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1. Introdução1
“Tratado sobre o amor”, foi escrita, supostamente sob o pedido de Abdullah ’l-
Ma’sumi, pelo filósofo persa de língua árabe Avicena (Ibn Sina), que viveu entre 980 e
1037 d. C.2 O texto recebeu sua primeira edição crítica em 1894, elaborada por Mehren.
Tal edição, juntamente com outra de 1917 feita pelo mesmo Mehren, serviu de base
para a tradução ao inglês realizada por Fackenheim, a qual foi consultada para o
presente trabalho.3
aviceniana de amor, bem como as noções que a rodeiam, ou seja, as causas, os efeitos,
esboçar uma breve contextualização da obra em relação aos demais autores que
O amor é um tema que sempre esteve presente nas discussões filosóficas; antes
de ser estudado por Avicena, já fora descrito por Platão, Aristóteles e Plotino, entre os
gregos, e por Al-Kindi e Al-Farabi, entre os árabes, afora por diversos outros textos, tais
possível que Avicena tenha tido contato com todas essas idéias, mas sua forma original
1
Trabalho apresentado como forma de avaliação do curso Falsafa – a filosofia árabe através dos textos,
ministrado pelo Prof. Miguel Attie Filho em 2009.
2
Cf. ATTIE FILHO (2002), pg. 226.
3
Cf. FACKENHEIM (1945), pg. 208.
4
Op. cit. pp. 209-10.
1
de abordar o amor, partindo de uma classificação psicológica ou anímica, nos permite
dizer que ele não se limitou a imitá-las. Nem mesmo o discurso de Erixímaco, no
Banquete de Platão, que é dito uma definição médica do amor, deve ser visto como a
fonte inspiradora da Risalah fi’l- ‘ishq; Avicena, ao invés de correlacionar amor, doença
metafísica. Nesse sentido, pode-se afirmar que a maneira de tratar o amor em Avicena é
sem precedentes.
das outras afirmações concorrentes a ela. Apenas por vezes, para reforçar ou reiterar
primeiro sujeito e o primeiro objeto do amor, etc. – pouco tem de original. Está presente
de encontro onde, por um lado, muito do que havia sido desenvolvido antes tendeu a
encontrar um lugar seguro e, por outro, o lugar de onde veio muito do que veio a se
criar depois.”7 Resta ainda mencionar que alguns estudiosos levantaram a hipótese de
que a Risalah fi’l- ‘ishq teria exercido uma influência determinante na noção de “amor
cortês” divulgada pela poesia provençal do século XII; porém, nos vemos aqui
obrigados a concordar com a demolição de tal hipótese elaborada por Grunebaum, tendo
5
Cf. PLATÃO (1981), pp. 563-97.
6
Cf. PLOTINO (2000).
7
ATTIE FILHO (2002), pg. 227.
2
em vista que o amor definido por Avicena e o amor descrito pelos poetas provençais são
de naturezas diferentes.8
2. Estrutura do tratado
e inato de atingir sua perfeição; assim, os seres sempre têm alguma conexão com a
perfeição e o defeito, e dessa conexão com a perfeição nasce o amor por aquilo que
possa mantê-los em ou uni-los à sua perfeição. Uma vez que nenhum ser é privado de
uma perfeição específica a ele, e que nenhum ser é causa suficiente para a existência de
tal perfeição (pois as perfeições dos seres emanam do Perfeito per se), e que esse
Princípio do qual emana a perfeição não deseja causar nenhum dano a qualquer um dos
seres particulares, então é necessário que esse Princípio insira nos seres algo que os
conduza à sua perfeição; e já que concerne ao amor conduzir o ser à sua perfeição, a
presença do amor nos seres existentes é necessária. Dessa forma, o amar e o existir são
inseparáveis.
Em seguida, surge uma primeira definição de amor: o amor nada mais é do que
uma completa aprovação daquilo que é agradável e conveniente, que pode estar
amor gera a ânsia e a busca por ele. Assim sendo, todo ser aprova o que é conveniente a
8
Cf. GRUNEBAUM (1952).
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Seres: empregamos aqui a palavra com inicial minúscula para indicar o que Avicena chama de “seres
determinados por um desígnio” [mudabbar], ou seja, todos os que possuem existência sem que esta seja
sua essência. Em outras palavras, todos os que não são Deus.
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conveniente aquilo que possui um bem específico, de forma que algo é aprovado e
alguma coisa é aprovada pelo bem que possui, é antes o bem que é aprovado, e não a
coisa; quanto melhor for a coisa, mais mérito ela terá de ser amada, e maior é o amor
por aquilo que é melhor. Isso nos conduz à conclusão que Deus é mais alto objeto do
amor, uma vez que Ele possui o máximo de bondade. E mais: Deus não só é o maior
objeto do amor, como também é o maior sujeito do amor, pois se o bem ama o bem na
com o tipo de alma, iniciando com as formas mais brutas e inanimadas (o reino
amor.
dita, os elementos que não subsistem separadamente, e os acidentes. Todos esses grupos
possuem um amor inato, do qual nunca estão livres, e que é causa de sua existência. Na
tanto que, ao perder uma forma, imediatamente assume outra, porque a matéria sem
forma seria o completo não-ser, situação da qual todos os seres se esquivam, por sua
natureza. Quanto aos elementos que não subsistem separadamente, o amor é expresso
por seu apego a algo que os fazem subsistir e em sua aderência à perfeição desse algo.
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Ou benignidade.
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Por fim, nos acidentes o amor é expresso por sua aderência a algum sujeito, dado que se
consideradas portadoras de alma, a qual é chamada de alma vegetal. Esta pode ser
correspondendo a uma faculdade: o amor que é fonte do desejo pela presença da comida
corpo; e o amor que é fonte do desejo de produzir um novo princípio similar àquele do
qual se produz. Dessa forma, também os seres vegetais têm o amor como causa de sua
Da mesma forma, nas almas animais há um tipo de amor para cada faculdade.
Para a faculdade dos sentidos externos, há um amor que incita a procura de objetos
desejados; para a faculdade dos sentidos internos, há um amor que gera a apreciação de
associar a faculdade apetitiva da alma animal com um tipo de amor, Avicena demonstra
primeiro faz com que aquele que o possui nunca descanse, nunca cesse sua busca, a não
ser por algum motivo externo; a essa categoria do amor pertencem as faculdades
vegetais e as condições minerais; por exemplo, uma planta nunca deixará de buscar
alimento, exceto por algum motivo alheio, assim como uma pedra não deixará sua
posição de repouso sem que alguma força externa a mova. Já as faculdades da alma
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Ou espontâneo.
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animal, entre elas a apetitiva, pertencem ao amor voluntário: o indivíduo passa por uma
ponderação antes de amar, elege um objeto de amor entre várias possibilidades, levando
lobo; ele abandona a pastagem e foge, porque, nesse momento, os benefícios da fuga
universais), ela sobe mais um grau em complexidade, tornando-se alma humana. Antes
qualidades dessa faculdade maior; assim, as faculdades vegetais são assistidas pelas
sexual, agressão, belicosidade), tais atividades são realizadas no âmbito humano de uma
primeira premissa; ou seja, uma vez que as faculdades animais no homem são assistidas
pela razão, também as atividades regidas por tais faculdades sofrerão reflexos da razão.
viciosas e causam dano à razão12, e portanto tais faculdades devem ser controladas pela
própria razão. Por fim, a quarta premissa é de que tanto a alma racional como a alma
animal invariavelmente amam aquilo que tem beleza de ordem, composição e harmonia;
porém, enquanto a alma animal ama a beleza em função do instinto natural, a alma
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Diferentemente do âmbito animal, onde o excesso de tais faculdades indica sua excelência.
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racional ama porque reconhece que quanto mais bela em sua ordem, composição e
harmonia for alguma coisa, mais próxima ela está do Primeiro Objeto do amor.
Dadas as premissas, o autor sustenta que faz parte da natureza dos seres dotados
de razão desejar uma bela visão, o que também é um tipo de amor, o qual deriva de uma
aliança entre a alma animal (pela percepção dos sentidos) e a alma racional (pelo
refinamento e nobreza). Se um homem amar uma forma bela com desejo animal, será
se tornar mais parecido aos seres nobres. Tal amor deixará no homem os seguintes
Entre as formas belas está o corpo humano, que – precisamente por ser belo – é
objeto de amor. Três podem ser as consequências de amar uma forma humana: um
Esta última condiz com a alma animal, exclusivamente. Portanto, no âmbito humano,
ela só pode ser justificada se estiver regida por um amor proveniente da alma racional
que a controla e limita, fazendo, por exemplo, com que o homem nobre só possua
ímpeto sexual pela sua esposa. Já as outras duas consequências têm por meta a
proximidade do objeto amado, em visão e tato. Por condizerem à alma racional, elas não
são reprováveis em si, muito embora elas possam conduzir o amante a atos menos
racionais e mais animais, devendo-se portanto, por parte dos homens nobres, precaver-
se contra elas.
Para Avicena, uma alma divina é uma alma humana ou angélica que adquiriu o
idêntico à Causa Primeira. A perfeição das almas divinas reside em duas coisas: na
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concepção dos seres inteligíveis com os quais tenham uma possível relação e na
perfeição nada mais são do que a busca de aproximar-se do Bem Absoluto. Dado que
esse desejo de aproximar-se é motivado pelo amor, então é necessário que o Bem
Absoluto seja amado por todos os seres dotados de alma divina. Tal amor é constante
nesses seres, uma vez que eles estão ou em estado de perfeição (amando em função do
almas divinas possam amar outras coisas além do Bem Absoluto, elas só conseguem
amar essas coisas porque as mesmas possuem algum bem, e amar o bem é amar a causa
desse bem, que é a Causa Primeira, o Bem Absoluto. Portanto, o verdadeiro objeto do
Avicena conclui seu tratado com duas demonstrações: uma de que todo ser ama
o Bem Absoluto com um amor inato e outra de que o Bem Absoluto se manifesta para
todos os que O amam. Uma vez que todos os seres possuem um amor natural pela sua
perfeição (ou seja, a aquisição da bondade), a fonte da qual essa perfeição emana
também necessariamente deve ser amada; e como a fonte da perfeição é o próprio Bem
Absoluto, é obrigatório que este seja amado por todos os seres. O fato de que a maioria
dos seres não tem consciência desse amor não contradiz o fato de amarem. Tais seres
focam seu amor na sua própria perfeição, ignorando que ao amar sua perfeição estão
amando sua fonte, o Bem Absoluto. É igualmente necessário que o Bem Absoluto se
manifeste para os que O amam, pois se não se manifestasse não poderia ser conhecido e
Dele nada poderia ser obtido; e se aparece velado, é em função da impotência de alguns
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seres de receber adequadamente tal manifestação. Ou seja, o véu está nos seres, e não no
Bem Absoluto, e tal véu consiste em impotência, fraqueza e defeito. Pois o Bem
Absoluto, por sua própria natureza, ama aquilo que é causado por Ele, e por isso
manifesta-se; e já que o amor do Bem Absoluto por sua própria perfeição é o amor mais
excelente possível, ele tem como objeto a recepção dos seres de Sua manifestação.
Dessa maneira, é possível afirmar que os seres se tornam o objeto do amor do Bem
Absoluto.
3. Conclusão
Em suma, para Avicena o amor é algo que permeia toda a existência, sendo
inclusive a causa desta, o que confere ao amor um significado muito mais amplo do que
se costuma aplicar; o amor aqui não se restringe a um sentimento de alguém por outro
alguém ou por algo; possui uma abrangência tal que move todos os seres em todas as
suas ações. Mas em qualquer nível que esteja – do mineral ao divino –, o amor está
sempre ligado à perfeição, sendo por vezes a busca, por vezes a manutenção, por vezes
a fruição dessa perfeição. E se amamos nossa própria perfeição e amamos tudo aquilo
que a ela nos conduz ou dela nos aproxima, e se tudo o que venhamos eventualmente a
amar está de certa forma ligado à nossa perfeição, amar é, na verdade, ser (ou tentar ser)
perfeito. Por isso o ser que mais e melhor ama é o mais perfeito. E cabe a nós, seres
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Bibliografia
ATTIE FILHO, M. Falsafa: a filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002.
FACKENHEIM, E. L. “A Treatise on Love by Ibn Sina”. In: Mediaeval Studies, vol. 7.
s/l: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1945. pp. 208-28.
GRUNEBAUM, G. E. “Avicenna’s Risala fi ’l- ‘isq and Courtly Love”. In: Journal of
Near Eastern Studies, vol. 11, nº 4. Chicago: The University of Chicago Press, 1952.
pp. 233-8.
PLATÃO. Obras Completas. Madrid: Aguilar, 1981.
PLOTINO. Tratados das Enéadas. São Paulo: Polar, 2000.