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O que pode haver em comum entre navalhistas, capangas e secretas?

Rui Barbosa e outros sujeitos no tabuleiro da política do pós-abolição (1889-1919)1


Wlamyra Albuquerque
Drª História Social (UNICAMP)
Profª Departamento História UFBa
Bolsista de produtividade em pesquisa -2/ CNPq

Resumo:
O texto discute sobre a presença de sujeitos “marginais”, homens de
cor, no campo da política, tendo como mote episódios de conflito e
tensão vivenciados por Rui Barbosa entre 1889-1919. Libertos
monarquistas, capangas e marinheiros rebeldes são personagens aos
quais Rui Barbosa conferiu - em circunstâncias distintas - crítica,
apoio ou tutela. Seguindo as pistas destes diálogos e confrontos, busco
esquadrinhar como a presença destes indivíduos na cena política do
pós-abolição era, reiteradamente, lida a partir da mesma chave
explicativa: as heranças do escravismo e a origem africana. As fontes
utilizadas são correspondências pessoais do acervo da Fundação Casa
de Rui Barbosa, jornais, revistas e documentação policial.

Foi durante os tensos dias que separaram a abolição da proclamação da


República, em novembro de 1889, que Rui Barbosa recebeu uma carta sem assinatura
nem data, na qual se lê o seguinte trecho:

Felicito a V. Exª pelo seu reestabelecimento,


com tanto maior prazer por não ter sido vítima da
alguma dose preparada pela Guarda Negra, como
cheguei a supor. E não é sem fundamento está
minha suposição, que é corrente no interior do
país. Ouça V. Exª, após uma palestra política
faleceu em sua casa, há pouco, o fazendeiro
Paulino Neves Egas. Seu pai, que comunga a
mesmas ideias políticos, acha-se gravemente
doente, atacado de sintomas semelhantes, sendo a
voz geral que está sendo temperado. Os dos filhos
do importante fazendeiro repeliram com energia o
ataque feito pela Guarda Negra a uma conferência
republicana. [...] 2

Se esta carta foi endereçada ao Conselheiro Rui no começo de 1889, pode tê-lo
encontrado na redação do Diário de Notícias, no nº 118 da Rua do Ouvidor no Rio de
Janeiro, periódico no qual ele publicou duras críticas a Guarda Negra. A Guarda Negra,

1
Uma versão anterior deste texto foi apresentada no Seminário Internacional Histórias do Pós-Abolição
no Mundo Atlântico UFF/ RJ em maio de 2012. Agradeço aos colegas e alunos do Programa de pós
Graduação em História/ UFBa vinculados ao grupo de pesquisa Escravidão e Invenção da liberdade pelos
comentários a outros textos da minha pesquisa que tentei aproveitar aqui.
2
Fundação Casa de Rui Barbosa, CRE 11/4 (167), Correspondência anônima a Rui Barbosa, s/d.
como esclarece Flávio Gomes, era um grupo político formado pouco depois da
abolição, “por libertos que, demonstrando gratidão à Princesa Isabel, tinham como
objetivo espalhar-se pelo Brasil”.3 Seus propósitos e ações foram amplamente
comentados pela imprensa da época depois de um conflito ocorrido no dia 30 de
dezembro de 1888, durante uma manifestação do movimento republicano, organizado
por Silva Jardim, na Sociedade Francesa de Ginástica, localizada no largo do Rocio, na
Corte. Usando paus, navalhas e pistolas os partidários da Guarda Negra inviabilizam o
comício e enfrentaram a polícia. O tumulto, nos informa Gomes, deixou um saldo de
mais 30 feridos por arma de fogo, quase todos, homens de cor.4 As lideranças
republicanas ficaram em sobressalto e as notícias de que mais libertos dispostos a
defender um futuro terceiro reinado, estavam se organizando em outras cidades do país
causava ainda mais instabilidade social aos dias que sucederam o treze de maio.
Na Bahia, o episódio mais memorável dos embates entre a Guarda Negra e os
republicanos ocorreu em junho de 1889. Massacre foi o termo escolhido pelos
jornalistas e cronistas para descrever a perseguição sofrida por Silva Jardim, na Rua do
Taboão, zona portuária de Salvador. O conflito teve início na manhã de 15 de junho,
enquanto desembarcavam do navio Alagoas, o Conde d’Eu e Silva Jardim. Um, vinha
propagandear o Terceiro Reinado, o outro, a República.
Embora tivessem desembarcado em atracadouros diferentes, a chegada dos
adversários a empunharem bandeiras políticas tão distintas, acabou por misturar
entusiastas da República e defensores da monarquia ao longo do porto, diante da baía de
todos os santos. A tensa multidão se fazia ainda mais barulhenta porque ali também
estava quem mercadejava ou agenciava seus serviços, como os estivadores, saveiristas e
catraieiros, além de uma banda de música formada por ex-escravos, contratada para
recepcionar a comitiva republicana da Corte.
Mal pisaram em terra firme e os propagandistas da República notaram o
despropósito da ideia de seguir o conde d’ Eu pelas províncias do Norte. Vaias e gritos
de “mata, mata republicanos”, “mata Silva Jardim” foram ouvidos e logo foi preciso
correr pela ladeira do Taboão para que escapassem do ataque da Guarda Negra. Restou-
lhes como refúgio a quitanda de um africano, no nº 24 da ladeira, onde depois de

3
Gomes, Flávio. “‘No meio das Águas turvas’: raça, cidadania e mobilização política na cidade do Rio de
Janeiro – 1888-89”, in. GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio (org). Experiências da Emancipação
– biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980).São Paulo: Selo Negro,
2011, p. 18.
4
Idem, p.19.
inspecionar sob a luz de um fósforo as precárias condições do casebre, o médico baiano
Virgilio Damásio, anfitrião de Silva Jardim, concluiu que “se ficassem ali seriam
mortos como ratos”.5 Depois de muitos apuros, os republicanos vindos da Corte
partiram em segredo para Recife. Na Bahia, se aparecessem em público era risco certo.6
Os infortúnios daquele dia ficaram registrados no livro de memórias de Silva Jardim:
“fora rude o conflito sofrido”, patrocinado por “capadócios”, “ferozes homens de cor”.7
O “massacre do Taboão” logo foi alvo das críticas de Rui Barbosa no Diário de
Notícias. A explicação para aqueles “bárbaros” acontecimentos estava na manipulação
que a Coroa fazia da “ingenuidade pública”. Os conflitos que se viam nas ruas eram
expressão do “feiticismo da idolatria áulica”, “próprio à gente d’ África”, a quem não se
poderia imputar qualquer “responsabilidade moral”. Era à família imperial a quem
caberia as cobranças. Mesmo porque não seria possível, sob sua lógica, atribuir
responsabilidade moral ou política a quem “saiu do cativeiro em estado de infância
mental.”8 A Guarda Negra apenas espelhava a condição de subordinação de libertos,
súditos idolatras da “Redentora”. Assim sendo, o conselheiro lia o cenário político
articulando uma noção de cidadania que seria inacessível a quem não tivesse vivido em
plena liberdade. Ganhava, portanto, sentido a expressão “raça emancipada” ou “raça
libertada” tão frequentemente utilizada em seus discursos.
É evidente que o partidarismo que dividia monarquistas e republicanos não
obedecia a qualquer fronteira racial, e Rui bem o sabia. Muitos brancos tentaram
sustentar a monarquia no Brasil, - como o então presidente da província da Bahia e
médico Almeida Couto – e muita “gente de cor”, como se dizia na época, apostou na
República. A estratégia de Rui Barbosa era a descredenciar o plano do Terceiro
Reinado, racializando o posicionamento partidário dos libertos que a ele adeririam,
realçando a condição de subalternidade que eles demonstravam ter em relação à família
imperial, como marca do passado escravista e da descendência africana. 9 Defender na
continuidade da monarquia passava a ser algo que dizia respeito a quem não havia se

5
Albuquerque, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação- abolição e cidadania negra no Brasil, São
Paulo: Companhia das Letras, 2009,157.
6
Os conflitos protagonizados por republicanos e a Guarda Negra na Bahia são tratados com mais detalhes
em Albuquerque, Wlamyra. O jogo da dissimulação, capítulo 3. Sobre a criação e ações da Guarda Negra
ver também Soares, Eugênio Líbano “Da flor da Gente à Guarda Negra: os capoeiras na política
Imperial”, in. Estudos Afro-Asiáticos, nº 24, 1993, pp.61-81; Schwarcz , Lilia M. As Barbas do imperador
–D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp.447-453.
7
Silva Jardim, Antônio da. Propaganda Republicana ( 188-89). Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa/
Conselho Federal de Cultura, p. 343.
8
Barbosa, Rui. “A Coroa e a guerra das raças”, in. Obras Completas, Tomo II, p. 136.
9
Analiso esta questão com mais detidamente em O jogo da dissimulação.
libertado da sujeição escrava e marcas da descendência africana. Estava na condição
sócio-racial dos integrantes da Guarda Negra os motivos para a adesão popular ao
Terceiro Reinado.
Daí o missivista, por nós desconhecido, temer pela vida de Rui Barbosa. Ele via
o risco de que o famoso abolicionista acabasse vítima de ex-escravos “fetichistas”,
hábeis em manipular venenos, em temperar com pós e beberagens os alimentos servidos
aos senhores que abraçassem a causa republicana. O interessante é que com sua suspeita
-“não sem fundamento”-, de que os fazendeiros republicanos haviam sido “temperados”
com algo mortal, ele sinaliza que o perigo poderia estar bem próximo das “vítimas”,
talvez habitar a casa e frequentar a cozinha delas. Logo, ele não está denominado de
Guarda Negra apenas os “navalhistas”, os “capadócios” fáceis de serem reconhecidos
no espaço público por, em geral, pertencerem a maltas de capoeira, possíveis de serem
distinguidos em meio à massa de homens de cor que circulava nas ruas das principais
cidades brasileiras no pós-abolição.10
Não é possível saber se Rui Barbosa respondeu ao seu zeloso correspondente,
tão pouco o que disse sobre as suspeitas do missivista acerca da morte do fazendeiro.
Para os propósitos deste texto são mais pertinentes as observações de Rui Barbosa e
seus contemporâneos sobre o envolvimento na política daqueles que uma vez
“emancipados”, se mantiveram servis a Coroa; nutrindo o servilismo e fetichismo
próprios à gente d’ África. É este o mote do texto: a partir de episódios da carreira
política de Rui Barbosa, esquadrinhar como a participação política de certos sujeitos
marginais, - “capadócios”, capangas, marinheiros e secretas – no pós abolição era
interpretada articulando-se as sobrevivências do passado escravista do Brasil e a origem
africana dos sujeitos.

1. Capoeiras, marinheiros insurgentes e a campanha civilista


As aspirações políticas da Guarda Negra e da família imperial fracassaram e a
República se fez; Rui Barbosa passou, então, a destacar-se na cena nacional. Empossado
como ministro da fazenda no dia 16 de novembro de 1889, depois de várias ameaças de
renúncia, Rui Barbosa assinou junto com demais ministros a carta de demissão coletiva
encaminhada ao presidente Deodoro da Fonseca, em 21 de janeiro de 1891.11 A partir

10
Soares, Carlos Eugênio Líbano. A Capoeira Escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro
(1808- 1850). Campinas: CECULT, 2001.
11
Fundação Casa de Rui Barbosa. Rui Barbosa - Cronologia da Vida e Obra. Brasília: Ministério da
Cultura; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999.
daí, a sua longa carreira de senador, será entremeada por duas importantes tentativas de
eleger-se presidente do Brasil, em 1909 e 1919.
O ano de 1909 foi decisivo na trajetória política de Rui Barbosa. Ele era vice-
presidente do Senado, foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, depois da
morte de Machado de Assis e ainda se lançou na disputa pelo cargo máximo da nação.12
A decisão de concorrer à presidência da república foi tomada em resposta ao apoio
governista a candidatura do Marechal Hermes, militar e sobrinho de Deodoro da
Fonseca, com ampla base no Exército.13 Conta Luís Viana que a aversão ao comando
dos militares reuniu em torno daquele Conselheiro do Império jovens e talentosos
políticos, comerciantes e intelectuais.14 No mais, desde o governo Floriano Peixoto que
Rui Barbosa fazia grande objeção à presença militar na direção do país, denunciando
arbitrariedades que, segundo ele, negavam os princípios republicanos.15 Civilista passou
a ser, então, adjetivo repetido nos jornais da oposição, durante a tumultuada disputa
eleitoral de 1910, para realçar o ranço militar e pouco democrático da candidatura
Hermes da Fonseca.
“O país ficara em ebulição. Ninguém permanecerá indiferente”, dirá Luís Viana
16
Filho. Era a primeira vez que a corrida pela presidência ganhava dimensões nacionais
ou pelo menos extrapolava os gabinetes das lideranças paulistas e mineiras. Até então a
sucessão resultava da articulação entre os governadores dos estados mais poderosos
econômico e politicamente que se comprometiam a sustentar um candidato que, uma

12
Machado de Assis faleceu em setembro de 1908 deixando vaga a presidência da Academia Brasileira
de Letras. Sobre está campanha eleitoral ver dentre outros: Borges, Vera Lúcia B. A Batalha Eleitoral de
1910. Apicuru: Rio de Janeiro, 2011.
13
A candidatura de Hermes da Fonseca se tornou possível depois que João Pinheiro, governador de
Minas Gerais, predileto na sucessão do presidente Afonso Pena, faleceu em 1908. A segunda opção dos
governistas era o ministro das finanças, Davi Campista, mas o seu nome não foi bem recebido nem
mesmo entre seus correligionários. Rui Barbosa foi um dos que se pronunciou contra sua candidatura
argumentando que lhe faltavam experiência política e autoridade. Surge então a candidatura de Hermes da
Fonseca com forte apoio dos militares. Sobre os episódios político-partidários da época ver, por exemplo,
Carvalho, José Murilo de. A formação das almas – o imaginário da república no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990; Bretas, Marcos Luiz. A guerra nas ruas – povo e polícia na cidade do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997; Viscardi,Cláudia. O Teatro das oligarquias – uma
revisão da política do café com leite. Belo horizonte: C/Arte, 2001.
14
Viana Filho, Luís. A Vida de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 392. Sobre o
liberalismo de Rui Barbosa ver: Gonçalves, João Felipe . Rui Barbosa, pondo as ideias no lugar. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000; Carvalho, José Murilo de. “Rui Barbosa e razão clientelista”, in.
Dados, v.43, nº, 2000. Sobre bacharelismo e a geração de 1870, deve-se consultar Salles, Ricardo.
Nostalgia imperial – a formação da identidade nacional no Brasil do segundo reinado. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1996; Alonso, Ângela. Ideias em movimento – a geração de 1870 na crise do Brasil Império.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
15
Barbosa, Rui. Finanças e política da República- discursos e escritos. Brasília: Companhia Impressa,
s/d.
16
Viana Filho, A vida de Rui Barbosa , p. 395.
vez eleito, os apoiavam frente às demais lideranças locais. Aquela investida eleitoral
contrariava o forçoso consenso partidário em torno da sucessão presidencial. Na inédita
mobilização eleitoral os civilistas previram recepções, conferências, meetings e
encontros reservados com lideranças locais no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas
Gerais em busca de apoio e, evidentemente, votos.
No dia 16 de dezembro de 1909, no embarque do Rio de Janeiro para São Paulo
muitos partidários, curiosos, jornalistas e admiradores avulsos foram se despedir de Rui
Barbosa. Na época, o alvoroço provocado pelo embarque e desembarque de alguém
dava a medida da sua importância política. No romance Numa e a ninfa, ambientado
justamente nesta disputa presidencial, Lima Barreto dimensiona as cerimônias de
despedida ou recepção como ocasiões nas quais “é preciso que os poderosos sintam que
gravitamos em torno deles, que nenhum ato íntimo da sua existência nos é estranho.” 17
A multidão que compareceu a estação de trem para ver o início da excursão civilista
impressionava; traduzia a expectativa pela disputa entre o militar e o jurista, mas este
sabia que tinha poucas chances de contrariar o viciado jogo eleitoral da época. Ao se
candidatar, Rui teria afirmado: “Eu sou dos sacrifícios. Se fosse para a vitória não me
convidavam, nem eu aceitaria; mas como é para a derrota, aceito. Perderemos, mas o
18
princípio da resistência civil se salvará.” E assim se fez. Hermes da Fonseca venceu
com larga margem de votos. Foram mais de 403 mil votos contra algo em torno de 150
mil.
Foi inebriado com a significativa adesão ao civilismo, admitindo a derrota e
disposto a divulgar suas ideias sobre os novos tempos, que Rui Barbosa seguiu para São
Paulo.19 Já no embarque o clima era tenso apesar da multidão festiva. Ameaças e
tentativas de homicídio por motivação partidária, como já vimos, não faltavam no
período. Durante uma viagem deste tipo o risco de sofrer atentados era proporcional à
distância a ser percorrida. Temia-se que opositores conspirassem contra a vida daquele
homem franzino, sexagenário e cuja saúde desde juventude exigia muitos cuidados.
Havia razões para tanto. Dias antes um civilista anônimo escreveu-lhe com pressa e

17
Lima Barreto, Afonso Henriques de. Numa e A ninfa. Disponível em www.dominiopublico.gov.br, p.
34, acessado dia 15 de março de 2010. Sílvia Noronha também fez uma interessante, apesar de breve,
análise sobre os ritos de embarque e desembarque de figuras políticas, ressaltando que eram situações
para demonstrações públicas de lealdade, em “A Raposa e a Águia – J.J. Seabra e Rui Barbosa na política
baiana da Primeira república”.Salvador: EDUFBa, 2011.
18
Barbosa, Rui. Excursão eleitoral aos estados da Bahia e Minas Gerais – manifestos a nação. São
Paulo: Casa Garraux, 1910, p.45.
19
Os detalhes desta campanha são narrados pelo próprio Rui Barbosa em: Excursão Eleitoral ao estado
de São Paulo. São Paulo: Casa Garroux, 1909.
preocupação contando que setenta e dois capoeiras teriam “sido embarcados” do Rio de
Janeiro para São Paulo, com o único intento de tumultuar os comícios.20
Não encontrei notícias de que capoeiras “tivessem sido embarcados”, - posto
assim, na voz passiva -, no encalço de Rui Barbosa. A agenda do candidato em São
Paulo foi marcada por eventos em espaços seguros, a exemplo da Faculdade de Direito.
Ali, Rui Barbosa inaugurou lápides comemorativas com seu próprio nome e realizou
conferências. Apesar de se avolumarem avisos e denúncias de atentados contra o líder
civilista, aquela campanha presidencial foi encerrada sem maiores percalços. O que não
quer dizer que o clima de tensão social estivesse arrefecido.
Entre 1907 e 1910, a mobilização de trabalhadores e as greves pautavam os
debates políticos, organizados em partidos com inspirações anarquistas ou socialistas,
pedreiros, tipógrafos, operários, costureiras e mais tantas categorias de trabalhadores
expressavam publicamente as suas reivindicações por melhores salários, condições
adequadas e menores jornadas de trabalho.21 Rui Barbosa, sempre atento a sinais de
instabilidade, apontava no seu programa de governo a necessidade de certas reformas
que evitassem a “desordem social”. A escolarização, a formação moral e o aumento do
soldo, de soldados e marinheiros estavam entre elas.
Quando, em novembro de 1910, Hermes da Fonseca ainda comemorava a vitória
eleitoral estourou a revolta dos marinheiros. Rui Barbosa não só lembrou a todos acerca
das suas promessas de campanha, como se empenhou em assegurar a anistia aos
rebeldes.22 Num discurso entusiasmado e de grande repercussão, - inclusive entre os
marinheiros - Rui Barbosa defendeu no Senado Federal, a anistia imediata a João
Candido e seus companheiros. Naquela circunstância, as heranças do tempo do cativeiro
foram trazidas à baila para justificar a movimentação política dos insurgentes. Peço
licença ao leitor para transcrever um trecho fundamental do discurso:
É um engano acreditar-se que o regime
racional e humano da abolição dos
castigos corporais pode influir pra reduzir
as forças disciplinares do Exército e da
Armada. [...] tudo aquilo que diminui o
homem e o sentimento moral, tudo aquilo

20
Fundação Casa de Rui Barbosa, Carta anônima, CRE 11/2, doc 65, 19 de dezembro de 1909.
21
Viscardi, Cláudia. O Teatro das oligarquias; Castro Gomes, Angela. “Rascunhos da história imediata:
de monarquistas e republicanos em um triângulo de cartas”, in. Memórias e Narrativas Autobiográficas.
Rio de Janeiro: FGV, 2009.
22
São títulos indispensáveis: Morel, Edmar. A Revolta da Chibata. Org. Marcos Morel. São Paulo: Paz e
Terra, 2009; Nascimento, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na
Armada imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
que aproxima o homem da condição de
besta-fera, que tudo aquilo que
desconhece a impressão de honra e dever;
tudo aquilo que apela do homem para os
instintos materiais e brutos; tudo aquilo
que se resumo no emprego do latejo, do
tangante, da chibata, aplicada sobre o
dorso humano – não tende senão a desviar
o homem e prepará-lo para as surpresas
mais terríveis contra a sociedade e a
ordem.
[...]
A escravidão começa por desmoralizar e
aviltar o senhor, antes de desmoralizar e
aviltar o escravo.
[...]
Extinguimos a escravidão sobre a raça
negra, mantemos, porém, a escravidão da
raça branca no Exército e na Armada [...]
Era necessário que não ser continuasse a
esquecer que o marinheiro e o soldado são
homens.

Uma primeira observação a ser feita é o uso que o senador faz do termo raça
negra, expressão incomum no seu vocabulário. “Raça negra” aqui parece designar os
escravizados e não a todos os homens de cor. Depois, o reconhecimento que o autor faz
da persistência no Exército e na Armada de hierarquias pautadas em no escravismo
nacional. A prática do castigo corporal remetia, dizia Rui, ao tempo do cativeiro por
aviltar a condição de humanidade tanto de quem o aplica quanto de quem é assim
punido. Neste sentido, a intenção do senador é a de enfatizar a relevância de se deixar
pra trás práticas de controle que remetiam a um tempo que se queria esquecido e que
poderiam fazer aflorar os instintos brutos dos subordinados. Era o abolicionismo de Rui
Barbosa a reconhecer e acentuar os prejuízos causados pela escravidão. Humanizar
marinheiros e soldados sob o jugo de oficiais brancos significava abandonar a lógica
escravista que sobrevivia nos navios e quartéis.
Figura 1: O Almirante Negro, O Malho, Biblioteca Nacional, apud.Morel, Edmar. A Revolta da Chibata. São Paulo: Paz e
Terra.2009.p. 15.

Tamanha atmosfera carregada de rebeldia e aspirações de liberdade não escapou


a Lima Barreto, literato carioca e negro que acompanhou atento o desenrolar da disputa
eleitoral entre Rui Barbosa e Hermes da Fonseca.23 A sua principal versão dos
acontecimentos políticos está em no conto “Numa e a ninfa”, publicou em 1911, na
Gazeta da Tarde e transformado em livro, em 1917.24
O protagonista é Nuno Pompílio de Castro, bacharel em direito que busca
a todo custo ascender socialmente. Por meio de artimanhas, de malabarismos escusos, o
bacharel assume o posto de promotor e inicia a sua escalada política ao se casar com
Edgarda, filha do senador Neves Cogominho. A situação privilegiada e as alianças
partidárias engendradas pelo sogro asseguraram-lhe vaga na câmara dos deputados.
Outro personagem igualmente ambicioso, porém bem menos afortunado é Lucrécio,
carpinteiro de parcas posses, que aconselhado por um amigo torna-se capanga. Ele é um
mulato que também almeja ascender: anseia se tornar funcionário público, mas está
ciente de que sua sorte só pode se mudada por um figurão, “alguém superior”, capaz de
retribuir a proteção do capanga com o cargo no governo, mais provavelmente na
polícia.25
Lucrécio vislumbrou na capangagem um futuro brilhante. Até então ele julgava
que “esse negócio de política era para os graúdos, [como Nuno Pompilho] mas o amigo

23
Lima Barreto escreveu várias crônicas satirizando o governo Hermes da Fonseca e os seus capangas
ver, por exemplo, “ Uma anedota”, in. Barreto, Lima. Contos completos de Lima Barreto; organização
Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: companhia Das Letras, 201, p. 393-394.
24
Agradeço ao pesquisador Rogério Rosa pela indicação deste livro.
25
Barreto, Lima. Nuna e a Ninfa, p. 40
lhe afirmou que todos tinham direito a ele, estava na constituição.”26 Tal “exercício
constitucional” se dará na vida de Lucrécio Barba de Bode por meio de agitações na
Câmara, fraudes eleitorais e assassinatos. Ao longo da trama, o autor transfigura em
Lucrécio a desilusão com que um homem pobre e de cor investigava o mundo do pós
abolição. Num dos vários momentos de contemplação da personagem, ele observa
longamente seu filho enquanto pergunta “de si para si”: “que vai ser dele?” E logo
depois lhe vem “o ceticismo desesperado dos imprevidentes, dos apaixonados e dos que
erraram; há de ser, como os outros, como eu e muita gente. É a sina!”27 O lugar
subalterno e degradante reservado àquele homem de cor ganha dramaticidade quando a
personagem tenta discursar diante de um “graúdo”, o senador Madureira, e o máximo
que consegue é lançar aos pés dele tudo que guardava no estômago, vomitando os bons
tragos que havia ingerido ao longo da noite. O chefe de polícia quis prendê-lo, mas
logo foi dissuadido deste intento pelos demais convivas. Não era para tanto, não faria
bem a ninguém ver Lucrécio na prisão.28
A sátira mordaz de Lima Barreto constituia um tipo social que se impunha
no jogo político, mesmo provocando repulsa, os capangas. Assim como os “navalhistas”
e “capadócios” que atormentaram o dia a dia dos militantes republicanos entre 1888-89,
a presença de capangas explicitava formas e concepções diferenciadas de interferir na
cena pública, ainda que sob as ordens de homens poderosos, os figurões.
1919:
Aos setenta anos, Rui Barbosa decidiu concorrer mais uma vez ao cargo máximo
da nação, agora seu oponente era Epitácio Pessoa. Decisão intempestiva e justificada,
disse ele, pela urgência de uma pauta política que contemplasse a revisão do texto
constitucional e a chamada “questão social”.29 A campanha, realizado em apenas 40
dias, teve início oficial no dia 8 de março de 1919, com uma conferência na Associação
Comercial do Rio de Janeiro intitulada Às Classes Conservadoras. Discurso direcionado
aos representantes da lavoura, indústria e comércio, conclamando-os a tomar as rédeas
das mãos dos “parasitas”, as oligarquias que apodreciam a nação. O texto reiterava a sua
26
Barreto, Lima. Nuna e a Ninfa, p. 40. Lima Barreto descreve da seguinte maneira a rua onde Lucrécio
vivia: “morava na Cidade Nova, triste parte da cidade, antigo charco, aterrado com detritos e sedimentos”.
Quando chove “os móveis boiam e saem pelas janelas boiando, para se perderem no mar, ou irem ao
acaso encontrar outros donos.” Ali estava a “população de cor, composta de gente de fracos meios
econômicos, que vive de pequenos empregos, mas a eles se vieram juntar imigrantes italianos e de outras
procedências.” P.29
27
Barreto, Lima. Nuna e a Ninfa, P.41.
28
Barreto, Lima. Numa e a ninfa, p. 57
29
O então presidente Rodrigues Alves morreu a 16 de janeiro de 1919, o que precipitou as eleições.
Epitácio Pessoa disputou e venceu Rui Barbosa na Convenção Nacional do Partido Republicano.
investida contra os grupos oligárquicos que sustentavam a candidatura de Epitácio
Pessoa. Entretanto, a conferência que marcou a campanha foi proferida a 20 de março,
no Teatro Lírico do Rio, A Questão Social e Política. Eis o já bastante conhecido trecho
de abertura:
Senhores:
Conheceis, porventura, o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro Lobato, o admirável escritor
paulista? Tivestes algum dia, ocasião de ver surgir, debaixo desse pincel de uma arte rara, na
sua rudeza, aquele tipo de uma raça que, “entre as formadoras da nossa nacionalidade”, se
perpetua, “a vegetar de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso”? Solta
Pedro I o grito do Ipiranga; e o caboclo em cócoras. Vem, com o 13 de Maio, a libertação dos
escravos; e o caboclo, de cócoras. Derriba o 15 de Novembro um trono, erguendo uma
república; e o caboclo acocorado. 30

O tom sarcástico trazido de Urupês (1914), o nacionalismo e o compromisso que


se busca ter com o operariado fazem com que este texto fique distante de outros da lavra
de Rui Barbosa. Tomando de empréstimo a literatura de Monteiro Lobato para
descrever o modo como o povo brasileiro era visto pelos “Manda-Chuva”, ele evoca o
Jeca Tatu, com a mansidão, preguiça e letargia que o caracterizava. 31 O simpático
personagem serve então como pretexto para Barbosa atacar os grupos oligárquicos que
teriam se acostumado “a verem nos seus conterrâneos a caboclada lerdaça e tardonha da
família do herói dos Urupês, a raça despatriada e lorpa, que vegeta, como os lagartos, ao
sol” nos campos descultivados. 32
Distante da linguagem erudita e mesmo hermética de Rui, o Questão Social foi
um programa de governo ousado, elaborado para conquistar o apoio dos trabalhadores.
Assim, ele buscava distinguir-se dos tais “Manda-Chuva”, que não apostavam no povo
brasileiro. Como já disse Gonçalves, “pela primeira vez uma candidatura à presidência
da República propunha a implementação de uma pauta de direitos sociais, incorporados
aos direitos civis e políticos que Rui tradicionalmente defendia.”33 Mas do que peça
retórica, ao conferência era uma tomada de posição diante de debates espinhosos no
período, a exemplo do Código do Trabalho, a organização dos trabalhadores em
sindicatos e a mão de obra feminina e infantil.34
Segundo Joseli Mendonça a inspiração do Conselheiro estava nas ideias de
Evaristo de Moraes, incansável defensor dos operários a preconizar um Estado que os

30
BARBOSA, Rui. Campanha presidencial, in. Obras Completas, volume 46, 1919, p. 368.
31
Sobre a obra de Monteiro Lobato ver, por exemplo: AZEVEDO, Carmem, CAMARGOS, Márcia,
SACCHETTA, Vladimir, Monteiro Lobato. Furacão na Botocúndia. São Paulo: Editora Senac, 1998.
32
BARBOSA, Rui. A Campanha presidencial, p.369.
33
GONÇALVES, João Felipe. Pondo as ideias no lugar, p. 157.
34
O Código do Trabalho foi debatido em 1917 pela comissão de constituição e justiça da câmara de
Deputados, em decorrência das greves de trabalhadores.
protegessem da exploração dos patrões. Evaristo, jornalista e advogado, participou
ativamente da campanha de Rui em 1919. Conta-nos Mendonça que antes da elaboração
de a Questão Social e Política, eles teriam tido uma longa conversa sobre direitos e
formas de proteção ao operariado.35 De fato, há no texto breves comentários sobre
temas estranhos àquele septuagenário liberal à moda inglesa, como a relação entre
capital e trabalho, por exemplo. Mas, ainda assim, o que sobressai em Questão Social e
Política é o lugar de Rui no front abolicionista e os desafios da sociedade do pós 13 de
maio. Transcreve fragmento do item “A escravidão e o abolicionismo”:
Quando o coração me começou a vibrar dos sentimentos, que me têm
enchido a vida, o trabalho arfava acorrentado à rocha da escravidão,
onde lhe dilacerava as entranhas o abutre da cobiça desumana.
[...]
Tive a honra de ser o autor do projeto Dantas, de escrever, em sua
sustentação, o parecer das comissões reunidas, de ser, na Câmara dos
Deputados, o seu órgão e bandeira, de me ver derrotado por amor dele
nas eleições subseqüentes, de combater a Lei Saraiva, de reivindicar
para a consciência da Nação brasileira o mérito do ato da redenção, de
incorrer nas ameaças da célebre guarda negra, de não faltar nunca, nos
momentos mais arriscados, com uma devoção, que nunca se
desmentiu, e que não quis nem teve jamais, a troco de todos os
serviços, outro interesse, ou paga, se não perigos, ódios e vinganças.36

Como já havia acontecido em 1909, a trajetória abolicionista do Conselheiro era


rememorada e sacralizada; era a prova da sua capacidade de devoção a uma grande
causa. A autoria e defesa do projeto Dantas, o combate a Lei Saraiva, a reivindicação do
“ato da redenção”, e, por fim, as ameaças da Guarda Negra patenteavam o quanto de
“perigos, ódios e vinganças” ele ainda era capaz de enfrentar pela nação brasileira. A
rememoração do passado escravista, ainda recente em 1919, e o destaque para o papel
desempenhado por Rui Barbosa para a redenção do cativeiro, era o que mais reluzia na
sua biografia. Joseli Mendonça também credita está estratégia à presença de Evaristo no
metieé do candidato. A construção de uma linha contínua entre as agruras do cativeiro e
os infortúnios do operário teria sido ideia do primeiro para enaltecer a história do
segundo que, assim municiado, podia inquirir: “como poderia haver um abolicionista de

35
MENDONÇA, Joseli. “Abolicionismo e militância operária: a construção da identidade militante de
Evaristo de Moraes”, in. GOMES, Ângela de Castro e SCHIMIDT, Benito Bisso (org). Memórias e
Narrativas Autobiográficas, p. 139. Ver da mesma autora: “Evaristo de Moraes- o juízo e a História”, in.
LARA, Silvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (org), Direitos e Justiças no Brasil.
Campinas: Ed. UNICAMP, 2006, p. 303-342.
36
BARBOSA, Rui. A Campanha presidencial, p. 274-275.
então que não seja hoje um amigo do operário?”.37 Seria ele, portanto, a personificação
do abolicionismo que “sem paga nem interesse”, se dedicou a liberdade dos escravos, se
expôs aos ataques da Guarda Negra e agora se punha à mercê da causa operária.
Embora concorde com Mendonça, cabe salientar que Rui, mesmo quando não
estava em qualquer páreo eleitoral, jamais perdeu a oportunidade para garantir o seu
lugar no panteão abolicionista. O Conselheiro nunca se descuidou do incessante
exercício de manter acesa na “consciência” nacional, o crédito que lhe era devido na
grande reforma, com ele costumava designar, a abolição. Não por acaso, coube a Rui
Barbosa prefaciar o livro de Osório Duque Estrada, publicado em 1918, A Abolição –
esboço histórico. Texto, nas palavras do prefaciador, de “verificação autenticada” dos
acontecimentos e autores da obra emancipadora, na qual está dito: “foram muitos os
obreiros da grande causa”, entretanto “é lícito destacar alguns que vibrando a clava
formidável da palavra escrita e falada, tenham [...] aberto maiores brechas no reduto da
escravidão, esses nós os simbolizaríamos nos três lados de um triângulo refulgente em
que se inscreveriam os nomes de José do Patrocínio, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco”.38
Empenhado em arregimentar aliados e eleitores, Rui alinhavou sua militância a
favor da emancipação dos cativos ao desafio de amparar os operários. Tarefa urgente e
irremediável, pois a obra abolicionista ainda estava incompleta; a “raça libertada”,
apesar dos “opróbrios, torturas e agonias” vividas, não havia sido resgatada nos “vinte e
nove anos de república organizada, com oito quadriênios presidenciais de onipotência,
quase todos em calmaria podre”. Vem desta análise, um dos trechos mais citados da
conferência:

Era uma raça que a legalidade nacional estragara. Cumpria às leis


nacionais acudir-lhe na degradação, em que tendia a ser
consumida, e se extinguir, se lhe não valessem. Valeram-lhe?
Não. Deixaram-na estiolar nas senzalas, de onde se ausentara o
interesse dos senhores pela sua antiga mercadoria, pelo seu gado
humano de outrora. Executada assim, a abolição era uma ironia
atroz. Dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se
desinteressaram absolutamente da sua sorte, não vinha a ser mais
do que alforriar os senhores. O escravo continuava a sê-lo dos
vícios, em que o mergulhavam. Substituiu-se o chicote pela
cachaça, o veneno, por excelência, etnicida, exterminador.
Trocou-se a extenuação pelo serviço na extenuação pela
ociosidade e suas objeções.39

37
BARBOSA, Rui. A Campanha presidencial, p. 276.
38
DUQUE ESTRADA, Osório. A Abolição – esboço histórico. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 207.
39
BARBOSA, Rui. A Campanha presidencial, p.274.
E, relegada à própria sorte, abandonada pelo abolicionismo inconcluso, ignorada
pelos governos republicanos, a “raça libertada” continuou refém dos vícios: a cachaça e
o ócio. Houve também outro destino, igualmente condenável, para os que ainda
“estiolavam nas senzalas”: “Fez-se do liberto, o guarda-costas político, o capanga
eleitoral. Aguçaram-se-lhe os maus instintos do atavismo servil com a educação da
taberna, do bacamarte e da navalha.”40
Voltamos assim, nós e Rui, aos capangas.
Cinco dias depois desta conferência, o Conselheiro, abolicionista e candidato foi
informado do grave atentado ocorrido durante um comício em prol a campanha
presidencial na capital baiana. A capagangem continuava a assombrar os sonhos e
projetos políticos daquele abolicionista que ainda almejava realizar a segunda
emancipação.

2. A verdadeira emancipação e a Guarda Branca

Em 26 de março de 1919, ao tempo em que protestava, o Diário de Notícias


recompôs a cena do atentado protagonizado por José Maria de Bittencourt, mais
conhecido como Carestia de Vida, em parceria com outros “algozes” do grupo político
de Rui Barbosa:
Às 17 horas, grande era o movimento na Praça Rio Branco, local
anunciado do comício. Verdadeira multidão ali estacionava,
notando-se, porém, nas imediações da pastelaria Triunfo, vários
grupos de parentes e amigos do grupo situacionista. A tarde estava
enevoada, ameaçando a continuação da chuva que cai até pouco
antes. 41

Neste tarde de atmosfera enevoada, estranhamente sombria para o clima baiano,


organizadores e oradores se encaminharam para um automóvel, palanque improvisado.
Dali falariam à multidão, dentre eles, Simões Filho e Miguel Calmon, principal articular
do comitê nacional Pró-Rui Barbosa na Bahia. Assim que tomaram seus lugares já se
ouviu um estampido de tiro. “O pânico imediatamente estabelecido se espalhou pelas
circunvizinhanças. A correria foi imensa destacando-se apenas, no meio da praça, o
automóvel atacado pro todos os lados, e no qual permaneceram em pé os que a ele
40
BARBOSA, Rui. A Campanha presidencial, p.276.
41
Diário de Notícias, 26 de março de 1919.
tinham se dirigido.” Simões Filho foi alvejado com um tiro de raspão na cabeça. Outros
quatro oposicionistas também foram feridos a bala: o jornalista Medeiros Neto, o
acadêmico Manoel Lopes Bittencourt, Dr. Sebastião Nascimento e Dr. José Carlos de
Menezes. O deputado Pedro Lago, recebeu pernadas e cacetadas de certo Justo da Cova.
42

As reações ao atentado e a solidariedade às vítimas não tardaram. Miguel


Calmon bradou:
[...] o nosso protesto formal que é o protesto da Bahia livre, contra a
inominável brutalidade de que foram únicos agentes os
representantes da política situacionista pelos seus mais evidentes e
conhecidos encabeçadores, os quais, de armas em punho, se
juntaram a estivadores e catraieiros para consumação do
premeditado crime. [...] E foi o povo que se viu violentado ontem
quando vitoriava o nome do seu maior nome, o conselheiro Rui
Barbosa.43

A acusação era de que “conhecidos encabeçadores” - o senador J. J. Seabra e o


então governador Antônio Muniz, - enviaram ao comício secretas, estivadores e
catraieiros com o intuito de tumultuar e desencorajar os que se filiaram ao lado de Rui
Barbosa. A Tarde também noticiou o tumulto e atribuiu a “um homem de estatura meia,
de cabeleira e mal vestido” o início dos disparos. Tudo teria sido orquestrado, continuou
o periódico, “por um grupo formado por Carlos Seabra, Mário Paraguassú, Leone,
antigo guarda da alfândega e Carestia de Vida, secreta da polícia”, todos aparentados ou
empregados dos seabristas, que tinham sob suas ordens, “cerca de 300 sicários”.
Descrevendo o confronto como ataque bárbaro, o articulista assinalou: “depois desta
África de valentões contra homens descarados, os senhores Lauro Lopes, Carlos Seabra
e mais dois ou três sicários foram de auto para o palácio da Aclamação receber os
aplausos do governador e brindar com champagne”.44
Já os jornais da situação lamentaram o ocorrido, atribuíram a iniciativa do
conflito a um partidário de Simões Filho, e creditaram o clima de insegurança e perigo
àqueles que queriam desestabilizar o governo de Antônio Muniz e a liderança política
de J.J. Seabra. Até onde pude apurar nenhum inquérito policial sobre o caso foi levado a
cabo, apesar da sua repercussão nacional. A charge de J. Carlos em O Malho é
ilustrativa não só desta notoriedade, mas também de certas imagens que então

42
Diário de Notícias, 26 de março de 1919.
43
Diário de Notícias, 26 de março de 1919.
44
A Tarde, 26 de março de 1919.
circulavam sobre o papel libertador de Rui diante do que se julgava ser, a politicalha
baiana representada pela preta velha.

Figura 2: Rui Barbosa e a politicalha baiana, J. Carlos, O Malho, 25 de abril de 1919.

E assim seguia a campanha que, nervosa e apressada, se resumiu a cinco


conferências: duas no Rio; uma em Juiz de Fora, outra em São Paulo e a última em
Salvador. Cumprir o roteiro da excursão eleitoral era fundamental para fortalecer os
parcos, embora importantes, aliados de Rui. Contudo, depois do atentado, a viagem para
a Bahia representava um risco à vida do candidato e senador. Prudente seria que ele não
colocasse os pés em terras do Senhor do Bonfim, mas o crime realizado por Carestia de
Vida e seus comparsas, animou ainda mais o velho Rui. Numa carta ao deputado Pedro
Lago ele esclarece seus planos: “a vinda a Bahia estava duvidosa por causa das
dificuldades de vapor e das conferências em Minas, São Paulo e no Rio, Agora, porém,
irei de qualquer modo, salvo se Deus não quiser, suprimindo, se for necessário, a
conferência do Rio.”45 Sendo assim, a agenda baiana foi mantida mas com algumas
precauções. Para que o septuagenário presidenciável não ficasse à mercê da tal “África
dos valentões”, um grupo de rapazes do comércio se organizou para protegê-lo. O grupo
se autodenominou a Guarda Branca.
Nos primeiros dias de abril, ao desembarcar na Bahia o que Rui Barbosa viu foi
a multidão a aclamá-lo, “verdadeiro delírio”46. Houve até quem flagrasse “apertadas
pela massa popular, senhoras acometidas de crises nervosas” por poder tocar as mãos

45
BARBOSA, Rui. Correspondência de Rui, p. 66.
46
GONÇALVES, João Felipe. Rui Barbosa - Pondo as ideias no lugar, p. 157.
dele.47 Junto ao carro que o conduziria, estava a postos a Guarda Branca. Disse o
candidato que a Guarda o “cercou desde o desembarque, exercendo tão útil papel na
manutenção da ordem entre as grandes multidões que aqui vimos reunidas, sempre
animados pelos mais exemplares sentimentos de entusiasmo cívico e apego aos direitos
populares.”48 A Tarde a descreveu como um grupo de rapazes do comércio e
acadêmicos que formaram um batalhão patriótico, cuja toilette fazia jus ao nome: roupa
de brim branca, chapéu de palha, no braço direito faixa verde e amarela e na
abotoadeira, esfinge de Rui Barbosa.49 Há duas flagrantes referências quando os
imaginamos perfilados sob o sol da Bahia e ao alcance dos “sicários” que, como em
1889, dominavam a zona portuária. Aquele batalhão patriótico tomou a indumentária de
empréstimo da festa do Dois de Julho, celebração da independência do Brasil no Bahia.
No Dois de Julho da época, os moços do comércio também se faziam presentes junto
aos alunos da Faculdade de Medicina, todos impecavelmente vestidos de branco e
enfeitados de verde e amarelo.50
A outra é que intitular-se de Guarda Branca era, além de uma contraposição aos
capangas e secretas, à “África dos valentões” que importunava a campanha do célebre
Conselheiro na Bahia, à Guarda Negra dos tempos do Império. Era a “flor dos moços
empregados do comércio desta capital”, nas palavras do próprio Rui, a diferenciar-se
daqueles que carregavam a condição sócio-racial que os aproximavam da experiência
do escravismo. Distinguir-se, diferenciar-se foi empreendimento perseguido de muitas
maneiras pelos empregados do comércio daquele tempo. Em 1912, primeiro ano do
governo J.J. Seabra, quando um novo Código de Postura estava em discussão, a classe
caxeiral se pronunciou sobre o dispositivo que parecia equipará-los a trabalhadores
braçais. O debate era sobre a postura nº 49 que, ofendidos, eles diziam ser uma forma de
colocá-los em “promiscuidade com ganhadores, criados e carroceiros”, por exigir de
todos os empregados, a mesma matrícula e carteira de identificação, causando-lhes
“repugnância e natural repulsa”.51 Neste sentido, ao se colocarem alinhados com seus
ternos brancos e esfinge de Rui Barbosa no punho, os “rapazes” do comércio buscavam
não só defender seu candidato dos malfeitores, como também distanciar-se das marcas

47
VIANA FILHO, Luis. A Vida de Rui Barbosa, p. 441.
48
BARBOSA, Rui. Correspondência, 21 abril 1919. Afonso Rui nos esclarece que a principal tarefa da
Guarda Branca era evitar acidentes e afastar do Senador elementos perturbadores da ordem.
49
A Tarde, 31 de março de 1919.
50
Sobre as comemorações do Dois de Julho: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Algazarra nas ruas –
comemorações da independência na Bahia ( 1889-1923). Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.
51
Arquivo Público Municipal de Salvador, Atas da Câmara Municipal de Salvador, 1912, p. 163-164.
do escravismo que eram atribuídas aos trabalhadores braçais, aos capangas, a ralé. A
Guarda Branca esforçava-se para marcar sua distância de indivíduos como os que
vemos na fotografia abaixo carregando aquele o que a Bahia Ilustrada disse ser "um
leitor entrevado que foi votar em Ruy Barbosa".

Figura 3: Revista BAHIA ILUSTRADA, Abril 1919, Ano III, Nº 17. A Bahia Ilustrada circulava no Rio de Janeiro com
notícias da Bahia e de personalidades baianas e embora demonstrasse simpatia pela campanha de Rui Barbosa não
perdeu a oportunidade de sublinhar as distinções entre o leitor, cidadão habilitado a interferir na arena política, dos
trabalhadores, que como nos tempos da escravidão carregavam os senhores pelas ruas. Ainda não tenho maiores
informações sobre a autoria e as circunstâncias desta fotografia, mas suponho que tenha sido encomendada pela A
Bahia Ilustrada.

Felizmente tudo correu sem sustos nem intempéries durante a estadia de Rui
Barbosa na Bahia, apesar da derrota nas urnas. Ele partiu para o Rio de Janeiro após a
divulgação do resultado das urnas no dia 13 de abril. Seguiu para o palacete em São
Clemente já conformado com a nova derrota e agradecido à Guarda Branca.
Assim dispostos, estes breves episódios que contam um pouco sobre a trajetória
política de Rui Barbosa no pós abolição, explicitam diversas situações nas quais o
passado escravo e a origem africana eram trazidos à cena pra marcar a condição sócio-
racial de personagens distintos. Afinal, o que havia em comum entre libertos
monarquistas, capangas desejosos de emprego público, marinheiros submetidos a
castigos corporais e operários a reivindicar melhores condições de trabalho? É evidente
que entre eles podem ser traçados fios de continuidade, como o da aspiração a direitos,
exercícios de cidadania e de ingerência na política-partidária. Mas, por outro lado, há
largas circunstâncias históricas que os separam. Entretanto, as atuações destes sujeitos
no tabuleiro político do pós abolição, em muitos momentos, foram lidas a partir da
mesma chave: a sócio-racial. Para além dos propósitos, formas de ação e contextos que
os distinguem, a experiência do escravismo parecia enredá-los e mesmo constituí-los
socialmente pelas lentes dos seus contemporâneos. E, foi assim racializando as ações e
decisões políticas destes sujeitos que a República seguia construindo a memória do
passado escravista e imperial.

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