podem, eventualmente, ter pouca ou nenhuma
35-39).
familiaridade com a escrita dos jornais, livros, revistas, documentos, e
muitos outros tipos de textos. Letrado, no sentido em que estamos usando
esse termo, é alguém que se apropriou suficientemente da escrita e da
leitura a ponto de usá-las com desenvoltura, com propriedade, para dar
conta de suas atribuições sociais e profissionais.
Na concepção atual de ensino de língua materna sabe-se que para
usar a escrita não basta estar alfabetizado, ou seja, conhecer o sistema
alfabético. Isso ficou especialmente flagrante nos anos 70.
A UNESCO define como Nesse período, a preocupação com o número acentuado de
analfabeto funcional
analfabetos funcionais, aqueles que apenas sabiam ler e escrever, mas
toda pessoa que sabe
escrever seu próprio não faziam uso da leitura e da escrita, reafirmou a insuficiência do
nome, lê e escreve frases
que se denominava tradicionalmente de “alfabetização” e conduziu à
simples, efetua cálculos
básicos, mas é incapaz de consolidação do conceito de “letramento”.
interpretar o que lê e de
O conceito de alfabetização, portanto, tornou-se insatisfatório, pois,
usar a leitura e a escrita
em atividades cotidianas, uma criança pode saber ler, mas, se não é capaz de ler um livro, uma
o que impossibilita seu
revista, um jornal, se sabe escrever palavras e frases, mas não é capaz
desenvolvimento pessoal
e profissional. www. de escrever uma carta, é alfabetizada, mas não é letrada, ressalta Soares
planetaeducacao.com.br/
(2000).Nessa perspectiva, nas sociedades letradas, ser alfabetizado é
portal/artigo.asp?...

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insuficiente para vivenciar plenamente a cultura escrita e responder às
demandas da sociedade de hoje.
É preciso conhecer as diferentes formas do discurso escrito,
saber como esses discursos se estruturam e em que situações eles são
utilizados. “Isso se classifica como letramento”, afirma Cássia Urbano
Gallo, especialista em psicopedagogia e assessora pedagógica da Pueri
Domus Escolas Associadas .

Nesta perspectiva, é preciso alfabetizar letrando

O letramento é algo que envolve mais que aprender a produzir marcas, porque é produzir
língua escrita; algo que é mais que decifrar marcas feitas por outros, porque é também
interpretar mensagens de diferentes graus de complexidade; algo que também supõe
conhecimento acerca desse objeto tão complexo – a língua escrita – que se apresenta em
uma multiplicidade de usos sociais.
FERREIRO, E. Com todas as letras. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

[...] só recentemente esse termo tem sido necessário, porque só recentemente começamos
a enfrentar uma realidade social em que não basta simplesmente “saber ler e escrever”:
dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a tecnologia do ler e escrever, mas
também que saibam fazer uso dela, incorporando-a ao seu viver, transformando-se assim
seu “estado” ou “condição”, como consequência do domínio dessa tecnologia.
SOARES, M. Letramento e escolarização. In RIBEIRO, E. M. (Org.). Letramento no Brasil.
Global, 2003.

1. Pesquise, reflita e escreva o que você aprendeu a respeito das seguintes questões:
a) O que é alfabetizar, no seu sentido específico?
b) Qual a importância da alfabetização?
c) O que é alfabetizar, no sentido do letramento?
d) Por que a palavra letramento passou a ser necessária no contexto atual de
educação?
e) Qual a importância da inserção do conceito de letramento nas práticas de
alfabetização?

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SEÇÃO 3
ALFABETIZAR LETRANDO:
ALTERNATIVAS DE AÇÃO

Para começar a refletir sobre a questão, leia atentamente o trecho


que segue, retirado do artigo “Nossa língua – nossa pátria” de Magda
Soares e transcrita literalmente para iniciar nossa temática:

Alfabetização e letramento se somam. Ou


melhor, a alfabetização é um componente do
letramento. Considero que é um risco o que se
vinha fazendo, ou se vem fazendo, repetindo-se
que alfabetização não é apenas ensinar a ler e a
escrever, desmerecendo assim, de certa forma,
a importância de ensinar a ler e a escrever. É
verdade que esta é uma maneira de reconhecer
que não basta saber ler e escrever, mas, ao
mesmo tempo, pode levar também a perder-
se a especificidade do processo de codificação
de fonemas e decodificação de grafemas,
apropriação do sistema alfabético e ortográfico da
língua, aquisição que é necessária, mais que isso,
é imprescindível para a entrada no mundo da
escrita. Um processo complexo, difícil de ensinar
e difícil de aprender, por isso é importante que seja
considerado em sua especificidade. Mas isso não
quer dizer que os dois processos, alfabetização
e letramento, sejam processos distintos; na
verdade, não se distinguem, deve-se alfabetizar
letrando. (SOARES, 2000).

Você observou a relação estabelecida entre alfabetização e


letramento nas palavras da autora?
Você percebeu, também, a importância atribuída ao processo de
alfabetização como forma de inserção do sujeito no mundo da escrita?
Entender a alfabetização no contexto do letramento não pode
significar o abandono nem mesmo a redução da importância da apropriação
do sistema alfabético e ortográfico da língua, aquisição “imprescindível
para a entrada no mundo da escrita” (op. cit.).

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Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco


porque, no quadro das atuais concepções psicológicas,
linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada
da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da
escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela
aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização –
e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em
atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem
a língua escrita – o letramento.
(SOARES, M. 2004)

No atual contexto histórico, a produção de novos conhecimentos


e de novas tecnologias e, por conseguinte, a necessidade de recepção
de informações se intensificaram c passando a exigir novas relações
com a leitura e a escrita a fim de atender às novas demandas sociais;
novos comportamentos leitores e escritores passaram a ser necessários
nas instâncias sociais e, também, no ambiente escolar.
Essa nova constituição social, mais crítica e democrática, passa
a exigir uma redefinição não só no conceito de alfabetização, mas de
suas formas práticas de execução, pois, agora, o que se necessita (e se
quer formar) são cidadãos leitores e escritores, participantes ativos de
uma sociedade cada vez mais letrada. Desenvolver suas habilidades e
competências passa, então, a ser imprescindível.
Soares (2004) destaca que a alfabetização e o letramento são
processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a
alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais
de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e
este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da
aprendizagem das relações fonema–grafema, isto é, em dependência da
alfabetização.
A concepção tradicional de alfabetização concebia os dois processos
de modo independente. De um lado, a alfabetização – a aquisição do
sistema convencional de escrita, o aprender a ler como decodificação e
a escrever como codificação; do outro lado, sucedendo a alfabetização,

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o letramento – o desenvolvimento de habilidades textuais de leitura e de
escrita, o convívio com os textos e a compreensão das funções da escrita.

No entanto, a autora enfatiza:


A alfabetização não precede o letramento, os dois processos são
simultâneos.

E o que isso quer dizer, em síntese?


Isso quer dizer que é preciso aliar o ensino sistemático da
escrita alfabética às práticas sociais, cotidianas, de leitura e de escrita,
considerando três aspectos fundamentais e não somente o último: (

Para que serve a escrita?


Como os vários gêneros discursivos se organizam?
Como o sistema alfabético se estrutura?

Adquirir as habilidades de codificação e decodificação de fonemas


e grafemas, em outros termos, o domínio do sistema alfabético, não é
suficiente para alguém se tornar um usuário competente da língua.
Fazer uso competente da leitura e da escrita, conhecendo as
diferentes formas de circulação do discurso escrito, por sua vez, implica
o envolvimento em práticas sociais, culturais, políticas, econômicas,
cognitivas, linguísticas etc.
Assim, pressupõe-se que o aprendizado da leitura e da escrita,
como práticas sociais, faz dos indivíduos pessoas culturalmente e
socialmente letradas. Isso porque o letramento, nas palavras de Soares
(2003), implica habilidades várias:

capacidade de ler ou escrever para atingir


diferentes objetivos – para informar-se, para
interagir com os outros, para imergir no imaginário,
no estético, para ampliar conhecimentos, para
seduzir ou induzir, para divertir-se, para orientar-
se, para apoio à memória, para catarse [...];
habilidades de interpretar e produzir diferentes
tipos de gêneros de textos, habilidades de orientar-
se pelos protocolos de leitura que marcam o texto
ou de lançar mão desses protocolos, ao escrever,
atitudes de inserção efetiva no mundo da escrita,
tendo interesse e prazer em ler e escrever, sabendo
utilizar a escrita para encontrar ou fornecer

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informações e conhecimentos, escrevendo ou lendo


de forma diferenciada, segundo as circunstâncias,
os objetivos, o interlocutor[...] (op. cit. , p. 92).

Essa última citação, por si só, já é uma importante justificativa


para confirmar que a alfabetização deve desenvolver-se em um contexto
de letramento para que, desde o início da escolarização, o ensino-
aprendizagem da leitura e da escrita possa desenvolver no educando
competências e habilidades de uso da leitura e da escrita como prática
social e nas diversas situações sociais em que ele está (ou estará) inserido.
É preciso, portanto, alfabetizar letrando.
Para Marlene Carvalho (2007, p. 69), alfabetizar letrando requer
um trabalho intencional de sensibilização, por meio de atividades
específicas de comunicação, por exemplo: escrever para alguém que não
está presente (bilhetes, correspondência escolar), contar uma história por
escrito, produzir um jornal escolar, um cartaz etc. Assim a escrita passa a
ter função social, enfatiza a autora.

O que fazer, basicamente, neste caso?

Criar no espaço da sala de aula um ambiente letrado, onde a criança


não veja apenas as letras do alfabeto, mas se veja envolvida diariamente e
constantemente com a linguagem escrita, mesmo que ainda não saiba ler
e escrever convencionalmente, ela irá ler por meio da escuta e escrever
por meio da fala ou do registro do professor ou de um coleguinha mais
adiantado.
O professor deve criar um ambiente em que a leitura e a escrita
de textos reais estejam presentes; assim, a criança irá perceber que os
textos escritos são úteis para a comunicação entre pessoas, carregam em
si intenções, significados, histórias várias, ilusões e fantasias.

Mas, convém lembrar: o que são textos reais?

Carvalho disponibiliza uma lista de textos de uso corrente que


podem e devem ser trabalhados para que os alunos percebam as variações
da escrita, decorrentes da variação de objetivos, de público alvo etc. Os
textos são diferentes porque são diferentes as intenções de produção, mas
a língua é a mesma. Ainda bem, não é?

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Vejamos as sugestões de Carvalho (2007, p. 69) no quadro a seguir:

1. Narrativas (histórias de autoria conhecida, ou não; contos de


fadas; his­tórias do folclore, lendas; histórias de vida; “casos”
da vida cotidiana).
2. Listas (de compras, de coisas a fazer, de heróis favoritos, de
persona­gens, de meninos e meninas, de brincadeiras etc.).
3. Poemas (para serem aprendidos de cor, para serem recitados
ou lidos silenciosamente).
4. Receitas de cozinha (receitas simples e econômicas podem
eventual­mente ser preparadas na escola).
5. Quadrinhos (crianças não só leem mas produzem suas próprias
histórias).
6. Bilhetes, cartas e telegramas.
7. Convites (para festas escolares, exposições, reuniões de pais).
8. Cartazes, textos de propaganda (para promover campanhas).
9. Agendas e diários (textos de natureza íntima).
10. Textos didáticos (de Português, Matemática, Estudos Sociais,
Ciên­cias etc.).
11. Reportagens (sobre o que está ocorrendo na escola, no bairro,
na ci­dade).
12. Relatórios de visitas ou de pesquisa.
13. Documentos da vida cotidiana (cheques, requerimentos,
certidões, formulários etc.).
14. Bulas (de remédios de uso cornum).
15. Normas e instruções (como montar um brinquedo, organizar
um jogo etc.).

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Em síntese, o que se propõe é, em primeiro lugar, a necessidade de reconhecimento


da especificidade da alfabetização, entendida como processo de aquisição e apropriação
do sistema da escrita, alfabético e ortográfico; em segundo lugar, e como decorrência, a
importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto de letramento – entendido
este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da escrita, como a participação em
eventos variados de leitura e de escrita, e o consequente desenvolvimento de habilidades de
uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes
positivas em relação a essas práticas; em terceiro lugar, o reconhecimento de que tanto
a alfabetização quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou facetas, a natureza de
cada uma delas demandando uma metodologia diferente, de modo que a aprendizagem
inicial da língua escrita exige múltiplas metodologias, algumas caracterizadas por ensino
direto, explícito e sistemático – particularmente a alfabetização, em suas diferentes facetas
– outras caracterizadas por ensino incidental, indireto e subordinado a possibilidades e
motivações das crianças; em quarto lugar, a necessidade de rever e reformular a formação
dos professores das séries iniciais do ensino fundamental, de modo a torná-los capazes de
enfrentar o grave e reiterado fracasso escolar na aprendizagem inicial da língua escrita nas
escolas brasileiras. (SOARES, 2004).

É bom lembrar que não se trata de letrar ou alfabetizar. O desafio é


conciliar os dois processos, assegurando aos alunos a apropriação do sistema
alfabético-ortográfico, desenvolvendo suas capacidades linguísticas, mas
também proporcionando a eles condições de compreensão e de uso da
língua escrita em várias situações cotidianas e em suas diversas formas
de manifestação. Para isso, o professor alfabetizador precisa ter claro que:

práticas de letramento a se ensinar são aquelas


que, entre as numerosas que ocorrem nos
eventos sociais de letramento, a escola seleciona
para torná-las objetos de ensino, incorporadas
aos currículos, aos programas, aos projetos
pedagógicos, concretizadas em manuais
didáticos; práticas de letramento ensinadas são
aquelas que ocorrem na instância real da sala de
aula, pela tradução dos dispositivos curriculares
e programáticos e das propostas dos manuais
didáticos em ações docentes, desenvolvidas em
eventos de letramento que, por mais que tentem
reproduzir os eventos sociais reais, são sempre
artificiais e didaticamente padronizados; práticas
de letramento adquiridas são aquelas de que,
entre as ensinadas, os alunos efetivamente se
apropriam e levam consigo para a vida fora da
escola. (SOARES, 2003, p.108).

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Nessa perspectiva, o papel do professor é de extrema importância,
pois cabe a ele mais que alfabetizar, realizar o letramento, trabalhar em
prol da interdependência das práticas de leitura e escrita, possibilitando
ao aluno alfabetizar-se e letrar-se:

O necessário é preservar na escola o sentido que a


leitura e a escrita têm como práticas sociais, para
conseguir que os seus alunos se apropriem delas,
possibilitando que se incorporem à comunidade
de leitores e escritores, a fim de que consigam
ser cidadãos da cultura escrita. (LERNER, 2002,
p.18).

Para ampliar as possibilidades de trabalho na perspectiva do alfabetizar letrando,


recomendamos a leitura das obras:

ALMEIDA, G. P. A. Práticas de alfabetização e letramento. São Paulo: Cortez, 2006.


BRAGA, R. M.; SILVESTRE, M. F. B.. Construindo o leitor competente: atividades de leitura
interativa para a sala de aula. São Paulo: Global, 2009.
RAMOS, R. 200 dias de leitura e escrita na escola. São Paulo: Cortez, 2006.

1. Por que e como alfabetizar letrando?


2. Pesquise, nos livros didáticos, exemplos de propostas de atividades. Faça uma
avaliação dessas atividades, verificando se elas visam (ou não) o alfabetizar
letrando:

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UNIDADE II
Contribuições da Linguística
para a formação do
professor alfabetizador

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Refletir sobre as concepções de língua e linguagem e suas implicações
nas práticas de ensino da língua portuguesa;

Conhecer as diferentes teorias aquisicionistas a fim de compreender o


processo de aquisição da linguagem nas modalidades oral e escrita;

Compreender como se processa a produção da fala e reconhecer a


importância dos conhecimentos fonético-fonológicos para o entendimento do
funcionamento da linguagem oral e sua relação com a escrita;

Entender que a língua se manifesta em um conjunto de variedades


determinadas por fatores geográficos, sociais, temporais e de registro;

Propor situações de ensino-aprendizagem a partir de diferentes


variedades linguísticas, combatendo o preconceito linguístico;

Conhecer as regularidades e irregularidades ortográficas e saber como


intervir no ensino das questões ortográficas.

ROTEIRO DE ESTUDOS
SEÇÃO 1 – Concepções de língua/linguagem

SEÇÃO 2 – Aquisição da linguagem

SEÇÃO 3 – Fonética e fonologia aplicadas à alfabetização

SEÇÃO 1 – Variação linguística e ensino

SEÇÃO 2 – Ensino da ortografia


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Futuro(a) educador(a),
Na unidade 1, você conheceu os objetivos e a importância desta
disciplina e pôde refletir sobre os conceitos de alfabetização e letramento,
tão necessários para que o fracasso escolar em relação ao ensino das
práticas de leitura e escrita seja superado.
Nesta segunda unidade, desejamos fortalecer sua formação
linguística para que você se forme um(a) alfabetizador(a) competente.
Para tanto, dialogaremos sobre importantes contribuições dos estudos
linguísticos, para que você compreenda o funcionamento da linguagem
e saiba como mediar o processo de aprender a utilizar a língua oral e
escrita nas diversas e diferentes situações do dia a dia.
Na seção um, discutiremos sobre as diferentes concepções de
linguagem e sobre como elas interferem na maneira como ensinamos a
língua portuguesa para falantes dessa língua.
Entender como se processa a aquisição da linguagem é importante
para compreendermos o percurso realizado pelo sujeito até tornar-se um
falante competente e para relacionarmos os conhecimentos que temos
sobre a fala no processo de aquisição da escrita. Esse é o assunto da
segunda seção.
Como são produzidos os sons da fala, que sons são semelhantes e
de que forma isso pode interferir na escrita infantil são conhecimentos
fundamentais ao professor alfabetizador, e iremos estudá-los na seção três.
A seção quatro propõe que você reflita sobre a riqueza de nossa
língua. Uma riqueza que se manifesta na diversidade de formas de se
expressar. Essa variação que toda língua sofre precisa ser compreendida
e valorizada pelo educador a fim de que os falantes não sejam excluídos
por causa da variedade linguística que utilizam.
Ao chegarmos ao final desta unidade e conhecermos mais sobre o
funcionamento da língua e sobre as relações entre fala e escrita, haverá
necessidade de dialogar sobre o ensino da ortografia, pois a escrita
correta precisa ser ensinada, e não só avaliada.

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Acreditamos que ler, refletir, construir seu ponto de vista sobre os
assuntos aqui tratados farão de você um professor de língua portuguesa
das séries iniciais bem preparado para formar cidadãos que entendam
que a língua é um instrumento de ação social e que com ela serão capazes
de agir, reagir e interagir na sociedade.

SEÇÃO 1
CONCEPÇÕES DE LÍNGUA/LINGUAGEM

Todas as ações realizadas em sala de aula têm subjacentes a si


concepções. A maneira como o professor concebe a linguagem irá
determinar sua forma de trabalho com o objeto de ensino das aulas de
língua, ou seja, a própria língua. Mas por que falamos em linguagem
e língua simultaneamente? Como você entende os termos linguagem e
língua? Que linguagens você utiliza para se comunicar? Que língua (ou
línguas) você usa para conversar com outras pessoas?

Confira se a noção que você tem de linguagem e língua coincide


com os conceitos assumidos pela ciência que estuda a linguagem – a
Linguística:

O termo linguagem pode ser utilizado para designar


qualquer processo de comunicação: linguagem animal, corporal,
das artes, da sinalização, etc. Entretanto, para a Linguística, a
linguagem é uma habilidade/capacidade que só os seres humanos
possuem, a de se comunicar por meio de línguas. Dessa forma,
a Linguística ocupa-se de estudar cientificamente a linguagem
verbal (falada e escrita) utilizada pelo homem. A língua, por sua
vez, é entendida como um sistema de signos vocais utilizado
como meio de comunicação entre os membros de um grupo social.
(CUNHA, COSTA, MARTELOTTA, 2008).

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UNIDADE II
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Para saber mais sobre a Linguística e sua área de atuação e sobre os conceitos de
linguagem e de língua, consulte:

CUNHA, A. F. da; COSTA, M. A.; MARTELOTTA, M. E. Linguística. In MARTELOTTA, M. E.


(Org.) Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008. p. 15-30.
ORLANDI, E. P. O que é Linguística. São Paulo: Brasiliense, 1999.
PETTER, M. Linguagem, língua, linguística. In FIORIN, J. L. (Org.). Introdução à Linguística:
objetos teóricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 11-24.

Neste início de conversa, é importante você entender que


enfatizaremos o estudo das linguagens verbais – falada e escrita.
Mas, como o professor ensina as modalidades oral e escrita da língua
portuguesa? Depende de sua concepção. As concepções de linguagem
mudaram ao longo do tempo e a partir do surgimento de novas teorias,
que implicaram ações metodológicas também diferentes. Travaglia
(1997) afirma que:

uma questão importante para o ensino de língua


materna é a maneira como o professor concebe
a linguagem e a língua, pois o modo como se
concebe a natureza fundamental da língua altera
em muito o como se estrutura o trabalho com
a língua em termos de ensino. A concepção de
linguagem é tão importante quanto a postura que
se tem relativamente à educação.

A forma de ensinar a língua em sala revela a maneira como se


compreende a linguagem. Julgar um aluno que tem dificuldades na
expressão da língua escrita como aquele que “não pensa bem” ou que tem
alguma deficiência intelectual é uma delas. Compreender a linguagem
como algo externo ao indivíduo, algo de que ele se apropria no momento
de comunicar-se e, por isso, insistir num ensino sistemático da estrutura
da língua, como um organismo fixo, homogêneo e imutável é outra.
Entretanto, pensar a linguagem como constitutiva do sujeito no momento
da interação verbal é o modo que leva o professor a considerar a língua
não só em sua estrutura, mas em sua relação com o sujeito no seu meio
sócio-histórico-ideológico.

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A literatura (TRAVAGLIA; KOCH; GERALDI), de forma ampla,
costuma apontar três concepções de linguagem, a saber:

1.1 Linguagem como expressão do pensamento

Analise a cena abaixo e reflita:

O que esta cena sugere sobre a forma como a linguagem pode ser concebida?
De que forma essa concepção se concretiza nas práticas de ensino da língua?

Essa concepção de linguagem remonta aos estudos tradicionais


sobre a língua. É um princípio originado na tradição gramatical grega,
passando pelos latinos, Idade Média e Moderna e, teoricamente,
sendo rompida no início do século XX (PERFEITO, 2005). Segundo
essa concepção, a expressão seria produzida no interior da mente do

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UNIDADE II
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indivíduo, sendo, posteriormente, exteriorizada como uma “tradução


do pensamento”. Dessa forma, a mensagem exposta na cena inicial -
“pessoas que não conseguem se expressar adequadamente também não
pensam” (GERALDI, 2006; TRAVAGLIA, 1997) – revela que o trabalho do
professor, ao conceber a linguagem como expressão do pensamento, será
insistir para que os estudantes organizem seus pensamentos para bem
falar e escrever. Mas como isso acontece?
O ensino da língua confunde-se com o ensino de gramática–
gramática em sua concepção tradicional, normativa, prescritiva. Tal
concepção corresponde à escola tradicional, em que o aluno é considerado
como uma tábula rasa, ou seja, uma página em branco na qual o professor,
símbolo de autoridade e detentor de todo conhecimento, vai “despejar” as
noções essenciais para a sua vida. Em especial, o prescrito na gramática
normativa.
Veja se você reconhece as práticas de ensino de língua, apontadas
por Perfeito (2005), sob a luz dessa concepção:

• Ênfase no ensino da gramática normativo-prescritiva: atividades


de conceituar, classificar, com o objetivo de seguir prescrições
em relação à concordância, pontuação, acentuação, regência,
ortografia. Também eram atividades totalmente desvinculadas
do trabalho com a leitura e a produção textual;
• As atividades de leitura restringiam-se à extração de sentidos
fixados pelo autor ou por um leitor “autorizado”. Os textos
escolhidos eram textos-modelo que se revelavam adequados a
exemplificar a arte de “bem falar e escrever”. A interpretação
desses textos era entendida como única e era dada pelo professor
ou pelas respostas do manual do livro didático;
• Acreditava-se que dominando as regras gramaticais o aluno
seria capaz de escrever bem, portanto as atividades de escrita
eram restritas. A produção textual, ou melhor, as redações
escolares eram sobre temas impostos e desvinculados das
discussões e leituras anteriores; além disso, os textos literários
serviam de modelos para a extração dos aspectos estruturais e
para a imitação de sentidos.

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Como se pôde observar, presumia-se a existência de regras a serem
seguidas para a organização lógica do pensamento e, consequentemente,
da linguagem. Segundo Perfeito (2005), essa concepção de linguagem
manteve-se subjacente ao ensino de língua materna no Brasil até a
década de 60, embora ainda haja repercussões dessa concepção nas
práticas atuais.

1.2 Concepção de língua como instrumento de comunicação

Que diferença você observa entre a imagem da primeira concepção apresentada e


esta? Qual é a ênfase dada à linguagem? Você acredita que houve melhorias no ensino da
língua materna com essa concepção? Quais?

Na década de 70, as aulas de português passaram a ser chamadas


de aulas de Comunicação e Expressão, mudança influenciada pela teoria
da comunicação, desenvolvida por Roman Jakobson. Essa proposta
detalha os envolvidos na situação comunicativa – emissor, receptor,
mensagem, canal, código, contexto - e com base na centração em cada
um dos elementos relaciona as funções da linguagem, respectivamente:
emotiva, conativa, poética, fática, metalinguística, referencial.

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Pesquise em livros de “Comunicação e Expressão” e, até mesmo, em livros do Ensino


Médio atividades sobre as funções da linguagem. Você perceberá como os textos são
classificados de acordo com a função da linguagem predominante.

Nessa concepção, a língua é entendida como um “conjunto de


signos que se combinam segundo regras, e que é capaz de transmitir uma
mensagem, informações de um emissor a um receptor” (TRAVAGLIA,
1997). Assim, basta emissor e receptor dominarem o código para que haja
comunicação. Não há nessa concepção nenhuma referência ao contexto
social e às situações de interlocução. A função da linguagem é meramente
transmitir informações.
Além disso, o estudo da língua privilegia o ensino da gramática
normativa, as regras a serem seguidas, como na concepção anterior.
Na prática pedagógica isso se materializa com descrição gramatical
de fragmentos textuais (quase sempre escritos)e com exercícios de
treinamentos com atividades de múltipla escolha e de completar
lacunas. São recorrentes nos materiais didáticos exercícios próprios do
tecnicismo, como siga o modelo, exercícios que focalizam as estruturas
morfossintáticas. A concepção de leitura subordinada a essa forma de
entender a linguagem é a de leitura-decodificação, com a extração dos
sentidos do texto e atividades que exigem respostas com as palavras do
texto, que devem coincidir com as do autor do livro. A produção de textos
é encaminhada pelo professor ao apresentar as técnicas para redigir
textos narrativos, descritivos e dissertativos. Ao aluno cabe assimilar as
características estruturais de cada tipo de texto e reproduzi-las em seus
textos.
Considerar a linguagem um simples código que precisa ser
dominado pelos interlocutores é desconsiderar o contexto de produção
e de recepção, os interlocutores e a função social que a linguagem
desempenha na constituição do indivíduo. Pensar o ensino de línguas
atualmente significa romper com concepções de língua/linguagem e
ensino que não consideram locutores e interlocutores sujeitos envolvidos

62
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numa prática constante de interação verbal em condições sociais,
históricas e ideológicas que determinam a produção de discursos com
intencionalidades distintas e adaptadas às condições de produção e de
recepção (=interação) desses textos. São essas novas perspectivas que se
encontram na terceira concepção de linguagem.

1.3 Concepção de língua como lugar de ação ou interação

Como o ensino da língua é concebido nesta cena? O que as atividades de leitura


privilegiam? E como as atividades de escrita são conduzidas? Que papéis têm o locutor e o
interlocutor no uso da língua?

Na comparação entre as três cenas apresentadas nesta seção é


possível perceber como as concepções norteiam diferentemente o ensino
da língua. Compreender a linguagem como forma ou lugar de interação
significa entender que:

o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão-


somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou
transmitir informações a outrem, mas sim realizar
ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/
leitor). (TRAVAGLIA, 1997).

Os estudos que consideram a linguagem em situação de uso estão


abrigados sob o rótulo Linguística da Enunciação (incluindo correntes e

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teorias como a Linguística Textual, a Análise do Discurso, a Pragmática, a


Semântica Argumentativa, a Sociolinguística, a Análise da Conversação
etc.), que muito tem a contribuir para o ensino da língua portuguesa: valorizar
os diferentes dialetos usados pelos alunos e ensinar a norma-padrão como
uma dessas variedades e a mais privilegiada socialmente; reconhecer que
os discursos, influenciados pelo contexto sócio-histórico-ideológico, são
materializados em textos que atendem a situações comunicativas diversas
por meio dos gêneros discursivos/textuais; entender que por meio da
linguagem, essencialmente argumentativa, age-se sobre o mundo.
Se a concepção de linguagem é alterada, também se percebem
mudanças nas concepções de leitura, escrita e gramática. A leitura é o
momento não só de extração ou de atribuição de sentidos, mas de construção
de significados, no qual o leitor mobiliza seus conhecimentos linguísticos e
extralinguísticos para reconstruir sentidos. Tal perspectiva:

põe em evidência que o ato de ler não se trata


de um mero transporte das informações do texto
à mente do leitor, de um decifrar de sinais, de
repetição de saber, mas que o leitor, através de
artefatos textuais, imprime sua interpretação, sua
marca pessoal. (PERFEITO, 2005).

As atividades de leitura ganham sentido ao atenderem às práticas


sociais por meio do conhecimento, exploração e significação de diferentes
gêneros textuais. O ensino de gramática passa a ser entendido como
atividades de análise linguística que partem da leitura, produção e
reescrita/refacção de diferentes textos, observando-se suas características
textuais, lexicais e gramaticais. O trabalho com a escrita de textos também
deverá atender a situações de uso social da linguagem através da escrita
e atividades de refacção textual. Além disso, esses três eixos de ensino são
interdependentes e estão interligados nas práticas de ensino-aprendizagem
da língua1, sem deixar de lado as práticas de oralidade.
Ensinar língua portuguesa, nessa perspectiva, é garantir ao aluno
que possa agir em sociedade, que possa ser sujeito de sua história, enfim,
que possa ser um cidadão consciente de seus deveres e apto a lutar por
seus direitos. Assim, poderá exercitar as quatro habilidades linguísticas
básicas: falar, escutar, ler e escrever.

1 No livro dois da disciplina trataremos de forma mais aprofundada as questões de


ensino de leitura, escrita e análise linguística.

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Imagine a seguinte situação:

Partilhando planejamentos...

Lúcia chega à sala de professores para compartilhar com Débora e Regina os planos
de aula para as turmas do 2ª ano. Agitada e muito cansada, Lúcia, a mais experiente das três,
tira seu caderno e diz:
__ Bom, recuperei em meus planejamentos antigos uma bateria de exercícios sobre
substantivos, adjetivos e verbos. Já está na hora de essas crianças conhecerem essas
classes gramaticais e usarem-nas para elaborar frases e textos bem escritos. Afinal, são
elementos essenciais para falar e escrever bem. Além disso, esses exercícios farão com que
eles organizem melhor seus pensamentos e falem e escrevam mais corretamente.
Regina responde afirmativamente e pede uma cópia das atividades para a colega.
__ E vocês, o que prepararam? – pergunta Lúcia.
Débora aguarda a proposta de Regina, que pega em sua pasta um modelo de carta e
uma folha com atividades e explica:
__ Além das atividades gramaticais, penso em trabalharmos com um texto que leve as
crianças a perceberem que sempre que falamos e escrevemos, nossa mensagem é enviada
a alguém. Fiz aqui algumas perguntas para que identifiquem os elementos de uma carta. Mais
ainda, depois de explicarmos a estrutura do texto – remetente, destinatário, local, saudação...
– pedimos que eles escrevam uma carta para que possamos avaliar e dar uma nota.
Lúcia ficou animada. Agora poderiam juntar os planejamentos e teriam atividade para
quase uma semana. Débora, por sua vez, permanecia quieta. Mas não por muito tempo,
pois faltava a sua parte. Ela abriu sua mochila e retirou muitas revistinhas de histórias em
quadrinhos.
__ Meninas, já há algum tempo estou elaborando um projeto para trabalhar com
histórias em quadrinhos. Pensei em começarmos lendo tirinhas de jornais, já separei algumas
e depois vou pedir que os alunos tragam outras. Também separei estas revistas de HQs
para trabalharmos com a leitura desse gênero, observando as características da escrita e
comparando-a à fala, reconhecendo a forma como as personagens interagem, que recursos
são utilizados – sinais de pontuação, onomatopéias, balões – e, por fim, dando às crianças a
oportunidade de produzirem suas histórias para divulgarmos no jornal mural. O que acham?
Lúcia e Regina acharam que tudo aquilo levaria muito tempo e daria muito trabalho,
sem a garantia de que os alunos aprenderiam. As três foram para suas salas de aula, pois o
sinal havia batido.

1- Comente sobre as atividades propostas por cada professora e relacione-as às


concepções estudadas, justificando sua resposta com as características apresentadas nesta
primeira seção. Qual das práticas você considera mais adequada e por quê?

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SEÇÃO 2
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

Toda criança, quando está adquirindo a linguagem, desperta a


atenção de seus pais e professores pela forma “engraçadinha” como fala,
pelas trocas que faz (“fazi” xixi, você “trazeu” a bala, eu “consago”), pelas
palavras que inventa (“estou ‘decrescendo’ a grama”) e principalmente
pela rapidez com que aumenta seu vocabulário e começa a conversar e
contar histórias.
Mais interessante ainda é saber que a criança começa a falar frases
que nunca foram ditas para ela e que adquire sua língua materna em
tão pouco tempo. Essas questões intrigam pais e pesquisadores, que a
partir de observações do desenvolvimento da linguagem infantil criam
hipóteses e teorias para explicar esse fenômeno.
Nesta seção, serão apresentadas brevemente as principais teorias
que buscam explicar como esse processo ocorre. Essas teorias podem ser
divididas em duas vertentes principais. A primeira, o Empirismo, acredita
que o meio determina a aprendizagem de uma língua – o behaviorismo e
o conexionismo a representam. A segunda, o Racionalismo, representado
pelas correntes inatistas de Chomsky e pelo construtivismo cognitivista e
interacionista, postula que existem estruturas inatas que, juntamente com
as experiências, desencadeiam o aprendizado da linguagem. Os estudos
cognitivistas veem a linguagem como parte da cognição e de outras
formas de aprendizado e os estudos inatistas a entendem como um módulo
independente da cognição. A partir dessas teorias estabelece-se um período
crítico para a aquisição e as fases do desenvolvimento linguístico.
Segundo Campbell e Wales (1976), a aquisição da linguagem é
entendida como o processo através do qual as crianças alcançam um
domínio fluente de sua língua nativa. Este tema é fascinante, e vocês, como
futuros educadores, precisam entender como esse processo acontece. Esta
é uma área de estudo muito rica para as teorias psicológicas e linguísticas,
sobretudo para a Psicologia Cognitiva e para as teorias linguísticas

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norteadas pelo gerativismo. Podemos subdividi-la em: 1- aquisição da


língua materna, tanto normal quanto com desvios; 2 – aquisição de
segunda língua entre adultos e crianças, formal e informalmente; 3 –
aquisição da escrita (SCARPA, 2001).

“Há necessidade de que os educadores, principalmente aqueles que têm contato com
as crianças mais jovens, conheçam mais a respeito do desenvolvimento infantil, não só a fim
de evitar que problemas passem despercebidos, mas também para não correrem o risco de
ver problemas onde eles não existem.” (JAIME LUIZ ZORZI).

2.1 As teorias de aquisição

Neste item, você encontrará as principais teorias sobre aquisição.


Esta será uma breve exposição e é necessário lembrar que apesar de todo
esforço para entender o processo de aquisição, ainda há muitas questões
sem resposta. Para tanto, apresentamos primeiramente as teorias
empiristas e em seguida as racionalistas.

2.1.1 O behaviorismo
Skinner (1957) foi o psicólogo mais influente no behaviorismo. Para
ele e os demais behavioristas a aprendizagem da linguagem é análoga
a qualquer outro aprendizado, como andar de bicicleta, dançar etc.
Portanto, adquire-se a linguagem por exposição ao meio e por motivações
como estímulo-resposta-reforço. Imagine que uma criança de um ano vê
sua chupeta no chão (estímulo) e fala “pepeta” (resposta). Se a mãe lhe
dá a chupeta, respondendo positivamente, ela “aprenderá” que sempre
que quiser a chupeta basta dizer “pepeta”.
Segundo Santos (2003), considerando-se a aquisição dessa forma,
o behaviorismo postula “um processo indutivo de aquisição, porque
considera somente os fatos observáveis, sem preocupar-se com a
existência de um componente estruturador, organizador, que possa atuar
em conjunto com os dados da experiência a fim de formar a gramática de
uma língua em particular.”
Entretanto, a proposta de Skinner não responde a questões
importantes. Uma é a rapidez com que as crianças adquirem uma língua.

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Se elas aprendem por exposição ao meio, por influências externas, seria
esperado que demorassem mais a aprendê-la. A segunda diz respeito à
competência. Como as crianças produzem sentenças que nunca ouviram
de seus interlocutores? E, por fim, como entendem frases cuja referência
não se encontra no contexto em que são produzidas?
Tais problemas suscitaram o surgimento de novas teorias, que
consideravam a existência e a importância de um elemento interno, inato,
que desencadearia o processo de aquisição.

2.1.2 O conexionismo
Os modelos conexionistas têm por objetivo explicar os mecanismos
que embasam o processamento mental, e a linguagem está entre esses
processos. Tais propostas buscam a interação da intrincada rede neural com o
ambiente, assumindo a existência de um algoritmo de aprendizagem interno
que permite o aprendizado a partir de experiências. (SANTOS, 2003).
Os conexionistas consideram de grande importância os dados de
entrada (input) e a variabilidade dos dados de saída (output). Os dados
do input reforçam a conexão entre os neurônios e criam uma rede que
permite a codificação de informações. Como entendem que a linguagem
é desencadeada por diversas “entradas”, tais modelos computam todo e
qualquer tipo de estímulo como fator de aprendizagem.
Uma das características desse modelo é que pode gerar tanto
dados corretos, como dados incorretos, dando conta da gradiência e dos
“erros” constantes que aparecem na fala da criança durante o processo
de aquisição da linguagem.

2.1.3 O inatismo
Os estudos inatistas têm como seu principal representante o
linguista Noam Chomsky, que se posiciona contra a visão ambientalista
de aprendizagem da linguagem postulada pelo behaviorismo. Para
Chomsky, a linguagem é uma dotação genética e não um conjunto de
comportamentos verbais, e seria adquirida como resultado do desencadear
de um dispositivo inato, inscrito na mente.
As regras que compõem o dispositivo de aquisição de linguagem
formam a gramática universal (GU), que é responsável pelas semelhanças
entre as línguas. As sentenças ouvidas (input) pela criança levam-na a
selecionar as regras que estão ativas na língua que está adquirindo e
geram como resultado a gramática da língua à qual está exposta.

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Na teoria de Princípios e Parâmetros, também elaborada por


Chomsky, em 1981, a GU é formada por princípios, ou seja, leis que se
aplicam da mesma forma em todas as línguas naturais. Os parâmetros são
leis cujos valores variam entre as línguas e dão origem tanto à diferença
entre elas como à mudança numa mesma língua. O trabalho da criança
está em escolher, a partir do input, o valor que um determinado parâmetro
deve tomar. São exemplos de parâmetros entre as línguas o uso ou não
do sujeito e do objeto nulo, a colocação ou não de clíticos, o tipo de flexão
ou estrutura temática do verbo etc. Uma estrutura sintática que viole
um princípio é agramatical em qualquer língua, porém, uma estrutura
sintática que não atenda a um parâmetro pode ser agramatical em uma
língua, mas não em outras. Dessa forma, a criança não escolhe mais as
regras, mas os valores paramétricos através do input a que é exposta.
Mas, se todo indivíduo já nasce dotado de conhecimentos linguísticos,
como explicar quais são as estratégias e qual o tempo necessário para a
aquisição da linguagem pela criança? Existem duas tendências principais
que podem ser identificadas no desenvolvimento desses estudos: 1a – a
hipótese maturacional: nesta visão, os princípios não estariam prontos
para a criança na GU, ou não estariam operativos inicialmente, ou a
criança não teria acesso a eles por motivos maturacionais; 2a – a que
advoga que desde o princípio a criança apresenta uma estrutura sintática
que se conforma com os princípios e/ou categorias que regem a gramática
do adulto: hipótese continuísta.

Radford (1993) estuda a hipótese maturacional da aquisição da linguagem e postula


etapas que partem da fase pré-linguística, percorrendo os períodos de aquisição de uma
palavra, multivocabular inicial e multivocabular tardia. Para os estudiosos maturacionistas,
as crianças adquirem primeiro as categorias lexicais (substantivos, verbos, adjetivos e
preposições) e depois as categorias funcionais (artigos, pronomes, conjunções, advérbios e
as categorias gramaticais de número, gênero, caso, pessoa, tempo etc.).
Como representante da hipótese continuísta temos Hyams (1986), que postula que
categorias lexicais e funcionais estão disponíveis desde o início do processo de aquisição.
CEZARIO, M. M.; MARTELOTTA. Aquisição da linguagem. In MARTELOTTA, M. E. (Org.)
Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008.

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2.1.4 O construtivismo
O construtivismo apresenta duas vertentes: a cognitivista,
abordagem desenvolvida com base nos estudos do epistemólogo Jean
Piaget, e a interacionista, representada pelos trabalhos de inspiração
vygotskiana. Iniciemos por apresentar o cognitivismo construtivista.

2.1.4.1 O cognitivismo construtivista


Para Piaget, a criança constrói o conhecimento com base na
experiência com o mundo físico, ou seja, na ação sobre o ambiente, através
de assimilações e acomodações responsáveis pelo desenvolvimento da
inteligência em geral. Seu interesse é pela linguagem como porta para a
cognição.
Piaget propõe que o desenvolvimento cognitivo passa por estágios,
a saber: sensório-motor (zero a dezoito meses), pré-operatório (dois a sete
anos), operações concretas (sete a doze anos) e operações formais. Para
os estudos em aquisição interessam os dois primeiros estágios. Ao final
do primeiro estágio (caracterizado pelos exercícios reflexos, os primeiros
hábitos, a coordenação entre a visão e apreensão e a busca de objetos
desaparecidos), por volta dos dezoito meses, se dá o aparecimento da
linguagem. Esse estágio é marcado pela função simbólico-representativa
da linguagem, ou seja, as crianças são capazes de simbolizar por meio de
desenhos, imitações (dissociadas do contexto e tempo em que as ações
imitadas ocorrem), produção de imagens mentais e jogo simbólico.
Um dos aspectos linguísticos que mais chamaram a atenção
de Piaget foi a fala egocêntrica, na qual, segundo o autor, a criança
verbaliza sem intenção de comunicar-se ou sem considerar a existência
de um interlocutor. Essa fala desaparece por volta dos sete anos, quando
o discurso socializado ganha espaço.
As críticas ao modelo piagetiano baseiam-se na interpretação de que
Piaget subestimou o papel do social e do interlocutor no desenvolvimento
da criança. Surgiu, então, a proposta interacionista de Vygotsky para
dar conta do alcance social da aquisição da linguagem e apontar para o
papel do adulto como aquele que cria a intenção comunicativa, como o
facilitador do processo de aquisição.

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2.1.4.2 O interacionismo social


Os trabalhos de inspiração vygotskiana entendem a aquisição da
linguagem como um processo pelo qual a criança se firma como sujeito
da linguagem e pelo qual constrói, ao mesmo tempo, seu conhecimento
de mundo, passando pelo “outro”. Sendo assim, fatores sociais,
comunicativos e culturais são levados em conta e a interação social e a
troca comunicativa são vistas como pré-requisitos para o desenvolvimento
linguístico.
Para Vygotsky, fala e pensamento têm raízes genéticas diferentes,
ou seja, inicialmente há uma dissociação entre fala e pensamento.
Segundo o autor, existe uma fase pré-verbal do pensamento (relacionada
à inteligência prática) e uma fase pré-intelectual da fala (o balbucio, o
choro) mas, por volta dos dois anos, fala e pensamento se unem e dão
início ao comportamento verbal. A fala passa, então, a servir ao intelecto,
e os pensamentos podem ser verbalizados. São características dessa
nova fase a curiosidade pelas palavras e a ampliação do vocabulário.
(SANTOS, 2003).
Quanto à fala egocêntrica, Vygotsky diz que ela é um instrumento
utilizado pela criança para planejar e buscar soluções de problemas e que
tende a ser interiorizada à medida que a criança cresce.
Ferreira (2007), assumindo uma postura interacionista, alerta para
a importância de a criança encontrar no adulto um interlocutor atento e
interessado em ouvir seus relatos ou informações, pois se, ao contrário, o
adulto tira conclusões pela criança ou não lhe dá oportunidades para se
expressar, acaba por subtrair-lhe a condição de sujeito que pensa e age
autonomamente.

Qual é o papel do professor no desenvolvimento da linguagem oral da criança que se


encontra na educação infantil e séries iniciais do EF?
Que situações e atividades podem favorecer as práticas relevantes da oralidade?
O desenvolvimento da linguagem oral influencia na aquisição da linguagem escrita?
De que forma?

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2.2 O “período crítico” na aquisição

Você acredita que haja um período que é mais propício para a


aquisição da linguagem e que depois disso sejam crescentes as dificuldades
para se adquirir uma língua, seja ela a língua materna em situação inicial
de aquisição ou recuperação de traumas e afasias linguísticas, ou ainda,
a aquisição de uma segunda?
Uma evidência de que o período crítico existe são os estudos em
aquisição de segunda língua que provam ser muito difícil dominar uma
língua estrangeira em idade adulta, pois, por mais eficiente que seja o
aprendiz, permanecem construções mal-ajambradas, erros fossilizados
e sotaque. Em dados de uma pesquisa, relatados por Pinker (2002), os
imigrantes que chegaram aos Estados Unidos entre os três e os sete
anos de idade tiveram o mesmo desempenho dos falantes nativos. O
desempenho dos que chegaram entre os oito e os quinze anos piorava
proporcionalmente à idade com que chegaram, e pior ainda foi o
desempenho dos que chegaram entre os dezessete e os trinta e nove anos.
Menuzzi (2001), falando sobre a maturação cerebral e o período
crítico,afirma que há evidências de que tanto a disponibilidade de
certas capacidades linguísticas quanto o curso de desenvolvimento da
linguagem são condicionados pelo estado maturacional do cérebro. Para
comprovar que a hipótese maturacional tem relação com a aquisição cita
os estudos e conclusões de Lenneberg (1967).
Scarpa (2001) também cita as palavras de Lenneberg em favor do
período crítico determinado por fatores biológicos:

Entre dois e três anos de idade, a linguagem


emerge através da interação entre maturação e
aprendizado pré-programado. Entre três anos
de idade e a adolescência, a possibilidade de
aquisição primária da linguagem continua a
ser boa; o indivíduo parece ser mais sensível a
estímulos durante este período e preservar uma
certa flexibilidade inata para a organização de
funções cerebrais para levar a cabo a complexa
integração de subprocessos necessários à
adequada elaboração da fala e da linguagem.
Depois da puberdade, a capacidade de auto-
organização e ajuste às demandas psicológicas
do comportamento verbal declinam rapidamente.
O cérebro comporta-se como se tivesse se fixado
daquela maneira e as habilidades primárias e
básicas não adquiridas até então geralmente
permanecem deficientes até o fim da vida.

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Pinker (2002) corrobora essa tese e afirma que a aquisição da


linguagem normal é certa até os seis anos, fica comprometida dessa idade
até pouco depois da puberdade e é rara depois disso. Embora isso possa
ser atestado em muitas pessoas, outros estudos, como o de Aitchinson
(1989), citado por Scarpa (2001), aponta insuficiências em relação a essa
hipótese.
Os interacionistas também reiteram a importância e as diferenças
dos fatores interativos e socioculturais na aquisição e desenvolvimento
tanto da língua materna quanto de uma segunda língua (estrangeira),
além das diferenças individuais e dos objetivos pretendidos. Zorzi
(2003) reforça a função fundamental dos familiares, que interpretam as
capacidades comunicativas do bebê (gestos, movimentos, expressões,
vocalizações) imprimindo significado a elas e desenvolvendo, além de
papel de interlocutor, o papel de “modelo” que apresenta a língua em
aquisição. Portanto, o grau e a qualidade das interações são determinantes
para a aquisição e o desenvolvimento da linguagem.

2.3 Estágios12 de desenvolvimento da linguagem

Ao acompanhar o crescimento de uma criança, você tem uma noção


de qual é o percurso de seu desenvolvimento linguístico. Segundo Pinker
(2002), o bebê já vem ao mundo equipado com dotes linguísticos. Ele
ouve a fala da mãe ainda no ventre e depois disso continua a aprender
os sons de sua língua e a aparelhar seus sistemas de produção de fala
durante o primeiro ano. A aquisição da linguagem se desenvolve até os
três anos, quando a criança é gramaticalmente correta em quantidade e
qualidade, nos seguintes passos:
• aos três meses produz sons vocálicos;
• entre os cinco e sete meses começa a brincar com os sons;
• entre os sete e oito meses começa a balbuciar sílabas verdadeiras;
• ao final do primeiro ano varia as sílabas, lembrando frases;
• com um ano já compreende palavras e começa a emiti-las;
• aos dezoito meses a linguagem deslancha com o aprendizado
de uma nova palavra a cada duas horas, e o início da sintaxe

12 O conceito de estágio não é estático. A sucessão de estágios não se dá linearmente,


e para descrevê-la a metáfora da espiral é mais apropriada. (PERRONI, 1994).

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contendo cadeias com duas palavras dispostas corretamente;
• ao final do segundo ano e meados do terceiro a linguagem da
criança é uma conversa gramatical e fluente, com o aumento
do comprimento das frases, o uso de termos functivos e uma
porcentagem mínima de erros.

Scarpa (2001) segue uma visão interacionista ao apresentar o


quadro do desenvolvimento linguístico da criança. Para a autora, a
criança já é, desde que nasce, inserida num mundo simbólico, em que a
fala do outro a interpreta e lhe imprime significado. Os sons que a criança
balbucia no começo são universais. Conforme o balbucio se padroniza,
antes do aparecimento das primeiras palavras, a sequência e o acervo de
sons passam a se assemelhar mais às características fonéticas da língua
materna. Os elementos prosódicos, como ritmo e entonação, são bastante
salientes tanto na fala da criança quanto na percepção que a criança
tem da fala do adulto, e esses recursos estabelecem primariamente os
processos dialógicos. Nesse processo, a contribuição da criança é gestual
e vocal e a do adulto é linguística e gestual, através da ação e atenção
compartilhadas.
No fim do período do balbucio começam a aparecer as primeiras
palavras. A produção das primeiras palavras e frases mostra indeterminação
semiótica, fonética e categorial, além da não segmentalidade de
sequências de sons em palavras. Entre dois e três anos de idade, a criança
começa a contar histórias, porém a trajetória para a aquisição do discurso
narrativo é longa. Não é antes dos cinco anos que a criança se torna uma
narradora eficiente.
Nota-se ainda que durante o período de aquisição a criança passa
por fases de acerto – “erro” – acerto. A primeira utilização acertada revela
simplesmente imitação, depois vem a fase do “erro”, na qual a criança
está analisando e reanalisando a fala para então voltar à fase do acerto
com a reorganização do sistema linguístico.
Acompanhar e intervir de modo a propiciar o desenvolvimento
da fala de maneira satisfatória é imprescindível ao professor, pois
cabe-lhe ensinar às crianças a adequação de suas falas ao contexto
sociocomunicativo, considerando os diferentes interlocutores e intenções.

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Você deve estar pensando em como acontece a aquisição da linguagem escrita.


Na unidade 1, você já estudou sobre as especificidades da alfabetização e do letramento,
que conjuntamente propiciam à criança a aquisição do código escrito e o uso da leitura
e da escrita em práticas sociais relevantes. E, na próxima unidade, ao estudar sobre as
metodologias de alfabetização, você compreenderá melhor como se processa o domínio do
sistema de escrita. Você também pode consultar o livro Alfabetizando sem o ba-bé-bi-bó-
bu, de Luiz Carlos Cagliari. Lá você encontrará uma descrição de regras que o estudante
precisa saber para aprender a ler e a escrever e sugestões de atividades para o professor
alfabetizador. Bom estudo!

1- Após a leitura desta seção, reflita sobre as questões abaixo:


a- Quais são as contribuições que os estudos em aquisição da linguagem trazem ao
ensino?
b- Quando se inicia o processo de aquisição da linguagem oral, e como se desenvolve?
c- Qual é o papel do adulto no processo de aquisição da linguagem oral e escrita?
d- Para o professor das séries iniciais, por que é importante saber como se processa
a aquisição da linguagem oral?

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SEÇÃO 3
FONÉTICA E FONOLOGIA
APLICADAS À ALFABETIZAÇÃO

Os meninos fizeram todas as combinações necessárias, e no dia


marcado partiram muito cedo, a cavalo no rinoceronte, o qual trotava
um trote mais duro que a sua casca. Trotou, trotou e, depois de muito
trotar, deu com eles numa região onde o ar chiava de modo estranho.
__ Que zumbido será este? – indagou a menina. __ Parece que
andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis.
__ É que já entramos em terras do País da
Gramática – explicou o rinoceronte. __ Estes
zumbidos são os Sons Orais, que voam soltos
no espaço.
__ Não comece a falar difícil que nós ficamos
na mesma – observou Emília. __ Sons orais, que
pedantismo é esse?
__ Som oral quer dizer som produzido pela
boca. A, E, I, O, U são Sons Orais, como dizem
os senhores gramáticos.
__ Pois diga logo que são letras! – gritou
Emília.
__ Mas não são letras! – protestou o
rinoceronte. __Quando você diz A ou O, você
está produzindo um som, não está escrevendo uma letra. Letras são
sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro,
há os Sons Orais; depois é
que aparecem as letras, para
marcar esses Sons Orais.
Entendeu?

(LOBATO, Monteiro. Emília no


País da Gramática. ed. coment. São
Paulo: Globo, 2008. p.16.)

Nesse diálogo entre as personagens de Monteiro Lobato, notamos


que sons e letras, embora constituam uma relação importante que permite
o ler e o escrever, são recursos linguísticos diferentes. Nesta unidade,
você vai estudar sobre os sons do português brasileiro (doravante PB).

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3.1 Conceitos e funções

Você deve estar se perguntando: por que falar sobre os sons da


língua? O que a Fonética e a Fonologia estudam e de que forma esses
conhecimentos interessam ao professor das séries iniciais? O professor
Cagliari responde:

Se a escola tem por objetivo ensinar como a


língua funciona, deve incentivar a fala e mostrar
como ela funciona. Na verdade, uma língua vive
na fala das pessoas e só aí se realiza plenamente.
A escrita preserva uma língua como objeto
inanimado, fossilizado. A vida de uma língua
está na fala. (CAGLIARI, 1997. Grifos nossos)

Os conhecimentos da Fonologia e da Fonética são essenciais para


o professor alfabetizador, pois lhe permitem perceber as relações que se
estabelecem entre a fala e a escrita, compreendendo as hipóteses reveladas
pelos alunos em seu processo inicial de aquisição do sistema de escrita
e instrumentalizando-o para mediar a compreensão do funcionamento
da língua por meio de atividades que proporcionem ao aprendiz o
entendimento das relações, nem sempre biunívocas, entre sons e letras.

FONOLOGIA: ocupa-se dos sons da língua; levanta, classifica


e estabelece as distinções básicas entre os fonemas de uma língua
(SIMÕES, 2006).
FONEMA: unidade mínima de som distintiva, pois tem função
diferenciadora. Ex.: casa/gasa = /k/-/g/.
FONÉTICA: estuda os sons linguísticos concretos, aqueles
que dão substância às formas fonológicas. Procura notar todas
as diferenças perceptíveis dos sons. São os sons produzidos pelo
aparelho fonador e percebidos pelos órgãos auditivos. Ex.: [‘dẽtʃI] –
[‘dẽtʃe] - (“denti” - dente).
FONES: segmentos consonantais e vocálicos identificados na
transcrição fonética.
ALOFONE: unidade que se relaciona à manifestação fonética
de um fonema. EX.: TIA – [tia]- [tʃia].

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3.2 A produção dos sons do português brasileiro e o seu estudo

Mas, como os sons são produzidos? O aparelho fonador, composto


pelos sistemas respiratório, fonatório e articulatório, é o responsável pela
produção dos sons.

Fonte:http://www.cefala.org/fonologia/galeria_imagens.php?vcategoria=Aparelho%20
fonador&vnome=Diagrama%204&vfile=aparelhofonador_d4.jpg&vref=4

De acordo com o modo e lugar de articulação dos órgãos do


aparelho fonador formam-se os sons consonantais e vocálicos. Observe
no quadro apresentado por Massini-Cagliari e Cagliari (2001) como são
classificados os sons consonantais do português brasileiro:

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UNIDADE II
Fonte: Massini-Cagliari e Cagliari (2001)
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Na produção dos sons consonantais ocorre uma obstrução total


ou parcial da passagem da corrente de ar pelas cavidades supraglotais,
podendo ou não haver fricção. Isso não acontece com os sons vocálicos.
Aliás, quantos são os sons vocálicos do português? Responda rapidamente
e depois confira se acertou, no quadro abaixo:

Fonte: LAMPRECHT, R. R. et al. Aquisição fonológica do português. Porto Alegre: Artmed,


2004.

Então, você pensava que só existiam cinco sons de vogais? O


movimento da língua, na horizontal e na vertical, modifica a cavidade
bucal na produção dos diferentes sons vocálicos. Dependendo da posição
ocupada pelo fonema na palavra – sílaba tônica ou pré e pós-tônica –
as possibilidades de realização dos sons vocálicos se reduzem e sofrem
maior variação dialetal.

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UNIDADE II
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Você já deve ter observado que basta ouvirmos uma pessoa de
outra região falando para percebermos que os sons/fonemas assumem
diferentes formas de pronúncia. Por exemplo, um paranaense da região
sul falará: “leite quente dói no dente da gente” enquanto um carioca
pronunciará: “leiti quenti dói nu denti da genti”. É a Fonética que estuda
essas diferentes manifestações dos sons da fala e isso importa para você
professor(a), pois a variedade da língua falada pelo aprendiz se refletirá
em sua escrita inicial.
Agora que você já sabe como os sons são produzidos e quais são os
fonemas consonantais e vocálicos do PB, chegou a hora de estudar como
esses conhecimentos podem contribuir para que o professor compreenda
o que é, supostamente, mais fácil e mais difícil para o aluno aprender, o
porquê das trocas de letras, da escrita semelhante à fala, da juntura ou
segmentação das palavras.

Para estudar com mais detalhes os sons do português, consulte:


SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 6. ed.
rev. São Paulo: Contexto, 2002.

3.3 Compreendendo as complexas relações entre sons e letras

Você já deve ter notado que muitas pessoas, principalmente aquelas


que estão em fase de alfabetização, apresentam algumas dificuldades ao
escrever. Por que essas dificuldades acontecem? Lemle (1987) afirma que
o primeiro problema do aprendiz é não compreender que existe uma
relação de simbolização entre as letras e os sons da fala. E isso ocorre
porque as pessoas não prestam atenção aos sons dos fones, dirigindo
sua atenção ao significado e à força do enunciado (ADAMS, 2006). Para
Lemle, há três tipos de relações que precisam ser compreendidas pelo
alfabetizando:

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1. Relação de um para um: cada letra com seu som, cada som com
sua letra;
2. Relações de um para mais de um, determinadas pela posição:
cada letra com um som numa dada posição, cada som com uma
letra numa dada posição;
3. Relações de concorrência: mais de uma letra para o mesmo som
na mesma posição.

Entre esses três tipos de relações há uma gradação de facilidade na


aprendizagem das letras e o primeiro grande progresso na aprendizagem
acontece quando o alfabetizando percebe que há, na escrita, representação
dos sons por letras. A mais simples das relações é a correspondência
biunívoca entre os sons e as letras. Isso quer dizer que para cada fonema
temos uma letra correspondente.

SONS LETRAS SONS LETRAS

[p] p [v] v
[b] b [ɲ] nh
[t] t [ʎ] lh
[d] d [a] a
[f] f

Mesmo com as mais simples das correspondências entre sons e


letras, o aprendiz comete algumas falhas de escrita e leitura. Entre elas,
segundo Lemle (1987), estão a leitura lenta e com soletração e a repetição,
omissão ou trocas de letras, ou ainda, confusões entre os formatos das
letras (por exemplo: p e q, d e b). Ainda nessa fase, a autora aponta falhas
decorrentes da indiferenciação entre consoantes surdas e sonoras, em
virtude do falante sussurrar a palavra para tentar descobrir qual é a letra
que corresponde àquele som, mas como o sussurro é mais semelhante ao
som desvozeado, acaba grafando incorretamente a palavra.

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Faça o teste: sussurre os seguintes pares de palavras e observe como o movimento
de sua boca é igual. Veja se percebe a diferença entre os sons iniciais delas: pato/bato; faca/
vaca; pomba/bomba; teu/deu. Compreendeu agora porque a criança troca esses pares de
letras? Esses pares de palavras são chamados de pares mínimos, pois entre os vocábulos
há só uma diferença: o som inicial e sua letra correspondente, mas essa diferença forma uma
nova palavra com significado também distinto.

Enquanto o aprendiz acredita que a relação entre sons e letras é


biunívoca, ele ainda comete falhas, como a de apresentar em sua escrita uma
transcrição da fala, ou seja, ele grafa as palavras aproximadamente como
as fala - por exemplo: “eu jogu bola; o poti quebrou” – desconsiderando
as particularidades na distribuição das letras e considerando apenas seu
valor central (LEMLE, 1987). Essas “falhas”, expostas por Lemle e que
se comprovam na escrita infantil, exigem do alfabetizador a consciência
de que nossa variedade linguística influencia nessa pronúncia que se
reflete na escrita e que, nesses casos, é necessário explicar ao aluno que
a posição da letra na palavra deve ser levada em conta no momento de
grafá-la. Portanto, em alguns casos tem-se uma regularidade determinada
pela posição, ou seja, há regras que permitem compreender porque
algumas letras assumem outros sons dependendo da posição na palavra.
Essas constatações apontam para um segundo tipo de relação: uma letra
pode representar diferentes sons, segundo a posição e um som pode ser
representado por diferentes letras, segundo a posição.
Como diz Lemle (1987), veja primeiramente os casos de poligamia,
ou seja, “os sons casados com diferentes letras segundo a sua posição”.

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SOM LETRA POSIÇÃO EXEMPLOS

[k] c Diante de a, o, u cachorro, corre, cunhado


qu Diante de e, i queijo, quitanda

[g] g Diante de a, o, u gata, gosto, guria


gu Diante de e, i guerra, guitarra

[i] i Posição tônica ou medial pino, universidade


e Posição átona em final de pente, padre
palavra

[u] u Posição tônica ou medial urubu


o Posição átona em final de campo, amigo
palavra

[R] rr Intervocálico carro, carreta


(r forte) r Outras posições rato, carta, enrugado

[ãʊ] ão Posição tônica coração, falarão


am Posição átona falaram, falam

[kʊ] qu Diante de a, o aquático, quota


qü3 Diante de e, i cinquenta, equino

[gʊ] gu Diante de a, o água, averiguo


gü3 Diante de e, i aguenta, sagui

Durante o processo inicial de escrita muitas dúvidas ortográficas surgem. Cagliari


(1998) afirma que essas dúvidas não devem ser ignoradas e devem receber do professor
respostas corretas, como no caso de perguntas como: “Se eu falo morti, por que não posso
escrever assim?”, “Por que carroça se escreve com dois erres?”, “Como saberei quando usar
ão ou am?”.

3 O trema foi abolido da ortografia do português a partir do novo acordo ortográfico


estabelecido entre os países lusófonos, em 2009. Entretanto, a pronúncia permanece a
mesma. Os nomes próprios ou palavras de origem estrangeira conservam o trema.

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A segunda possibilidade, condicionada à posição, é a relação de
uma letra com diversos sons, ou, como chama Lemle, uma relação de
poliandria.

LETRA SONS POSIÇÃO EXEMPLOS

[s] Início de palavra sapo, sela, sino, som, susto


s [z] Intervocálico casa, mesa, duas aves
[ʃ] Diante de consoante surda casca, pasto, raspa, lápis,
ou em final de palavra, no duas festas
falar carioca
[ʒ] Diante de consoante rasgar, desde, dois garotos
sonora, no falar carioca

m [m] Antes de vogal mala, leme, mina, como,


(indicação de mula, cama
nasalidade
da vogal Depois de vogal, diante de pomba, campo
anterior)
peb

n [n] Antes de vogal nada, neve, nuvem,


(indicação de banana
nasalidade Depois de vogal
da vogal dentista, ensalamento,
anterior)
pintor

l [l] Antes de vogal lata, leite, bolo, solução


[ʊ] Depois de vogal sal, lençol, painel

e [e] ou [ɛ] Não final Pedro, pedra, Estela,


[ɪ] Final de palavra estrela
padre, morte

o [o] ou [ɔ] Não final bolo, bola, mofo, mola


[ʊ] Final de palavra amigo, tempo

As relações entre som-letra e letra-som apresentadas nos quadros


acima, baseados em Lemle (1987), não esgotam as possibilidades de
relação entre sons e letras. Portanto, o professor precisa estar atento ao
dialeto falado em sua região, analisando como se dá essa distribuição.
O conhecimento dessas relações não biunívocas e baseadas em regras

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capacita o professor a compreender as trocas de letras realizadas pelos


aprendizes e a, juntamente com os alunos, construir regras que os
auxiliem no momento de grafar as palavras. Na seção sobre ortografia,
você terá a oportunidade de estudar mais sobre isso.
As relações de concorrência, nas quais mais de uma letra pode
representar um único som, na mesma posição, é a mais difícil das
relações. São as irregularidades que exigem a consulta ao dicionário,
a memorização da grafia das palavras e respostas corretas por parte do
professor. Para isso, algum conhecimento sobre a história da língua,
suas variações e mudanças, é importante. Além disso, auxiliar o aluno
a compreender em que contextos essa concorrência pode ocorrer pode
diminuir os constantes erros ortográficos. Lemle (1987) ainda alerta que o
professor não deve dar tanta importância a erros derivados desse tipo de
relação para não inibir a expressão escrita da criança, pois gradativamente
tais erros diminuirão.

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SONS CONTEXTO LETRAS EXEMPLOS

[z] Intervocálico s mesa, casa, musa


z certeza, nasalização
x exemplo, exame

Intervocálico diante de a, o, u ss pássaro, assoprar, assumir


ç caçador, laço, açúcar
sç nasça, cresça

[s]
Intervocálico diante de e, i ss passeio, assento
c roceiro, ácido
sc cresce, piscina

Diante de a, o, u, antecedido s valsa, falso


por consoante ç calça, força

Diante de e, i, antecedido por s perseguição


consoante c alicerce, independência

Diante de vogal ch chácara, chuva


[ʃ] x xícara, taxa

Diante de consoante surda s pasta


(dialeto carioca) x texto

Fim de palavra e diante s mês, lápis


de consoante ou de pausa z paz, atriz
(dialeto carioca)

[ʒ] Início ou meio de palavra e j jeito, jibóia


diante de e, i g bagageiro, girafa

[ʊ] Fim de sílaba u chapéu, troféu


l mel, pastel

zero Início de sílaba zero ovo, ora


h hálito, homem, hiena

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O professor Luiz Carlos Cagliari, em seu livro Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu,


apresenta um apêndice de estudo das letras. Nele, você professor, encontrará um estudo
mais detalhado da relação entre letras e sons, e sobre como o alfabeto e a ortografia
comandam nosso sistema de escrita.

3.4 Consciência fonológica e alfabetização

Você já ouviu falar em consciência fonológica e consciência


fonêmica? Alguns estudiosos defendem que o desenvolvimento da
consciência fonológica é imprescindível para a aquisição da linguagem
escrita, ou seja, para aprender a ler e a escrever. Mas, o que é consciência
fonológica?

É a capacidade de identificar e discriminar


diferentes sons (e suas nuanças: altos, baixos,
graves, agudos, próximos, distantes, suaves,
estridentes, os sons dos animais, dos instrumentos,
dos diferentes objetos). É fundamental para
o desenvolvimento posterior da consciência
fonêmica (identificar que as palavras têm sons)
e da decodificação (identificar a correspondência
entre os sons e as letras). Consciência dos sons em
geral – rimas, palavras, sílabas etc. (OLIVEIRA,
2003).

Mesmo antes de chegar à escola, a criança já está desenvolvendo


sua consciência sobre os sons. Entretanto, essa consciência fonológica
pode ser aprimorada pelo professor de diferentes formas. Ao brincar com
instrumentos, cantar as cantigas populares, recitar parlendas, poesias e
outras brincadeiras que impõem ritmos, rimas e sequências de aliterações
e assonâncias, as crianças vão tomando consciência de que nossa fala é
feita de sons (OLIVEIRA, 2003).
Entretanto, além dessa consciência mais geral, é necessário
desenvolver a capacidade de identificar, utilizar, pensar e brincar com os
sons das palavras. A criança precisa ‘descobrir’ que a palavra é feita de
sons e, depois ou simultaneamente, que esses sons são representados na

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escrita por letras. Para isso, atividades que desenvolvam a consciência
fonêmica são importantes. “Crianças que têm consciência dos fonemas
avançam de forma mais fácil e produtiva para a escrita e para a leitura
criativas. As que não têm consciência dos fonemas correm sérios riscos de
não conseguirem aprender a ler.” (ADAMS, M. J. et al., 2006).
Oliveira ensina como avaliar o nível de consciência fonológica das
crianças:

• Reconhecer palavras que começam com um mesmo som.


Ex.: pedra, teto, Tito, touca;
• Isolar e dizer o primeiro ou último som de uma palavra. Ex.:
casa - /k/ e /a/.;
• Combinar (sintetizar) diferentes sons para formar uma
palavra. Ex.: /l/a/t/a/= lata;
• Decompor (analisar) uma palavra (som) em seus sons mais
elementares. (Ex.:(? upa= /u/p/a/. (OLIVEIRA, 2003)

Trabalhar com o desenvolvimento da consciência fonológica


e fonêmica não significa um retorno ao método fônico, pois as
correspondências letra-fonema não são, em si, apresentadas para
memorização mecânica. Em vez disso, são embutidas nas atividades de
forma a garantir que a apreciação da criança sobre a estrutura fonológica
da língua proporcione uma compreensão segura e produtiva da lógica
de sua representação escrita. Clark (1999), citada por Bortoni-Ricardo,
corrobora essa ideia:

Uma ênfase demasiada na decifração da


palavra pode ser prejudicial ao processo de
aprendizagem, e o ensino criativo da fônica deve
estar firmemente enraizado numa experiência
significativa de aprendizagem da leitura, em que
as palavras estejam contextualizadas em textos
que reflitam o universo cultural dos aprendizes,
despertando, assim, o seu interesse pela leitura.
(CLARK, 1999 apud BORTONI-RICARDO, 2006).

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A figura abaixo pode representar as unidades de ensino da língua.


A criança precisa ter consciência dessas diferentes unidades.

O livro Consciência fonológica em crianças pequenas (ADAMS et al, 2006) apresenta


uma série de atividades lúdicas que proporcionam o desenvolvimento da consciência
fonológica: jogos de escuta; consciência das palavras e frases; consciência silábica;
introduzindo fonemas iniciais e finais; consciência fonêmica; introduzindo as letras e a escrita.
Além de apresentar um teste de avaliação da consciência fonológica.
Vale a pena conferir!

Você está chegando ao final de mais uma importante seção de


estudos para a formação do professor alfabetizador. Com certeza, os
conhecimentos aqui apresentados de forma simples serão um primeiro
passo para os aprofundamentos necessários.

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No livro Considerações sobre a fala e a escrita: fonologia em nova chave (SIMÕES,
2006) você encontra uma revisão teórica sobre a fonologia e uma proposta de abordagem
dos problemas de escrita infantil. Esse livro foi escrito pensando-se na formação de futuros
professores alfabetizadores.

Agora chegou a hora de comprovar a necessidade dos assuntos aqui discutidos. Não
deixe de tirar as dúvidas com suas professoras.

1- A partir dos quadros que apresentam as relações entre sons e letras no PB,
preencha o quadro síntese abaixo:

Correspondências Uma letra Um som Letras que


biunívocas entre representa representado por representam
fonemas e letras diferentes sons, diferentes letras, fonemas idênticos
dependendo da segundo a posição em contextos
posição idênticos

/p/: P L: /l/ ou /u/ /k/: c ou qu /s/ intervocálico:


ss, ç, sc

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2- As atividades abaixo foram propostas em um livro destinado a uma classe de


alfabetização. Quais são seus objetivos?

a- Troque a letra “P” pela letra “B” nas palavras e observe o que acontece. Converse
com o professor e os colegas.
PATO PROA POMPOM POMBA

b- Complete as palavras do texto. Leia com um colega:


i.....mãozinho cho....o intei....o dize..... fo....a
ve...dade cho....a ca....nei....o

c- Leia e discuta:
O que as palavras têm de parecido?
SENTAR – PESCOÇO – OSSOS – DESCANSAR – VOCÊ – AUXÍLIO

3- Os conhecimentos fonético-fonológicos são essenciais para que o professor possa


identificar os problemas de escrita presentes nos textos infantis e compreender o raciocínio
linguístico utilizado pela criança no processo de construção da escrita. Os textos abaixo
foram escritos por alfabetizandos e apresentados por Romualdo (2005) e Bortoni-Ricardo
(2006). Avalie-os, destacando os conhecimentos sobre o sistema alfabético-ortográfico já
adquiridos e citando os problemas ainda existentes:

Texto 1 Texto 2

MINHAS FÉRIAS A buneka que qero e muitograndi


e cuazi du meu tamãio papai noeu
TODO TIA EU ACORDAFA seraqi-vose podi mi da Eça buneca di
TOMAFA MEU LEITE E IA PARA A CASA prezeti. (7 anos, 1ª série EF)
DA MINHA VÓ QUE FICA NA FRENTE
DA MINHA CASA. ASISTIA TESENHO E (BORTONI-RICARDO, 2006)
PRINCAFA DE PONECA.

(ROMUALDO, 2005)

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SEÇÃO 4
VARIAÇÃO LINGUISTICA E ENSINO4

O português são dois

A linguagem
na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.

A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?

Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,


e vai desmatando
o amazonas da minha ignorância.
Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.

Já esqueci a língua em que comia,


em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.

Carlos Drummond de Andrade

4 Parte dessa seção foi apresentada no livro História da Língua Portuguesa II, para
o curso Licenciatura em Letras, UEPG/UAB. (SMANIOTTO, G. C. História da Língua
Portuguesa 2. Ponta Grossa: UEPG/NUTEAD, 2010.)

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Esse belíssimo poema de Drummond nos faz refletir sobre a língua, em especial
sobre o português. Leia-o com atenção e pense: Que relação esse poema pode ter com o
assunto desta seção?

Drummond inicia e finaliza o poema afirmando que “o português são


dois.” Todavia, quando se observa uma língua, qualquer que seja, em suas
manifestações orais e escritas, pode-se confirmar que existem inúmeras e
diferentes formas de usá-la. Nesta seção, você vai estudar sobre a variação
do português falado no Brasil e suas implicações para o ensino.
Para tanto, primeiramente, há que se definir o que se entende
por língua. Faraco e Tezza (1992) afirmam que a língua é um conjunto
de variedades que se manifestam em diferenças sintáticas (aquelas
que resultam da ordem das palavras na frase), morfológicas (aquelas
que decorrem da forma da palavra tomada individualmente), lexicais
(diferentes nomes para o mesmo objeto) e fonéticas (pronúncias diferentes
da mesma unidade sonora, sem distinção de significado).
Se a língua não se apresenta de uma única forma, se não
é homogênea, tampouco impermeável a influências externas e a
condicionamentos internos, nem imutável, como professor que ensina/
ensinará a língua portuguesa, você precisa pensar: que variedade(s)
deve(m) ser ensinadas? De que forma estudar as diferentes variedades?
A fala aceita melhor a variação na língua, enquanto a escrita a rejeita?
Como ensinar outra variedade sem estigmatizar a variedade de origem do
falante e, por consequência, excluí-lo? Esses conhecimentos o capacitarão
a compreender a língua viva a fim de aprendê-la e para ensiná-la.

4.1 “As linguagens da língua”5- o que produz a variação?

Embora vários autores ressaltem a uniformidade do PB, se você fizer


um “tour” pelo país perceberá que ele não é igual em todo o território

5 Título apresentado por Faraco e Tezza (1992) e que representa a riqueza de variedades
e manifestações da língua.

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nacional. A mídia televisiva, especialmente as novelas e os programas


de humor, exploram essas diferenças para caracterizar e/ou caricaturar
as personagens de sexos diferentes (homens e mulheres), de diferentes
idades, regiões e condições socioculturais.
Dessa forma, sempre há variação linguística. Vale lembrar que as
diferenças não são resultado apenas do tempo ou do espaço, mas também
das condições socioculturais. E no português brasileiro isso é bastante
marcante, pois “as divisões ‘dialetais’ no Brasil são menos geográficas do
que socioculturais”, ou seja, as diferenças são maiores entre um homem
culto e seu vizinho analfabeto do que entre dois brasileiros do mesmo
nível sociocultural de regiões distintas (TEYSSIER, 2001).
Portanto, são fatores que determinam a variação (FARACO e TEZZA,
1992):
• A região do falante: falantes que vivem em uma mesma região
caracterizam-se pelo sotaque, pelo vocabulário e pela sintaxe
próprios daquela comunidade. Mesmo quando migram para
outros locais essas características os acompanham sendo
identificados pelos seus interlocutores como “gaúchos”,
“nordestinos”, “mineiros”, “caipiras” etc.
• O nível social do falante, sua escolaridade e sua relação com
a escrita: o primeiro aspecto influencia nos dois seguintes.
Se o falante “passou” mais tempo na escola, seu contato com
a escrita, em seu modo formal, foi maior e isso só foi possível
devido a seu nível socioeconômico.
• A situação de fala: o lugar, a situação específica (um incêndio,
uma aula), a intenção do texto (oral ou escrito) e os interlocutores
determinam a forma como a língua será falada.
• Além desses fatores, a diferença de idade entre os interlocutores
(crianças, jovens e idosos), o gênero (homens e mulheres),
as atividades profissionais e a rede social (grupos dos quais
fazemos parte: uso de jargões, gírias) também determinam o uso
variado da língua. (BORTONI-RICARDO, 2004).

Mas, por que falar sobre variação na língua? Essa reflexão é muito
importante para que você tenha consciência de que fala, escreve e vai
ensinar uma língua viva. Leve isso em conta em suas aulas e valorize
as diferenças, sem deixar de apresentar a variedade que é prestigiada
socialmente e que é usada como instrumento de poder. Veja, agora, os

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tipos de variação que estão relacionados aos fatores acima expostos.
O português brasileiro, “filho” do português europeu e da miscelância
entre línguas indígenas, africanas, europeias e não europeias, trazidas
mais tarde pelos imigrantes, apresentou-se de diferentes formas ao longo
do tempo. A essa variação no tempo denomina-se variação diacrônica. Variação
diacrônica
Quer ler um exemplo? do grego dia
(através de) +
kronos (tempo)

Lenda do Rei Lear

Este rrey Leyr nom ouue filho, mas ouue tres filhas muy
fermosas e amaua-as muito. E huum dia ouue sas rrazõoes com
ellas e disse-lhes que lhe dissessem verdade, qual d’ellas o amaua
mais. Disse a mayor que nom auia cousa no mundo que tanto
amasse como elle; e disse a outra que o amaua tanto como ssy
mesma; e disse a terçeira, que era a meor, que o amaua tanto
como deue d’amar filha a padre. E elle quis-lhe mall porém, e
por esto nom lhe quis dar parte do rreyno. E casou a filha mayor
com o duque de Cornoalha, e casou a outra com rrey de Scocia,
e nom curou da meor. Mas ela por sa vemtuira casou-se melhor
que nenhüa das outras, ca se pagou d’ella el-rrey de Framça,
e filhou-a por molher. E depois seu padre d’ella em sa velhiçe
filharom1he seus gemrros a terra, e foy mallandamte, e ouue a
tornar aa merçee d’ell-rrey de Framça e de sa filha, a meor, a que
nom quis dar parte do rreyno. E elles reçeberom-no muy bem e
derom-lhe todas as cousas que lhe forom mester, e homrrarom-no
mentre foy uiuo; e morreo em seu poder.
(Vasconcelos apud Faraco, 2005)

O que você compreendeu do texto? Em que língua ele está escrito? Por que você
chegou a esta conclusão? Há palavras desconhecidas? Quais? Há palavras que você
conhece, mas que parecem ter sido usadas com significados diferentes? Quais são? Que
outros aspectos chamaram a sua atenção?
Este texto é do século XIII ou XIV. Percebeu quantas mudanças?!

99
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Mas a língua não varia só em função do tempo. O lugar também


é determinante para que as línguas variem e caracterizem os falantes
de diferentes regiões. Comparando o português de Portugal às outras
variedades do português, especialmente a do Brasil, você pode comprovar
a variação diatópica.
Variação diatópica
do grego dia
(através de) + Veja um exemplo:
topos (lugar)

O texto abaixo foi escrito por um autor brasileiro, mas em


português de Portugal. Divirta-se e reflita sobre as diferenças
lexicais entre o português de Portugal (PP) e o PB.

UNIFICAÇÃO LINGUÍSTICA, QUE CLAREZA!

Estava a conduzir meu automóvel numa azinhaga com um


borracho muito gira ao lado, quando dei com uma bossa na estrada
de circunvalação que um bera teve a lata de deixar. Escapei de
me espalhar à justa. Em havendo um bufete à frente, convidei
a chavala a um copo. Botei o chiante na berma e ordenamos
ao criado de mesa, uma sande de fiambre em carcaça eu, e ela
um miau. O panasqueiro, com jeito de marialva paneleiro, um
chalado da pinha, embora nos tratando nas palminhas, trouxe-
nos a sande com a carcaça esturrada (e sem caganitas!), e,
faltando-lhe o miau, deu-nos um prego duro. (Millôr Fernandes)

Fonte: http://blog.estadao.
com.br/blog/media/
ilustra1506.jpg

Ao pensar a variação diatópica num país como o Brasil é natural


que, com a influência das imigrações, com o avanço da urbanização e
das tecnologias e as migrações internas, o PB não fosse igual em todo o

100
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território nacional. Porém, os falares de norte a sul do Brasil não dificultam
a intercompreensão, pois os sistemas fonológico e sintático da língua são
pouco afetados. Ilari e Basso (2007) apresentam os seguintes fatos de
ordem fonológica e morfossintática que marcam o caráter regional das
variedades do PB: (Se você tiver alguma dificuldade com as transcrições
fonéticas, consulte a seção anterior.)

Fatos fonético-fonológicos:

• palatalização de /s/ e /z/ finais de sílaba e de palavra: mais


pronunciado [maj∫]. Área: marca da fala carioca, mas encontrável
no Espírito Santo, regiões de Minas Gerais e em certos falares do
Pará, Amazonas e de Pernambuco (Recife);
• realização de /s/ final como /h/: mais pronunciado [maih]. Área:
regiões do nordeste e do Rio de Janeiro;
• realização de /v/ e /ʒ/ como /h/ em início de palavra: vamos
pronunciado [hamʊ], gente pronunciado [hẽnt∫I]. Área: regiões do
nordeste, principalmente no Ceará;
• diferentes realizações do /R/ (o r de carro): apical múltipla na região
sul (churrasco, chimarrão, na voz dos gaúchos); uvular na pronúncia
carioca e fricativa velar surda no resto do país;
• ausência da palatalização de /t/ e /d/: no interior de São Paulo e
da região e também em regiões de Pernambuco, Ceará, Maranhão
e Piauí pronuncia-se [lejte kẽte] – leite quente. A pronúncia
palatalizada [dẽnt∫I], [dʒiskʊ] – dente, disco – é generalizada no
território nacional;
• palatalização de /t/ e /d/ antes de /a/ e /o/ por meio de um /j/ anterior:
oito, muito pronunciados [ojt∫ʊ], [mũjt∫ʊ]. Área: regiões do sertão,
Pernambuco, Paraíba, Mato Grosso;
• pronúncias [o] e [e] em final de palavra: [lejte moɹno] – leite morno.
Área: região sul e interior de São Paulo;
• entonação descendente: sei não pronunciado com um contorno
descendente. Área: o nordeste, acima do estado da Bahia;
• abertura das vogais pré-tônicas: decente pronunciado [dɛ’sẽt∫I].
Área: nordeste;
• pronúncia retroflexa do /r/: porta pronunciada com o “erre caipira”.
Área: algumas regiões do sul de Minas Gerais, do Mato Grosso, do
norte do Paraná, de Goiás e de Tocantins;
• pronúncia como [ʊ] ou [ł] do -l que fecha sílaba: a primeira é
generalizada no Brasil, causando confusão entre mau e mal.
A segunda é encontrada no sul. Outros falares regionais, como
o dialeto caipira, apresentam a queda pura e simples do /l/ final
(animá por animal);
• queda do -r final dos infinitivos verbais e dos substantivos: andar,
flor pronunciados [ãda] e [flo]. Área: Minas Gerais, São Paulo e
Espírito Santo;
• pronúncia do fonema /λ/: típica da região dos dialetos caipiras e de
muitas outras: mio por milho, fio por filho;

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Fatos morfossintáticos:

• uso ou omissão dos artigos definidos antes de nomes próprios e


dos nomes de parentesco: na casa de mainha/da mãe; casamento
de Luís/do Luís. Área: a omissão se dá acima da linha que liga a foz
do rio Macuri, entre a Bahia e o Espírito Santo, e a cidade de Mato
Grosso, na divisa com a Bolívia;
• uso de tu e você como pronomes de segunda pessoa: há três
formas de expressar a segunda pessoa no PB: i) tu + verbo na 2a
pessoa (tu és); ii) tu + verbo na 3a pessoa (tu é); iii) você + verbo
na 3a pessoa (você é). Uma ou outra das duas primeiras prevalece
conforme a região nos estados do Sul. Na fala carioca, aparecem a
segunda e a terceira. Nas regiões norte e nordeste, a primeira e a
segunda. A terceira prevalece no restante do país;
• tendência a omitir o pronome reflexivo com verbos pronominais:
por isso não preocupei (me preocupei). Área: fenômeno que está
ampliando sua área a partir de Minas Gerais.

Ilari e Basso alertam que essa lista aponta alguns dos fenômenos
regionais encontrados no PB, porém deve-se considerar a incompletude
dos apontamentos, além dos contatos propiciados pela migração interna.
O exemplo abaixo é uma caricatura do falar mineiro. Divirta-se!

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É no léxico que as diferenças regionais se destacam por meio da


expressão da mesma realidade por palavras diferentes (macaxeira/aipim/
mandioca; pipa/pandorga/raia/papagaio; geleia de frutas/chimia) e por
palavras que têm a mesma forma, mas sentidos diferentes (quitanda –
mercearia, tenda / conjunto de iguarias doces e salgadas feitas com massa
de farinha, em Minas Gerais).

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As diversas variações acontecem concomitantemente, sendo difícil


separá-las. Um bom exemplo é o dialeto caipira, que, embora possa ser
reconhecido em algumas regiões brasileiras, também está associado aos
falantes que pertencem a uma camada social pouco privilegiada e/ou com
pouca escolarização. Os textos de Chico Bento, personagem de Maurício
de Sousa representante do dialeto caipira, são muito utilizados na escola,
mas, muitas vezes, equivocadamente. Bortoni-Ricardo (2004) sugere que
o personagem Chico Bento poderia se transformar - nas salas de aula -
em um símbolo do multiculturalismo que ali deveria ser cultivado.
Outros autores e compositores também fazem uso do dialeto
caipira. Veja, na letra da música Saudosa maloca, como seu compositor
retrata a saudade pela antiga casa, na qual a voz do narrador assume as
características do dialeto caipira.

Saudosa Maloca
(Adoniran Barbosa)

Si o senhor não tá lembrado Mato Grosso quis gritá


Dá licença de contá Mas em cima eu falei:
Que aqui onde agora está Os homis tá cá razão
Esse edifício arto Nós arranja outro lugar
Era uma casa véia Só se conformemo quando o Joca
Um palacete assombradado falou:
Foi aqui seu moço “Deus dá o frio conforme o
Que eu, Mato Grosso e o Joca cobertor”
Construímos nossa maloca E hoje nóis pega a páia nas grama
Mais, um dia do jardim
Nem nóis nem pode se alembrá E prá esquecê nóis cantemos
Veio os homi cas ferramentas assim:
O dono mandô derrubá Saudosa maloca, maloca querida,
Peguemo todas nossas coisas Dim dim donde nóis passemos os
E fumos pro meio da rua dias feliz de nossas vidas
Aprecia a demolição Saudosa maloca,maloca querida,
Que tristeza que nóis sentia Dim dim donde nóis passemo os
Cada táuba que caía dias feliz de nossas vidas.
Duia no coração

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Se esta narrativa utilizasse a variedade considerada como padrão, seria representativa
da linguagem de seus personagens? Depois de cantar a música, conversar sobre sua letra,
seu cantor/compositor e seu gênero, que questões sobre a variedade linguística o professor
poderia propor?
Lembre-se de tomar cuidado para não reforçar o preconceito linguístico!

Variação diastrática
Como mencionado acima, a variação diastrática convive com
Do grego dia
as variações diatópica, diacrônica e com as variações de sexo e idade. (através de) +
Você poderá observar no quadro das características fonético-fonológicas stratus (nível,
camada, grupo
e morfossintáticas do PB (em anexo) que algumas dessas realizações social)
linguísticas são “condenadas” pela norma do português culto. Castilho
(em A hora e a vez do PB) compara as variedades popular e culta do
PB e lembra que elas não são separáveis rigidamente, pois o falante,
dependendo da situação comunicativa, pode escolher que variedade
é mais adequada àquela situação, sem preconceito. É na fala que o
chamado português sub-padrão (popular) se manifesta, pois a escrita,
por seu caráter conservador, evita essa variedade e procura seguir as
prescrições para a língua escrita.
O fragmento da entrevista sociolinguística com um menino de
rua de Goiânia, transcrita abaixo e apresentada por Ilari e Basso (2007),
exemplifica o uso real da variedade denominada sub-padrão:

P – Você quer contar como os policiais mataram o Adauto?


M – Nóis tava dormino lá em casa, às treis hora da manhã, i os PM
chegaro, deu um tiro na porta, pegô na perna do “fulano” aí em
seguida ez arrebentô a porta, aí deu oto tirô, pegô na cabeça do
Adauto, ez viro que tinha acertado o Adauto. Falaro: “Vamo saí fora
que certô o menino aqui”... saiu tudo correno os policiais, aí desci de
cima do armário, corri na porta pa ve se eu via o número da viatura
déze mas num consegui, voltei lá o Adauto já tava quase parano o
coração dele, fiz massage nele, consegui deixá ele viveno mais um
poco, foi eu … foi eu e o “fulano” buscá socorro pra ele.
P- E onde vocês foram?
M- Nóis fomo nu’a casa, lá em frente, aí o home deu sistença pra nós.
Legenda: P – pesquisadora M – menino

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Outra forma de variação a ser considerada pelo futuro professor é


Variação diamésica a variação diamésica, ou seja, as diferenças que se observam entre a
Etimologicamente:
língua falada e a língua escrita. A escrita é mais conservadora do que a
variação associada
ao uso de diferentes fala, entretanto há gêneros orais mais e menos formais (discurso oficial,
meios ou veículos.
conversa espontânea), assim como gêneros escritos mais e menos formais
(artigos científicos, bilhetes). As modalidades falada e escrita da língua
apresentam gramáticas próprias e é muito comum o aprendiz transferir
características da fala para a escrita. Dessa forma, cabe ao educador
identificar as influências da variedade linguística utilizada pelo aprendiz
em suas produções (tanto orais como escritas) e saber como abordá-
las, conscientizando o aluno sobre as diferenças linguísticas. Para
Bortoni-Ricardo:

A conscientização suscita mais dificuldades. É


preciso conscientizar o aluno quanto às diferenças
para que ele possa começar a monitorar seu próprio
estilo, mas esta conscientização tem de dar-se
sem prejuízo do processo ensino/aprendizagem,
isto é, sem causar interrupções inoportunas. Às
vezes, será preferível adiar a intervenção para que
uma ideia não se fragmente, ou um raciocínio não
se interrompa. Mais importante ainda é observar
o devido respeito às características culturais e
psicológicas do aluno. (BORTONI-RICARDO,
2004).

Sobre as semelhanças e diferenças da fala e da escrita e uma análise dessas


modalidades a partir do continuum dos gêneros, consulte o livro Da fala para a escrita:
atividades de retextualização (MARCUSCHI, 2001).

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Reflita sobre a metáfora da língua enquanto cidade, como apresentada por Paolo
d’Achille, citado por Ilari e Basso (2007):

Uma cidade tem bairros centrais com construções novas e bem vistas pelos visitantes
e outros, que se desenvolveram sem infraestrutra e planejamento e encontram-se em estado
de abandono e caos. A diversidade da língua é semelhante. Há variedades consideradas
“nobres” e outras, que (não deveriam, mas...) são ignoradas, desprezadas e condenadas.

Pensando nessa metáfora, qual seria o papel do professor de língua materna?


Lembre-se de que você estará nessa função e de que, antes de tudo, precisa conhecer todos
os becos e avenidas dessa cidade para poder oportunizar aos novos habitantes a experiência
de conhecerem tudo o que a cidade oferece, até mesmo aquilo que eles ainda nem sabem
que precisarão.

4.2 Ensinar português ou ensinar as variedades do português?

Para você pensar sobre o título desse tópico, relato abaixo um fato
ocorrido com uma das autoras deste livro:

___Mãe, o que você faz?


___Sou professora de português.
___Então, você não ensina nada, porque português todo mundo
já sabe!
(Gustavo, 5 anos)

Situações como essa levam todo professor de língua portuguesa a se


questionar: que português ensinar? Geralmente, a ideia que se tem sobre
o ensino do português recai sobre a prescrição de um grande número de
regras e exemplos que indicam a forma “certa” e “bonita” de se escrever.
Tais regras e prescrições se baseiam numa língua homogênea, imutável e
anacrônica, pois partem do uso escrito, formal e literário da língua. A esse
português, a tradição denomina de norma culta. Entretanto, essa norma
é apenas um tipo de norma, que aliás está muito distante da língua viva,
o que explica muitas das dificuldades encontradas pelo leitor/escritor
iniciante.

107
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Bagno (2002a, 2003) questiona o uso tradicional da expressão norma


culta. Para o autor, o uso tradicionalista da expressão norma culta deveria
ser substituído por norma padrão: aquele modelo de língua, um ideal de
língua, um padrão de comportamento linguístico que deveria ser seguido
por todos. Norma culta, numa concepção mais técnica e científica, seria
a língua real, os usos linguísticos dos falantes cultos (que possuem
educação superior e vivem em ambiente urbano – critérios utilizados pela
Sociolinguística para fins de estudo), uma língua que existe e pode ser
descrita, analisada, estudada e que pode se tornar a base para o que se
ensinar na escola.
Bagno (2002a) amplia esse conceito de norma culta, preferindo
usar a expressão variedades cultas, pois a fala/escrita são adequadas a
diferentes situações, intenções, interlocutores, contextos. O autor usa uma
interessante metáfora para justificar essa escolha vocabular e conceitual:
“Entre o molde e o vestido pronto”. Um molde de vestido não serve a todas
as pessoas, tampouco a todas as ocasiões. Diferentes vestidos prontos, de
acordo com as características de cada falante, poderão servir a diferentes
situações. O molde é a norma padrão, que não é suficiente nem adequada
às diferentes situações comunicativas. Todavia, uma variedade de vestidos
prontos, ou variedades linguísticas, poderão ser empregadas em diversos
contextos comunicativos.
Essa argumentação responde à pergunta inicial: o ensino da língua
materna nas escolas deve tornar o aluno um usuário competente das
múltiplas variedades da língua portuguesa. Esse acesso às variedades
parte dos usos linguísticos que se mostram em sala de aula, do acesso a
diferentes gêneros orais e escritos, de práticas de letramento e de reflexão
linguística. Mas, e as variedades que são consideradas “erradas”, “feias”?
E a norma padrão tão prestigiada? Bagno (2002b) lembra que a cada
variedade corresponde uma avaliação social positiva ou negativa; sendo
negativa, não só o uso linguístico é discriminado, estigmatizado, mas o
seu falante também. Dessa forma, o preconceito linguístico é na verdade
um reflexo do preconceito social, já que a norma padrão é a variedade
da minoria socioculturalmente favorecida e as demais variedades,
consideradas não padrão, são a língua dos “desfavorecidos” histórica,
social e culturalmente. Embora desprestigiadas e com menor valor social,
não se pode dizer que as variedades não padrão são erradas:

O “erro” linguístico, do ponto de vista sociológico


e antropológico, se baseia, portanto, numa
avaliação negativa que nada tem de linguística:

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é uma avaliação estritamente baseada no
valor social atribuído ao falante, em seu poder
aquisitivo, em seu grau de escolarização, em
sua renda mensal, em sua origem geográfica,
nos postos de comando que lhe são permitidos
ou proibidos, na cor de sua pele, em seu sexo e
outros critérios preconceituosos estritamente
socioeconômicos e culturais. (BAGNO, 2002b).

Toda variedade linguística resulta dos processos de variação e


mudança que acometem todas as línguas, e essa variação e mudança não
são para melhor nem para pior, como afirma Bagno (2002b), “as línguas
variam e mudam, a língua portuguesa do Brasil não vai bem nem mal, ela
simplesmente vai”. Essas diferenças, ou seja, “as linguagens da língua”
são tentativas da língua de se adequar às novas situações socioculturais,
históricas e linguísticas.
Desconfie dos chamados “erros de português”, pois eles revelam
que a língua continua viva e dinâmica. E é com essa língua viva e
dinâmica que o professor de língua materna deverá trabalhar em sala de
aula, analisando suas diferentes formas de manifestação e os diferentes
valores sociais a elas atribuídos. Dessa forma, toda variedade tem seu
espaço e caberá ao usuário da língua escolher aquela que seja mais
adequada a cada situação comunicativa.

Leia o texto do professor Ataliba T. de Castilho Saber uma língua é separar o certo do
errado?, no qual ele afirma que a língua é um organismo vivo que varia conforme o contexto
e vai muito além de uma coleção de regras e normas de como falar e escrever.

1- É necessário ao professor saber identificar as diferenças entre as variedades


linguísticas a fim de conscientizar o falante/escritor sobre a adequação ou não da variedade
utilizada em determinada situação comunicativa. Confira nos quadros apresentados em anexo
as características fonético-fonológicas e morfossintáticas do PB e faça um levantamento
dessa variedade na entrevista com o menino de rua de Goiânia transcrita nesta seção.

2- Pesquise textos que registrem diferentes variedades do PB e comente-os. Depois,


justifique por que o professor de língua materna precisa trabalhar com essas variedades,
além da variedade padrão.

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SEÇÃO 5
ENSINO DA ORTOGRAFIA

Muito já se falou sobre a ortografia do português: que é difícil demais,


que precisaria ser simplificada, que há muitas letras para representar o
mesmo som ou que uma letra pode ter mais de um som e isso dificulta a
escrita, além da acentuação, pontuação, uso de maiúsculas... Veja uma
proposta para algumas mudanças na ortografia do português:

Programa de incentivo ao uso da língua portuguesa

Eis aqui um programa de cinco anos para resolver o problema


da falta de autoconfiança do brasileiro na sua capacidade gramatical
e ortográfica. Em vez de melhorar o ensino, vamos facilitar as coisas,
afinal, o português é difícil demais mesmo. Para não assustar os
poucos que sabem escrever, nem deixar mais confusos os que ainda
tentam acertar, faremos tudo de forma gradual.
No primeiro ano, o “Ç” vai substituir o “S” e o “C” sibilantes,
e o “Z” o “S” suave. Peçoas que açeçam a internet com freqüênçia
vão adorar, prinçipalmente os adoleçentes. O “C” duro e o “QU”
em que o “U” não é pronunçiado çerão trokados pelo “K”, já ke o
çom é ekivalente. Iço deve akabar kom a konfuzão, e os teklados
de komputador terão uma tekla a menos, olha çó ke koiza prátika e
ekonômika.
Haverá um aumento do entuziasmo por parte do públiko no
çegundo ano, kuando o problemátiko “H” mudo e todos os acentos,
inkluzive o til, seraum eliminados. O “CH” çera çimplifikado para
“X” e o “LH” pra “LI” ke da no mesmo e e mais façil. Iço fara kom
ke palavras como “onra” fikem 20% mais kurtas e akabara kom o
problema de çaber komo çe eskreve xuxu, xa e xatiçe.
Da mesma forma, o “G” ço çera uzado kuando o çom for komo
em “gordo”, e çem o “U” porke naum çera preçizo, ja ke kuando o

111
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çom for igual ao de “G” em “tigela”, uza-çe o “J” pra façilitar ainda
mais a vida da jente.
No terçeiro ano, a açeitaçaum publika da nova ortografia
devera atinjir o estajio em ke mudanças mais komplikadas seraum
poçiveis. O governo vai enkorajar a remoçaum de letras dobradas
que alem de desneçeçarias çempre foraum um problema terivel para
as peçoas, que akabam fikando kom teror de soletrar. Alem diço,
todos konkordaum ke os çinais de pontuaçaum komo virgulas dois
pontos aspas e traveçaum tambem çaum difíçeis de uzar e preçizam
kair e olia falando çerio já vaum tarde.
No kuarto ano todas as peçoas já çeraum reçeptivas a koizas
komo a eliminaçaum do plural nos adjetivo e nos substantivo e a
unificaçaum do U nas palavra toda ke termina kom L como fuziu
xakau ou kriminau ja ke afinau a jente fala tudo iguau e açim
fika mais faciu. Os karioka talvez naum gostem de akabar com os
plurau porke eles gosta de falar xxx nos finau das palavra mas vaum
akabar entendendo. Os paulista vaum adorar. Os goiano vaum kerer
aproveitar pra akabar com o D nos jerundio mas ai tambem ja e
eskuliambaçaum.
No kinto ano akaba a ipokrizia de çe kolokar R no finau dakelas
palavra no infinitivo ja ke ningem fala mesmo e tambem U ou I no
meio das palavra ke ningem pronunçia komo por exemplo roba toca
e enjenhero e de uzar O ou E em palavra ke todo mundo pronunçia
como U ou I, i ai im vez di çi iskreve pur ezemplu kem ker falar
kom ele vamu iskreve kem ke fala kum eli ki e muito milio çertu
? os çinau di interogaçaum i di isklamaçaum kontinuam pra jente
çabe kuandu algem ta fazendu uma pergunta ou ta isclamandu ou
gritandu kom a jenti e o pontu pra jenti sabe kuandu a fraze akabo.
Naum vai te mais problema ningem vai te mais eça barera
pra çua açençaum çoçiau e çegurança pçikolojika todu mundu vai
iskreve sempri çertu i çi intende muitu melio i di forma mais façiu
e finaumenti todu mundu no Braziu vai çabe iskreve direitu ate us
jornalista us publiçitario us blogeru us adivogado us iskrito i ate us
pulitiko i u prezidenti.
Olia ço ki maravilia!

Disponível na internet.

112
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E, então, você já imaginou se isso acontecesse? Será que resolveria os nossos
problemas em relação à escrita? Como ficariam todos os livros e materiais escritos com a
“velha” ortografia e todos os falantes e escritores que estão habituados a ela?
Acredito que essa não seja a melhor maneira de resolver os “problemas” com a
ortografia.

Nesta seção, você poderá compreender um pouco mais sobre o


funcionamento do sistema alfabético-ortográfico da língua portuguesa.
Perceba as relações com a seção que expôs sobre a fonética e a fonologia
do PB.

5.1. Orthographia: um pouco de história Ortografia


(do latim
orthographia)
Você está lembrado(a) do texto A lenda do rei Lear, na seção 4? Volte Arte de escrever
corretamente as
a ele e observe como a escrita do séc. XIII/XIV era diferente da atual. A
palavras de uma
ortografia da língua portuguesa mudou ao longo dos séculos. Coutinho língua.
(2005) afirma que a ortografia do galego-português era mais simples e
uniforme do que agora porque “a língua era escrita para o ouvido”. Isso
fazia com que houvesse diferentes escritas para a mesma palavra, em
virtude não só das diferenças dialetais, mas também por influência do
latim, do castelhano ou por negligência dos copistas. Coutinho (2005)
apresenta essa fase como período fonético da ortografia portuguesa (Já
pensou se voltássemos a ela? O texto inicial desta seção poderia ilustrar
como seria nossa ortografia!).
Seguiu-se a esse período o pseudoetimológico – do século XVI
até o surgimento da Ortografia Nacional de Gonçalves Viana6 – quando
começaram a aparecer as complicações gráficas decorrentes da influência
tardia do latim e do grego. Ele recebe essa denominação porque a grafia
não é motivada pela pronúncia, mas pela preocupação em representar
na escrita a origem das palavras. Entretanto, os conhecimentos sobre

6 Não há consenso entre os estudiosos da história da língua em relação às datas


que marcam o fim de um período e o início de outro. Por exemplo, o início do período
simplificado é ora colocado no ano de1904 ora em 1911.

113
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essa origem eram precários, fazendo com que várias palavras tivessem
explicações etimológicas mirabolantes, como a de que a palavra ermitão
deveria ser escrita com h inicial porque sua haste lembrava o cajado dos
ermitões (ILARI e BASSO, 2007).
A partir da publicação da Ortografia Nacional, de Gonçalves Viana,
até os dias atuais vivemos o período simplificado da ortografia. Essa
obra produziu em Portugal uma importante reforma ortográfica. A ela
seguiram-se outras reformas e várias tentativas de acordos ortográficos
entre Brasil e Portugal; o mais recente entrou em vigor em janeiro de
2009.

O livro Ortografia da língua portuguesa: história, discurso, representações, organizado


por Maurício Silva, reúne alguns dos maiores especialistas na área, que analisam a ortografia
e sua evolução sob perspectivas teóricas diferentes. Os capítulos trazem desde aspectos
teóricos da ortografia até um rápido histórico dos diversos acordos ortográficos que o
português já viveu.

5.2 A importância da ortografia

Já imaginou alguém que falasse “mia bicicreta tá cus pineu furadu”


e assim escrevesse? Se cada um, com a variedade linguística própria de
uma comunidade, escrevesse como fala, isso dificultaria a leitura. Portanto,
a ortografia foi criada para neutralizar a variação linguística e permitir a
leitura. Isso quer dizer que a ortografia fixa a forma de se escrever as
palavras para que falantes de diferentes dialetos tenham na escrita uma
maneira neutra de ler. Entretanto, isso não implica uma única maneira de
decifrar, ou seja, cada leitor poderá utilizar a sua variedade no momento
de ler um texto. “Não é preciso ‘escrever como se fala’ para ‘se ler como
se escreve’” (CAGLIARI, 1999a). O aluno precisa saber disso para não
pensar que a fala é errada e a escrita certa e para que o preconceito
linguístico não seja reforçado.
Embora seja essencial, para aprender a ler e a escrever, ter-se o
conhecimento do alfabeto, dos nomes de suas letras e dos sons que a elas

114
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correspondem - seu princípio acrofônico (ou seja, o principal som que a
letra representa,

com a introdução da ortografia, o sistema


alfabético ficou reduzido à forma gráfica dos
caracteres. (...) O valor fonético do alfabeto ficou
trocado pelo valor que a ortografia passou a
atribuir às letras. Alfabeto mais ortografia assim
casados passaram a definir o nosso sistema de
escrita. (CAGLIARI, 1999b).

Assim, pode-se afirmar que o sistema de escrita do português é


o alfabético-ortográfico, porque embora possamos escrever a partir do
significante/sons, é a ortografia que fixa a escrita, para que ela não seja
uma simples transcrição fonética.
Dessa forma, é imprescindível que se reconheça a importância do
ensino da ortografia e de seus porquês. As dificuldades ortográficas irão
se manifestar não no momento de ler, mas na produção de textos, pois
ler é mais fácil do que escrever. Ao ler, cabe ao leitor, partindo da forma
ortográfica, descobrir os sons que as letras têm em determinado contexto
e em função dos dialetos e chegar à identificação da palavra (descoberta
semântica), decifrando-a. (CAGLIARI, 1999b).
Contudo, ao escrever, o sujeito parte do som da palavra e terá de, além
de relacioná-lo às letras que o representam, analisar o contexto e verificar
se há alguma regra ortográfica a ser seguida. Por exemplo, ao escrever a
palavra cachorro, algumas dúvidas podem surgir: iniciar a palavra com
c ou k? (as duas letras apresentam o mesmo som em início de palavra
quando seguidas de a); ch ou x? (essa é uma irregularidade, porque tanto
o x quanto o dígrafo ch apresentam o mesmo som, independentemente do
contexto); r ou rr? (no contexto intervocálico, para manter o “som forte”,
usa-se rr); o ou u? (mesmo que se pronuncie u, em sílaba átona final,
escreve-se o). Percebeu quantas decisões devem ser tomadas? Faça um
exercício e combine todas as possibilidades que o sistema permite para
grafar a palavra.
Com tantas possibilidades, a maior dificuldade com a ortografia é
de quem está aprendendo a ler e a escrever, pois para os iniciantes tudo
é difícil, devido a ser desconhecido. Portanto, não existe gradação entre o
que é mais fácil e mais difícil; tudo é igualmente difícil no começo. Logo,
não se justifica o que alguns métodos propõem apresentar primeiro as

115
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letras que representam os sons oclusivos (P, B, T, D, C, G) e depois as


demais letras que podem representar diferentes sons, os dígrafos e os
encontros consonantais; afinal, na perspectiva sociointeracionista de
trabalho com a língua são os textos autênticos e reais o ponto de partida
para alfabetizar letrando.
Com o tempo e o contato constante com a leitura e a escrita, as
dificuldades diminuem, restringindo-se a palavras de uso menos frequente.
Por isso, o professor não precisa desesperar-se com as dificuldades
ortográficas apresentadas no início do processo. Para Cagliari, a escola
precisa permitir a escrita de textos espontâneos, sem preocupar-se
excessivamente com as questões ortográficas: “é muito melhor ensinar
as crianças a escrever o mais livremente possível, como ponto de partida
e, depois, fazê-las passar para a outra grafia (a ortográfica)” (CAGLIARI,
1999a).
Isso não quer dizer que se aprende ortografia naturalmente,
espontaneamente, sem mediações e intervenções do professor, mas que
há tempo para trabalhar com a escrita ortográfica sem inibir a expressão
escrita dos alunos. Nos próximos tópicos, você estudará sobre como se
processa o ensino e a aprendizagem da ortografia.

5.3 Ortografia: memorização ou reflexão?

De acordo com o que você estudou até aqui, aprende-se a grafia


correta das palavras memorizando ou refletindo e entendendo as regras
que subjazem às palavras?
Leal e Roazzi (2007) afirmam:

Queremos enfatizar o caráter criativo e gerativo


da aprendizagem da ortografia, salientando
a capacidade do aprendiz de perceber muitas
das motivações ortográficas e gerar a escrita
convencional até mesmo de palavras a que não
foi exposto.

Embora os autores defendam que “a criança pensa e aprende


ortografia”, eles não descartam a possibilidade de aprendizagem
por meio da memorização, principalmente de palavras que são mais
frequentemente usadas.

116
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Portanto, se aprender ortografia é mais do que memorizar, é preciso
entender que a ortografia deve ser ensinada e aprendida, é assumir que o
erro é o reflexo daquilo que a criança não sabe, mas também daquilo que
ela já sabe, e é a partir dele que o professor compreenderá a natureza das
dificuldades apresentadas pelo estudante, suas hipóteses de escrita para,
por fim, elaborar intervenções adequadas.
Conforme você estudou na seção 3, a criança só avança no processo
de aquisição da escrita, quando, além de perceber que a fala pode ser
representada pela escrita, ela compreende que não há uma fidelidade entre
a oralização e a escrita, ou seja, que a relação entre fonemas e grafemas é
complexa. Isso pode levá-la a elaborar hipóteses e descobrir as regularidades
do sistema ortográfico. Estudos já demonstraram (NUNES, 1992 apud
LEAL e ROAZZI, 2007) que os acertos ou erros dependem muito mais do
conhecimento ou desconhecimento dos princípios do sistema ortográfico
do que da simples memorização de palavras. Isso comprova que a criança
poderá escrever corretamente palavras que não conhece se ela compreender
determinada regra, ou seja, mesmo que ela nunca tenha ouvido a palavra
RAZOÁVEL, ela a grafará com um r inicial, porque sabe que nenhuma
palavra, embora apresente o som do r forte, inicia com dois erres. Além
do uso em palavras desconhecidas, outros resultados que comprovam o
caráter gerativo da aprendizagem da ortografia, em detrimento do simples
treino, é a aplicação das regras a palavras inventadas, ou seja, palavras que
não existem no léxico do português, como por exemplo píssafo, que pelo
contexto exige o uso de ss.
Leal e Roazzi (2007) demonstram, na análise de diferentes diálogos
com crianças, depois de um ditado de palavras, que, mesmo que elas não
saibam explicitar uma regra, fazem uso dela no momento da escrita, pois
algumas escreveram, refletiram e reescreveram a palavra após observar a
tonicidade e o contexto em que a letra aparecia na palavra, comprovando
que o conhecimento das regularidades auxilia no momento da escrita.
Para esses autores, além do conhecimento explícito das normas
ortográficas ou de princípios morfológicos, impulsionam a aquisição da
ortografia da língua a exposição do aprendiz à língua escrita - ou seja,
atividades de leitura significativas - e a frequência de uso das palavras
- em produções textuais e atividades lúdicas, como cruzadinhas, caça-
palavras, entre outros jogos.

117
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Portanto, professor, a ortografia precisa ser ensinada. E o que o


professor precisa saber para poder intervir? Como ensinar ortografia?
Que atividades realizar?

5.4 Ensino-aprendizagem da ortografia

Pense um pouco: ao produzir seus textos ou nas provas, o professor descontava


pontos se houvesse erro ortográfico? Como as atividades sobre ortografia aconteciam na
escola em sua época de estudante do ensino fundamental? Que acontecimentos relacionados
à escrita são boas lembranças e que fatos você gostaria de esquecer?

O grande equívoco no tratamento dado à ortografia pela escola é


que se acredita que ela deva ser objeto de avaliação, enquanto o ensino
fica relegado a atividades estanques, sem planejamento, objetivos, metas
ou relação com as dificuldades ortográficas apresentadas pelos alunos.
A prática tão comum de descontar pontos por erros ortográficos é uma
atitude incoerente, pois esses “desvios” revelam o que o aluno já sabe e o
que ele ainda precisa aprender, servindo, portanto, como diagnóstico que
permitirá as próximas intervenções do professor. Também são lembranças
constantes os ditados avaliativos, nos quais o professor até mesmo
artificializava a pronúncia, silabando a palavra – por exemplo: cas-te-
lo, pás-sa-ro, a fim de facilitar o acerto ortográfico. Entretanto, isso não
permite ao ouvinte refletir sobre a forma ortográfica da palavra ouvida.
Por tudo que aqui foi comentado, o foco na ortografia deve deslocar-se da
avaliação para o ensino.
Esses equívocos são resultados da falta de conhecimentos do
professor a respeito do processo de ensino-aprendizagem da ortografia.
Morais (2002) defende que é fundamental que o professor entenda o
que é regular e o que é irregular em nossa ortografia para que possa
organizar seus procedimentos de ensino. Sendo os erros de naturezas
distintas, estratégias diferenciadas são necessárias para que as palavras
sejam memorizadas ou compreendidas. Dessa forma, o primeiro passo é
conhecer o que é regular e o que é irregular.

118
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• Regularidades fonográficas diretas: são os casos em que não
existe outra letra competindo para representar o som. Como
você já estudou na seção 3, são as “relações de um para um:
cada letra com seu som, cada som com sua letra”. Isso inclui a
grafia das letras P, B, T, D, F, V.
• Regularidades contextuais: é o contexto dentro da palavra
que irá determinar que letra ou dígrafo deverá ser usado para
representar o som.

Casos de regularidades contextuais

Os principais casos de correspondências regulares contextuais em nossa


ortografia são:

• o uso do R ou RR em palavras como “rato”, “porta”, “honra”, “prato”,


“barata” e “guerra”;
• o uso de G ou GU em palavras como “garoto”, “guerra”;
• o uso do C ou QU, notando o som /k/ em palavras como “capeta” e “quilo”
• o uso do J formando sílabas com A, O e U em palavras como “jabuti”,
“jogada” ou “cajuína”;
• o uso do Z em palavras que começam “com o som de Z” como em
“zabumba”, “zinco” etc.
• o uso do S no início das palavras, formando sílabas com A, O e U, como em
“sapinho”, “sorte” e “sucesso”;
• o uso do O ou U no final de palavras que terminam “com o som de U” (por
exemplo, “bambo”, “bambu”);
• o uso de E ou I no final de palavras que terminam “com o som de I” (por
exemplo, “perde”, “perdi”);
• o uso de M, N, NH ou ~ para grafar todas as formas de nasalização
de nossa língua (em palavras como “campo”, “canto”, “minha”, “pão”,
“maçã” etc.).

Fonte: (MACHADO, 2009)

119
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As regras morfológico-gramaticais também definem a relação letra-


som. Veja nos quadros abaixo:

Casos de regularidades morfológico-gramaticais


presentes em substantivos e adjetivos

Exemplos de regularidade morfológico-gramatical observados na formação de


palavras por derivação:

• “portuguesa”, “francesa” e demais adjetivos que indicam o lugar de origem


se escrevem com ESA no final;
• “beleza”, “pobreza” e demais substantivos derivados de adjetivos e que
terminam com o segmento sonoro /eza/ se escrevem com EZA;
• “português”, “francês” e demais adjetivos que indicam o lugar de origem se
escrevem com ÊS no final;
• “cafezal”, “canavial”, “milharal” e outros coletivos semelhantes terminam
em L;
• “famoso”, “carinhoso”, “gostoso” e outros adjetivos semelhantes (incluindo
o feminino “carinhosa”, “famosa” etc.) sempre se escrevem com S;
• “chatice”, “mesmice”, “meninice” e outros substantivos terminados com o
sufixo ICE se escrevem sempre com C;
• substantivos derivados que terminam com os sufixos ÊNCIA, ANÇA e
ÂNCIA também se escrevem sempre com C ou Ç ao final (por exemplo,
“ciência”, “esperança” e “importância);

Fonte: (MACHADO, 2009)

Casos de regularidades morfológico-gramaticais


presentes nas flexões verbais

As regras morfológico-gramaticais se aplicam ainda a vários casos de flexões


dos verbos que causam dificuldades para os aprendizes. Eis alguns exemplos:

• “cantarão”, “beberão”, “partirão” e todas as formas de 3ª pessoa do plural


no futuro se escrevem com ÃO, enquanto todas as outras formas de 3ª
pessoa do plural de todos os tempos verbais se escrevem com M no final
(por exemplo “cantam”, “cantavam”, “bebam”, “beberam”, etc.);
• “cantasse”, “bebesse”, “dormisse” e todas as flexões do imperfeito do
subjuntivo terminam em SS;
• todos os infinitivos terminam em R (“cantar”, “beber”, “partir”); é
importante tal observação, porque algumas pessoas falam (e escrevem)
“cantá”, “bebê”, “parti”, etc.

Fonte: (MACHADO, 2009)

120
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Compreender as regularidades ortográficas e os seus princípios
gerativos proporciona ao aprendiz internalizar (compreendendo, e não
decorando!) as regras que fazem com que algo de imutável, constante
se revele naqueles “pedaços” das palavras. Dessa forma, ele poderá
aplicá-las a outras palavras que apresentem a mesma situação. Entender
o porquê daquela grafia e construir uma regrinha significa “domesticar
as dúvidas ortográficas”, ou seja, entender que o contexto ou as
características morfossintáticas podem determinar a escrita, auxiliar o
usuário a “descobrir” a escrita de palavras ainda desconhecidas, e até
mesmo das inventadas.

• Irregularidades: são os casos em que há concorrência entre as


letras para representar um único som, na mesma posição. Volte
à seção 3 e observe o quadro das relações de concorrência. A
ele podem-se acrescentar os casos de concorrência entre e e i
em sílabas átonas não-finais (seguro/siguro, menina/minina)
e do l com o lh diante de certos ditongos (Júlio/julho, família/
familha), além da pronúncia reduzida de alguns ditongos (caixa/
caxa, peixe/pexe, couro/coro). As relações de concorrência entre
as letras para grafar um som são as que imprimem maiores
dificuldades, porque não há regra que ajude o aprendiz, sendo
necessário memorizar a imagem visual da palavra.

Estudiosos da área (Cagliari, Leal, Massini-Cagliari, Roazzi,


Morais, entre outros) afirmam que é preciso ser mais tolerante com os
erros ortográficos, principalmente os irregulares, e não confundi-los com
erros de português. Despertar a dúvida ortográfica e incentivar a consulta
a dicionários, ao professor, a listas de palavras construídas pela turma é
saudável e não reprime o aluno, que, muitas vezes, por medo de errar, não
se sente seguro para produzir seus textos. Cagliari (1998) ainda lembra
que com os textos cartilhescos e o método das cartilhas a ortografia era
salva, mas a produção de textos espontâneos, criativos e de autoria era
aniquilada.

121
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Para o autor,

Mais interessante é ensinar a ler e a escrever,


explicando o que é a escrita, contando sua história,
mostrando os tipos possíveis de escrita que
usamos, explicando o que é a ortografia e como
funciona, esclarecendo que também podemos
escrever alfabeticamente sem levar em conta
a ortografia, mas depois será preciso fazer com
que essa escrita passe para a forma ortográfica. É
uma boa estratégia ir direto ao assunto e ensinar
logo o alfabeto, o nome das letras, como elas são
desenhadas dentro de um gabarito, como revelam
os sons da fala, como se combinam nas palavras
e se distanciam na fala, como se pode escrever
observando a fala e como se pode escrever indo
direto para as formas ortográficas, guiando-se
apenas pelo significado e pelo conhecimento da
grafia. (CAGLIARI, 1999a).

Mas, que princípios são essenciais ao professor conhecer a fim


de mediar o processo de ensino-aprendizagem da ortografia? Morais
(2002) e Machado (2009) apresentam os seguintes princípios gerais e de
encaminhamento:
1. Conviver com bons “modelos” de textos, os quais apresentem a
norma ortográfica;
2. Promover a reflexão e explicitação dos conhecimentos
ortográficos;
3. Definir metas para o rendimento ortográfico dos alunos, ou
seja, o que se pretende que o aluno domine naquele ano/ciclo.
Para tanto, o aluno já deve ter compreendido o sistema de
escrita alfabética, e ao professor cabe diagnosticar as principais
dificuldades de seus alunos, considerando a heterogeneidade da
turma. Em seguida, o professor precisa sequenciar o ensino de
modo que as regularidades sejam dominadas progressivamente,
já que possuem regras que dão ao aprendiz maior segurança
ao escrever, e posteriormente, o domínio, condicionado à
frequência de uso, das irregularidades;
4. Refletir sobre a ortografia em todos os momentos de escrita;
5. Não controlar a escrita espontânea dos alunos;
6. Não fazer da nomenclatura gramatical um requisito para a
aprendizagem de regras contextuais e morfológico-gramaticais;

122
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7. Promover a discussão coletiva dos conhecimentos das crianças;
8. Registrar as descobertas sobre a ortografia das palavras em
quadros de regras, listas de palavras etc.;
9. Favorecer a interação e discussão coletiva, em pequenos grupos
e/ou duplas.

Os autores ainda sugerem que as situações de ensino-aprendizagem


da ortografia podem partir de textos, por meio de ditados interativos,
releitura com focalização das dificuldades ortográficas (escolhidas
pelo professor ou a partir das dúvidas dos alunos) e reescrita de textos
com correção ou transgressão. Ao sugerirem a invenção de palavras
inexistentes ou a transgressão, os autores acreditam que as crianças
precisarão refletir criticamente sobre a escrita e, consequentemente,
compreender os princípios gerativos que justificam a escrita desta ou
daquela maneira.
Ao partir de atividades com palavras fora de textos, o professor
poderá trabalhar com a confecção de quadros comparativos entre palavras
que possuem sons parecidos, como as regularidades diretas, em diferentes
posições. Essas atividades podem partir da classificação e nomeação
de figuras, recorte de palavras e produção e escrita de frases a partir
das palavras selecionadas. Atividades que envolvem as regularidades
contextuais e morfológico-gramaticais podem ser realizadas com a
produção de quadros de regras (que sejam construídas pelas próprias
crianças, com as palavras delas, sem exigência de metalinguagem),
classificação de palavras reais e inventadas e, também, a produção de
palavras reais e inventadas. Como no exemplo:

R– R- final R- início R- final Consoante R entre RR


início de de sílaba, de sílaba, de +R+ vogais entre
palavra antes de depois de palavra vogal vogais
consoante consoante

risada formiga honra mar trabalho verão carro

rulenta* marnonga* ponrito* lir* criluxo* miraro* firreta*

*palavras inventadas

123
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Cruzadinhas, caça-palavras, formação de palavras a partir de sílabas


e outros jogos criados pelo professor podem auxiliar na comparação
das palavras e na compreensão das regras subjacentes a elas, criando
“regrinhas” para consulta e posterior internalização.
A revisão e reescrita textual, acompanhadas da consulta ao
dicionário, são situações propícias ao ensino-aprendizagem da ortografia.
Para isso, o professor deverá orientar sobre o uso do dicionário para que
os alunos não consultem apenas a escrita, mas também verifiquem o
significado, pois há no português palavras homófonas que possuem
significados diferentes.
Então, futuro(a) professor(a), você precisa saber como funciona o
sistema de escrita (alfabético-ortográfico) do português para compreender
as hipóteses reveladas pelos aprendizes ao grafarem as palavras. A partir
da compreensão da natureza dos erros, você poderá selecionar e criar
diversas atividades, contextualizadas e lúdicas, para que seus alunos
compreendam o porquê de algumas escritas e entendam que outras
palavras precisam ser memorizadas. Pronto para colocar em prática esses
conhecimentos?!

1- Que práticas usuais de ensino de ortografia são criticadas e por quê?

2- Você estudou que os erros ortográficos podem ser regulares e irregulares. Também
constatou que o aluno cria e testa hipóteses ao escrever, refletindo sobre a língua. Analise
os erros ortográficos presentes no texto abaixo e retire dele exemplos que ilustrem os erros
ortográficos regulares e irregulares. Depois, apresente sugestões de como o professor
poderá trabalhar para superar tais dificuldades ortográficas:

Era uma ves um gasa qe Era muito pobri ai uma brucha jogou uma posão
na casa uma semana depos a gasa virou nu castelo o castelo tia flores arvores a
menina foi a mulhe virou uma prisesa o omem virou um prisipi ai a brucha disvirou
o castelo na gasa ai Eles chorarão fim
(Aluno de 1ª série de uma escola da periferia de Aracaju – 7 anos-
CAGLIARI, 1996 - adaptado)

a) regulares diretos:
b) regulares contextuais:
c) regulares morfológico-gramaticais (verbos):
d) irregulares:

124
UNIDADE II
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I

125
UNIDADE II
UNIDADE III
Métodos de alfabetização:
aspectos históricos
e pedagógicos

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Apresentar uma reflexão sobre metodologias de alfabetização

ROTEIRO DE ESTUDOS
SEÇÃO 1 – Método, metodologia ou proposta didática?

SEÇÃO 2 – Métodos de alfabetização sintéticos

SEÇÃO 3 – Métodos de alfabetização analíticos


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Se você não leu atentamente o último quadro “Para refletir” da


unidade I (seção 3), recomendamos que o releia agora com atenção
e verifique, nas palavras de Soares, como o assunto alfabetização e
letramento envolvem aspectos importantíssimos: a própria especificidade
do processo, a relação entre alfabetização e letramento, as suas diferentes
facetas, as quais demandam diferentes metodologias para ensinar a
aprender a língua escrita, e a questão da formação do professor, além dos
diversos aspectos essenciais, minuciosamente discutidos na unidade II.
Na unidade III, queremos ressaltar que para toda ação educativa é
preciso realizar, inicialmente e, no mínimo, três questionamentos:
O que ensinar?
Para que ensinar?
Como ensinar?
A primeira questão nos remete ao assunto a ser ensinado, aos
conteúdos necessários para aquele momento ou para aquele grupo
de estudantes; a segunda questão nos remete aos objetivos da ação
educativa: vou ensinar para quê? Qual a finalidade/objetivo dessa ação
educativa ou desse conteúdo selecionado? Por que eu quero que meus
alunos aprendam esse conteúdo? Qual a importância e utilidade desse
conteúdo para meus alunos? A terceira questão nos conduz à elaboração
de planos de ação, a pensar nas formas, caminhos, estratégias mais
adequadas para se alcançar os objetivos propostos.
Esse último questionamento nos faz pensar em métodos,
metodologias e propostas didáticas de alfabetização e em questões
subsequentes:
Que métodos usar?
O que é importante na escolha de um método?
Questões como essas, são as que iremos discutir a partir de agora.

128
UNIDADE 3
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
SEÇÃO 1
MÉTODO, METODOLOGIA
OU PROPOSTA DIDÁTICA?

Você já parou para pensar na palavra método?


O que é método?
Vamos começar a seção 1 procurando esclarecer o que se deve
entender por “método” e, para isso, vamos utilizar diversas considerações
feitas por Magda Soares em “Alfabetização: em busca de um método”, em seu
livro Alfabetização e Letramento (SOARES, 2010), mas, antes, apresentamos
o significado etimológico da palavra:

methodus – meta/fim + hodus – caminho


Método: caminho para se chegar a um fim.

Soares (op. cit., p. 93) salienta a existência de dois equívocos gerados na área
da alfabetização: a rejeição dos métodos, tendo em vista que os problemas de
aprendizagem da leitura e da escrita, na perspectiva conceitual tradicional,
tenham sido considerados basicamente como questões metodológicas; e a
formação de um estereótipo de método, imediatamente identificado

com os tipos tradicionais de métodos — sintéticos


e analíticos (fônico, silábico, global etc.), como se
esses tipos esgotassem todas as alternativas
metodológicas na aprendizagem da leitura e da
escrita, e mais: como se ‘método’ fosse sinônimo de
manual, de artefato pedagógico que tudo prevê e
que transforma o ensino em uma aplicação rotineira
de procedimentos e técnicas. (SOARES, 2010, p. 93-
grifos nossos).

Método, enfatiza Soares (2010, p. 93), na área do ensino, é um conceito


genérico sob o qual podem ser abrigadas tantas alternativas quanto quadros
conceituais existirem ou vierem a existir. No campo do ensino das línguas
(materna ou estrangeira, oral ou escrita), um “método” é a soma de ações

129
UNIDADE III
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baseadas em um conjunto coerente de princípios ou de hipóteses psicológicas,


linguísticas, pedagógicas, que respondem a objetivos determinados.
Um método de alfabetização será, pois, o resultado da determinação
dos objetivos a atingir (que conceitos, habilidades, atitudes caracterizarão a
pessoa alfabetizada?), da opção por certos paradigmas conceituais (psicológico,
linguístico, pedagógico), da definição, enfim, de ações, procedimentos,
técnicas compatíveis com os objetivos visados e as concepções e opções
teóricas assumidas (op. cit. ).
Sendo assim, a escolha de um método resulta em diferentes
metodologias, já que a metodologia se configura em escolhas, é o resultado
da ação, é ela que indica as linhas de ação realizadas pelos professores
em suas aulas para alcançar os seus objetivos.
A metodologia será, então, a postura do educador diante dos
fatos e sempre se encontra associada a uma teoria de compreensão e
interpretação dessa realidade.
Uma concepção associacionista do processo de aquisição da escrita
considerava o método fator determinante da aprendizagem, já que seria
por intermédio da exercitação de habilidades ordenadas que a criança
aprenderia a ler e a escrever. O método iria “preparar” a criança para a
leitura e a escrita. Essa era a tendência predominante nas décadas de 1950
a 70, influenciada pela vertente psicológica de Skinner. Nessa vertente,
as crianças precisavam estar “prontas”, do ponto de vista psicomotor,
para iniciar a alfabetização.
A concepção psicogenética alterou “profundamente a concepção do
processo de aquisição da língua escrita” (SOARES, 2010), já que considera
o sujeito aprendiz como o centro do processo, não mais como um ser
dependente de estímulos externos para produzir respostas previamente
esperadas, mas agora participante ativo da construção do conhecimento,
elaborador e construtor de hipóteses acerca do que aprende, por meio da
mediação adequada e necessária do educador, que não lhe dá respostas
prontas, mas o conduz a encontrá-las através de sua intervenções sabiamente
planejadas.
Soares ressalta que, para essa vertente, influenciada por Piaget,
Vygotsky e Emília Ferreiro, o método de ensino, em sua concepção
tradicional, pode ser mesmo prejudicial na medida em que pode bloquear
ou dificultar os processos de aprendizagem da criança.

130
UNIDADE 3
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Os chamados pré-requisitos para a aprendizagem da escrita, que caracterizariam a criança
“pronta” ou “madura” para ser alfabetizada - pressuposto dos métodos tradicionais de alfabetização
-, são negados por uma visão interacionista que rejeita uma ordem hierárquica de habilidades,
afirmando que a aprendizagem se dá por uma progressiva construção de estruturas
cognitivas, na relação da criança com o objeto “língua escrita”; as dificuldades da criança,
no processo de aprendizagem da língua escrita - consideradas “deficiências” ou “disfunções”,
na perspectiva dos métodos tradicionais - passam a ser vistas como “erros construtivos”,
resultado de constantes reestruturações no processo de construção do conhecimento da
língua escrita.
(SOARES, 2010, p. 89).

Em decorrência das mudanças conceituais e a preocupante busca


de metodologias de ensino, o método passa a ser questionado, e o que
na década de 50 e 60 fora tema de inúmeros trabalhos de pesquisa, nas
décadas de 80 passa a ser substituído pelo tema proposta didática. Denominação
atribuída, para fins
de pesquisa, a
Diversos pesquisadores passam a publicar resultados de novos paradigmas
experiências bem sucedidas em defesa do paradigma psicogenético para didáticos que
rejeitam ou
a alfabetização, apresentando alternativas metodológicas para uma prática buscam superar
pedagógica. os modelos
metodológicos
Soares (2010) ressalta que em toda essa publicação em que são tradicionais.
apresentadas orientações pedagógicas e proposições metodológicas (SOARES, 2010,
p. 92).
para o ensino da leitura e da escrita procura-se evitar o termo método,
substituindo-o por proposta.
No entanto, Soares (op. cit.) adverte para um fator importantíssimo:

Essa estratégia não será mais do que uma mera


“substituição” de termos se se atribui a método o
sentido que propus: soma de ações baseadas em
um conjunto coerente de princípios ou de hipóteses
psicológicas, linguísticas, pedagógicas, que
respondem a objetivos determinados; se, porém,
se atribui a método o conceito estereotipado que
esse termo adquiriu, isto é, método de alfabetização
identificado com os tipos tradicionais de métodos
— sintéticos e analíticos (fônico, silábico, global
etc.), e que é confundido com manual, conjunto de
prescrições geradoras de uma prática rotineira,
não será apenas uma substituição de termos, mas
uma radical mudança conceitual.

131
UNIDADE III
Universidade Aberta do Brasil

Neste caso, Soares (op. cit., p. 95), citando Ferreiro, destaca:

A diferença entre método e proposta será aquela


que Margarita Gomes Palácio aponta, em “Os
filhos do analfabetismo”, [...], reside no fato
de que o primeiro está centrado no processo
que o professor deve seguir e a proposta de
aprendizagem, no processo que a criança realiza.
(FERREIRO, 1990, p. 100).

É preciso não ter medo do método; diante do assustador fracasso escolar, na área da
alfabetização, e considerando as condições atuais de formação do professor alfabetizador
em nosso país, estamos, sim, em busca de um método - tenhamos a coragem de afirmá-
lo. Mas de um método no conceito verdadeiro desse termo: método que seja o resultado
da determinação clara de objetivos definidores dos conceitos, habilidades, atitudes que
caracterizam a pessoa alfabetizada, numa perspectiva psicológica, linguística e também (e
talvez sobretudo) social e política; que seja, ainda, resultado da opção pelos paradigmas
conceituais (psicológico, linguístico, pedagógico) que trouxeram uma nova concepção dos
processos de aprendizagm da língua escrita pela criança, compreendendo esta como um
sujeito que constrói o conhecimento, e não um ser passivo que responde a estímulos externos;
que seja, enfim, o resultado da definição de ações, procedimentos, técnicas compatíveis com
esses objetivos e com essa opção teórica.
Sem proposições metodológicas claras, estamos correndo o risco de ampliar o
fracasso escolar.
(SOARES, 2010, p. 96).

A questão metodológica não é a essência da educação, apenas uma ferramenta. Por


isso, é preciso ter ideias claras a respeito do que significa assumir um ou outro comportamento
metodológico no processo escolar.
(CAGLIARI, 1998, p. 36).

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1. Nos quadros abaixo, você tem relatos pessoais produzidos por alguns personagens
ilustres da história a respeito da inserção individual no mundo da escrita. Leia e reflita: de
acordo com o que foi descrito em cada relato, em quais condições metodológicas essas
pessoas foram apresentadas à língua escrita e que pressupostos teóricos, possivelmente,
subsidiaram as práticas que os apresentaram ao mundo da escrita?

Relato 1 – Graciliano Ramos

Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras


vinte e cinco, diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas. Atordoamento,
preguiça, desespero, vontade de acabar-me. Veio terceiro alfabeto, veio quarto,
e a confusão se estabeleceu, um horror de quipropós. Quatro sinais com uma só
denominação. Se me habituassem às maiúsculas, deixando as minúsculas para mais
tarde, talvez não me embrutecesse. Jogaram-me simultaneamente maldades grandes e
pequenas, impressas e manuscritas. Um inferno...
(CARVALHO, 2007, p.14-15).

Relato 2 – Françoise Dolto

Eu ia balbuciando com voz tensa, os olhos fixos no texto para juntar as letras.
E, naturalmente, um texto não quer dizer nada quando é declamado sílaba por sílaba.
Então ela (a governanta) me dizia: “escute o que está lendo! Está muito bem, muito bem,
você lê perfeitamente, mas escute o que está lendo!” E aí, um dia consegui escutar:
eram sílabas separadas, mas que queriam dizer alguma coisa se fossem agrupadas ao
serem ouvidas. Agora, eu sabia ler e não queria mais largar o texto. Queria continuar.
(CARVALHO, 2007, p.15).

Relato 3 – Paulo Freire

A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não


era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do
quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não
do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.
Por isso é que, ao chegar à escolinha particular de Eunice Vasconcelos, cujo
desaparecimento recente me feriu e me doeu, e a quem presto agora uma homenagem
sentida, já estava alfabetizado. Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais.
Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a
“leitura” do mundo. Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da “palavramundo”.
Não eram, porém, aqueles momentos, puros exercícios de que resultasse um
simples dar-nos conta da existência de uma página escrita diante de nós que devesse
ser cadenciada, mecânica e enfadonhamente “soletrada”, em vez de realmente lida. Não
eram aqueles momentos “lições de leitura”, no sentido tradicional desta expressão. Eram
momentos em que os textos se ofereciam à nossa inquieta procura, incluindo a do então
jovem professor José Pessoa.

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SEÇÃO 2
MÉTODOS SINTÉTICOS

A questão dos métodos é exaustivamente discutida no artigo de


Mortatti (2006), do qual recomendamos a leitura minuciosa; nele, a autora
delineia e classifica o que se denominou de “querela dos métodos” em
quatro momentos, cada um deles “marcando um ‘novo’ sentido atribuído
à alfabetização” (op. cit.). São eles:

1º momento (1876 a 1890) — disputa entre defensores do então


“novo” método da palavração e os dos “antigos” métodos sintéticos
(alfabético, fônico, silábico);

2º momento (1890 a meados da década de 1920) — disputa entre


defensores do então “novo” método analítico e os dos “antigos”
métodos sintéticos;

3º momento (meados dos anos de 1920 a final da década de 1970) —


disputas entre defensores dos “antigos” métodos de alfabetização
(sintéticos e analíticos) e os dos então “novos” testes ABC para
verificação da maturidade necessária ao aprendizado da leitura e
escrita, de que decorre a introdução dos “novos” métodos mistos;

4º momento (meados da década de 1980 a 1994) — disputas entre


os defensores da então “nova” perspectiva construtivista e os
dos “antigos” testes de maturidade e dos “antigos” métodos de
alfabetização.

MORTATTI, M. R. L. História dos Métodos de Alfabetização no Brasil, 2006.


Disponível em: http://www.idadecerta.seduc.ce.gov.br/download%5Cencontro_
paic_ceu_24_2602_2010%5Chistorias_do_metodos_de_alfabetizacao_brasil.pdf

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O que essas “disputas” revelam?

Revelam que tentativas de reversão do fracasso escolar foram tomadas


durante muito tempo como uma questão basicamente metodológica.
Pensava-se nos melhores métodos, por acreditar-se que ensinar a ler
e a escrever era uma questão de metodologia, não de entendimento
da psicogênese da língua escrita, de compreensão do processo de
aprendizagem, como bem esclareceram as pesquisas de Piaget, Vygotsky
e Emília Ferreiro. O como ensinar já não era o foco, mas sim o como se
aprende. Mudaram-se, portanto, os métodos de ensino, mudaram-se,
portanto, os caminhos para se alcançar a aprendizagem.
No entanto, sabemos que uma opção metodológica está e sempre
estará em consonância com opções de outra natureza: noção de língua
e linguagem, noção de sujeito, de cidadão e cidadania, noção do que é
aprender e do que é ensinar, questões de natureza epistemológica. Assim,
apresentaremos aqui os principais métodos de alfabetização realizados e
defendidos durante a história da educação brasileira, a fim de que se possa
traçar um panorama histórico-crítico, relacionando tais métodos às questões
sociais e aos interesses políticos de cada período da história do Brasil.

Observam-se repetidos esforços de mudança,


a partir da necessidade de superação daquilo
que, em cada momento histórico, considerava-se
tradicional nesse ensino e fator responsável pelo
seu fracasso. Por quase um século, esses esforços
se concentraram, sistemática e oficialmente,
na questão dos métodos de ensino da leitura
e escrita, e muitas foram as disputas entre os
que se consideravam portadores de um novo
e revolucionário método de alfabetização e
aqueles que continuavam a defender os métodos
considerados antigos e tradicionais. (MORTATTI,
2006).

Os métodos sintéticos foram desenvolvidos e aplicados em um


momento em que a escola, como instituição, estava sendo inicialmente
organizada; apresentava, portanto, precárias condições de funcionamento
e estrutura. A maioria da população era analfabeta e as exigências de
leitura eram quase nulas, afinal, não havia necessidade de “politizar” a
população. Não se buscava formar leitores, afinal, não havia textos, só
palavras soltas.

136
UNIDADE 3
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Veja os relatos de professores transcritos a seguir:

Iniciei minhas primeiras leituras aos sete anos,


usando uma car­ta do ABC. O resultado não foi
muito satisfatório porque repeti duas vezes. Era uma
verdadeira tortura. A professora pegava um pedaço
de papel, rasgava do tamanho das letras, colocava
em cima da página e mandava ler. O pior é que
havia letras ma­nuscritas, de imprensa, maiúsculas e
minúsculas, uma salada de letras.

Entrei na escola com 7 anos, comecei decorando


o alfabeto em uma cartilha chamada ‘Carta do
ABC’, no primeiro ano fraco. Quando comecei a
juntar as sílabas, já estava no primeiro ano médio.
Só comecei a ler alguma coisa que não fosse da
cartilha, já estava com dez anos, no segundo ano
primário.

Aprendi a ler com meus pais, no seringal, não tinha


escola, então meus pais compraram uma cartilha.
Eu tinha que decorar as letras e depois era tomada
a lição com um papel em cima da página, só um
buraquinho para ver a letra. Depois de decorar as
letras, começava a juntá-las, a soletrar.
(Fonte dos relatos: CARVALHO, 2007, p. 21-22).

Os relatos nos fazem compreender melhor as considerações de


Mortatti (2006), descritas a seguir:

Para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de


marcha sintética (da “parte” para o “todo”): da soletração (alfabético),
partindo do nome das letras; fônico (partindo dos sons correspondentes
às letras); e da silabação (emissão de sons), partindo das sílabas. Dever-
se-ia, assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e
seus nomes (método da soletração/alfabético), ou de seus sons (método
fônico), ou das famílias silábicas (método da silabação), sempre de acordo
com certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente, reunidas as
letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as famílias silábicas, ensinava-
se a ler palavras formadas com essas letras e/ou sons e/ou sílabas e, por
fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta se
restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à cópia, ditados e formação
de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras. As primeiras cartilhas
brasileiras, produzidas no final do século XIX, sobretudo por professores
fluminenses e paulistas a partir de sua experiência didática, baseavam-se
nos métodos de marcha sintética (de soletração, fônico e de silabação) e
circularam em várias províncias/estados do país e por muitas décadas.

137
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Alguns exemplares das cartilhas da época:

Fonte - http://espacoeducar-liza.blogspot.com/2009/02/historia-das-cartilhas-de-alfabetizacao.
html

ABC da Infância - Primeira coleção de cartas para aprender a ler

Cartilha da Infância. Tomaz Galhardo

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A Casinha Feliz

Fonte: http://espacoeducar-liza.blogspot.com/2010/06/novo-material-casinha-feliz.html

Um dos cartazes do Método da abelhinha

Fonte: http://espacoeducar-liza.blogspot.com/2009/02/cartazes-com-os-personagens-da-
historia.html

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O método sintético era dividido, portanto, em alfabético ou da


soletração, fônico e silábico.

O método alfabético ou da soletração - método mais antigo,


empregado desde a Grécia – tem como unidade principal a letra. Sua
sequência parte de uma ordem crescente de dificuldade, iniciando por
unidades menores, as letras do alfabeto, que devem ser decoradas.
O objetivo maior da soletração é ensinar a combinatória de letras
e sons. Partindo-se das letras, mostram-se os sons correspondentes, as
sílabas, que devem ser unidas para formar as palavras.
O método baseia-se em estímulos visuais e auditivos, valendo-se da
memorização. O nome da letra é associado à forma visual, as sílabas são
memorizadas e, com elas, formam-se as palavras.
Principal cartilha: Cartas do ABC

O método fônico – Neste processo, os alunos são ensinados a


produzir oralmente os sons representados pelas letras e a uni-los. O ponto
de partida neste método são também as palavras mais simples e mais
curtas, compostas por dois sons apenas, representados por duas letras;
depois, estudam-se as palavras de três letras ou mais. Decodificar sons,
na leitura, e codificar sons, na escrita, é a ênfase do método.
A preocupação com o sentido na leitura, em virtude dos avanços
das pesquisas, fez com que se passasse a introduzir frases, artificiais,
em lugar de somente palavras, o que fez com que o método fônico se
caracterizasse também como método misto.
Principais cartilhas: Método da abelhinha e A Casinha Feliz

Para aprofundar-se na questão dos métodos, recomendamos as seguintes leituras:

CARVALHO, M. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. 4. ed. Rio de


janeiro, RJ: Vozes, 2007.

Site: http://espacoeducar-liza.blogspot.com/2010/05/indice-de-cartilhas.html

MORTATTI, M. R. L. História dos Métodos de Alfabetização no Brasil, 2006.


Disponível em: http://www.idadecerta.seduc.ce.gov.br/download%5Cencontro_paic_
ceu_24_2602_2010%5Chistorias_do_metodos_de_alfabetizacao_brasil.pdf

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O método silábico – Parte também das unidades menores, mas
agora, da sílaba. A ênfase continua nos mecanismos de decodificação
e codificação, na memorização e não na compreensão, pois o objetivo
é decorar as famílias silábicas, unindo as sílabas e formando palavras,
depois, formando (ou somente decodificando) frases artificiais do tipo Eva
viu a uva ou Vovô vê o ovo ou O boi baba para apresentar as famílias
do va ve vi vo vu e do ba be bi bo bu.
Carvalho (2007), ao comparar a Carta do ABC (método da soletração)
e a Cartilha da Infância (método da silabação), afirma haver pouca
diferença entre elas. A principal, segundo Carvalho, é que na primeira
não aparecem frases, só palavras, mas o mecanismo da leitura é o mesmo.
Principal cartilha: Cartilha da infância

Tal como acontece com a soletração, o método silábico separa decididamente os


processos de alfabetização e letramento assumindo o pressuposto, do qual discordo, de que
a compreensão da leitura vem depois da aprendizagem do processo de decodificação.
[...] não seria preferível aprender a ler com algo mais interessante que a lição do pato?
(CARVALHO, 2007, p. 24).

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1 - Procure identificar os métodos priorizados nas atividades propostas a seguir:

Fonte das atividades: http://4.bp.blogspot.com/_hGGq2Bji6rE/SaBZW0zuzKI/


AAAAAAAAB2A/9xO9p8pALdk/s1600-h/M%C3%A9todo+F%C3%B4nico+Apostila+Espa%
C3%A7o+Educar.jpg

a) Método________________________________

Ouça e complete:

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b) Método________________________

Leitura das famílias silábicas

c) Método________________________

2 - Reflita: que concepções de alfabetização e letramento se revelam nestas


atividades?

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SEÇÃO 3
MÉTODOS ANALÍTICOS

O método analítico tem como unidade a palavra, a frase e o texto.


De acordo com Carvalho (2007, p. 32), a Escola Nova foi um movimento
educacional renovador, iniciado no final do século XIX e difundido na Europa
e nos Estados Unidos da América do Norte ao longo do século XX, que
inspirou transformações significativas na teoria e na prática educacional.

Conhecer e respeitar as necessidades e


interesses da criança; da realidade do aluno e
estabelecer relações entre a escola e a vida só são
diretrizes do pensamento escolanovista. Métodos
ativos – aprender fazendo - liberdade para criar e
participação da criança no planejamento do ensino
são algumas das estratégias recomendadas (op.
cit.).

A Escola Nova valorizava a leitura e preconizou a utilização dos métodos


globais. Estes são fundamentados na psicologia Gestalt, ou psicologia
da forma, cuja crença é a de que a criança tem uma visão sincrética (ou
globalizada) da realidade e tende, portanto, a perceber o todo, o conjunto,
antes de captar os detalhes, valorizando-se os materiais voltados para a
leitura de unidades maiores: frases e textos.
Assim é que diversos psicólogos e educadores passaram a defender a
compreensão dos significados e não somente a decodificção. Decroly, por
exemplo, propôs ensinar a ler a partir de textos naturais, frases ligadas ao
contexto da criança, ou mesmo a partir de palavras significativas. Considerava
que os métodos tradicionais de soletração e silabação contrariavam a função
de globalização característica da mente infantil. A alfabetização deveria
partir das unidades maiores: palavras, frases ou histórias para, depois,
trabalhar a letra e o som, sem perder de vista, no entanto, o texto original e
seu significado.
A estratégia era iniciar a partir do todo, da compreensão global e partir
para as partes menores. No entanto, a crítica que se faz a esses métodos foi
o encaminhamento dado a eles nas escolas e nos livros didáticos, ou seja,

145
UNIDADE III
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acabaram por focalizar em demasia, assim como os sintéticos, as partes, as


unidades menores, desconsiderando o todo, pois, este, mesmo quando partia
das frases e textos, acabava apenas sendo pretexto para se chegar às famílias
silábicas, as quais deveriam ser também memorizadas e decodificadas, e assim
por diante.
Em lugar da compreensão do texto significativo, real, aquele que
de fato existe nas práticas sociais, e de um trabalho com a língua em sua
funcionalidade, com leituras e escritas em diversas situações reais, a língua
foi novamente transformada em uma “língua escolar”, ou seja, uma língua
apenas para aprender na escola.

De acordo com o método analítico, o ensino


da leitura deveria ser iniciado pelo “todo”,
para depois se proceder à análise de suas
partes constitutivas. No entanto, diferentes se
foram tornando os modos de processamento do
método, dependendo do que seus defensores
consideravam o “todo”: a palavra, ou a sentença,
ou a “historieta”. (MORTATTI, 2006, grifo nosso).

As cartilhas produzidas nesse momento, especialmente no início


do século XX, passaram a se basear no método de marcha analítica
(processos da palavração e sentenciação).
Mortatti (2006) destaca que, a partir de meados da década de 1920,
aumentaram as resistências dos professores quanto à utilização do método
analítico e começaram a se buscar novas propostas de solução para os
problemas do ensino e aprendizagem iniciais da leitura e da escrita.
Enquanto alguns continuaram a utilizar o método analítico, outros
começaram a conciliar os métodos sintéticos e analíticos, originando os
chamados métodos mistos ou ecléticos (analítico-sintético ou vice-versa),
considerados mais rápidos e eficientes.

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A querela dos métodos

Durante décadas, discutiu-se que métodos seriam mais eficientes: se os sintéticos (que
partem da letra, da relação letra-som, ou da sílaba, para chegar à palavra), ou os analíticos,
também chamados globais (que têm como ponto de partida unidades maiores da língua, como o
conto, a oração ou a frase).
A chamada querela dos métodos (BRASLAVSKY, 1971) ainda permanece acesa nos
anos ‘50 e ‘60, alimentada principalmente pelos resultados de pesquisas norte-americanas.
Contrariando as opiniões prevalecentes nos meios educacionais mais avançados, Flesch (1955)
sustentou que o método fônico - que se enquadra na categoria dos sintéticos - era o melhor
para ensinar a ler enquanto os analíticos ou globais eram responsáveis pelo fracasso maciço,
em leitura e escrita, das crianças norte-americanas. Chall (1967), autora de um dos estudos
comparativos mais extensos sobre resultados dos métodos no período 1910-1965, também
tomou posição a favor dos métodos fônicos, sustentando que eles proporcionavam melhores
resultados com crianças das famílias pobres.
Numa via alternativa, evoluíram e ganharam legitimidade outras propos­tas, chamadas
ecléticas ou mistas (BRASLAVSKY, 1971). São os chamados mé­todos analítico-sintéticos, que
tentam combinar aspectos de ambas as abordagens teóricas, ou seja, enfatizar a compreensão
do texto desde a alfabetização inicial, como é próprio dos métodos analíticos ou globais, e
paralelamen­te identificar os fonemas e explicitar sistematicamente as relações entre letras e
sons, como ocorre nos métodos fônicos.
Em síntese, as matrizes metodológicas sintéticas são soletração, silabação e métodos
fônicos. Palavração, sentenciação e métodos de contos pertencem à categoria dos métodos
analíticos.
Ao longo do tempo, foram sendo criadas centenas de variações em torno de métodos
tradicionais. Autores propõem que as letras, ou os sons que as le­tras representam, sejam
associados a personagens de histórias, a cores, a de­senhos, a gestos ou a canções. Cartilhas
e pré-livros a cada ano lançam inova­ções em matéria de histórias, personagens, vocabulário e
exercícios.

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As disputas entre os defensores dos métodos sintéticos e os defensores dos métodos


analíticos não cessaram; mas o tom de combate e defesa acirrada que se viu nos momentos
anteriores foi-se diluindo gradativamente, à medida que se acentuava a tendência de
relativização da importância do método e, mais restritamente, a preferência, nesse âmbito,
pelo método global (de contos), defendido mais enfaticamente em outros estados brasileiros.
Essa tendência de relativização da importância do método decorreu especialmente da
disseminação, repercussão e institucionalização das então novas e revolucionárias bases
psicológicas da alfabetização contidas no livro Testes ABC para verificação da maturidade
necessária ao aprendizado da leitura e escrita (1934), escrito por M. B. Lourenço Filho.
Nesse livro, o autor apresenta resultados de pesquisas com alunos de 1o grau (atual 1ª série
do ensino fundamental), que realizou com o objetivo de buscar soluções para as dificuldades
de nossas crianças no aprendizado da leitura e escrita. Propõe, então, as oito provas
que compõem os testes ABC, como forma de medir o nível de maturidade necessária ao
aprendizado da leitura e escrita, a fim de classificar os alfabetizandos, visando à organização
de classes homogêneas e à racionalização e eficácia da alfabetização.
Desse ponto de vista, a importância do método de alfabetização passou a ser
relativizada, secundarizada e considerada tradicional. Observa-se, no entanto, embora com
outras bases teóricas, a permanência da função instrumental do ensino e aprendizagem da
leitura, enfatizando-se a simultaneidade do ensino de ambas, as quais eram entendidas como
habilidades visuais, auditivas e motoras. Também a partir dessa época, aproximadamente, as
cartilhas passaram a se basear predominantemente em métodos mistos ou ecléticos (analítico-
sintético e vice-versa) e começaram a se produzir os manuais do professor acompanhando
as cartilhas, assim como se disseminou a ideia e a prática do “período preparatório”. Vai-se,
assim, constituindo um ecletismo processual e conceitual em alfabetização, de acordo com o
qual a alfabetização (aprendizado da leitura e escrita) envolve obrigatoriamente uma questão
de “medida”, e o método de ensino se subordina ao nível de maturidade das crianças em
classes homogêneas. A escrita continuou sendo entendida como uma questão de habilidade
caligráfica e ortográfica, que devia ser ensinada simultaneamente à habilidade de leitura; o
aprendizado de ambas demandava um “período preparatório”, que consistia em exercícios de
discriminação e coordenação viso-motora e auditivo-motora, posição de corpo e membros,
dentre outros.
Nesse momento, que se estende até aproximadamente o final da década de 1970,
funda-se uma outra nova tradição no ensino da leitura e da escrita: a alfabetização sob
medida, de que resulta o como ensinar subordinado à maturidade da criança a quem se
ensina; as questões de ordem didática, portanto, encontram-se subordinadas às de ordem
psicológica.
(MORTATTI, 2006).

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Alguns exemplares das cartilhas da época:

Cartilha Analítica. Arnaldo de Oliveira Barreto

Fonte - http://espacoeducar-liza.blogspot.com/2009/02/historia-das-cartilhas-de-
alfabetizacao.html

Caminho Suave: 1o. Livro (Leitura Intermediária).


Branca Alves de Lima.

Fonte: http://espacoeducar-liza.blogspot.com/2009/02/cartazes-com-os-personagens-
da-historia.html

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UNIDADE III
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É importante destacar que todas essas metodologias, no entanto,


“foram pensadas em função do código, não em função da língua escrita”
(FERREIRO, E., 2007, p.73).
De um objeto social, com funções concretas e reais, a língua escrita
foi transformada em um objeto exclusivamente escolar, ocultando-se suas
funções de representação da linguagem, ressalta Ferreiro:

A escola (como instituição) transformou-se


em guardiã desse objeto e exige da criança,
no processo de aprendizagem, uma atitude
contemplativa frente a este objeto. Na concepção
tradicional de aprendizagem, não se apresenta
a escrita como um objeto sobre o qual se pode
atuar, um objeto que é possível modificar para
tratar de compreendê-lo, e sim como um objeto
para ser contemplado e reproduzido fielmente
(sonorizado e copiado com igual fidelidade) (op.
cit., p.70).

Frente às exigências de uma sociedade letrada e seguindo uma


perspectiva sociointeracionista de ensino, a escola deve se preocupar
com a qualidade do que ensina: a leitura e a escrita, evidenciando sua
função social. Muitas vezes, a escola se preocupa em buscar as formas de
se ensinar, e não em buscar as melhores formas para se aprender.
Assim, acaba ensinando por meio de um letramento basicamente
escolar e não por meio de um letramento enquanto prática social. Não
podemos esquecer que, mesmo antes de ir para a escola, a criança
interage com diversas práticas de letramento em seu meio social, entra
em contato com uma língua viva, real, que não está nos “livros didáticos
nem nas cartilhas”, mas na fala (e na escrita) de seus familiares, amigos,
na TV, no rádio, no computador, enfim, por toda a parte:

[...] a leitura do mundo precede a leitura da


palavra, daí que a posterior leitura desta não
possa prescindir da continuidade da leitura
daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a
ser alcançada por sua leitura crítica implica a
percepção das relações entre o texto e o contexto.
(FREIRE, 2008, p.11).

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Não podemos nos esquecer também de que se aprende a ler lendo
e a escrever escrevendo; portanto, as estratégias para possibilitar essa
leitura e essa escrita precisam ser muito bem pensadas, planejadas, pois
estarão diretamente relacionadas com nossa concepção de língua, de
ensino, de aprendizagem e, principalmente, com a concepção de que
cidadão queremos formar: alfabetizado e/ou letrado?

O QUE É IMPORTANTE NA ESCOLHA DO MÉTODO?


Nas condições concretas da escola brasileira, quando uma professora vai escolher um
método, proponho que busque responder às seguintes questões:
Em primeiro lugar, qual é a concepção de leitura e de leitor que susten­ta o método? Estão
combinados os objetivos de alfabetizar e letrar, isto é, a preocupação em ensinar o código
alfabético é tão presente quanto o objetivo de desenvolver a compreensão da leitura? São
previstas manei­ras de sistematizar os conhecimentos sobre as relações entre letras e sons? Há
interesse em motivar os aprendizes para gostar de ler?
A fundamentação teórica do método é conhecida e faz sentido?
As etapas ou procedimentos de aplicação são coerentes com os funda­mentos do
método?
O material didático é acessível, simples e de baixo custo?
Há evidências de que o método foi experimentado com êxito em um número significativo
de turmas, em contextos escolares diferentes?
O que dizem professores e pesquisadores sobre a aplicação e os resul­tados?
CARVALHO, M. (2007, p. 18-19).

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UNIDADE III
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1 - Leia atentamente os dois textos que seguem e reflita:

a) Que concepções de alfabetização eles refletem?


b) Qual deles reflete a concepção de alfabetização atual? Justifique a sua resposta:

RECEITA DE ALFABETIZAÇÃO

Pegue uma criança de 6 anos e lave-a bem. Enxugue-a com cuidado,


enrolando-a num uniforme e coloque-a sentadinha na sala de aula. Nas oito
primeiras semanas, alimente-a com exercícios de prontidão. Na nona semana,
ponha uma cartilha nas mãos da criança. Tome cuidado para que a criança não
se contamine no contato com livros, jornais, revistas, e outros perigosos materiais
impressos.

Abra a boca da criança e faça com que ela engula as vogais. Quando tiver
digerindo as vogais, mande-a mastigar uma a uma as palavras da cartilha. Cada uma
deve ser mastigada no mínimo 60 vezes, como alimentação macrobiótica. Se houver
dificuldade para engolir, separe as palavras em pedacinhos. Mantenha a criança
em banho-maria durante meses fazendo exercícios de cópia. Em seguida, faça com
que a criança engula algumas frases inteiras. Mexa com cuidado para não embolar.

Ao fim do oitavo mês, espete a criança em um palito, ou melhor, aplique


uma prova de leitura e verifique se ela devolve pelo menos 70% das palavras
e frases engolidas. Se isto acontecer, considere a criança alfabetizada.
Enrole-a num papel bonito de presente e despache-a para a série seguinte.

Se a criança não devolver o que foi dado para engolir, recomece a receita
desde o início, isto é, volte aos exercícios de prontidão. Repita a receita quantas
vezes forem necessárias. Ao fim de três anos, embrulhe a criança e coloque um
rótulo: aluno renitente.

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UNIDADE 3
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
ALFABETIZAÇÃO SEM RECEITA

Pegue uma criança de seis anos, ou mais, no estado em que estiver, suja ou
limpa, e coloque-a numa sala de aula onde existam muitas coisas escritas para olhar e
examinar. Servem jornais velhos, revistas, embalagens, propaganda eleitoral, latas
de óleo vazias, caixas de sabão, sacolas de supermercado, enfim, tudo que estiver
entulhado nos armários da escola e da sua casa. Convide a criança para brincar de
ler, adivinhando o que está escrito: você vai descobrir que ela já sabe muitas coisas.

Converse com a criança, troque idéias sobre quem são vocês e as coisas de que
gostam e não gostam. Escreva no quadro algumas coisas que foram ditas e leia
em voz alta. Peça à criança que olhe as coisas escritas que existem por aí, nas
lojas, no ônibus, nas ruas, na televisão. Escreva algumas destas coisas no quadro
e leia-as para a turma.

Deixe a criança cortar letras, palavras e frases dos jornais velhos e não
esqueça de mandá-la limpar o chão depois, para não criar problema na escola.

Todos os dias leia em voz alta alguma coisa interessante: historinha,


poesia, notícia de jornal, anedota, letra de música, adivinhações.

Mostre para a criança alguns tipos de coisas escritas que talvez ela não
conheça: um catálogo telefônico, um dicionário, um telegrama, uma carta, um
bilhete, um livro de receitas de cozinha.

Desafie a criança a pensar ou ajudar o colega. Não se apavore se a criança


estiver comendo letras: até hoje não houve caso de indigestão alfabética. Acalme
a diretora e a supervisora se elas ficarem alarmadas.

Invente sua própria cartilha. Use a imaginação e sua capacidade de


observação para ensinar a ler. Leia e estude você também.

(CARVALHO, M. 2007, p. 132 e 133).

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UNIDADE III
154
Universidade Aberta do Brasil

UNIDADE 3
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
PALAVRAS FINAIS

Queridos(as) estudantes, mais uma etapa de estudos vencida! Você


pôde ler, refletir e construir conhecimentos essenciais para sua formação
enquanto futuro professor de língua materna nas séries iniciais. Teve a
oportunidade de pensar sobre a língua que fala, ouve, escreve e que,
agora, irá ensinar. Refletiu sobre os objetivos e as finalidades do ensino
da língua materna, constatou que embora sejamos conhecedores de nossa
língua, como educadores necessitamos de diferentes e imprescindíveis
conhecimentos de diversas áreas. Também comprovou o imperativo das
práticas de alfabetizar letrando para que a formação de nosso aluno seja
capaz de torná-lo um cidadão consciente, crítico, e que faz uso da língua,
em suas diferentes variedades, para agir sobre o outro e para exercer
direitos e deveres. Mas tudo o que descobrimos está muito longe de ser
suficiente para a sua formação. Lembre-se de que todas as descobertas
feitas devem ser relacionadas aos novos conhecimentos que irá construir
ao longo do curso. Nossa disciplina terá continuidade, e no livro II,
iremos nos aprofundar no estudo das práticas de leitura, produção de
texto e análise linguística, além de refletirmos sobre a importância da
análise consciente de livros didáticos e da avaliação formativa em língua
portuguesa. Esperamos por você no próximo semestre! Bons estudos!

Um grande abraço e sucesso a todos(as)!

Professoras Eliane e Giselle

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PALAVRAS FINAIS
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
REFERÊNCIAS

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162
REFERÊNCIAS
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
ANEXOS

ANEXO 1
Para melhor visualização, apresentam-se as características fonéticas
contemporâneas do PB nos quadros abaixo:

CARACTERÍSTICAS FONÉTICAS CONSERVADORAS

1- Fechamento da vogal média átona final de –e para –i e de –o para –u. Exemplos:


fali, falu por fale, falo. Essa pronúncia foi corrente no PP até o século XVIII.

2- O –a átono final, embora mais breve, permanece muito aberto. Exemplo:


passa.

3- Em posição pretônica o –e e –o conservam o timbre fechado no Centro-Sul e


aberto no Norte e Nordeste. Porém, não há distinção de significado. Ex.: méladu,
módelu.
4- Há ainda uma característica da língua antiga em transformar –e e –o pretônicos
em –i e –u: entrar > intrar, estar > istar, menino > mininu, costume > custumi.

5- No PB não existem os fonemas [ä] e [ë].

6- Pronúncia do ditongo ei como [ey] em lei e como [e] em primeiro.

7- O ditongo ou soa como [o] em ouro e vou.

8- O PB não acompanhou a pronúncia [ãy] de bem, [äy] de primeiro, ocorridas em


Portugal. no século XIX.

9- Rotacismo de l travador de sílaba (marvado por malvado), iodização da palatal


que se grafa lh (muié, fio) na variedade de não-escolarizados.

10- Os –s e os –z implosivos são pronunciados na maior parte do Brasil como


sibilantes, realizados como [s] em final absoluto (atrás, uma vez) ou diante de
consoante surda (vista, faz frio) e como [z] diante de consoante sonora (mesmo,
atrás dele). Na variante do Rio de Janeiro, podem apresentar pronúncia chiante.

163
ANEXOS
Universidade Aberta do Brasil

Veja as características inovadoras, ou seja, que não são encontradas


na fonética do PP, somente no PB.

CARACTERÍSTICAS FONÉTICAS INOVADORAS

1- O PB não opõe timbres abertos e timbres fechados da vogal –a


seguida de nasal. Exemplo: no PP cantamos – presente – e cantàmos
– pretérito.

2- Não há no PB distinção entre o timbre aberto e fechado para


as vogais pretônicas grafadas a, e, o. Exemplo: pregar – pregar
um prego, prègar – predicar no PP. Essa simplificação no sistema
fonológico brasileiro leva à perda de distinção entre o artigo
a e a crase entre esse mesmo artigo e a preposição a (a mesa é
foneticamente igual a à mesa).

3- Vocalização do –l velar. Exemplo: animau por animal. Perde-se a


distinção entre o advérbio mal e o adjetivo mau.

4- A pronúncia chiante de –s e –z implosivos pode provocar o


aparecimento de um iode: atrás – atrais, luz – luis, pés – péis.

5- Abertura das sílabas terminadas por oclusivas em palavras


eruditas: advogado- adivogado/adevogado, psicologia – pissicologia,
ritmo – rítimo, pneu – pineu/peneu.

6- Palatalização de /t/ e /d/ seguidos de –i: ouve-se [ty] e [dy]. É


a pronúncia típica do Paraná. Em Santa Catarina não ocorre essa
palatalização na pronúncia de palavras como tia e dia.

7- Supressão de –r final de sílaba (falá, comê) e eliminação do –l


(animá por animal) em final de palavra na variante estigmatizada.

Teyssier (2001) adverte que é principalmente na pronúncia das


vogais que o português do Brasil se distancia do PP, pois esse sistema é
simétrico e equilibrado e as átonas finais são realizadas de forma mais
nítida do que no português europeu.

164
ANEXOS
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
Aspectos morfossintáticos do PB contemporâneo:
Abaixo, enumeram-se, de modo sintético, as principais características
morfossintáticas do PB. É importante lembrar que algumas mudanças
conduzem a outras. Por exemplo, as alterações no sistema pronominal
acarretam mudanças no paradigma verbal.

CARACTERÍSTICAS MORFOSSINTÁTICAS DO PB
1- Estar + ando (estou falando) em correspondência ao uso europeu estar + a
+ r (estar a falar).
2- Negação dupla do tipo não sei não passando a nun sei não, n’sei não até
sei não.

3- Sujeito pronominal da oração infinitiva no caso oblíquo: isto é para mim


comer em lugar de isto é para eu comer. Apesar de ser considerado “erro” pela
gramática tradicional, esse uso está em processo de expansão.

4- Simplificação da morfologia nominal, indicando-se o plural através do


determinante e/ou de outros elementos da sentença: as casa, essas casa; os
piá levados, essas aula chatas.

5- Emprego de ter por haver nas construções existenciais: hoje tem aula.

6- Construção dos verbos de movimento com a preposição em: vou na feira –


vou à feira.
7- Possibilidade de empregar os possessivos sem artigo: Meu carro – o meu
carro.

8- Emprego da locução pois não com valor afirmativo: __Pode me dar uma
informação? __Pois não.

9- Pronome átono em próclise: João se levantou.


Em início absoluto de frase: Me diga uma coisa.

10- Alterações no paradigma verbal em virtude da redução do uso do tu e


do vós e da expansão de você e a gente. Convivem no Brasil os seguintes
paradigmas verbais:

- de quatro posições: eu falo; ele, você, a gente fala; nós falamos; eles,
vocês falam;

- de três posições: eu falo; ele, você, a gente fala; eles falam;

- de duas posições: eu falo; ele, você, a gente, eles, vocês fala – mais
comum nas variedades de não-escolarizados.

Em algumas áreas geodialetais brasileiras usa-se o tu na fala concordando


com o verbo na 3a pessoa (tu fala), em outras, como em Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, ao tu se segue a flexão histórica (tu falas).

165
ANEXOS
Universidade Aberta do Brasil

11- Devido à redução do paradigma flexional número-pessoa do verbo o


PB perde o chamado parâmetro pro-drop, ou seja, há a necessidade do
preenchimento do sujeito pronominal: ….. falou sobre o filme. (quem: ele,
você, a gente?).

12- Ambiguidade no uso do possessivo seu em virtude do uso de você em


lugar do tu: Saramago escreveu um novo romance; seu livro está sendo muito
vendido.

Essa ambiguidade pode ser desfeita pelo contexto ou pelo uso do dele: Saramago
escreveu um novo romance; o livro dele está sendo muito vendido.

13- Eliminação dos pronomes complementos clíticos – o, a, os, as – preferindo-


se em seu lugar o sintagma nominal pleno (Eu vi seu filho lá.), o pronome
sujeito (Eu vi ele lá.) ou o apagamento do pronome complemento, estratégia
de esquiva (Eu vi lá.).

14- Uso do pronome lhe, correspondente ao objeto indireto, como objeto direto
correlacionado ao pronome sujeito você (Você gosta muito de cinema. Eu lhe
vejo sempre no Multiplex.). Pode ainda variar com te (Eu te vejo…)

15- Uso do pronome lembrete no que se refere aos relativos: O professor que
eu estudei inglês com ele voltou./ O professor com quem eu estudei inglês
voltou.

16- Permanece o sistema ternário dos pronomes demonstrativos – este, esse,


aquele, mas não há mais a correspondência que a língua já chegou a estabelecer
com as pessoas do discurso (1a – este, 2a – esse, 3a – aquele). A oposição que
se estabelece hoje é este + esse e aquele, configurando, no uso, um sistema
binário. O uso de esse também deixou de ser categórico na retomada de um
antecedente. Ex.: Recebemos ontem uma circular suspendendo as aulas. Esta/
essa circular encontra-se afixada no mural do departamento.

17- Alternância na forma imperativa. Ex.: deixa/deixe - Deixa a vida me levar


.../ Deixe a vida me levar... Entre deixa você e deixe você, a primeira forma é
mais utilizada, embora seja condenada pelos gramáticos.

Obs.: Quadros apresentados em SMANIOTTO, G. C. História da Língua


Portuguesa 2. Ponta Grossa: UEPG/NUTEAD, 2010.

166
ANEXOS
Licenciatura em Pedagogia - Fundamentos Teórico-Metodológicos da Alfabetização e Língua Portuguesa I
NOTAS SOBRE OS AUTORES

Eliane Santos Raupp


Iniciou a graduação em Letras Vernáculas na Universidade Federal
de Santa Catarina, obtendo transferência em 1990 para a Universidade
Federal de Sergipe (UFS), onde concluiu o curso (1993); é mestre em
Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Maringá - 2002.
Atualmente é professora do Ensino Superior e ministra cursos na área da
leitura e produção textual.

Giselle Cristina Smaniotto


É licenciada em Letras – Português/Inglês pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa – 2000 - e mestre em Estudos da Linguagem
pela Universidade Estadual de Londrina – 2005. Atuou como professora
do ensino fundamental durante nove anos e teve uma rápida passagem
pelo ensino médio. Atualmente é professora do departamento de Métodos
e Técnicas de Ensino da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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AUTORES

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