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Journal of Tour sm & Development | n.º 36, vol.

2 | 2021 | [ 201 - 214 ]

DOI: 10.34624/rtd.v36i2.10675
e-ISSN 2182-1453

Implicações da identidade da casa solarenga


para a prática de turismo de habitação
Implications of the manor house's identity for historic housing
tourism practice

JOSÉ LUÍS BRAGA * [josebraga@iesfafe.pt]

Resumo | Ao património material, nomeadamente à arquitetura, tem sido atribuído um papel de relevo
como símbolo patriótico e atrativo turístico, pelo facto de transmitir um sentido de continuidade e veri-

cabilidade que é passível de ser experienciado social, simbólica e sensorialmente. As casas senhoriais,

que constituem a unidade de análise do presente estudo, são objetos pretéritos que permitem o consumo

de signicados idealizados que são anacrónicos. Estas edicações apresentam conotações óbvias com

a elite aristocrática provincial que outrora as habitou e o consumo destes recursos turísticos consagra

o estatuto social e o gosto dos hóspedes que o elegem como alojamento. Através da aplicação dos

métodos da Grounded Theory (GT), este texto propõe-se analisar o conceito de `Identidade' das Casas

Senhoriais e as respetivas propriedades `Genuinidade', `Exclusividade' e `Funcionalidade' e as suas impli-

cações para a prática de Turismo de Habitação (TH). O presente estudo constata que a identidade das

casas de TH, com frequência, é um obstáculo à sua completa refuncionalização, isto porque a sua funci-

onalidade original limita a formalização total do TH, o que diculta sua competitividade. Conclui-se, de

igual modo, que a casa principal apresenta mais restrições à refuncionalização do que os anexos, visto

que na primeira um aumento de funcionalidade mais depressa determina uma diminuição da genuinidade.

Palavras-chave | Turismo de habitação, identidade, património, Grounded Theory

Abstract | Material heritage, namely architecture, has been given a prominent role as a patriotic symbol
and tourist attraction, as it conveys a sense of continuity and veriability that can be experienced soci-

ally, symbolically and sensorially. The manor houses, which constitute the unit of analysis of the present

study, are past objects that allow the consumption of idealized meanings that are anachronistic. These

buildings have obvious connotations with the provincial aristocratic elite that once inhabited them and

the consumption of these tourist resources consecrates the social status and the taste of the guests who

choose it as accommodation. Through the application of Grounded Theory (GT) methods, this paper

aims to analyze the concept of `Identity' of Manor Houses and their respective properties `Genuinity',

* CIDI-IESF  Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação do Instituto de Estudos Superiores de Fafe (IESF)
GOVCOPP - Research Unit on Governance, Competitiveness and Public Policies CiTUR  Centre for Tourism Research,
Development and Innovation, Polytechnic of Leiria
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`Exclusivity' and `Functionality' as well as their implications for the practice of Turismo de Habitação
(i.e. Historic Housing Tourism (HHT)). The present study nds that the identity of HHT houses is

often an obstacle to their complete refunctionalisation because their original functionality restrains the

total formalisation of HHT, which hinders its competitiveness. It also concludes that the main residence

presents more restrictions to refunctionalisation than the outbuildings, since in the former an increase

in functionality more quickly dictates a decrease in genuineness.

Keywords | Historic housing tourism, identity, heritage, Grounded Theory

1. Introdução bilidade que é suscetível de ser experienciado so-

cial, simbólica e sensorialmente. Assim, a produ-

ção de património consubstancia uma `retórica de


A palavra património, em sentido lato, remete-
perda' difundida pelas entidades competentes, que
nos para a noção de herança, ou seja, algo que é
exprime e se apodera dos signicados de antanho
legado de uma geração para a seguinte (Barranha,
por meio de `metáforas visuais' e `alegorias discur-
2016). Em virtude da sua função de meio de trans-
sivas' (Gonçalves, 1996, citado por Prista, 2014).
missão de valores históricos pretéritos, o patrimó-
Neste sentido, as casas senhoriais  que consti-
nio é encarado como parte integrante da tradição
tuem a unidade de análise do presente estudo  são
cultural da sociedade (Nuryanti, 1996). A sua -
objetos pretéritos que permitem o consumo de sig-
nalidade é assegurar a manutenção dos grupos so-
nicados idealizados que são anacrónicos (Braga,
ciais e, do mesmo modo, vincular as gerações entre
Soriano, Pazos & Gouveia, 2017). Estas edica-
si. Por conseguinte, o património, na qualidade de
ções apresentam conotações óbvias com a elite
legado, pode ser acumulado, dissipado ou modi-
aristocrática provincial que outrora as habitou, e
cado de uma geração para a outra.
o consumo de semelhantes recursos turísticos con-
Portanto, o património pode ser tomado como
sagra o estatuto social e o gosto dos hóspedes que
parte de um sistema simbólico, que se constitui
os elegem como alojamento.
como a base para criar e recriar valores comuns
O trabalho investigativo que aqui se expõe de-
numa sociedade. O património tem a capaci-
corre da aplicação dos métodos da GT à área subs-
dade de representar simbolicamente uma identi-
tantiva do Turismo de Habitação (TH) que resul-
dade (Santos, 2017). Posto que seja uma parte
tou na geração de uma teoria (cf. Braga, 2016)
constitutiva da cultura, o património é um ele-
que conrmou o conceito `Identidade', bem como
mento imprescindível da representação nacional,
as propriedades respetivas `Genuinidade', `Exclusi-
possuindo a virtualidade de fazer recordar perene-
vidade' e `Funcionalidade' como sendo relevantes
mente aos cidadãos os alicerces simbólicos sobre
para o turismo desempenhado em casas senhori-
os quais assenta o sentido de pertença à comuni-
ais. O presente artigo visa, portanto, explicitar
dade pátria.
estes conceitos sob o ponto de vista empírico.
Neste contexto, o património tem-se conver-
Este trabalho é composto por sete seções. As-
tido numa prioridade do patriotismo e no sumo
sim, na sequência da introdução, a revisão da lite-
atrativo do turismo. Ao património material 
ratura contempla a salvaguarda e proteção do pa-
mormente à arquitetura  foi conado o papel cen-

tral nesta empreitada pelo facto de a sua solidez


trimónio rural e a sua refuncionalização turística, o
binómio Turismo-Identidade, bem como as princi-
transmitir um sentido de continuidade e verica-
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pais idiossincrasias da modalidade de TH. Segue-se lidade. No campo, os ofícios são praticados de um

uma breve análise da metodologia utilizada no es- modo que estimula a imaginação dos turistas de

tudo, a GT Clássica, bem como a indicação das como a vida seria antes da Revolução Industrial.

principais incidências da recolha e análise dos da- No entanto, a constante transformação é uma ca-

dos. Na seção reservada aos resultados, é explici- racterística intrínseca às zonas rurais, sucedeu no

tado o conceito de `Identidade' da Casa de TH e as passado e continuará a ocorrer no futuro.

respetivas propriedades. Concluímos com uma dis- A míngua da vida rural e o consequente êxodo

cussão acerca do papel do antrião enquanto guar- para zonas urbanas é uma característica planetária.

dião do património dos seus ascendentes e com a Ora, este fenómeno tem importantes implicações

apresentação de algumas recomendações aos pro- para a atividade turística de duas maneiras. Por

motores de TH. um lado, gera as casas devolutas que são utiliza-

das por visitantes que pagam a estadia com ren-

dimentos auferidos nas cidades. Por outro lado,

segundo Boniface e Fowler (1993), esta situação

2. Preservação do património rural produz desintegração social e complexos agríco-

las indesejados que, depois, são reconvertidos em

Urry (1996) esclarece que, a partir do nal do quintas-museus in situ.


séc. XIX, oresceu em Inglaterra a tradição de As construções rurais  tanto o velho como o

visitar/preservar o campo. Este costume consubs- novo património  abarcam um leque mais vasto

tanciou o gosto por determinado tipo de paisa- do que apenas aquelas que pertencem aos lavrado-

gens (onde se incluíam as aldeias) e as imponen- res e aos trabalhadores agrícolas. Edifícios amplos,

tes casas de campo, que se achavam em elegantes umas vezes industriais, outras vezes domésticos

cenários rurais. O interesse em visitar o campo ou, ainda, institucionais, com frequência de consi-

foi, também, consequência de um recrudescer do derável interesse histórico e arquitetónico acham-

apelo exercido pelos equipamentos e maquinaria se, também, vagos, atualmente desprovidos de

utilizada na agricultura e pelos padrões de vida a sustentação económica em comunidades rurais ou-

ela associada. trora viáveis.

Se Boniface e Fowler (1993), no início da dé- Neste âmbito, a teoria empírica por nós desen-

cada de 90, referiam que grande parte da popu- volvida procurou evidenciar a requalicação a que

lação mundial vivia, ainda, no campo, a situação foram sujeitos os anexos e outras divisões da casa

atual tem vindo a inverter-se  a Organização das solarenga, noutro tempo vocacionadas para a ati-

Nações Unidas projeta que, entre 2018 e 2030, a vidade agrícola e que agora servem para ampliar a

população urbana mundial aumente em todas as capacidade de hospedagem destes estabelecimen-

classes de dimensão, enquanto que a população tos (Braga, 2016).

rural deverá regredir ligeiramente, este a ser o ha- Prista (2014), no estudo de caso que levou a

bitat de 45% da população do mundo em 2018 efeito sobre as Pousadas de Portugal, revela que

para constituir apenas 40% do número total de estes empreendimentos turísticos têm vindo, desde

habitantes em 2030 (Nações Unidas, s.d.). as suas origens, a providenciar uma experiência de

Na realidade, boa parte dos turistas é oriunda domesticidade rural, baseada na hospitalidade ver-

da cidade (ou dos seus subúrbios). Os viajantes nácula e na gastronomia.

que se dirigem ao campo associam, normalmente, Deste modo, tanto no caso das Pousadas como
lugares selvagens a primitividade; paisagem a in- no caso dos TH, os turistas anseiam subtrair-se do

temporalidade; vista a pureza; e campo a imutabi- estilo de vida moderno, empreendendo uma de-
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manda por modalidades alternativas de turismo vi. Reconstrução: procurar restituir a con-

que estejam em harmonia com a envolvente e com dição do cenário e atividades físicas tão pró-

a comunidade local e que possibilitem um contacto ximo quanto possível de um estado especí-

mais estreito entre hóspedes e antriões. Parte co de uma época precedente.

importante da nossa teoria versa sobre a natureza

deste contacto, salientando o modo como se pro- Neste contexto, o turismo pode favorecer a re-

cessam as variações no contacto entre os atores abilitação de áreas históricas e, deste modo, me-

supramencionados (Braga, 2016). lhorar as vidas dos residentes ao trazer rendimen-

Por conseguinte, o património cultural é um tos suplementares e oportunidades de emprego. O

meio privilegiado pelas autoridades políticas para nosso estudo evidenciou os méritos do TH (e, tam-

fomentarem o desenvolvimento das zonas rurais bém, as suas insuciências em conformidade com a

deprimidas (Pereiro Pérez, 2009). dedicação do antrião) no que diz respeito à acele-

No que toca à planicação do património edi- ração do ritmo de conservação das casas senhoriais

cado, as abordagens e os métodos utilizados em- (Braga, 2016).

pregam, normalmente, vários tipos de revitaliza-

ção, visando alcançar um ponto de equilíbrio entre

preservação e desenvolvimento. Segundo Nuryanti

(1996), as abordagens podem contemplar um ou 3. Turismo e Identidade


conciliar vários dos seguintes conceitos:

A identidade constitui um conceito particular-


i. Conservação: uma tentativa de preser-
mente caro à psicologia e, na sua génese, compre-
var o cenário ou atividades físicas de modo
ende `a integração de múltiplas características pes-
a que o valor ou signicado de um ou de
soais, como: sentimentos, emoções, motivações,
outro possam ser mantidos.
atitudes e comportamentos' (Souza & Gil, 2015,
ii. Gentricação: um esforço de aumentar a
p. 481). A identidade confere um sentimento `de
vitalidade do cenário e das atividades físicas
pertença, de inclusão e de xação em relação a um
através da melhoria da qualidade do primeiro
determinado grupo' (Silva & Sant'Anna, 2014, p.
por meio de mudanças estruturais.
654). Podemos ainda falar de identidade de lu-

iii. Reabilitação: procurar restituir a condi- gar, quando nos referimos às cognições do mundo

ção dos cenários e atividades físicas numa físico. Neste sentido, o conceito de apego da famí-

área que se degradou. lia antriã à casa de TH desenvolvido por Braga

(2016) remete para a noção de dependência do


iv. Renovação: uma tentativa de mudar o
lugar, no sentido em que esta conceção remete
cenário ou atividades físicas para adaptar ou
para uma `ligação emocional ou afetiva a um lu-
acomodar uma nova função ou adaptar ve-
gar' (Souza & Gil, 2015, p. 483).
lhos cenários a novas solicitações através da
Um dos impactos socioculturais positivos que
reutilização adaptada.
o turismo acarreta para os destinos onde se instala

v. Restauro: um esforço de melhoria da con- é o estímulo que oferece à preservação e difusão

dição dos cenários e atividades físicas atra- da cultura e da identidade de um território (Mei-

vés da remoção de elementos novos ou adi- rinhos, Aguiar & Salvado, 2017). Neste contexto,

cionais e substituição de elementos em falta o TH permite conservar as casas solarengas de ar-

para os tornar concordes com o cenário ori- quitetura erudita e com fundas raízes na história

ginal. portuguesa, autênticos marcadores identitários da


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região onde se inserem. modo, o turismo cria um novo signicado para

Carlos Fortuna (2013) sustenta que a atividade a continuidade da identidade local a partir da in-

turística tem a capacidade de subverter identida- venção da tradição (Zhu, 2012). Até mesmo Gre-

des. Tal sucede em virtude daquilo a que o autor enwood (1989)  um férreo opositor da mercanti-

designa por `descentramento' dos sujeitos e que se lização cultural para efeitos turísticos  consente

concretiza na desvalorização, interrupção ou perda que a objeticação da cultura local pelo turismo

das matrizes convencionais da identidade social, da nem sempre a destrói, podendo transformá-la e,

classe, do género, da etnia, da religião, da condi- inclusive, impulsionar a sua futura disseminação.

ção laboral e do estatuto educativo e familiar. Este

descentramento é o corolário do distanciamento fí-

sico dos espaços de vigilância e de coibição social

do indivíduo e deve-se, igualmente, ao estado de 4. O Turismo de Habitação enquanto moda-


desinibição e hedonismo a que o turista se entrega. lidade de turismo alternativo
A criação e a conrmação da identidade é pro-

porcionada pela visita a lugares, como as casas Esta modalidade compreende o alojamento em

de TH, que possuem conotações com o passado. unidades habitacionais localizadas em casas de es-

Deste modo, as identidades são criadas por inter- tilo e arquitetura de época, sejam elas casas sola-

médio da acumulação de perceções relativas àquilo rengas, palacetes, mansões ou outras construções

que está relacionado com a emergência da cultura. de elevado valor histórico e cultural. Encontramos

A apropriação destas perceções será relevante para casas de TH tanto no espaço urbano quanto no ru-

a compreensão por parte do consumidor, do seu ral. O interior destas casas evidencia sosticação

lugar no tempo e no espaço. Nas sociedades que e luxo. Segundo Beni (2003), os serviços de hos-

estão alienadas das suas origens devido a um pro- pitalidade que aí são prestados distinguem-se pela

cesso de urbanização e êxodo populacional, estes sua personalização e pelo requinte do atendimento.

sentimentos de orgulho pelas raízes telúricas têm Na realidade, o TH apresenta-se como um produto

de ser gerados (McIntosh & Prentice, 1999). diferenciado do alojamento hoteleiro, uma vez que

O turismo  que alguns autores têm acusado de não é massicado e é tendencialmente menos sen-

mercantilizar a cultura (Selwyn, 1996; Cole, 2007; sível ao fator preço. Constitui uma modalidade

Henriques, 2008)  pode ser um veículo para in- de turismo alternativo, uma vez que o hóspede

fundir identidade em comunidades marginalizadas, é acolhido, sem mediação, em casa do antrião,

facultando uma autoconsciência, conhecimento e usufruindo dos serviços e equipamentos que aí são

orgulho decisivos para a sua emancipação. Esta disponibilizados (Braga, 2016). Outra caracterís-

nova identidade, recriada por meio do turismo, tica que confere exclusividade a esta modalidade

pode capacitar estes grupos locais oferecendo-lhes é o facto de as famílias antriãs, proprietárias das

um capital político (e um potencial económico) casas (muitas delas descendentes dos fundadores

para pressionarem a estrutura política. Assim, o do solar), ainda nelas habitarem, propiciando ao

turismo patrimonial, ao invés de ser visto como hóspede uma perspetiva mais circunstanciada do

algo que é imposto do exterior da comunidade, ethos local. Encontramos unidades de alojamento

pode ser percecionado como uma atividade que deste tipo em Portugal, Espanha e França.

está a ser afanosamente fomentada para desenvol- Em Portugal, o TH foi concretizado como pro-

ver a cultura local e para intensicar uma distinção jeto piloto em 1978, por iniciativa da Secretaria de

que vivica os costumes tradicionais, em vez de Estado do Turismo, tendo sido implementado em

os estiolar (Halewood & Hannam, 2001). Deste quatro territórios: Ponte de Lima, Vouzela, Cas-
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telo de Vide e Vila Viçosa (Pereiro Pérez, 2009, sos, as casas de TH estão, inclusivamente, classi-

2018). A criação do TH correspondia ao intuito de cadas como imóveis de interesse municipal ou pú-

contrariar as assimetrias regionais do território na- blico (Braga, 2016; Monteiro & Carvalho, 2006).

cional e proporcionar capacidade hoteleira diferen- O TH pode ainda contemplar atividades com-

ciada em áreas onde esta era débil. Pretendia-se, plementares de animação como a caça e pesca, as

de igual modo, diversicar a oferta de alojamento atividades náuticas, a equitação, as visitas e pas-

e salvaguardar o precioso património arquitetónico seios ou as que têm lugar em equipamentos como

que se achava sujeito ao abandono e deterioração piscinas ou nos campos de ténis adstritos à casa

em certas zonas do país (Bote Gómez, [1988], Go- Ibidem).


( Para além disso, os proprietários podem

dinho, 2004). Esta modalidade, exceto em casos suplementar o rendimento que auferem com a mo-

excecionais, não admitia que fossem afetos mais dalidade de hospedagem organizando, em paralelo,

de 6 quartos à hospedagem de turistas. eventos: arrendamento de espaços para festas, ca-

Em 1982, o programa de TH é instituído, por samentos, batizados, colóquios e conferências, en-

intermédio do Despacho nº 102/82 (Silva, 2009). tre outros (Silva, 2010).

Na atualidade, o TH é legalmente enquadrado pelo Estas unidades de TH podem ainda integrar-se

Decreto-Lei nº 80/2017, de 30 de junho que altera em associações de casas que têm como objetivo

o Regime Jurídico dos Empreendimentos Turísti- salvaguardar a identidade coletiva dos empreendi-

cos e pela portaria nº 937/2008 que determina os mentos de TH seus associados e que, no caso da

requisitos mínimos de funcionamento dos empre- TURIHAB  Associação do Turismo de Habitação,

endimentos de TH, reticada pela Declaração de agem como centrais comum de reservas (Turihab,

Reticação nº 63-A/2008, de 17 de outubro (Tu- 2018). No que diz respeito ao enquadramento le-

rismo de Portugal, s.d.). gal das casas de TH, a sua classicação, a xação

Deste modo, atendendo à primeira normativa, da sua capacidade máxima, o licenciamento do seu

de 30 de junho de 2017, são empreendimentos de funcionamento e a execução de obras nestes esta-

TH: `os estabelecimentos de natureza familiar ins- belecimentos está sob alçada dos municípios, ca-

talados em imóveis antigos particulares que, pelo bendo, porém, ao Turismo de Portugal, I. P. o

seu valor arquitetónico, histórico e artístico, sejam parecer vinculativo (Silva, 2009).

representativos de uma determinada época, nome-


adamente palácios e solares, podendo localizar-se
em espaços rurais ou urbanos' (Ibidem).
Em Portugal, a distribuição das casas de TH 5. Metodologia
é mais abundante na região Norte, onde a popu-

lação está mais concentrada e onde predomina o A estratégia qualitativa de investigação que

minifúndio como sistema de propriedade fundiária. adotámos no presente estudo foi a GT Clássica.

Aquando da instituição da modalidade, a legislação Em consonância, realizámos um processo iterativo

obrigava o proprietário a residir permanentemente de recolha e análise de dados relativos às entre-

na sua moradia e a prestar serviço de pequeno- vistas que efetuámos junto dos proprietários rele-

almoço. No TH, a hospedagem em casa de arqui- vantes para a amostra teórica (Glaser & Strauss,

tetura erudita constitui, por si só, uma experiência 1967, p. 49-60). Ao longo do nosso estudo, que

de turismo cultural. ocorreu entre 2010 e 2016, efetuámos 53 entrevis-

Os proprietários das casas solarengas encaram tas não estruturadas a antriões/proprietários de

o TH como um veículo privilegiado de conservação casas solarengas. Sendo que, deste número, so-

e sustentação económica da casa. Em alguns ca- mente dez não estavam, então, classicadas como
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TH. O guião da entrevista apenas incluiu duas per- ações que resolvem de forma contínua a principal

guntas ( Pode, por favor, falar-me das suas experi- preocupação dos participantes da área substantiva

ências como proprietário(a) e antriã(o) da casa de (no caso vertente, os proprietários de casas de TH

TH X? Como se sente enquanto antriã(o)?). Em e a sua imperiosa necessidade de transmissão da

consonância com o que recomenda Glaser (1998), casa).

as entrevistas não foram gravadas, mas objeto de A análise de dados na GTC é um trabalho me-

anotações. ticuloso que envolve várias etapas que se entrete-

Este trabalho de investigação propôs-se deter- cem iterativamente: a codicação aberta; a aná-

minar se a identidade das casas de TH ainda per- lise comparativa constante; a amostragem teórica;

manecia autêntica, mais de quatro décadas vol- a identicação da categoria central; a codicação

vidas desde o início desta modalidade, e de que seletiva; a classicação de memorandos; a classi-

forma é que a sua refuncionalização turística se ti- cação teórica e a redação dos memorandos sob a

nha repercutido nessa identidade. forma de teoria (Glaser, 1978; Glaser, 1998; Gib-

As casas de TH são empreendimentos de pe- son & Hartman, 2014; Birks & Mills, 2011; Holton

quena dimensão. Da amostra que recolhemos, a & Walsh, 2017).

casa com menor número de quartos dispunha de Deste modo, a codicação aberta foi realizada

dois e a que apresentava maior capacidade de alo- colocando três questões neutrais (Glaser, 1998)

jamento continha quinze aposentos. No que diz aquando da análise de dados ( Que categoria in-
respeito ao tipo de entrevistas que conduzimos, dica este incidente? Que propriedade de categoria
estas foram sobretudo presenciais (48), e em me- indica este incidente? Qual é a principal preocu-
nor número, por telefone (3) e correio eletrónico pação do participante). Os resultados empíricos
(2). que aqui se apresentam constituem somente uma

No que é atinente à proveniência geográca das fração da teoria gerada na nossa investigação dou-

casas, a grande maioria situa-se na antiga provín- toral (Braga, 2016).

cia do Minho (34), Um número residual encontra-

se no Douro Litoral (4), em Trás-os-Montes e Alto

Douro (3), Beira Litoral (4), Beira Alta (1), Riba-

tejo (1), Alto Alentejo (2), Baixo Alentejo (3), 6. A identidade da casa solarenga e a prática
Baixo Alentejo (3), Algarve (1) e Açores (2)  de turismo de habitação
note-se que o total de casas contabilizadas é de

55, uma vez que um dos entrevistados era pro- `Identidade'


prietário de três casas de TH, duas nas Ilhas dos `Identidade' é uma das subcategorias do con-

Açores e uma na região do Algarve (vd. Braga, ceito de mais alto nível que designámos de `Casa'.

2016). A identidade da casa constitui um obstáculo à

A GTC é uma metodologia indutiva que se sua refuncionalização. De facto, a funcionalidade

baseia na geração sistemática de teoria a par- original da casa limita a formalização total do TH,

tir de uma investigação também ela sistemática. o que diculta a competição com os alojamentos

Trata-se de uma combinação de procedimentos massivos. A casa-mãe apresenta mais constran-

rigorosos de pesquisa que conduzem à emergên- gimentos à refuncionalização do que os anexos.

cia de categorias concetuais (Grounded Theory Na casa-mãe um aumento de funcionalidade mais

Institute, 2008; Grounded Theory Online, 2020). depressa dita uma diminuição da genuinidade.

Estes conceitos/categorias relacionam-se mutua- O conceito `Identidade' é caracterizado pelas

mente como uma explicação teórica da ação ou seguintes propriedades: `Genuinidade', `Exclusi-
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vidade' e `Funcionalidade'. Nas três secções se- todo de recuperação demorou quatro

guintes serão explanados estes conceitos de nível anos. [Entrevista nº 42]

inferior.

Nos anexos da casa, onde a identidade não

`Genuinidade' é tão vincada, uma reconversão profunda pode

A refuncionalização das casas de TH estabe- aproximar a formalização da hospedagem à do

lece uma ponte entre a tradição e a contempora- alojamento massivo. Neste sentido, o estilo clás-

neidade. Reconverter sem fazer a casa perder a sico de refuncionalização é mais conservador da

traça original e dotá-la de equipamentos confortá- identidade da casa.

veis para a estadia dos hóspedes (i.e., formalizá-la) 1


Ao aderir à fase de prossionalização , o an-

constitui um dos princípios orientadores do an- trião pode optar por um recheio que esteja menos

trião destas unidades de alojamento. De facto, de acordo com a identidade da casa, mas que seja

pode-se recuperar a casa tendo em conta a sua mais funcional. Por outras palavras, ao formalizar,

genuinidade ou de maneira inautêntica. o antrião pode optar por elevar a sustentabilidade

Em casas em que o recheio tenha sido objeto de nanceira adquirindo recheio pouco el à identi-

partilhas ou degradação, o proprietário, ao refun- dade da casa. Pode, também, comprar recheio

cionalizar, procurará manter-se el à genuinidade, para criar uma outra identidade mais consonante

comprando recheio em antiquários ou, eventual- com um estilo moderno de refuncionalização. Não

mente, mandando fazer recheio que pareça vincu- obstante, numa casa que tenha sofrido uma que-

lado a uma época remota. Por vezes, contudo, a bra de transmissão, o antrião por aquisição pode

recuperação da casa e o recheio renovado podem tentar recuperar a casa sendo el à sua identi-

corresponder a um ideal restauracionista de uma dade.

idade dourada que é do agrado dos seus preponen- Assim, esta identidade pode ser genuína ou

tes. objeto de modicações para oferecer maior auto-

nomia aos hóspedes. A quebra de transmissão ou

Quanto aos tetos trabalhados em a incapacidade de recuperar intensamente a casa

gesso, não há muitos artistas que fa- podem conduzir a uma degradação da identidade

çam esse trabalho. Tive de chamar da mesma.

pessoal das Belas Artes, espanhóis que Na realidade, importância parece estar, cada

orientaram pessoas da região para fa- vez mais, a ser conferida à formalização da pro-

zer marmoreado veneziano. Foi-nos posta de hospedagem (particularidade da fase de

difícil encontrar os artistas adequados prossionalização) e já não somente à genuinidade

para a recuperação. Os azulejos que da identidade da casa (característica da fase da

estavam deteriorados foram difíceis de improvisação), o que vem contrariar o enquadra-

recuperar. Levámos cerca de três anos mento legal primitivo da estrutura política, que

e meio a comprar móveis. O projeto privilegiava a identidade em detrimento da forma-


1 Braga (2017), distinguiu duas fases no processo de refuncionalização das Casas Solarengas, a da improvisação e a da
prossionalização. Na primeira, a da improvisação, há um/a maior: apego da família antriã à casa; aproximação entre a
família antriã e os hóspedes; genuinidade da casa e exibilidade de preço. Em contraste, nesta fase, existe um/a menor:
exigência do enquadramento legal; condicionamento ao nanciamento para a recuperação exercido pela estrutura política;
autonomia da família antriã e hóspedes; diversicação da proposta de hospedagem; competição com casas congéneres
e alojamento massivo; formalização e articulação na envolvente. Por oposição, na segunda fase, a da prossionalização
existe um/a maior: competição com casas congéneres e alojamento massivo; diversicação da proposta de hospedagem;
condicionamento ao nanciamento para a recuperação exercido pela estrutura política; formalização; autonomização;
segregação de espaços; competência tecnológica do antrião; capacidade de gestão do antrião e dedicação do antrião.
Em sentido antagónico, há um/a menor: apego da família antriã; genuinidade e exibilidade de preço.
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lização. se um parque de diversões com `decoração para


Assim, a genuinidade da identidade da casa é inglês ver'.
preservada, também, adquirindo recheio que não Sucede, também, que o antrião pode subs-

entre em contradição com ela. Neste contexto, tituir recheio com vinculação familiar à casa por

o antrião poderá optar por ser el à identidade recheio não genuíno, uma vez que os clientes in-

e, como tal, não aumentar tanto a capacidade de sensíveis tomam o TH pelo alojamento massivo e,

hospedagem como seria desejável para elevar a em alguns casos, subtraem recheio como souvenir.
sustentabilidade nanceira do TH. O estilo híbrido e o estilo moderno de refun-

No TH, o recheio é, muito frequentemente, cionalização parecem operar uma alteração na

único. Existem, por exemplo, inúmeras fotograas identidade da casa no que toca ao interior dos

de familiares, de antepassados, que dão um certo anexos. Assim, existem casas em que o recheio é

carácter de casa vivida e de casa com passado que mais autêntico que noutras. É possível que a se-

o alojamento massivo não possui. Os objetos não gregação progressiva dos hóspedes, característica

são padronizados, como no alojamento massivo, do estilo híbrido, acarrete consigo a inautentici-

e não são revestidos de utilidade imediata, mas dade dos espaços. Na realidade, a necessidade de

pertenceram a alguém. atrair hóspedes insensíveis poderá justicar a falta

A identidade remete para o facto de a casa de genuinidade da identidade. A genuinidade é,

poder ser vista como um microcosmo da envol- então, o grau de delidade à identidade original

vente próxima (i.e., região) ou mais afastada (i.e., da casa.

país). Assim, o hóspede, ao contrário do que se A genuinidade é vendável numa sociedade cada

sucede num alojamento massivo, tem acesso às vez mais homogénea de produtos de belo aspeto,

raízes, à tradição, ao bucólico em vias de desapa- mas de sabor estereotipado. Daí decorre que,

recer. Ganhará em genuinidade o que perderá em estando boa parte das casas localizada junto ao

formalidade. campo, faça sentido vender o apego aos hóspedes

Uma estratégia de exibição de genuinidade é como algo de genuíno. Enm, a genuinidade está,

decorar a casa como se fosse só para a família lá também, relacionada com o apego que a família

viver, mas abri-la aos hóspedes de uma maneira antriã tem à casa. Uma formalização excessiva

quase voyeur, como quem entra na casa dos ou- pode pôr em causa este apego, ao comprometer

tros e vê como eles vivem. Há uma vinculação a genuinidade da casa para refuncionalizar mais

vicária que o TH permite ao hóspede experimen- ecazmente o TH.

tar. Existe uma quebra de rotina. O recheio e a

arquitetura convidam a esta vinculação vicária. `Exclusividade'


Assim, o reclamo do TH para o cliente é algo A identidade da casa pode, também, concorrer

que depende da localização da casa na envolvente, para que a mesma tenha uma melhor visibilidade

da reputação da mesma, mas, também, da habi- no mercado. Cada casa tem uma identidade única,

lidade do antrião em fazer uma simbiose entre diferentemente dos alojamentos massivos.

o estilo de refuncionalização clássico e moderno, No TH, o `terroir' familiar simbolizado pela

que cative hóspedes sensíveis e insensíveis ao TH casa é parte importante da proposta de hospeda-

(Braga, 2020). gem. Uma das mais fortes motivações para os

De outro modo, o facto de as casas onde se hóspedes internacionais pernoitarem na casa é co-

desenvolve o TH disporem de recheio de valor faz nhecerem profundamente a cultura da envolvente.

com que a massicação deste tipo de turismo seja Assim, a exclusividade da casa é uma estrutura

algo a evitar. Caso contrário, a casa pode tornar- condicional. Pode favorecer a elevação da susten-
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tabilidade nanceira do TH ou pode constrangê-la. Por conseguinte, a identidade da casa pode au-

De facto, as estruturas políticas estabelecerão um mentar a sua reputação. Cada casa é diferente, é

enquadramento legal discriminatório positivo para exclusiva, ao arrepio do que acontece com o aloja-

os casos em que a identidade da casa justique mento massivo. O TH pode contemplar variações

proteção. Esta salvaguarda aplica-se, igualmente, importantes ao nível da proposta de hospedagem.

ao espaço envolvente à casa. A razão da proteção A arquitetura, o recheio e a história da casa po-

da casa prende-se com a sua utilidade pública, que dem, também, ter implicações na diferenciação da

lhe é conferida pela sua exclusividade. proposta de hospedagem, bem como a atrativi-

Sucede, também, que boa parte das casas dis- dade e o apetrechamento da envolvente.

põe de um chamariz, ou seja, algo de diferente na A casa é um microcosmo cultural, pelo que

sua identidade que cria uma proposta de hospeda- o hóspede sensível tem preocupações desta natu-

gem diferenciada. Ademais, a proposta de hospe- reza. Neste sentido, a exclusividade é algo que

dagem será tanto mais diferenciada quanto maior contribui para que a casa antiga possua um valor

for a dimensão do espaço exterior, ainda que o TH maior do que outras casas mais modernas, que se

não tenha, como propósito imediato, a fruição de dedicam a distintas modalidades de exploração da

experiências no espaço exterior da casa, como su- hospedagem. A casa está ligada a uma história de

cede noutras modalidades. Não obstante, existem família, sendo que o clã pode ser o do antrião,

casas com maior ou menor terreno adjacente. se ele for de linhagem, ou não, se ele o for por

Como vericámos atrás, a casa é um símbolo aquisição.

da tradição familiar, regional e, em alguns casos, Ao refuncionalizar, o antrião pode candidatar-

nacional. Contudo, com frequência, a sua iden- se a nanciamento da estrutura política. Não obs-

tidade atrai, eminentemente, hóspedes sensíveis a tante, esta privilegia a atribuição de nanciamento

esta unidade de património erudito. Para atrair a casas com maior utilidade pública, logo, maior

hóspedes insensíveis à TH, uma solução pode ser, exclusividade. O facto de as casas e a envolvente

por exemplo, a criação de obras de arquitetura mo- serem diferentes de região para região concorre,

derna. A existência de reclamos desta magnitude também, para a exclusividade do TH.

aumenta a visibilidade da casa, atraindo hóspedes Por conseguinte, a casa é exclusiva: é única

insensíveis ao TH. pela arquitetura, pela sua história, pelas estórias

familiares que encerra e que reportam para uma

Este novo edifício que construímos é identidade que o alojamento massivo não possui.

uma obra-prima de arquitetura. Um Existe um conjunto de vivências que ali estão en-

quinhãozinho dos hóspedes são arqui- cerradas e que poderão fazer parte da proposta de

tetos. O edifício é uma obra-prima do hospedagem. Cada casa é única, sendo que todas

arquiteto César Machado Moreira. O possuem em comum uma identidade.

edifício está muito bem estruturado. Portanto, a identidade da casa valoriza a hos-

Tem lá tudo, uma salinha [. . . ] Está pedagem e é suscetível de concorrer para a sus-

em dezenas de sites de arquitetura. tentabilidade nanceira do TH. O carácter de

Quando foi produzido, foi tido como exclusividade comporta amiúde um ex-libris, que é
uma coisa muito boa [. . . ] O facto de a principal atração da casa. Pode ser um ex-libris

o projeto ter sido concebido por bons a nível da arquitetura, de jardim, etc. O ex-libris é

arquitetos fez com que tenha sido ci- parte fundamental da proposta de hospedagem de

tado em revistas estrangeiras, guias de cada casa e pode motivar visitas especiais à casa,

arquitetura. [Entrevista nº 6] somente para dela fruírem.


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Na realidade, os hóspedes procuram tomar tempo, um incentivo à hospedagem, mas, pelas

contacto com um modo de vida diferente, con- suas limitações, é, outrossim, um contratempo à

substanciado na possibilidade de viverem numa massicação da hospedagem. A arquitetura das

casa com recheio antigo. Os hóspedes sensíveis, casas requer sensibilidade e contenção por parte do

sem dúvida, vêm em busca da experiência de vi- hóspede. Os constrangimentos relativos à identi-

vência numa casa antiga. dade da casa reetem-se no TH, ao poderem con-

Em síntese, a casa transmite a tradição fami- correr para que a casa feche a sua capacidade de

liar, regional e nacional ao hóspede. Uma estadia hospedagem no período de baixa auência.

na casa permite ter um mais cabal acesso a modos Neste contexto, os espaços interiores da casa-

e costumes regionais e nacionais da envolvente. A mãe terão menos funcionalidade do que os anexos,

casa tem um valor artístico e um valor familiar que uma vez estes últimos foram construídos quase

é uma mais-valia da proposta de hospedagem que de raiz para o TH. Também casas que sofreram

se pretende vender. Por outro lado, a reputação uma recuperação de altíssima intensidade podem

da casa é aumentada se esta tiver um chamariz ter uma funcionalidade superior.

com impacto nacional ou internacional, pois a vi-


Muito dicilmente as casas podem ter
sibilidade da casa pode ser incrementada pela sua
o conforto do hotel construído com
identidade excecional e pela exclusividade da sua
tecnologia do século XXI. Se zer-
envolvente.
mos como esse proprietário, corremos

o risco de perder a identidade. [Entre-


`Funcionalidade'
vista nº 46]
De que forma é que a arquitetura da casa con-

diciona a experiência turística? Que limitações cria Efetivamente, a identidade especíca da casa é
ela à fruição do espaço e que virtualidades apre- lesiva da sua sustentabilidade nanceira, uma vez
senta para suscitar as preferências dos hóspedes? que conduz a encargos mais elevados de recupera-
Ao optar por um estilo clássico ( vd. Braga, ção e hospedagem. A identidade da casa acarreta
2016), o antrião estará a escolher um paradigma uma maior dedicação do antrião ao TH e con-
de refuncionalização que está condicionado pela tribui, igualmente, para que a casa não possa ele-
identidade primitiva da casa e por um enquadra- var a sua sustentabilidade nanceira com grupos
mento legal mais restrito da estrutura política. Por de hóspedes que não teriam sensibilidade para as
outro lado, quanto mais ampla for a refuncionali- contingências de funcionalidade da casa ou da sua
zação da casa, maior nanciamento a estrutura reduzida capacidade de hospedagem de raiz (e.g.
política dispensará ao TH. os hóspedes de negócios).
Não obstante, a identidade da casa é um im-

pedimento à sua completa refuncionalização. O

grande constrangimento à reconversão é a função

anterior histórica da casa, em que havia mais salas 7. Reexão nal


do que, provavelmente, aquelas que são necessá-

rias e menos quartos do que aqueles que, agora, O antrião de TH tem a função primacial de

são precisos para a sustentabilidade nanceira da salvaguardar o ativo patrimonial representado pela

casa. Na verdade, o antrião tem de respeitar casa solarenga para a posteridade. Por outras pa-

a identidade da casa para que a reconversão não lavras, cabe-lhe certicar-se de que a utilização

traia o seu espírito original e histórico. do ativo patrimonial familiar pela geração presente

De igual modo, a identidade é, ao mesmo não inviabiliza a capacidade das gerações vindou-
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ras de se servirem e fruírem dele. Em consonância que tal pode ter implicações indesejáveis quando

com esta perspetiva, os requisitos de conservação se chegar ao momento de passar o testemunho ao

são suscetíveis de constranger o potencial recre- antrião continuador. Logo, o TH não deverá for-

ativo do património. Assim sendo, valoriza-se o malizar em excesso, de modo a não se converter

ativo patrimonial como legado para gerações futu- numa modalidade am de um alojamento massivo.

ras, assumindo que este desígnio sobreleva o seu

signicado como um ativo para utilização coeva.

Esta ênfase concedida ao futuro dos ativos patri-

moniais justica o privilégio conferido à conserva-


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visita ou recomendarem a atração a outros. Jul- Birks, M., & Mills, J. (2011). Grounded Theory: A practi-
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quando sustentam que as atrações patrimoniais
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devem ser nanceiramente saudáveis para cumpri-
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rem a sua função, ressalvando, contudo, que as de Ciências Económicas e Empresariais. Acedido
obras de recuperação mais intensiva deverão ser em 13 de outubro de 2019, em https://repositorio-
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garantidas, em alguma parte, por nanciamento

externo. De facto, as atrações patrimoniais de- Braga, J. L., Soriano, R., Pazos, M. & Gouveia, C.
vem fornecer um serviço de cada vez maior qua- (2017). Turismo de Habitação: Património, Identi-
dade, Autenticidade e Refuncionalização. Revista Tu-
lidade aos seus visitantes se pretendem concorrer
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efetivamente com um mercado turístico cada vez https://doi.org/10.34624/rtd.v2i27/28.20855
mais saturado de competidores. A nossa teoriza-
Braga, J. L. (2017). Refuncionalizando a Casa Nobre: Uma
ção oferece um importante subsídio para que os
Teoria Fundamentada do Turismo de Habitação. (Atas
antriões compreendam a necessidade que existe
do 4º Congresso Internacional Casa Nobre  Um patri-
de acederem à fase da prossionalização com uma mónio para o futuro. Arcos de Valdevez, Casa das Artes,
alta formalização do serviço, para competirem em 27 a 29 de novembro de 2014, Município de Arcos de
Valdevez) Arcos de Valdevez, pp. 1176-1191.
condições favoráveis num mercado cada vez mais

competitivo. Braga, J. L. (2020). O Carácter Dual da Procura em Tu-


Apesar disso, apurámos ainda que o aumento rismo de Habitação. (Atas do 5º Congresso Internacional
Casa Nobre  Um património para o futuro. Arcos de
dos períodos de alta auência e a formalização
Valdevez, Casa das Artes, 30 de novembro a 02 de de-
crescente podem ter um efeito pernicioso no apego zembro de 2017, Município de Arcos de Valdevez) Arcos
que a família do antrião tem pela casa, sendo de Valdevez, no prelo.
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