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COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ

PIERRE LENHARDT, NDS

A IMPORTÂNCIA DAS FONTES JUDAICAS PARA UM CRISTÃO1

As fontes judaicas que eu frequento intensamente desde há muitos anos, têm uma
importância vital para o cristão que eu sou. Sem dúvida, gostaria que esta importância fosse
reconhecida por todos os cristãos e que cristãos sempre mais numerosos se engajassem no
estudo das fontes judaicas. Mas não podendo reclamar de uma notoriedade doutoral que eu
não tenho, eu só me apoiarei sobre a minha experiência adquirida em contato com Israel e
com sua Tradição religiosa. Minhas posições pessoais são aquelas de um católico, não que eu
queira através disso me opor a outras confissões cristãs, mas porque eu vejo ser tão claro
como possível, quanto à minha identidade, tratar da importância que têm para mim os estudos
judaicos.
Eu diria então, como católico, que as fontes judaicas, que eu considero, são aquelas que
servem de referência a todos os judeus para emprestar do evangelho de Marcos 7,13 uma
fórmula que me parece oportuna. Com efeito, eu penso que os judeus e o Judaísmo dos quais
a Igreja Católica fala, quando evoca o patrimônio comum ao Judaísmo e ao Cristianismo,
quando ela fala da identidade judaica e da identidade cristã, quando confirma que a Antiga
Aliança jamais foi revogada, só visa e só pode visar como prioridade os judeus e o Judaísmo
que estão numa continuidade farisaica.2 A Igreja Católica, sem dúvida, que assinou em
dezembro de 1993 um acordo fundamental com o Estado de Israel, reconhece que este Estado
representa o povo judeu e por consequência os outros judeus como aqueles que reivindicam a
continuidade farisaica. Porém, é esta continuidade que constitui para o Estado de Israel a
única referência comum a todos os judeus: judeus “religiosos”, ortodoxos, conservadores,
“reconstrucionistas”, liberais, judeus “não religiosos”, secularizados, agnósticos, ateus,
antirreligiosos. Nem os escritos de Spinoza, nem aqueles de Marx ou de Freud, ou outros,


Irmão Pierre Lenhardt, Religioso da Congregação dos Religiosos de Nossa Senhora de Sion (NDS), nasceu em
Strasbourg em 5/11/1927 e faleceu em Paris, no dia 01/07/2019. Mestre em Teologia e Estudos Judaicos. Foi
professor dos Institutos Católicos de Paris e de Lyon, da Escola Bíblica de Jerusalém, do Instituto São Pedro de
Sion-Ratisbonne e do CCDEJ de São Paulo. Especializou-se em línguas bíblicas e em Talmud. Escreveu
diversos artigos e os seguintes livros: À l ́écoute d ́Israël, en Eglise (À escuta de Israel, na Igreja), Paris: Parole
et Silence, Vol. I, 2006 e Vol II, 2009; L U ́ nité de la Trinité: à l é́ coute de la Tradition d Í sraël, en Eglise,
Paris: Parole et Silence, 2011, publicado nesta coleção, em 2019 com o título: A Unidade da Trindade: À escuta
da Tradição de Israel, na Igreja; e sua obra autobiográfica: Une vie chrétienne à l ́écoute d ́Israël (Uma vida
cristã à escuta de Israel), Paris: Parole et Silence, 2020 que será o XV volume da Coleção “Judaísmo e
Cristianismo”.
1
Artigo publicado nos Cahiers Ratisbonne, nº 7, 1999, p. 102-126. Estas linhas retomam e completam meu
artigo “Tradition d’Israel et Nouveau Testament”, BIB (Bulletin d´Information Biblique) nº 46, 1996, p. 11-
15. Elas transformam igualmente o texto de uma conferência dada recentemente a um grupo de cristãos reunidos
em Jerusalém para uma semana de estudos organizada pelo SIDIC de Roma. Eu modifico este título, que se
torna: “The importance of Jewish sources for Christians”. Eu indico através disso a minha intenção de expor
livremente as minhas convicções pessoais. [Nota do tradutor: Este artigo será o sétimo capítulo do livro: Pierre
LENHARDT, À escuta de Israel, na Igreja.Volume II, Coleção “Judaísmo e Cristianismo” nº XVI]. Tradução:
Faustino Tonini, NDS.
2
Eu não creio ser necessário aqui citar, nem mesmo mencionar em detalhe, os documentos da Igreja Católica
que, desde a declaração Nostra Aetate do Concílio Vaticano II (28 outubro 1965) e até aos discursos do papa
quando de sua peregrinação à Terra santa de março de 2000, definem e orientam sua atitude com relação aos
judeus e ao Judaísmo. Eu retomarei mais adiante algumas formulações advindas destes documentos para as
necessidades de minha exposição.
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ainda que cada um possa apreciar a partir de sua língua, sua cultura e dos seus gostos
literários, não são para mim fontes judaicas. As fontes judaicas, para sim, são, antes de tudo,
aquelas que os mestres fariseus e seus sucessores reconhecem como Palavra de Deus, como
Torá. Eu me apoio sobre o que o profetas Isaías 2,3 desenvolveu: “Pois de Sion vem a Torá e
de Jerusalém a Palavra do Senhor”. Sem dúvida, segundo o profeta, é no fim dos tempos que
as nações dirão isso. Mas para mim, cristão, este fim dos tempos começou com a ressurreição
de Jesus Cristo; eu posso então dizer com ele, e com meus irmãos cristãos da gentilidade, e
com os judeus, que se tornaram cristãos ou não, que de Sion vem a Torá e de Jerusalém a
Palavra do Senhor. Por meu batismo, eu faço parte de uma Igreja que diz com Jesus Cristo,
numa referência ao profeta Isaías, que acabo de citar: “Nós, nós adoramos o que conhecemos,
pois, a salvação vem dos Judeus” (Jo 4,22). Dizendo isto, eu não introduzo separação entre a
Palavra do Senhor, a Torá que vem de Sion, isto é: dos judeus segundo Is 51,16, e Jesus
Cristo que, para mim, na sua Pessoa é a Torá. Eu não separo mais a salvação que vem dos
judeus da salvação que, para mim, vem de Deus por Jesus Cristo, o Messias rebento de Davi.3
Acabo de mencionar que Jesus Cristo, em sua Pessoa, é a Torá. Isto é para mim a
própria realidade, a realidade para a qual aponta a minha exposição e da qual eu me esforçarei
para prestar contas no fim destas linhas.
As fontes judaicas são então para mim a Torá oral e escrita dos fariseus tal como ela é
recebida e transmitida pelos judeus de hoje, tal como eu a recebo deles no interior de minha fé
em Jesus Cristo. Eu especifico que minha fé em Jesus Cristo é esclarecida pelo que
claramente se tornou, ou retornou, o ensinamento comum da Igreja Católica sobre a “Antiga
Aliança que jamais foi revogada”.4 Este ensinamento comum da Igreja exclui também “o
ensinamento do desprezo”, do qual tão bem falou Jules Isaac, como a “teologia da
substituição” que se mantém ainda entre alguns teólogos e exegetas cristãos e contra a qual é
preciso ainda combater a retaguarda. Eu creio então que a única Aliança se tornou a Nova e
Eterna em Jesus Cristo, e que ela não aboliu de modo algum a Antiga Aliança, a Aliança do
Sinai, vivenciada pelos judeus com as suas dimensões de Torá e mandamento (Ex 24,12).5

3
Eu viso aqui décima quinta bênção da Amidá (Oração comunitária) dos dias comuns que amalgama Zc 3,8, Is
11,1 e Jr 33,15. Esta bênção, que liga a salvação de Deus ao rebento de Davi, poderia ser de origem judeu-cristã.
Cf. Y. Liebes, “Who Makes the Horn of Jesus to Flourish”, Immanuel nº 21, Summer 1987, Jerusalém, p. 55-
67. A isto voltarei a propósito do messianismo.
4
Eu me refiro à fórmula empregada pelo papa João Paulo II na sua alocução endereçada às comunidades
judaicas da Alemanha (Mayence, 17 novembro 1980). Esta fórmula foi retomada nas Notas da comissão romana
para as relações religiosas com o Judaísmo (2 junho 1985). Ela foi longamente examinada num penetrante artigo
de M. R. Macina, “Caducité ou irrévocabilité de la primiére Aliance dans le Nouveau Testament?” A
propósito da “fórmula de Mayence”, Istina XLI (1996), p. 347-399. Um exegeta e teólogo luterano alemão
declara a propósito da eleição de Israel estabelecida pela Antiga Aliança: “Uma só proposição fundamental deve
ser feita teologicamente consciente e praticada: a certeza de que Deus mantém a eleição de Israel e sua
predileção por seu povo, mesmo quando este povo disse não a Jesus Cristo, faz parte da fé cristã”. P. Von Der
Osten-Sacken, Katechismus und Siddur, Berlim: Selbstverlag Intitut Kirche um Judentum, 1994, p. 18.
5
CF. acima, capítulo 5. A liturgia judaica (Ofício adicional de Rosh ha-Shaná) ensina que “Deus se lembra da
aliança”, da única aliança que se cumpriu em muitas etapas, desde a aliança com Noé Gn 8,1; 9,9 até a aliança
eterna anunciada por Ezequiel 16,60. Esta aliança se tornou para os cristãos a nova aliança anunciada por
Jeremias 31,31. É o que declara Jesus segundo o evangelho de Lucas (22,20) e a primeira epístola de São Paulo
aos Coríntios 11,25. A Tradição da Igreja dá as palavras de Jesus, na oração eucarística da liturgia latina, uma
versão mais completa: este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna da aliança. Esta versão reúne os
anúncios de Jeremias 31,31 e Ezequiel 16,60; ela manifesta a coerência da única Tradição de Israel e da Igreja
ensinada pela liturgia. Para as duas dimensões, Torá e mandamento (s), cf. Ex 24,12; Dt 30,11-20; 2Rs 17,34;
2Cr 14,3; Ne 9,14 e a Mishna Makkot 3,16 citada mais adiante.
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A Antiga Aliança, a Torá e os mandamentos do Judaísmo, permanecem validos para os


judeus e esclarecem a fé, a esperança e a prática dos cristãos no interior da Nova Aliança.

1 A importância vital das fontes judaicas


As fontes judaicas são a Torá oral e a Torá escrita, como eu já disse, ou ainda a Torá
Una, oral e escrita, a Torá de Moisés que o Senhor, o Deus de Israel,6 deu (Esd 7,6). Estas
fontes têm para mim uma importância capital, a importância da própria vida. Gostaria de
poder dizer que, na verdade, frequentar as fontes judaicas, me ocupar da Torá que os judeus
me ensinam, é isto (hu) que é a minha vida (cf. Dt 30,20). Eu recebo o que viveu e ensinou
Rabi Akiba antes de morrer torturado pelos romanos, na Cesaréia, no ano 135 de nossa era.7
Gostaria de poder dizer como ele que a Torá recebida de Deus pelos judeus se tornou
verdadeiramente para mim a vitalidade (hiyyut), o meio vital, o elemento vital da minha
existência, como a água é o elemento vital dos peixes.8 Eu ouço também, de outro mestre, que
se ocupar com a Torá, viver da vitalidade de Israel, é viver o próprio Deus. É o que ensina o
Rav Dov Baer de Loubavitch9 (1773-1827). Segundo ele, é o próprio Deus que é designado
pelo pronome Hu (Ele) em Dt 30,20: “Escolha então a vida, para que tu e tua posteridade
viveis, amando o Senhor teu Deus, escutando a sua voz, apegando-te a ele; pois Ele (hu) é tua
vida, assim como a largura dos teus dias, na tua instalação sobre a terra que o Senhor jurou a
teus pais, Abraão, Isaac e Jacó, de lhes dar”.10 Assim, então, numa maravilhosa continuidade
que atravessa os séculos, um mestre hassídico vai até o fim do que Rabi Akiba vivia e queria
dizer, ele que morreu pronunciando a palavra Ehad, “Um” da Oração do Shema Israel: Escuta
Israel, o Senhor, teu Deus, o Senhor é Um!11 Mergulhado na vida que é a Torá, Rabi Akiba
estava plenamente apegado a Deus (cf. Dt 30,20). Ele atingiu a devequt, a adesão (apego) a
Deus, que se pode designar também pela palavra comunhão ou até talvez pela palavra união.12
Um cristão deve ouvir a ressonância do ensinamento de Rabi Akiba e de Rabi Dov Baer com
as palavras de Jesus no evangelho de João (14,6; 17,3): “Eu sou o caminho, a verdade e a
vida... Ora a vida eterna é que eles te conheçam, tu o único verdadeiro Deus e aquele que tu
enviaste, Jesus Cristo”.13
Esta vida que é a Torá, não dispensou Rabi Akiba, nem Jesus antes dele, de conhecer o
extremo do sofrimento humano, de provar o absoluto delírio, de sofrer a tortura e a morte.
6
É com intenção que a Escritura menciona lado a lado a Torá de Moisés e a Torá do Senhor (Esd 7,6.10; Ne
8,1.8), Lucas faz sua esta intenção. (Lc 2, 22.24).
7
T.B. Berakhot 61 b.
8
. Ibid. Através de uma maravilhosa fábula, colocando em cena uma raposa e os peixes, Rabi Akiba ensina que a
água é a vitalidade (hiyyut) dos peixes e a Torá, aquela de Israel.
9
Este mestre é o filho e o sucessor de Rabi Shnéour Zalman (1747-1813), fundador da corrente hassídica
HaBaD.
10
Quntres ha-Hipa’alut 5 a, traduzido por George Levitte, com a introdução e notas de L. Jacobs, sob o título de
Lettre aux Hassidim sur l’extase (Carta ao Hassidim sobre o êxtase), Paris: Fayard, 1975, p. 62-63.
11
T.B. Berakhot 61 b.
12
Talvez seja preciso preferir com prudência a palavra “comunhão”. Cf. G. Scholem, Les grands courants de la
mystique juive, Paris: Payot, 1973, p. 16-19; Les origines de la Kabbale, Paris, Aubier-Montaigne, 1966, p. 319-
320. Alguns mestres hassídicos, contudo, falam da “união” (ahdut), por exemplo, Rabi Meshullam Leib Feibush
de Zbarah (+ 1795), Divrei Yosher Emet, 46.
13
Ver a bênção após a leitura da Torá e na Qedushah de-Sidra. Cf. ainda Jo 5,39; 66,67; 11,25-26. Para um
cristão, Jesus tem as palavras da vida eterna, ele é a Palavra, a Verdade, a Vida. Para um judeu, que não recebeu
o dom da fé em Jesus Cristo, estas palavras de Jesus e sobre Jesus podem ser consideradas como blasfematórias.
Para um cristão, elas iluminam do interior a divindade da Torá oral e escrita da qual Israel vive.
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Todo positivo que o cristão recebe dos judeus, se ele o quer, não pode dispensar de viver com
eles o horror do sofrimento dos inocentes, como também o horror de um sofrimento judeu,
específico e indizível, que não tem mais outro nome possível que a Shoah (a catástrofe). A
escuta cristã do sofrimento universal, do sofrimento dos inocentes, do sofrimento judaico, faz
parte da escuta da Torá e deve existir na base de uma cristologia renovada a partir da Shoah.
Contudo, não se pode ignorar a alegria da Torá (simhah shel Torah), a alegria que os
judeus provam no estudo-ensinamento (talmud) da Torá, na observância dos mandamentos.14
Esta alegria é a alegria de Israel. Sua especificidade é inalienável. Semeada na luz para os
justos e para aqueles que elevam seu coração pelo arrependimento, ela é indezenraizada e não
pode deixar ao sofrimento a última palavra.15 A alegria da Torá é a alegria específica de
Israel. É possível a um gentio, é um fato, prová-la no contato com os judeus. Semelhante
experiência, para um cristão, é inseparável da alegria recebida no batismo no Espírito Santo
(At 13,48-52), alegria de Jesus Cristo, alegria perfeita para aquele em quem Ele permanece
(Jo 15,11).16 Esta alegria é aquela que a Torá perfeita (Torah temimah, Sl 19,8) dá quando se
percebe a coerência que provém de sua Unidade.17

2 A Torá Uma do Deus Uno


A Antiga Aliança jamais tendo sido revogada, eu recebo na Única Aliança, já Novo e
Eterna em Jesus Cristo, a Torá Una que me vem do Deus Um para os Judeus. Esta Torá Una é
diversa. Nela, segundo a Tradição de Israel, eu distingo a Tradição oral do Judaísmo
(Mishnah), a Escritura (Miqra), o Talmud (Midrash), a Halakhah, a Hagadah.18 Como cristão,
segundo a Tradição de minha Igreja, eu situo nesta maravilhosa Unidade da Palavra de Deus,
a coletânea, hoje inteiramente escrita, dos testemunhos orais e escritos sobre Jesus Cristo. No
Novo Testamento que veio a ser Escritura, eu acrescento tudo o que na Tradição da Igreja me
faz conhecer Jesus Cristo. Eu sei e creio que Ele é a Palavra de Deus feito carne, o Verbo

14
Cf. S. Schechter, Some aspects of rabbinic theology, New York: Schocken Books, 1961, Chapter XI, “The
Joy of the Law”, p. 148-169. A mim parece que, sob o ponto de vista judaico, que não se pode se deter no
sofrimento e negar a alegria. Salmo 34, 15 ensina que é preciso conhecer, evocar e denunciar o mal para que ele
não seja mais cometido; também ensina que é preciso fazer o bem, é preciso crer que o bem terá a última palavra
e que trará a felicidade e a alegria. A estrutura servidão-libertação, luto-alegria, felicidade-infelicidade, é aquela
de uma experiência fundamental, comum ao Judaísmo e ao Cristianismo. Para os judeus, ela culmina no luto de
Tishe’ah be-Ab (9 do mês de Ab, dia da destruição do primeiro e segundo Templos), que prepara para a alegria
da Jerusalém reconstruída (Is 66,10). Para os cristãos, que devem com os Judeus e com Jesus chorar a destruição
do Templo, ela culmina na morte de Jesus Cristo que leva à sua ressurreição. A mim parece impossível pensar
que a shoah tenha abolido esta estrutura. Sem dúvida, ela transtorna a maneira pela qual os judeus podem
doravante viver. Ela obriga os cristãos a revisar profundamente a sua maneira de viver o arrependimento
(teshuvah), lembrando-se de que ela é, desde o início, inseparável do Evangelho (Mc 1,15; Lc 24,47).
15
Esta é a mensagem de Kipur, cuja liturgia é aberta pelo Salmo 97,11: “Uma luz é semeada para o justo e para
os corações retos a alegria”.
16
Ver mais adiante: Jesus Cristo é a Presença divina (Shekhiná) no mundo e no coração dos crentes. Espírito
Santo, Shekhiná e alegria são inseparáveis.
17
Jesus Cristo, que é para um cristão a Shekhiná por excelência, não altera em nada as outras manifestações da
Shekhiná no mundo. Cada uma destas manifestações revela o mesmo Deus, Um e Único. A alegria de Jesus
Cristo, perfeita para os cristãos, não implica, portanto, que a alegria da Torá seja menos perfeita para os judeus.
Eu voltarei a isso mais adiante, mas já digo que a alegria de Jesus Cristo, que em sua pessoa é a Torá, é a alegria
da Torá por excelência, una com a alegria da Torá que os judeus conhecem, alegria iluminando a alegria, alegria
iluminada om a alegria da Torá que os judeus conhecem, alegria iluminada pela alegria.
18
Sifre sobre Dt 32,2, p. 339.
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abreviado que recapitula e unifica todas as palavras da Torá do Deus Um.19 Na minha
frequência às fontes judaicas só posso partir Dele e só posso chegar a Ele.

3 O vai e vem do Cristianismo ao Judaísmo e do Judaísmo ao Cristianismo


Eu parto necessariamente do Cristianismo. Estudar as fontes judaicas, calando a minha
fé cristã, seria mais que uma tolice. Isto seria um erro e um erro muito mais grave que
acreditaria assim estudar o Judaísmo de maneira científica. Na realidade, nenhuma pesquisa
científica pode passar de hipótese. A questão é a de escolher uma boa hipótese, e de
preferência a melhor hipótese. Minha hipótese é que a fé cristã é coerente com a Palavra de
Deus que me vem das fontes judaicas, assim como das fontes especificamente cristãs.
Para explorar as riquezas da minha fé cristã, eu parto desta fé e notadamente das
palavras, hoje escritas no Novo Testamento, que leio na fé. Eu sei que minha fé e o Novo
Testamento estão ligados em Jesus Cristo, no Deus Uno, com o Judaísmo e com as suas
fontes. Nestas fontes, eu busco então o que me faz melhor conhecer a Deus e a mim mesmo.
Este processo, que vai do Cristianismo ao Judaísmo, pode ser denominado “analítico”.
Há outro processo, que vai do Judaísmo ao Cristianismo, que eu denominarei
“sintético”, por falta de encontrar um termo melhor.20 Este processo, inseparável do primeiro,
ocorre no encontro com os judeus e na escuta do Judaísmo tais como eles se definem e
expressam a si mesmos. A Igreja convida a uma semelhante escuta, que deve respeitar os
judeus tais como são e como querem permanecer.21 Neste processo, eu não posso
evidentemente fazer a abstração de minha fé cristã, mas devo evitar limitar a minha escuta a
que no Judaísmo já está em ressonância com a minha fé. O Judaísmo não se reduz a que
minha fé cristã, tal como é, me prepara para receber dele.22 Sendo outro e mais amplo que
minha escuta cristã, o Judaísmo, ouvido no que ele diz de si mesmo, de Deus, da humanidade
e do mundo, esclarece a minha fé sobre aspectos ignorados e insuspeitos do patrimônio
comum ao Judaísmo e ao Cristianismo, ainda insuficientemente conhecido. Neste processo,
eu escuto os judeus, estudo com eles e em sua escola. Eu creio perceber qualquer coisa do que
eles denominam a alegria da Torá, da qual eu falei mais acima. Tento compreender o que é
para eles a Torá e como eles a vivem. Partilho de sua oração, sabendo que eu não rezo a sua
oração em seu lugar. Mas provando que a sua oração, no que ela diz, ressoa em mim segundo

19
Cf. H. De Lubac, Exégèse médiévale (Exegese Medieval), Segunda Parte, I, p. 181-197; L’Écriture dans la
Tradition (A Escritura na Tradição), p. 232-246.
20
Gostaria de encontrar algo melhor do que os adjetivos ‘ “analítico” e “sintético” para distinguir os dois
processos.
21
Eu evoco aqui as recomendações feitas pela Igreja Católica nas Orientações e Sugestões da Comissão da Santa
Sé para as relações religiosas com o Judaísmo (01/12/1974), retomadas nas Notas da mesma Comissão
(24/06/1985), “Considerações preliminares”, 3 e 4.
22
Na minha dissertação para a obtenção do mestrado (licença canônica) de teologia, eu assinalei o que me
pareceu errôneo da maneira pela qual H. Urs von Balthasar emprega a noção de “estrutura cristológica de Israel”
para tratar de certos aspectos do Judaísmo. O risco é de projetar sobre o Judaísmo estruturas que só são
imperfeitamente cristológicas, por não dizer, em certos casos, falsamente cristológicas, na medida em que a fé
dos cristãos ainda não tinha chegado à compreensão total da revelação crística. É assim que H. Urs von
Balthazar falsamente julgou o sionismo. Cf.: Einsame Zweisprache, Koln-Olten, Jakob Hegner, 1958, p. 113-
114 e minha dissertação: Conditions de légitimité d’un témoignage Chrétien auprés des juifs (Condições de
legitimidade de um testemunho Cristão junto aos Judeus), ICP, 1970, p. 81 e nota 137, assim como a publicação
alemã desta dissertação: Auftrag und Unmöglichkeit eines legitimen christlichen Zeugnisses gegenüber den
Juden, Berlim, Selbstverlag Institut Kirche und Judentum, 1980, p. 104-105, nota 137.
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a minha fé cristã. O grito de alegria Hallelu-Yah, por exemplo, significa para os judeus e para
mim: “Hallelu-Yah! Louvai aquele cujo nome é Yah! (Sl 113,1). “Louvai, servos do Senhor, e
não mais escravos do Faraó!”23 Eu não posso deixar de provar, no contato da alegria pascal
judaica do Hallelu-Yah, a alegria pascal cristã da ressurreição de Jesus Cristo. É assim que as
fontes judaicas esclarecem profundamente a minha fé cristã. Escutar os judeus tais como se
definem me faz descobrir com frequência o que estava latente, até escondido e às vezes até
oculto, na minha vida cristã.
O processo “sintético” não leva necessária e automaticamente a ouvir uma ressonância
cristã. Isto me mantém, como cristão, na obrigação de estudar as fontes judaicas tais como
são, sem relação consciente com a fé cristã. Isto me obriga a aceitar que os judeus, que vivem
destas fontes e que são seus interpretes e utilizadores legítimos e competentes, não creiam em
Jesus Cristo. Isto também me persuade, em todo caso, que Jesus Cristo e o Cristianismo são
mais amplos do que os cristãos disseram até o presente. Porém, quando uma ressonância é
percebida, minha vida cristã recebe uma confirmação alegre que advém mais da evidência do
que da prova.
No lado a lado com outros cristãos e cristãs, irmãs e irmãos de Nossa Senhora de Sion,
colegas professores do Centro Saint Pierre de Sion (Ratisbonne), há muito tempo e
intensamente pratiquei o vai e vem do qual acabo de falar, operando-o para fazer o inventário
do patrimônio comum aos judeus e aos cristãos como a Igreja Católica o pede.24 Eu
apresentarei, em resumo, alguns exemplos para dar uma ideia da riqueza deste patrimônio e
da importância das fontes judaicas a fim de cernir os contornos. Muitos outros exemplos
poderiam ser dados, se estas linhas pudessem se prolongar ao infinito.
Eu preciso que não tratarei da crença judaica e cristã num Messias pessoal. Esta crença
é fundamental, certamente, para um cristão, pois ele crê em Jesus Cristo, isto é: em Jesus
Messias, Messias para os Judeus e para os Gentios. Mas ele não está seguro de que ela faça
parte do patrimônio comum, em razão da grande variedade de opiniões judaicas sobre o
Messias e sobre o messianismo. Sem dúvida há profundas ressonâncias entre o messianismo e
a escatologia ensinadas pela liturgia judaica e o que diz a Igreja de Jesus Cristo (Messias) na
sua oração e na sua teologia.25 Mas uma divergência fundamental impede o funcionamento de
um vai e vem entre Judaísmo e Cristianismo sobre a questão de Jesus Messias, em razão das
diferentes posições quanto à ressurreição. Para os judeus, que não creem na ressurreição de
Jesus, o Jesus dos cristãos, morto na cruz, não pode ser o Messias. Para os cristãos, Jesus
Cristo ressuscitado, porque venceu a morte, pode ser o Messias e o é na verdade malgrado o

23
T.J. Pessahim 5,5 32 c.
24
Notas da Comissão..., “Considerações preliminares” 1 e 3.
25
Cf. acima, capítulo 2: “A Escatologia na liturgia de Israel”. Eu só preciso aqui o ensinamento dado pela
décima quinta bênção da oração comunitária, da qual eu já falei. Esta bênção termina assim: “Bendito és Tu,
Senhor, que faz crescer o chifre da salvação”. Esta fórmula inabitual só se encontra no evangelho de Lucas 1,69.
Outros índices apontam para uma origem judeu-cristã. Tal como é, a bênção corresponde bem à situação dos
cristãos que certamente têm em Jesus Cristo o início real da salvação, mas que pedem que cresça a força (o cifre)
desta salvação. Um pedido análogo é feito pela Igreja para os judeus na oração da Sexta-feira Santa: “Conduzi à
plenitude da redenção o primeiro povo da Aliança”. A Igreja, como Israel, permanece no “ainda não” ainda que
tenha realmente entrado no “agora”. Esta décima quinta bênção poderia ser cristã. As outras bênçãos
«messiânicas» da oração comunitária, seguramente menos próximas do Cristianismo, nada têm que seja
incompatível com a fé cristã e têm um sentido, que através da fé de Israel, sustenta a fé cristã. Todo cristão, seja
ou não de origem judaica, deve valorizar os pedidos da liturgia de israel. Vai da coerência da Torá Una e única.
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retardar das realizações messiânicas que se espera dele. Esta divergência entre judeus e
cristãos não permite então que se possa falar do patrimônio comum sobre a questão do
Messias.

4 A Torá Oral e a Ressurreição26


Partindo de minha fé cristã, eu observo o primeiro Evangelho recebido e transmitido por
são Paulo; ele aí anuncia oralmente a ressurreição de Cristo no terceiro dia, segundo as
Escrituras (1Cor 15,1-4). Este anúncio se apoia sobre uma crença judaica na ressurreição dos
mortos. E sei igualmente pelo Novo Testamento ser os fariseus que professam a ressurreição,
ao passo que os saduceus a negam (At 23,6-8). Para melhor compreender do que se trata, eu
remonto analiticamente às fontes judaicas e noto que os fariseus ensinam a ressurreição dos
mortos de duas maneiras. Eles a ensinam na oração, sem recorrer à Escritura, enquanto que,
no Midrash e no Talmud, eles apoiam o seu ensinamento sobre a Escritura ou sobre a
observação da natureza. Esta pedagogia decorre do valor que eles atribuem à tradição oral do
seu povo. Eles recebem desta tradição a crença na ressurreição dos mortos e consideram que
esta tradição é Palavra de Deus, Torá, sob o mesmo título de Escritura. Se a tradição oral é
Torá, ela pode ensinar a ressurreição com ou sem o recurso da Escritura. Os fariseus ensinam
a ressurreição sem recorrer à Escritura na oração litúrgica que confirmam e instituem.27 Eles
não querem impor ao povo, no momento da oração, recursos escriturários que são sempre
discutíveis e que poderiam dificultar algumas pessoas. Em compensação, eles devem, fora da
oração, apoiar a fé e a esperança na ressurreição através dos argumentos escriturários e não
escriturários. Quanto aos argumentos escriturários, para quem “conhece as Escrituras e o
poder de Deus, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó”, dos quais a Escritura, fala não é o
Deus dos mortos, mas o Deus dos vivos. Eu viso aqui o recurso escriturário proposto por
Jesus nos Evangelhos sinóticos;28 este recurso, com efeito, é da mesma linha como aqueles
que os sábios de Israel fazem e consideram como aceitáveis.29 O debate exposto pelo Talmud

26
Cf. P. Lenhardt e M. Collin, “La Torah orale des pharisiens”, p. 35-42. Cf. igualmente: “À l’origine du
mouvement pharisien, la Tradition orale et la Réssurection”, Congrès de l’ACFEB, Lyon, Août 2000, in: Ph.
Abadie e J.P. Lemonon (ed.), le judaisme à l’aube de l’ère chrétienne. Paris: Lectio Divina 186, Cerf, 2001, p.
123-176. Parece necessário insistir sobre o valor da Tradição como Torá oral, no Judaísmo e no Cristianismo.
Sem querer decidir um debate que permanece ainda delicado entre protestantes e católicos sobre as relações que
existem entre a Tradição e a Escritura, a Igreja Católica declara que “a fé cristã não é “uma religião do Livro”. O
Cristianismo é a religião da “Palavra de Deus”, não de “um verbo escrito e mudo, mas do Verbo encarnado e
vivo” (São Bernardo, Hom. Miss. 4,11)”. Cf. o Catecismo da Igreja Católica § 108 e H. De Lubac, L’Écriture
dans la tradition, p. 246, de onde foi tirada a fórmula do Catecismo. O Judaísmo e o Cristianismo são “religiões
da escuta” à diferença do Islã que é uma “religião do livro”, o que tento precisa no artigo, “L’Unitá di Dio – La
religioni dell’ascolto I-II”, Reggio, Qol 77/78, 1998, p. 2-9; Qol 79, 1999, p. 2-9.
27
Cf. a segunda bênção da Amidah de todos os dias, dita três vezes nos dias comuns, quatro vezes no shabat e
dias de festas, cinco vezes em Kipur. Ver também a oração dos funerais.
28
Mt 22, 29-32 e paralelos.
29
T.B. Sanhedrin 90 b. Advém do debate talmúdico que dois recursos, sobre os três que são apresentados como
os melhores, ensinam a ressurreição a partir da promessa da Terra feita aos pais em Ex 6,4 e Dt 11,21. É esta
promessa que Paulo pensa em At 13,32 2 26,6. Sabe-se assim que a Terra de Israel, não só para os fariseus, mas
também para Jesus (Mt 5,4) e para os primeiros cristãos, simboliza a vida eterna e significa a ressurreição. O
apego dos judeus a esta Terra é exigido pela aliança do Sinai; como esta “antiga aliança jamais foi revogada”, o
elo dos judeus à Terra e sua prática dos andamentos que se relacionam guardam o seu valor de testemunho e de
sua eficácia sacramental na economia cristã. Não admiti-lo do lado cristão seria desconhecer a coerência da Torá
de Moisés, oral e escrita, da qual os judeus vivem; isto seria também atentar contra a coerência do conjunto da
Revelação da qual Jesus é o Mediador e a Plenitude (Vaticano II, Dei Verbum § 2). Cf. meu artigo: “La Terre
7
COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ

evidencia que estes recursos escriturários e, então, aquele de Jesus nos Evangelhos, não são
provas, mas “alusões”, “indicações”. É evidente, para quem tem ouvidos para ouvir, que em
matéria de fé e de amor as alusões são mais adequadas e convincentes que as provas.
Observamos o que Lucas, o evangelista não judeu, anotou com precisão a partir de
testemunhos judeus. Ele não diz: “Não tendes lido...” (Mt 22,31; Mc 12,26) mas: “Moisés a
indicou na passagem da Sarça...” (Lc 20,37). Há aqui mais do que uma nuance: não se prova a
ressurreição; o midrash judaico e a boa exegese cristã são feitos na fé para iluminar do
interior. A ressurreição não pode ser recebida por aqueles que não se engajam na vida e na
coerência de uma Palavra de Deus, oral e escrita, que só fala da vida e da ressurreição. A
coerência e a perfeição da Torá não permitem pensar que haja uma só passagem da Torá
escrita que não ensine a ressurreição. Porém não temos a força de tirar este ensinamento por
nossa exegese.30 É ainda Lucas que melhor ‘captou’ a substância ou cerne do midrash
farisiano que Jesus fez ouvir em conhecimento de causa (Lc 20,38): é a experiência do Deus
da vida que faz com que se viva para ele além da morte. Isto se une aos recursos não
escriturários que os sábios de Israel igualmente propõem.31 Estes recursos, como aquele da
mãe dos mártires de Israel, fazem apelo à evidência da vida, muito mais forte que a evidência
da morte.32 Semelhante contexto, dramático como a vida e a morte, faz compreender a
severidade da Tradição que, na Mishná, ameaça “aquele que diz que não há ressurreição dos
mortos”.33 Segundo esta Mishná, aquele que diz isto “não terá parte no mundo a vir (na
ressurreição)”. O Talmud que se surpreende com esta severidade e a discute, mostra
claramente que não se trata de uma condenação, mas de uma ameaça pedagógoca.34 Aquele
que não quer a vida, que não se engaja na comunidade ao serviço da vida, corre o risco de não
receber o que não o interessa. É preciso adverti-lo.
A frequência das fontes judaicas é benfazeja; ela sustenta a fé cristã na ressurreição; ela
permite compreender o gênero literário das ameaças pedagógicas frequentes no ensinamento
de Jesus, por exemplo, aquela de Mc 16,15-16. Estas “ameaças”, quando são mal
interpretadas, na ignorância fundamentalista do seu contexto judaico, puderam e podem ainda
fazer mal a alguns cristãos; elas podem ainda aqui e lá desacreditar a pregação cristã.
O vai e vem empreendido a partir da ressurreição de Jesus Cristo, central para a fé
cristã, permite também constatar que a ressurreição não tem uma importância tão central para

d’Israël, Jerusalém, le Temple, leur valeur pour les juifs et pour les chrétiens”, Cahiers Ratisbonne nº 1,
1996, p. 106-140. Cf. também aquele de A. Avril e E. Passeto, “Parashat Bet-Har (Lv 25-26,2)”, Cahiers
Ratisbonne nº6, 1999, p. 98-145, que esclarece do interior a prática cristã do Jubileu e permite conhecer melhor a
riqueza da tradição de Israel sobre o ano jubilar. (O ano jubilar 5761 do calendário judaico, que começou no dia
29 de setembro de 2000, era um ano sabático).
30
Cf. Rabi Simai em Sifre sobre Dt 32,2, p. 341. Eu reenvio ao meu artigo: “L’exégèse (midrash) de la
Tradition d’Israël, sa grandeur et ses limites”, Cahiers Ratisbonne nº 4-5, 1998, p. 9-43. Como a Escritura
(Torá escrita) é posterior e interior à Tradição (Torá oral), isto determina os limites da Escritura e por
consequência também os limites da exegese. Mas a exegese da Tradição, o midrash, não é de modo algum
diminuído pelo limite que lhe vem de sua posição no interior da Tradição. O midrash é Torá oral; ele tem o
poder de manifestar a unidade e a divindade de toda a Torá (Tradição e Escritura). A experiência do fogo e da
alegria do Sinai atesta este poder, particularmente quando a exegese consegue montar um bom colar com as
pérolas da Escritura. É isto que faz Jesus em Lucas 24, 27.44.
31
T.B. Sanhedrin 90 b-91 a.
32
2Mc 7,22-23.28-29.
33
M. Sanhedrin 10.
34
T.B. Sanhedrin 90 a.
8
COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ

os judeus. De fato, o elo fundamental que existe entre a Torá oral e ressurreição é talvez
melhor percebido por um cristão do que por um judeu. O testemunho cristão sobre a
ressurreição de Jesus Cristo, esclarecido do interior pela Tradição de Israel, não poderia
estimular uma melhor reflexão aos judeus sobre a ressurreição que eles anunciam ao menos
três vezes por dia em sua oração?

5 O Deus Uno e Único35


Como cristão eu digo, segundo o Símbolo dos Apóstolos: Eu creio em Deus... e em
Jesus Cristo... Eu creio no Espírito santo... Segundo o símbolo Niceno-constantinopolitano,
eu digo: Eu creio num só Deus... Eu creio num só Senhor, Jesus Cristo... Eu creio no Espírito
santo... Estas fórmulas, em si, não ensinam claramente nem o monoteísmo e, menos ainda, a
Unidade de Deus. Os catecismos e os teológicos, apesar dos surpreendentes deslizamentos de
vocabulário, precisam que Deus, para os cristãos, é Uno e Único, em três pessoas. A hesitação
se mantém amiúde entre o Deus Um e o Deus Único ou entre a Unidade e a Unicidade de
Deus. Malgrado estas dificuldades, chega-se ao Deus Um e Único, realidade das realidades
que o Judaísmo e o Cristianismo testemunham. Para o Cristianismo, felizmente que a Unidade
e a Unicidade de Deus são claramente ensinadas por Jesus e um escriba, segundo o evangelho
de Marcos, na resposta à questão a fim de saber qual é o primeiro de todos os mandamentos
(Mc 12,28-34). No seu debate, Jesus se apoia sobre o início da leitura do Shemá Israel:
“Escuta Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é Um e tu amarás...” (Dt 6,4-5). Quanto ao
escriba, ele aprova Jesus dizendo: “Muito bem, Mestre, tu tens razão ao dizer que Ele é Um e
não há outro senão Ele”. O grego do Novo Testamento e o latim da Vulgata têm a palavra Um
(eis, unus) e não Único (monos, unicus). O mesmo o é para o grego e o latim de Dt 6,4. O
escriba explica bem o que Jesus disse: Deus é Um, ele é Único, porque não há outro que seja
Um como ele.36 Trata-se então da Unidade inefável de Deus, que os judeus devem proclamar
e que os cristãos, unidos a Jesus Cristo, devem dar a conhecer ao mundo (Jo 17, 3.11.21-22).
É isto que se poderia dizer simplesmente, se não fosse necessário sobrepujar as traduções
aberrantes de Mc 12,29 e 12,32, tanto em francês (Bíblia de Jerusalém e TOB/TEB) como em
inglês (The Jerusalem Bible) e em alemão (Würtembergische Bibelanstalt, Stutgart). Tais
traduções, que só falam da Unidade de Deus e que parecem ignorar de que se trata antes de
tudo de sua Unidade, testemunham que seus autores não dão nenhuma importância às fontes
judaicas do Novo Testamento. Mais grave que a ignorância destes tradutores é o
empobrecimento da mensagem de Jesus da qual se tornam culpados. Na época do Novo
testamento, o ensinamento sobre a Unicidade era sem dúvida necessário, como o é em toda a
época, em razão do perigo permanente da idolatria. Mas o Shemá Israel, que veio a ser leitura
instituída para a oração da tarde e da manhã de todo judeu, ensinava antes de tudo a Unidade
35
Eu falei do Deus Uno e Único em cada um dos meus artigos e dele tratei em diversos cursos e sessões. Num
artigo nos trabalhos da 47ª semana de Estudos litúrgicos do Instituto de Teologia Ortodoxa Saint-Serge de Paris
(27-30 junho 2000), eu apresentei a mensagem e o programa da Unificação que a Torá oral de Israel elabora na
liturgia sinagogal: “La liturgie d’Israël à l’origine de la liturgie chrétienne. L’oralité enseignante”. M.
Triacca e A. Pistola (ed.), La Prière liturgique, BEL., Subsidia 115, Roma, Ed. Liturgiche, 2001, p. 55-90. Este
artigo: “A liturgia de Israel na origem da liturgia cristã. A oralidade docente” será publicada também no
primeiro volume do livro: À escuta de Israel, na Igreja, cap.5 [nota tradutor].
36
Um escriba não fala para nada dizer. Independente do respeito que se deve ter pelo grego, é inapto fazer a um
escriba dizer duas vezes a mesma coisa, por exemplo: “Ele é único e não há outro” (Mc 12,32, Bíblia de
Jerusalém).
9
COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ

de Deus, princípio de unificação por amor. As bênçãos que envolvem a leitura do Shemá, e
sobretudo aquela que precede imediatamente a leitura, ensinam a Unidade e a unificação. As
interpretações rabínicas de Dt 6,4-5 dão o mesmo ensinamento, magnificamente ilustrado por
Rabi Akiba que morreu mártir por amor pronunciando a palavra “Um” (Ehad) do Shemá
Israel.37
Porém, evidentemente, é preciso fazer mais do que evitar os erros. É preciso ensinar a
Unidade. Os melhores entre os judeus merecem ser chamados os Procuradores da Unidade
(Dorshey ha-Yihud). A vida cristã deveria ser, a exemplo dos judeus e ao apelo de Jesus
Cristo, a procura e a imitação do Deus Uno. Os cristãos deveriam ser os Procuradores da
Unidade-Trindade e um resultado desta procura deveria ser a Unidade dos cristãos. Este
resultado só pode ser obtido no contato com Israel e com as fontes judaicas. A credibilidade
da Igreja no diálogo interreligioso depende da intensidade de semelhante contato. O
testemunho cristão sobre Deus deve se apoiar sobre o testemunho de Israel ouvido e recebido
no coração da Igreja.

6 O Deus ausente e presente: o paradoxo da Revelação e da Encarnação38


A Unidade de Deus é misteriosa, inefável; ela, porém, deve ser proclamada. Ela é
paradoxal: Deus é Uno, indizível e, portanto quer ser proclamado, de um lado, como ausente,
escondido, desconhecido e, de outro lado, como presente, revelado e conhecido. Deus é
Único; é então ele mesmo e nenhum outro que está ausente e presente; ele é sempre o mesmo
quando se faz presente no mundo em diferentes momentos, em diferentes lugares e de
diferentes maneiras. É porque Ele está escondido que Deus salva e é crível.39 Se a “fé na
verdadeira Encarnação do Filho de Deus é o sinal distintivo da fé cristã, como o Catecismo da
Igreja Católica o evoca” (§ 463), um cristão deve reconhecer com os Padres da Igreja que a
Encarnação é o paradoxo dos paradoxos.40 Uma experiência tão fundamental não pode deixar
de existir, na raiz da fé cristã, na Tradição de Israel. O processo analítico se impõe então, mas
seus pontos de partida na liturgia da Igreja e no Novo Testamento não conduzem
imediatamente aos lugares onde a Tradição de Israel pode abrir os seus tesouros àqueles que
os buscam. É, em todo caso, o processo sintético, o estudo das fontes judaicas, que me fez
entrever melhor a profundeza do paradoxo da revelação e da Encarnação.
A liturgia judaica, com suas múltiplas proclamações da Santidade de Deus, nos dá a
mais simples, a mais surpreendente, a mais luminosa expressão do paradoxo. Todas as
Qedushot (plural de Qedushah: Santidade), todas as proclamações litúrgicas da Santidade de
Deus, se apoiam explicitamente sobre a Escritura que anotou a comunicação feita a Isaías da
liturgia celeste dos Serafins (Is 6,4): “Santo (QaDoSh), Santo, Santo, Santo, o Senhor Sabaôt,
sua Glória (KaBoD) enche toda a terra!” Imediatamente após vem o complemento que a
liturgia quer trazer à proclamação dos Sefarins. Este complemento é dado pelos Seres vivos

37
T.B. Berakhot 61 b.
38
Cf. Pierre Lenhardt, “A Tradição de Israel sobre a Presença Divina (Shekhiná) no Templo...”, em: À
escuta de Israel, na Igreja, Vol. II, cap. 4.
39
Cf. Is 45,14-15 magnificamente exposto por Pascal, Opuscules, Terceira Parte, IV 2, Ed. Brunschvicg, Paris,
Hachette, 1968, p. 214-215; Pensées, Ed. Brunscchvicg § 194, 242, 585. Cf. também o belo estudo de J. Briend,
“Le Dieu caché” (O Deus escondido), em Dieu dans l’Écriture, Paris, Cerf, 1992, p. 91-112.
40
Cf. H. de Lubac, Paradoxes, suivi de Nouveaux Paradoxes, Paris, Seuil, 1959. A fórmula “paradoxo dos
paradoxos”, emprestada por H. de Lubac aos Padres da Igreja, aparece em enxergo no seu livro.
10
COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ

ouvidos por Ezequiel (Ez 3,12): “Bendita é a Glória (KaBoD) do Senhor, do Seu Lugar (mi-
MeQoMo)!” O texto da oração que une estas duas citações e o Talmud fazem ouvir
claramente a mensagem.41 A Glória imanente, presente, conhecida no lugar conhecido do
Templo (e da comunidade que une a liturgia terrestre à liturgia celeste), aponta para a sua
origem transcendente, para o Deus escondido, ausente, para o Deus desconhecido que se
manifesta (a partir) do Seu Lugar (mi-MeQoMo) desconhecido. A liturgia da Igreja, em todas
as suas expressões, declarou seu elo com a liturgia celeste e a proclamação dos Serafins (Is
6,3). Ela não reteve, talvez desconheceu, o complemento pedagógico trazido pelos Seres
vivos da visão de Ezequiel (Ez 3,12). Um só traço deste complemento se encontra na oração
coletada pelas Constituições Apostólicas.42 A oração eucarística da Igreja de Jerusalém não
conhecia o complemento, o que parece indicar que a Igreja, mesmo lá aonde poderia se sentir
mais próxima de Israel, estava desligada das fontes judaicas desde o ano 386, terminus ad
quem da quinta Catequese mistagógica de Cirilo de Jerusalém que conhecia a liturgia de São
Tiago.43
Hoje é indispensável ouvir a mensagem das fontes judaicas na sua plenitude. A partir da
Glória, da qual a Bíblia fala, é preciso encontrar todas as tradições bíblicas e rabínicas sobre a
Shekhiná, sobre a vontade de Deus em habitar no mundo, sobre a sua ação de habitar no
mundo e sobre o resultado desta ação, sobre a Presença de Deus no mundo. Deus está
presente em todo lugar no seu mundo por sua “criação contínua” ensinada pela oração
litúrgica de Israel,44 pelos teólogos judeus e cristãos, recentemente ainda pela constituição Dei
Verbum do Concílio Vaticano II.45 Esta presença de Deus criador em todo lugar de sua
criação foi bem afirmada por Raban Gamaliel, neto de Gamaliel, o mestre de São Paulo. Ele
dizia: “Nenhum lugar sobre a terra está vazio da Shekhiná”.46 Mas Deus, que ama Israel e
todos os homens, quer habitar por sua Shekhiná em todos os lugares e em todos os momentos
em que ele quer ser encontrado pelos homens para lhes falar e os salvar: por Moisés na Sarça
(Ex 3), por Israel no Egito na noite de Páscoa (Ex 12), na passagem do mar vermelho (Ex 14 e
15), no dom da Torá no Monte Sinai (Ex 24,10; Dt 5,24), na Tenda de Reunião (Ex 25, 8.22;
Lv 1,1; 16,1,16), no Templo de Jerusalém (1Rs 8,10-13; Is 6,3; Ez 3,12); por toda a
comunidade e por toda pessoa que invoca o seu Nome (Ex 20,24).47 A Shekhiná se manifesta
sob aspectos diferentes, mas aqueles que a veem reconhecem que é sempre o mesmo Deus, o

41
O texto da ligação mais explicita se encontra na Qedushah Rabbah, terceira bênção do ofício adicional do
shabat e festas; o Talmud, T.B. Hagigah 13 b, diz simplesmente (Ez 3,12): “De seu lugar, conclui-se então que
este lugar é desconhecido”.
42
Constitutions Apostoliques, Livre VII 35,3, SC 336, Paris: Cerf, 1987, p. 77.
43
A. Tarby, La prière eucharistique de l’Eglise de Jérusalem, l’anaphore grecque de Saint Jacques de
Jerusalem, Paris: Beauchesne, 1972, p. 49-55. Eu assinalo aqui o conhecimento que São João Crisóstomo tinha
do complemento trazido por Ez 3,12 a Is 6,3. Cf. Sur l’incompréhensibilité de Dieu, Homilia I, 3092-320, SG
28 bis, Paris: Cerf, 1970, p. 127-129. Ainda que a mensagem dada por esta complementaridade permanece válida
e atual na economia cristã, parece permanecer desconhecida. Cf., por exemplo, E. Peterson, Le livre des anges
(O livro dos anjos), Genova: Ad solem, 1996 (1935), p. 55-56; ver também L. Bouyer, La vie de la liturgie (A
vida na Liturgia), Paris: Cerf, 1956, p. 170-173.
44
Cf. a bênção Yotser que precede a leitura do Shemá da manhã.
45
Dei Verbum, § 3, magnificamente comentada sobre este ponto por H. de Lubac, La Revélation Divine (A
Revelação Divina), Paris: Cerf, 1983, p. 63-29.
46
Pesiqta de-Rav Kahana, Pisq. 1, p. 4.
47
Cf. Mekhilta de Rabi Ishmael sobre Ex 20,24, p. 243 e Rashi ad locum; M. Abot 3, 2.6; T.B. Berakhot 6 a.
11
COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ

Deus de Israel, Uno e Único, que se revela.48 Nenhum aspecto da Shekhiná ocasiona a
“diminuição” de um outro aspecto. Com efeito, Deus não se divide, nem se “poupa”, nem se
“dá em conta gotas”, mas pode ocorrer que a Shekhiná seja “menos eficaz” se Israel não for
digno da sua ação. Era, o que parece, o caso para a Shekhiná no segundo Templo.49 A
ineficácia vinha de Israel, da má geração (Mt 12,39), incapaz de conhecer os sinais dos
tempos (Mt 16,3), da “geração que não merece” que a Shekhiná, ou o Espírito Santo, repouse
sobre ela.50 Semelhante situação corresponde ao fim da época do segundo Templo, julgado
tão duramente pelos mestres fariseus como por Jesus nos evangelhos.51 Mas a eficácia
reduzida da Shekhiná não é a sua ausência. Não se pode tirar argumento de uma tradição que
afirma semelhante ausência.52 Esta tradição não pode ir contra a evidência que advém da
liturgia do segundo Templo até a sua destruição: Sacrifícios, Festas de peregrinação, Serviço
do Sumo Sacerdote em Kipur (Seder Abodah) retomados na liturgia sinagogal de hoje. Deve-
se acrescentar a isto a evidência fornecida pelo Novo Testamento a partir das palavras e dos
gestos de Jesus que estão em relação com o Templo. Estas palavras e estes gestos atestam que
Jesus se apresentou como a Shekhiná e foi compreendido como sendo a Shekhiná. Isto
permite explicar o conflito que opõe Jesus a certas autoridades judaicas do seu tempo, conflito
que deve ter ido até a acusação de blasfêmia. É porque a Shekhiná estava no Templo que
Jesus se declara maior que o Templo, para dizer, com efeito, que ele é, como Shekhiná, maior
que o Templo onde reside a Shekhiná (Mt 12,6). Vê-se que a fé cristã na Encarnação, apoiada
sobre a Tradição da Igreja e sobre o Novo Testamento, é sustentada pelo ensinamento da
Tradição de Israel sobre o paradoxo da revelação e sobre a Shekhiná conhecida que revela o
Deus desconhecido. No sentido inverso, a Tradição de Israel – para quem a Shekhiná estava
no segundo Templo e que, após a sua destruição, pede na oração o retorno da Shekhiná em
Sion – recebe da fé cristã e do Novo Testamento uma brilhante confirmação. A coerência da
Torá do Deus Uno, vista sob o ponto de vista cristão, esclarece com uma só luz a mensagem
judaica e a mensagem cristã sobre a Shekhiná presente no sofrimento da Sarça, redentora na
Páscoa, mestra no Sinai. Esta coerência, ao mesmo tempo, faz aparecer o Espírito Santo,
inseparável da Shekhiná, que a fez reconhecer ao mesmo tempo que ele procede dela (1Cor
2,3). A novidade cristã, irredutível, certamente, mas sobre um fundo de continuidade, consiste
em ver e a declarar que Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, o Senhor, que ninguém pode
confessar se não for através do Espírito Santo, é a Shekhiná.53
Jesus Cristo, o Filho de Deus é a Shekhiná, confirmando e esclarecendo todas as
manifestações passadas e futuras da Shekhiná no mundo. Ele é também, inseparavelmente, a
Palavra encarnada, o Verbo encarnado do Pai. As fontes judaicas continuam a alimentar em
profundidade a fé cristã na Encarnação.

48
Cf. Mekhilta de-Rabi Ishmael sobre Ex 15,2, “Este é meu Deus”, p. 126-127; T.B. Sotah 30 b; Mekhilta de-
Rabi Ishmael sobre Ex 20, 2, p. 219-220.
49
T.B. Yoma 21 b., Tosafot sobrewe urim we-tummim.
50
T.B. Sanhedrin 11 a; Tosefta Sota 13, 3-4, p. 231.
51
Cf. T.B. Yoma 9 b sobre o “ódio gratuito” entre os judeus.
52
. T.B. Yoma 9 b-10 a; 21 b; Rashi sobre Gn 9,27.
53
Cf. duas experiências do Espírito Santo, na Mekhilta de-Rabi Ishmael sobre Ex 15,1, p. 118-119 e em 1Cr
12,3, que para um cristão se iluminam mutuamente.
12
COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ

7 A Torá Oral e a Torá encarnada54


Entre muitas outras possibilidades, Israel se define como o povo dos servos do Senhor, e
não mais escravos do Faraó,55 ou ainda como o “servo” do qual o profeta Isaías fala56 e a
propósito do qual a Mishná transmite: “Rabi Hananiah ben Aqashia (início do segundo século
de nossa era) disse: ‘O Santo, bendito seja Ele! quis fazer Israel merecer. É por isso que Ele
multiplicou para eles Torá e mandamentos, como está dito’ (Is 42,21): “O Senhor, por causa
de sua justiça, quis fazer engrandecer e resplandecer a Torá”.57 A Torá é dada a Israel para
que a faça engrandecer e resplandecer através do estudo-ensinamento (Talmud Torá) e através
da ação (mandamentos). Este desenvolvimento e esta iluminação não são feitos pela Torá
escrita, fixada e imutável, mas pela Torá oral confiada às pessoas e às comunidades vivas. É
através do povo que a Torá se renova sem cessar. Rabi Eliezer e Rabi Yehoshua, os mestres
mais conservadores, que garantiram a continuidade da Torá antes e depois da destruição do
segundo Templo, não concebiam que pudesse haver um dia sem renovação (hiddush) na casa
de estudo.58 A Torá oral é vivida e transmitida na relação mestre e discípulo, na qual toda
pessoa pode ser o mestre: o pai, a mãe, o menor em Israel como o maior.59 Sem nenhuma
dúvida, um grande mestre como Rabi Eliezer, ainda que pecador, é para os seus discípulos
uma Torá viva.60 O discípulo recebe como Torá não só o que o mestre ensina por suas
palavras, mas também o que ele ensina por suas ações.61 Contudo, nenhum mestre antigo
jamais disse de si mesmo e jamais se disse de um mestre antigo, que ele era a Torá. Não
obstante, nas diferentes correntes hassídicas, oriundas do Rabi Israel Baal Shem Tov (1700-
1760), se vê o status do Tsadiq, do chefe da comunidade, se elevar, segundo as diferentes
dinastias, a um grau que já faz falar da “encarnação viva da Torá” (living incarnation of the
Torah) e que não deixa de inquietar alguns eruditos judeus.62 Um ponto extremo é atingido
pelo Rav Nahman de Bratslav (1772-1811), neto de Baal Shem Tov, que dizia do “Justo
(Tsadiq) da geração”, pensando em si mesmo: “Quando se fala da Torá oral ou quando se fala
do ‘Justo da própria geração’, trata-se inteiramente de uma só e mesma coisa, pois o essencial
da Torá oral depende do ‘Justo da geração’. E seguramente o Discípulo do Sábio é em si

54
Esta última parte de minha exposição é aquela que mais tenho no coração e aquela pela qual eu devo tomar o
risco de parecer simplista, ingênuo ou arrogante. Me faltou tempo para consultar os amigos que me encorajaram
a escrever estas linhas. Se Deus quiser, eu corrigirei e complementarei o que proponho hoje levando em conta a
sua reflexão e seus trabalhos que já muito me ajudaram.
55
T.J. Pesahim 5,5, 32 c.
56
Is 41,8-9; 42, 1.19; 43,10; 44, 1-2.21; 49,3.
57
M. Makkot 3,16. É razoável pensar que “sua justiça’ visa a justiça do “servo” (Israel).
58
Mishna Yadayim 4,3; T.B. Hagigah 3 a.
59
Sifre sobre Dt 11,13, p. 86. Cf., por outro lado, Rashi (1040-1105) sobre T.B. Shabat 105 b, le-sefer Torá she-
nisraf: “Aquele que vê um livro da Torá destruído pelo fogo deve rasgar (sua veste) ... É preciso agir do mesmo
modo quando uma alma de Israel for levada (pela morte), pois não há ninguém em Israel que esteja vazio de
Torá e de mandamentos”. É através da relação “mestre-discípulo” que se mantém a continuidade da Torá. Cf.
meu artigo: “Voies de la continuité juive-Aspects de la relation maître-disciple...”, RSR 66, 1978, p. 489-511,
publicado no primeiro volume do livro À escuta de Israel, na Igreja, cap.2 [nota tradutor].
60
T.B. Sanhedrin 101 a-b; ver também o que Rabi Eliezer dizia de si mesmo em T.B. Sanhedrin 68 a.
61
T.B. Berakhot 62 a; ver também Sefat Emet (Rabi Yehudad Arieh Leib Alter de Ger, 1847-1905), Shavuot,
423: “a ação dos Justos é Torá”.
62
Cf. S. Schechter, “The Chasidim”, em Studies in Judaism, First Series, Filadélfia: 1945, p. 1-45; G.
Schollem, Les grands courants..., p. 362-364; Major Trends in Jewish Mysticism, New York: 1946, p. 344;
S.H. Dresner, The Zaddik, New York, 1974, p. 123 e p. 277, nota 26.
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mesmo a Torá... (ha-tamid hakham hu be-atsmo ha-Torah)”.63 O Rav Nathan de Nemirov


(1780-1845), discípulo de Rav Nahman, dizia de seu mestre: “Sua intenção (de Rav Nahman)
é a de que recebêssemos as suas santas palavras na simplicidade, de tal modo que
observássemos e a fizéssemos e que cumpríssemos todas as palavras de sua Torá com
simplicidade e perfeição (ausência de divisão)”.64 Esta aplicação a Rav Nahman de fórmulas
que visam Deus na oração litúrgica, na segunda bênção antes do Shemá Israel da manhã, vai
muito longe. É possível que os hassidim de Bratslav fossem mais longe ainda no seu apego a
Rav Nahman sem falar do exterior de suas comunidades.65 Eu evidentemente não posso tirar
algum argumento destas realidades hassídicas para justificar a formulação que empreguei, isto
é: Jesus Cristo, em sua Pessoa, é a Torá. Porém eu reconheço que ela me sugeriu através
daquela de Rav Nahman: “O Discípulo do Sábio é em si mesmo a Torá”.
Eu gostaria de não justificar esta fórmula, mas sim de propô-la como preferida às outras.
Poder-se-ia pensar na fórmula mais simples: Jesus Cristo é a Torá, mas ocorreria duas
dificuldades: a primeira seria que nem a palavra Torá, nem a palavra “Palavra de Deus”, nem
a palavra “Verbo de Deus”, que são equivalentes, aparecem nos Símbolos da fé, a segunda
dificuldade seria que a palavra Torá é imprecisa.
Tratamos primeiramente da primeira dificuldade. Jesus Cristo, que eu denomino na
fórmula, é o Jesus Cristo da fé cristã, aquele do qual o credo de Nicéia-Constantinopla diz:
“Ele desceu do céu... Se fez carne na Virgem Maria”. Por outro lado, eu vejo como o
Catecismo da Igreja Católica precisa o que é a Encarnação: “Retomando a expressão de São
João (“O Verbo se fez carne”, Jo 1,14), a Igreja denomina ‘Encarnação’ o fato de que o Filho
de Deus tenha assumido uma natureza humana para cumprir nela a nossa salvação”.66 Disto
advém que o Jesus Cristo da fé cristã é o Verbo de Deus encarnado, a Palavra de Deus
encarnada, a Torá encarnada. Eu então tenho direito de atribuir a Torá a Jesus Cristo. Mas
estritamente falando, trata-se da Torá encarnada. Tenho o direito de identificar a Torá
encarnada e a Torá simplesmente?
A segunda dificuldade vem de que as duas fórmulas, “Torá” e “Torá encarnada”, não
são exatamente equivalentes. Se com efeito, sem nenhuma dúvida, Jesus Cristo é o Verbo
encarnado ou a Torá encarnada, ele necessariamente não é a Torá, que talvez seja – ou que é
certamente – mais amplo que a Torá encarnada. Necessário é então renunciar ao Verbo e falar
preferencialmente do Filho? Este teria a vantagem por ser o linguajar dos símbolos da fé. Nós
teríamos então: “Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez homem, é a Torá encarnada”. Mas
esta fórmula continua difícil, porque ela não esclarece o elo que existe entre o Filho de Deus e
a Torá (encarnada ou não).
Dificuldade por dificuldade, eu voltarei então à fórmula: “Jesus Cristo, o Verbo
encarnado, é a Torá”. Porém ela conserva o inconveniente de manter a dificuldade vindo da
imprecisão da palavra Torá encarnada e/ou Torá não encarnada?
Para sair do impasse, eu primeiramente proporia: “Jesus Cristo, o Verbo encarnado, é
em si mesmo (be-atsmo) a Torá”. Eu me inspiro aqui na declaração do Rav Nahman de

63
Liqutey Moharan I, § 207, 112 d.
64
Sihot ha-Ran, § 131.
65
O “segredo” (sod) e a prática do segredo são mantidos na tradição de Bratslav. Cf. M. Piekarz, Studies in
Braslav Hasidism (em hebraico), Jerusalém: Bialik Institute, 1972, p. 10-16.
66
Catecismo da Igreja Católica, § 461.
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Bratslav: “O Discípulo do Sábio é em si mesmo (be-atsmo) a Torá”. Eu não sei exatamente o


que o Rav Nahman entendia por “em si mesmo” (be-atsmo). Eu penso que isto poderia ser:
“no mais profundo do seu ser”. Com uma evidente intenção cristã, eu tomo a sua fórmula
modificando-a: eu compreendo “em si mesmo” como o equivalente de “em sua pessoa”, então
eu proponho: Jesus, em Sua Pessoa (como Filho do Pai) é a Torá. Por certo ele é a Torá
encarnada, a Torá limitada, mas esta Torá é una com a Torá ilimitada que em Deus precede a
criação do mundo e que procede esta criação. Nós encontramos o paradoxo da revelação, o
paradoxo da Shekhiná que, na sua presença, faz conhecer a ausência. A pessoa de Jesus Cristo
é o abismo profundo onde a Torá é, às vezes, no mesmo momento ou no mesmo lugar,
limitada e ilimitada. Jesus Cristo é o Verbo ilimitado que, por amor, se limitou ou se
abreviou. Segundo todos os mestres fariseus, Deus se limitou ao dar a sua Torá a Israel “no
linguajar dos homens”. Segundo Rabi Ishmael, Deus foi mais longe ainda; ele se limitou
falando, na sua Torá, “segundo a linguagem dos homens”.67 Esta visão da Torá está na raiz da
fé cristã na Encarnação. Na humanidade de Jesus, o Verbo encarnado, a Torá é limitada aos
limites da inteligência, da vontade e da memória humanas de Jesus. Mas é através de e na sua
humanidade limitada, frágil, abaixada, humilhada, crucificada, que ele recebe a exaltação
acima de tudo e que realiza a salvação do mundo.68 Como estes limites, na sua Pessoa, abrem
para a salvação universal, eles próprios são abertos e abrem à Torá ilimitada. Semelhante
passagem da Torá limitada à Torá ilimitada é feita em todo judeu, pois cada pessoa em Israel
recebeu do Sinai uma voz e uma luz que são a voz e a luz da Torá.69 A passagem é feita a
fortiori na Pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus, verdadeiro Deus nascido do verdadeiro
Deus. É por sua limitação que ele valoriza a Torá limitada em cada pessoa. É por sua
limitação que ele dá acesso, para cada um, à Torá ilimitada. É na união com a pessoa de Jesus,
a partir do batismo e na eucaristia, que cada cristão pode se tornar com Jesus, na sua Pessoa, a
Torá.
Posso pensar eu que esta convicção cristã lance uma luz sobre o apego dos judeus à
Torá, que é para eles o apego aos mestres e finalmente o apego a Deus? Minha resposta é sim:
do mesmo modo que os judeus me ensinam até onde posso ir, segundo eles, o apego ao mestre
e à Torá, assim o cristão pode ensinar até onde vai seu próprio apego.70 O cristão pode dizer a
Rav Nahman:
É possível que tu te consideras como sendo em ti mesmo a Torá. É possível
que tu digas isto, porque um certo contato com os cristãos e um certo
conhecimento do Novo Testamento te deram a ideia.71 Mas antes eu creio
que tu dizes isto porque o vives na verdade: Em ti mesmo, em tua
humanidade limitada é a Torá ilimitada. O que tu vives, nós cristãos dizemos
que Jesus o vive em sua pessoa. O que tu vives, tu o recebes da Shekhiná que
está em ti, porque o Espírito Santo está sobre ti. O que nós vivemos, nós
cristãos, nós o recebemos do Filho de Deus que é a Shekhiná e a Torá.

67
Sifre sobre Nm 15,31, p. 131.
68
Cf. Fl 2,6-11 e Catecismo § 461.
69
Cf. a Mekhilta de-Rabi Ishmael sobre Ex 20,18, p. 235 e Rashi citado acima.
70
Uma tradição anônima, provavelmente anterior à destruição do segundo Templo, ensina que se apegar aos
Sábios (de Israel) e aos seus discípulos é se apegar a Deus. Cf. Sifre sobre Dt 11,22, p. 114-115. Para um cristão,
se apegar a Jesus Cristo pela fé é ter a vida eterna (Jo 6, 40.47; 11, 25-26) e ver Jesus Cristo é ver o Pai (Jo 14,9).
71
O Rav Nahman passou o último ano de sua vida (1810-1811) em Uman, na Ucrânia perto de Bratslav, onde
encontrou os “maskilim” (judeus “esclarecidos”) leitores do Novo Testamento. Cf. A. Green, Tormented Master,
New York: Schocken Books, 1981, p. 252-266.
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O salto da fé cristã, sobre um fundo de continuidade, consiste em ver no próprio Jesus


Cristo, na Sua Pessoa, a Shekhiná e a Torá. Por sua Encarnação, o Filho de Deus deu a cada
um, através da fé, o meio de se unir a Ele, a possibilidade de se tornar Nele filho no Filho, de
se tornar, cada um em si mesmo, cada um em sua própria pessoa unida à Sua Pessoa, não só
uma Torá viva, mas a Torá. Há no Judaísmo uma fortíssima valorização da comunidade, da
solidariedade, entre as pessoas e as gerações. Se a fé cristã é dom de Deus, que faz dos
cristãos filhos no Filho, ela é bem brilhante para fazer ver o que os judeus provam quando se
ocupam com a Torá. Ela recebe dos Judeus o testemunho da alegria da Torá (simhah shel
Torah). Ela se regozija em viver, em ressonância com a alegria da Torá dos judeus, a alegria
do Espírito santo que faz conhecer Jesus Cristo como Senhor e Filho do Pai que o enviou
(1Cor 12,3; Jo 17,3).

COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO


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I. O Ciclo de Leituras da Torá na Sinagoga


Pe. Fernando Gross
II. Jesus fala com Israel: uma leitura judaica de parábolas de Jesus
Rabino Philippe Haddad
III. Convidados ao banquete nupcial: uma leitura de parábolas nos
Evangelhos e na tradição judaica
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IV. Jubileu de ouro do Diálogo Católico-Judaico: primeiros frutos e novos desafios, 2ª EDIÇÃO
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V. Pai Nosso – Avinu Shebashamayim: uma leitura judaica da oração de Jesus
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VI. As relações entre judeus e cristãos a partir do Evangelho de São João.
Pe. Manoel Miranda, nds
VII. Introdução à leitura judaica da Escritura
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VIII. A Unidade da Trindade: A escuta da tradição de Israel na Igreja.
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IX. Por trás da Escritura. Uma introdução a exegese judaica e cristã
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Irmã Dominique de La Maisonneuve, nds
XI. As Sagradas Escrituras explicadas através da genialidade de Rashi
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XII. À Escuta de Israel, na Igreja. Volume I
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XIII. A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na Mishná
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XIV. O ciclo das festas bíblicas na tradição judaica e cristã (no prelo)
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XV. Uma vida cristã à escuta de Israel (no prelo)
Ir. Pierre Lenhardt, nds
XVI. À Escuta de Israel, na Igreja. Volume II (no prelo)
Ir. Pierre Lenhardt, nds

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