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Sob o Signo do Corvo

Marcos F. M. Filho

Mais um dia frio naquele maldito lugar. Levantar-se tornava cada dia mais
difícil, pois as dores eram grandes nos joelhos e no ombro esquerdo, fruto de
seu passado em longas batalhas, mas nada se igualava a dor que sentia em
sua alma e que só passava com várias garrafas tomadas a cada noite.

Eram cinco horas da manhã e naquele dia em específico ele tinha que se
levantar mesmo não querendo e lutando contra todas as dores da alma e do
corpo. Era dia da Grande Feira de Welsh, única oportunidade que ele teria de
vender alguns carneiros e ovelhas ou trocar por itens que iria necessitar
naquele fim de mundo onde ele morava. Teria que caminhar cerca de três
horas até chegar à área da Feira e esperava voltar ainda no mesmo dia, pois
não gostava das pessoas do lugar. Na verdade, ele não gostava de ninguém há
muito tempo.

Ele era um homem forte apesar do estado em que a bebida e a melancolia o


deixaram. Tinha por volta de quarenta e três invernos e além das dores físicas
e da alma, portava algumas cicatrizes no rosto que não o deixara com um bom
aspecto aos olhos de civilizados e somente entre aqueles que tomavam a
guerra por modo de vida poderia ser apreciada como verdadeiras insígnias de
batalhas vencidas. Seu peito estava coberto com runas antigas que ele não
sabia desde quando estavam lá. Desde que se lembra por gente, estas runas
desenhadas como se por uma ponta de faca em brasa estavam em seu peito e
deixava um misto de curiosidade e perplexidade nas pessoas que conseguiam
vislumbrá-las, principalmente nas mulheres.

Apesar do mau cheiro que exalava, um misto de bebida azeda e suor, fruto de
incontáveis tempos sem um banho digno ou roupas limpas, seu estado físico
só não era pior, pois cuidava das terras que possuía (o que de passagem não
passava agora de um acre de monte coberto de pedras e parcas ravinas) o
suficiente para criar algumas cabras e ovelhas. Além desses animais, apenas
um corvo ficava empoleirado em um velho carvalho, grasnando vez por outra,
o que já não o incomodava há tempos.

A casa não era de grande valia. Aparentava já ter tido dias melhores. Um pano
rasgado e sujo na janela indicava o que deveria ter sido uma cortina bordada
com todo o esmero que uma camponesa pudera fazer. Mas isso parecia cada
vez mais parte de um passado lúgubre e distante. Junto a casa, estava um
estábulo pequeno que parecia mais bem cuidado que a casa. A construção de
telhado baixo de palha abrigava cerca de quinze ovelhas, cinco cabras e um
cavalo que estava já em sua meia idade e servia para as eventuais e parcas
saídas deste homem de sua propriedade.
Na parte traseira do estábulo, protegendo do vento norte, havia uma forja em
que era possível fazer pequenos trabalhos e evitar gastos maiores. Afiar facas,
fazer uma ferradura ou cravos, mas aparentava estar sem uso há pelo menos
umas cinco estações. Nos últimos tempos, cuidar dos animais e beber era a
única coisa que mantinha este homem de pé, juntamente com lembranças
doloridas.

As pessoas da região o evitavam e poucos sabiam seu nome. Referiam-se a ele


como o homem sem nome, o bêbado do monte Snowdon. Somente os antigos
lembravam-se de seu nome, mas buscavam evitar pronunciar ou dirigir-se a
ele. Ele era Bohram, filho de Owen. Um Meilyr, um príncipe entre seu povo, os
Deceangli. Sua amargura vinha de acontecimentos de muito tempo, mas para
entender como tudo chegou ao ponto em que era difícil para Bohram desistir
de viver e era mais fácil deixar a bebida tentar apagar suas memórias, temos
que retornar alguns anos a mais em sua vida.

O que parecia uma boa fortuna ao nascer, foi seu suplício e martírio. Na época
do governador romano para a Britannia, Caio Suetônio Paulino, Bohram tinha
cerca de sete anos quando foi tirado de sua tribo como um Tributo de Fé aos
romanos. Era costume dos invasores, levarem os filhos dos chefes militares
conquistados e Bohram, por ser filho do chefe dos Dyfeds era um tributo
muito importante, pois a região era estratégica para os romanos devido as
suas riquezas.

Quando um Tributo de Fé era levado, surgia uma mistura de sentimentos


entre os povos celtas galeses. Enquanto os simplórios se sentiam aliviados,
pois não seriam pilhados e nem veriam seus filhos mortos e filhas estupradas,
aos guerreiros e líderes sobravam o amargor de uma derrota sem espadas, a
humilhação da prostração a um inimigo muito mais forte, que além de suas
riquezas, levariam seus filhos. Este costume romano tinha dois objetivos
básicos: evitar que as tribos se rebelassem, pois, na verdade eles tinham
reféns em sua custódia, (simplesmente o futuro das tribos, suas lideranças)
mas também romanizar, trazer os costumes e submissão dos povos
conquistados, a Pax Romana.

Bohram foi levado junto com vários outros meninos de sua idade, mas
somente ele e Muireann ficaram aos cuidados do governador Caio Suetônio
Paulino. Não obstante, ambos eram os príncipes de famílias mais ricas e mais
importantes. Muireann era um amigo e aparentado de Bohram por antigos
laços de sangue, algo que modernamente podemos chamar de um primo
distante, mas que nas tradições galesas eram muito mais fortes do que se
pode imaginar em nossa sociedade dita civilizada. Nas sociedades classificadas
como bárbaras pelos invasores romanos, os laços de sangue nunca se
rompiam e poderiam motivar desde uniões improváveis nos campos da rude
política da época, como de ódios e lutas tão imortais que ambos os lados já
não se lembravam dos motivos das querelas.

Entretanto, estes laços poderiam se distender a ponto de praticamente sumir


quando Muireann resolveu aceitar e adotou o nome de Agricola, dado pelo seu
virtual protetor. Bohram se recusava a ser chamado de Caio, o nome que lhe
fora destinado. Em sua cabeça, os luxos, boas refeições, ensinamentos e
tratamentos que lhe eram dispensados, não poderiam apagar as memórias de
sua família. Ele era o preferido do governador, mas sempre achava uma forma
de irritá-lo ou a seus tutores. A lembrança de correr pelos campos de forma
livre, subir as pedras brancas e admirar todo o vale de Dinorwig, que separava
os Demetaes ao sul dos seus parentes Ordovices ao norte, o impediam de
aceitar um nome romano. Em sua cabeça era algo como se submeter aos
caprichos daqueles que o tiraram de sua mãe, a quem amava acima de tudo.

Já Muireann, agora Cneu Júlio Agricola não pensava assim. Com três anos a
mais do que Bohram quando foram levados cativos como tributos, junto com
mais de 12 outros meninos príncipes, pensava que poderia aprender e quem
sabe lucrar algo com isso. Aceitando os romanos viveria melhor e sem castigos
dos tutores e poderia ganhar presentes do governador. Destas pequenas
ambições, que com o passar dos anos foram crescendo para ambições
maiores, como voltar como governador de toda a Britannia, formaram um
homem que pouco tinha a ver com o jovem levado de sua tribo e, em comum
com Bohram, somente o desejo de voltar a sua terra natal: um para viver a
vida da qual fora tirado e outro para viver a vida a que fora preparado.

Quando completou dezesseis invernos, seu Pater Romanus, como o governador


se autodenominava, o mandou para o treinamento militar junto com Agricola.
Era imperioso a todo filho dado como Tributo de Fé e abrigado por um romano
que ele recebesse além da instrução filosófica, matemática e religiosa de um
cidadão romano ter também treinamento militar. Embora não gostasse de
aprender a cultura romana, com o passar do tempo Bohram descobriu que
saber sobre seu inimigo seria a melhor forma de vencê-lo e resolveu fingir
aprender ao invés de se rebelar de forma juvenil e sofrer com os castigos
físicos que aumentavam com a idade.

Seu treinamento foi na melhor academia nos arredores de Roma, coisa que
somente os romanos bem-nascidos tinham acesso. Se por um lado teve
professores gregos e egípcios, para o treinamento militar contou com o melhor
que Roma e suas possessões poderiam fornecer: estrategistas cartagineses,
especialistas em armas da Trácia, oficiais romanos para entender de disciplina
e guerreiros germânicos e hispanos que os treinavam no combate corporal.

Mas volta e meia, Bohram acordava na noite falando palavras que


desconhecia, em um antigo idioma, lembrado apenas por velhos magos. Não
raro, desenhava runas que desconhecia com o que encontrava em seu transe:
pedaços de carvão, na terra, no chão ou mesmo com suas unhas e o próprio
sangue. Ele acordava espantado e suado e, por muitos anos, lutou para
primeiro entender, e depois para esquecer os pesadelos.

Rapidamente Bohram se destacou entre os soldados e ao prazo de treinamento


de três anos, já estava sendo enviado para campo na Germânia. Ele gozava de
prestígio entre seus treinadores e poderia ir para uma posição em Roma com a
influência de seu protetor, mas preferiu ficar o mais longe que pudesse do
lugar que o tirara de sua vida. Já Agricola, se aproximou dos oficiais romanos
e conseguiu um posto na guarda pessoal de Tito Flávio César Vespasiano
Augusto, filho mais velho do Imperador Vespasiano, que estava a caminho da
Judéia para pacificar a província. Agricola viu uma boa oportunidade de se
aproximar do filho do Imperador e virtualmente, próximo a governar Roma, em
uma empreitada em uma província distante.

A partir deste momento as duas carreiras se distanciaram e pouca notícia se


teve de Agricola por longos anos. Bohram também pouco se interessava pelo
seu antigo parente e conterrâneo. Este por sua vez, participou de muitas
batalhas na Germânia e na Gália, se destacando por bravura em todas e, em
particular, na Revolta dos Batavos, quando salvou a vida do comandante
romano Quinto Petílio Cerial, do que seria sua morte na batalha final que
derrotou os Batavos na Germânia Inferior. Quando Quinto Petílio foi
derrubado do cavalo por uma lança e um germano avançou para ceifar sua
vida, foi Bohram que interrompeu com sua espada a investida do batavo e
salvou seu comandante.

Como prêmio foi lhe oferecido um grande butim, mas Bohram pediu que
recebesse a baixa do exército. Ele estava a ponto de ser promovido para
general e comandar uma legião inteira, pois já se destacara como centurião em
mais de 20 batalhas. Era chamado de o Corvo da Germânia, pois devido a sua
ferocidade onde passava só sobravam corpos. Muitos soldados sobre seu
comando achavam que seu centurião tinha uma proteção mística, pois por
mais de uma vez viram-no em situação frente à morte no campo de batalha,
mas sempre escapando. Um soldado de nome Severus jurava que suas marcas
no peito haviam brilhado durante a batalha pelo oeste da Gália, quando se viu
cercado por cinco guerreiros e milagrosamente matou a todos como se
possuído de força superior.

Contrariado, o comandante Quinto o dispensou. Sabia da grande perda que


teria em suas fileiras, mas teria que honrar sua palavra ao prometer dar o que
Bohram pedisse como recompensa. E assim, com 35 anos, Bohram decidiu
voltar para casa após mais de 28 anos longe. Já não tinha mais que obedecer
ao velho governador Caio Suetônio, que morrera há alguns anos. Também não
sabia o que encontraria, mas com certeza seria melhor do que aquela vida de
merda junto aos romanos que nunca aceitou e que cada vez mais pesava em
seu peito servi-los.

Despediu-se de seus companheiros, abandonou sua armadura, levando


apenas sua espada, seu cavalo e o soldo que vinha acumulando desde o dia
em que serviu pela primeira vez. Era uma quantia generosa e poderia servir
para um recomeço de vida em sua terra natal. Partiu no vigésimo nono dia do
mês de Janos e como tomou a rota pela Germânia conquistada, decidiu pegar
uma embarcação para chegar a Britannia e de lá cavalgar alguns dias de
Londiniun até sua aldeia Dyfeds, em Deceangli.

A viagem transcorreu sem muitos pormenores e Bohram não queria se


alongar, tanto pela carga que carregava, quanto pela ansiedade de rever sua
aldeia de Dyfed. Ao sair de Londinium, uma cidade tão romana quanto
qualquer outra que conheceu em suas andanças pela Gália e Germânia, ele
começou a ver que ao adentrar as terras dos Silures, ao sul e optar pela trilha
que levava ao norte para Deceangli, subindo pelas terras de seus parentes
Ordovices, começou a ver que o mundo era um local pequeno para as garras
de Roma.

As terras por onde passou estavam empobrecidas e as pessoas o olhavam com


um olhar triste e desesperançoso. Um corvo grasnava em uma árvore
ressequida próxima e parecia observá-lo com interesse, que Bohram
simplesmente ignorou. Passou por um bando de sacerdotes druidas e olhou
para eles com um misto de indiferença e desprezo. Nunca teve muito contato
com a sua religião natal, embora soubesse que sua mãe na infância era uma
pessoa com crenças que ele pouco lembrava ou entendia. Também nunca
aceitara a religião dos romanos, pois sentia como mais um grilhão na corrente
que o amarrara longe de sua terra natal.

Um dos homens, o mais velho dentre os sacerdotes deteve-se e perguntou


diretamente:

— Salve viajante! Sou Gwyddyon e sigo com meus companheiros para a


floresta que fica nos arredores de Caerleon para as comemorações do Imbolc e
louvar a Brígida, nossa deusa do fogo e da sabedoria. Gostaria de vir com
nosso grupo?

— Obrigado, mas estou de passagem para Dyfeds — disse Bohram, se


apresentando como filho de Owen.

Neste momento o sacerdote parou e o fitou com interesse.

— Conheço sua família, Meilyr Bohram! Sua mãe, Nya, foi uma sacerdotisa de
Brígida por muitos anos até nos deixar e seguir o rumo celestial.

Bohram engoliu seco: — Não sabia que minha mãe havia falecido... sabe algo a
respeito?

Gwyddyon meneou a cabeça e afirmou nada saber. Mas procurou mudar de


conversa sobre a morte de Nya e falar sobre sua amizade com a mãe do
príncipe.

— Nya foi instruída por mim e pelo sumo sacerdote dos druidas de Caerleon.
Por anos foi uma sacerdotisa até o momento em que se apaixonou por seu pai,
Owen, e nos abandonou para construir sua vida. Mas não lamentamos, pois
Nya sempre foi uma grande sacerdotisa e levou muita prosperidade a seu
povo. Ela ficaria orgulhosa de ver o homem que se tornou!

O guerreiro não reagiu às palavras do mago. Estava perdido em seus


pensamentos, lembranças de uma aldeia enevoada e de sua mãe ao lado de
ervas, fumaça e caldeirões. Lembrou-se de rituais noturnos, quando ele era
levado à floresta e apesar do frio do ambiente, sentia-se bem. Quente como
entre cobertas de pelo de ursos e lobos. Lembrou-se também das runas em
seu peito. Não gostava de falar disso, mas lembrava-se bem de sua mãe as
cobrindo em seu peito com uma estranha tinta azul, que pensara ser algum
remédio, mas após um rápido momento começavam a arder, queimar e deixar
as cicatrizes atrozes para o peito de um menino.

— Obrigado, velho, seguirei meu caminho até minha aldeia — disse Bohram,
enquanto instintivamente passava sua mão direita nas cicatrizes do peito.

O caminho até Deceangli seguiu sem grandes novidades. No cair da noite


estava na entrada da aldeia e começou a verificar que estava sendo observado
com olhares que misturavam desprezo e raiva. Apesar de não esperar esta
reação de seu povo, Bohram já estava acostumado a ser olhado com amargura
e maldições pelos povos conquistados. Seguiu cerca de 20 braças quando foi
abordado por um guerreiro embriagado.

— Alto lá, romano! Aonde pensa que vai? Roubar mais comida ou nossas
mulheres? Se procura ouro ou joias, sua laia que baixa a cabeça para
imperadores invertidos já levou tudo.

— Em primeiro lugar não sou romano, seu cão! Sou um Dyfeds como você e
sigo a casa de meu pai, Owen.

— Owen, aquele bêbado maldito, amante dos romanos? Se não estiver morto
de beber você o encontrará na quinta casa à sua direita, com as meretrizes da
aldeia.

Bohram seguiu em frente, tomado por uma raiva sem tamanho. Como seu pai
deixara chegar as coisas naquele ponto? Não poderia lutar? Já não bastava os
acordos infames, a entrega de filhos Deceangli, a perda de sua mãe, que ainda
ninguém lhe explicara...

Ele entrou no bordel com uma velocidade não costumeiramente vista naquele
lugar. Começou a vasculhar cada quarto sem dizer uma palavra, mesmo com o
protesto de cafetões e tentativas de contato de algumas meretrizes. No
penúltimo quarto encontrou um homem seminu, bêbado e sem sua bolsa de
moedas. Pelo pouco que se lembrava, principalmente à meia luz, parecia seu
pai, embora agora apenas um pálido reflexo do rei imponente que um dia fora.

— Acorda velho! Tenha um pouco de dignidade e se vista, pois precisamos


falar.

Owen, nem se mexeu. Sem muita paciência, o Meilyr despejou um urinol cheio
na cabeça de seu pai, que em um pulo, levantou com sua espada já quase sem
fio em suas mãos.

— Seu filho de uma cadela! Eu vou te matar por isso! Eu sou o rei dessa joça e
vou matá-lo com minhas mãos.
— Você deveria mediar as palavras, afinal sou o filho de sua mulher — disse
Bohram — mas cuide de sua ressaca e do tratamento que as vadias lhe
dispensam e amanhã conversamos.

No dia seguinte, logo pela manhã, Bohram já tinha se alimentado e estava na


porta do Salão da Comuna aguardando seu pai. Não tinha muitos sentimentos
por ele na infância e muito menos agora. Já o culpava por tê-lo trocado e
agora ainda mais por ver seu povo no estado em que se encontrava.

Owen não estava muito melhor do que no dia anterior. Cheirava à bebida e ao
ranço que somente quem frequentou as casas do baixo meretrício por anos
possui impregnado ao corpo. Desmaiado e com uma caneca encostada entre
os seus dedos e o chão, acordou com um leve chute do guerreiro.

— Acorde, que não tenho muito tempo — falou rispidamente Bohram, ao que o
velho governante soltou um resmungo, enquanto recebia um saco de moedas
em sua cara.

— Agora podemos conversar. — Riu Owen com a ambição de quem


vislumbrava pelo menos mais uma estação de visitas ao bordel e tavernas da
aldeia. — Tenho um bom pedaço de terra para lhe vender, a dez léguas de
Welsh. Vai te servir. É longe o suficiente daqui para fazer o que quiser de sua
vida e da minha. De minha parte não quero nada com você ou com a magia
imunda que carrega, herdada de sua mãe.

— Eu amei muito Nya! Mas ela se foi, como também foi minha vontade de
viver...você tem muito dela, parece com ela e com certeza deve carregar a
imundice da maldição que ela chamava de dom. Ah, sim, foi a merda desta
crença, desta mágica que a tirou de mim. Ela achava que poderia combater os
romanos com seus rituais. Eu tentei avisar, mas foi muito tarde. Seu poder de
cura não a ajudou. — Soluçou o líder dos Dyfeds.

Bohram queria saber mais, mas tinha a certeza de que pouco poderia saber de
seu pai naquele estado e poderia sacar a espada e acabar com o velho bêbado
com muita facilidade. Era muita coisa para assimilar e ele queria sair daquele
lugar e gritar, quebrar algo, vomitar — um misto de sensações e frustrações
que mal sabia explicar. Sabia desde cedo que não era normal que não era
como os outros, mas também tinha o discernimento de que não seria ali que
obteria respostas. Limitou-se apenas a virar as costas e sair, sem ao menos
dizer uma única palavra e ouvindo ainda os lamentos de um velho sobre a
perda da mulher em um choro trôpego e bêbado.

--x--

Dois invernos se passaram e Bohram estava bem assentado em suas terras, se


poderia chamar assim um monte ao redor de muitas pedras. Do soldo que
trouxe, comprou alguns animais, cabras e ovelhas que poderiam viver naquele
pedaço de chão inóspito e reformou uma choupana que havia sido deixada
pelo antigo proprietário antes de ser morto nas Guerras Romanas.
Estava prosperando dentro de seu pequeno sonho. Já não se lembrava mais
das batalhas, dos romanos, do seu povoado. Vivia isolado e satisfeito. Não
poderia dizer feliz, pois sentia falta de compartilhar a vida com alguém.
Sempre que ia à aldeia de Cwm Idwal, a mais próxima de onde morava, para
fazer negócios, sabia que era observado pelas mulheres da região. Vez por
outra era parado para negociar um casamento, pois assim era na sua época.
Pais de jovens viam em Bohram, um Meilyr, uma forma de ascensão social
para eles e sua família. Cedo ou tarde o velho Owen morreria de idade ou de
tanto beber e Bohram assumiria o comando dos Deceangli, pois os demais
pretendentes ou estavam mortos ou eram bastardos, filhos de meretrizes sem
nome. Além disso, o fato de Bohram ter sido criado por romanos e servido em
seu exército fazia com que ele não fosse incomodado pelos colonizadores, o
que era uma grande vantagem, que incluía não pagar impostos.

Foi em uma das idas para conseguir sal e trocar algumas facas, que fizera em
sua forja, por itens que um homem do campo precisa, que conheceu Eimer,
filha mais velha de Elman, o Ruivo. Elman era da nobreza Deceangli e um
amigo da família, mas ele não sabia disso naquela época. Diferente de seu pai,
ele não aceitava bem o domínio romano e pagava caro por isso. Mas quando
viu Eimer carregando um cesto pela única rua de Cwn Idwal, sabia que aquela
mulher loura e de lindos olhos azuis era especial.

Queria falar com ela e não sabia como, até que a oportunidade surgiu de uma
forma inusitada. Um destacamento romano de oito soldados e um centurião
passaram junto com um da terra de forma compassada até a praça central,
cortando o caminho de ambos e quase os atropelando. Bohram ajudou Eimer
a se levantar e quando ia dizer algo, foi interrompido pela fala do centurião.

— Povo de Cwn Idwal, por ordem do Procônsul Cneu Júlio Agricola, todos os
cidadãos devem pagar impostos a Roma, que serão recolhidos no primeiro dia
de Quintilis. Aos que não puderem pagar, terão seus bens confiscados até o
valor exigido por Roma: cinco denarius e quinze sestertius, por pessoa,
anualmente. Quem se recusar, será responsabilizado conforme a lei romana.

Bohram, que não prestava muita atenção ao comunicado, mudou quando


ouviu o nome de Cneu Júlio Agricola. Notícias pela primeira vez em anos de
seu antigo colega de tributo. Enquanto o povo praguejava baixo ou olhava com
indignação para os romanos e para o que eles mais odiavam: o homem de seu
povo, Kier. Um homem de pouco caráter, algumas posses (obtidas de formas
escusas, afirmavam boatos) e nenhuma nobreza, Kier viu a chance de se aliar
aos romanos e ganhar algo com isso. Todos o odiavam por o considerarem um
traidor e enquanto os romanos falavam, Kier não tirava os olhos de Eimer, que
devolvia os olhares com desprezo.

Foi neste momento em que Bohram e Eimer começaram a conversar sobre


alguma amenidade qualquer que Kier resolveu ignorar sua presença e dirigir-
se a Eimer segurando seu braço.
— Solte a moça e converse com educação — disse o Meilyr. Kier já sacou sua
espada enquanto vociferava insultos a Bohram e que foram interrompidos pelo
destacamento romano.

— Identifique-se — disse o centurião. — Sou Bohram, Meilyr Dyfeds, do povo


Deceangli, antigo membro da Legio Quinta Alaudae. — Apresentou-se o
príncipe. Kier aumentou sua raiva ao ouvir o título de nobreza, pois detestava
o que nunca poderia ser, um nobre.

— Um veterano da batalha contra os Batavos, eu presumo — disse o romano.


O que faz tão longe de sua Legio?

— Obtive minha baixa pelo comandante Quinto Petílio Cerial e estou de volta à
minha terra a cerca de dois invernos. Tratava de minha vida até ser ameaçado
por este senhor.

— O cão? — Riu um dos soldados romanos do destacamento. Todos


gargalharam entre si, pois Kier era chamado de cão entre os colonizadores,
tamanha sua subserviência. Bohram e Eimer riram junto com vários outros
que ouviram, o que aumentou o ódio de Kier.

— Eu vou matar você seu bastardo, filho de uma bruxa e essa sua meretriz
também — gritou Kier sacando a espada. Bohram fez o mesmo e puxou
instintivamente Eimer para trás de si, a tempo de desviar de um golpe de Kier,
que feriu um dos soldados do destacamento em sua perna direita. O ferimento
provocou uma mudança de ânimos e a ordem de prisão de ambos os
envolvidos na escaramuça.

— Levem esses dois para Viroconium. Se este homem é mesmo um príncipe


que lutou na Legio Quinta, não podemos executar ele aqui. Deixe que o
procônsul Agricola decida o caso. E se estiver mentindo, será esquartejado à
maneira de sua terra, amarrado a quatro cavalos. E leve o cão também, mas
separados, disse o centurião. Kier espumava de ódio enquanto Bohram
tentava argumentar se tivera êxito enquanto olhava para Eimer, que
assustada correu longe.

O trajeto até Viroconium transcorreu sem problemas para um Bohram


acostumado a longas caminhadas e sem muita comida e água. Já para Kier,
seu ódio aumentou na mesma proporção que seu vigor murchara. Ruminou
pragas contra seu oponente e jurou vingança a ele e a Eimer por seu desprezo
e deboche na frente de tanta gente. Estava quase desmaiando quando
chegaram à fortificação romana, após cerca de dez horas de marcha.

Os romanos apearam de seus cavalos e eles foram encaminhados para a


prisão e lá ficaram sem água e comida por três dias inteiros, até que Agricola
mandou chamar Bohram. Kier ficaria muito mais tempo na prisão, até
conseguir fazer um acordo com os romanos por informações, pois prisioneiros
sempre geravam bons acordos em troca de pão e água depois de dias e
semanas confinados.
Bohram seguiu por todo o forte romano até uma construção no seu interior,
uma casa tipicamente romana, com luxos e decorações que raramente eram
vistos fora da capital do império. Agricola recebeu um Bohram exausto, sujo e
faminto pelos dias sem comer e sem água, com ar de satisfação e falsa
amizade.

— Caio, que prazer em revê-lo depois de tantos anos! Depois que nosso pai
nos encaminhou para nossa vida militar, tive notícias suas na Germânia e na
Gália, mas depois nada mais ouvi. Mas imaginei que voltaria para este lugar
desgraçado que tanto amava. Tome um pouco de água. Coma, você parece
precisar.

— Meu nome é Bohram. E sim, voltei para minha terra, pois nunca aceitei ter
sido arrancado dela. E quero saber se serei solto, pois nada fiz contra Roma.
Foi aquele homem preso que feriu o soldado.

— Eu sei, você será solto, mas antes quero lhe falar. Coma e beba antes que
desmaie na minha frente — disse Agricola, servindo um cálice de bom vinho a
seu antigo amigo.

Agricola revelou que chegara há poucas semanas em Viroconium com a


missão de ser o procônsul dos galeses. Era comum Roma designar filhos da
terra para administrar suas posições depois de servirem fielmente à Roma e
assimilarem sua cultura e costumes. A ambição de Agricola e sua amizade
com o agora Imperador Tito Flávio, que sucedeu a seu pai Vespasiano, ajudou
bastante. Agricola estava com Tito Flávio quando este era governador da
Judéia na captura de Jerusalém e estava agora sob suas ordens para
organizar o poder de Roma entre os galeses, mas com a ambição de ser o
governador romano de toda Britannia.

— Somos amigos há muito tempo, Caio... digo Bohram, como preferir. Quero
fazer um governo de paz com meu povo e Roma e conto com sua ajuda para
isso. Você é um príncipe e tem ascendência entre seu povo. Quero que
mantenha a paz entre os Deceangli para que eu evite problemas com o
imperador.

— Com o aumento nos impostos será muito difícil manter a paz. O povo já
está faminto e cansado de Roma e de sua ganância — falou Bohram, enquanto
fazia sua refeição após tanto tempo. Tentava comer devagar para não passar
mal.

— Este é o preço, meu caro. Você o conhece, pois já serviu à Roma e sabe que
são os impostos que mantêm o Império de pé. E o Imperador Tito Flávio tem
uma visão grandiosa. Ele está construindo o maior coliseu que já existiu e
promoverá os maiores jogos de todos os tempos para mostrar a força de Roma.
Batalhas, animais e gladiadores de todos os lugares farão parte dos
espetáculos. E cada administrador de província está colaborando com sua
parcela nos impostos.
— Panem et circenses às custas do sangue nas províncias... — remoeu
Bohram.

— Mas o sangue não precisa correr. Ao menos se você não quiser — retorquiu
o procônsul.

— Não posso ajudar, pois meu dinheiro é pouco para pagar os impostos que
você deseja de todo meu povo. Até porque, por conhecer sua ganância e a de
Roma, sei que isso nunca acabará.

— Pois então vá, mas saiba que cumpro ordens e que em você cai a
responsabilidade sobre o que acontece a seu povo, agora que é chefe dos
Dyfeds. Esqueci de lhe dizer, que nesses dias enquanto estava preso aqui, seu
pai morreu afundado em uma fossa. Provavelmente caiu de bêbado enquanto
foi se aliviar e morreu asfixiado entre seus dejetos.

O agora líder dos Dyfeds, principal aldeia dos Deceangli ouviu a notícia com
surpresa e melancolia. Não nutria simpatia por seu pai, mas sabia que a perda
de sua mãe e o estado em que estava seu povo o levara à triste situação em
que encontrava. Também entendeu por que Agricola o chamou e agora o
estava soltando, pois não era mais um nobre que cometeu uma escaramuça
que estava preso, mas sim um rei!

— Se o procônsul me permitir, tenho que partir para organizar um funeral.

Com um sorriso e um aceno de uma das mãos de Agricola, ele partiu.


Encontrou na porta do forte dois homens com três cavalos. Eram Elman, o
Ruivo e o druida Gwyddyon. Ambos vinham por um motivo, mas com
motivações diversas. Elman soube que Bohram defendeu sua filha e sentia-se
na obrigação moral de libertar o homem, que além de ser de uma família
amiga, resguardou sua filha. Gwyddyon voltava a procurá-lo depois de se
cruzarem quando ia a Caerleon. Esperava que Bohram ajudaria a liderar seu
povo contra o domínio dos romanos, que estava intolerável, devido a pobreza
em que deixava seu povo. Em comum, ambos os homens vinham comunicar a
morte de seu pai.

Após as saudações e de contarem o que Bohram já sabia, seguiram juntos sem


muito falarem pelos caminhos que levavam a Cwm Idwal. Elman foi o primeiro
a se pronunciar, o que fez o druida se afastar lentamente com seu cavalo.

— Obrigado por defender minha filha Eimer. Serei sempre grato, meu rei.

— Agradeço, mas não precisa me chamar de rei. Não sei se aceitarei título
algum. Sei que existem disputas pelo poder e pretendo não me envolver. Mas
agradeceria se puder falar de sua filha, pois respeitosamente me interesso por
ela. Elman entendeu e sorriu, e começaram ali mesmo a falar sobre as
qualidades da moça e a acertar o casamento, que era bem-visto pelo homem
ruivo.
Quando já quase chegavam ao seu destino, foi a vez de Gwyddyon se dirigir a
Bohram:

— Você pouco me conhece, mas eu muito lhe conheço, Bohram. Preciso lhe
falar sobre duas coisas que herdou de seus pais e agora você precisa aceitar: o
poder de liderar seu povo, de seu pai, e o dom da magia, de sua mãe.

— Mas eu não quero nada disso. Quero viver minha vida em paz. Você fala de
dons e heranças que recebi de pessoas que não vi por quase trinta invernos.
Nada tenho de obrigação na minha vida, desde quando fui trocado pela vida
dos filhos de meu povo. Já paguei com minha vida e sangue pela paz entre
Roma e Deceanglis.

— Não há como negar o que já está traçado para você. Está marcado em sua
pele e em sua alma — disse Gwyddyon.

— Eu nunca entendi o que, ou quem, fez isso comigo. — Mostrou Bohram o


próprio peito mostrando as marcas. — Sei que brilham quando sinto raiva e
estou em perigo e sempre observei que meus ferimentos se curavam mais
rápido. Só isso.

— Foi o próprio Deus Annwvyn e a Deusa Brígida que o abençoaram e o


ungiram como salvador de seu povo. O Grande Corvo que olha pelos Cymrus!
Eu estava lá.

Bohram não queria ouvir mais nada, mas Gwyddyon continuou explicando
sobre sua missão divina de liderar seu povo como o Grande Corvo Cymr e
como os dons dados por deuses o mantivera vivo até então. A união do
guerreiro e do mago em uma só pessoa, possibilitada pela união de um rei com
uma sacerdotisa. Seu poder seria ativado somente por encantamentos ou por
um grande acontecimento pessoal ou cósmico, segundo o druida. E Bohram
não queria saber de nada daquilo. Ao voltar à aldeia despediu-se dos dois e
seguiu acertado com Elman que após o período de luto, voltaria para firmar o
casamento com sua filha.

O guerreiro, e agora recém-anunciado mago, fez um funeral digno a seu pai,


cumpriu seu luto e acertou que a sucessão do trono seria a seu primo Mael,
que o recompensou com uma grande quantia de ouro. Não queria nem trono e
nem magia e isso deixou Gwyddyon extremamente desapontado. O druida
ficara na aldeia até a decisão de Bohram e de lá seguiu desapontado seu
caminho para a floresta nas cercanias de Caerleon.

O casamento seguiu com festejos em Cwm Idwal e todos afluíram para a


região, com muito mais gente que na época da Grande Feira de Primavera. O
casamento era do gosto de Eimer, que nunca esquecera seu defensor, o que
era raro em sua época. Após os festejos, seguiram para as terras de Bohram,
que ganharam nova vida com uma presença feminina. Em menos de uma nova
estação de plantar, já tinha encaminhado o fruto deste amor: Niamh, a filha
que viria para abençoar esta união e dar uma família a Bohram.
Tudo seguia bem e a vida parecia feliz. Então, em um dia quando Niamh tinha
dois anos, Kier chegou junto com alguns soldados romanos bêbados enquanto
Bohram estava na cidade vendendo suas ovelhas. Tudo foi rápido e brutal.
Kier tomou o que achava ser seu e depois repartiu Eimer com os cinco
soldados que o acompanharam na brutalidade e a violentaram. Depois disso
mataram as duas, mãe e filha, e as penduraram na velha árvore retorcida
defronte a casa. Tentaram ainda queimar a casa, mas fugiram antes de
completar o intento maligno.

Kier havia observado Bohram e sua família pelos últimos dois anos depois que
conseguira deixar a prisão. Planejou e calculou cada um dos passos de sua
maldade e esperou Bohram se ausentar, quando achava que sua felicidade
estava completa, para executar sua vingança.

Quando ele chegou, entrou em choque. Caiu de joelhos e após amaldiçoar


todos os deuses pelo que estava vendo, abraçou as pernas da esposa e da
filha. Ficou assim por muito tempo, tempo que não podemos medir em um
nível temporal, mas somente pela forma como se mede a dor. Ele desceu
ambas com carinho e em silêncio. Limpou-as como pôde, vestiu-as com
roupas limpas, que encontrou na casa desarrumada e parcialmente queimada,
e fez um funeral simples.

Rumou então para o vilarejo com sua espada e com o corpo recoberto de
sujeira e sangue seco. Entrou no lugar como um demônio de olhos inflados,
procurando o que já sabia que encontraria. Como soldado, sabia os hábitos de
desertores romanos e como pilhavam, saqueavam e estupravam. Sabia que
seguiriam para a aldeia mais próxima para beber, pois se achavam
invencíveis. E não foi difícil achá-los junto de Kier na taberna local.

O que se seguiu foi uma carnificina. Ao entrar no lugar, todos se entreolharam


e os soldados sabiam o que aconteceria. A desvantagem era grande, mas
bêbados e em um espaço pequeno e confinado, somente a força do ódio
poderia fazer rapidamente serem liquidados. Um a um, Bohram matou os
soldados, deixando Kier para o final, quando varou sua barriga com a espada
curta e desceu até cortar seus genitais e atirá-los ao chão. As pessoas
começaram a se afastar e fugir quando viram suas runas tomarem uma cor
azulada e brilhar como fogo. Ele deu três passos e gritou explodindo em fúria,
dor, lamentos e luz que irradiava de suas marcas corpóreas, como um sol
índigo, de beleza divina e milenar.

Todos correram, mas Bohram desmaiou e não soube quanto tempo demorou
para recobrar os sentidos. Quando acordou, viu que estava em um lugar
desconhecido. Olhou para o lado e viu Gwyddyon, mas demorou a reconhecê-
lo devido a fumaça densa na cabana.

— Acalme-se, Bohram. Sou eu, Gwyddyon. Estou cuidando de você e


escondendo-o dos romanos. Você foi trazido por Caratacus, dos Ordovices.
Espiões deles estavam na aldeia quando você explodiu em luz depois de
dizimar cinco soldados romanos armados. Se a guarnição o pegasse, você já
estaria morto.

— Pensei que Caratacus fosse somente uma lenda que os velhos contavam
para as crianças, como a da cabeça falante de Bran — indagou o guerreiro
tentando se sentar.

— Não, meu caro! A resistência aos romanos vive e Caratacus a lidera, quando
deveria ser você — afirmou o druida com desdém enquanto mexia seu
caldeirão de ervas.

Bohram se levantou lentamente e pensou em sair, mas não conseguiu. Estava


fraco e as feridas geradas pelas runas em seu corpo ardiam e sangravam
ainda. Gwyddyon o deitou e começou a contar o que acontecera, como suas
runas explodiram em luz, ativadas pelo ódio e raiva pela morte de sua família.
O poder de Annwvyn e Brígida fluía em suas veias e como não fora ativado
pelo desenvolvimento espiritual, explodiu na fúria, como o druida havia dito
antes.

Enquanto se recuperava, a notícia da morte de cinco soldados romanos


chegou ao procônsul Agricola, que mandou um destacamento completo em
busca do assassino de romanos para servir de exemplo. Até então, não se
sabia do nome do autor da façanha, mas isso não tardaria. Os romanos
chegaram perguntando no vilarejo e, com a falta de respostas que
considerassem adequadas, passaram a matar os moradores até que
conseguissem o que queriam.

Os corpos dos mortos foram expostos na estrada que ligava Cwm Idwal até
Idwal Slabs. O desfile mórbido foi presenciado por Agricola com uma certa
satisfação. Se até aquele ponto Roma poderia ter alguma dúvida se ele ainda
tinha algum laço com sua terra natal, com a morte de tantos galeses, ninguém
teria nenhuma dúvida. Para cada soldado Romano morto foi estipulado que
cem galeses pagariam com a vida e o número subiria a duzentos se o autor
dos crimes não fosse entregue. E não demorou para o nome de Bohram
aparecer nos ouvidos romanos, trazido por alguém que não queria ver algum
familiar morto.

A revolta que foi gerada na população foi grande. Agricola sabia que poderia
ter uma insurreição contra suas guarnições e Caratacus sabia que era a hora
de agir. Enquanto os romanos seguiam com sua procura por Bohram e
matando mais galeses do que as últimas guerras de conquistas mataram na
região, Caratacus decidiu ir pessoalmente à casa de Gwyddyon. Ele sabia que
somente com o apoio de Bohram e seus poderes recém-liberados, ele poderia
mudar algo contra a matança romana ordenada por Agricola.

Caratacus era o nome de um fantasma. Ninguém sabia seu nome real e dizia-
se que não poderia morrer e nem envelhecer. A verdade é que o nome passava
de homem a homem que liderasse a rebelião dos galeses contra os romanos.
Assim que morria um Caratacus, outro assumia seu lugar, com o mesmo
nome. Uma forma criativa e inteligente de manter o medo no inimigo e inspirar
seu povo. E o Caratacus desta vez era um homem inteligente e estrategista.
Sabia que o povo o seguiria se tivesse o poder dos deuses ao seu lado e para
isso precisava convencer Bohram.

Ao chegar à casa do druida na floresta e garantir que não estava sendo


seguido, Caratacus foi direto: — Salve, druida, e salve você, Bohram, amado
pelos deuses!

Bohram respondeu de forma contrariada: — Não há amor entre mim e os


deuses, apenas maldições. Nunca orei a deus algum e considero o que
aconteceu uma maldição. Se fosse algo útil eu teria salvado minha família.

— Mas pode salvar seu povo! — retrucou o líder da resistência.

— Não tenho povo algum. Fui trocado pelos que se dizem meu povo para
salvar sua própria pele. Nunca me senti romano e eles nunca me trataram
como tal e, quando retornei, era um estranho em minha terra. Sempre me
olhavam de lado, com desconfiança e desdém. Tratavam-me como um traidor
ou um dominador, o que nunca fui. Por que devo aceitar um dom que é uma
maldição para ajudar aqueles que nunca me ajudaram? Onde estava meu
povo quando massacraram minha família? — desabafou Bohram com os olhos
inflamados.

— Posso imaginar mais do que imagina sua dor. Também perdi minha família
para os romanos e vejo a cada dia homens e mulheres morrendo também.
Você sente hoje o que deu as costas a ver todos os dias: a morte que os
invasores trazem, a pilhagem, e a opressão de Roma sobre nossa gente. Agora
mesmo há uma estrada inteira de pessoas mortas e presas em estacas porque
você matou os soldados romanos, depois que não encontraram você.

— Que história é essa?— indagou Bohram.

— Agricola mandou matar cem galeses para cada soldado morto e pendurá-los
para todos verem na estrada entre Cwm Idwal até Idwal Slabs. E se você não
aparecer até amanhã, mais cem pessoas morrerão para vingar cada romano
morto. Preciso que venha comigo e pare isso. A família de Elman, o Ruivo não
tem mais um único membro vivo. Até as crianças eles mataram! — disse
batendo na mesa e projetando para frente seu corpo em direção a Bohram.

Bohram engoliu em seco. Não ligava para seu povo, somente para sua vida e
daqueles que lhe retribuíam sentimentos. Mas não podia admitir que pessoas
morressem por ele. Decidiu seguir Caratacus e se tivesse que morrer, uniria-se
à sua família novamente em algum reino dos mortos. Se sobrevivesse, iria
arrastar a carcaça do traidor Agricola, amarrado em seu cavalo por todas as
aldeias de Deceangli.

Rumaram para Tryfan, em um bosque perto do lago Llyn Ogwen. Lá estava


reunido todo exército rebelde e planejariam o ataque a Agricola em
Viroconium. Esperavam a ajuda de seis mil homens dos Demetaes. O
acampamento em Tryfan era mais organizado do que Bohram esperava ver
entre o seu povo. Havia mais de oito mil homens armados, bem alimentados e
com suprimentos para atacar os romanos. Aquele ataque estava planejado há
meses e ele sabia que sua presença ali apenas antecipara em algumas
semanas algo que era iminente e que ele desconhecia.

Ele foi recebido com olhares de apoio e respeito. Os homens sabiam que
teriam uma chance com Bohram e seus poderes mágicos. Muitos ajoelhavam
quando o viam, o que o incomodou. Ele, afinal, estava ali apenas para acabar
com a matança e se vingar de Agricola pelo que fizera a pessoas inocentes em
seu nome. Só isso. Não era um deus ou um mago e nem ninguém em especial.

Ao entrar na tenda do comando rebelde, descobriu que o ataque seria naquela


madrugada. Os romanos receberiam reforços de Londinium em breve e isso
seria a derrota do povo local. A ideia era calcinar todo forte de Viroconium e
fugir para uma guerra de guerrilha e matar quantos romanos pudessem. As
famílias de todos Deceangli já estavam nas montanhas ou em bosques
escondidas.

Por outro lado, Agricola conhecia bem seu povo e sabia que iriam atacar. Era a
vantagem de ter nascido naquelas terras. Decidiu partir a encontro dos
rebeldes e surpreendê-los, mesmo sabendo que os seus generais queriam ficar
e defender Viroconium. Agricola decidiu que atacá-los no meio da marcha para
o forte, em Airdsgainnun, seria o melhor. Os romanos marcharam para o local
de penhascos, mas não sem serem vistos pelos batedores de Caratacus.

Ao ser informado, Caratacus decidiu partir ao encontro dos romanos, pois não
havia defesas em Tryfan e sabia que quem dominasse Airdsgainnun teria uma
vantagem bélica sobre seu oponente devido aos penhascos. Decidiu ir mesmo
sem ter a chegada dos reforços Demetaes.

A marcha foi acelerada, pois todos já se preparavam para entregar a vida para
enfrentar os romanos. Chegaram em Airdsgainnun ao mesmo tempo que os
romanos, o que provocou um frenesi de batalha em ambos os lados.

O povo Galês não era conhecido por sua organização em batalha. Eram ferozes
e mesmo para os padrões romanos eram difíceis de enfrentar. Desceram a
encosta com uma fúria sem tamanho, ao grito de Caratacus. Lembraram-se de
cada mulher, filho, pai, mãe ou amigo que perderam para os romanos.
Lembraram-se da fome, dos impostos, das humilhações e de cada sorriso
desaforado que viam em cada ordem cumprida pelos seus conquistadores.

Espadas, foices, martelos, facas, ancinhos, qualquer coisa que pudesse ferir
era utilizada na batalha. O encontro entre as massas humanas parecia um
formigueiro visto à distância. Bohram já tinha visto isso diversas vezes, porém
no lado oposto. O encontro de massas em luta, de corpos se digladiando e
dilacerando-se era uma visão a que estava acostumado, juntamente com o
cheiro de sangue e gritos de dor.
A batalha seguiu por cerca de duas horas com vantagens ora para romanos
ora para os locais. Quando os Demetae chegaram a cavalo pelo sul do grande
rochedo, a vantagem firmou-se para os galeses. Os romanos não conseguiram
manter suas formações, pois foram atacados tanto pela frente quanto por
ambas as laterais. A vantagem de ter o rochedo às costas virou como uma
desvantagem e acuou os romanos que estavam sendo debelados às centenas a
cada ataque.

Agricola, louco por ver sua derrocada iminente, mandou a cavalaria pelo
flanco direito e pelo esquerdo, os Germanos, mas deixou desguarnecida sua
defesa no alto de um pequeno morro. Isso foi o suficiente para que Caratacus
mandasse um ataque total de seus cavaleiros a Agricola, junto com Bohram e
reforços que não paravam de chegar. A horda desceu como um enxame por
trás dos galeses e seguiu para atacar Agricola, que em sua fúria pela perda de
tropas e por não querer passar por um derrotado, não conseguia observar o
que acontecia.

O embate seguiu-se rapidamente. Os generais de Agricola tomaram


tardiamente a decisão de ignorar as ordens de seu líder e atacaram quando já
não era mais possível a defesa ou mesmo um vislumbre da vitória. Caratacus
e Bohram atacavam ombro a ombro de seus cavalos, matando todo e qualquer
romano que aparecia. Em determinado momento da batalha, se separaram e
Bohram viu-se sozinho sobre uma pilha de corpos romanos e galeses.

Cercado por dez romanos, era iminente sua morte. Caratacus ao longe gritava
ordens para defender Bohram a qualquer custo, mas as palavras se perdiam
no frenesi da multidão. Bohram fora ferido na coxa direita, e cedeu. Era
iminente sua morte, quando suas marcas, suas runas voltaram a brilhar e
lentamente o brilho crescer até explodir!

A explosão matou cerca de treze romanos que estavam perto e por alguns
segundos, paralisou a batalha com o brilho azul. Um grande corvo, feito de luz
azulada subiu aos céus e provocou um frenesi nos galeses, que atacavam os
romanos petrificados pelo medo, com uma fúria desmedida.

Os generais de Agricola pediam para que o exército recuasse e os galeses


investiam matando todos que ficavam para trás, deixando seu líder sozinho
com seu pajem. Bohram se recuperou e lentamente seguiu para o encontro
com Agricola, que estava a cerca de dez braças de onde estava. Ninguém
ousou a encará-lo ou a cruzar espadas com aquele que tinha o poder dos
deuses!

A fúria de Bohram era tamanha que não ouvia as súplicas de Agricola. Nem as
palavras de piedade, nem as tentativas infrutíferas de acordos por terras,
liberdade ou ouro. A selvageria imperou em sua alma e a lembrança de sua
esposa e filha penduradas era a única coisa que vinha em sua visão, agora
coberta pelo sangue coalhado de muitos homens.
Bohram enfiou a espada o mais fundo que podia e partiu a coluna de Agricola,
que fez um último gemido de dor. Ele suspendeu o corpo do romano empalado
por sua espada e o levantou aos céus, que responderam com um trovão
azulado que transpassou o corpo até a espada. Todos olharam pasmos e,
enquanto os galeses davam graças a seus deuses, os romanos corriam
desordenadamente em desespero.

Agricola jazia morto e a luta terminara. Não havia mais o desejo de arrastar o
corpo de seu antigo amigo. Apenas um sentimento de vazio, prostração
quando jogou o corpo de lado como um trapo sujo. A vingança estava feita
contra todos os seus inimigos, mas sua família não voltara. Bohram esperava
que com a morte de Kier, dos romanos e de Agricola, que sua dor seria
amenizada. Não havia ninguém mais a matar e a dor não passava.

Ele baixou sua espada e viu o corpo de seu antigo amigo e caiu prostrado no
chão. Enquanto todos comemoravam a vitória, ele sabia no seu âmago o que
aconteceria e chorou. No começo apenas lágrimas, que depois se tornaram um
grito de dor e desespero. Sua dor era saber que os romanos não foram
derrotados permanentemente e que voltariam ainda mais fortes para se vingar.
Ele sabia que todos, ou quase todos ali, morreriam cedo ou tarde.

Ele não participou dos festejos da vitória. Preferiu rumar para sua casa e
descansar. Ele olhou para as mãos com o sangue ressequido da batalha e
suspirou. Pegou uma garrafa que estava ao seu lado e começou a beber de
uma única vez. Isso o aliviou e ele dormiu. Bohram sabia que haveria uma
vingança iminente e amaldiçoava os deuses por não ter morrido em batalha.
Ainda viveria mais algum tempo longe de sua família no reino dos mortos.

Enquanto desfalecia em seu sono inebriado de álcool, ouvia um corvo grasnar


ao longe e imaginou quando veria novamente sua família. Lembrou-se do
sorriso de sua filha e dos beijos de sua amada e dormiu. Se nos sonhos ébrios
ele poderia encontrá-las, decidiu que todos os dias encontraria ambas até que
os deuses o libertassem do seu poder, que era a seus olhos uma maldição. Iria
beber até morrer ou até que alguém o levasse pela espada. Talvez um romano
aparecesse para findar sua dor. E assim seguiu por alguns anos, até que
esquecessem sua história, que se tornaria uma lenda contada pelos velhos às
crianças. A ele, simplesmente o chamariam como o bêbado do monte Snowdon
e não como o herói da batalha de Airdsgainnun.

Mais um dia... mais um dia frio naquele maldito lugar. Levantar-se tornava
cada dia mais difícil...

Finnis

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