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REFÚGIO EM TRÂNSITO:
Um Estudo sobre a Política de Interiorização para Refugiados Venezuelanos em
Montes Claros (MG) entre 2019 e 2021
Montes Claros – MG
Agosto de 2022
DANIEL ROCHA SILVA
REFÚGIO EM TRÂNSITO:
Um Estudo sobre a Política de Interiorização para Refugiados Venezuelanos em
Montes Claros (MG) entre 2019 e 2021
Montes Claros – MG
Agosto de 2022
Silva, Daniel Rocha.
_____ Refúgio em trânsito [manuscrito]: um estudo sobre a política de interiorização
para refugiados venezuelanos em Montes Claros (MG) entre 2019 e 2021 /
Daniel Rocha Silva – Montes Claros, 2022.
174 f.: il.
Bibliografia: f. 155-165.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes,
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social/PPGDS, 2022.
REFÚGIO EM TRÂNSITO:
Um Estudo sobre a Política de Interiorização para Refugiados Venezuelanos em
Montes Claros (MG) entre 2019 e 2021
MEMBROS DA BANCA:
_______________________________________________________
Dra. Andréa Maria Narciso Rocha de Paula (UNIMONTES)
_______________________________________________________
Dra. Yetzy Urimar Villarroel Peña (Universidad Simón Bolívar)
_______________________________________________________
Dra. Felisa Cançado Anaya (UNIMONTES)
Montes Claros – MG
Agosto de 2022
Às pessoas refugiadas e migrantes,
A quem proporciona acolhimento,
Ao meu pai que já partiu,
À minha mãe e à minha família,
Aos amigos que tanto amo,
Aos que torcem por mim.
AGRADECIMENTOS
O encerramento de uma etapa sempre ocorre com muita reflexão. A gratidão surge,
dessa forma, como consequência intrínseca da lembrança, quando somos capazes de
recordarmos o caminho percorrido e as companhias que o tornaram mais leve ou transitável.
Os últimos dois anos e meio foram divisores de água em minha vida, porque eles separam o
jovem que sonhou em cursar um Mestrado, algum dia, do jovem que se torna Mestre hoje.
Quando eu cheguei ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social
(PPGDS), na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), eu tinha certeza de
uma série de coisas, sobre as quais, atualmente, eu saio cheio de dúvidas. Imagino que o
programa tenha alcançado o seu objetivo de aguçar a minha criticidade, gerar questionamentos,
aprofundar os meus estudos e faz que eu deseje transformar realidades.
O processo de escrita dissertativa foi o oposto de tudo que eu imaginava que seria.
Eu, que fiz Direito por acreditar ter bom domínio sobre as palavras, encontrei-me invariáveis
vezes sem saber o que dizer ou como transcrever aquilo que, muitas vezes, tirava-me o sono.
Minha maior lição, ao longo desta pós-graduação stricto sensu foi que se precisa de tempo para
maturar as ideias e costurá-las em um texto.
Muitas pessoas e instituições contribuíram para a minha trajetória, e eu não poderia
deixar de agradecê-las nesta ocasião. Ressalto que o contexto de desenvolvimento desta
pesquisa de longe retrata a situação ideal e adequada para o trabalho que me propus a fazer. A
pandemia do novo coronavírus surpreendeu a todos nós, fazendo que nos adaptássemos a uma
realidade sem precedentes. Isso também faz que apreciemos, com maior intensidade, quem
soube nos dar as mãos nos momentos de aflição.
Desse modo, agradeço, inicialmente, à minha orientadora e ex-coordenadora do
PPGDS, Professora Andréa Narciso, que soube trazer calma e aconchego quando pairava
incerteza e desânimo, frente a todos os contextos que uma pós-graduação stricto sensu pode
apresentar, além (e não menos relevante) de um cenário caótico político-pandêmico. Sem você,
este trabalho não teria sido possível. Muito obrigado!
Estendo os meus agradecimentos aos demais discentes e docentes do PPGDS, mais
particularmente à Professora Mônica Amorim, ex-vice-coordenadora do programa, que, nas
suas aulas ou em reuniões, inspirava dedicação e zelo com todos. Agradeço, também, às
Professoras Felisa Anaya e Maria da Luz Alvez, que contribuíram grandemente para o
aprimoramento deste trabalho de pesquisa, com a avaliação minuciosa em exame de
qualificação.
Agradeço, também, à Professora Yetzy Peña, que tanto contribuiu para que esta
pesquisa fosse realizada, trazendo perspectivas de uma pessoa nativa da Venezuela e fazendo
que eu me questionasse sobre informações pré-estabelecidas sobre o meu objeto de pesquisa.
Muitíssimo obrigado por todo carinho e atenção durante nossas conversas!
Aos colegas que se tornaram amigos, pelo caminho: Eduardo, Fernanda, Mariana,
Natália, Thaísa, Thaís, Yandra. Muito obrigado por cada conversa e partilha, que foram
indispensáveis não somente para a construção do meu trabalho, mas para a minha formação
humana. Seguiremos juntos!
Aos amigos de longa data, que sempre torceram por mim e que me conhecem com
profundidade: Amanna, Alcilene, Fernanda, Karol, Kátia, Luanne, Luciana, Luiz, Ramone,
Ruth, Rachel, Thaís e Samuel. Obrigado por cada palavra de apoio e pela escuta acolhedora
durante todo esse percurso “resvaloso”, como diria Guimarães Rosa.
Agradeço, de coração, a Heloísa Guimarães, que foi minha estrela-guia em uma
estrada escura e sombria. Você foi capaz de abrir os meus olhos para uma realidade que eu
apenas conhecia na teoria, agregando mais sentido para a minha prática com algo que faz parte
do seu dia a dia. Serei eternamente grato por todas as nossas trocas e convívio.
Sou muito grato aos refugiados venezuelanos indígenas e não indígenas que me
emprestaram as suas histórias e vivências, por mais difíceis que possam ser, possibilitando a
realização desta pesquisa. Espero que este trabalho contribua para a melhoria da experiência de
refúgio de vocês e de outras pessoas que são obrigadas a deixarem seus lugares de origem e
buscar acolhimento no Brasil.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisa Sobre Comunidades Tradicionais do Rio São
Francisco, OPARÁ-MUTUM, os meus sinceros agradecimentos por cada diálogo ou discussão,
por motivar o meu fazer científico e tornar-me um pesquisador.
Agradeço ao PPGDS pelo acolhimento, assim como à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES pelo auxílio financeiro que tornou
viável a realização desta pesquisa e de tantas outras.
Por fim, mas não menos importante, agradeço à minha família por acreditar em mim
e por ter criado condições para que fosse possível a minha educação. Sou grato a Deus por ter
permitido que este sonho se realizasse, com fé e muito trabalho duro.
Obrigado a todos que, de algum modo, me ajudaram chegar até aqui!
"ninguém sai de casa a menos que
casa seja a boca de um tubarão
você só corre para a fronteira
quando vê a cidade inteira correndo também
[...]
você só sai de casa
quando a casa não te deixa ficar.
[...]
ninguém deixa sua casa até que casa seja uma
voz suada no seu ouvido
dizendo – saia
fuja de mim agora
eu não sei o que eu me tornei
mas eu sei que qualquer lugar
é mais seguro que aqui."
Esta dissertação tem como objetivo central apresentar uma análise sobre a política de
interiorização do governo brasileiro para os refugiados venezuelanos em Montes Claros (MG),
entre os anos de 2019 e 2021. Buscou-se compreender os instrumentos de direito internacional
e interno que preveem proteção jurídica aos refugiados, identificar os fluxos migratórios
venezuelanos e explorar o fluxo em direção ao Brasil, e, na esfera local, descrever as ações de
acolhimento a esses refugiados realizadas em Montes Claros (MG), no âmbito da denominada
“Operação Acolhida”, com coordenação do Governo Federal, através do Gabinete da Casa
Civil. Para tanto, efetuou-se uma pesquisa quali-quantitativa, por meio da pesquisa
bibliográfica, documental e de campo, em um estudo de caso. O estudo foi realizado por meio
de entrevistas e de grupos focais com refugiados venezuelanos, ONGs e voluntários em sua
acolhida, além da observação participante na sociedade local e na Rede Acolhida Warao Montes
Claros.
This dissertation aims to present an analysis of the Brazilian government’s interiorization policy
for Venezuelan refugees in Montes Claros (MG), between the years 2019 and 2021. We sought
to understand the instruments of international and domestic law that provide legal protection to
refugees, identify Venezuelan migration flows and explore the flow towards Brazil, and, at the
local level, describe the actions of reception of these refugees carried out in Montes Claros
(MG), within the scope of the so-called "Operation Shelter", coordinated by the Federal
Government, through the Office of the Civil House. Therefore, a qualitative and quantitative
research was carried out, through bibliographical, documentary and field research, in a case
study. The study was conducted through interviews and focus groups with Venezuelan
refugees, NGOs and volunteers in their welcome, as well as participant observation in local
society and in the Montes Claros Warao Welcoming Network.
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE FOTOS
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 05
INTRODUÇÃO
1
Mais informações em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2021/04/operacao-acolhida-
interioriza-mais-de-50-mil-venezuelanos-para-comecarem-uma-vida-nova-no-brasil>. Acesso em: 20/09/2021
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foi a seguinte: “A política de interiorização do governo brasileiro acontece de que forma e com
quais consequências aos refugiados venezuelanos em Montes Claros (MG) entre 2019 e 2021?”.
Assim, os objetivos foram delimitados com base nesse questionamento. Figura-se
o objetivo geral deste trabalho no campo de pesquisa exploratória, sendo ele: analisar as
realidades vividas pelos refugiados venezuelanos que foram realocados em Montes Claros –
MG, entre 2019 e 2021, por meio da política de interiorização do governo brasileiro. Este é um
tema incipiente na comunidade científica, com escassez ou mesmo inexistência – até onde se
observa – de pesquisas desenvolvidas sobre esse eixo temático na esfera local, considerando-se
a contemporaneidade da política de interiorização de refugiados venezuelanos e a chegada
destes ao Município de Montes Claros (MG).
Desse modo, a pesquisa que se faz tem como objetivos específicos: 1) Compreender
o contexto de crise migratória na Venezuela e sua incidência sobre o território brasileiro; 2)
Identificar os instrumentos internacionais e nacionais de proteção aos refugiados; 3) Analisar a
política de interiorização implantada pelo governo brasileiro; 4) Investigar a abrangência da
política de interiorização para os venezuelanos indígenas; 5) Descrever as ações de
acolhimentos aos venezuelanos em Montes Claros (MG).
Para Gil (2019), a pesquisa é um “procedimento racional e sistemático que tem
como objetivo proporcionar respostas aos problemas que são propostos” (p. 17). Entende-se a
função da pesquisa enquanto resposta a algo, nesse caso, um problema, ao qual não se possui
suficientemente dados que apaziguem determinados questionamentos. Para tal fim, métodos,
assim como técnicas e demais procedimentos científicos se farão necessários na construção do
conhecimento que o autor tratou de nomear “concurso dos conhecimentos disponíveis” (GIL,
2019, p. 17).
Gil (2019) interpreta duas correntes principais que nos levam a pesquisar, sendo a
corrente que reflete “razões de ordem intelectual” a primeira a ser exposta pelo pensador –
aquela em que persiste o desejo de conhecer por uma satisfação pessoal –, e outra seria aquela
das “razões de ordem prática” – em que prevalece a vontade de tornar algo mais eficaz do que
venha a ser. Não se pode, porém, excluir um grupo do outro, entendendo-se a possibilidade de
coexistirem uma vez que a ciência perspectiva ambos os objetivos por esses grupos delineados.
A metodologia qualitativa, que conduz esta pesquisa, segundo Martins (2004, p.
292), pauta-se na análise de “microprocessos”, dados em estudos das ações sociais que podem
ser individuais ou grupais. Duas são as características identificadas a essa metodologia, sendo
elas a flexibilidade na coleta de dados, e heterodoxia na sua análise – o que dependerá da
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O trabalho de campo que se realizou no âmbito desta pesquisa, foi feito entre março
de 2019 e setembro de 2021, através da observação participante quanto aos fenômenos locais
referentes à problemática da pesquisa; na Rede Acolhida Warao Montes Claros (MG), fundada
em dezembro de 2020, para a criação de grupos de trabalho na acolhida aos venezuelanos
indígenas que chegaram à cidade em novembro de 2020; na realização de entrevistas a
voluntários e representantes de organizações não-governamentais que atuaram na acolhida a
venezuelanos não-indígenas e indígenas; na realização de entrevistas a venezuelanos indígenas
e na realização de grupo focal com venezuelanos não-indígenas.
Deve-se esclarecer o contexto em que se desenvolveu a presente pesquisa: no
âmbito de uma pandemia iniciada em janeiro de 2020, em que foi tratada como um surto que
merecia atenção, sendo formalmente confirmado o seu caráter pandêmico em 11 março do
mesmo ano, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Assim, houve grande dificuldade na
realização do trabalho de campo e coleta de dados, não ocorrendo como planejado.
Desse modo, houve limitação no contato com os sujeitos participantes das
entrevistas e grupo focal, sendo necessário que todo o contato realizado fosse em observância
às recomendações de saúde e segurança da OMS, bem como em conformidade com os decretos
municipais, respeitando-se o distanciamento social, o uso de máscara e álcool gel. Desse modo,
quando as medidas restritivas adotadas na esfera local não permitiram encontros presenciais,
ou os entrevistados estivessem impossibilitados de algum modo a esses encontros, houve a
realização de entrevistas, através da internet, na plataforma Zoom.
O uso que se fez das técnicas de pesquisa anteriormente expostas, em associação ao
método etnográfico, possibilitou que o trabalho de campo alcançasse os seus objetivos no que
tange à problemática destes estudos. Conforme leitura em Clifford Geertz (2008, p. 20), pode-
se afirmar que a etnografia é uma “descrição densa”.
O autor declara que fazer etnografia “é como tentar ler (no sentido de “construir
uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas
com exemplos transitórios de comportamento modelado” (2008, p. 20). Assim, o fazer
etnográfico envolve a tentativa de compreender estruturas conceptuais múltiplas e complexas.
Nesse trabalho, tais interpretações foram fundamentais para o trabalho de campo,
não para realizar uma etnografia, mas no apoio para a interpretação das entrevistas, bem como,
na observação realizada.
Associado ao trabalho de campo, conforme mencionado alhures, utilizou-se de
documentos ou instrumentos normativos de direito interno e internacional, buscando-se
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entender o amparo legal dado à pessoa do refugiado e à sua condição, assim como acerca da
Operação Acolhida, estando todos os documentos disponíveis em meio digital, normalmente
com acesso por plataformas do governo brasileiro, ou em material físico previamente adquirido.
Foram utilizados, do mesmo modo, documentos disponibilizados pelo governo
venezuelano, de domínio público, que, juntamente aos demais, foram caracterizados,
codificados, como também registrados, e categorizados, para que se estabelecesse uma análise
crítica do seu conteúdo. Feito isso, a coleta desses dados considerou a pertinência e conteúdo,
sendo acolhidos os documentos que melhor integraram o desenvolvimento do trabalho.
Na análise documental, foi utilizado o instrumento “quadros de termos-chave”, cujo
propósito foi a identificação dos núcleos conceituais ou referentes a “refugiados” e demais que
caracterizassem a situação de refúgios e seus direitos e garantias legais nas esferas internacional
e nacional, bem como a “Operação Acolhida” do governo federal.
Em um primeiro momento, foram grifados, nos textos, palavras e/ou frases que
conceituassem, fizessem apontamentos, ou dissertassem acerca do assunto em discussão, tendo
relevância para tal. O tratamento dos dados consistiu num processo de codificação,
interpretação e inferências acerca das informações trazidas por tais documentos, para que se
revelasse seu conteúdo “manifesto e latente” (PIMENTEL, 2001, p. 189).
A seleção da literatura deu-se de modo semelhante à coleta dos documentos, no
tocante à sua relevância para o trabalho, sempre, contudo, observando a especificidade dessa
fonte. A pesquisa bibliográfica buscou alcançar os fenômenos, bem como abarcar o seu
entendimento de maneira profunda e abrangente, alinhada às perspectivas apresentadas pelos
sujeitos que seriam entrevistados e à composição da análise documental.
A presente pesquisa ganhou forma e robustez no âmbito do Grupo de Estudos e
Pesquisa Sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco, Opará-Mutum/CNPq-
Unimontes, por meio de discussões, o estudo de bibliografias que foram incorporadas a este
texto dissertativo, e uma abordagem temática sobre diferentes categorias sociológicas, entre
elas: migração e refúgio.
O grupo também serviu de auxílio à elaboração dos roteiros de entrevistas/grupo
focal, ao trabalho de campo, organização e sistematização dos dados e o amplo debate da
pesquisa. É válido salientar que o Opará-Mutum possui seu projeto reconhecido no Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e na própria Unimontes,
CEPEX 96/2011. De igual modo, o grupo teve seu projeto aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa – UNIMONTES, parecer 158.386, com coordenação da Professora Doutora Andréa
Maria Narciso Rocha de Paula, juntamente ao Professor Doutor Carlos Rodrigues Brandão.
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Para reforço do caráter ético com que se realiza esta pesquisa, o seu projeto também
foi cadastrado na Plataforma Brasil e submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da
UNIMONTES, tramitando sob o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE
51429721.0.0000.5146, com aprovação pelo parecer n.º 5.032.482.
Ressalta-se que, no que diz respeito ao trabalho realizado com os venezuelanos
indígenas, buscou-se informações juntamente à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) sobre a
necessidade de autorização da instituição para o feito, conforme sugestão durante qualificação
desta pesquisa, ao que o órgão declinou qualquer necessidade de autorização para pesquisas
realizadas com indígenas que se encontram fora de suas terras tradicionalmente ocupadas.
Em 18 de fevereiro de 2018, o jornal espanhol “El país”2 publicou matéria com o
seguinte título: “Com 40.000 venezuelanos em Roraima, Brasil acorda para sua ‘crise de
refugiados’.”. O subtítulo da manchete completava que, o então presidente brasileiro, Michel
Temer, havia reconhecido a situação de vulnerabilidade em que se encontrava o estado de
Roraima, em decorrência do crescente e alarmante número de refugiados, havendo editado
Medida Provisória buscando promover ações de assistência a essas pessoas.
Foi assim que o Brasil reconheceu a crise migratória que já vinha sendo iniciada
desde 2016 no país, porém, ignorada por parte do governo e da população, uma vez que o
reconhecimento do problema implicaria na necessidade de se buscar por uma solução. Nesse
sentido, ao menos dois anos se passaram até que se começasse a pensar como recepcionar um
número cada vez maior de venezuelanos que procuravam o Brasil para refúgio.
A crise na Venezuela, hoje, já é considerada uma das maiores crises da sua história,
e não está nem próxima de chegar a um desfecho. Com a morte do ex-Presidente do país, Hugo
Chávez, assumiu o cargo Nicolás Maduro, em 2013. À época, a inflação já ultrapassava 800%
ao ano. O colapso econômico do país foi precedido por uma crise de abastecimento de
alimentos, a ruína dos serviços públicos, falta e alta de itens de supermercados, instabilidade
política, desemprego, autoritarismo do presidente empossado, inexistência de insumos básicos,
etc... todos esses fatores em conjunto geraram um grande descontentamento da população que,
em um fluxo cada vez maior, começou a cruzar a fronteira com outros países, a exemplo do
Brasil, na expectativa de um recomeço e melhoria nas condições de vida (MENDONÇA, 2018).
Os venezuelanos passaram a chegar ao Brasil, principalmente, pela cidade de
Pacaraima, no estado de Roraima, o que obrigou o ex-presidente brasileiro Michel Temer, no
ano de 2018, a editar Medida Provisória (MP) de integração de ações de assistência emergencial
2
Mais informações em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/16/politica/1518736071_492585.html>. Acesso
em: 19/10/2019.
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para os refugiados em Roraima, nos âmbitos da saúde, alimentação, educação e proteção social,
além de segurança pública. Um comitê federal passou a coordenar essas ações, que contam com
representantes de diferentes ministérios, sendo que a União, Roraima e municípios são parceiros
(MENDONÇA, 2018).
A reportagem do jornal “El país”, em 18 de fevereiro de 2018, chamou a atenção
para o fato de que estimativas apontavam a entrada de venezuelanos em um número
próximo a 40.000 pessoas, até aquela data, representando 10% dos 330.000 habitantes de
Boa Vista, Roraima – cidade destino dos recém-chegados. Algumas dessas pessoas foram
encontradas em situação de rua, dado que a lotação máxima de abrigos na cidade já havia se
excedido (MENDONÇA, 2018).
Assim, ao despertar para a crescente chegada de venezuelanos no Brasil, solicitando
refúgio, o ex-presidente brasileiro Michel Temer editou a Medida Provisória n.º 820/2018, atual
Lei n.º 13.684/2018, que dispõe sobre medidas de assistência emergencial para acolhimento a
pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise
humanitária; e dá outras providências.
O inciso X, artigo 5º, do referido dispositivo legal, prevê entre as medidas de
assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente
de fluxo migratório provocado por crise humanitária, a “ampliação das políticas de: [...] X-
mobilidade, contemplados a distribuição e a interiorização no território nacional, o
repatriamento e o reassentamento das pessoas mencionadas no caput deste artigo.”. Dessa
maneira, o objetivo do ex-presidente ao editar a MP n.º 820/2018, foi distribuir os venezuelanos
pelo território nacional para serem inseridos em um contexto social diverso daquele de chegada,
visto que Roraima não seria mais capaz de integrá-los.
A interiorização, em geral, é bem aceita pelos refugiados venezuelanos. Aqueles
que não concordam em ser interiorizados têm como motivação a proximidade de Roraima com
seu país natal e seus familiares que não cruzaram a fronteira. Outra questão que os refugiados
avaliam para tomar a decisão de aderir à política de interiorização é a distância dos novos locais
de integração. Contudo, prevalece a vontade de recomeço na busca por oportunidades
(VALDES & SILVA, 2018).
A maior dificuldade da “Operação Acolhida”, que recebe os venezuelanos,
atualmente, é o processo de interiorização, considerando o fato de que o abrigo aos refugiados
adeptos dessa política tem caráter provisório – de até três meses. Além disso, embora os
venezuelanos tenham a oportunidade de reestruturar suas vidas, a adaptação pode não ser tão
fácil assim e a busca por um emprego também é desafiadora. A nova sociedade em que serão
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inseridos, provavelmente, terá uma cultura que apresenta hábitos, tradições e crenças diferentes
da qual se originaram os recém-chegados (VALDES & SILVA, 2018).
Diz-se da interiorização uma “via de mão dupla”, pois o sujeito precisará se adaptar
à nova sociedade tanto quanto a comunidade local precisará se adaptar a esse sujeito, sem
abandonarem suas culturas, mas com mudanças no comportamento, normas e valores sociais
(VALDES & SILVA, 2018). É um processo que exige tolerância mútua e, sobretudo, empatia.
Dentre os locais previstos para a interiorização dos refugiados venezuelanos,
encontra-se a cidade de Montes Claros, localizada ao Norte de Minas Gerais, com população
de aproximadamente 418 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2021. Segundo o Portal Estratégia de Interiorização (2021), o município
já interiorizou cerca de 84 (oitenta e quatro) refugiados venezuelanos.
Em 15 de fevereiro de 2019, chegaram 11 refugiados venezuelanos à cidade de
Montes Claros, vindos de Roraima, sendo acolhidos pelo Projeto “Acolhe, Minas”, que é
liderado pelo Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), juntamente com o Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), também apoiados, dentre outros,
pelo Exército Brasileiro (NAÇÕES UNIDAS, 2019).
O SJMR foi instituído pela Companhia de Jesus para proteção de migrantes,
solicitantes de refúgio e refugiados, bem como a sua promoção. Os refugiados foram recebidos
e levados para o seu local de permanência por até três meses, localizado no Bairro Maracanã,
em Montes Claros, a “Casa das Irmãs” – uma entidade filantrópica e religiosa local. Assim que
chegaram, os venezuelanos foram cadastrados em programas sociais brasileiros para, por
exemplo, serem capazes de receber o Bolsa Família (ALENCAR, 2019).
Entre os maiores desafios dos refugiados venezuelanos que chegam a Montes
Claros, está o fato de falarem pouco ou nada do idioma local, a busca por emprego e moradia
(visto que a casa de acolhimento tem caráter provisório), além de questões culturais, de valores,
crença e a distância da família, pois, em sua grande maioria, os refugiados que chegam ao
Brasil, tiveram de abandonar seus parentes e amigos próximos na busca de melhores condições
de vida.
Somado a isso, resta também a incerteza de que serão bem acolhidos e de que
conseguirão fazer parte da nova sociedade com seus direitos e garantias individuais
assegurados, não sendo vítimas de xenofobia ou considerados uma ameaça de qualquer tipo aos
habitantes locais pela condição de refugiados, visto que o contexto social do Norte de Minas
atual é de muita vulnerabilidade econômica e social. O que os refugiados venezuelanos menos
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desejam é que sua vulnerabilidade seja realçada no novo meio social em que pretendem
recomeçar.
Através deste estudo de caso, será possível verificar o modo como tem ocorrido a
política de interiorização dos refugiados venezuelanos em Montes Claros – MG e suas
consequências para esses refugiados, bem como as impressões pessoais dos acolhidos advindas
de sua experiência empírica de refúgio no Brasil, mais especificamente no contexto montes-
clarense.
Esta dissertação se encontra dividida em três capítulos. O primeiro capítulo foi
intitulado “Venezuela: histórico e sujeitos”, em que buscamos contextualizar a localização
geográfica da República Bolivariana da Venezuela, sua demografia, discutindo-se, também,
antropologicamente (pela ótica venezuelana), as implicações culturais desse povo. Por fim,
fizemos uma retratação política, seguindo uma lógica temporal com início na independência do
Estado venezuelano, até à crise institucional pós-morte de Hugo Chávez, com a ascensão ao
poder do presidente Nicolás Maduro, em abril de 2013.
No segundo capítulo, denominado “Migrações Venezuela-Brasil”, realizamos um
debate teórico sobre a categoria migrações internacionais, com sua devida conceituação e
estabelecemos as distinções necessárias entre migrantes e refugiados. Foram apresentados os
dispositivos de direito interno e internacional usados na proteção jurídica a cada tipo de
indivíduo, consoante definição. Em um terceiro momento, abordamos a questão migratória
venezuelana, oriunda da crise socioeconômica e humanitária vivenciada pelo país, explicitando
a posição do Brasil e o seu papel no acolhimento a esse fluxo de pessoas, também dispomos
sobre outras solicitações de refúgio no país durante a última década e descrevemos, brevemente,
as relações internacionais entre o Brasil e a Venezuela, nos anos de 1810 a 2010.
No terceiro capítulo, cujo título é “Em trânsito: da Venezuela para Montes Claros”,
buscamos detalhar a Operação Acolhida e a política de interiorização para refugiados
venezuelanos que dela advém, para o estabelecimento de uma análise das realidades vividas
pelos refugiados no âmbito montes-clarense, posteriormente. Foi descrita a chegada de
refugiados venezuelanos ao Norte de Minas Gerais, suas razões e percepções, partindo das
narrativas desses indivíduos e da observação participante na esfera local. Relatamos algumas
histórias, que foram obtidas em entrevistas e/ou grupos focais, e prosseguimos à descrição das
ações de acolhimento a essas pessoas, em Montes Claros (MG), evidenciando os seus atores.
Finalmente, nas considerações finais, trouxemos reflexões e análises sobre os
achados da presente pesquisa, dentro de sua área temática, assim como apontamentos que nos
levam a crer na necessidade de implementação de novas pesquisas e aprofundamentos.
15
3
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lC0MzixrDXA&ab_channel=McJeshua-Topic>. Acesso
em: 10/09/2021. Esta é uma canção que retrata a história de um povo que abandona sua terra, na esperança de dias
melhores, sabendo ter deixado abandonado mais que um lugar, mas as pessoas que tanto amam.
16
4
HAGGERTY, Richard A. Venezuela: a country study / Federal Research Division. 4th. ed. Washington, D.C:
Library of Congress, 1993. (Tradução nossa).
5
Disponível em: < http://www.minci.gob.ve/>. Acesso em 21/01/2021.
6
Mais informações em: <https://oig.cepal.org/pt/paises/23/system>. Acesso em 26/01/2021.
7
“Artículo 9. El idioma oficial es el castellano. Los idiomas indígenas también son de uso oficial para los pueblos
indígenas y deben ser respetados en todo el territorio de la República, por constituir patrimonio cultural de la
Nación y de la humanidad”. (Constitución de la República Bolivariana de Venezuela, 1999).
17
A comunidade Warao, por exemplo, que conta com uma população de mais de
28.000 (vinte e oito mil) habitantes apenas no nordeste venezuelano, e vive na região do Delta
do Orinoco, comunica-se pelo uso da língua que leva o nome do seu povo. Outros grupos
expressivos, como o Wayuu, conhecido por ser a maior etnia indígena da Venezuela, possui
mais de 305.000 (trezentos e cinco mil) falantes do seu idioma, e ficam localizados no noroeste
do país; ao sudeste da Venezuela, encontram-se os Pemon, grupo indígena com
aproximadamente 30.000 (trinta mil) nativos e falantes do Pemon. 8
De acordo com dados do Banco Mundial9, em 2019 a população venezuelana era
de 28.515.829 milhões de pessoas, apresentando declínio considerável de aproximadamente
1,2% em relação ao ano anterior, em que era constituída por 28.870.195 milhões. Esses
números, porém, diferem-se daqueles projetados pelo “Instituto Nacional de Estadística
(INE)”10, da República Bolivariana da Venezuela, no último censo realizado no país e referente
ao ano de 2011. De acordo com o órgão, a expectativa era de que a Venezuela chegasse em
2019 com uma população estimada em 32.219.521 milhões.
Ainda se considerando o “XIV Censo Nacional de População e Habitação”
(tradução nossa)11, 27.227.930 milhões de venezuelanos à época, um total de 13.549.752 eram
homens (49,76% da população), sendo 13.678.178 milhões (50,23%) de mulheres no país,
composição majoritária. Desse total de nacionais, o censo estimou que a população indígena da
Venezuela fosse de 724.592 (setecentos e vinte e quatro mil, quinhentos e noventa e duas)
pessoas – 2,6% do total de residentes no país.
O Censo de 2011, em seu texto, estabelece um comparativo de estrutura de idade
por grandes grupos, demonstrando que a República Bolivariana da Venezuela registrou uma
queda percentual de dez pontos, considerando-se os últimos 21 anos, no que tange o grupo de
0 a 14 anos, que em 2011 consistiu em 27% da população – esse número em 1990 era de 37,2%.
A queda na fecundidade foi a justificativa apresentada no documento para o decréscimo
populacional dessa faixa etária. Por outro lado, o grupo etário de 15 a 64 anos sofreu aumento.
8
Disponível em: <https://pt.ripleybelieves.com/what-languages-are-spoken-in-venezuela-504>. Acesso em
21/01/2021.
9
Mais informações em: < https://data.worldbank.org/country/venezuela-rb>. Acesso em 21/01/2021.
10
O órgão é responsável por exercer liderança técnica de atividades que tenham essência estatística e caráter
público no país. (Tradução nossa). Mais informações em: <http://www.ine.gov.ve/>. Acesso em 26/01/2021.
11
República Bolivariana de Venezuela: XIV Censo Nacional de Población y Vivienda 2011. Resultados
Básicos. Total Nacional y Entidades Federales. Disponível em: <http://www.ine.gov.ve/>. Acesso em
26/01/2021.
18
A população pertencente a esse grupo, que era de 58,8% em 1990, chegou a 67% em 2011 – o
comparativo estará disponível no quadro a seguir 12.
12
XIV Censo Nacional de Población y Vivienda 2011. Resultados Total Nacional de la República Bolivariana
de Venezuela (Mayo 2014). Disponível em: <http://www.ine.gov.ve/>. Acesso em 26/01/2021.
19
membros pertencentes a esses núcleos familiares seriam descendentes em segundo grau, como
exemplo de netos(as), noras e genros; 0,7% das composições seriam feitas por ascendentes
(mães, pais, madrastas ou padrastos, sogras ou sogros); 6,3% outros parentes, e, 1% são
daqueles que não seriam membros da família, embora habitassem o mesmo lar – a exemplo de
quem preste serviços domésticos e seus relativos.
Nos lares com chefes do sexo feminino, os dados apontam que a composição do
núcleo familiar em 82,7% desses lares é feita por mulheres sozinhas ou acompanhadas por seus
maridos/companheiros, filhos e enteados – quando há. Além disso, 9,5% seriam descendentes
em segundo grau; 1,9% se constituiria por ascendentes, número superior ao apresentado nos
lares com chefes do sexo masculino; 5,1% por demais parentes e um total de 0,8% com a
presença daqueles que não são membros do grupo familiar.
O Relatório de maio de 2014, que apresentou detalhamentos ao Censo de 2011,
identificou diferenças por entes federativos no tocante a lares com chefes do sexo feminino,
muito embora conste evidenciado no documento de 2011 que os homens, à vista do país como
um todo, predominem como chefes do lar. A média nacional venezuelana de mulheres chefes
do núcleo familiar em 2011 ficou em 38,7%. Os estados a seguir destacaram-se por
sobrepujarem esse percentual, conforme disposição: Distrito Capital, com percentual
identificado de 44,7%; Aragua e Sucre, com 41,8%; Miranda e Vargas com 41,6% e 40,6%,
respectivamente. Com 30,9% o estado Amazonas teve o menor número percentual de mulheres
chefiando o núcleo familiar.
o XIV Censo Nacional de População e Habitação realizado em 2011, teve a
inciativa de adicionar, pela primeira vez, uma pergunta com o objetivo de dar visibilidade à
população afrodescendente que habita o país, inspirado no “I Encontro de Estatísticas e Censos
da População Negra”13 (tradução nossa), que contou com a participação de países como o
Brasil, a Colômbia e o Equador, que possuem maior experiência na abordagem do tema em
seus recenseamentos demográficos.
Os resultados encontrados, com base no autorreconhecimento étnico, identificou no
país uma população autorreconhecidamente negra de 2,9% do total, enquanto aqueles que se
autorreconheceram afrodescendentes foi equivalente a 0,7%. A maioria da população, 51,6%,
identificou-se como morena/moreno, e, os brancos foram considerados compondo 43,6% dos
venezuelanos.
13
I Encuentro de Estadísticas y Censo de Población Afrodescendiente.
20
14
Ley Orgánica de Pueblos y Comunidades Indígenas.
21
Tabela 2: Distribuição Percentual da População Total Indígena por Sexo, de Acordo com a
Entidade Federal – Censo 2011
15
“Se entiende por alfabetismo, la capacidad de las personas para leer y escribir um párrafo sencillo en un idioma
cualquiera”.
22
estudo da população a partir de 10 anos. (XIV Censo Nacional de Población y Vivienda 2011.
Resultados Total Nacional de la República Bolivariana de Venezuela (Mayo 2014), p. 38).
De acordo com o Censo de 2011, houve um avanço no alfabetismo populacional da
Venezuela que, considerando a população a partir de 10 anos, situação em que se encontraram
22.387.935 milhões de pessoas em 2011, a taxa daquelas consideradas alfabetizadas foi de
95,1% (21.286.229 milhões). Apesar desse número ser uma média de toda essa população
estudada, tem-se que entre pessoas acima de 54 anos, a taxa de alfabetizados do país é de 84,6%,
abaixo da média geral apresentada.
Em consulta a dados mais recentes, de janeiro de 2020, dispostos pelo Index
Mundi16, portal que tem por iniciativa a compilação de dados, estatísticas e fatos que permeiam
países ao redor do globo, a Venezuela está na posição 60 de 164 países expostos num quadro
comparativo em que foram apresentadas suas taxas de alfabetização, considerando uma
população de idade igual ou superior a 15 anos. O nível de alfabetização da população
venezuelana apresentado pela plataforma foi de 97,1%. Dessa forma, o país seria classificado
com alto índice de alfabetização, encontrando-se, inclusive, numa disposição acima do Brasil,
por exemplo, que possui índice de alfabetização em 93,2% e está na posição 87 – de acordo
com a mesma fonte de informações.
A distribuição da população venezuelana entre as zonas urbana e rural, de acordo
com o Censo de 2011, apresentou a seguinte proporção: 88,8% da população venezuelana foi
considerada urbana e 11,2% considerada rural.
Ainda segundo dados da plataforma Index Mundi, foi apresentada a expectativa de
vida populacional da República Bolivariana da Venezuela, a partir do ano de nascimento. A
plataforma dispôs que a expectativa média de vida da população foi de 76,2 anos, com base em
informações de 2018. As mulheres venezuelanas apresentaram uma expectativa de vida de 79,3
anos, cerca de 6 anos superior àquela dos homens venezuelanos, que foi definida em 73,2
anos.17
O Relatório de Desenvolvimento Humano de 202018, do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), apresentou os Índices de Desenvolvimento Humano
16
Mais informações em: <https://www.indexmundi.com/pt/venezuela/taxa_de_alfabetizacao.html>. Acesso em
10/02/2021.
17
Mais informações em: <https://www.indexmundi.com/pt/venezuela/expectativa_de_vida_no_nascimento.
html>. Acesso em 11/02/2021.
18
Human Development Report 2020. (Tradução nossa).
23
relativos a 2019, em que a Venezuela ficou na posição 113, com classificação em 0,711, que é
considerado um nível de desenvolvimento médio. O Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) é mensurado em uma escala que varia de 0,000 até 1, ficando mais próximos de 1 países
em que se verifica uma melhor qualidade de vida, em relação a critérios do PNUD. Apesar de
sua classificação, a Venezuela ficou acima de países como a África do Sul (índice de 0,709),
Estado da Palestina (0,708), e Egito (0,707). O Brasil ficou na posição 84, com índice 0,765 –
o que também é considerado um índice médio de desenvolvimento.
Estudo publicado pela Universidad Católica Andrés Bello (UCAB) 19, em 07 de
julho de 2020, intitulado “ENCOVI UCAB: Venezuela es el país más pobre de América Latina
y el perfil nutricional se asemeja a países de África”, trouxe resultados da Pesquisa Nacional de
Condições de Vida (ENCOVI) 2019-202020 do país com um indicativo de que a pobreza
multidimensional teria aumentado em 13,8% do ano de 2018 até 2019, chegando a 64,8% dos
lares venezuelanos. Tal pobreza está relacionada com indicadores de educação, empregos,
padrão de vida, habitação e serviços públicos.
Em prosseguimento a essas constatações, o Instituto de Investigaciones
Económicas y Sociales (IIES) da UCAB, após uma atualização da Pesquisa Nacional de
Condições de Vida, com levantamento de dados que realizou de novembro de 2019 a março de
2020, em que se ampliou a cobertura da pesquisa nacional, identificou-se que a Venezuela é o
mais pobre21 da América Latina, sendo, ainda, o segundo país mais desigual da região (ficando
atrás do Brasil), com coeficiente Gini em 51,0. Quando consideradas variáveis como o
problema da instabilidade política, pobreza extrema e o PIB, a Venezuela se localiza como o
segundo país em uma lista composta por outros 12, entre os quais lidera o topo da lista a Nigéria,
estando ao final o Irã. Atrás da República Bolivariana da Venezuela estão o Chade, Congo,
assim como o Zimbábue.
O estudo aponta que em 96% dos domicílios que fizeram parte da pesquisa
demonstraram pertencimento à categoria de pobreza de renda, sendo 54% desses compatíveis
com um quadro de pobreza recente, enquanto os outros 41% pertencem ao quadro considerado
como pobreza crônica. O sociólogo e professor venezuelano Luis Pedro España, que atua como
19
Disponível em: <http://guayanaweb.ucab.edu.ve/noticias-reader-guayana-actual/items/encovi-ucab-venezuela-
es-el-pais-mas-pobre-de-america-latina-y-el-perfil-nutricional-se-asemeja-a-paises-de-africa.html>. Acesso em
11/02/2021.
20
Encuesta Nacional de Condiciones de Vida (ENCOVI) 2019-2020. (Tradução nossa).
21
Observa-se que a mensuração de pobreza foi dada por um critério quantitativo, em comparação aos demais
países latino-americanos.
24
diretor do Proyecto Pobreza da UCAB, afirmou que: “para tapar o buraco da pobreza extrema,
são necessários 5 bilhões de dólares ao ano para financiar um programa de transferência
direcionado, a uma taxa de dois dólares diários para 6,5 milhões de famílias venezuelanas” 22.
O professor afirma nunca ter existido tamanha pobreza no país e aponta a relação
dessa situação de pobreza com o que ele chamou de “destruição da economia venezuelana”. O
ENCOVI 2019-2020 reconhece que somente 3% dos lares na Venezuela não passam por
nenhum tipo de insegurança alimentar, e que, por outro lado, um percentual de 74% vivencia
algum tipo de insegurança que varia entre moderada e grave. Tudo isso, ainda segundo Luis
Pedro España, é decorrente da inflação de 3,356% (em março de 2020) em conjunto com uma
renda média diária de $0,72 (dólares). A queda constatada do Produto Interno Bruto (PIB)
venezuelano do ano 2013 a 2019 chegou a 70%.
A insegurança alimentar na Venezuela faz com que cerca de 639.000 (seiscentos e
trinta e nove mil) crianças abaixo de 5 anos de idade, aproximados 30% dessa população,
apresentem desnutrição crônica de altura ou de estatura. Enquanto isso, em outros 166.000
(cento e sessenta e seis mil) menores, 8% do total de crianças com menos de 5 anos, é verificada
desnutrição global, tendo como indicador o peso por idade. Foi possível estabelecer, também,
um risco de desnutrição crônica a 28% do público infantil relacionado e mais 21% que estariam
correndo risco de se enquadrarem na desnutrição global. O sociólogo avalia que os dados
encontrados na Venezuela estão mais próximos daqueles encontrados no continente africano do
que na América Latina.
O sociólogo analisa que a população venezuelana está mais idosa, com cada vez
menos habitantes e com expectativa de vida igualmente reduzida. O envelhecimento
populacional no país passou de 10% para 12% - números relativos à população com idade
superior a 60 anos. Relata o autor, com base em uma análise de estudos da demógrafa e
professora Anitza Freitez, que na atualidade, 72,7% dos chefes de família na Venezuela são
mulheres, e retrata também que entre 2017 e 2019, o equivalente a um milhão de residentes
deixaram a Venezuela a cada ano, o que apenas nesse período chegaria a 4 milhões de
indivíduos. Observa-se, também, que houve diminuição na taxa de natalidade, somado a um
aumento na taxa de mortalidade que não está conectado a uma faixa etária exclusiva.
Correlativamente à questão migratória, ficou demonstrado por esses estudos que,
em 19% dos lares venezuelanos verificou-se a existência de um ou mais entes que deixou a
22
“Para cerrar la brecha de la pobreza extrema harían falta 5 mil millones de dólares al año para financiar un
programa focalizado de transferencias, a razón de 2 dólares diarios para 6,5 millones de hogares venezolanos”.
(Tradução nossa).
25
23
LIGHT, Donald; KELLER, Suzanne; CALHOUN, Craig. Sociología. Tradução de Gabriel Murillo Castaño. 5.
ed. Nova Iorque: McGraw-Hill, 1991. (Tradução nossa).
24
LIGHT, KELLER & CALHOUN, 1991, p. 80-81.
26
povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade”. A tentativa de compreender
uma determinada cultura não deve, jamais, banalizá-la ou reduzi-la.
Como prerrogativa de toda tentativa, haverá, assim, falhas, bem como contrapontos
– afinal, conforme o próprio Geertz (1978, p. 24): “a cultura não é um poder, algo ao qual
podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as
instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de
forma inteligível – isto é, descritos com densidade”. Essa densidade que se encontra por detrás
da palavra “cultura” que torna um contexto o seu principal núcleo interpretativo.
Nesse sentido, Geertz (1978) defende um conceito “semiótico” de cultura, partindo
da “ciência interpretativa” de Max Weber, em busca de esclarecimentos ao se deparar com
manifestações sociais. Em consequência disso, subentende-se o papel primordial que a
interpretação tem para a antropologia, conforme assevera o autor: “os textos antropológicos são
eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente
um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura)” (GEERTZ, 1978, p. 25).
É válido destacar que, ao se trabalhar o tema cultura e etnicidade – neste contexto,
centrado no povo venezuelano –, deve-se entender cultura enquanto diferença. Como bem
argumentado em Barth (2005, p. 16), “a etnicidade representa a organização social de diferenças
culturais”. Ou seja, Barth (2005) pressupõe que os grupos étnicos não são grupos de formação
baseada em uma cultura comum, da qual compartilham, mas sim, que tal formação de grupos
vem a ocorrer baseando-se nas diferenças culturais.
Barth (2005) afirma, ainda, o dever de se pensar cultura como algo que é distribuído
através das pessoas e entre elas, fruto de suas experiências. Para ele, a cultura está em um estado
de “fluxo constante” (2005, p. 17), gerado por meio dessas experiências vividas pelos
indivíduos. Tal fato dissocia cultura de tradições fixas no tempo que são transmissões do
passado.
Nesse aspecto, Manuela Cunha (2009) contribui para tal entendimento, ao
conceituar a cultura com aspas. Vê-se na “cultura com aspas” um exagero de traços típicos,
muito pautado no conceito de “cultura para si” – de caráter performático, uma vez que tal
conceito não engloba o fluxo contínuo com que a cultura se modifica, exigindo-se dela um
cunho tradicionalmente fixo. Portanto, um grande desafio ao se pensar cultura e etnicidade, está
em não categorizar grupos étnicos e comunidades tradicionais por definição de uma “cultura”.
É necessário que se valorize a fluidez – principal constante no teor cultural – e que se tenha
plena consciência de que a experiência compõe cada cultura em sua diferença.
27
Laraia (2001), ao dispor sobre a herança cultural, faz uma afirmação importante
quanto ao “comportamento desviante”, ou seja, um comportamento que não se encaixa dentro
de um determinado contexto social, sendo que, segundo o autor, “a nossa herança cultural,
desenvolvida através de inúmeras gerações, sempre nos condicionou a reagir depreciativamente
em relação ao comportamento daqueles que agem fora dos padrões aceitos pela maioria da
comunidade” (LARAIA, 2001, p. 67). Seria, de acordo com o Laraia (2001), esse o principal
motivo que geraria a discriminação, uma vez que, originários de determinada herança cultural
embasados nesta, podem agir com menosprezo a outras heranças.
Ao se falar em cultura, faz-se necessário também compreender os estudos sobre
identidade. A questão identitária, por sua vez, tem sido um ponto de grande discussão no âmbito
da teoria social, haja vista a “crise identitária” que prenuncia uma mudança em sentido mais
abrangente nas sociedades modernas, como reflexo direto das alterações dos processos e
estruturas que compõem o centro da modernidade, conforme dispõe Stuart Hall (2006, p. 7). O
autor entende que as “velhas identidades”, objeto de estabilidade do mundo social, estão
perdendo força, o que tem por consequência a fragmentação do indivíduo moderno – que era
considerado um sujeito unificado – assim como a aparição de novas identidades.
Com inspiração em Anthony Giddens (1991), resta evidente em Hall (2006) a ideia
de que nas sociedades modernas a mudança é uma constante perene e particularmente frenética,
sendo essa a sua distinção substancial quando as comparamos às sociedades tradicionais.
Giddens (1991, p.12) infere que “as civilizações tradicionais podem ter sido consideravelmente
mais dinâmicas que outros sistemas pré-modernos, mas a rapidez da mudança em condições de
modernidade é extrema”. Giddens (1991) também observa que nas organizações modernas o
local e o global interligam-se de maneira outrora impensável nas sociedades tradicionais, o que
vem a afetar milhões de vidas diariamente. O passado, que é honrado nas culturas tradicionais,
por perpetuar uma experiência geracional, na modernidade não é primado como uma estreita
referência, salvo o acaso da coincidência. (GIDDENS, 1991, p. 38-39).
Hall25 distingue três concepções de identidade, sendo elas o sujeito do iluminismo,
o sociológico e o pós-moderno. O conceito de sujeito do iluminismo pauta-se na estimativa de
que toda pessoa humana seja dotada de razão, de capacidade de consciência e ação, numa
representação individualista.
O sujeito sociológico é aquele que reflete a complexidade cada vez maior da
modernidade, tendo o pressuposto de que o núcleo desse sujeito se forma na relação que este
25
HALL, 2006, p. 10-13.
28
estabelece com outras pessoas consideradas por ele importantes, que lhe repassam valores, além
de sentidos e a própria cultura de seu(s) mundo(s). Assim, nesse panorama, a identidade se
forma por meio da “interação” entre o “eu” e a “sociedade”. Há também a existência no sujeito
de um “eu real”, perfazendo uma “essência interior” que se constrói e é alterada por meio da
troca com “mundos culturais exteriores” e demais identidades nele presentes.
Já o sujeito pós-moderno é aquele cuja identidade não é fixa, constantemente
sofrendo mutação em relação aos modos que é representado nos sistemas culturais que o
envolvem. Esse é um sujeito formado da fragmentação da identidade, sendo constituído de
diversas identidades que podem até mesmo se contrapor; ele é formado de um processo de
identificação cada vez mais temporal.
Nesse contexto, surge a figura do hibridismo, cuja análise perpassa o processo com
que identidades nacionais, étnicas e raciais são produzidas dentro da teoria cultural
contemporânea. Hall e Woordward (2000, p. 87)26 entendem o hibridismo enquanto uma
“mistura, a conjunção, o intercurso entre diferentes nacionalidades, entre diferentes etnias, entre
diferentes raças”, o que leva a um questionamento dos processos em que as identidades se
encontram fracionadas ou circunscritas. Isso obscurece o pressuposto de que grupos reunidos
por suas identidades (nacional, étnica ou racial) sejam puros e indivisíveis.
De acordo com Paula (2009, p. 245), “o nascimento dos híbridos acontece, de um
lado, nos lugares de destino através dos hábitos de comida, danças, músicas, tradições, portanto,
no território do corpo, através dos cheiros, sabores, gostos, cores, gestos e afetos”. A autora se
refere a uma ação social que tem como núcleos a emoção e a tradição, consoante interpretação
em Weber. Para a autora, a ação social Weberiana da emoção seria o limite que define tanto o
deslocamento, como a permanência ou delimitação de determinados territórios. Na ação social,
o indivíduo define o “ir” e o “vir” e não as relações sociais.
Conforme asseveram Hall e Woordward (2000, p. 87), “o hibridismo está ligado
aos movimentos demográficos que permitem o contato entre diferentes identidades: as
diásporas, os deslocamentos nômades, as viagens, os cruzamentos de fronteiras”. Tendo por
base a teoria cultural contemporânea, pode-se compreender tais movimentos de maneira literal
ou não, a depender do seu referencial. Os autores explicam que o “cruzamento de fronteiras”
mencionado alhures é concebível, por exemplo, quando se transita por identidades distintas;
não havendo a necessidade de uma barreira física nessa delimitação.
26
Organização de Tomaz Tadeu da Silva, Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
29
27
BHABHA, 1998, p. 240.
28
BHABHA, 1998, p. 240-241.
30
29
CALHOUN apud. CASTELLS, 2018 p. 54.
30
CASTELLS, 2018, p. 55-56.
31
31
Com base em NEVES, Rômulo Figueira. Cultura política e elementos de análise da política venezuelana.
Brasília: FUNAG, 2010.
32
Montero (1987, p. 72) aceita provisoriamente o fato de um conjunto de indícios tender a apontar
para algo que constitui essas características estereotipantes. À vista disso, a constância dos
traços que integram a autoimagem de um grupo leva à suposição de que um estereótipo tenha
se constituído, destacando-se também a controvérsia que existe em torno do debate do caráter
verdadeiro ou equivocado de estereótipos.
Nesse contexto, a autora confere o benefício da dúvida quanto à utilização do
conceito de estereótipo, mantendo-lhe, contudo, em estudos que realizou da “estereotipação na
autoimagem nacional dos venezuelanos” 32, visto que os dados providos pela estudiosa, frutos
de suas pesquisas e revisões de bibliografias, tendem a apresentar propriedades do que ela
compreende como estereótipo.
Ressalta que a autopercepção não é algo recente para os venezuelanos, mas que lhes
acompanha ao longo de todo o século XX ou mesmo antes dele.
Con fiel regularidad, aparece en los ensayos políticos y sociológicos, una descripción
de los venezolanos en la cual la pereza, la indolencia, la irracionalidad, una cierta
pasividad e indiferencia que supuestamente provienen de los ancestros indígenas, una
anarquía rebelde y una cierta alegría atribuidas a los negros, la violencia y la aspereza,
más una imaginación no concretada en las correspondientes acciones, están siempre
presentes. (MONTERO, 1987, p. 74-75)
32
MONTERO, 1987, p. 74.
33
33
A pesquisadora define como “categoria” o teor abstraído de suas leituras, por meio de uma análise de conteúdo,
que manifesta associação ou signo de pretensa impressão negativa ou positiva dos venezuelanos,
independentemente de estar essa ideia expressa ou oculta nos textos (MONTERO, 1987, 113-114).
34
De acordo com Rodríguez (2002)34, o estudo de Montero (1987) passou por uma
atualização entre 1991 e 1992, porém, de modo geral, os resultados anteriormente encontrados
se mantiveram, restando como diferencial a perspectiva de classificação da autoimagem dos
venezuelanos que se fez por meio de três dimensões, sendo a primeira dimensão acerca da
“instrumentalidade ou resposta dos sujeitos, relativa à capacidade do venezuelano para atuar
efetivamente sobre seu entorno e exercer influência sobre o mesmo”, a segunda uma “dimensão
política ou atribuições que indicam a relação dos venezuelanos com seu sistema político e sua
sociedade”, e, por fim, a “dimensão da sociabilidade ou capacidade de relacionar-se ou interagir
com outros”. Essas dimensões foram igualmente separadas em positivas e negativas, com base
na carga valorativa atribuída aos adjetivos usados na autodescrição venezuelana.
Consoante esses estudos35, a sociabilidade se configurou enquanto a dimensão mais
relevante autoatribuída pelos venezuelanos, compondo suas características positivas a
amigabilidade, amabilidade, solidariedade, cordialidade, bom humor, comunicabilidade, a
qualidade de ser aberto e acolhedor, caloroso e festivo, a sua receptividade e também simpatia.
Por outro lado, as características negativas nessa dimensão da sociabilidade estão classificadas
sob a seguinte distinção: agressividade, arrogância, orgulho, autoritarismo, antipatia, grosseria,
desconfiança e, novamente, o ser festivo.
Tendo em vista a dimensão instrumental, no seu caráter positivo, os venezuelanos
se autoidentificaram como ativos, inteligentes, trabalhadores, estudiosos, além de progressistas,
sendo o contraponto (o caráter negativo dessa dimensão) as qualidades de irresponsabilidade,
34
MONTERO, 1984 apud. RODRÍGUEZ, 2002, p. 19-20.
35
Ibidem, p. 20.
35
Una rápida ojeada a los medios de comunicación social, la tribuna pública o cualquier
conversación entre amigos en torno al más mínimo asunto de interés colectivo permite
observar que a los venezolanos nada les parece bueno …Resulta como si se viviese
en estado de inconformidad con todo, y en permanente lucha de antagonistas consigo
mismos. (HANNOT, 1996 apud. HOLZHÄUSER, 2018, p. 10)
36
“Todos os caminhos empreendidos me conduziram a uma mesma Roma, todos os fios a um mesmo nó: a família.
E, nela, a um único centro: a mãe.” (OLMEDO, 2012, p. 4, tradução nossa).
37
Ibidem, p. 7.
38
“O pai significa um vazio não preenchido, uma ausência.” (OLMEDO, 2012, p. 18, tradução nossa).
37
estrutural das famílias venezuelanas e isso teria efeitos diretos sobre o “ethos” cultural no país.
Em sua teoria, Hurtado (2016) também evidencia aspectos de inclinação positiva associados à
figura feminina, ao contrário da atribuição de uma conotação negativa ao masculino.
A exemplo dessa produção cultural no país advinda da relação existente entre uma
mãe venezuelana e seu filho, descreve o autor:
Venimos observando que la mujer venezolana ocupa sin dejar vacíos todos los
ámbitos de la estructura familiar. No lo hace simplemente como hembra (sentido
sexual), ni como mujer o lo femenino encantador (Venus), sino como madre
(Démeter). La producción de una madre y su correspondiente producción de la figura
del hijo tienen el sentido de un proceso fuerte. Tal es así -y a falta de otro referente
competitivo que la relación compleja de madre-hijo (niño pequeño y consentido)
expresa la matriz de la cultura de la sociedad venezolana. La operación proviene de
las características de la socialización. Si la familia (madre) tiene el papel de socializar
al niño, es la lógica de la familia (madre) la que se coloca como el referente del sentido
de la socialización; la matriz cultural no adviene contractual, sino emocional.
(HURTADO, 2016, p. 16).
Assim, Hurtado (2016) evidencia o sentido emocional que permeia a matriz cultural
venezuelana, haja vista a supremacia materna na socialização da criança. Por outro lado, o status
social da mãe também é construído por meio do seu filho, assim, ela se torna uma figura
denominada pelo autor como “transcendente” e “absoluta” em relação à sua própria família.
Segundo o estudioso, “la madre conforma un arquetipo complejo donde se conjugan la madre-
engendradora, la madre-virginal y la madre-sacrificada”39. Esse é um arquétipo que se
concretiza por meio das mulheres que compõem determinado ciclo familiar na Venezuela.
Rodríguez (2002, p. 29) afirma que, dentro dos estudos da “venezuelanidade”, é
possível destacar aspectos comuns na caracterização do indivíduo venezuelano, convergindo
para a noção de que tal ser cultural tende a privilegiar o âmbito privado em detrimento do
público. A interpretação dada pela autora de âmbito privado, tem embasamento em Montero
(1984, 1992), como em Zapata (1996), classificando esse domínio como a família, o trabalho e
os amigos, enquanto o âmbito público compreende a política. Infere Rodríguez (2002, p. 29):
“el predominio del grupo de pertenencia es el principal factor común como rasgo cultural del
venezolano”. O benefício individual e desse grupo também compõem posição nuclear nas ações
dos venezuelanos.
39
“A mãe constitui um arquétipo complexo onde se conjugam a mãe-procriadora, a mãe-virginal e a mãe-
sacrificada”. (HURTADO, 2016, p. 16, tradução nossa).
38
De acordo com Neves (2010, p. 33), houve numerosas batalhas do ano de 1816 até
1819, quando ocorreu a batalha de Boyacá e teve como corolário a conquista pelas forças
rebeldes de Nova Granada (a capital), de modo permanente. Em 1819, a presidência
venezuelana foi ocupada por Símon Bolívar, até que ocorreu a unificação dos exércitos da
Venezuela com os de Nova Granada, em dezembro daquele mesmo ano, fundando a república
Grã-Colômbia, em que Bogotá se tornou a capital. O Equador, segundo afirma o autor, uniu-se
à Grã-Colômbia em 1822, diferentemente do Peru e da Bolívia, que não se juntaram à república.
Bolívar se ausentou do país, para participar das revoluções que deram origem às
independências de Peru (1824) e da Bolívia (1825), deixando o general José Antonio Páez no
comando da Venezuela, com o cargo de chefe militar civil. O que Bolívar não esperava é que
o general fosse apoiar o movimento de separação interno que se formou no país. Assim, em
1829, por força desse movimento separatista, a Venezuela deixou a Grã-Colômbia. Em
decorrência disso, Bolívar se autoproclama presidente vitalício da Grã-Colômbia, em busca de
evitar uma decomposição por completo, porém, no somatório dos fatores que vinham
ocorrendo, renuncia à presidência em abril do ano de 1830. Decidido por se exilar na Europa,
Bolívar morreu de tuberculoso em dezembro daquele ano, aproximadamente sete meses do fim
da Grã-Colômbia, previamente ao seu embarque para o exílio. (NEVES, 2010, p. 34).
Com a conquista da independência venezuelana, diversas também foram as
consequências do período que deu início ao processo de independência, até à sua efetividade.
A exemplo disso, o autor nomeia a grande baixa na atividade produtiva e também na qualidade
de vida dos venezuelanos. As guerras levaram a uma queda pela metade no rebanho do país,
que, antes do período tinha 1 milhão de cabeças de gado, e, após o fim das guerras tinha 500
mil. Com isso, o preço da carne subiu ativamente. Produções como o café e o cacau também
foram prejudicadas, com baixa de 50% no preço internacional (do café), entre 1830 e 1850,
ocasionando uma redução na renda nacional e morte populacional de 20%. Neves (2010, p. 35)
dispõe que “é nesse período de convulsão que começam a aparecer algumas das características
mais marcantes da sociedade venezuelana”.
“República dos Próceres da Independência” é o nome que se dá o período
compreendido entre os anos de 1831 e 1859 (ou 1863 – a depender a linha de interpretação),
visto que membros ativos da luta independentista estiveram no comando do país. Estando a
Venezuela separada da Grã-Colômbia, José Antonio Páez tornou-se presidente por várias
décadas, tanto em períodos constitucionais, como os lapsos temporais de 1831 a 1835 e de 1839
a 1844, como ditatoriais, em que esteve à frente do país de 1861 a 1863. O general é reconhecido
40
com a principal personalidade do período. No primeiro período de governo, Páez foi capaz de
reconstruir a economia pós-guerra, trazendo novamente a estabilidade para os venezuelanos.
Além de José Antonio Páez, outros caudilhistas estiveram à frente do poder na
Venezuela pós-independência, como Ezequiel Zamora, que, advindo de uma família formada
por humildes proprietários de terras, em 1846 foi responsável por uma insurreição de
camponeses. Zamora tinha tendências liberais, e, por isso, estava ideologicamente mais
próximo das necessidades dos setores populares, como distribuição de terras para os
camponeses, o fim do trabalho escravo e a efetivação de eleições populares. (DANCINI &
MELO, 2016, p. 120).
De acordo com Neves (2010, p. 40), os anos de 1899 a 1945 na Venezuela foram
caracterizados pela supremacia de membros das Forças Armadas no governo do país. Tais
membros originavam-se de Táchira, estado localizado na área andina venezuelana. O general
Vicente Gómez marcou o período pelo seu engajamento na luta pelo poder que se desenrolou
depois das revoluções ocorridas entre 1898 e 1899, período em que deu seu apoio ao general
Cipriano Castro, andino que invadiu Caracas, pondo fim à guerra civil no país. Gómez faleceu
enquanto presidente da Venezuela em 1935.
Uma Junta Revolucionária chegou ao poder na Venezuela em 1945, através de um
golpe. Essa junta foi constituída por militares unidos a civis, tendo como líder Rómulo
Betancourt, um revolucionário da Acción Democrática (AD), antigo Partido Democrático
Nacional (PDN), criado em 1931. Dessa forma, eleições livres para qualquer pessoa acima de
18 anos foram convocadas no país com a finalidade de designar uma Assembleia Constituinte
venezuelana. (NEVES, 2010, p. 44).
Somente em 1947, a Venezuela teve a sua primeira experiência de eleições diretas
à presidência da república. Nesse evento, o vencedor foi Rómulo Gallegos, que havia perdido
nas eleições de 1941, quando foi candidato. O novo governo detinha ideias democráticas e
perspectivava restringir que militares participassem no primeiro escalão governamental. Isso
tornou as Forças Armadas bastante insatisfeitas com o governo civil, assim, elas o acusaram de
arriscar a segurança institucional, vindo a desengatilhar um golpe de Estado organizado por
jovens oficiais militares. Esses oficiais criaram uma “junta trina”, conforme explica Neves
(2004, p. 45), composta por três tenentes coronéis: Carlos Delgado Chalbaud, Marcos Pérez
Jiménez e Luis Felipe Llovera Paez – em que Chalbaud presidia.
Carlos Delgado Chalbaud objetivava realizar, no ano de 1950, novas eleições para
a escolha presidencial na Venezuela. Chalbaud tinha em mente que o novo presidente a ser
escolhido deveria ser apoiado pela sociedade civil, destarte, ele cogitou a sua própria
41
candidatura. Porém, Chalbaud foi vítima de um sequestro que teve como desfecho a sua morte.
Algumas correntes teóricas apontam Marcos Pérez Jiménez como o principal mandante do
crime que pôs fim ao triunvirato e suspendeu o processo de eleições previsto para aquele ano.
Somente em 1952 foram ocorrer novas eleições, em que Jiménez obteve vitória e é acusado de
fraudar o processo eleitoral. (NEVES, 2010, p. 45)
Depreende-se da leitura de Neves (2010), que o governo de Marcos Jiménez teve
como foco investir na infraestrutura do país, causando a aparência de progresso na economia.
O período é marcado com a chegada da Venezuela à posição de segundo maior país produtor
de petróleo em âmbito global, com elevados índices de exportação do petróleo produzido, e
preços cada vez mais ascendentes. O Estado venezuelano se beneficiava do momento crucial
para o seu desenvolvimento econômico. Do mesmo modo, cresciam as denúncias de corrupção
no país, devido à falta de controle orçamentário adequado. Jiménez foi deposto em 1958, após
ocorrência de novo golpe praticado por militares apoiados pelos partidos políticos Comité de
Organización Política Electoral Independiente (Copei) e Acción Democrática (AD). Nesse
contexto, Wolfgang Larrazábal, que era chefe das Forças Armadas, sobe ao poder.
Larrazábal buscou manter o controle do país enquanto uma nova eleição era
organizada, apesar da iminência de novos golpes. Assim, em 1959, com a vitória de Rómulo
Betancourt – líder civil membro da AD – marcou-se o início de um novo período político na
Venezuela, denominado de “Quarta República” (NEVES, 2010, p. 46). A partir desse período,
ocorreram eleições diretas no país. Com o novo governo, aprovou-se, também, uma nova
constituição, em 1961, sendo um importante destaque o fato de civis terem direito a uma maior
participação na política venezuelana.
Seguindo essa sequência eleitoral, sucederam Betancourt: Raúl Leoni (AD) 1964-
1969, Rafael Caldera (Copei) 1969-1974 e Carlos Andrés Pérez (AD) 1974-1979. A respeito
do último, eleito em 1973, Neves (2010, p. 48) afirma: “as eleições de 1973 também marcam a
maior participação do eleitorado na história das eleições presidenciais: 96,5%”. Segundo o
autor, esses índices já estavam em progressiva ascensão desde o momento em que as eleições
livres foram decretadas no país. Ocorre que, nas eleições posteriores à de 1973, a tendência à
inclinação desses índices é revertida pela perda de confiança dos eleitores no sistema partidário
venezuelano. O autor registra que os índices de participação verificados até à eleição em
meados da década 1980, superam grandemente aqueles aferidos na década de 1990 e em
períodos posteriores.
Segundo Neves (2010, p. 48), “o governo de Andrés Pérez foi marcado pelo auge
dos preços do petróleo, indústria que nacionalizou em 1975, gerando abundância de divisas”.
42
Isso teve diversos impactos positivos para o país, a esse exemplo, o governo enviou milhares
de estudantes com bolsas de estudos altíssimas a outros países para cursos em programas de
pós-graduação. É válido ressaltar que, conforme Neves (2010), mesmo com toda essa entrada
de recursos ocorrida em função das exportações, assim como da nacionalização proprietária, a
Venezuela ainda mantinha dificuldades em superar o déficit público do país e as suas dívidas
externa e interna cresciam cada vez mais.
O revezamento de governos entre AD e Copei prosseguiu até às eleições que
elegeram o governante Ramón José Velásquez para cumpriu seu mandato presidencial a partir
de 1993. Os anos que antecederam esse mandato foram bastante desafiadores para o país que,
em 1986 começa a experienciar uma baixa nos preços do petróleo no mercado internacional,
que, somados ao contexto crítico de contas governamentais, gerou uma situação sem
precedentes. O país passa a vislumbrar grande inflação, taxas de desemprego muito elevadas, a
moeda local sofre desvalorização, além do quadro de corrupção e a perda de recursos públicos
por meio da política de clientelismo praticada na Venezuela. (NEVES, 2010, p. 48-49).
Anteriormente, no governo de Carlos Andrés Pérez, o presidente havia optado pela
adoção do receituário oriundo do Fundo Monetário Internacional (FMI), com o objetivo de
recuperação das finanças venezuelanas. Entre as medidas previstas, têm ênfase o aumento nos
preços públicos – que vinham sendo subsidiados por meio dos lucros obtidos pela venda de
petróleo – e a cessação de uma diversidade de subsídios, com a finalidade de reter fundos.
(NEVES, 2010, p. 49).
De 1989 até 1992, Neves (2010, p. 49) relata a verificação de aproximados 130
protestos mensalmente na Venezuela, precedidos pelo movimento “Caracazo”, cuja coibição
levou 300 civis à morte. O autor evidencia que, embora os civis tenham iniciado a ofensiva,
uma rebelião vinha sendo preparada pelos militares desde tempos mais remotos. Observado o
panorama político de grande instabilidade, em 1992, oficiais se sentiram encorajados a tentarem
outro golpe de Estado, que foi movido por militares de baixa patente. Entre os oficiais líderes
do movimento, estava Hugo Chávez.
A grave crise econômica que ocorreu na década de 1980 assolou o mundo como um
todo, tendo efeitos ainda mais severos em países cujo padrão de desenvolvimento se afastava
daquele alcançado pela Europa ou pelos Estados Unidos. Portanto, na Venezuela, observa-se
com maior avidez os impactos desse problema. Consoante Neves (2010):
agregado o setor rural, a situação é ainda pior: a população abaixo da linha de pobreza
passou de 22% em 1981, para 34% em 1990, enquanto a população abaixo da linha
de indigência passou de 7% para 12%; entre 1980 e 1990, o desemprego aberto sobe
de 6% para 11%; o subemprego urbano, de 1989 a 1994, aumentou de 39% para 49%.
Entre 1980 e 1990 o PIB caiu 6,8% e, com isso, a renda média por habitante, que em
1980 ainda era a quarta maior da América Latina (32% acima da média) caía para a
sétima posição em 1990, ficando apenas 4% acima da média regional; e a
informalização de 35,4% para 41,8%; o salário médio real em 1990 equivalia a 49,8%
do de 1978. A concentração de renda também foi alta nesse período: os 20% mais
pobres da população urbana, que, em 1981, recebiam 6,9% da renda total, passaram a
receber 5,7% em 1990, e os 20% mais ricos aumentaram sua participação na renda
total do país de 37,8% para 44,6%. A taxa de delitos por mil habitantes/ano aumenta
70% entre 1979 e 1990, passando, de pouco mais de 7 mil para quase 12 mil. (NEVES,
2010, p. 49-50).
Não restam dúvidas quanto aos abalos socioeconômicos trazidos por essa crise, sem
precedentes. À época, a inflação chegou a 84,5% (taxa mensal), enquanto a elevação cambial
impedia a maior parte da população de adquirir produtos importados – visto que, houve uma
baixa significativa nos índices de importação de 45% entre os anos de 1980 e 1989. Esse
período, com base em relatos de Neves (2010, p. 50), causou à população venezuelana
deterioramento em sua disponibilidade nutricional e levando a sociedade a retroceder ao status
dos anos 1970.
De acordo com o economista venezuelano Domingo Felipe Maza Zavala, em seu
discurso de ordem pronunciado no Paraninfo da Universidad de Los Andes em 16/09/1988, ao
receber o título de Doutor Honoris Causa em Economia conferido pela própria universidade:
Desse modo, Maza Zavala (1988) compreende os reflexos diretos causados pela
crise à institucionalidade política do país, bem como ao equilíbrio social. No mesmo sentido, o
estudioso reconhece o papel desempenhado pelo petróleo na economia Venezuela, confirmando
o fato de que, na era da globalização, a economia interna dos países tem grande dependência da
economia internacional, e isso faz com que a primeira se torne vulnerável em razão da última.
Após anos de alternância no poder político venezuelano entre os partidos AD e
Copei, ainda não se destacava outro partido ou indivíduo capaz de gerar um embate a essa
estrutura política, até o ano de 1994. Nesse ano, houve a concessão de indulto por Rafael
Caldera (Copei), que governou novamente de 1994-1999. O indulto foi concedido aos
revoltosos do ano de 1992, entre os quais se encontrava Hugo Chávez. Chávez, uma vez livre,
44
Conforme dispõe Neves (2010, p. 55), “as rendas do petróleo transformaram rapidamente a
sociedade venezuelana de essencialmente agrária em uma sociedade eminentemente
importadora de produtos industrializados dos países desenvolvidos”. Fica evidente, assim, a
contribuição da produção e exportação de petróleo para que a indústria local se desenvolvesse.
Em se tratando de empresas multinacionais que se estabeleceram na Venezuela,
Neves (2010) explica que a Dutch Royal foi a única que se encontrava no país até o ano de
1921, através da Caribbean Petroleum Company, quando então, chega à Venezuela a Standard
Oil em Maracaibo. Outras empresas passaram a se estabelecer no país, sendo possível
contabilizar um número superior a cem empresas em 1931, sendo uma grande quantidade dessas
empresas subsidiárias daquelas mencionadas anteriormente.
Por volta dos anos 1940, o governo venezuelano lança um olhar mais crítico à
atuação de empresas de petróleo internamente no país, alcunhando-as de exploradoras dos
recursos naturais presentes na Venezuela de modo desapiedado. Com isso, passa-se a gerar
políticas que acarretem sobretaxa a essas companhias, ou outras com vista a proporcionar que
o Estado venezuelano atuasse diretamente na produção e extração petrolíferas. Após criação da
empresa estatal Corporación Venezolana del Petróleo (CVP) no ano 1960, ocorreu em 1976 a
completa nacionalização do petróleo produzido na Venezuela. É estabelecida a Petróleos de
Venezuela (Petroven), encarregada da administração das propriedades (NEVES, 2010, p. 56).
Tem-se nas crises de 1980 a reabertura do setor petroleiro na Venezuela, no ano de
1989, para atividades laterais na produtividade da mercadoria. Desse modo, caminhou-se para
a abertura do empreendimento de petróleo ao capital privado e estrangeiro, possibilitando que
se invista diretamente tanto na produção, quanto na exploração de novos campos de petróleo
de 1992 a 1995, de acordo com estudos de Neves (2010). A tentativa de retomada do controle
do setor de petróleo vem ocorrendo desde 2007.
Considerada a região que mais tem possibilidades de expansão da produção
petrolífera na atualidade, a Faixa de Orinoco, na Venezuela, possui um petróleo de alta
densidade. Porém, é possível fazer grande extração de matéria prima proveniente da matéria
bruta com os avanços tecnológicos experimentados nos dias de hoje. Segundo estimativas feitas
para a localidade, caso sejam comprovadas, a Venezuela ocupará o primeiro lugar no ranking
de reservas petrolíferas mundialmente – saindo da sexta posição em que se encontra. O país
ultrapassaria a Arábia Saudita com seus 250 bilhões de barris. No momento, são contabilizados
77 bilhões de barris na Venezuela, e, na região da Faixa de Orinoco há previsão de outros 260
bilhões. (NEVES, 2010, p. 59).
46
40
Termo utilizado neste contexto como designação dos processos de mudança nas esferas política e social que têm
início com a aprovação de Hugo Chávez nas eleições de 1999. Consoante explica Raphael Seabra (2010) “a eleição
de Hugo Chávez em 1999 dá início a mudanças e rupturas profundas no esquema político e democrático da
Venezuela. Desde então, o termo “chavismo” aparece muitas vezes como síntese descritiva da totalidade dos
processos de mudança político-social”. (SEABRA, 2010, p. 218).
48
em 2003 foi possível colocar em prática esses programas, posto que a crise política havia sido
controlada e a greve do setor de petróleo havia se findado.
Explica a socióloga Natália Scartezini, na obra “A relevância das Missões Sociais
para o desenvolvimento da Revolução Bolivariana na Venezuela”, de 2014, que as Missões são
voltadas à priori para “dar atendimento emergencial e primário aos principais problemas sociais
do país – como o analfabetismo, o desemprego, a fome, a pobreza extrema” (SCARTEZINI,
2014, p. 100), contudo, a aplicação dessa política levou à expansão dos objetivos inicialmente
previstos, além de desenvolver a Venezuela.
Rômulo Figueira Neves (2010) apresenta cinco características atribuídas aos
programas das Missões. São elas:
O autor realça o fato de que as Missões com efeitos diretos nos cidadãos
venezuelanos serem aquelas que alcançaram maior sucesso. E, de acordo com Remo Bastos
(2018, p. 4), o senso de pertencimento dos cidadãos com as Missões foi um forte fator
responsável pela melhora expressiva nos índices sociais da Venezuela após a implementação
destas. Neves (2010, p. 74), em 2004, atestou a existência de 22 missões ativas em várias áreas.
Ao final de 2006, ocorre nova vitória de Chávez em eleições para presidência. O
líder entraria em seu terceiro mandato presidencial tendo recebido 63% dos votos venezuelanos,
o que é visto por Chávez, segundo Bastos (2018, p. 4), “como uma clara votação a favor do
socialismo”. Contudo, em 2007, o governo Hugo Chávez fracassou na tentativa de aprovação
institucional, por meio de referendo, de uma proposta de reforma à Constituição. Ou seja, a
oposição começava a recuperar sua força na luta contra o presidente. Observa-se também que
nos anos que se seguem há um enfraquecimento no modelo petrorrentista que sofre os efeitos
da crise capitalista de 2008. (BASTOS, 2018, p. 4).
As consequências da crise econômica que, novamente, abala o mundo em 2008,
foram ainda mais duras para a Venezuela. Bastos (2018) compara o momento em
proporcionalidade dos seus efeitos com a crise de 1929. Segundo o autor, o preço pago por
barril de petróleo chega a U$40,00 no mercado mundial, saindo da casa dos U$130,00 que
50
custava anteriormente. Isso causou sérios prejuízos à situação fiscal venezuelana e aos seus
programas sociais que beneficiavam as camadas mais pobres.
No período, é notória a dificuldade do governo Chávez em organizar um plano que
tivesse por objetivo substituir as importações feitas no país de bens ao consumo dos
venezuelanos, em especial alimentos, e fomentar a produção agrícola par ao comércio interno.
Outro fator que deixa de ocorrer é diversificação da base econômico-industrial do país. Bastos
(2018, p. 4) afirma que “fato é que a crise cambial e a crescente espiral inflacionária minaram
as margens de manobra do governo e o colocaram na defensiva”.
Houve novas eleições presidenciais em 2012, nos estados venezuelanos. Hugo
Chávez é mais uma vez vencedor da disputa, ainda que o país incorresse em transtornos na
esfera econômica e seu governo viesse sofrendo uma série de pressões, a exemplo daquelas
imperialistas. Porém, Chávez foi acometido por um câncer e faleceu em 2013, na data de 05 de
março, na cidade de Caracas. Nicolás Maduro, que era o vice-presidente, subiu ao poder e
demonstrou ânimo de permanência, vindo a lograr êxito logo mais nas novas eleições. Em 14
de abril, Nicolás Maduro assumiu o cargo como o novo presidente eleito na Venezuela.
(BASTOS, 2018, p. 4).
Para a oposição de Chávez, a morte dele simbolizava o término da Revolução
Bolivariana, encerrando os cerca de 14 anos de sua liderança (1999 a 2001; 2001 a 2007; 2007
a 2013)41. Freitas, Denadai, Obregón (2020) destacam que, Cháves não era adorado apenas por
suas políticas populistas, mas também pela sua proximidade com as pessoas. Segundo os
autores: “a própria aparência do presidente já representava uma ruptura com a elite, era alguém
do povo que aparentava estar ali para ouvir o anseio dos mais humildes e defendê-los a partir
de uma prometida distribuição de renda” (2020, p. 5). Hugo Chávez falava com o povo por
meio de um canal televisivo, momento em que os cidadãos o ligavam, falavam sobre suas vidas,
problemas, e o presidente se colocava enquanto aconselhador em busca de resolução.
As melhorias sociais realizadas no governo Chávez não o isentam de outros feitos,
conforme explicam Freitas, Denadai, Obregón (2020). De acordo com os estudiosos, o
aparelhamento de militares ao Estado venezuelano se deu pela via de Chávez, visto que o
presidente fez diversas nomeações de generais aos ministérios e alto escalão do país, não
hesitando em retirar profissionais especializados de cargos públicos. Desse modo, formou-se
41
JIMENEZ, Mayerling. Vida y obra del Comandante Supremo Hugo Rafael Chávez Frías. Disponível em:
<http://www.radiomundial.com.ve/article/vida-y-obra-del-comandante-supremo-hugo-rafael-ch%C3%A1vez-
fr%C3%ADas>. Acesso em: 10/08/2021.
51
um sistema de corrupção nas forças armadas do país, que deixavam sua neutralidade e passavam
a apoiar o governo Chávez com a finalidade de obter benefícios diversos.
Outro elemento trazido pelos autores com relação ao período de Chávez na
presidência é a não superação da dependência dos dólares advindos do petróleo, sistema há
muito tempo em vigência na Venezuela. Isso gerou ainda mais corrupção interna, pois, passou
a ocorrer um superfaturamento nas importações em razão do controle cambial (2013) com
paridade da moeda corrente no país e o dólar, causando mais dependência das importações
devido à supervalorização da moeda venezuelana. A fuga de capitais é outra questão verificada
no período Chávez, em especial, por meio dos setores de oposição ao governo. Além disso, em
2008, a inviabilidade das importações em decorrência da baixa no preço do petróleo levou a
Venezuela a um endividamento estimado em 159 bilhões de dólares pelo FMI. (FREITAS;
DENADAI; OBREGÓN, 2020, p. 5-6).
Os autores (2020, p. 7) também associam a Hugo Chávez o processo de deterioração
percebido na democracia da Venezuela, como resultado da maneira como ele dispôs dos
aparelhos do Estado buscando a sua permanência longínqua no governo. Foram diversas as
reformas institucionais realizadas pelo presidente Chávez para alargar os poderes que lhe eram
inerentes no seu cargo. Contudo, é válido ressaltar, conforme demonstrado alhures, a igual
violação da democracia venezuelana pelos que se opunham a Chávez.
Para os estudiosos:
O Chavismo ficou marcado por muitas contradições, de um lado existem aqueles que
defendem veemente este governo, por conta das políticas sociais promovidas, da
redução da pobreza e da distribuição de renda, de outro lado existem aqueles que
condenam a era Chávez, haja vista que as medidas totalitárias por ele adotadas
enfraqueceram a democracia Venezuelana. (FREITAS; DENADAI; OBREGÓN,
2020, p. 7).
Assim, nota-se o caráter divergente no debate sobre a figura Hugo Chávez, que, de
uma maneira ou de outra, marcou toda uma nação. Com sua morte e posterior chegada de
Nicolás Maduro em definitivo ao poder, tentou-se dar prosseguimento ao governo Chávez,
contudo, o Congresso não apoiou Maduro, sendo muitos membros antagônicos a seu poder.
Com o passar dos anos, a recessão econômica venezuelana tornou-se cada vez mais
aguda, especialmente no governo de Nicolás Maduro. A independência de petróleo alcançada
pelos Estados Unidos, em que se tornou o maior produtor independente mundialmente, em
virtude do método “fracking” com faturamento hidráulico rochoso, levou os seus concorrentes
árabes a aumentarem a produtividade da mercadoria e, assim, houve uma grande queda no preço
52
do petróleo, visto que a oferta foi abundante e não houve absorção imediata do mercado.
Todavia, a Venezuela teve redução na sua produção interna, acarretando em 2014 o início do
processo de falência econômica venezuelana – dependente majoritariamente dessa produção.
(FREITAS; DENADAI; OBREGÓN, 2020, p. 7-8).
Os autores asseveram que entre os motivos para a baixa produtividade, pode ser
encontrada a falta de investimento no tocante à infraestrutura da Petróleo da Venezuela S.A
(PdVSA), sendo outro fator relevante a presença de corrupção interna na empresa em função
da ocupação de cargos diretivos por militares que não estariam aptos tecnicamente para o
trabalho, de igual modo, isso gerou uma gestão prejudicial do empreendimento. Associa-se a
Hugo Chávez o feito anterior.
A maneira escolhida pelo governo de Nicolás Maduro para conter a oposição à sua
liderança em meio à crise econômica que abateu o país foi o uso da força extrema no controle
da população, mais particularmente os seus protestos, contudo, o presidente não apresentou um
novo caminho que modificasse a estratégia inicialmente adotada para a resolução do problema
da recessão. Freitas, Denadai, Obregón (2020, p. 8) observam quanto a Maduro que “os seus
esforços são no sentido de manter tudo como está, mesmo que a conjuntura atual, em que os
petrodólares não existem mais, não seja favorável”.
Assim, a falta de investimento em áreas diversificadas faz com que a Venezuela
precise importar desde produtos mais básicos que passam a ser vendidos por preços exorbitantes
considerando a inflação e as sanções externas que o país vem sofrendo. Com isso, a população
perde acesso a esses produtos. Afirmam os autores que “o grande problema enfrentado no
governo de Maduro, desde o ápice da crise econômica, é a falta de abastecimento de produtos
básicos, como alimentos e remédios” (2020, p. 8).
É possível salientar, por exemplo, que os hospitais do país já ficaram com ausência
de aproximados 90% de seus medicamentos, houve cortes de energia elétrica diariamente nas
cidades – em alguns casos por um período superior a 4 horas, e supermercados são encontrados
sem alimentos (gerando longas filas e custo inacessível). Freitas, Denadai, Obregón (2020, p.
8) ao citarem Corazza, Mesquita (2019), concluem que “a fome fez os venezuelanos perderem,
em média, 11 quilos no ano passado”42, referem-se os autores a 2018, ano em que Maduro foi
reeleito em 20 de maio com 67,7% dos votos válidos. O seu novo mandato encerra-se em 2025.
42
CORAZZA, Felipe; MESQUITA, Lígia. Crise na Venezuela: o que levou o país ao colapso econômico e à
maior crise de sua história. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45909515>. Acesso
em: 16 set. 2019. Referência utilizada pelos autores Freitas, Denadai, Obregón (2020).
53
43
OLMO, Guilherme D. Crise na Venezuela: quem são 'os coletivos', grupos dispostos a pegar em armas
para defender Maduro. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47128159>. Acesso
em: 11/08/2021.
55
“Quando eu saí do país, pensava que seria fácil. Saio, junto dinheiro por uns 03 meses e volto..., mas
não é assim”. (Refugiada venezuelana em Montes Claros - MG, 46 anos)
44
Migrantes venezuelanos em uma das principais ruas de Pacaraima, no estado de Roraima. – Mathilde
Missioneiro/Folhapress. Imagem veiculada em 12 de setembro de 2021. Mais informações em:
<https://www1.folha.uol.com.br>. Acesso em: 12/09/2021. Esta imagem retrata o cenário de chegada de
venezuelanos a Roraima, sendo obrigados a ficar nas ruas da cidade, porque não há vagas em abrigos e falta,
também, alimentos.
57
45
Disponível em: <https://www.unhcr.org/publications/brochures/62a9d1494/global-trends-report-2021.html>.
Acesso em: 26/06/2022.
46
Disponível em: <https://brazil.iom.int/>. Acesso em: 18/07/2021
58
por riscos associados ao clima, sendo eles: Bangladesh, Haiti, Filipinas, Índia, os Estados
Unidos da América e a China. (OIM, 2022, p. 2).
Como se pode observar da leitura dos breves extratos do relatório, bem como de
estudos mais aprofundados sobre migrações, as motivações para a mobilidade humana são
diversas, e, da mesma maneira, diversos são os indivíduos que se movem no espaço e as suas,
muitas vezes, difíceis definições, tais como: o requerente de asilo, a pessoa deslocada, o
migrante ambiental, o expatriado, o migrante interno, a pessoa deslocada internamente, o
estudante internacional, o migrante internacional, o migrante temporário, o migrante
permanente, o trabalhador migrante, o trabalhador migrante sazonal, os migrantes
documentados e não documentados, etc.47
Contudo, neste trabalho, será dada ênfase à pessoa refugiada, com o desígnio de
aprofundar os estudos acerca dos instrumentos protetivos desses indivíduos, tanto no direito
internacional, quanto no direito interno brasileiro, cujo interesse se faz essencial para esta
pesquisa. Será estabelecida, também, para esse fim, uma discussão sobre migração e fluxos
migratórios, para que se possa melhor compreender a diversidade das condições do que é ser
migrante num paralelo com o que é ser refugiado.
Em termos gerais, é complexo tentar conceituar migração ou migrante, haja vista a
falta de consenso para uma definição que, em muito, pode ser arbitrária. Contudo, a maneira
menos arriscada de fazê-lo, é seguir a proposta do “Glossário sobre Migração” da Organização
Internacional para as Migrações (OIM), que define a palavra “migrante” como um “termo
guarda-chuva”, que, embora não tenha definição no direito internacional, implica no
entendimento comum de uma “pessoa que se move para um lugar distante daquele de sua
residência habitual, independentemente de ser dentro de um país ou atravessando uma fronteira
internacional, temporariamente ou de modo permanente, e por uma variedade de motivos” 48.
Este será o conceito adotado para a presente dissertação.
De modo semelhante, o mesmo glossário apresenta o termo migração como “o
movimento de pessoas para um local distante daquele de sua residência habitual, seja
47
GLOSSARY ON MIGRATION, 2018, p. 133, tradução nossa.
48
Migrant: An umbrella term, not defined under international law, reflecting the common lay
understanding of a person who moves away from his or her place of usual residence, whether within a
country or across an international border, temporarily or permanently, and for a variety of reasons. The
term includes a number of well-defined legal categories of people, such as migrant workers; persons whose
particular types of movements are legally defined, such as smuggled migrants; as well as those whose status or
means of movement are not specifically defined under international law, such as international students.
(GLOSSARY ON MIGRATION, 2018, p. 132, tradução e destaques nossos).
59
49
Migration: The movement of persons away from their place of usual residence, either across an
international border or within a State. See also circular migration, climate migration, displacement, economic
migration, facilitated migration, family migration, forced migration, human mobility, internal migration,
international migration, irregular migration, labour migration, migrant, mixed migration, safe, orderly and regular
migration, resettlement, return migration. (GLOSSARY ON MIGRATION, 2018, p. 137, tradução e destaques
nossos).
50
CASEY, 2001, apud MARANDOLA JR. & DAL GALLO, 2010, p. 409.
51
“Migration is defined broadly as a permanent or semipermanent change of residence. No restriction is placed
upon the distance of the move or upon the voluntary or involuntary nature of the act, and no distinction is made
between external and internal migration”. (LEE, 1966, p. 49, tradução nossa).
60
estrutura social não haveria mudado, não podendo considerar-se o indivíduo um migrante. O
autor assevera que, caso ocorra um movimento em tempo inferior a um ano, deve-se
compreendê-lo enquanto uma visita, e não como migração.
Vê-se os dissensos que existem na definição do termo migração, abarcando a
distância, a duração, implicações sociais trazidas por esse deslocamento, a motivação e
voluntariedade ou involuntariedade dessa ação, etc. O migrante se desloca entre o seu lugar de
origem e o de destino e esse processo social não é somente um deslocamento físico de um lugar
para outro, mas um deslocamento de culturas, modos de vidas, hábitos e costumes que irão
influenciar os habitantes e lugares onde os migrantes fixarem.
O mesmo, porém, não ocorre com o termo refugiado. Em oposição à indefinição
de migrante, o conceito de refugiado tem acepção ancorada na Convenção relativa ao Estatuto
dos Refugiados, de 28 de julho de 1951, fixada em Conferência das Nações Unidas, e, mais
tarde, no Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados. O ordenamento jurídico
brasileiro incorporou, posteriormente, esse conceito através da Lei n.º 9.474, de 22 de julho de
1997, instrumento legal que definiu mecanismos para a implementação do Estatuto dos
Refugiados de 1951, dentre outras providências.
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados 52, de 1951, explica que o termo
“refugiado” deverá ser aplicado assim como disposto abaixo:
52
Adotada em 28 de julho de 1951 pela Conferência das Nações Unidas de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos
Refugiados e Apátridas, convocada pela Resolução n. 429 (V) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de
dezembro de 1950. Entrou em vigor em 22 de abril de 1954, de acordo com o artigo 43. Série Tratados da ONU,
Nº 2545, Vol. 189, p. 137
61
II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência
habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias
descritas no inciso anterior;
III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar
seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
53
Mais informações em: <https://meaningofmigrants.org/>. Acesso em: 20/07/2021
54
Definição em acordo com os dispostos pela OIM, que definiu: “[...] movimentos de população complexos,
que incluem refugiados, solicitantes de asilo*, migrantes econômicos e outros migrantes. Além disso, ela
ainda salienta que esse tipo de fluxo está relacionado com movimentos irregulares, nos quais há, com
frequência, migração de trânsito, com pessoas que realizam o movimento sem a documentação necessária,
62
atravessam fronteiras e chegam ao seu destino sem autorização” (OIM, 2009, p. 1 apud Silva, J.C.J. et al., p.
17, 2017, realce do autor). *Os autores explicam que “O termo solicitante de asilo na língua inglesa é utilizado
para os solicitantes de refúgio, o que não ocorre em português, por conta da tradição jurídica americana, na qual
há o instituto do refúgio e o do asilo. Em relação à definição trazida pela OIM, o termo de solicitante de asilo
significa solicitante de refúgio” (J.C.J. et al., p. 17, 2017).
63
Pode-se distinguir dois grandes grupos de teorias sobre migrações. À luz de Peixoto
(2004), identifica-se as “teorias microssociológicas” e as “teorias macrossociológicas”
migratórias. Os modelos anteriormente citados, de Ravenstein, pertencem ao primeiro grupo
teórico. Nesse grupo, é elemento comum “o privilégio analítico concedido ao papel do agente
individual” (PEIXOTO, 2004, p. 13). Isto é, a pessoa em sua racionalidade individual tomará a
decisão de mudar-se, face às condicionantes externas que se apresentam e que o indivíduo as
ponderará.
Outros teóricos buscaram aperfeiçoar o modelo de Ravenstein, tais como: Zipf e
Stouffer, e Everett Lee. Vale apontar as premissas definidas por Lee, expostas em Peixoto, em
que os “elementos que presidem à decisão e ao processo migratório são os factores associados
à área de origem, factores associados à área de destino, “obstáculos intervenientes” e factores
pessoais” (2004, p. 14-15).
Em seguida, a teoria do capital humano trabalhou os argumentos apresentados no
contexto microssociológico, de modo a não contestar as suas razões, mas incrementando no
sentido de que o agente, ao pensar no custo/benefício da migração, não pode considerar o efeito
de curto prazo de sua decisão, devendo pensar nas possibilidades de ganhos maiores
futuramente, apesar dos custos potenciais para tal feito. (PEIXOTO, 2004, p. 16).
Sobre outra ótica, de cunho mais evidentemente sociológico, segundo aduz Peixoto
(2004), percebe-se na perspectiva microssociológica das migrações a presença de uma
ramificação cujas variantes que implicam na decisão do agente individual a migrar são a
influência da migração para o seu próprio “ciclo de vida” ou de seus familiares; em outras
palavras: “entrada na vida adulta, casamento, nascimento dos filhos, divórcios, reforma, etc.” e
também da “trajetória de mobilidade social”, em que se encontra a carreira profissional, e, em
ambos os casos, executando-se um percurso territorial (2004, p. 17). Essa é uma motivação de
teor afetivo ou de valores. Rossi (1955) é um dos autores de maior contemplação dessa corrente.
Em divergência com o caráter individual previsto nas teorias migratórias
microssociológicas, as teorias macrossociológicas privilegiam a influência de fatores coletivos,
também denominados estruturantes, que servem de parâmetro decisório a agentes sociais. Há
uma conexão comum dessas teorias com autores marxistas. (PEIXOTO, 2004, p. 22).
A primeira teoria macrossocial das migrações apresentada por Peixoto (2004, p. 23)
trata-se da “teoria do mercado de trabalho segmentado”, em que se entende que as migrações
internacionais se tornam atraentes devido aos mercados secundários, frequentemente
compostos por economia informal. Assim, um país mais desenvolvido economicamente que
outro atrairá migrantes de regiões menos favorecidas, que assumirão postos de trabalhos de
64
menor interesse dos cidadãos nacionais, em razão dessa economia informal. É válido
argumentar que, mesmo que os lucros auferidos não sejam os melhores, aqueles migrantes
melhorarão seus padrões de vida em comparação com os padrões que alcançariam em seus
países de origem.
Outro segmento das teorias macrossociológicas das migrações conecta-se à
geografia, assim como à economia, pois, consoante Peixoto (2004, p. 24) são “análises que
lidam explicitamente com a variável espaço e que procuram enunciar os factores que levam a
um desenvolvimento particular dos territórios”. Nesse sentido, há mecanismos que direcionam
a determinado lugar em que as pessoas se encontram estabelecidas, em ambientes urbano, rural,
de centro ou de periferia, dentro de um país ou no exterior. Tal distribuição territorial, conforme
explica o autor, lidera os movimentos migratórios de populações, formando zonas
interdisciplinares. São o que o estudioso denominou de “decisões de investimento”, com
influência direta nas possibilidades migratórias dos agentes.
Determinadas teorias de fundo marxista buscam interligar as estruturas espaciais a
relações sociais, ou seja, “espaço” e “sociedade”. Elas se baseiam em concepções de
desigualdade no desenvolvimento do espaço, justificada na lógica acumulativa de capital
privado, na concentração das atividades de produção na esfera urbana que se torna o local em
que a força de trabalho deve ser reproduzida, assim como na divisão mais atual dada às
atividades capitalistas, dentre outros, seguindo exposição de Peixoto (2004, p. 26) em diálogos
com Hudson e Lewis (1985), Castells (1981) e Massey (1984).
Torna-se importante expor a teoria macrossociológica chamada de “sistemas
migratórios”, que Peixoto (2004, p. 27) afirma permitir revelar “um conjunto de regiões ou
países que alimentam fluxos migratórios importantes entre si (frequentemente em ambos os
sentidos e envolvendo “tipos” migratórios diversos)”, sendo as “redes macrorregionais” a forma
mais comum de exemplificação dessa teoria dentro das migrações internacionais, percebendo-
se a existência de um país central – ou, pode ser uma região com diversos países – e de variáveis
países que “emitem” migrantes em direção àquele.
Segundo relatório da OIM (2020), a quantidade de migrantes internacionais é
estimada em 272 milhões de pessoas espalhadas pelo globo, sendo cerca de dois terços desse
número o equivalente a trabalhadores migrantes. Esse número representa apenas 3,5% da
população global, o que implica dizer que outros 96,5% são indivíduos que residem em seus
países natais.
O número de migrantes internacionais, na atualidade, já é superior às projeções
feitas para esse cenário no ano de 2050, em que se previa a existência de 230 milhões de
65
migrantes pelo mundo (o que significaria 2,6% da população mundial). Com isso, resta
comprovada a difícil previsibilidade da escala e, também, do ritmo das migrações
internacionais, levando em consideração que numerosos são os eventos que influenciarão
diretamente esses fluxos, conforme explicitado alhures. (OIM, 2020).
O relatório da Organização Internacional para as Migrações de 2022 trouxe
importantes considerações sobre o perfil migratório encontrado mundialmente, declarando ser
52% o percentual de migrantes internacionais do sexo masculino e 48% do sexo feminino. A
faixa etária mais comum entre essas pessoas é de 20 a 64 anos, ou seja, 74% dos indivíduos que
se deslocam internacionalmente encontram-se em idade laboral.
O maior país originário de migrantes internacionais é a Índia, que também teve o
mesmo posto nos relatórios de 2018 e de 2020 (uma vez que o relatório é bianual). Na
atualidade, em torno de 18 milhões de indianos vivem no exterior, ocupando o segundo lugar
na classificação o México, com mais de 11 milhões de pessoas vivendo em outros países e, em
terceiro lugar, encontra-se a Rússia, com seus 10,8 milhões de nacionais fora de sua terra natal.
Em seguida, está a China, com 10 milhões de emigrantes. Assim como no relatório anterior, e
nos últimos 50 anos, o documento de 2022 apontou os Estados Unidos da América como o
principal país de destino para migrantes no mundo, contemplando o equivalente a 51 milhões
de migrantes internacionais.
Os dados apresentados referem-se a migrantes internacionais, abarcando categoria
de indivíduos que não se enquadra em deslocamentos forçados, como é o caso dos refugiados.
Estes, por sua vez, têm seus dados revelados no relatório “Global Trends: forced displacement
in 2021”, cujos levantamentos do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR) demonstram a existência de 89,3 milhões de deslocados forçadamente pelo globo,
cerca de 6,9 milhões a mais, em relação ao relatório de 2020. Essa situação advém de conflitos,
perseguições, violência, bem como violações de direitos humanos ou qualquer tipo de evento
que perturbe à ordem pública, conforme explicado no relatório (ACNUR, 2022).
Na atualidade existem aproximadamente 27,1 milhões de refugiados no planeta,
sendo que 21,3 milhões destes se encontram sob o mandato da ACNUR, e outros 5,8 milhões
de refugiados palestinos sob o mandato da Agência das Nações Unidas de Assistência aos
Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA). Aproximados 53,2 milhões de pessoas
são deslocados internos e 4,6 milhões são requerentes de asilo. Por fim, em torno de 4,4 milhões
destes são venezuelanos deslocados no exterior. (ACNUR, 2022).
O equivalente a 83% dos refugiados e venezuelanos deslocados encontram-se
acolhidos em países em desenvolvimento, sendo que 72% desse total vivem atualmente em
66
países vizinhos às suas terras natais. A Turquia concentra a maior população de refugiados
acolhidos mundialmente: 3,8 milhões. Em segundo lugar está a Colômbia com seus 1,8 milhões
de refugiados, sendo seguida pelo Paquistão e pela Uganda, com 1,5 milhão e, em quinto lugar
localiza-se a Alemanha, com 1,3 milhões de refugiados. (ACNUR, 2022).
Um dado muito importante apresentado pelo relatório de 2021 está relacionado aos
principais países de origem dos refugiados e deslocados externos. O texto demonstrou que 69%
desses indivíduos são oriundos de apenas cinco países, quais sejam: República Árabe Síria (6,8
milhões de refugiados), Venezuela (com seus cerca de 4,6 milhões de refugiados ou deslocados
externamente), Afeganistão (2,7 milhões), Sudão do Sul (2,4 milhões), e Mianmar (1,2 milhão).
Dados do ACNUR (2021) apontam para estimativas de que entre os anos de 2018
e 2020, um número variante de 290 a 340 mil crianças nasceram por ano, na condição de
refugiadas, totalizando um milhão de crianças nascidas refugiadas entre dois relatórios
apresentados pela Agência da ONU. O relatório mais recente não atualizou esses dados.
Ainda sobre os venezuelanos, o relatório declara de que 6,1 milhões sejam
refugiados, migrantes ou requerentes de asilo, consoante relatos à Agência efetuados em
Plataforma de Coordenação para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V) 55.
A seguir, a figura 1 ilustrará, de modo geral, a distribuição geográfica de refugiados
e venezuelanos deslocados no exterior.
55
Mais informações em: <https://www.r4v.info/>. Acesso em 21/08/2021.
67
O artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos Humanos assevera que “todo ser
humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”. É
relevante dar ênfase à parte do artigo que afirma “em todos os lugares”, devendo-se perceber
que o fato de um indivíduo migrar, ou se refugiar em outro país, não implica em qualquer
prejuízo aos seus direitos humanos, inerentes à condição de pessoa humana, o que faz com que
esses direitos amparem qualquer indivíduo que vivencie o processo migratório.
É válido definir Direitos Humanos consoante com o Glossário sobre Migração da
OIM, que de maneira clara dispõe: são as “garantias jurídicas universais que protegem os
indivíduos e os grupos contra ações e omissões que interfiram em liberdades fundamentais, nos
direitos e na dignidade humana”56. Dessa forma, os Direitos Humanos existem para assegurar
56
Human rights: Universal legal guarantees protecting individuals and groups against actions and
omissions that interfere with fundamental freedoms, entitlements and human dignity. Source: United Nations
Office of the High Commissioner for Human Rights, Frequently Asked Questions on a Human Rights-Based
Approach to Development Cooperation (2006) p. 1. (GLOSSARY ON MIGRATION, 2018, p. 94, tradução e
destaques nossos).
68
a minoria básica de direitos individuais e coletivos que não podem ser desrespeitados e, em
hipótese alguma, ignorados.
O reforço dado aos dispostos no artigo 6º pode ser notado por meio da leitura do
artigo seguinte, o 7º, de previsão, in verbis: “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem
qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal
discriminação”. Os termos do artigo estimam uma igualdade formal, cujo tratamento equânime
deva ser dispensado a toda e qualquer pessoa humana.
Em seguida, no artigo 13, há a previsibilidade do direito à liberdade de locomoção
a qualquer pessoa no âmbito dos Estados, bem como a possibilidade aos indivíduos de deixarem
um país e de partirem em direção a outro, além de instituir a chance de regresso. É o que
instaurou a lei: “Artigo 13 - 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e
residência dentro das fronteiras de cada Estado; 2. Todo ser humano tem o direito de deixar
qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar” (ONU, 1948).
Dados os dispostos anteriores, fixa-se o direito à migração e a garantia no âmbito
jurídico dos Direitos Humanos ao indivíduo migrante, assim como às diferentes categorias de
pessoas, em todos os lugares por onde passarem ou decidirem permanecer, ainda que
temporariamente. As liberdades fundamentais e os direitos dos indivíduos devem ser
respeitados em qualquer situação, necessitando ser preservada a dignidade humana.
Apesar dos Direitos Humanos na atualidade terem uma forte influência em
assegurar o respeito aos direitos de migrantes e refugiados, o instituto do refúgio é anterior a
esse instrumento internacional. Em obra de organização de (2010)57, o refúgio apresenta uma
perspectiva histórica que se assemelha àquela do asilo, mas é no século XX, com o surgimento
da Liga das Nações, que passa a existir uma proteção factual a refugiados e asilados por meio
da comunidade internacional.
Pode-se apontar o fim da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, em
conjunto com o desmembramento do Império Otomano como eventos responsáveis pela
existência abundante de deslocamentos e de refugiados no mundo, configurando um total de
1,5 milhão de indivíduos nessas situações. Foi por meio desse grande coeficiente de pessoas
em condições similares que a comunidade internacional se viu obrigada a dar uma definição
mais concreta à condição jurídica dos refugiados, além de dar-lhes a proteção de que careciam.
(BARRETO, 2010, p. 14).
57
Trabalho em parceria com o Ministério da Justiça e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR).
69
O autor explica que o agravamento dessa questão culmina com a Segunda Grande
Guerra, levando uma quantidade, à época, inimaginável de pessoa, a fugir dos efeitos do
nazismo, havendo a criação da Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas
(UNRRA), pelos Aliados, no ano de 1943.
Com a realização da Conferência de Bermudas, ocorreu uma ampliação da proteção
internacional aos indivíduos em condições de refúgio, em que se definiu refugiados enquanto
“todas as pessoas de qualquer procedência que, como resultado de acontecimentos na Europa,
tiveram que abandonar seus países de residência por terem em perigo suas vidas ou liberdade,
devido a sua raça, religião ou crenças políticas” (BARRETO, 2010, p. 14). Essa definição, em
1951, compôs a acepção do termo “refugiado” trazido pela Convenção de Genebra.
Ainda de acordo com Barreto (2010), no ano de 1946, em Assembleia Geral da
ONU, foram estabelecidos princípios que regeriam a condição do refugiado, quais sejam: “o
problema do refúgio tem alcance e caráter internacional; um órgão internacional deve ocupar-
se do futuro dos refugiados e pessoas deslocadas; e a tarefa principal consiste em estimular o
pronto retorno dos refugiados a seus países e ajudá-los por todos os meios possíveis” (p. 14).
De igual modo, foi criado um princípio que daria origem ao atual “non-refoulement”, dispondo:
“não se deve obrigar o regresso ao seu país de origem de refugiados que expressarem objeções
válidas a esse retorno”. Atualmente, o “non-refoulement” prevê similarmente que “os países
não podem obrigar uma pessoa a retornar ao seu país de origem se houver um receio fundado”.
(BARRETO, 2010, p. 14).
Com a previsão de que um órgão internacional se ocuparia do futuro dos refugiados
e indivíduos deslocados, criou-se em 1947 a Organização Internacional de Refugiados (OIR).
Essa organização ficou incumbida de tratar das adversidades atribuídas à Segunda Guerra
Mundial. Barreto (2010, p. 15) constata, também, a criação do Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR) no ano de 1950, encarregado da proteção internacional dos
refugiados.
Em relação ao Brasil, o país fez a devida adesão à Convenção de Genebra (1951),
no ano de 1960. Contudo, apenas vinte anos mais tarde o ACNUR chegou à América Latina,
empreendendo, inicialmente, ações na América Central. Naquele período, a América do Sul
experienciava diversos regimes de exceção, como a ditadura no Brasil, e milhares foram os
indivíduos obrigados a deixarem seus países em razão desses regimes.
Barreto (2010) explica que muitos perseguidos na região sul-americana partiam em
direção ao Brasil para assegurar suas sobrevivências, considerando o fato de que não possuíam
condições financeiras ou atendiam a requisitos burocráticos para tentarem a vida em um país
70
mais distante dos seus, ou atravessarem o continente. É nesse contexto que a Cáritas
Arquidiocesana do Rio de Janeiro, em conjunto com a Cáritas paulistana, passou a dar suporte
a imigrantes e refugiados que chegavam ao Brasil a partir do ano de 1975, a exemplo dos recém-
chegados do Chile, da Argentina, ou do Uruguai, que buscavam acolhida no país.
O autor cita o exemplo de jovens chilenos que chegam ao Brasil e buscam pela
Arquidiocese do Rio de Janeiro acompanhados de uma carta escrita pelo Vicariato de
Solidariedade do Chile recomendando essas pessoas e solicitando à igreja católica que os
protegesse, estando no Brasil, dentro do que fosse possível. Não era sequer imaginável, naquele
período, que o governo brasileiro prestaria qualquer tipo de assistência àqueles indivíduos. Foi
então que o cardeal D. Eugênio de Araújo Sales, a quem a carta foi posteriormente entregue,
no mês de abril de 1976, fez uma ligação para o comandante geral do Exército brasileiro e, sem
fazer qualquer denúncia ou pedido para abrigar aqueles jovens, informou ao comandante que a
Cáritas do Rio de Janeiro acolheria indivíduos perseguidos provenientes da Argentina, do
Uruguai e do Chile, através dos fundos levantados pela igreja (BARRETO, 2010, p. 17).
James C. Hathaway, na obra “The Rights of Refugees under International Law”
afirma que “o maior desafio com que se deparam os refugiados que chegam ao mundo
desenvolvido tem sido, tradicionalmente, convencer as autoridades de que têm, de fato, direito
ao reconhecimento do seu status de refugiados”58 (2005, p.1). No mesmo sentido, explica o
autor que os governos de países industrializados têm se questionado quanto à lógica de
assimilação rotineira de refugiados, buscando encontrar uma maneira de limitar o acesso desses
indivíduos a uma miríade de direitos.
Percebe-se, assim, a importância de toda uma luta social traçada no contexto do
instituto do refúgio ao redor do mundo, pois, existe uma tendência dos governos se
movimentarem em direção a uma “forma menos robusta de proteção dos refugiados” 59, nas
palavras de Hathaway (2005, p. 3). O autor acredita que esse problema tem relação com a
maneira como países mais pobres abordam a chegada de solicitantes de refúgio em suas
fronteiras, explicando que, esses países, de um modo geral, nem mesmo contestam a
elegibilidade de indivíduos ao status de refugiados.
Ao comprometer-se com a proteção internacional de refugiados, um estado deverá
efetuar a ratificação da Convenção de 1951 (e Protocolo de 1967), sendo necessário que se
58
“The greatest challenge facing refugees arriving in the developed world has traditionally been to convince
authorities that they are, in fact, entitled to recognition of their refugee status”. (HATHAWAY, 2005, p. 1, tradução
nossa).
71
60
Em organização de BARRETO (2010).
61
Adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá:
Problemas Jurídicos e Humanitários”, realizado em Cartagena, Colômbia, entre 19 e 22 de Novembro de 1984.
72
violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado
gravemente a ordem pública. (BARRETO, 2010, p. 16).
62
WALDMAN, Tatiana Chang. Nem clandestinos, nem ilegais: construindo contornos para uma definição
da condição migratória não documentada no Brasil. 2016. 245f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
73
nacional. Afirma Waldman (2018) que esta “era uma legislação para pessoas não nacionais,
marcada por restrições de direitos e imposição de muitos deveres, sob a justificativa da proteção
ao interesse nacional, à segurança nacional e ao trabalhador nacional” (2018, p. 10).
Na esfera social, grande foi o descontentamento causado pela maneira como foram
abordados temas associados à situação dos imigrantes no país, repercutindo negativamente por
toda a parte no Brasil. Assevera a autora que já havia pressões públicas mesmo antes da
aprovação do documento, mesmo de setores que não lidavam diretamente com a questão
migratória. Muitos eram contrários a essa lei.
O Estatuto do Estrangeiro vigorou por quase quatro décadas, e isso fez com que a
política migratória no Brasil em grande parte impusesse requisitos de proibição à entrada e
permanência de imigrantes no país, não fornecendo a documentação necessária àqueles que,
em tese, não proporcionariam mão de obra especializada para o mercado de trabalho brasileiro,
ou que não possuíssem filhos ou cônjuges de origem brasileira, explica Waldman (2018, p. 12-
13). Nesse diapasão, o artigo 38 do Estatuto do Estrangeiro dispunha: “É vedada a legalização
da estada de clandestino e de irregular, e a transformação em permanente, dos vistos de trânsito,
de turista, temporário (artigo 13, itens I a IV e VI) e de cortesia”. Assim sendo, a situação
daqueles que entrassem sem a documentação necessária no país se tornaria insustentável com
a impossibilidade de regularizar-se.
O cenário mais esperançoso para essas pessoas girava em torno da anistia, que,
embora não resolvesse todos os problemas relativos à obtenção de documentos para
permanência no país, proporcionou a um número limitado de indivíduos a legalização de sua
estadia. As anistias ocorreram em quatro momentos, quais sejam: “nos anos de 1981 (Lei n.º
6.964/81), 1988 (Lei n.º 7.685/88), 1998 (Lei n.º 9.675/98) e 2009 (Lei n.º 11.961/09)”
(WALDMAN, 2018, p.13).
O advento da Constituição de 1988, aproximadamente oito anos após a entrada em
vigor do Estatuto do Estrangeiro, e vinte anos de regime ditatorial, instituiu formalmente o
Estado Democrático de Direito, que, em referência a Waldman (2018), teria por fundamentos a
cidadania, assim como a dignidade da pessoa humana. Apesar de não apresentar de maneira
expressa a temática migratória, na nova Constituição Federal “houve a equiparação entre
brasileiros e estrangeiros no exercício e garantia de grande parte dos direitos fundamentais”
(WALDMAN, 2018, p. 14). Afirma Waldman (2018) que isso resultou na não recepção de parte
dos dispostos no Estatuto do Estrangeiro com o estabelecimento de uma nova ordem.
Em exposição da autora, o Estatuto do Estrangeiro restringia direitos fundamentais
abrangidos pela Constituição de 1988. A esse exemplo, Waldman (2018) disserta sobre o artigo
74
48 da Lei n.º 6.815/80, em que migrantes internacionais que não possuíssem documentação
regular eram excluídos de instituições educacionais, tendo acesso ou matrícula negados a
cursos, e suspensão ou cancelamento de matrícula nos casos de cursos em vigência. O Estatuto
do Estrangeiro, ainda, incumbia à escola o dever de fiscalizar a situação de regularização de
imigrantes, com a obrigação de remeter informações nesse quesito ao Ministério da Justiça.
Dentro da nova ordem constitucional instituída, prevalecia o direito universal à
educação, conforme artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho” (Constituição Federal, 1988). O artigo 206 complementou o anterior prevendo em
seu inciso I a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Com isso, o
desentendimento entre a Constituição de 1988 e a Lei n.º 6.815/80 levou à elaboração de uma
nova Lei de Migração, com sua entrada em vigor 180 dias após publicação oficial.
Assim, chegou-se à Lei n.º 13.445 de 24 de maio de 2017, que instituiu a Lei de
Migração no Brasil. Sua aprovação trouxe uma gama de mudanças, a começar pelo próprio
nome adotado para a lei. Conforme explica Waldman (2018, p. 26), “não temos mais um
Estatuto do Estrangeiro, do não nacional, do que não pertence ao nosso país”. De igual maneira,
deixa-se de lado o Registro Nacional do Estrangeiro (RNE) para se adotar o Registro Nacional
Migratório (RNM), em consonância com o artigo 117 da nova lei.
A Lei n.º 13.445/2017 prevê no artigo 31, §5º, a possibilidade de concessão de
autorização de residência para um indivíduo sem que isso dependa de sua situação migratória.
Outro contraponto com o Estatuto do Estrangeiro, cuja previsão era clara quanto à
impossibilidade de documentar-se, posteriormente, qualquer migrante que tivesse entrada ou
permanência no Brasil sem a documentação requisitada.
A nova Lei tem uma abrangência muito maior que o Estatuto do Estrangeiro, sendo
até mesmo necessário que fossem delimitadas categorias para que fosse possível garantir
direitos fundamentais aos indivíduos a elas pertencentes. De acordo com a Lei n.º 13.445/2017:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula
a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas
públicas para o emigrante.
§ 1º Para os fins desta Lei, considera-se:
I - (VETADO);
II - imigrante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se
estabelece temporária ou definitivamente no Brasil;
III - emigrante: brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior;
IV - residente fronteiriço: pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva
a sua residência habitual em município fronteiriço de país vizinho;
75
V - visitante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas
de curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente no
território nacional;
VI - apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado,
segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas,
de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim
reconhecida pelo Estado brasileiro.
§ 2º (VETADO).
Art. 2º Esta Lei não prejudica a aplicação de normas internas e internacionais
específicas sobre refugiados, asilados, agentes e pessoal diplomático ou consular,
funcionários de organização internacional e seus familiares.
63
Neste contexto, aplicar-se-á interpretação inclusivista, com base em Carling (2021), visto que os autores não
apresentaram distinção para as categorias de migrantes e refugiados em seu texto.
77
mas também de indivíduos que abandonavam o Uruguai, a Argentina, ou o Chile devido aos
governos militares em ascensão nesses lugares.
Segundo Tomaz Páez (2014, p. 1) “en el siglo XXI el régimen ha promovido otro
tipo de inmigración, más asociada al interés del partido de gobierno, proveniente de países
cuyos regímenes los convierte en aliados: Cuba, China y los países del Medio Oriente”. O autor,
dessa maneira, afirma como elemento de atração de migrantes a convergência com o regime de
governo em vigor na Venezuela no século XXI.
Nesse contexto, ao longo da história houve uma grande tendência migratória para a
Venezuela, movida por questões de interesse internacional e de outros países, visto a forte
presença de conflitos armados em âmbito global, conflitos internos em países de regimes
ditatoriais, ou devido a questões de identificação com o regime venezuelano. Enquanto os
fluxos para a Venezuela se efetuavam a níveis de outras nações, os venezuelanos que estavam
fora do país em razão de sua formação (graduação ou pós-graduação), retornavam para a
Venezuela após a conclusão de seus estudos.
Contudo, essa tendência migratória sofreu imensa mudança justamente ao final do
século XX e, mesmo no início do século XXI, embora existia no período um pequeno fluxo que
Tomaz Páez (2014) apresentou em relação à convergência ideológica com as ideias de
governança disseminadas pelos presidentes do país nos períodos informados. Por conseguinte,
asseverou Páez (2014, p. 2) “Venezuela se transformó de receptor de inmigrantes en exportador
de emigrantes”.
Os motivos para essa transformação da Venezuela em país “exportador de
emigrantes”, como retrata o autor, têm ligação intrínseca com o momento experienciado pelo
país. Qualquer indivíduo que vivenciou as últimas décadas no mundo será capaz de dizer que
há problemas sérios ocorrendo na Venezuela da atualidade, levando milhões de pessoas a
buscarem ajuda fora do país. Por toda parte, os noticiários em momentos críticos alarmam a
população global, trazendo novamente o assunto para o foco – visto que, diante de tantas
ocorrências, a exemplo da pandemia causada pelo novo coronavírus, SARS-CoV-264,
facilmente se esquece da situação grave que aflige a população venezuelana e muitas outras.
O relatório “Global Trends: forced displacement in 2020” do ACNUR (2021),
conforme mencionado alhures, apresenta dados de que, ao final de 2019, o equivalente a 4,5
milhões de venezuelanos tinham abandonado o país em direção a países latino-americanos e
64
A pandemia de COVID-19 (SARS-CoV-2) foi oficialmente confirmada em 11 de março de 2020 pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). Mais informações em:
<https://www.who.int/eportuguese/countries/bra/pt/>. Acesso em: 06/09/2021.
78
caribenhos, o que configura para a organização o maior “êxodo” (ACNUR, 2021, p. 10)
regional considerando-se os eventos mais recentes.
Com base na leitura do mesmo relatório, constata-se que uma média de 900.000
(novecentos mil) venezuelanos buscaram por asilo entre 2017 e 2019, figurando entre esses
430.000 (quatrocentos e trinta mil) pessoas apenas no ano de 2019. Tal fato tem efeito direto
em políticas migratórias e para refugiados que são desenvolvidas em países que tiveram algum
tipo de afetação em decorrência do fluxo de venezuelanos que lhes procuraram. Alguns países
tentaram simplificar processos burocráticos e, assim, também acelerar o processamento do
status de refugiado para favorecer venezuelanos.
Na América Latina, o ACNUR (2020) verificou até 2019 a concessão de permissão
de residência para 2,4 milhões de venezuelanos. Assim, esses indivíduos poderão acessar mais
facilmente alguns serviços básicos na região. Apesar disso, não há como ignorar o fato de ainda
existir, e em escala ascendente, venezuelanos com situação irregular nos países de chegada. A
esse exemplo, o relatório traz a informação de que 50% dos venezuelanos que vivem na
Colômbia se enquadram nessa categoria de irregularidade.
A grande maioria de deslocados venezuelanos tem se mudado para países na
América do Sul, sendo eles a Colômbia, o Peru, o Equador, a Argentina, o Chile e o Brasil. Há,
também um número crescente de pessoas indo em direção à América Central e o Caribe,
conforme o relatório Word Migration Report 2020.
Segundo dados da ONU, expostos em Valéria Aguiar (2019), o Brasil ficou em
quinto lugar como destino para migrantes e refugiados venezuelanos em 2019, com base em
dados coletados até o final de 2018 em que se encontravam no país cerca de 168 mil pessoas.
A Colômbia ficou em primeiro lugar, com 1,3 milhões de venezuelanos, o Peru em segundo
lugar (768 mil), em terceiro lugar ficou o Chile (288 mil) e em quarto lugar estaria o Equador
(263 mil). Além desses países, verificou-se naquele ano a presença de 130 mil venezuelanos na
Argentina. O México e demais países na América Central também teriam apresentado números
relevantes de imigrantes e refugiados de mesma origem.
A Agência das Nações Unidas para Refugiados (2020) também demonstrou, por
meio do relatório, imensa preocupação com a proteção que deve ser dada aos venezuelanos que
deixaram a Venezuela, visto que essa salvaguarda deve evitar que indivíduos sejam forçados a
retornarem a seu país de origem, ou sejam impedidos de ter acesso a serviços básicos que
servirão de amparo para a sua subsistência no local de chegada, independentemente da situação
de legalidade em que se encontrem naquele país.
79
65
Mais informações em: <https://data2.unhcr.org/en/situations>. Acesso em 04/09/2021.
66
“With the objective of ensuring an accountable, coherent, coordinated and protection-sensitive operational
response for refugees and migrants from Venezuela across the region” (ACNUR, 2020, p. 10, tradução nossa).
67
Mais informações em: <https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2018/setembro/policia-federal-
atualiza-dados-sobre-migracao-de-venezuelanos>. Acesso em 04/09/2021. Publicado em 05/09/2018, 20h38.
80
68
RMRP 2020 End-Year Report. Disponível em: <https://www.r4v.info/>. Acesso em 21/08/2021.
81
Houve, assim, uma baixa nos números de ingressantes no Brasil, sem que deixasse
de existir, visto a possibilidade de rotas alternativas e – enormemente – perigosas à saúde e à
vida dessas pessoas. Para essa constatação, uma reportagem publicada em 13 de março de 2020,
intitulada “Fronteira do Brasil com a Venezuela é fechada” e veiculada pela emissora da Rede
Globo (em site do G169), com subtítulo: “Fechamento parcial deve durar 15 dias e impede
entrada de estrangeiros vindos da Venezuela; brasileiros natos ou naturalizados podem entrar
no país. Trânsito de mercadorias deve seguir liberado”. Essa foi uma decisão do governo
Federal, através de solicitação do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Com o agravamento da pandemia e prorrogação do fechamento de fronteiras
também a outros países, a situação apenas teve um novo desfecho em 23 de junho de 2021, com
a publicação da Portaria n.º 655, que dispôs sobre a restrição excepcional e temporária de
entrada no País de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, conforme recomendação da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa.
A Portaria, no seu artigo 3º, alínea b), asseverou: “Art. 3º As restrições de que trata
esta Portaria não se aplicam ao: [...] b) cujo ingresso seja autorizado especificamente pelo
Governo brasileiro em vista do interesse público ou por questões humanitárias;”. De igual
modo, o artigo 4º explicou:
69
Mais informações em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/03/18/fronteira-do-brasil-com-a-
venezuela-e-fechada.ghtml>. Acesso em 04/09/2021. Por Fabrício Araújo e Valéria Oliveira, G1 RR — Pacaraima.
82
chegada ou de permanência, no Brasil, frente à Polícia Federal, para todos os venezuelanos que
buscaram o país como local destino, mesmo que durante esse lapso temporal.
Uma reportagem escrita por Flávia Mantovani, da Folha de S. Paulo, veiculada em
28 de setembro de 2020, com o título “Imigrantes venezuelanos estão em 23% dos municípios
brasileiros”70, aponta que “há imigrantes venezuelanos do Oiapoque ao Chuí —mais
precisamente, 2 registrados na cidade amapaense que é um dos extremos do norte do país e 8
na cidade gaúcha localizada na outra ponta” (MANTOVANI, 2020).
A autora se referiu a dados do “Atlas Temático-Migrações Venezuelanas”71 em que
mostrou a presença de venezuelanos em 1.291 (mil duzentos e noventa e um) municípios dos
5.570 (cinco mil quinhentos e setenta) que existem no Brasil, ou seja, 23% dos municípios do
país. Verificou-se, ainda, a presença de venezuelanos em 126 municípios em Minas Gerais –
estado de realização desta pesquisa –, somando um total de 1.814 (mil oitocentos e quatorze)
migrantes e refugiados dessa nacionalidade no Estado, no período entre 2000 e 2019.
Passa-se aqui a apresentar um fragmento dos estudos retratados pelo Atlas Temático
do Observatório das Migrações em São Paulo e do Observatório das Migrações Internacionais
do Estado de Minas Gerais, publicado em 2020. Sobre as tendências e características das
migrações venezuelanas no Brasil, entre os anos 2000 e 2020, o documento disponibiliza os
“imigrantes”72 com registros ativos (Registro Nacional Migratório – RNM) no país, de acordo
com as grandes regiões em que residem. O mapa foi feito considerando um número total de
162.503 (cento e sessenta e dois mil, quinhentos e três) migrantes e refugiados.
Observa-se, na figura 2 a seguir, uma grande quantidade de venezuelanos
concentrada no Norte do Brasil, que chegou a alcançar 120.912 (cento e vinte mil novecentos
e doze) pessoas do ano 2000 a março de 2020. Em segundo lugar em nível de concentração de
venezuelanos encontra-se a região Sudeste do país, com 18.222 (dezoito mil, duzentas e vinte
e duas) pessoas no mesmo período. A região Sul acolheu 13.816 (treze mil oitocentos e
dezesseis) venezuelanos, o Centro-Oeste recebeu 5.601 (cinco mil seiscentos e um) e o
Nordeste 3.639 (três mil seiscentos e trinta e nove). De aproximadamente 310 indivíduos não
foram identificados dados de residência.
70
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/09/imigrantes-venezuelanos-estao-em-23-dos-
municipios-brasileiros.shtml>. Acesso em: 06/09/2021.
71
Mais informações em: <https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/_atlasvenezuela.php>. Acesso em:
06/09/2021.
72
Considerar-se-á o termo “imigrantes” dentro de uma interpretação inclusivista, com base em Carling (2021),
visto que os autores não apresentaram distinção para as categorias de migrantes e refugiados neste texto.
83
Figura 2: Mapa dos Imigrantes da Venezuela com registros ativos (Registro Nacional
Migratório – RNM) no Brasil, segundo grandes regiões de residência, 2000-Março de 2020
(n=162.503)
73
Disponível em: <https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/_atlasvenezuela.php>. Acesso em: 06/09/2021 –
pág. 19.
74
SILVA, Daniel Neves. "Crise na Venezuela"; Brasil Escola. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/historia-da-america/crise-na-venezuela.htm>. Acesso em 06 de setembro de 2021.
84
agravamento da crise econômica e política do país e a chegada de Donald Trump ao poder, que
em seu desafeto com Nicolás Maduro, passa a impor sanções à Venezuela.
O Atlas Temático – Migrações Venezuelanas (2020) trouxe também um
levantamento de idades e sexo dos venezuelanos com registros ativos no país:
As imagens permitem concluir que houve entre janeiro e março de 2020, antes do
fechamento das fronteiras em decorrência da pandemia de COVID-19, aumento significativo
na entrada de migrantes e refugiados, sendo importante pontuar uma taxa superior na chegada
85
Com base na publicação desses dados, a capital mineira registrou o maior número
de ingressantes dentro da unidade federativa, sendo 502 pessoas identificadas; em segundo
lugar no Estado de Minas Gerais, ficou o município de Juiz de Fora, com 222 venezuelanos; e,
em terceiro lugar, o município de Uberlândia, com 164 registros. O município de Montes
Claros, à época, identificou a presença de 14 venezuelanos refugiados. Vale ressaltar a
variabilidade frequente nesse quantitativo, considerando o interesse dos recém-chegados em ali
permanecer, sendo alguns fatores preponderantes nessa decisão, a exemplo das possibilidades
de emprego e moradia.
89
aguardavam por resposta do Ministério da Justiça quanto à sua solicitação de refúgio. Apenas
08 (oito) pessoas identificaram-se em situação irregular e 10 não responderam ao questionário.
A pandemia de COVID-19 teve grande impacto na vida de todos, e, ainda mais
severamente na vida de quem estava num longo processo de inserção social, advindo de uma
crise humanitária. Verificou-se que 592 (quinhentas e noventa e duas) pessoas estavam
trabalhando antes da pandemia – quase 49% dos respondentes – até início de 2020. Desses,
apenas 261 (duzentos e sessenta e um) continuaram trabalhando no mesmo emprego após o
início da pandemia, sendo que 39 (trinta e nove) passaram a trabalhar em um novo emprego.
Cerca de 145 (cento e quarenta e cinco) pessoas foram despedidas ou informadas
pelos seus empregadores de que seriam despedidos nas próximas semanas, enquanto outros 28
foram colocados em férias coletivas e forçadas. Dos 300 venezuelanos com trabalho, 68
(sessenta e oito) afirmaram trabalharem em na modalidade “home office”.
Como se perceberá, os dados mais atuais aqui dispostos sobre a situação de
refugiados e migrantes venezuelanos se referem ao início da pandemia do novo coronavírus.
Fato é que facilmente se constatará o agravamento destes, tendo por base uma leitura social da
situação em que se encontram os próprios brasileiros, considerando a forma de condução do
governo brasileiro da pandemia, a escassez de trabalho, a alta inflação e o preço do dólar
próximo a R$6,00 (seis reais) ao final de 2021.
Muitas são as questões suscitadas pelos dados retratados pelo Atlas Temático –
Migrações Venezuelanas (2020), bem como demais informações anteriormente retratadas.
Porém, considerando-se os estudos a que se destina esta pesquisa, abre-se o debate para novas
retratações e diálogos posteriores relativamente às problemáticas identificadas.
Em publicação de João Carlos Jarochinski Silva e Bernardo Adame Abrahão
(2019), os estudiosos apresentam uma análise das solicitações de refúgio dos venezuelanos. Os
autores tiveram autorização do CONARE para analisarem as causas apresentadas nos
formulários de solicitação de refúgio aplicados a venezuelanos de 2015 a 2017 – observando
os autores a impossibilidade de análise dos dados relativamente ao ano de 2018 em um tempo
hábil. O método utilizado foi a amostragem aleatória simples, em que fizeram uso de 10% do
número total de formulários.
Segundo Silva e Abrahão (2019, p. 263), “percebeu-se que está muito presente mais
de uma causa para a saída da Venezuela, alguns destes venezuelanos, inclusive, elencando todas
as causas de refúgio como sendo a motriz do deslocamento”. Contudo, os autores fizeram o
descarte dos formulários em que todas as causas haviam sido marcadas, selecionando outros
formulários de maneira aleatória e no mesmo ano de exercício. Também optaram os autores por
91
fixar apenas uma causa do documento como a principal, considerando-se aquela em que mais
detalhamento se deu como embasamento ao pedido de refúgio.
Com efeito, foi observado por Silva e Abrahão (2019) uma quantidade considerável
de solicitações de refúgio de venezuelanos indígenas, de origem étnica Warao – sobre os quais
se falará com mais detalhe no terceiro capítulo deste texto dissertativo. As justificativas
apresentadas nos formulários dos Waraos tinham mesmo preenchimento e embasamento.
Porém, a especificidade dos indígenas levou os pesquisadores a lhes desconsiderarem da
avaliação dos dados e foi feita a seleção de outros formulários para inserção na pesquisa.
Os autores optaram por uma interpretação literal dos dados encontrados, em vez de
um método dedutivo-indutivo. Dessa forma, as causas que são expostas pelos autores foram as
mesmas que os solicitantes escreveram nos formulários, podendo estas estarem ou não em meio
àquelas antecipadas para o refúgio. A única exceção às descrições anteriores se refere aos
indivíduos que justificaram como razões para o seu refúgio a falta de "oportunidade de
trabalho", ou "custo de vida", assim como a "qualidade de vida" e a resposta "sem emprego",
que foram alocados dentro do contexto de "crise econômica", explicam Silva e Abrahão (2019,
p. 264)”.
Através de uma leitura dos gráficos criados pelos autores, identifica-se como causa
crescente para a solicitação de refúgio a “crise econômica”, que em 2015 representou 32% das
respostas, em 2016 foi de 35%, chegando a 51% em 2017. A “fome” em 2015 foi identificada
como a segunda principal causa para as buscas de refúgio, ao lado da “crise política”, ambas
com 16% de ocorrência, e a “insegurança” (11%) com pouco mais verificação que “violação
de direitos humanos” (10%).
Já em 2016, pode-se destacar a “falta de alimentos” como a segunda principal causa
(30%), e a “insegurança” (12%) em terceiro lugar. Com um patamar em 9% encontrou-se a
“crise política”, diferentemente da constatação no ano anterior em que atingiu 16%. O mesmo
ocorreu com a “violação de direitos humanos”, que caiu 6% na verificação em 2016, ficando
em 4% – ao lado do motivo “opinião política”.
O gráfico de 2017 disponibilizado pelos autores traz uma nova ascensão à “crise
política”, que saltou para 13%. Houve queda nos relatos de falta de alimentos (para 21%), e a
justificativa em “violação de direitos humanos também teve baixa de 1% (ficando em 5%).
Outras causas constantemente apresentadas, embora em menores proporções ao longo dos anos,
foram: “falta de medicamentos”, “estudante”, “casou-se com brasileira/brasileiro”.
De modo geral, pode-se dizer que a conhecida “crise econômica” que assola a
Venezuela foi a principal justificativa para a entrada desses refugiados no país entre 2015 e
92
2017, seguida pela “falta de alimentos/fome” e pela “crise política”. Tais razões, porém,
geraram um número cada vez mais crescente de solicitações de refúgio, fazendo com que o país
buscasse outras opções de embasamento legal e efetividade na resolução dessa questão. Assim,
Silva e Abrahão (2019) expõem as alternativas usadas pelo governo brasileiro como meio de
resolução do problema: a emissão de “residência temporária” por parte do Conselho Nacional
de Imigração (CNIg), com adoção posterior pela Portaria Interministerial nº 9 de 15 de março
de 201875; e o reconhecimento do refúgio, também trazido anteriormente para a discussão no
âmbito desta pesquisa, com fundamento na grave e generalizada violação de direitos humanos
aos nacionais venezuelanos. (SILVA; ABRAHÃO, 2019, p. 268).
Não se pretende aqui aprofundar os motivos que levaram venezuelanos migrantes
a buscarem o Brasil como destino, reconhecendo-se a questão dos refugiados como o foco
central deste trabalho. Sabe-se, porém, que grande parte dos migrantes a que se referem esses
dados dividem-se entre “migrantes forçados/involuntários e migrantes voluntários”, conforme
definição em Alexander Betts (2009), apesar dessa definição ser problemática na sua aplicação,
visto a dificuldade de mensurar fatores como a vontade e a coerção que operam nessa distinção.
Betts (2009, p. 4) explica que “a separação dessas categorias resulta, em grande
medida, de categorias de políticas concebidas para distinguir e priorizar os direitos de diferentes
grupos de pessoas”76. Assim, o autor afirma que “a migração forçada é muitas vezes assumida
como tendo uma base política, baseando-se na fuga de perseguição ou conflito; a migração
voluntária é geralmente assumida como sendo sustentada por motivos econômicos.”77
Obviamente, não se pode generalizar os motivos que embasam todo o fluxo venezuelano,
observado o disposto alhures da complexidade do fenômeno migratório e a subjetividade na
escolha do migrar. Mas essa é, também, uma concepção importante para esta construção.
O fluxo migratório venezuelano para a América Latina, e, no tocante ao Brasil, é
um fluxo misto, consoante conceituação em Silva, J.C.J. et al (2017, p. 17), devendo-se ter
muito cuidado quanto às políticas públicas que irão amparar migrantes, seus direitos e deveres,
bem como atenção aos direitos e garantias que devem salvaguardar refugiados. É notório, no
75
Dispõe sobre a concessão de autorização de residência ao imigrante que esteja em território brasileiro e seja
nacional de país fronteiriço, onde não esteja em vigor o Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes
do MERCOSUL e países associados, a fim atender a interesses da política migratória nacional. (Alterada pelas
Portarias Interministeriais nos 15 de 27 de agosto de 2018 e 2, de 15 de maio de 2019).
76
“The separation of these categories emerges largely from policy categories designed to distinguish between and
prioritize the rights of different groups of people”. (BETTS, 2009, p. 4, tradução nossa).
77
“Forced migration is often assumed to have a political basis, being based on flight from persecution or conflictt;
voluntary migration is generally assumed to be underpinned by economic motives”. (BETTS, 2009, p. 4, tradução
nossa).
93
momento presente, a constância desse fluxo, mesmo que a pandemia de COVID-19 o tenha
restringido em certo grau – como com o fechamento de fronteiras terrestres e aéreas.
Sabe-se que, conforme explicitado anteriormente, o ano de 2020 foi bastante atípico
e com consequências diretas nos fluxos migratórios e nas solicitações de reconhecimento da
condição de refugiados, devido à pandemia que foi anunciada logo no início daquele ano. Com
as restrições aplicadas à circulação de pessoas, o controle de fronteiras e outras medidas na
tentativa de impedir a rápida disseminação do vírus, percebeu-se que os dados da Polícia
Federal no tocante às solicitações de reconhecimento da condição de refúgio tiveram uma
grande baixa se comparados com aqueles alcançados em 2019.
De acordo com a 6ª edição do relatório “Refúgio em Números” 78, em 2019 foram
82.552 (oitenta e duas mil, quinhentas e cinquenta e duas) solicitações de reconhecimento de
condição de refúgio, o equivalente a 65% a mais que as 28.889 (vinte e oito mil, oitocentas e
oitenta e nove) do ano de 2020. O número de solicitação de 2019 foi o maior já ocorrido no
país, e, pode-se depreender disso que a expectativa era também grande para o ano seguinte.
O relatório explica que, apesar dos mais baixos números de 2020, visto as rigorosas
limitações de mobilidade humana na esfera internacional que se desdobraram, o ano de 2020
teve uma variação positiva de 1.872% em comparação a 2011, o ano em que foi iniciada a
análise dessa série histórica. Naquele momento, o Brasil recebeu 1.465 (mil quatrocentas e
setenta e duas) solicitações com vistas ao reconhecimento da condição de refugiado.
É importante ressaltar que, das 17.835 (dezessete mil, trezentas e oitenta e cinco)
solicitações de 2020, apenas 39,8% foram de outras nacionalidades – enquanto 60,2% foram de
venezuelanos. O segundo número mais considerável de solicitações de reconhecimento da
condição de refugiado pertence a haitianos ou indivíduos que residiam habitualmente no Haiti,
ou seja, 6.613 (seis mil, seiscentos e treze) pessoas, que equivale a 22,9%. Um outro dado
bastante relevante promovido pelo relatório (2021) é o recebimento de solicitações por meio de
pessoas de um total de 113 países. (SILVA, G.J. et al, 2021, p. 9).
Nacionais ou pessoas que tinham residência habitual em Cuba, China e Angola
estão, na sequência, em maiores quantidades entre os demais solicitantes de refúgio no Brasil
78
Disponível em: <https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/dados/refugio-em-numeros>. Acesso em: 09/09/2021.
94
em 2020. Foram 1.347 (mil trezentos e quarenta e sete) cubanos, 568 (quinhentos e sessenta e
oito) chineses, e 359 (trezentos e cinquenta e nove) angolanos.
O relatório (2021) também aponta para a prevalência de solicitações advindas de
homens (57,3%), em comparação com mulheres (42,7%), apesar de variações em cada
nacionalidade. A faixa etária de maior ocorrência identificada entre os solicitantes é de 25 a 39
anos de idade, sendo seguida pelos solicitantes entre 15 e 24 anos. Cerca de 84,7% do total de
solicitantes são caracterizados como população jovem.
O documento Refúgio em Números (2021) reforça a importância da região Norte
do Brasil na dinâmica de refúgio da atualidade no país, sendo que 75,5% das solicitações de
reconhecimento da condição de refugiado que tiveram apreciação no CONARE no ano de 2020,
foram originadas em Unidades Federativas (UFs) pertencentes à região. Venezuelanos, que
compõem maioria no cenário, formaram 43.183 (quarenta e três mil, cento e oitenta e três)
solicitações, seguidos de haitianos, 2.243 (dois mil, duzentos e quarenta e três), senegaleses,
com 1.881 (mil oitocentas e oitenta e uma) solicitações, e, finalmente, cubanos, compondo 714
(setecentas e quatorze) solicitações.
A região Sudeste foi classificada em segundo lugar em relevância para registros de
solicitações, com 9,9%. Em terceiro lugar foi encontrada a região Centro-Oeste, com 7,8%, em
quarto a região Sul (6,1%), e, em última colocação a região Nordeste, com um total de 0,7%.
As UFs que se destacaram foram Roraima (66,6% das solicitações; 42.512); Amazonas
(10,1%); São Paulo (8,5%); Distrito Federal (6,6%).
Entre 2011 e 2020, considerando-se o aumento no fluxo de solicitações de
reconhecimento da condição de refugiados no Brasil, observa-se que os últimos quatro anos do
período apresentaram 84% do número total de solicitações, conforme relatório Refúgio em
Números (2011). Somente em 2020, é de 10,9% o quantitativo de solicitações analisadas. Nessa
série história, houve alta copiosamente dos números relativos às solicitações, muito embora o
ano de 2016 tenha apresentado uma baixa no crescimento desses números, e, novamente em
2020 devido às implicações trazidas pela pandemia.
De 2011 a 2015, a principal nacionalidade dos solicitantes de refúgio foi a haitiana,
sendo ultrapassada em 2016 pelos venezuelanos. Os percentuais da série histórica sofrem
variações a cada ano, mas é possível dar destaque para o pico histórico de haitianos em 2019,
em que 16.610 (dezesseis mil, seiscentos e dez) deles fizeram solicitações ao CONARE – ou
seja, compondo 20,1% do total. Naquele ano, foi de 65,1% o percentual dos venezuelanos.
Juntos, venezuelanos e haitianos compuseram 85,7% do número total de
solicitantes de refúgio no Brasil em 2018, o equivalente a 83% em 2019, e 85,2% no exercício
95
do ano seguinte, 2020. Considerando-se o período de dez anos em foco, 2011 a 2020, em torno
de 61,5% dos solicitantes de refúgio foram do sexo masculino, representando as mulheres
38,1%. Os 0,4% não inclusos se referem aos 1.104 (mil cento e quatro) indivíduos cujas
informações de sexo não estavam registradas na base da Polícia Federal de onde os dados foram
coletados. A menor variação de solicitantes por sexo foi dos refugiados angolanos, com a
proporção de 54,2% de indivíduos do sexo masculino para 44,7% do sexo feminino. Enquanto
a maior variação foi a de bengalis, na razão de 97,5% de homens para 2,1% de mulheres
(SILVA, G.J. et al, 2021, p. 38).
Na última década (2011-2020), no relatório Refúgio em Números (2021), estão
presentes 76 países como locais de origem para as pessoas que foram efetivamente reconhecidas
como refugiadas no Brasil. Depreende-se do quadro abaixo que, além dos venezuelanos que
representaram o maior número entre os reconhecidos, o segundo maior percentual foi de sírios
6,7% (ou 3.594 pessoas), e em terceiro lugar estão os congoleses (2,0%; ou 1.050 pessoas).
SILVA, G.J. et al (2021, p. 44) explicam que o CONARE relatou como principal
fundamentação aplicada no reconhecimento da condição de refúgio a “Grave e Generalizada
Violação dos Direitos Humanos (GGVDH)”. No total, as GGVDH representaram 93,7%
(48.142 pessoas) dos embasamentos de 2011 a 2020. Logo em seguida, em percentual inferior,
encontraram-se “Opinião Política” (0,5%) e “Grupo Social” (0,4%) das fundamentações no
período estudado. Em 5,1% dos casos (2.603), não houve tabulação da fundamentação, por mais
que esta aparecesse no parecer individual. Assim, estas foram categorizada como “Não
Especificado”.
Tratando-se individualmente das nacionalidades, observar-se-á que a
fundamentação “GGVDH” justificou a concessão de refúgio a 44.663 (quarenta e quatro mil,
seiscentos e sessenta e três) venezuelanos de 2011 a 2020, a 3.392 (três mil, trezentos e noventa
e dois) sírios, a 33 (trinta e três) palestinos, a 30 (trinta) iraquianos, e a 21 (vinte e um)
indivíduos de outros países.
Entre congoleses e cubanos, “Opinião Política” foi o principal embasamento,
atendendo a 36 (trinta e seis) e 147 (cento e quarenta e sete) pessoas oriundas desses países,
respectivamente. Quanto aos paquistaneses, o principal embasamento foi dado como “Grupo
Social”, sendo 25 (vinte e cinco) indivíduos.
Sabe-se que a 6ª edição do relatório “Refúgio em Números” (2021) utilizou-se de
bases de dados geridos pela Polícia Federal, Sistema de Tráfego Internacional – Medidas de
Alertas e Restrições Ativas (STI-MAR), além da Coordenação-Geral do Comitê Nacional para
os Refugiados (CGConare). Foi feita uma conferência ao tratamento estatístico dos dados pelo
Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).
Assim, foi possível a utilização das informações trazidas pelo documento, para uma
análise mais genérica da dinâmica do refúgio no Brasil, tendo por parâmetro a última década,
efetiva do ano 2011 ao ano de 2020. De modo pragmático, objetivou-se apresentar um
panorama de outras solicitações de refúgio no país e do real reconhecimento da condição de
refugiado, embora para esse cenário, também foi importante reapresentar dados (ou introduzir
novos) acerca da população venezuelana – trazidos por essa edição do relatório –, para efeitos
de comparação e de proporcionalidade.
97
79
GALVÃO, 2011, p. 18.
98
[...] na missão precursora de Miguel Maria Lisboa a Caracas entre 1842 e 1852, nas
tratativas do encarregado brasileiro Felipe Pereira leal em 1859, e nas tentativas de
ajuste fronteiriço encampadas pelo negociador venezuelano Tejera Rodriguez e pelo
diplomata brasileiro Oliveira Lima entre o fim do século 19 e início do 20. (GALVÃO,
2011, p. 18).
[...] a percepção sobre o lugar comum compartilhado, a noção das conexões físicas e
geográficas no ambiente fronteiriço, a tradição de diálogo diplomático, a vontade de
acerto sobre os limites territoriais, um acordo quadro de amizade e navegação (1859),
a sobreposição de gerações de contato bilateral e a atualização dos mecanismos de
convivência, como o Tratado de Extradição (1938) e o modus vivendi comercial
(1940). (GALVÃO, 2011, p. 18).
80
Mais informações em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/latinoamerica21/2021/07/realidade-e-desafios-
nas-relacoes-brasil-venezuela.shtml>. Acesso em 14/09/2021. Redação de Paulo Afonso Velasco Júnior, Doutor
em Ciência Política, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política
Externa da universidade.
102
Para Velasco Júnior (2021), “com a intensificação das críticas ao governo Maduro
desde a gestão Michel Temer, o Brasil parece também ter aberto mão de um mercado-chave
para as vendas brasileiras na região, com o volume de exportações oscilando em torno de apenas
meio bilhão de dólares por ano”. Afirma o autor, também, a falta de ação do Brasil frente à crise
que se irrompeu na Venezuela. Além do mais, Velasco Júnior (2021) asseverou que a atitude
do governo Jair Bolsonaro em reconhecer Juan Guaidó como o presidente legítimo no país,
tornou-se uma grande polêmica. Bolsonaro teria feito o reconhecimento em um movimento de
convergência com o posicionamento do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assim
como alguns outros membros pertencentes à União Europeia.
Observa o autor que houve uma mudança do tom moderado com que o Brasil
costumava lidar com os países vizinhos, e mesmo operar como mediador no cenário regional.
Para caracterizar essa mudança, Velasco Júnior (2021) apresentou a escolha de lados feita pelo
Brasil ao “assumir uma retórica agressiva contra Maduro, com o ex-chanceler Ernesto Araújo
denunciando uma “narcoditadura” e um “complexo criminoso-político" chavista”.
Contudo, é possível destacar que a chegada de um novo chanceler, o embaixador
Carlos França – que passou a dirigir as atividades do Itamaraty a partir de 6 de abril de 2021
em substituição a Ernesto Araújo –, o tom moderado tem se destacado novamente, mediante o
tratamento de uma gama de assuntos internacionais, confirma Velasco Júnior (2021). De igual
modo, o autor aponta para o trabalho de Carlos França na busca por negociações com a
Venezuela na tratativa da crise, sendo considerado um chanceler mais pragmático que o
anterior, Ernesto Araújo.
Por fim, deve-se ressaltar que, mesmo com todas as adversidades vividas pela
Venezuela e atritos com o Brasil, sabe-se que o governo Venezuelano se mantém comprador
dos produtos brasileiros, não o havendo substituído por outras possibilidades de fornecimento.
Assim, segue o conselho de Paulo Afonso Velasco Júnior (2021) de que o Brasil precisa se
atentar para o grande interesse econômico existente de sua parte nas relações comerciais com a
Venezuela que, diga-se de passagem, foram, num passado não tão distante, altamente
superavitárias para o país. É importante se considerar a recuperação desse mercado que é
vantajoso para a saúde financeira do Brasil, e, de igual modo, tem seus benefícios para a
Venezuela.
103
“Cheguei aqui e não era nada como eu esperava! Mas regressar era como me sentir derrotado”!
(Refugiado venezuelano em Montes Claros – MG, 40 anos)
O presente capítulo tem por objetivo apresentar uma análise sobre as realidades
vividas pelos refugiados venezuelanos que foram realocados em Montes Claros – MG, entre
2019 e 2021, por meio da política de interiorização do governo brasileiro. Busca-se investigar
a abrangência dessa política de interiorização para os venezuelanos indígenas, assim como
relatar a acolhida de refugiados indígenas Warao no município. Serão relatadas, também, ações
de acolhimento a venezuelanos, na cidade. Como aspectos metodológicos, neste capítulo, estão
presentes a análise documental, entrevistas e grupos focais, bem como a observação
participante, instrumentos essenciais para que os objetivos desta pesquisa fossem alcançados.
◊♦◊
81
Visita feita aos venezuelanos indígenas Warao, em Montes Claros (MG).
104
A busca do Brasil por venezuelanos tornou-se maior, ano após ano, na última
década; em especial após a morte de Hugo Chávez, em 2013, e a consecutiva ascensão de
Nicolás Maduro ao poder. Desse modo, em março de 2018, o governo brasileiro decidiu
apresentar uma resposta ao fluxo migratório verificado em sentido ao país, oriundo da
Venezuela, justificado, majoritariamente, pela sua crise humanitária.
A Medida Provisória n.º 820, de 15 de fevereiro de 2018, foi a primeira providência
tomada pelo presidente em exercício, Michel Temer. A MPV 820/2018 estabeleceu medidas de
assistência emergencial a migrantes e refugiados venezuelanos. Outros instrumentos foram
editados na mesma data da MPV, como é o caso do Decreto n.º 9.285/2018, que reconheceu a
situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório para Roraima, em razão da crise
humanitária na Venezuela, e do Decreto n.º 9.286/2018, que instituiu a governança da Operação
e definiu a composição, competência e as normas de funcionamento do Comitê Federal de
Assistência Emergencial.
Nesse contexto, surge a “Operação Acolhida”, que tem funcionado em formato de
força-tarefa, contando com execução e coordenação do Governo Federal, sendo apoiada,
também, por entes federativos, por agências da ONU, além de organismos internacionais, de
organizações lideradas pela sociedade civil, e outros parceiros, a exemplo da iniciativa privada.
Cerca de 100 órgãos e entidades compõem a Operação que, dentre outras atividades, tem por
objetivo primário a assistência emergencial a refugiados e migrantes vindos da Venezuela,
chegados à fronteira localizada no Estado de Roraima. 82
82
Mais informações em: <https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida/sobre-a-operacao-acolhida-2>. Acesso em:
25/05/2022.
105
Por meio da figura anterior, observa-se que a “Interiorização” surgiu como um dos
três eixos programáticos que compõem a Operação Acolhida, sendo considerada a principal
estratégia governamental para reduzir a tensão que o fluxo migratório tem gerado sobre os
serviços públicos estaduais, em Roraima, além de ser considerada pelas autoridades políticas
uma tática relevante para a promoção de inclusão socioeconômica aos venezuelanos no Brasil.
A política de interiorização é a realocação voluntária de refugiados venezuelanos que se
encontram em vulnerabilidade social, no Estado de Roraima, para outros municípios brasileiros
em que haja melhores expectativas econômicas, num primeiro instante.
De acordo com relatório do ACNUR (2020)83, para participar da política de
interiorização, é necessário que aqueles que desejam ser realocados estejam em situação
regular, no país, e que também estejam imunizados (seguindo recomendações do Ministério da
Saúde), devem ter sido submetidos a análise clínica e terem assinado termo que confirma a
voluntariedade desse processo de realocação.
Nesta pesquisa, verificou-se que a política de interiorização apenas atende a
venezuelanos não indígenas, por motivos que não foram esclarecidos formalmente, embora a
Operação Acolhida tem ajudado a milhares de indígenas venezuelanos que entram no país.
Subentende-se que a não abrangência da política de interiorização para os indígenas tem relação
direta com os laços familiares desses indivíduos, que impediriam o deslocamento de apenas
parte deles (considerando o limite de vagas em cada abrigo voluntário); com questões relativas
à regulação da capacidade civil desses indígenas, haja vista disposição sobre os indígenas
brasileiros, no Código Civil interno, em que o artigo 4º dispõe: “Parágrafo único. A capacidade
dos indígenas será regulada por legislação especial.”; além de maiores dificuldades na
integração desses indivíduos, que, dentre outras coisas, não possuem capacitação técnica, de
modo geral, que favoreça atividades remuneratórias regulares, no país, e seu autossustento.
O Boletim de Interiorização 84 mais recente, divulgado pelo ACNUR, atesta a
interiorização de 70.428 (setenta mil, quatrocentas e vinte e oito) pessoas refugiadas, nas
modalidades de reunião social, reunificação familiar, por vaga de emprego sinalizada (VES),
institucional, e outros. O número de municípios em que ocorre a interiorização é de 778
(setecentos e setenta e oito), aproximadamente, por todo o país.
83
ACNUR. Venezuelanos no Brasil: integração no mercado de trabalho e acesso a redes de proteção social,
2020. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/publicacoes/>. Acesso em: 25/05/2020.
84
Mais informações em: <https://www.acnur.org/portugues/publicacoes/>. Acesso em: 25/05/2020.
106
85
ACNUR. Autonomia e integração local de refugiados(as) e migrantes venezuelanos(as) acolhidos(as) nos
abrigos em Boa Vista (RR), 2021. <https://www.acnur.org/portugues/publicacoes/>. Acesso em: 25/05/2020.
86
BATISTA JR, João et al. “Expulsar é a saída errada” (entrevista). Revista Veja, n. 25 97, 29 de agosto, 2018.
107
dos vários cenários de chegada ao Brasil, considerando o fato de que a reduzida população
local, de cerca de 12 mil habitantes, não compreende exatamente os motivos que levam esses
refugiados a tentar a vida no país.
Naquele dia, Pacaraima contava com uma viatura militar e três soldados armados de
carabina para fiscalizar a fronteira. Depois do conflito, o governo — que em fevereiro,
durante a visita do presidente Michel Temer ao estado, prometeu aumentar a presença
das Forças Armadas para ajudar no acolhimento de imigrantes e não cumpriu —
anunciou o envio de 120 integrantes da Força Nacional a Pacaraima. (BATISTA et
al., 2018, p. 4).
Sabe-se que o cenário descrito por Batista et al. (2018) antecede a MPV 820/2018
e toda a legislação que foi criada em seguida. Certas atitudes governamentais, porém, são
constantes não apenas na região de Pacaraima, como também em todo o entorno fronteiriço,
haja vista o conceito histórico de fronteira, e o comportamento protetivo dos países, ao redor
do mundo, em relação a esse tema.
108
87
Mais informações em: <http://www.funag.gov.br/ipri/images/informacao-e-analise/fronteiras-terrestres-
brasil.pdf>. Acesso em: 31/05/2022.
88
Mais informações em: <https://www.gov.br/pt-br/especial-venezuelanos>. Acesso em: 03/06/2022.
109
ultrapassar 1.000 (mil). O governo brasileiro ainda indica que a maior parte dos Venezuelanos
transpõe a fronteira passando por Santa Elena de Uairén, até chegarem a Pacaraima.
Segundo informação, no mesmo sítio (2022), essas pessoas “chegam ao Brasil com
o que podem carregar consigo: algumas peças de roupas, documentos, poucos objetos pessoais
e um resto de força e coragem, suficientes para que possam buscar uma vida mais decente,
ainda que distante de casa” (BRASIL, 2022).
Após transpassarem a fronteira, há uma grande fila em locais designados para
identificação. Fisicamente, os venezuelanos chegam muito cansados, com fome, e, por vezes,
enfermos, especialmente quem teve algum tipo de tratamento interrompido ao deixar o seu país.
Em relação ao estado psicológico, afirma o governo brasileiro (2022), “os venezuelanos chegam
degradados, com a tristeza no olhar de quem precisou deixar para trás suas casas, parentes,
filhos e esposas, buscando conseguir meios para levá-los a um novo local e recomeçar suas
vidas”.
Os relatos feitos pelas pessoas refugiadas a voluntários ou profissionais envolvidos
no trabalho de acolhimento são variados e, não raramente, comoventes. A esse exemplo, um
representante do Serviço Humanitário SUD, em Roraima, reportou o auxílio prestado a uma
senhora de aproximadamente 40 anos que, ao buscar ajuda desse representante, expôs que
pertencia à oposição do governo do presidente Nicolás Maduro e que, devido a isso, suas pernas
haviam sido queimadas por lança-chamas, em violência praticada por aliados do governo.89
Os recém-chegados a Pacaraima cumprem seus trajetos até à cidade em caronas,
assim como transportes pagos, ou mesmo a pé. Pelos mesmos meios, a tendência é que
continuem em trânsito para Boa Vista, que fica cerca de 213 km (duzentos e treze quilômetros)
do local de chegada, até decidirem sobre o próximo caminho a ser trilhado, ou pela
interiorização.
Os venezuelanos têm pedido, além de refúgio, residência temporária no Brasil,
permitida no ano de 2017, com ascensão da Lei de Migração n.º 13.445, de 24 de maio de 2017,
e pode ser processada gratuitamente. Conforme disposição legal, os venezuelanos não
necessitam de visto para entrada no Brasil, no caso de permanência por até 60 dias como turistas
(§ 1º, art. 31, da Lei de Migração). Então, ao chegar ao país pela fronteira, eles fazem solicitação
às autoridades brasileiras da condição de refúgio e aguardam pelo deferimento para que possam
receber a documentação necessária à sua permanência.
89
Mais informações em: <https://www.gov.br/pt-br/especial-venezuelanos>. Acesso em: 03/06/2022.
110
90
Mais informações em: <http://dapp.fgv.br/entenda-qual-o-perfil-dos-imigrantes-venezuelanos-que-chegam-ao-
brasil/>. Acesso em: 03/06/2022.
111
91
Mais informações em: <https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida/sobre-a-operacao-acolhida-2>. Acesso em:
25/05/2022.
92
Disponível em: <https://www.gov.br/casacivil/pt-br/acolhida/base-legal-1/interiorizacao>. Acesso em:
06/06/2022.
112
93
Mais informações em: <https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/mg/montes-claros.html>. Acesso em:
07/06/2022.
94
Disponível em <https://www.hojeemdia.com.br/horizontes /imigrantes-venezuelanos-ter%C3%A3o-abrigo-
em-belo-horizonte-e-montes-claros-1.691776>. Acesso em: 20/09/2021.
113
Além disso, essas pessoas são instruídas em relação à sua permanência no abrigo e
também informações importantes sobre a cidade são repassadas, visto que, em Roraima, não há
tal tipo de preparo. Os apoiadores são divididos pelo Serviço Jesuíta em grupos de trabalho.
Sendo assim, alguns ficam responsáveis pela arrecadação de alimentos, outros pela gestão da
moradia, por auxílio na integração dos refugiados, etc.
Para nossa pesquisa, as condições de chegada de venezuelanas e venezuelanos a
Montes Claros foram, inicialmente, analisadas por meio de entrevistas e grupos focais que
foram realizados, em 2021, tanto com as próprias pessoas refugiadas quanto com pessoas
envolvidas, diretamente, no acolhimento, entre os quais se encontram voluntários individuais e
organizações não-governamentais.
A técnica de coleta de dados conhecida como grupo focal pertence ao campo da
pesquisa qualitativa, tendo por base a interação de um grupo movida pela problematização de
um tema específico. Essa técnica é comumente utilizada em pesquisas na antropologia, nas
ciências sociais, assim como na educação ou na saúde.
Na busca por uma caracterização dessa técnica, pode-se argumentar que se trata de
uma entrevista em grupo, na qual a interação configura-se como parte integrante do
método. No processo, os encontros grupais possibilitam aos participantes explorarem
seus pontos de vista, a partir de reflexões sobre um determinado fenômeno social, em
seu próprio vocabulário, gerando suas próprias perguntas e buscando respostas
pertinentes à questão sob investigação. (BACKES et at., 2011, p. 438-439).
Essa técnica vem sendo utilizada para explorar as concepções e experiências dos
participantes, podendo ser usada para examinar não somente o que as pessoas pensam,
mas como elas pensam e por que pensam assim. O grupo focal pode facilitar, ainda, a
discussão de temas que normalmente são pouco explorados ou até mesmo evitados,
visto que tendem a gerar comentários mais críticos, e os participantes mais
extrovertidos, geralmente, conseguem envolver e estimular os demais. (BACKES et
at., 2011, p. 439).
O que se percebe pelo exposto é que o grupo focal tende a impulsionar a formação
de opinião dos participantes, na interação que eles estabelecem. Essa é a principal distinção
dessa técnica de coleta de dados de demais técnicas, como entrevistas ou questionários, porque,
114
nos últimos, há uma demanda ao participante de se posicionar sobre temas sem que, talvez,
tenha existido uma reflexão prévia.
As pessoas refugiadas interiorizadas participantes do grupo focal são originados das
cidades de Maturín (Monagas), Ciudad Guayana (Bolívar) e Carúpano (Sucre). Em meio aos
presentes, foram identificados diferentes grupos de interiorizados (chegados em fevereiro,
junho e outubro de 2019), além de participantes que chegaram à cidade para reunificação
familiar. Os adultos que fizeram parte do grupo focal têm idades entre 21 e 55 anos; em relação
às crianças que os acompanhavam, suas idades variavam entre 2 e 7 anos. Optou-se pela
preservação da identidade dos participantes, utilizando-se de nomes fictícios no estudo de caso.
A tabela abaixo retrata os presentes, bem como suas idades e lugares de origem:
TEMAS DE DISCUSSÃO
1. ¿Por qué emigraste de Venezuela a Brasil?
2. ¿Cómo llegaste a Montes Claros? ¿Por qué esta ciudad?
3. ¿Qué desafios enfrenta em Montes Claros? ¿Te gusta la ciudad?
4. ¿Cómo te has mantenido en la ciudad? ¿Tienes trabajo?
5. ¿Dejaste familiares em Venezuela?
6. ¿Cuáles son tus planes para el futuro? ¿Piensas quedarte en la ciudad?
Fonte: elaborada pelo autor, 2021.
grupo focal. Havia, também, entre os presentes, 04 (quatro) crianças, aqui denominadas “filha”
ou “filho”. Ao todo, foram 14 (quatorze) os venezuelanos que participaram do grupo focal.
Devido ao número de presentes, dividiu-se os indivíduos em três grupos familiares.
Desse modo, o primeiro grupo foi composto por Alejandro, Liseth e seus irmãos; o segundo,
por Mariam e Carlos; o terceiro núcleo foi composto por Jorge e Yoselin. O objetivo é que as
vivências fossem relatadas por um mesmo núcleo, dentro das nuanças que cada pessoa as
experienciou, para que se compreendesse as situações individuais e grupais em relação à
condição de refúgio.
Partimos, então, à primeira pergunta: “¿Por qué emigraste de Venezuela a
Brasil?”. Apesar de eu ter-lhes perguntado e me comunicado com eles, majoritariamente, em
espanhol, no decorrer do grupo focal, pedi aos presentes que respondessem na língua em que
se sentissem mais à vontade, visto que alguns afirmaram não falar tão bem o português, ainda,
embora o compreendessem bem. Enquanto isso, outros não compreendiam muito o português,
como o casal que veio para reunificação familiar e que chegou em janeiro de 2021 (Yoselin e
Jorge, irmã e cunhado de Mariam).
Alejandro (40) foi o primeiro a se dispor a responder. Suas primeiras palavras
foram: “Pela situação econômica! O governo acabou com tudo!”. Então, ele começou o seu
relato quanto às experiências no país. Alejandro explicou que “o trabalho na Venezuela não
dava para pagar nada”. Além disso, diariamente, ele ouvia relatos de crianças morrendo de
fome ou desnutrição, um número em torno de 40 (quarenta) a 50 (cinquenta) crianças. A
situação estava muito difícil. Assim, ele sabia que precisava sair da Venezuela e começou a
traçar um plano para isso.
Alejandro, que vivia com sua família na cidade de Carúpano, no Estado do Sucre,
cogitou ir para a Colômbia, o Equador, ou ao Chile, porém, de imediato ele verificou que a
burocracia era muito maior para a entrada e permanência nesses países. Com isso, ele chegou à
conclusão de que ir para o Brasil seria a sua melhor opção. Nas palavras de Alejandro: “Cheguei
aqui e não era nada como eu esperava! Mas regressar era como me sentir derrotado!”. Ele
explicou que, de início, a primeira barreira foi o idioma, visto que não conseguia compreender
quando alguém conversava com ele. Alejandro afirma que chegou em “um momento muito
difícil”, um período bastante chuvoso em Boa Vista, Roraima, no ano de 2018.
Em seus primeiros momentos na cidade, Alejandro citou, entre as dificuldades, o
fato de não ter onde dormir, e, por isso, ficou entre dois e três meses dormindo nas ruas da
cidade com a sua família (a esposa Liseth que, à época, estava grávida), e, segundo ele, “agora
118
eu entendo como é a situação de rua”; contudo afirmava que a Venezuela estava a cada dia
pior, e, mesmo naquela situação, ele não cogitava voltar.
Alejandro tinha trabalho fixo na Venezuela, trabalhava operando máquinas, mas,
ainda assim, com sua renda, não conseguia comprar o suficiente para a sobrevivência familiar.
Liseth, sua esposa, era estudante universitária na Venezuela. Passado algum tempo em que
estavam em Boa Vista/RR, naquela situação, um Padre Jesuíta contou a Alejandro sobre a
possibilidade de interiorização pelo governo brasileiro, e, então, ele inscreveu-se com a sua
esposa. Segundo ele, havia uma lista enorme de pessoas candidatas a essa política, em que ele
e sua esposa conseguiram prioridade com o nascimento do seu filho, Pablo.
Alejandro e a esposa foram, inicialmente, para Belo Horizonte, mas não quiseram
ficar muito tempo por lá, visto que a dinâmica de cidade grande é diferente. Eles tinham a noção
de que as circunstâncias seriam outras em uma cidade menor e, quando houve a vaga na Casa
Arupe, eles decidiram mudar-se para Montes Claros pouco tempo depois de serem acolhidos
no alojamento em Belo Horizonte. Alejandro e Liseth fizeram parte do “Grupo 01” de
venezuelanos não indígenas que chegou a Montes Claros.
Após esse relato inicial de Alejandro, Mariam (46), que também é do Grupo 01,
decidiu compartilhar a sua trajetória desde que deixou a Venezuela. Ela habitava Maturín, a
capital do estado de Monagas. Consoante Mariam, a vida estava cada dia mais difícil, no seu
país, impossibilitando que se encontrasse trabalho, ou que se pudesse estudar. Assim, ela
chegou à conclusão de que era a hora de deixar a Venezuela.
Diferentemente de Alejandro, que cogitou outros países, Mariam disse que sempre
pensou no Brasil, caso saísse da Venezuela. E, quanto à ideia de deixar a sua terra, explicou:
“Quando eu saí do país, pensava que seria fácil. Saio, junto dinheiro por uns 03 meses e
volto..., mas não é assim”, disse Mariam bastante emocionada. Ela declara que quando chegou
ao Brasil, teve que morar na rua, com fome, sem ter onde ficar. Em seus oito primeiros meses,
em Roraima, ela não conseguiu emprego, e, com muitos obstáculos, estava “sobrevivendo”.
Apesar da sua situação, Mariam, tinha a expectativa de trazer seus dois filhos
(Carlos e Engelbert) para o Brasil. “Queria que meus filhos viessem, mas eu não falava o que
eu passava”, disse Mariam, em tom de choro. Ela tentava convencer os filhos de que vir para
o Brasil seria a opção mais viável para o momento do país. Mariam conta que, após um tempo
ela conseguiu alugar um lugar para ficar e convenceu os seus filhos a virem para o país. Para
isso, eles venderam o carro que tinham e, sem precisar ir até à Venezuela, Mariam conseguiu
vender uma casa que possuía. Segundo ela: “recebi R$1.600,00 (mil e seiscentos reais) pela
119
casa que vendi, com o câmbio”. Naquele momento, Mariam pagava R$650,00 (seiscentos e
cinquenta reais), de aluguel, pelo espaço que habitava em Boa Vista/RR.
Mariam explica que, enquanto vivia em Boa Vista/RR, ela não se cansava em
procurar emprego, em tentar ajudar os filhos recém-chegados e de buscar melhorar suas
situações: “Não queria desistir, pelos meus filhos!”. Carlos (25), o filho mais velho de Mariam,
conseguiu alugar um barracão próximo ao da mãe, em Boa Vista/RR, e começou a trabalhar em
uma serralheria ganhando R$100,00 (cem reais) por mês. A mãe tentava empreender vendendo
espetinhos, mas os brasileiros “boicotavam” suas vendas, não comprando o que ela tentava
vender. Então, ela e Carlos caminhavam, diariamente, em busca de uma oportunidade de
emprego. Mariam conta que caminhavam entre duas e três horas, ao dia, em Boa Vista/RR, à
procura de trabalho.
Mariam confessou que, mesmo sendo vizinhos, às vezes não via o filho: “Eu não
ia à casa do meu filho para não comer a comida”, explicou a venezuelana. A situação estava
cada vez mais insustentável, em Boa Vista, quando Mariam, que já havia se cadastrado para
tentar a interiorização, recebeu uma ligação, em uma segunda-feira, de um agente do governo,
informando-lhe de que havia ocorrido uma desistência, de última hora, e que ela poderia ser
interiorizada na quarta-feira (em apenas dois dias), na cidade de Montes Claros, em Minas
Gerais. Só havia vaga para ela e para seu ex-companheiro; portanto, os seus filhos
permaneceriam em Roraima até que as coisas melhorassem para ela no novo local.
Ela, então, disse, imediatamente, que sim. Desse modo, Mariam e o seu ex-
companheiro vieram para Montes Claros em um voo fretado da Força Aérea Brasileira (FAB).
Segundo a venezuelana, ela nunca havia visto um avião tão grande em toda a sua vida. Foram
cerca de 400 (quatrocentos) venezuelanos que viajaram juntamente com ela, para as mais
diversas partes do Brasil. No caminho, ela se sentiu bastante aérea, pois, pensava nos filhos que
haviam ficado em Boa Vista/RR, no lugar para onde estava indo e no fato de não conhecer
ninguém que estava com ela naquele avião.
“Quando chegamos aqui, foi como chegar no paraíso... foi como um milagre!”,
afirmou Mariam. A venezuelana se refere, especialmente, ao fato de serem hostilizados em
Roraima. Segundo ela, eles eram vítimas de maus-tratos, e muitos venezuelanos eram
agredidos. Mariam e Liseth explicaram que, diariamente, em Boa Vista/RR, chegavam aos seus
ouvidos relatos de assassinatos a mulheres venezuelanos. Elas tinham medo de sair na rua, ir a
certos lugares, ou falarem que são venezuelanas.
Segundo Mariam, já encerrando a sua fala, o motivo principal de sua vinda para o
Brasil foi a “crise econômica” e o “comunismo” que se instaurou no país. Atualmente, Mariam
120
tem um emprego formal de vendas na cidade e empreende com a produção de alimentos para
venda aos fins de semana. Ela conseguiu esse emprego após um mês de sua chegada à cidade.
Nesse instante, o terceiro grupo familiar faz uso da oportunidade para relatar a sua
história. Eles chegaram em janeiro de 2021, em reunificação familiar, pois, Yoselin (55) é irmã
de Mariam, e veio com o seu esposo, Jorge (55) e a única filha do casal, oriundos da Ciudad
Guayana e de Puerto Ordaz, respectivamente, sendo ambas as cidades no estado Bolívar.
Logo que começou a falar, Jorge se emocionou bastante. Carlos, então, em um tom
de descontração o ofereceu água e deu um sorriso. Assim, Jorge conseguiu dar prosseguimento,
com mais tranquilidade. O motivo inicial das lágrimas foi a lembrança da mãe de Jorge, que
ainda está na Venezuela, vivendo intensas dificuldades em uma idade avançada. “Ninguém
suporta estar na Venezuela”, asseverou Jorge.
O casal veio motivado pelo convite de Mariam, que gostaria de reunir a família,
além de estarem desesperançosos quanto à situação do país. Jorge explicou que na Venezuela
há pessoas morando nas ruas, há trabalhadores sem conseguir comprar alimentos. Nisso, ele é
interrompido por Alejandro que contou um pouco sobre como eles foram sentindo a crise,
gradativamente. Reportou que, certo dia, foram ao supermercado comprar um pacote de arroz
e estava, por exemplo, equivalente a R$5,00 (cinco reais). No mês seguinte, voltaram e estava
R$10,00 (dez reais), no outro mês já estava R$20,00 (vinte reais) e, no seguinte, R$30,00 (trinta
reais). Assim, por diante...
Jorge afirmou que o bloqueio econômico estabelecido ao país pelos Estados Unidos
tem grande influência no caos econômico venezuelano. Ele esclareceu que trabalhava em um
emprego estável, na Venezuela, mas, visto o cenário que se formou, não houve mais condições
de lá permanecer. Sair foi a melhor opção.
Jorge contou que, desde que chegaram a Montes Claros, as pessoas os têm tratado
muito bem. Ele conseguiu emprego em uma serralheria, consegue comprar alimentos, sua filha
já está matriculada em uma escola, na cidade, e indo às aulas. Ele demonstrou maior
tranquilidade, pois não vivenciou a chegada inicial daqueles que tiveram que permanecer em
Boa Vista/RR, como foi o caso da sua cunhada, Mariam.
Em seu relato, Jorge detalhou que fez o “Caminho Verde”95 entre Santa Elena de
Uairén e Pacaraima/RR (primeira cidade brasileira na fronteira com a Venezuela) e Boa
Vista/RR, visto que as fronteiras terrestres entre o Brasil e a Venezuela estavam fechadas.
95
O chamado “Caminho Verde” é um conjunto de rotas clandestinas, no meio da mata, no percurso entre Santa
Elena de Uairén e Pacaraima/RR. Mais informações em: <https://migramundo.com/fronteira-fechada-nao-impede-
ingresso-de-venezuelanos-no-brasil/ >. Acesso em 13/06/2022.
121
Assim, Jorge contou que pagou propina a pessoas para ajudá-lo nesse percurso, que é um
caminho clandestino, sendo a opção mais comum para quem deseja sair do país, e, segundo
informações da imprensa, há diversos militares venezuelanos que cobram propina para auxiliar
indivíduos nesse trajeto. Ele disse que sua família teve sorte, porque é comum que essas pessoas
não cumpram com o combinado.
Ao ser abordado o terceiro tema: “¿Qué desafios enfrenta en Montes Claros? ¿Te
gusta la ciudad?”, houve unanimidade na resposta. Os participantes descreveram os montes-
clarenses como receptivos, calorosos e dispostos a ajudar. Eles citaram o exemplo de que,
quando não sabem como dizer algo em português, as pessoas da cidade sempre têm paciência
para explicá-los, diferentemente das pessoas em Roraima, ou em algumas outras cidades e
estados pelos quais passaram. O maior problema para eles, na cidade, contudo, tem sido a
empregabilidade.
Os venezuelanos explicaram que têm noção de que as coisas estavam melhores, na
cidade, antes da pandemia do novo coronavírus, SARS-CoV2, mas com a chegada do vírus ao
país, e, mais particularmente à cidade, a situação financeira de todos ficou bastante agravada.
Entre os presentes, seis tinham emprego formal ou empreendiam (Mariam, Carlos, Engelbert,
Angely, Jorge e Alejandro), enquanto quatro (três mulheres e um homem) ainda não haviam
conseguido uma posição no mercado de trabalho – Liseth, seus irmãos e Yoselin. Apesar disso,
eles relataram que Montes Claros é um lugar bem diferente de Boa Vista/RR, onde sofriam
xenofobia e diversos outros tipos de violência.
“Aqui, se as pessoas não têm, elas procuram para te ajudar”, disse Liseth, esposa
de Alejandro. E, Mariam contou que, em visita a uma de suas irmãs que está em
Florianópolis/SC, ela sentiu grande diferença cultural, afirmando que as pessoas não tinham o
mesmo calor humano de nossa região. Jorge e Yoselin disseram que, em Montes Claros, as
pessoas são muito receptivas, “elas querem falar com a gente”.
Apesar de toda a receptividade, Mariam e Carlos apontam para algumas mudanças
no comportamento da população, com a chegada dos venezuelanos indígenas à cidade. Sem dar
muitos detalhes, eles foram discretos ao informar que alguns montes-clarenses, quando
tomavam conhecimento de que eles são venezuelanos, sempre se referem à situação dos
indígenas buscando saber se eles estão relacionados.
Ao serem espontaneamente questionados sobre a situação interna dos indígenas
Warao na Venezuela (tema inicialmente não proposto), Mariam explicou que, na Venezuela, os
índios foram tirados de suas florestas e levados para a zona rural, na época em que Hugo Cháves
122
era presidente. Mas, isso não teria dado certo, causando um agravamento da situação indígena,
visto que, eles não se adaptaram à zona rural, mas não teriam como voltar para as suas florestas.
Retomando o roteiro de temas, por meio dos relatos anteriores, é notório que todos
os participantes têm familiares ou laços afetivos na Venezuela e, de algum modo, buscam trazê-
los ou ajudá-los a vir para o Brasil. Isso foi evidenciado pelas respostas ao tema de número
cinco, “¿Dejaste familiares em Venezuela?”. Alguns dos venezuelanos declaram tentar
melhorar a sua situação de vida, em Montes Claros, para que possam favorecer suas
reunificações familiares. Por exemplo, Alejandro possui três filhos de um outro casamento,
estando todos na Venezuela; Jorge tem sua mãe e irmãos; e Mariam tem mais membros
familiares que deseja trazer para a cidade.
O último tema trabalhado com os venezuelanos, antes do encerramento oficial do
grupo focal foi em relação ao futuro e aos sonhos particulares dos membros do grupo: “¿Cuáles
son tus planes para el futuro? ¿Piensas quedarte en la ciudad?”.
Alejandro afirmou que, “Se voltarmos à Venezuela, teremos que recomeçar do
zero!”. Ele demonstrou o desejo de retornar ao país, durante as férias, mas não em definitivo.
Para se manter no Brasil, ele estabeleceu diversas metas: “Tenho muitas metas! As metas me
ajudam a não retroceder... preciso cumpri-las, para não me sentir derrotado!”.
Mariam, por sua vez, declarou: “A Venezuela está cada vez pior!”. Ela diz que saiu
da Venezuela há quatro anos, e, em comparação com aquele tempo, as coisas não melhoraram;
pelo contrário, estão piores. Com isso, ela expressa o seu desejo de trazer sua família, pois, não
tem a intenção de voltar a viver no país. Ela também explicou que acredita que “A Venezuela
tem que mudar muito a sua mentalidade”, ao se referir a tudo o que está acontecendo, neste
momento, em sua terra natal.
Jorge fez previsões quanto a uma possível estabilização da Venezuela. Segundo ele,
isso acontecerá em, aproximadamente, 15 anos. Dessa forma, ele não se vê voltando ao país,
pois, até lá, não haverá trabalho para ele, por já ter 55 anos. Ele diz que, dentre as razões de ter
vindo para o Brasil, esta é uma das principais motivações: o futuro de sua filha. Sendo assim, a
melhor opção será permanecer aqui pelos próximos anos.
Findados os temas, os participantes nos convidaram para comer um prato típico
venezuelano, “arepas”, e tomar suco de maracujá cozido, também popular no país. Enquanto
isso, apreciávamos uma conversa informal sobre as vivências dos presentes. Eles se
demonstraram pessoas alegres, sensíveis, abertas, receptivas e muito educadas. Parecíamos
confraternizar em uma grande família.
123
SJMR, foi consultada sobre a disponibilidade de acolher algumas famílias. A comunidade local
(paroquial) acolheu a proposta em assembleia realizada em dezembro de 2018 e passou a
organizar a logística para poder receber os refugiados.
Heloísa Menezes (2020) detalhou que, de acordo com a disponibilidade de vaga nos
destinos, e perfil das estruturas de acolhimento (alojamento, casas, abrigos mistos ou não), os
refugiados são convocados para entrevistas e selecionados de acordo com o perfil existente de
vaga no destino (homens/mulheres em idade laboral, casal com ou sem filhos, etc.).
Em relação à Casa de Acolhida Padre Pedro Arrupe, informou a voluntária que esta
fornece acolhimento integral por até três meses. A estrutura física é uma casa mobiliada, com
quartos individuais por núcleo familiar, e demais ambientes (banheiros, salas, cozinha, quintal)
são de uso comum a todos os acolhidos. A organização e limpeza é responsabilidade dos
acolhidos. A casa possui regras básicas de convivência cujo descumprimento pode gerar
advertência e até desligamento do acolhido. As despesas da casa (alimentação, material de
limpeza e higiene, água, luz, internet) são subsidiados pela comunidade local, mediante
doações. Os acolhidos adultos são encaminhados para oportunidades de empregos.
Chegando à cidade, os interiorizados são encaminhados para serem referenciados
nos Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e Estratégia Saúde da Família, além de
encaminhamento das crianças em idade escolar para matrícula no ensino regular. É
acompanhamento, também, o vencimento dos protocolos de regularização migratória.
O projeto de acolhida local, até meados de 2020, recebeu, diretamente, 33 (trinta e
três) pessoas, divididas em 12 (doze) núcleos familiares. Esses núcleos trouxeram, por
reunificação familiar, outras 33 (trinta e três) pessoas, e, ainda, um núcleo familiar foi agregado,
vindo por meios próprios, passando a receber o apoio e o acompanhamento do projeto, explicou
a voluntária. Ela esclareceu, também, que dentre os núcleos familiares identificados, um
retornou para Boa Vista e, em seguida, para a Venezuela, por motivos familiares e de
dificuldade de adaptação à realidade local, sendo eles a mulher com a idosa e o filho
adolescente, da primeira turma.
Ainda sobre a primeira turma, um núcleo se desmembrou, pois, o esposo foi
trabalhar em Janaúba. Um núcleo que chegou por reunificação familiar também foi para zona
rural de Capitão Enéas (um casal com um bebê). Da segunda turma, um núcleo foi para o Paraná
e outro núcleo foi para zona rural de Capitão Enéas, em melhores oportunidades de trabalho.
Sobre a terceira turma, um núcleo foi para Rio Grande do Sul, igualmente em virtude de melhor
oportunidade de trabalho e com referência familiar no local.
125
96
XIV Censo Nacional de población y vivienda, 2011.
129
riachos que seguem curso até desaguarem no mar do Caribe, aos colonizadores pareceram-se
com Veneza.
Os autores explicam que, via de regra, os assentamentos Warao são compostos por
comunidades ribeirinhas organizadas entre 10 (dez) e 12 (doze) moradias multifamiliares, o que
forma comunidades de pequeno porte, possuindo uma média de 200 (duzentos) indivíduos. O
motivo de as casas tradicionais (“Hanoko”) dos Warao serem submersas justifica-se pelo
melhor aproveitamento da geografia dos rios da região. (ROSA e QUINTERO, 2020, p. 2-3).
As habitações Warao são construídas em formato de ocas, que são cobertas com
palhas, e cabanas elevadas, objetivando proteção contra inundações, motivo pelo qual são,
normalmente, construídas em lugares altos. Braga (2020, p. 3) afirma que no “interior das casas,
encontramos uma cozinha com forno bem ao centro, as redes para o repouso e um poço de
barro”. O autor explica que não raramente se encontra um grupo de casas construído em uma
mesma plataforma de árvores gigantes.
Outros são os termos utilizados em referência aos Warao. O historiador Braga
(2020) explica que esse grupo étnico também é conhecido por Waroa, Guarauno, Guarao ou
Warrau. Segundo o ACNUR, o termo Warao pode ser traduzido como “povo da água’ 97,
havendo algumas variações nessa tradução que também é entendida como “povo do barco”,
como em Clark (2009). De todo modo, resta evidenciada a forte relação dessas pessoas com a
água, o que leva à denominação do grupo.
Estudos de Grohs-Paul (1979) e de Heinen (1972) comprovam que há uma grande
desconcentração na organização política Warao, possuindo, ainda, baixa coesão social. Os
autores afirmam a ausência de lideranças centralizadoras, havendo apenas o que Rosa e
Quintero (2020, p. 3) chamaram de “cabeça da família”, que seria um “ancião do gênero
masculino que junto com a sua cônjuge se encarrega da solução dos conflitos internos e da
divisão dos produtos e dos possíveis excedentes no nível das comunidades locais”98. Os autores
referem-se a Wibert (1993), ao afirmar que esses “cabeças” são responsáveis, eventualmente,
por atividades xamânicas e/ou religiosas.
Os Warao são, tradicionalmente, povos pescadores e coletores, e não há elementos
cerâmicos em sua cultura (ROSA e QUINTERO, 2020, p. 3). Os autores explicam que, por
muito tempo, no período pré-colonial, os indígenas Warao baseavam sua alimentação na
97
Mais informações em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/01/06/refugiados-indigenas-recebem-barcos-
do-acnur-no-para/>. Acesso em: 16/06/2022.
98
(GROHS-PAUL, 1979; HEINEN, 1972).
130
A dinâmica das migrações estacionais parece ter estabelecido, no caso dos Warao, um
novo tipo de atividade econômica, que reatualiza as práticas tradicionais de coleta,
mas desta vez em um contexto urbano, colocando as estruturas de subsistência e as
formas de reprodução social Warao dentro do chamado polo marginal da economia.
Trata-se da prática de pedir dinheiro nas ruas, equivocadamente tipificada como
mendicância. (ROSA e QUINTERO, 2020, p. 5).
131
Os autores explicam que a chamada coleta (de dinheiro), feita pelos Warao, não é
vista como algo vergonhoso, podendo ser comparada à coleta de frutas em florestas, ou de
animais de pequeno porte. Para Rosa e Quintero (2020, p. 5), a dinâmica de coleta resultou na
atribuição de novas tarefas ao dia a dia do grupo e no reordenamento de seu sistema
socioeconômico, no atual processo de territorialização.
A presença de indígenas venezuelanos da etnia Warao, no Brasil, foi ineditamente
registrada pela imprensa nacional apenas em 10 de julho de 2014. Infelizmente, a notícia que
fora veiculada retratava que 28 (vinte e oito) Warao haviam sido deportados pela Polícia Federal
(PF) de Boa Vista/RR, sob alegação de estada irregular desses indivíduos, em consonância com
o Estatuto do Estrangeiro (Lei n.º 6.815/1980). (ROSA e QUINTERO, 2020, p. 6).
A informação, que não se encontra mais disponível nas plataformas do governo
federal, descreve o intuito de trabalho desses indígenas como a motivação de chegada ao Brasil,
afirmando que a sobrevivência do grupo ocorria pelas doações e coleta de alimentos. No grupo,
havia 20 (vinte) crianças e 8 (oito) adultos. Eles foram dirigidos a Pacaraima e, logo mais, à
Venezuela.99
Em torno de 532 (quinhentos e trinta e dois) Warao foram deportados pela Polícia
Federal entre 2014 e 2016, com o agravamento do número de deportações entre os meses de
janeiro e de outubro de 2016. À ocasião, cerca de 445 (quatrocentos e quarenta e cinco) Warao
foram coagidos a deixar o país, estando anteriormente em situação de rua e habitando casas
abandonadas, na cidade de Boa Vista/RR.100
O constante argumento utilizado pela PF para a expulsão desses indígenas era de
irregularidade na sua estada, o exercício de atividades artísticas remuneratórias, a
“mendicância” ou a venda de artesanato em ruas e semáforos, sendo essas atividades
inconciliáveis como que deveria ser a condição de turismo (a que adentravam ao país).
Explicam Rosa e Quintero (2020, p. 6) que “à ocasião, a Polícia Federal declarou que os
indígenas não se enquadravam nos critérios para a solicitação de refúgio, afirmando, inclusive,
que não os reconheciam como indígenas, mas sim como estrangeiros”.
É válido pontuar que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), segundo Souza
(2018, p. 92), atuou tardiamente e de modo ineficiente no acolhimento dos indígenas
venezuelanos, não intermediando o diálogo entre os Warao (suas demandas) e o governo
99
Ibid, p. 6.
100
SOUZA, 2016 apud ROSA e QUINTERO, 2020, p. 6.
132
federal, o que seria de extrema importância para que políticas públicas fossem formuladas,
nesse sentido, e em tempo hábil.
Souza (2018) dispôs, em 2018, que “de acordo com o presidente da fundação,
Franklinberg Farias, não existe um antropólogo ou antropóloga no quadro técnico da instituição
que conte com o conhecimento acadêmico necessário para tratar das questões concernentes ao
povo venezuelano” (p. 92). Mesmo anteriormente a essas declarações, o órgão já havia afirmado
que “o fato de os Warao não serem um povo que tem como território original uma região
dividida pelas fronteiras entre Brasil e Venezuela” desafiar sua atuação (SOUZA, 2018, p. 92).
Dessa maneira, Rensi e Câmara (2021, p. 11) afirmam que a FUNAI escusou da
sua jurisdição, ao alegar a existência de conflito de competência sob a justificativa de os Warao
viverem em zonas urbanas, transitando, também, por essas regiões. Segundo a instituição, sua
responsabilidade, prevista em lei, referia-se a ocorrências em territórios transfronteiriços,
exclusivamente. Os autores explicam que não foram identificados instrumentos legais tanto no
Estatuto do Índio quanto no Decreto 9.001/17 (que regulamenta o estatuto da FUNAI) que
amparem essa limitação apresentada para a atuação do órgão.
A Constituição Federal de 1988 prevê no artigo 231 que “são reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens”. Os direitos indígenas estão previstos constitucionalmente, sem
ressalva de que as terras tradicionalmente ocupadas sejam um requisito para que os demais
direitos sejam respeitados.
A Lei de criação da FUNAI, Lei 5.371 de 1967, não afirma que somente indígenas
brasileiros seriam beneficiados pela atuação dessa instituição, mas “indígenas”. Desse modo, o
primeiro princípio enumerado, como diretriz para o funcionamento da instituição, no art. 1º,
inciso I, alínea a), assevera o “respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais”.
Apenas em agosto de 2021, uma reportagem trouxe que “Justiça determina que
Funai assuma responsabilidade por Indígenas Venezuelanos”101, estando no bojo da notícia a
informação de que a Justiça Federal de Roraima havia obrigado a União e a FUNAI que
garantissem direitos considerados básicos a venezuelanos indígenas. Incluía-se no rol de
direitos o acesso à saúde, à educação e a assistências diversas. A decisão foi fruto da narrativa
de testemunhas de que a instituição havia se recusado a atender venezuelanos indígenas. Desse
101
Mais informações em: <https://apiboficial.org/2021/08/10/justica-determina-que-funai-assuma-
responsabilidade-por-indigenas-venezuelanos/>. Acesso em: 06/06/2022.
133
modo, foi ratificado que não há distinção na previsão de direitos a indígenas brasileiros ou
venezuelanos.
Mediante o exposto, observa-se o total despreparo do funcionalismo público
federal, que, de modo enviesado, não estava preparado para lidar com um assunto tão sensível
quanto o refúgio e, principalmente, aquele de povos indígenas. Percebe-se a recusa à proteção
desses indígenas, mesmo por meio de um órgão que foi criado para esse fim.
Em “Relatório de atividades para populações indígenas” 102, o ACNUR reportou,
em abril de 2022, a presença de 7.609 (sete mil, seiscentos e nove) indígenas venezuelanos
registrados no Brasil. As etnias identificadas foram Warao, Pemon, E’ñepa, Kariña e Wayúu.
Identificou-se um total de 5.198 (cinco mil, cento e noventa e oito) indígenas Warao em
território nacional, sendo os Pemon a segunda maior presença, com 2.092 (duas mil e noventa
e duas) pessoas. Os E’ñepa representam 201 (duzentos e um) indivíduos, e a menor presença é
dos Wayúu, que são representados por 17 (dezessete) indígenas.
Dessa maneira, os Warao compõem 68,3% do total de indígenas venezuelanos que
estão refugiados no Brasil, embora sejam variados os status legais desses registrados. Outro
dado relevante apresentado pelo relatório (2022) é que 3.049 (três mil e quarenta e nove) desses
indígenas possuem necessidades específicas, ou seja, precisam de proteção legal ou física, são
crianças em risco, crianças desacompanhadas ou separadas dos pais, são pessoas que sofreram
algum tipo de violência de gênero, possuem condição médica grave, são incapazes ou idosos
em risco, dentre outros. Com isso, mais de 30% dos registrados estão ainda mais em
vulnerabilidade, de algum modo.
Rosa e Quintero (2020) explicam que a mobilidade inicial dos indígenas Warao,
datada entre 2016 e 2019, manteve-se adstrita ao Norte do Brasil, mais particularmente em
Roraima, Amazonas e Pará. A malha rodoviária do Pará permitiu que os Warao chegassem a
mais municípios desse estado, diferentemente dos outros dois estados, em que a presença dos
indígenas intensificou-se em Pacaraima e nas capitais (Boa Vista e Manaus).
Os autores entendem que o distanciamento dos Warao da região Norte teve como
objetivo principal a busca de satisfação das necessidades básicas desses indivíduos, bem como
de condições de vida mais favoráveis. Rosa e Quintero (2020) afirmam não haver qualquer
relação entre o deslocamento Warao pelo país e o nomadismo ou o determinismo cultural.
Segundo os autores: “os Warao não possuem um modo de vida nômade, tampouco a mobilidade
102
Cf.: <https://www.r4v.info/pt/document/acnur-brasil-relatorio-indigena-jan-fev-mar-2022>. Acesso em:
17/06/2022.
134
seria uma característica cultural, tendo em vista que o processo de migração para as cidades
decorre de diferentes intervenções estatais e privadas no seu território de origem”103.
É válido destacar que as mulheres Warao tiveram protagonismo nas decisões por
novas viagens, conforme os autores. A prática de coleta de dinheiro era, preliminarmente,
exercida pelas mulheres da etnia, arrecadando, com isso, os valores necessários para que se
transitasse para uma nova cidade. As mulheres partiam para o novo local, acompanhadas de
algumas de suas crianças (uma ou duas), juntamente a outras mulheres que pertencem à mesma
família/comunidade. Os homens permaneciam no local anterior, cuidando dos demais filhos.
Logo mais, tendo arrecadado recursos financeiros, essas mulheres faziam remessas de dinheiro
aos seus maridos que o utilizavam para reencontrá-las.104
Verifica-se que muito da dinâmica social e de mobilidade dos indígenas Warao foi
alterado, o que pode ser explicado como adaptações necessárias para a fuga do controle
exercido pelo Estado brasileiro, uma vez que esses indivíduos compreenderam os imperativos
legais do país que lhes apresentavam graus de ameaça, em meio à tentativa de subsistência.
Houve, por exemplo, advertência do Estado em relação à prática feminina de coleta com
crianças, sugerindo a retirada dos menores de seu convívio familiar.105
Também é possível concluir sobre a mobilidade dos indígenas Warao que ela
acontece de modo autônomo, de acordo com leitura de Rosa e Quintero (2020). Para os autores,
existe uma rede de relações sociais Warao que se dá por força de laços familiares, de afinidade
ou entre compatriotas. Tal rede possibilita a circulação de pessoas, de informações e de bens,
incluindo-se saberes como os de caráter espiritual. Os Warao trocam informações sobre
localidades para avaliar as possibilidades de deslocamento, e, também, concedem empréstimos
de quantias entre si, para que seja possível essa movimentação no território brasileiro.
103
Ibid, p. 8.
104
Ibid, p. 8.
105
Ibid, p. 8.
135
A chegada dos primeiros waraos se deu no dia 02/11/2020, quando alugaram uma
casa no endereço acima. Trata-se de um imóvel subdividido em uma casa com três
quartos, sala, cozinha e banheiro, uma kitnet e um cômodo comercial sendo utilizado
como acomodação para três famílias. O valor pago pelo aluguel (R$ 1.800,00 – hum
mil e oitocentos reais, R$ 800 da casa e R$ 500 para cada um das outras estruturas)
incluiu os serviços prestados pela Copasa e Cemig e não há intenção por parte da
administradora do imóvel (pessoa física inventariante) de prosseguir com o contrato
a partir do vencimento do mês pago, inclusive, há informação de que está negociando
comercialmente o imóvel. (MENEZES, 2020a, p.1, grifos da autora).
Dessa forma, relata-se, oficialmente, a chegada dos Warao a Montes Claros na data
de 02 de novembro, momento em que conseguiram uma moradia inicial, com os valores
arrecadados em coletas nos locais em que estiveram anteriormente. No mencionado imóvel, a
relatora explicou que, no primeiro momento, 10 (dez) subnúcleos familiares habitaram aquele
lugar, sendo 46 (quarenta e seis) indígenas. Porém, quando o relatório foi elaborado, o número
total de pessoas já era de 36 (trinta e seis), compondo 08 (oito) subnúcleos, com 19 (dezenove)
menores de idade, figurando entre eles bebês, crianças, e, também, adolescentes. Foi explicado
que o grupo tem vinculação familiar ampliada, havendo alguns subnúcleos chegado em dias
posteriores, assim como 03 (três) subnúcleos haviam partido em direção a outros lugares. 106
No âmbito do grupo, a relatora (2020a) abordou a existência de um “cacique”, que
seria a figura de liderança e de interlocução dos demais. Havia, também, um membro do grupo
106
Ibid, p. 2.
137
que seria professor de espanhol e de warao na rede educacional venezuelana. Esses dois
indivíduos foram essenciais para o estabelecimento de comunicação com os indígenas Warao.
Ao dar detalhes sobre o imóvel onde os Warao habitavam, temporariamente, a
relatora foi pragmática em dizer que era “precário e inadequado” para que aquelas pessoas
tivessem acolhimento e sua dignidade respeitada. Outra problemática trazida pela voluntária,
no relatório, foi a oposição da vizinhança à permanência dos indígenas venezuelanos no bairro.
Ipsis litteris:
matéria televisionada107, consta a informação de que o serviço foi rejeitado pelos indígenas. Na
reportagem, uma interlocutora do Centro Pop afirmou que os Warao chegaram a visitar o centro,
mas, chegando lá, “um deles demonstrou uma cara de insatisfação e saiu do serviço, e todos os
outros o seguiram”.
Pode-se perceber o erro de conduta do município em tratar os venezuelanos
refugiados indígenas como população em situação de rua, desconsiderando suas especificidades
tanto de refugiados quanto de povos indígenas, seus direitos internacionais e internos, além de
sua cultura, seus hábitos e demais questões que tornariam inaceitável para essas pessoas a
permanência em um lugar que não respeitaria sua autodeterminação.
Para auxiliar as autoridades públicas no trato com os Warao, a voluntária
mencionou um Parecer Técnico 108, indicando informações antropológicas úteis ao acolhimento
dos indígenas venezuelanos residentes em Roraima. O Parecer Técnico foi elaborado pelos
Analistas do MPU/Perícia/Antropologia, Luciana Ramos, Eduardo Tarragó e Emília Botelho.
O relatório inicial da voluntária, por fim, descreveu a sua iniciativa na composição
de grupo de trabalho intersetorial, do qual fariam parte a sociedade civil organizada e alguns
setores públicos. Em relação aos primeiros, comporiam a rede de acolhimento o ramo de
atuação social da Arquidiocese de Montes Claros, a Caritas, o Centro de Referência em Direitos
Humanos do Norte de Minas (CRDH-Norte), Mãos que ajudam, além de voluntários
individuais. Sobre o envolvimento do funcionalismo público, a relatora afirmou a participação
da Diretora de Assistência Social do Município, da Assistente Social do CRAS Major Prates,
de médica responsável pelo ESF do território e da Secretaria Municipal de Saúde.
Desse modo, criou-se a “Rede Acolhida Warao Moc”, com grupo para troca de
mensagens instantâneas (Whatsapp), além de reuniões periódicas, para que o acolhimento aos
indígenas Warao fosse realizado da melhor maneira possível, no Município de Montes Claros
(MG), em atenção às demandas específicas trazidas pelo grupo ou identificadas pelas comissões
de trabalho da rede. Posteriormente, pôde-se incluir ao grupo participantes membros do
Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e da Defensoria Pública da União.
Um segundo relatório, elaborado por Menezes (2020b), em 02 de dezembro de
2020, atualizou o número de indígenas Warao presentes na cidade, para um número entre 75
(setenta e cinco) e 80 (oitenta) pessoas. Dessa vez, os indivíduos dividiam-se em dois grupos,
com moradia no bairro Major Prates e outra no bairro Jardim Alvorada. As descrições de ambas
107
A matéria foi exibida pelo jornal regional MG Inter TV 2ª Edição, na data de 13 de novembro de 2020. Mais
informações em: <https://globoplay.globo.com/v/9022746/>. Acesso em: 21/06/2022.
108
Parecer Técnico/SEAP/6ªCCR/PFDC, Nº 208/2017. Referência: IC 1.32.000.001321/2016-38.
139
as moradias indicam que elas não comportavam o número de indivíduos que as habitavam, com
instalações sanitárias escassas e em alto nível de precariedade. As crianças não tinham espaço
para recreação, o que fazia que elas fossem brincar nas ruas, expostas a diversos tipos de perigo,
bem como à represália da vizinhança. Dessa maneira, qualquer tentativa de conscientização do
grupo quanto à higiene e organização do espaço seria inútil.
Afirmou a relatora:
Com o exposto, observa-se que a questão da moradia, desde o início, foi uma das
mais críticas, a qual os Warao e os voluntários tiveram que lidar incessantemente, até a partida
dos grupos para novo destino. Além de prazos determinados para desocupação de moradias, o
município, de maneira deletéria, ingressou no meio judicial, com uma ação civil pública,
solicitando ajuda à União para resolução da situação.
Foram feitas várias visitas às famílias Warao que ficavam no bairro Jardim
Alvorada (Grupo 02). A primeira visita, contudo, deseja-se registrar na íntegra, nesta
dissertação, haja vista algumas questões importantes que são verificadas nos relatos que tanto
corroboram os relatos dos relatórios quanto servem de argumento para análises que vão sendo
traçadas a respeito da passagem dos Warao por Montes Claros (MG). Opta-se, neste relato de
campo, pelo uso da primeira pessoa do singular e do plural. Codinomes foram utilizados em
referência aos indígenas e outras pessoas mencionadas, que não seja a voluntária.
Na sexta-feira 06 de agosto de 2021, realizei a minha primeira visita aos indígenas
venezuelanos Warao. Visitamos o denominado Grupo 2, que estava morando no bairro Jardim
Alvorada. Logo na chegada, eles demonstraram bastante felicidade e entusiasmo com a nossa
chegada (mais especificamente pela chegada da Heloísa, que os cumprimentou calorosamente
com um “¡Hola! ¿Cómo estás?”). Fomos três pessoas a chegar, a Heloísa Menezes (voluntária),
uma enfermeira, para verificar o estado de saúde de um casal recém retornado, e eu.
Após cumprimentar alguns de fora da construção, com suas cabeças pelas janelas
da área do prédio, fomos, diretamente, ao quarto em que se encontrava o casal recém-chegado,
o Santiago, sua esposa grávida, e dois filhos (um de aproximadamente 2 e outro de 9 anos). A
140
queixa principal da esposa era de que sentia dores de cabeça e na barriga. Temia que fosse algo
de errado com a gravidez, porém, já havia se consultado com um médico, em Vitória da
Conquista (Bahia), que lhe receitou vitaminas como ácido fólico e alguns exames.
Antes que entrássemos ao quarto, ainda no corredor do prédio (um corredor longo
e cheio de quartos alugados, além de mais andares), a Heloísa se deparou com a Maria (uma
brasileira que mora no mesmo espaço que os Warao) e a perguntou como ela estava, ao que
respondeu triste: _não muito bem!
A voluntária, então, perguntou o que havia acontecido, quando a Maria disse que a
vida não andava boa. Heloísa perguntou a ela o que naquele exato momento a incomodava, ela
então disse que estava triste porque o filho tinha ido para o trabalho cedo e ela não tinha nada
para dar-lhe de comer, a não ser um café e que, por ser ralo, ela achava que não teria o
sustentado. Que o café era fraco. Heloísa, assim, a perguntou se ela gostaria de ganhar um
pacote novo de café, ao que a Maria, surpresa, respondeu que “sim”. Heloísa a indagou qual
café ela gostaria de ganhar, mas ela não quis escolher.
Após alguns instantes, ainda em conversa sobre o café e sobre a vida, Heloísa disse:
“_eu gosto muito do Melitta, mas o Letícia também é bom. No meu trabalho tomamos Dona
Íris, que é bem escuro”. Maria, então, respondeu: “_dizem que quando é escuro assim, é porque
é bem forte, então é bom”. Dessa forma, Heloísa sabia qual café comprar para a Maria.
Retornando à história do casal, eles estavam em Montes Claros desde novembro do
ano de 2020, mas decidiram se desvencilhar dos grupos (o irmão do Santiago é o cacique do
Grupo 1), porque eles gostavam de ter sua privacidade, seu espaço e foram sucessivas chegadas
de Warao à cidade, então, não havia espaço individualizado. Em seguida, eles foram para
Vitória da Conquista, onde os pais da esposa de Santiago se encontravam. Importante
mencionar que o casal viajou antes de colocar o contraceptivo na esposa do Santiago e, com
isso, ela estaria grávida, novamente. Com as dores que a esposa passou a ter, esse casal decidiu
buscar a medicina/cura Warao em membros (especialmente mulheres) do Grupo 2, que se
encontram no bairro Jardim Alvorada.
A enfermeira aferiu a pressão da gestante, com a Heloísa fazendo a interpretação
em espanhol e interagindo com o casal. Após isso e, feita a leitura dos exames, receitas e cartões
de vacina, a enfermeira perguntou sobre a alimentação do casal. Os Warao, normalmente,
alimentam-se poucas vezes ao dia, em média, duas grandes refeições. Na situação de gravidez,
a enfermeira observou que as dores poderiam advir do jejum, visto que a esposa do Santiago
tem pressão arterial alta. Assim, a recomendação foi de que ela se alimentasse um pouco mais
141
durante o dia, não ficasse muitas horas de jejum, mas comesse, ao menos, quatro vezes ao dia,
sendo duas refeições mais leves.
Santiago pareceu concordar com o que foi dito. A sua esposa permaneceu calada
todo o tempo, e um dos seus filhos dormia ao seu lado, em dois colchões que conseguiram
emprestados com o dono do prédio. Santiago é professor de espanhol para indígenas Warao e
de warao para nativos do espanhol. Parece ser menos leigo que o grupo, no geral, e entende
bem o português. Também demonstrou simpatia.
Heloísa perguntou ao Santiago se ele tinha alimentos para aquele, ao que ele
respondeu que se alimentaram, por último, antes de chegar à cidade. Então, Heloísa me
convidou para irmos ao supermercado fazer algumas compras para esse casal com a
transferência “Pix” que havia sido feita por um amigo dela, que doava, mensalmente, R$100,00
(cem reais) para ajudá-la nas demandas com os Warao, sabendo das dificuldades do grupo e da
voluntária para arrecadar recursos.
Antes que pudéssemos sair, na área de entrada do prédio, encontravam-se outros
Warao (quatro homens e três mulheres) e ficamos conversando – ao que observei, os homens
Warao adoram longas conversas, já as mulheres demonstraram ser mais introvertidas, mas,
também, muito sábias. Enquanto os homens conversavam, as mulheres preparavam alimentos
para o consumo, ou faziam peças de roupas à mão, uma expressão da cultura Warao. Havia uma
senhora de 81 anos, que imagino ser a anciã mais idosa do grupo.
Assim, veio até nós o González, já estabelecido no grupo. Vestido bem, parecia ter
acabado de tomar um banho e colocado a sua melhor roupa para falar conosco. Ele estava
bastante exaltado e parecia indignado. Uma mistura de tristeza e insatisfação. O que aconteceu
com o González foi que o dono do imóvel o havia cobrado R$800,00 (oitocentos reais) da fatura
de luz do grupo. As despesas daquele grupo de Warao haviam sido tratadas por um
representante da prefeitura, diretamente, com o dono, em que ficou acordado que a prefeitura
arcaria por 03 (três) meses de aluguel ao grupo, ou melhor, referente às 05 (cinco) famílias;
embora já fossem 08 (oito) e, com a chegada do casal, seriam 09. O dinheiro, contudo, ainda
não havia sido repassado ao dono do imóvel e, mais que aluguéis vencidos, havia também a
fatura de energia que não poderia esperar, por isso o motivo da cobrança direta do locador.
Assim, exaltado, González começou a falar sobre a cobrança para Heloísa e eu, e
relatou a sua história. Ele dizia, repetidamente, a sua história. Ele nasceu numa montanha, o seu
pai era “_índio, índio”... não teve estudo, assim como toda a família, mas a mãe fala um pouco
de espanhol (ela estava em João Pessoa com o irmão) e o indígena aprendeu espanhol na “rua”.
Ele reforça que sabe que aqui ele devia aprender português, mas disse que não teve educação
142
de escola, não aprendeu bem a ler ou a escrever, e as pessoas aqui sempre o cobram isso, sempre
o dão coisas para assinar que ele não entende o que está escrito, mesmo que em espanhol.
González enchia os olhos de lágrimas ao dizer que era honesto, sabia que não
poderia morar num lugar que não podia pagar, que o imóvel não era dele, mas que ele não
poderia fazer nada, que a prefeitura disse que pagaria, porque ele não tem condição de pagar
por esses três meses. Ele gostaria que o locador entendesse isso.
Enquanto conversávamos com González, o locador chegou. Então, Heloísa,
acalmando-o, explicou para Armando (o locador) o que incomodava o indígena, e que a
cobrança poderia ser feita, diretamente, com o representante da prefeitura. Armando aparentou
ser compreensivo, mas afirmou que ele só estava tentando garantir que a luz não fosse cortada,
visto que são 03 (três) faturas diferentes no prédio e a dos Warao era a mais cara, no valor de
R$800,00 (oitocentos) reais. A voluntária o perguntou quando ela venceria, então, o locador a
respondeu que no dia 18 daquele mês. Ela o disse que ele pudesse ficar tranquilo que a fatura
seria paga, e que não precisava cobrar mais do González. O indígena apertou as mãos do
locador, o chamando de “amigo” e demonstrando mais tranquilidade.
Na roda apareceram outros Warao e, já éramos cinco Warao, Heloísa e eu na
conversa. Outras quatro esposas permaneceram do lado de fora da roda. Fato relevante é que o
González disse, na roda, que todos eles já se conheciam na Venezuela, confirmando a relação
de parentesco entre o grupo (discutida anteriormente), e completou falando um pouco como o
país estaria “acabado”, segundo ele.
Fomos às compras. Compramos o suficiente para os próximos três ou quatro dias,
para o casal, o café para a Maria, e retornamos. Levamos trigo, óleo, arroz, frangos (inteiros, já
que eles não gostam de partes), mandioca, cebola e macarrão. Após entregar as compras ao
casal, paramos para conversar um pouco com mais com Maria. Ela contou-nos que estava
preocupada que o filho não estava estudando e que ele queria muito estudar, mas que
precisavam de internet durante a pandemia e até o momento as escolas não haviam reaberto.
Maria explicou que tinha dois filhos: um adulto, que trabalha, e outro de 15 anos
que ainda estava no quinto ano. Após isso, ela também falou sobre desejar conseguir uma casa
e sair do aluguel, e também sobre os preços das coisas, como o gás de cozinha que estava muito
alto. Disse que estava muito difícil sobreviver nos dias de hoje e ficou emotiva ao comentar que
sentia que as pessoas não olhavam para a situação dela.
Hesitante, Maria, disse que se indignava com a quantidade de doações que os Warao
recebiam, mas que ela também estaria passando por necessidades. Ela disse que, às vezes, via
143
“desperdício” de alimentos por parte dos indígenas, enquanto ela não tinha, praticamente, nada
para comer no dia a dia. Maria demonstrava-se insatisfeita com toda aquela situação.
Observa-se que Maria não dizia aquilo de modo malicioso; ela era apenas alguém
que se encontrava com necessidades básicas de sobrevivência, assim como os Warao. O
desperdício a que Maria faz referência pode ser facilmente justificado no fato de os Warao
receberem, constantemente, doações de alimentos que não fazem parte da sua dieta. Em alguns
casos, os indígenas nem sequer compreendiam o preparo e o consumo de gêneros alimentícios
que recebiam, haja vista a sua dieta pautada em inhame (chamado de “ocumo chino”),
mandioca, buriti, cebola, pimentão, frango, peixe, farinha de trigo, banana, manga, etc.
É possível identificar, nas palavras de González, grande tristeza por toda aquela
situação de cobrança. O indígena reafirmou seu valor moral e ético de honestidade, visto que
este teria sido colocado à prova em uma situação sob a qual ele não tinha controle. A
inconformidade de González é a inconformidade de todo um povo que tem recebido o mesmo
tratamento que ele. Os Warao sofrem, diariamente, com questionamentos sobre o seu caráter,
o que faz que sua condição de refugiados se torne ainda mais angustiante.
Outro fato que merece ser mencionado é a busca do casal pela “cura Warao”. Esses
indígenas entendem a existência da medicina do homem não Warao como algo secundário,
visto que a sua crença está no seu povo e em seus rituais. Por isso, o casal se deslocou de tão
distante para ir de encontro ao seu grupo anterior, em que haveria uma pessoa capaz de realizar
a cura à grávida, ainda que esta recebera prescrições médicas acadêmicas.
Por meio das observações em campo, pode-se apontar que, no Brasil, os Warao têm
se comportado de maneira itinerante, modo como chegam até Montes Claros (MG). Desse
modo, pode-se afirmar que Montes Claros (MG) não é destino, mas faz parte da rota para os
Warao. Há linhas de ônibus que conectam o Nordeste ao Sudeste do país, estando a cidade
Norte-mineira no meio desse caminho. Em algum momento, os Warao decidiram tentar a sorte
na região, visto a dificuldade de coleta em lugares anteriores, ao que chegam ao município.
Essas observações foram confirmadas por Heloísa Menezes, em entrevista. A
voluntária explicou que os Warao chegaram à cidade de Montes Claros (MG) por meio de uma
demanda espontânea. Anteriormente, os grupos passaram pelos Estados de Roraima, Manaus,
Pará, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e, alguns indivíduos também haviam
passado pelo Estado da Bahia.
Longa é a trajetória dessas pessoas, que não se finda em Montes Claros. Embora
não tenham essência de migrantes e sejam caracterizados como sedentários, após os Warao
terem perdido o seu “lugar” no mundo, e aqui refere-se aos eventos a partir de 1960, deu-se
144
início ao deslocamento interno Warao, que gerou, mais tarde, uma espécie de diáspora. Desse
modo, há um movimento incessante desses refugiados em busca da “terra prometida”.
Repentinamente como chegaram a Montes Claros (MG), os Warao também decidiram deixar a
cidade; a movimentação, apesar de não ser o seu natural, tornou-se um hábito. É a busca por
alimento que move esse povo.
Em entrevistas, os Warao demonstraram interesse em encontrar trabalho, mas, para
tanto, seria preciso uma qualificação fornecida pelo poder público, algo que, em Montes Claros
(MG), não chegou a ser executado. Os homens da etnia demonstraram disposição para trabalhos
braçais, como o de pintura ou de auxílio na construção civil, sendo necessário, para isso,
políticas públicas de capacitação técnica a essas pessoas. As mulheres, por sua vez, não
deixaram de executar atividades voltadas para o artesanato e costura, desde que chegaram à
cidade. Por vezes, porém, a falta de matéria prima as impedia de produzir tais artigos.
A seguir, encontram-se dispostas algumas imagens ilustrativas (consentidas) da
atividade econômica Warao, desenvolvida por mulher. São apresentados vestidos costurados a
mão, assim como uma espécie de Sling, que é um suporte para mulheres carregarem seus filhos
pequenos. Os Warao gostam de cores alegres e são detalhistas na confecção de peças
artesanaais.
Foto 1: O Artesanato Warao em Montes Claros - MG
No âmbito desta pesquisa, identificou-se que os Warao não são atendidos pela
política de interiorização, estando ela voltada, exclusivamente, para os venezuelanos não
indígenas. Desse modo, os obstáculos ao acolhimento dos indígenas são ainda maiores, haja
vista a atuação mais tempestiva de voluntários em conjunto com o poder público, com base nas
demandas que vão surgindo com as aparições desses indivíduos em determinada sociedade.
Júlia Veloso109, Coordenadora do CRDH Norte - Cáritas, em Montes Claros (MG),
explicou que, desde a chegada dos Warao à cidade, foram enviados inúmeros ofícios à
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social local, a Defensoria Pública da União (DPU),
Ministério Público Federal (MPF), dentre outros, objetivando cientificá-los da situação de
chegada dos indígenas, bem como buscar a atuação do poder público e de autoridades na
mitigação dos problemas identificados pelo centro e por voluntários.
A coordenadora identificou uma resistência na atuação de instituições públicas no
acolhimento aos indígenas, por ser algo considerado novo e muito específico, tratava-se de
refugiados indígenas, envolvendo, também, questões de comunicação, o que Veloso acredita
ter gerado grande dificuldade.
109
Entrevista realizada em 13/08/2021.
146
110
Fundada em 1960, “A Corporación Venezolana de Guayana é um conglomerado venezuelano de propriedade
estatal descentralizada, localizado na região de Guayana, no sudeste do país. Suas subsidiárias incluem os
produtores de alumínio Alcasa, Venalum e mineração de ouro Minerven”. Cf.:
<https://en.wikipedia.org/wiki/Corporaci%C3%B3n_Venezolana_de_Guayana>. Acesso em: 22/06/2022.
111
García Castro e Heinen (1999).
148
CONSIDERAÇÕES FINAIS
112
Global Trends: forced displacement in 2020.
152
Estado, contudo, sem proatividade ou interesse, não consegue desenvolver redes de apoio e de
acolhimento.
Um trabalho de conscientização, no âmbito da política de interiorização, torna-se,
igualmente, importante. As pessoas devem saber que existem refugiados na cidade, que a
tolerância e o respeito são imperativos, e que a ajuda de voluntários é muito bem-vinda para
mitigar os problemas enfrentados por esses indivíduos. A sociedade civil, mais que o Estado,
sempre proporcionou maior integração de refugiados em diversas sociedades, mas não se pode
esquecer que o Estado tem recursos e a obrigação legal de propiciar esse acolhimento, ainda
que ele não o faça espontaneamente.
Um refugiado precisa ter saúde, alimentação, trabalho, educação e todos os seus
direitos fundamentais resguardados, devendo-se ressaltar o respeito ao direito constitucional de
ir e vir de qualquer pessoa no território nacional. O Estado e a coletividade, juntos, são capazes
de proporcionar uma experiência de refúgio mais satisfatória aos venezuelanos, em meio a tanta
tristeza e incerteza.
Objetiva-se, com estas considerações finais, não encerrar nem esgotar o tratamento
deste tema. Entende-se a sua complexidade e o desafio de retratá-lo em uma pesquisa de
mestrado e em meio à pandemia do novo coronavírus, que trouxe diversos obstáculos,
especialmente para o trabalho de campo. Muitas são as possíveis questões, contudo, que se
originaram neste trabalho dissertativo a serem, futuramente, trabalhadas.
Destarte, como agenda futura de pesquisa, pensa-se em compreender distinções de
acolhimento, entre interiorizados, a grupos gendrados e a pessoas LGBTQIA+, assim como o
tratamento dado a crianças refugiadas não indígenas desacompanhada dos pais ou de um tutor
legal, no Brasil. Buscar-se-á aprofundar, ainda, estudo de casos em experiências de refúgio
comparadas em demais cidades de infraestrutura e de dinâmicas sociais semelhantes às de
Montes Claros (MG), pretendendo-se compreender as melhores práticas e resultados no
trabalho de acolhimento a não indígenas e a indígenas.
Verificamos que os refugiados venezuelanos, no Brasil, são pessoas sempre em
trânsito. A perda do seu lugar implica a busca incessante de um resgate. O aperto no coração
de quem não sabe o que fazer para sobreviver, para ter comida, para alimentar os seus, os faz
caminhar. Diante disso, há a necessidade de ressignificar o lugar; o que não é fácil para quem
nunca planejou deixar o seu país, especialmente nas condições em que isso ocorreu. Para onde
ir agora? Esse é o questionamento constante desses “refugiados em trânsito”, e não há resposta
certa nem instantânea, porque dependerá de muitos fatores, como da força física, das políticas
públicas, das barreiras humanas, ou das redes de acolhimento nas cidades ou países de destino.
155
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<https://www.acnur.org/portugues/publicacoes/>. Acesso em: 25/05/2020.
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