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As fontes judaicas que eu frequento intensamente desde há muitos anos, têm uma
importância vital para o cristão que eu sou. Sem dúvida, gostaria que esta importância fosse
reconhecida por todos os cristãos e que cristãos sempre mais numerosos se engajassem no
estudo das fontes judaicas. Mas não podendo reclamar de uma notoriedade doutoral que eu
não tenho, eu só me apoiarei sobre a minha experiência adquirida em contato com Israel e
com sua Tradição religiosa. Minhas posições pessoais são aquelas de um católico, não que eu
queira através disso me opor a outras confissões cristãs, mas porque eu vejo ser tão claro
como possível, quanto à minha identidade, tratar da importância que têm para mim os estudos
judaicos.
Eu diria então, como católico, que as fontes judaicas, que eu considero, são aquelas que
servem de referência a todos os judeus para emprestar do evangelho de Marcos 7,13 uma
fórmula que me parece oportuna. Com efeito, eu penso que os judeus e o Judaísmo dos quais
a Igreja Católica fala, quando evoca o patrimônio comum ao Judaísmo e ao Cristianismo,
quando ela fala da identidade judaica e da identidade cristã, quando confirma que a Antiga
Aliança jamais foi revogada, só visa e só pode visar como prioridade os judeus e o Judaísmo
que estão numa continuidade farisaica.2 A Igreja Católica, sem dúvida, que assinou em
dezembro de 1993 um acordo fundamental com o Estado de Israel, reconhece que este Estado
representa o povo judeu e por consequência os outros judeus como aqueles que reivindicam a
continuidade farisaica. Porém, é esta continuidade que constitui para o Estado de Israel a
única referência comum a todos os judeus: judeus “religiosos”, ortodoxos, conservadores,
“reconstrucionistas”, liberais, judeus “não religiosos”, secularizados, agnósticos, ateus,
antirreligiosos. Nem os escritos de Spinoza, nem aqueles de Marx ou de Freud, ou outros,
Irmão Pierre Lenhardt, Religioso da Congregação dos Religiosos de Nossa Senhora de Sion (NDS), nasceu em
Strasbourg em 5/11/1927 e faleceu em Paris, no dia 01/07/2019. Mestre em Teologia e Estudos Judaicos. Foi
professor dos Institutos Católicos de Paris e de Lyon, da Escola Bíblica de Jerusalém, do Instituto São Pedro de
Sion-Ratisbonne e do CCDEJ de São Paulo. Especializou-se em línguas bíblicas e em Talmud. Escreveu
diversos artigos e os seguintes livros: À l ́écoute d ́Israël, en Eglise (À escuta de Israel, na Igreja), Paris: Parole
et Silence, Vol. I, 2006 e Vol II, 2009; L U ́ nité de la Trinité: à l é́ coute de la Tradition d Í sraël, en Eglise,
Paris: Parole et Silence, 2011, publicado nesta coleção, em 2019 com o título: A Unidade da Trindade: À escuta
da Tradição de Israel, na Igreja; e sua obra autobiográfica: Une vie chrétienne à l ́écoute d ́Israël (Uma vida
cristã à escuta de Israel), Paris: Parole et Silence, 2020 que será o XV volume da Coleção “Judaísmo e
Cristianismo”.
1
Artigo publicado nos Cahiers Ratisbonne, nº 7, 1999, p. 102-126. Estas linhas retomam e completam meu
artigo “Tradition d’Israel et Nouveau Testament”, BIB (Bulletin d´Information Biblique) nº 46, 1996, p. 11-
15. Elas transformam igualmente o texto de uma conferência dada recentemente a um grupo de cristãos reunidos
em Jerusalém para uma semana de estudos organizada pelo SIDIC de Roma. Eu modifico este título, que se
torna: “The importance of Jewish sources for Christians”. Eu indico através disso a minha intenção de expor
livremente as minhas convicções pessoais. [Nota do tradutor: Este artigo será o sétimo capítulo do livro: Pierre
LENHARDT, À escuta de Israel, na Igreja.Volume II, Coleção “Judaísmo e Cristianismo” nº XVI]. Tradução:
Faustino Tonini, NDS.
2
Eu não creio ser necessário aqui citar, nem mesmo mencionar em detalhe, os documentos da Igreja Católica
que, desde a declaração Nostra Aetate do Concílio Vaticano II (28 outubro 1965) e até aos discursos do papa
quando de sua peregrinação à Terra santa de março de 2000, definem e orientam sua atitude com relação aos
judeus e ao Judaísmo. Eu retomarei mais adiante algumas formulações advindas destes documentos para as
necessidades de minha exposição.
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COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ
ainda que cada um possa apreciar a partir de sua língua, sua cultura e dos seus gostos
literários, não são para mim fontes judaicas. As fontes judaicas, para sim, são, antes de tudo,
aquelas que os mestres fariseus e seus sucessores reconhecem como Palavra de Deus, como
Torá. Eu me apoio sobre o que o profetas Isaías 2,3 desenvolveu: “Pois de Sion vem a Torá e
de Jerusalém a Palavra do Senhor”. Sem dúvida, segundo o profeta, é no fim dos tempos que
as nações dirão isso. Mas para mim, cristão, este fim dos tempos começou com a ressurreição
de Jesus Cristo; eu posso então dizer com ele, e com meus irmãos cristãos da gentilidade, e
com os judeus, que se tornaram cristãos ou não, que de Sion vem a Torá e de Jerusalém a
Palavra do Senhor. Por meu batismo, eu faço parte de uma Igreja que diz com Jesus Cristo,
numa referência ao profeta Isaías, que acabo de citar: “Nós, nós adoramos o que conhecemos,
pois, a salvação vem dos Judeus” (Jo 4,22). Dizendo isto, eu não introduzo separação entre a
Palavra do Senhor, a Torá que vem de Sion, isto é: dos judeus segundo Is 51,16, e Jesus
Cristo que, para mim, na sua Pessoa é a Torá. Eu não separo mais a salvação que vem dos
judeus da salvação que, para mim, vem de Deus por Jesus Cristo, o Messias rebento de Davi.3
Acabo de mencionar que Jesus Cristo, em sua Pessoa, é a Torá. Isto é para mim a
própria realidade, a realidade para a qual aponta a minha exposição e da qual eu me esforçarei
para prestar contas no fim destas linhas.
As fontes judaicas são então para mim a Torá oral e escrita dos fariseus tal como ela é
recebida e transmitida pelos judeus de hoje, tal como eu a recebo deles no interior de minha fé
em Jesus Cristo. Eu especifico que minha fé em Jesus Cristo é esclarecida pelo que
claramente se tornou, ou retornou, o ensinamento comum da Igreja Católica sobre a “Antiga
Aliança que jamais foi revogada”.4 Este ensinamento comum da Igreja exclui também “o
ensinamento do desprezo”, do qual tão bem falou Jules Isaac, como a “teologia da
substituição” que se mantém ainda entre alguns teólogos e exegetas cristãos e contra a qual é
preciso ainda combater a retaguarda. Eu creio então que a única Aliança se tornou a Nova e
Eterna em Jesus Cristo, e que ela não aboliu de modo algum a Antiga Aliança, a Aliança do
Sinai, vivenciada pelos judeus com as suas dimensões de Torá e mandamento (Ex 24,12).5
3
Eu viso aqui décima quinta bênção da Amidá (Oração comunitária) dos dias comuns que amalgama Zc 3,8, Is
11,1 e Jr 33,15. Esta bênção, que liga a salvação de Deus ao rebento de Davi, poderia ser de origem judeu-cristã.
Cf. Y. Liebes, “Who Makes the Horn of Jesus to Flourish”, Immanuel nº 21, Summer 1987, Jerusalém, p. 55-
67. A isto voltarei a propósito do messianismo.
4
Eu me refiro à fórmula empregada pelo papa João Paulo II na sua alocução endereçada às comunidades
judaicas da Alemanha (Mayence, 17 novembro 1980). Esta fórmula foi retomada nas Notas da comissão romana
para as relações religiosas com o Judaísmo (2 junho 1985). Ela foi longamente examinada num penetrante artigo
de M. R. Macina, “Caducité ou irrévocabilité de la primiére Aliance dans le Nouveau Testament?” A
propósito da “fórmula de Mayence”, Istina XLI (1996), p. 347-399. Um exegeta e teólogo luterano alemão
declara a propósito da eleição de Israel estabelecida pela Antiga Aliança: “Uma só proposição fundamental deve
ser feita teologicamente consciente e praticada: a certeza de que Deus mantém a eleição de Israel e sua
predileção por seu povo, mesmo quando este povo disse não a Jesus Cristo, faz parte da fé cristã”. P. Von Der
Osten-Sacken, Katechismus und Siddur, Berlim: Selbstverlag Intitut Kirche um Judentum, 1994, p. 18.
5
CF. acima, capítulo 5. A liturgia judaica (Ofício adicional de Rosh ha-Shaná) ensina que “Deus se lembra da
aliança”, da única aliança que se cumpriu em muitas etapas, desde a aliança com Noé Gn 8,1; 9,9 até a aliança
eterna anunciada por Ezequiel 16,60. Esta aliança se tornou para os cristãos a nova aliança anunciada por
Jeremias 31,31. É o que declara Jesus segundo o evangelho de Lucas (22,20) e a primeira epístola de São Paulo
aos Coríntios 11,25. A Tradição da Igreja dá as palavras de Jesus, na oração eucarística da liturgia latina, uma
versão mais completa: este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna da aliança. Esta versão reúne os
anúncios de Jeremias 31,31 e Ezequiel 16,60; ela manifesta a coerência da única Tradição de Israel e da Igreja
ensinada pela liturgia. Para as duas dimensões, Torá e mandamento (s), cf. Ex 24,12; Dt 30,11-20; 2Rs 17,34;
2Cr 14,3; Ne 9,14 e a Mishna Makkot 3,16 citada mais adiante.
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Todo positivo que o cristão recebe dos judeus, se ele o quer, não pode dispensar de viver com
eles o horror do sofrimento dos inocentes, como também o horror de um sofrimento judeu,
específico e indizível, que não tem mais outro nome possível que a Shoah (a catástrofe). A
escuta cristã do sofrimento universal, do sofrimento dos inocentes, do sofrimento judaico, faz
parte da escuta da Torá e deve existir na base de uma cristologia renovada a partir da Shoah.
Contudo, não se pode ignorar a alegria da Torá (simhah shel Torah), a alegria que os
judeus provam no estudo-ensinamento (talmud) da Torá, na observância dos mandamentos.14
Esta alegria é a alegria de Israel. Sua especificidade é inalienável. Semeada na luz para os
justos e para aqueles que elevam seu coração pelo arrependimento, ela é indezenraizada e não
pode deixar ao sofrimento a última palavra.15 A alegria da Torá é a alegria específica de
Israel. É possível a um gentio, é um fato, prová-la no contato com os judeus. Semelhante
experiência, para um cristão, é inseparável da alegria recebida no batismo no Espírito Santo
(At 13,48-52), alegria de Jesus Cristo, alegria perfeita para aquele em quem Ele permanece
(Jo 15,11).16 Esta alegria é aquela que a Torá perfeita (Torah temimah, Sl 19,8) dá quando se
percebe a coerência que provém de sua Unidade.17
14
Cf. S. Schechter, Some aspects of rabbinic theology, New York: Schocken Books, 1961, Chapter XI, “The
Joy of the Law”, p. 148-169. A mim parece que, sob o ponto de vista judaico, que não se pode se deter no
sofrimento e negar a alegria. Salmo 34, 15 ensina que é preciso conhecer, evocar e denunciar o mal para que ele
não seja mais cometido; também ensina que é preciso fazer o bem, é preciso crer que o bem terá a última palavra
e que trará a felicidade e a alegria. A estrutura servidão-libertação, luto-alegria, felicidade-infelicidade, é aquela
de uma experiência fundamental, comum ao Judaísmo e ao Cristianismo. Para os judeus, ela culmina no luto de
Tishe’ah be-Ab (9 do mês de Ab, dia da destruição do primeiro e segundo Templos), que prepara para a alegria
da Jerusalém reconstruída (Is 66,10). Para os cristãos, que devem com os Judeus e com Jesus chorar a destruição
do Templo, ela culmina na morte de Jesus Cristo que leva à sua ressurreição. A mim parece impossível pensar
que a shoah tenha abolido esta estrutura. Sem dúvida, ela transtorna a maneira pela qual os judeus podem
doravante viver. Ela obriga os cristãos a revisar profundamente a sua maneira de viver o arrependimento
(teshuvah), lembrando-se de que ela é, desde o início, inseparável do Evangelho (Mc 1,15; Lc 24,47).
15
Esta é a mensagem de Kipur, cuja liturgia é aberta pelo Salmo 97,11: “Uma luz é semeada para o justo e para
os corações retos a alegria”.
16
Ver mais adiante: Jesus Cristo é a Presença divina (Shekhiná) no mundo e no coração dos crentes. Espírito
Santo, Shekhiná e alegria são inseparáveis.
17
Jesus Cristo, que é para um cristão a Shekhiná por excelência, não altera em nada as outras manifestações da
Shekhiná no mundo. Cada uma destas manifestações revela o mesmo Deus, Um e Único. A alegria de Jesus
Cristo, perfeita para os cristãos, não implica, portanto, que a alegria da Torá seja menos perfeita para os judeus.
Eu voltarei a isso mais adiante, mas já digo que a alegria de Jesus Cristo, que em sua pessoa é a Torá, é a alegria
da Torá por excelência, una com a alegria da Torá que os judeus conhecem, alegria iluminando a alegria, alegria
iluminada om a alegria da Torá que os judeus conhecem, alegria iluminada pela alegria.
18
Sifre sobre Dt 32,2, p. 339.
4
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abreviado que recapitula e unifica todas as palavras da Torá do Deus Um.19 Na minha
frequência às fontes judaicas só posso partir Dele e só posso chegar a Ele.
19
Cf. H. De Lubac, Exégèse médiévale (Exegese Medieval), Segunda Parte, I, p. 181-197; L’Écriture dans la
Tradition (A Escritura na Tradição), p. 232-246.
20
Gostaria de encontrar algo melhor do que os adjetivos ‘ “analítico” e “sintético” para distinguir os dois
processos.
21
Eu evoco aqui as recomendações feitas pela Igreja Católica nas Orientações e Sugestões da Comissão da Santa
Sé para as relações religiosas com o Judaísmo (01/12/1974), retomadas nas Notas da mesma Comissão
(24/06/1985), “Considerações preliminares”, 3 e 4.
22
Na minha dissertação para a obtenção do mestrado (licença canônica) de teologia, eu assinalei o que me
pareceu errôneo da maneira pela qual H. Urs von Balthasar emprega a noção de “estrutura cristológica de Israel”
para tratar de certos aspectos do Judaísmo. O risco é de projetar sobre o Judaísmo estruturas que só são
imperfeitamente cristológicas, por não dizer, em certos casos, falsamente cristológicas, na medida em que a fé
dos cristãos ainda não tinha chegado à compreensão total da revelação crística. É assim que H. Urs von
Balthazar falsamente julgou o sionismo. Cf.: Einsame Zweisprache, Koln-Olten, Jakob Hegner, 1958, p. 113-
114 e minha dissertação: Conditions de légitimité d’un témoignage Chrétien auprés des juifs (Condições de
legitimidade de um testemunho Cristão junto aos Judeus), ICP, 1970, p. 81 e nota 137, assim como a publicação
alemã desta dissertação: Auftrag und Unmöglichkeit eines legitimen christlichen Zeugnisses gegenüber den
Juden, Berlim, Selbstverlag Institut Kirche und Judentum, 1980, p. 104-105, nota 137.
5
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a minha fé cristã. O grito de alegria Hallelu-Yah, por exemplo, significa para os judeus e para
mim: “Hallelu-Yah! Louvai aquele cujo nome é Yah! (Sl 113,1). “Louvai, servos do Senhor, e
não mais escravos do Faraó!”23 Eu não posso deixar de provar, no contato da alegria pascal
judaica do Hallelu-Yah, a alegria pascal cristã da ressurreição de Jesus Cristo. É assim que as
fontes judaicas esclarecem profundamente a minha fé cristã. Escutar os judeus tais como se
definem me faz descobrir com frequência o que estava latente, até escondido e às vezes até
oculto, na minha vida cristã.
O processo “sintético” não leva necessária e automaticamente a ouvir uma ressonância
cristã. Isto me mantém, como cristão, na obrigação de estudar as fontes judaicas tais como
são, sem relação consciente com a fé cristã. Isto me obriga a aceitar que os judeus, que vivem
destas fontes e que são seus interpretes e utilizadores legítimos e competentes, não creiam em
Jesus Cristo. Isto também me persuade, em todo caso, que Jesus Cristo e o Cristianismo são
mais amplos do que os cristãos disseram até o presente. Porém, quando uma ressonância é
percebida, minha vida cristã recebe uma confirmação alegre que advém mais da evidência do
que da prova.
No lado a lado com outros cristãos e cristãs, irmãs e irmãos de Nossa Senhora de Sion,
colegas professores do Centro Saint Pierre de Sion (Ratisbonne), há muito tempo e
intensamente pratiquei o vai e vem do qual acabo de falar, operando-o para fazer o inventário
do patrimônio comum aos judeus e aos cristãos como a Igreja Católica o pede.24 Eu
apresentarei, em resumo, alguns exemplos para dar uma ideia da riqueza deste patrimônio e
da importância das fontes judaicas a fim de cernir os contornos. Muitos outros exemplos
poderiam ser dados, se estas linhas pudessem se prolongar ao infinito.
Eu preciso que não tratarei da crença judaica e cristã num Messias pessoal. Esta crença
é fundamental, certamente, para um cristão, pois ele crê em Jesus Cristo, isto é: em Jesus
Messias, Messias para os Judeus e para os Gentios. Mas ele não está seguro de que ela faça
parte do patrimônio comum, em razão da grande variedade de opiniões judaicas sobre o
Messias e sobre o messianismo. Sem dúvida há profundas ressonâncias entre o messianismo e
a escatologia ensinadas pela liturgia judaica e o que diz a Igreja de Jesus Cristo (Messias) na
sua oração e na sua teologia.25 Mas uma divergência fundamental impede o funcionamento de
um vai e vem entre Judaísmo e Cristianismo sobre a questão de Jesus Messias, em razão das
diferentes posições quanto à ressurreição. Para os judeus, que não creem na ressurreição de
Jesus, o Jesus dos cristãos, morto na cruz, não pode ser o Messias. Para os cristãos, Jesus
Cristo ressuscitado, porque venceu a morte, pode ser o Messias e o é na verdade malgrado o
23
T.J. Pessahim 5,5 32 c.
24
Notas da Comissão..., “Considerações preliminares” 1 e 3.
25
Cf. acima, capítulo 2: “A Escatologia na liturgia de Israel”. Eu só preciso aqui o ensinamento dado pela
décima quinta bênção da oração comunitária, da qual eu já falei. Esta bênção termina assim: “Bendito és Tu,
Senhor, que faz crescer o chifre da salvação”. Esta fórmula inabitual só se encontra no evangelho de Lucas 1,69.
Outros índices apontam para uma origem judeu-cristã. Tal como é, a bênção corresponde bem à situação dos
cristãos que certamente têm em Jesus Cristo o início real da salvação, mas que pedem que cresça a força (o cifre)
desta salvação. Um pedido análogo é feito pela Igreja para os judeus na oração da Sexta-feira Santa: “Conduzi à
plenitude da redenção o primeiro povo da Aliança”. A Igreja, como Israel, permanece no “ainda não” ainda que
tenha realmente entrado no “agora”. Esta décima quinta bênção poderia ser cristã. As outras bênçãos
«messiânicas» da oração comunitária, seguramente menos próximas do Cristianismo, nada têm que seja
incompatível com a fé cristã e têm um sentido, que através da fé de Israel, sustenta a fé cristã. Todo cristão, seja
ou não de origem judaica, deve valorizar os pedidos da liturgia de israel. Vai da coerência da Torá Una e única.
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retardar das realizações messiânicas que se espera dele. Esta divergência entre judeus e
cristãos não permite então que se possa falar do patrimônio comum sobre a questão do
Messias.
26
Cf. P. Lenhardt e M. Collin, “La Torah orale des pharisiens”, p. 35-42. Cf. igualmente: “À l’origine du
mouvement pharisien, la Tradition orale et la Réssurection”, Congrès de l’ACFEB, Lyon, Août 2000, in: Ph.
Abadie e J.P. Lemonon (ed.), le judaisme à l’aube de l’ère chrétienne. Paris: Lectio Divina 186, Cerf, 2001, p.
123-176. Parece necessário insistir sobre o valor da Tradição como Torá oral, no Judaísmo e no Cristianismo.
Sem querer decidir um debate que permanece ainda delicado entre protestantes e católicos sobre as relações que
existem entre a Tradição e a Escritura, a Igreja Católica declara que “a fé cristã não é “uma religião do Livro”. O
Cristianismo é a religião da “Palavra de Deus”, não de “um verbo escrito e mudo, mas do Verbo encarnado e
vivo” (São Bernardo, Hom. Miss. 4,11)”. Cf. o Catecismo da Igreja Católica § 108 e H. De Lubac, L’Écriture
dans la tradition, p. 246, de onde foi tirada a fórmula do Catecismo. O Judaísmo e o Cristianismo são “religiões
da escuta” à diferença do Islã que é uma “religião do livro”, o que tento precisa no artigo, “L’Unitá di Dio – La
religioni dell’ascolto I-II”, Reggio, Qol 77/78, 1998, p. 2-9; Qol 79, 1999, p. 2-9.
27
Cf. a segunda bênção da Amidah de todos os dias, dita três vezes nos dias comuns, quatro vezes no shabat e
dias de festas, cinco vezes em Kipur. Ver também a oração dos funerais.
28
Mt 22, 29-32 e paralelos.
29
T.B. Sanhedrin 90 b. Advém do debate talmúdico que dois recursos, sobre os três que são apresentados como
os melhores, ensinam a ressurreição a partir da promessa da Terra feita aos pais em Ex 6,4 e Dt 11,21. É esta
promessa que Paulo pensa em At 13,32 2 26,6. Sabe-se assim que a Terra de Israel, não só para os fariseus, mas
também para Jesus (Mt 5,4) e para os primeiros cristãos, simboliza a vida eterna e significa a ressurreição. O
apego dos judeus a esta Terra é exigido pela aliança do Sinai; como esta “antiga aliança jamais foi revogada”, o
elo dos judeus à Terra e sua prática dos andamentos que se relacionam guardam o seu valor de testemunho e de
sua eficácia sacramental na economia cristã. Não admiti-lo do lado cristão seria desconhecer a coerência da Torá
de Moisés, oral e escrita, da qual os judeus vivem; isto seria também atentar contra a coerência do conjunto da
Revelação da qual Jesus é o Mediador e a Plenitude (Vaticano II, Dei Verbum § 2). Cf. meu artigo: “La Terre
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COLEÇÃO JUDAÍSMO E CRISTIANISMO CCDEJ
evidencia que estes recursos escriturários e, então, aquele de Jesus nos Evangelhos, não são
provas, mas “alusões”, “indicações”. É evidente, para quem tem ouvidos para ouvir, que em
matéria de fé e de amor as alusões são mais adequadas e convincentes que as provas.
Observamos o que Lucas, o evangelista não judeu, anotou com precisão a partir de
testemunhos judeus. Ele não diz: “Não tendes lido...” (Mt 22,31; Mc 12,26) mas: “Moisés a
indicou na passagem da Sarça...” (Lc 20,37). Há aqui mais do que uma nuance: não se prova a
ressurreição; o midrash judaico e a boa exegese cristã são feitos na fé para iluminar do
interior. A ressurreição não pode ser recebida por aqueles que não se engajam na vida e na
coerência de uma Palavra de Deus, oral e escrita, que só fala da vida e da ressurreição. A
coerência e a perfeição da Torá não permitem pensar que haja uma só passagem da Torá
escrita que não ensine a ressurreição. Porém não temos a força de tirar este ensinamento por
nossa exegese.30 É ainda Lucas que melhor ‘captou’ a substância ou cerne do midrash
farisiano que Jesus fez ouvir em conhecimento de causa (Lc 20,38): é a experiência do Deus
da vida que faz com que se viva para ele além da morte. Isto se une aos recursos não
escriturários que os sábios de Israel igualmente propõem.31 Estes recursos, como aquele da
mãe dos mártires de Israel, fazem apelo à evidência da vida, muito mais forte que a evidência
da morte.32 Semelhante contexto, dramático como a vida e a morte, faz compreender a
severidade da Tradição que, na Mishná, ameaça “aquele que diz que não há ressurreição dos
mortos”.33 Segundo esta Mishná, aquele que diz isto “não terá parte no mundo a vir (na
ressurreição)”. O Talmud que se surpreende com esta severidade e a discute, mostra
claramente que não se trata de uma condenação, mas de uma ameaça pedagógoca.34 Aquele
que não quer a vida, que não se engaja na comunidade ao serviço da vida, corre o risco de não
receber o que não o interessa. É preciso adverti-lo.
A frequência das fontes judaicas é benfazeja; ela sustenta a fé cristã na ressurreição; ela
permite compreender o gênero literário das ameaças pedagógicas frequentes no ensinamento
de Jesus, por exemplo, aquela de Mc 16,15-16. Estas “ameaças”, quando são mal
interpretadas, na ignorância fundamentalista do seu contexto judaico, puderam e podem ainda
fazer mal a alguns cristãos; elas podem ainda aqui e lá desacreditar a pregação cristã.
O vai e vem empreendido a partir da ressurreição de Jesus Cristo, central para a fé
cristã, permite também constatar que a ressurreição não tem uma importância tão central para
d’Israël, Jerusalém, le Temple, leur valeur pour les juifs et pour les chrétiens”, Cahiers Ratisbonne nº 1,
1996, p. 106-140. Cf. também aquele de A. Avril e E. Passeto, “Parashat Bet-Har (Lv 25-26,2)”, Cahiers
Ratisbonne nº6, 1999, p. 98-145, que esclarece do interior a prática cristã do Jubileu e permite conhecer melhor a
riqueza da tradição de Israel sobre o ano jubilar. (O ano jubilar 5761 do calendário judaico, que começou no dia
29 de setembro de 2000, era um ano sabático).
30
Cf. Rabi Simai em Sifre sobre Dt 32,2, p. 341. Eu reenvio ao meu artigo: “L’exégèse (midrash) de la
Tradition d’Israël, sa grandeur et ses limites”, Cahiers Ratisbonne nº 4-5, 1998, p. 9-43. Como a Escritura
(Torá escrita) é posterior e interior à Tradição (Torá oral), isto determina os limites da Escritura e por
consequência também os limites da exegese. Mas a exegese da Tradição, o midrash, não é de modo algum
diminuído pelo limite que lhe vem de sua posição no interior da Tradição. O midrash é Torá oral; ele tem o
poder de manifestar a unidade e a divindade de toda a Torá (Tradição e Escritura). A experiência do fogo e da
alegria do Sinai atesta este poder, particularmente quando a exegese consegue montar um bom colar com as
pérolas da Escritura. É isto que faz Jesus em Lucas 24, 27.44.
31
T.B. Sanhedrin 90 b-91 a.
32
2Mc 7,22-23.28-29.
33
M. Sanhedrin 10.
34
T.B. Sanhedrin 90 a.
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os judeus. De fato, o elo fundamental que existe entre a Torá oral e ressurreição é talvez
melhor percebido por um cristão do que por um judeu. O testemunho cristão sobre a
ressurreição de Jesus Cristo, esclarecido do interior pela Tradição de Israel, não poderia
estimular uma melhor reflexão aos judeus sobre a ressurreição que eles anunciam ao menos
três vezes por dia em sua oração?
de Deus, princípio de unificação por amor. As bênçãos que envolvem a leitura do Shemá, e
sobretudo aquela que precede imediatamente a leitura, ensinam a Unidade e a unificação. As
interpretações rabínicas de Dt 6,4-5 dão o mesmo ensinamento, magnificamente ilustrado por
Rabi Akiba que morreu mártir por amor pronunciando a palavra “Um” (Ehad) do Shemá
Israel.37
Porém, evidentemente, é preciso fazer mais do que evitar os erros. É preciso ensinar a
Unidade. Os melhores entre os judeus merecem ser chamados os Procuradores da Unidade
(Dorshey ha-Yihud). A vida cristã deveria ser, a exemplo dos judeus e ao apelo de Jesus
Cristo, a procura e a imitação do Deus Uno. Os cristãos deveriam ser os Procuradores da
Unidade-Trindade e um resultado desta procura deveria ser a Unidade dos cristãos. Este
resultado só pode ser obtido no contato com Israel e com as fontes judaicas. A credibilidade
da Igreja no diálogo interreligioso depende da intensidade de semelhante contato. O
testemunho cristão sobre Deus deve se apoiar sobre o testemunho de Israel ouvido e recebido
no coração da Igreja.
37
T.B. Berakhot 61 b.
38
Cf. Pierre Lenhardt, “A Tradição de Israel sobre a Presença Divina (Shekhiná) no Templo...”, em: À
escuta de Israel, na Igreja, Vol. II, cap. 4.
39
Cf. Is 45,14-15 magnificamente exposto por Pascal, Opuscules, Terceira Parte, IV 2, Ed. Brunschvicg, Paris,
Hachette, 1968, p. 214-215; Pensées, Ed. Brunscchvicg § 194, 242, 585. Cf. também o belo estudo de J. Briend,
“Le Dieu caché” (O Deus escondido), em Dieu dans l’Écriture, Paris, Cerf, 1992, p. 91-112.
40
Cf. H. de Lubac, Paradoxes, suivi de Nouveaux Paradoxes, Paris, Seuil, 1959. A fórmula “paradoxo dos
paradoxos”, emprestada por H. de Lubac aos Padres da Igreja, aparece em enxergo no seu livro.
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ouvidos por Ezequiel (Ez 3,12): “Bendita é a Glória (KaBoD) do Senhor, do Seu Lugar (mi-
MeQoMo)!” O texto da oração que une estas duas citações e o Talmud fazem ouvir
claramente a mensagem.41 A Glória imanente, presente, conhecida no lugar conhecido do
Templo (e da comunidade que une a liturgia terrestre à liturgia celeste), aponta para a sua
origem transcendente, para o Deus escondido, ausente, para o Deus desconhecido que se
manifesta (a partir) do Seu Lugar (mi-MeQoMo) desconhecido. A liturgia da Igreja, em todas
as suas expressões, declarou seu elo com a liturgia celeste e a proclamação dos Serafins (Is
6,3). Ela não reteve, talvez desconheceu, o complemento pedagógico trazido pelos Seres
vivos da visão de Ezequiel (Ez 3,12). Um só traço deste complemento se encontra na oração
coletada pelas Constituições Apostólicas.42 A oração eucarística da Igreja de Jerusalém não
conhecia o complemento, o que parece indicar que a Igreja, mesmo lá aonde poderia se sentir
mais próxima de Israel, estava desligada das fontes judaicas desde o ano 386, terminus ad
quem da quinta Catequese mistagógica de Cirilo de Jerusalém que conhecia a liturgia de São
Tiago.43
Hoje é indispensável ouvir a mensagem das fontes judaicas na sua plenitude. A partir da
Glória, da qual a Bíblia fala, é preciso encontrar todas as tradições bíblicas e rabínicas sobre a
Shekhiná, sobre a vontade de Deus em habitar no mundo, sobre a sua ação de habitar no
mundo e sobre o resultado desta ação, sobre a Presença de Deus no mundo. Deus está
presente em todo lugar no seu mundo por sua “criação contínua” ensinada pela oração
litúrgica de Israel,44 pelos teólogos judeus e cristãos, recentemente ainda pela constituição Dei
Verbum do Concílio Vaticano II.45 Esta presença de Deus criador em todo lugar de sua
criação foi bem afirmada por Raban Gamaliel, neto de Gamaliel, o mestre de São Paulo. Ele
dizia: “Nenhum lugar sobre a terra está vazio da Shekhiná”.46 Mas Deus, que ama Israel e
todos os homens, quer habitar por sua Shekhiná em todos os lugares e em todos os momentos
em que ele quer ser encontrado pelos homens para lhes falar e os salvar: por Moisés na Sarça
(Ex 3), por Israel no Egito na noite de Páscoa (Ex 12), na passagem do mar vermelho (Ex 14 e
15), no dom da Torá no Monte Sinai (Ex 24,10; Dt 5,24), na Tenda de Reunião (Ex 25, 8.22;
Lv 1,1; 16,1,16), no Templo de Jerusalém (1Rs 8,10-13; Is 6,3; Ez 3,12); por toda a
comunidade e por toda pessoa que invoca o seu Nome (Ex 20,24).47 A Shekhiná se manifesta
sob aspectos diferentes, mas aqueles que a veem reconhecem que é sempre o mesmo Deus, o
41
O texto da ligação mais explicita se encontra na Qedushah Rabbah, terceira bênção do ofício adicional do
shabat e festas; o Talmud, T.B. Hagigah 13 b, diz simplesmente (Ez 3,12): “De seu lugar, conclui-se então que
este lugar é desconhecido”.
42
Constitutions Apostoliques, Livre VII 35,3, SC 336, Paris: Cerf, 1987, p. 77.
43
A. Tarby, La prière eucharistique de l’Eglise de Jérusalem, l’anaphore grecque de Saint Jacques de
Jerusalem, Paris: Beauchesne, 1972, p. 49-55. Eu assinalo aqui o conhecimento que São João Crisóstomo tinha
do complemento trazido por Ez 3,12 a Is 6,3. Cf. Sur l’incompréhensibilité de Dieu, Homilia I, 3092-320, SG
28 bis, Paris: Cerf, 1970, p. 127-129. Ainda que a mensagem dada por esta complementaridade permanece válida
e atual na economia cristã, parece permanecer desconhecida. Cf., por exemplo, E. Peterson, Le livre des anges
(O livro dos anjos), Genova: Ad solem, 1996 (1935), p. 55-56; ver também L. Bouyer, La vie de la liturgie (A
vida na Liturgia), Paris: Cerf, 1956, p. 170-173.
44
Cf. a bênção Yotser que precede a leitura do Shemá da manhã.
45
Dei Verbum, § 3, magnificamente comentada sobre este ponto por H. de Lubac, La Revélation Divine (A
Revelação Divina), Paris: Cerf, 1983, p. 63-29.
46
Pesiqta de-Rav Kahana, Pisq. 1, p. 4.
47
Cf. Mekhilta de Rabi Ishmael sobre Ex 20,24, p. 243 e Rashi ad locum; M. Abot 3, 2.6; T.B. Berakhot 6 a.
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Deus de Israel, Uno e Único, que se revela.48 Nenhum aspecto da Shekhiná ocasiona a
“diminuição” de um outro aspecto. Com efeito, Deus não se divide, nem se “poupa”, nem se
“dá em conta gotas”, mas pode ocorrer que a Shekhiná seja “menos eficaz” se Israel não for
digno da sua ação. Era, o que parece, o caso para a Shekhiná no segundo Templo.49 A
ineficácia vinha de Israel, da má geração (Mt 12,39), incapaz de conhecer os sinais dos
tempos (Mt 16,3), da “geração que não merece” que a Shekhiná, ou o Espírito Santo, repouse
sobre ela.50 Semelhante situação corresponde ao fim da época do segundo Templo, julgado
tão duramente pelos mestres fariseus como por Jesus nos evangelhos.51 Mas a eficácia
reduzida da Shekhiná não é a sua ausência. Não se pode tirar argumento de uma tradição que
afirma semelhante ausência.52 Esta tradição não pode ir contra a evidência que advém da
liturgia do segundo Templo até a sua destruição: Sacrifícios, Festas de peregrinação, Serviço
do Sumo Sacerdote em Kipur (Seder Abodah) retomados na liturgia sinagogal de hoje. Deve-
se acrescentar a isto a evidência fornecida pelo Novo Testamento a partir das palavras e dos
gestos de Jesus que estão em relação com o Templo. Estas palavras e estes gestos atestam que
Jesus se apresentou como a Shekhiná e foi compreendido como sendo a Shekhiná. Isto
permite explicar o conflito que opõe Jesus a certas autoridades judaicas do seu tempo, conflito
que deve ter ido até a acusação de blasfêmia. É porque a Shekhiná estava no Templo que
Jesus se declara maior que o Templo, para dizer, com efeito, que ele é, como Shekhiná, maior
que o Templo onde reside a Shekhiná (Mt 12,6). Vê-se que a fé cristã na Encarnação, apoiada
sobre a Tradição da Igreja e sobre o Novo Testamento, é sustentada pelo ensinamento da
Tradição de Israel sobre o paradoxo da revelação e sobre a Shekhiná conhecida que revela o
Deus desconhecido. No sentido inverso, a Tradição de Israel – para quem a Shekhiná estava
no segundo Templo e que, após a sua destruição, pede na oração o retorno da Shekhiná em
Sion – recebe da fé cristã e do Novo Testamento uma brilhante confirmação. A coerência da
Torá do Deus Uno, vista sob o ponto de vista cristão, esclarece com uma só luz a mensagem
judaica e a mensagem cristã sobre a Shekhiná presente no sofrimento da Sarça, redentora na
Páscoa, mestra no Sinai. Esta coerência, ao mesmo tempo, faz aparecer o Espírito Santo,
inseparável da Shekhiná, que a fez reconhecer ao mesmo tempo que ele procede dela (1Cor
2,3). A novidade cristã, irredutível, certamente, mas sobre um fundo de continuidade, consiste
em ver e a declarar que Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, o Senhor, que ninguém pode
confessar se não for através do Espírito Santo, é a Shekhiná.53
Jesus Cristo, o Filho de Deus é a Shekhiná, confirmando e esclarecendo todas as
manifestações passadas e futuras da Shekhiná no mundo. Ele é também, inseparavelmente, a
Palavra encarnada, o Verbo encarnado do Pai. As fontes judaicas continuam a alimentar em
profundidade a fé cristã na Encarnação.
48
Cf. Mekhilta de-Rabi Ishmael sobre Ex 15,2, “Este é meu Deus”, p. 126-127; T.B. Sotah 30 b; Mekhilta de-
Rabi Ishmael sobre Ex 20, 2, p. 219-220.
49
T.B. Yoma 21 b., Tosafot sobrewe urim we-tummim.
50
T.B. Sanhedrin 11 a; Tosefta Sota 13, 3-4, p. 231.
51
Cf. T.B. Yoma 9 b sobre o “ódio gratuito” entre os judeus.
52
. T.B. Yoma 9 b-10 a; 21 b; Rashi sobre Gn 9,27.
53
Cf. duas experiências do Espírito Santo, na Mekhilta de-Rabi Ishmael sobre Ex 15,1, p. 118-119 e em 1Cr
12,3, que para um cristão se iluminam mutuamente.
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54
Esta última parte de minha exposição é aquela que mais tenho no coração e aquela pela qual eu devo tomar o
risco de parecer simplista, ingênuo ou arrogante. Me faltou tempo para consultar os amigos que me encorajaram
a escrever estas linhas. Se Deus quiser, eu corrigirei e complementarei o que proponho hoje levando em conta a
sua reflexão e seus trabalhos que já muito me ajudaram.
55
T.J. Pesahim 5,5, 32 c.
56
Is 41,8-9; 42, 1.19; 43,10; 44, 1-2.21; 49,3.
57
M. Makkot 3,16. É razoável pensar que “sua justiça’ visa a justiça do “servo” (Israel).
58
Mishna Yadayim 4,3; T.B. Hagigah 3 a.
59
Sifre sobre Dt 11,13, p. 86. Cf., por outro lado, Rashi (1040-1105) sobre T.B. Shabat 105 b, le-sefer Torá she-
nisraf: “Aquele que vê um livro da Torá destruído pelo fogo deve rasgar (sua veste) ... É preciso agir do mesmo
modo quando uma alma de Israel for levada (pela morte), pois não há ninguém em Israel que esteja vazio de
Torá e de mandamentos”. É através da relação “mestre-discípulo” que se mantém a continuidade da Torá. Cf.
meu artigo: “Voies de la continuité juive-Aspects de la relation maître-disciple...”, RSR 66, 1978, p. 489-511,
publicado no primeiro volume do livro À escuta de Israel, na Igreja, cap.2 [nota tradutor].
60
T.B. Sanhedrin 101 a-b; ver também o que Rabi Eliezer dizia de si mesmo em T.B. Sanhedrin 68 a.
61
T.B. Berakhot 62 a; ver também Sefat Emet (Rabi Yehudad Arieh Leib Alter de Ger, 1847-1905), Shavuot,
423: “a ação dos Justos é Torá”.
62
Cf. S. Schechter, “The Chasidim”, em Studies in Judaism, First Series, Filadélfia: 1945, p. 1-45; G.
Schollem, Les grands courants..., p. 362-364; Major Trends in Jewish Mysticism, New York: 1946, p. 344;
S.H. Dresner, The Zaddik, New York, 1974, p. 123 e p. 277, nota 26.
13
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63
Liqutey Moharan I, § 207, 112 d.
64
Sihot ha-Ran, § 131.
65
O “segredo” (sod) e a prática do segredo são mantidos na tradição de Bratslav. Cf. M. Piekarz, Studies in
Braslav Hasidism (em hebraico), Jerusalém: Bialik Institute, 1972, p. 10-16.
66
Catecismo da Igreja Católica, § 461.
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67
Sifre sobre Nm 15,31, p. 131.
68
Cf. Fl 2,6-11 e Catecismo § 461.
69
Cf. a Mekhilta de-Rabi Ishmael sobre Ex 20,18, p. 235 e Rashi citado acima.
70
Uma tradição anônima, provavelmente anterior à destruição do segundo Templo, ensina que se apegar aos
Sábios (de Israel) e aos seus discípulos é se apegar a Deus. Cf. Sifre sobre Dt 11,22, p. 114-115. Para um cristão,
se apegar a Jesus Cristo pela fé é ter a vida eterna (Jo 6, 40.47; 11, 25-26) e ver Jesus Cristo é ver o Pai (Jo 14,9).
71
O Rav Nahman passou o último ano de sua vida (1810-1811) em Uman, na Ucrânia perto de Bratslav, onde
encontrou os “maskilim” (judeus “esclarecidos”) leitores do Novo Testamento. Cf. A. Green, Tormented Master,
New York: Schocken Books, 1981, p. 252-266.
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