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BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo.

Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.

Na literatura, o processo de assimilação do tempo e do espaço histórico reais, e


do homem histórico e real que neles se revela, transcorreu de forma complexa e
descontínua. Assimilaram-se aspectos isolados do tempo e do espaço acessíveis apenas
em dada fase histórica do desenvolvimento da humanidade, elaboram-se nos gêneros os
respectivos métodos de representação e formulação artística dos aspectos assimilados da
realidade. (p. 11)
Chamaremos de cronotopo (que significa “tempo-espaço”) a interligação
essencial das relações de espaço e tempo como foram artisticamente assimiladas na
literatura. Esse termo é empregado nas ciências matemáticas e foi introduzido e
fundamentado com passe na teoria da relatividade (Einstein). Para nós não importa o
seu sentido específico na teoria da relatividade, e o transferimos daí para cá – para o
campo de estudos da literatura – quase como uma metáfora; importa-nos nesse termo a
expressão de inseparabilidade do espaço e do tempo (o tempo como a quarta dimensão
do espaço). Entendemos o cronotopo como uma categoria de conteúdo-forma da
literatura (aqui não comentaremos o cronotopo em outros campos da cultura).1 (p. 11)
No cronotopo artístico-literário2 ocorre a fusão dos indícios do espaço e do
tempo num todo apreendido e concreto. Aqui o tempo se adensa e ganha corporeidade,
torna-se artisticamente visível; o espaço se intensifica, incorpora-se ao movimento do
tempo, do enredo e da história. Os sinais do tempo se revelam no espaço e o espaço é
apreendido e medido pelo tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais
caracterizam o cronotopo artístico. (p. 12)
O cronotopo tem um significado fundamental para os gêneros na literatura.
Pode-se dizer, sem rodeios, que o gênero e as modalidades de gênero são determinados
justamente pelo cronotopo e, ademais, que na literatura o princípio condutor no
cronotopo é o tempo. O cronotopo como categoria de conteúdo-forma determina (em
grande medida) também a imagem do homem na literatura; essa imagem sempre é
essencialmente cronotópica.3 (p. 12)
1
O autor dessas linhas assistiu em 1925 a palestra de A. A. Ukhtómski sobre o cronotopo na biologia. O
palestrante ainda tratou de questões de estética. (N. do A.)
2
Ou ficcional. Ver a respeito no posfácio a esta edição.
3
Em sua “Estética transcendental” (uma das seções basilares da Crítica da razão pura), Kant define o
espaço e o tempo como formas necessárias de todo conhecimento, a começar pelas percepções e
representações elementares. Aceitamos a apreciação kantiana do significado dessas formas no processo
Como já dissemos, a assimilação do cronotopo real e histórico na literatura
transcorre de modo complexo e descontínuo: assimilaram-se alguns aspectos
determinados do cronotopo, acessíveis em dadas condições históricas, elaboraram-se
apenas certas formas de representação artística do cronotopo real. Essas formas de
gênero, produtivas de início, foram respaldadas pela tradição e no desenvolvimento
posterior continuaram a existir tenazmente mesmo quando já haviam perdido
completamente sua importância realisticamente produtiva e adequada. Daí coexistirem
na literatura fenômenos profundamente heterotemporais, o que confere extrema
complexidade ao processo histórico-literário. (p. 12-13)
Nos ensaios de poética histórica que propomos, tentaremos mostrar esse
processo usando o material do desenvolvimento das diferentes variedades de gênero do
romance europeu, começando pelo chamado “romance grego” e terminando com o
romance de Rabelais. A relativa estabilidade tipológica dos cronotopos dos romances
elaborados nesses períodos nos permitirá lançar um olhar prospectivo sobre algumas
variedades do romance nos períodos posteriores. (p. 13)
Não temos a pretensão de que as nossas formulações e definições teóricas sejam
plenas e exatas. Só há pouco tempo iniciou-se em nosso país e no exterior um sério
trabalho voltado para o estudo das forma do tempo e do espaço na arte e na literatura.
Em seu posterior desenvolvimento, este trabalho completará as características dos
cronotopos do romance que apresentamos neste nosso estudo e, talvez, venha a corrigi-
las em sua essência. (p. 13)

1. O ROMANCE GREGO

Nesses romances encontramos um tipo de tempo aventuresco alta e sutilmente


elaborado, com todas as suas nuanças e particularidades específicas. (2018, p. 16)
A partir do romance aventuresco de provação, Bakhtin começa por analisar o
romance grego, que ele afirma que “empregou e refundiu em sua estrutura quase todos
os gêneros da literatura antiga.” (2018, p. 18)
Para Bakhtin, o tempo é especialmente significante nesse gênero porque ele
nunca altera a vida dos heróis: “trata-se justamente de um hiato extratemporal entre dois
momentos do tempo biográfico.” (2018, p. 19) Bakhtin o denomina “tempo
de conhecimento, mas à diferença de Kant, não as concebemos como “transcendentais” e sim como
formas da própria realidade factual. Tentaremos revelar o papel dessas formas no processo do
conhecimento artístico concreto (da visão artística) nas condições do gênero romanesco. (N. do A.)
aventuresco,” que ele considera “extraordinariamente intensivo, mas intensivo”,
desatento à idade dos heróis. (2018, p. 20)
“Nesse tempo nada muda: o mundo permanece o mesmo; em termos biográficos,
a vida dos heróis também não muda, seus sentimentos permanecem igualmente
inalterados, nesse tempo tampouco as pessoas envelhecem. Esse tempo vazio não deixa
vestígio em lugar algum, nenhum sinal conservado de seu curso.” (2018, p. 21)
“Os elementos do tempo aventuresco situam-se nos pontos de ruptura do curso
normal dos acontecimentos, da série normal, casual ou finalística da vida, nos pontos
onde essa série é interrompida e dá lugar à interferência de forças não humanas: o
destino, os deuses, os vilões. É exatamente a essas forças e não aos heróis que cabe toda
a iniciativa no tempo aventuresco.” (2018, p. 26)
Bakhtin identifica certos temas do cronotopo no “motivo do encontro” e
separação, e também o motivo de viagem na estrada. (2018, p. 29). Ele sugere que “O
caráter [de um dado lugar do espaço (em dado país, cidade, etc.)] não se integra ao
acontecimento como componente, o lugar entra na aventura apenas como uma
extensividade vazia e abstrata. Por isso todas as aventuras do romance grego são
dotadas de mobilidade. [...] O cronotopo aventuresco se caracteriza justamente pelo
abstrato vínculo técnico do espaço e do tempo, pela reversibilidade dos elementos da
série temporal e por sua mobilidade no espaço.” (2018, p. 32)
Por causa disso, o mundo dos heróis é estranho a eles, e “por isso nesse universo
só existem simultaneidades e heterotemporalidades casuais para eles.” (2018, p. 33)
Já que os heróis não mudam ou evoluem durante suas aventuras nesse tipo de
narrativa, Bakhtin postula que: “O romance grego está vinculado às profundezas do
folclore anterior à sociedade de classes e se apodera de um dos elementos substanciais
da ideia popular de homem, a qual vive até hoje em diferentes modalidades de folclore,
sobretudo nos contos populares. Por mais empobrecida e esvaziada que seja a unidade
humana no romance grego, ainda assim nela se conserva um precioso grão de
humanidade popular, transmite-se a fé do poderio indestrutível do homem em sua luta
contra a natureza e todas as forças não humanas.” (2018, p. 38-39)

2. APULEIO E PETRÔNIO

Bakhtin prossegue à obra de Apuleio de Petrônio como exemplares do romance


aventuresco e de costumes, discorrendo primeiro sobre como a combinação do tempo
aventuresco com o de costumes “modificam-se de forma substancial nas condições de
um cronotopo inteiramente novo,” criados pelo romance O asno de ouro de Apuleio.
Para o teórico, essa obra possui duas peculiaridades que determina o caráter distinto do
tempo: “1) a trajetória vital de Lúcio é apresentada num formato de “metamorfose”; 2) a
própria trajetória vital funde-se com o caminho real das errâncias/peregrinações de
Lúcio pelo mundo na imagem de um asno.” (2018, p. 48)
Nesse tipo de transformação que ocorre no gênero, oriunda do formato
mitológico da metamorfose, “mantém-se a ideia da evolução, e não linear, mas aos
saltos, com interseções, logo mantém-se uma determinada forma de série temporal.”
(2018, p. 50) Bakhtin continua: “Com base na metamorfose, cria-se um tipo de
representação do conjunto da vida humana em seus momentos basilares de reviravolta,
de crise: momentos em que o homem se torna outro.” (2018, p. 51).
Este é um tempo que está repleto dos momentos estranhos da vida e portanto não
é o mesmo que o tempo biográfico. A diferença neste gênero e o romance grego é que,
enquanto os eventos do romance grego ocorrem por pura chance cujas origens estão
além da potência do herói, os eventos que ocorrem ao herói o indicam nitidamente
como sua fonte, e portanto o ônus cabe ao heróis para mudar as estruturas presentes das
coisas. (2018, p. 53-54).
Bakhtin o descreve como um simples ciclo: culpa –> castigo –> expiação –>
beatitude (2018, p. 56). Portanto, “aqui a série temporal é um todo substancial e
irreversível. A consequência disso é o fim da natureza abstrata inerente a todo o tempo
aventuresco grego. Essa nova série temporal, ao contrário, requer concretude da
exposição.“ (2018, p. 57)
O espaço se torna significante na medida em que o tempo se torna equipado com
o poder para trazer a mudança. (2018, p. 58). Antes disso, a localização não tinha
figuração como um componente em eventos temporais, o que indicava que o cronotopo
ainda estava amorfo.
Por causa da transformação de Lúcio em um asno, ele adquire a habilidade de
espiar em todo mundo, assim transformando o privado ao público. Bakhtin escreve, “A
delinquência é aquele momento da vida privada em que ela se torna pública, por assim
dizer, a contragosto.” (2018, p. 61). Inclusive, “surgiu a contradição entre a publicidade
da própria forma literária e a privacidade do seu conteúdo. Teve início o processo de
elaboração dos gêneros privados.” (2018, p. 62) Ademais, a crise do indivíduo sempre
está antecipadamente prefigurada publicamente pelos hierofantes e suas leituras dos
oráculos— mas por outro lado, a insensatez ou a criminalidade do indivíduo deve ser
lidada com moderação em contraste com a virtude pública. A crise como uma
reviravolta forma uma torção do espaço-tempo que rompe com as possibilidades do
passado.

3. BIOGRAFIA ANTIGA E AUTOBIOGRAFIA (p. 71)

Bakhtin segue então à biografia e autobiografia, mais notavelmente as obras de


Platão, das quais ele escreve: “Esse tipo de consciência autobiográfica do homem está
vinculado a formas vigorosas da metamorfose mitológica. Em sua base encontra-se um
cronotopo - o “caminho vital de quem pretende o autêntico conhecimento.” (2018, p.
72)
“Esse cronotopo real é a praça (ágora). Foi na praça que pela primeira vez se
relevou e se enformou a consciência autobiográfica (e biográfica) do homem e de sua
vida em base clássica antiga.” (2018, p. 73)
“A unidade do homem e sua autoconsciência eram puramente públicas. o
homem era completamente exteriorizado, e isso no sentido literal desse termo.” (2018,
p. 75).
“O homem era todo exteriorizado no próprio elemento popular, no medium
popular humano. Por isso, a unidade dessa totalidade exteriorizada do homem era de
caráter público.” (2018, p. 77)
“As autobiografias e memórias romanas se formam em outro cronotopo real. A
base vital para elas foi a família romana. Aqui a autobiografia é um documento da
autoconsciência familiar-tribal. Mas nessa base familiar-tribal a autoconsciência
autobiográfica não se torna privada nem íntimo-pessoal. Ela conserva um caráter
profundamente público.” (p. 80)
“A família romana (patriciana) não é [...] símbolo de todo o íntimo privado. Era
justamente como família que ela se fundia diretamente com o Estado; transferiam-se ao
chefe da

4. O PROBLEMA DA INVASÃO HISTÓRICA E O CRONOTOPO


FOLCLÓRICO (p. 91)
No seguinte capítulo, Bakhtin mais uma vez fixa no tempo: “Pode-se dizer que
aí se representa como já a tendo existido no passado aquilo que em verdade pode ou
deve ser realizado apenas no futuro, aquilo que, em essência, é um objetivo, um dever
ser e em hipótese nenhuma uma realidade do passado.” (2018, p. 92).
Ele continua: “Esse original “deslocamento”, “inversão” do tempo, característico
do pensamento mitológico e artístico de diferentes épocas do desenvolvimento da
humanidade, é determinado por uma concepção peculiar de tempo, sobretudo pelo
futuro. Por conta do futuro enriquecia-se o presente e particularmente o passado.”
(2018, p. 92).

5. O ROMANCE DA CAVALARIA (p. 99)

Deixando os romances da Antiguidade, Bakhtin parte para os romances da Idade


Média, começando com o romance da cavalaria, que possui algumas semelhanças e
diferenças com o romance grego. Uma dessas semelhanças é o uso do tempo
aventuresco. “O tempo se discorre numa série de seguimentos-aventuras, em cujo
interior ganha uma organização técnico-abstrata e um vínculo igualmente técnico do
espaço.” (2018, p. 99)

Ao contrário, “Esse jogo subjetivo com o tempo é totalmente estranho à


antiguidade. [...] A antiguidade tratava o tempo com profundo respeito (ele era
consagrado pelos mitos) e não se permitia um jogo subjetivo com ele.” (2018, p. 104).
Quanto às diferenças, o teórico escreve, “À diferença dos heróis do romance
grego, os heróis do romance de cavalaria são individuais e ao mesmo tempo
representam.” (2018, p. 100).
Mais uma vez, “Em termos rigorosos, eles não são heróis de romances isolados
(e, ainda em termos rigorosos, não há absolutamente romances de cavalaria individuais
isolados, fechados em si mesmos): eles são heróis de ciclos.” (2018, p. 102).
Falando de tempo no romance de cavalaria, ele afirma que “se torna até certo
ponto mágico. Surge um hiperbolismo fabular do tempo, as horas se alongam, os dias se
reduzem a instantes, e o próprio tempo pode encantar; aqui surge até a influência dos
sonhos sobre o tempo, ou seja, surge a distorção específica das perspectivas temporais
que caracteriza os sonhos.” (2018, p. 103).
6. AS FUNÇÕES DO PÍCARO, DO BUFÃO E DO BOBO NO ROMANCE
(p. 109)

Dedica-se um capítulo sobre três figuras folclóricas que, embora tenham existido
desde a Antiguidade, assumem funções especiais na literatura da Idade Média e assim
entram em destaque na época: o pícaro, o bufão e o bobo. De acordo com Bakhtin, esses
três arquétipos criam cronotopos especiais ao seu redor, trazendo à literatura 1) um
vínculo essencial com os palcos teatrais e as mascaradas da praça pública; 2) aparências
figuradas que não podem ser interpretadas literalmente; e 3) o ser dessas figuras como
reflexo de algum outro ser, sua essência correspondente a e dependente de seu papel
como ator da vida. (2018, p. 110)
Em seguida, Bakhtin ilustra as figuras do pícaro, do bufão e do bobo porque elas
“influenciaram a colocação do próprio autor no romance (e da sua imagem, caso ela se
desvelasse de algum modo no romance), influenciando o ponto de vista dele.” (2018, p.
111).
Bakhtin elabora: “O romancista precisa de alguma máscara essencial da forma
do gênero, que determine tanto a sua posição para produzir uma visão da vida como de
uma posição para dar publicidade a essa vida. E é justo aí que as máscaras [...], claro
que transformadas de diversos modos, vêm em socorro do romancista.” (2018, p. 112).
Ademais, as imagens do bufão e do bobo são importantes para a primeira porque
“elas dão o direito de não compreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a
vida; direito de falar parodiando, de não ser literal, de o indivíduo não ser ele mesmo; o
direito de conduzir a vida pelo cronotopo intermediário dos palcos teatrais, de
representar a vida como uma comédia e as pessoas como atores; o direito de dar
publicidade à vida privada com todos os seus esconderijos mais secretos.” (2018, p.
114).
Finalmente, “é característico que o homem interior – pura subjetividade
“natural” – só tenha podido ser revelado com a ajuda das imagens do bufão e do bobo,
porquanto não foi possível encontrar para ele uma forma de vida adequada, direta (não
alegórica do ponto de vista da vida prática).” (2018, p. 115)

7. O CRONOTOPO RABELAISIANO (p. 119)


Bakhtin aborda então o romance de Rebelais, cujas obras apresentam uma forma
interessante do cronotopo que envolve um vínculo espacial do homem, suas ações e os
acontecimentos de que ele fez parte com o universo espaço-temporal. Esse vínculo
especial é considerado “uma adequação e proporcionalidade direta dos graus
qualitativos (“valores”) às grandezas (dimensões) espaço-temporais…Isso significa que
tudo o que é valioso, que é qualitativamente positivo, deve realizar sua significação
numa significação espaço temporal, expandir-se o máximo possível, ter a existência
mais longa possível; que tudo o que tem significação de fato qualitativa também sempre
tem forças para essa expansão espaçotemporal.” (2018, p. 119)
“A categoria do crescimento, e ademais de um espaçotempo real, é uma das
categorias mais basilares do universo rabelaisiano.” (2018, p. 120)
Na obra de Rabelais, encontra-se uma oposição, através de suas imagens, às
forças hegemônicas da cosmovisão eclesiástico-feudal que vê a realidade espaço-
temporal como algo fútil, frágil e herético, caracterizado pela inversão de valores: o
grande simbolizado pelo pequeno, o forte pelo fraco, o eterno pelo momentâneo, etc.
(2018, p. 120-121)
Sua originalidade artística pode ser definida pela combinação de duas tarefas –
uma polêmica e outra positiva – em sua oposição com a verticalidade medieval: “A
tarefa de Rabelais é depurar o universo espaço-temporal dos elementos da cosmovisão
sobrenatural que o desintegram, das assimilações simbólicas e hierárquicas desse
universo em linha vertical, do contágio da Antifísia (Antiphysis) que o afetou. Rabelais
combina essa tarefa polêmica com uma outra, positiva: a criação de um universo
espaço-temporal adequado enquanto um novo cronotopo para um novo homem
harmonioso e integral, e para novas formas de contato humano.” (2018, p. 121)
Como marca única do método artístico de Rebeleis, foram construídas sete
séries, cada dotada de uma lógica específica e o cruzamento entre elas mesmas, o que
permite com que o autor possa atrair e distanciar tudo o que lhe é necessário em sua
obra. Elas são: 1) as séries do corpo humano num corte físico e anatômico; 2) as séries
do vestuário humano; 3) as séries da comida; 4) as séries da bebida e da embriaguez; 5)
as séries sexuais (cópula); 6) as séries da morte e 7) as séries dos excrementos. (2018, p.
123)

8. OS FUNDAMENTOS FOLCLÓRICOS DO CRONOTOPO


RABELAISIANO (p. 169)
Focando no “ciclo do trabalho agrícola”, Bakhtin escreve: “Aqui mesmo
também se forma” o reflexo desse tempo na linguagem, nos antiquíssimos motivos e
enredos que refletem as relações temporais do crescimento e da contiguidade temporal
de fenômenos de diferentes características (contiguidade fundada na unidade do tempo).
(2018, p. 169)
Ademais, “Esse é o tempo do trabalho. O dia a dia e o consumo não estão
separados do processo do trabalho, do processo produtivo.” (2018, p. 170)
Mais uma vez, Bakhtin elucida essa forma: “Em todos os acontecimentos desse
tempo jaz a marca do cíclico e, consequentemente, da repetitividade cíclica. Sua
tendência a avançar é limitada pelo ciclo. Por isso, o crescimento se torna aqui uma
formação autêntica.” (2018, p. 173)
Por causa dessa unidade de tempo, Bakhtin escreve: “Nas condições da
inseparabilidade das séries individuais da vida e da unidade total do tempo, no aspecto
do crescimento e da fertilidade deveriam aparecer em imediata contiguidade mútua
fenômenos como a cópula e a morte (semeação da terra, concepção), o túmulo e o seio
da mulher a ser fecundada, a comida e a bebida (frutos da terra) ao lado da morte e da
cópula.” (2018, p. 174)
Com a diferenciação gradual dos meios de produção, “numa nova fase de
divisão da produção, do ritual e do cotidiano (uma divisão gradual) enformam-se
fenômenos como a obscenidade ritual e, posteriormente, o riso ritual, a paródia ritual e a
bufonaria.” (2018, p. 176)
Depois, o teórico escreve em geral sobre seu projeto presente: “Só nos interessa
a forma do tempo como base da vida posterior dos enredos (e das contiguidades dos
enredos). A forma folclórica do tempo acima caracterizada sofreu mudanças
fundamentais. É nessas mudanças que aqui nos deteremos.” (2018, p. 178)
Um exemplo de ditas mudanças fundamentais é a transformação dos motivos da
Antiguidade, em que a comida, as bebidas e a cópula passam a virar pequenos artigos
privados no âmbito da vida individual, perdendo-se assim sua conexão com a vida do
trabalho do meio social como um todo. “Em virtude do desligamento da vida produtiva
do conjunto, da luta coletiva com a natureza, debilitam-se ou rompem-se por completo
seus vínculos reais com a vida da natureza.” (2018, p. 180).
Mais uma vez, “O motivo da morte sofre uma profunda transformação na série
temporal fechada da vida individual. Aqui ele ganha o significado de fim essencial. E
quanto mais fechada é a série da vida intelectual, quanto mais desprendida da vida do
conjunto social, tanto maior e mais vital é esse significado.” (2018, p. 181)
“Temos diante de nós um tipo especial de construção de imagem realista que só
surge no terreno do aproveitamento do folclore. É difícil encontrar um termo adequado
para ele. Nesse caso, talvez se possa falar de uma emblemática realista. Toda a
composição permanece real, mas nela estão concentrados e condensados elementos da
vida tão essenciais e vultosos que seu significado vai muito além de todas as limitações
espaciais, temporais e histórico-sociais, mas vai além sem se desprender desse seu
terreno histórico-social concreto.“ (2018, p. 190).

9. O CRONOTOPO IDÍLICO DO ROMANCE (p. 193)

“A unidade da vida das gerações (em gera, da vida dos homens) é no idílio
determinada essencialmente pela unidade do lugar, pela fixação secular das gerações a
um lugar, do qual essa vida é inseparável em todos os seus acontecimentos. A unidade
do lugar da vida das gerações debilita e atenua todos os limites temporais entre as vidas
individuais e entre as diferentes fases da mesma vida. A unidade do lugar aproxima e
funde o berço e o túmulo (o mesmo microcosmo, a mesma terra), a infância e a velhice
(a mesma mata, o mesmo riacho, a mesma casa), a vida das diversas gerações que
habitaram o mesmo lugar, nas mesmas condições, que viram essas mesmas coisas. Essa
atenuação de todos os limites do tempo, determinada pela unidade do lugar, contribui de
modo substancial também para a criação do ritmo cíclico do tempo, característico do
idílio.” (2018, p. 194).
O autor então prossegue: “Tudo o que tem valor cotidiano quando relacionado a
acontecimentos biográficos e históricos essenciais e singulares, tem aqui, neste caso,
justamente o valor mais substancial de uma vida.” (2018, p. 194-195).
Mais uma vez, “o trabalho agrícola transfigura todos os elementos do cotidiano,
priva-os do caráter privado e mesquinho, voltado meramente para o consumo,
transforma-os em acontecimentos essenciais da vida.” (2018, p. 196).

10. OBSERVAÇÕES FINAIS (p. 217)


Nas suas observações finais, Bakhtin discorre sobre as características do
cronotopo em geral, começando pela sua capacidade de determinar a unidade artística
de obras literárias em relação com a realidade autêntica. A arte e na literatura, todas as
designações de espaço-tempo são inseparáveis de forma que é impossível abstrair uma
separação das duas formas no âmbito da contemplação artística real, dado que ela
“abrange o cronotopo em toda a sua integridade e plenitude. A arte e a literatura estão
impregnadas de valores cronotópicos de diferentes graus e dimensões.” (2018, p. 217)
Em seguida, o autor lança um olhar de volta para os cronotopos do encontro e da
estrada, introduzidos no primeiro ensaio do livro sobre o romance grego; o primeiro
possui um alto grau de intensidade axiológico-emocional, enquanto o segundo,
vinculado ao primeiro devido a sua suscetibilidade a encontros casuais e sua longa
tradição de cruzamento de pessoas de diferentes classes, crenças religiosas,
nacionalidades, faixas etárias por seu espaço, possui uma abrangência maior. “A estrada
é particularmente proveitosa para a representação de um acontecimento regido pelo
acaso (mas não só para isso). Daí ser compreensível o importante papel temático da
estrada na história do romance.” (2018, p. 218)

Ao mesmo tempo, salta à vista a importância figurativa dos cronotopos. Neles o


tempo adquire um caráter pictórico-sensorial; no cronotopo os acontecimentos do
enredo se concretizam, ganham corpo, enchem-se de sangue. Pode-se comunicar um
acontecimento, informar sobre ele, oferecer indicações precisas sobre o lugar e o tempo
de sua realização. Mas o acontecimento não se torna uma imagem. O próprio cronotopo
fornece um terreno importante para a exibição-representação dos acontecimentos. E isso
se deve justamente a uma condensação espacial e à concretização dos sinais do tempo
— do tempo da vida humana, do tempo histórico — em determinados trechos do
espaço. É isso que cria a possibilidade de construir a imagem dos acontecimentos no
cronotopo (em torno do cronotopo). Ele serve como ponto preferencial para o
desencadeamento das "cenas" no romance, ao mesmo tempo em que outros
acontecimentos "conectivos", distanciados do cronotopo, são apresentados num formato
de seca comunicação e informação [...]" (2018, p. 227)

“Todos os elementos abstratos do romance – as generalizações filosóficas e


sociais, as ideias, as análises das causas e efeitos, etc. – gravitam em torno do cronotopo
e através dele se enchem de carne e sangue, comungam na figuralidade ficcional.”
(2018, p. 227)

Aqui falamos apenas dos cronotopos grandes e essenciais que tudo arangem. Contudo,
cada um desses cronotopos pode incorporar números ilimitados de pequenos
cronotopos: pois cada motivo pode ter o seu próprio cronotopo, sobre o que já falamos.
(p. 229)

POSFÁCIO, Paulo Bezerra

Bakhtin já se dava conta da existência do cronotopo.

“Em As formas do tempo e do cronotopo no romance, cuja primeira redação data


de 1937-1938, Bakhtin amplia e aprofunda sua concepção da cultura como fundamento,
ponto de partida e de chegada de uma teoria da literatura, e muito especificamente do
romance.” (p. 249)

“O conteúdo e a forma são dois conceitos intrínsecos á obra literária.” (p. 252)

Como os cronotopos se tornam concretos na literatura:


Para Bakhtin, o cronotopo “abrange o mundo inteiro, ao passo que para o
primeiro o que importa é ‘a forma do tempo como base na vida posterior dos enredos
literários’, é o universo particular e específico da obra adensa e se materializa nas séries
espaçotemporais do “encontro”, da “separação”, da “estrada”, do “mundo alheio”, ou
mundo do outro, do “castelo”, do “salão”, do “vilarejo”, que a princípio aparecem em
forma abstrata, mas que acabam ganhando concretude e corporeidade no processo
narrativo.” (p. 253)

O significado de FTC:
“A análise dos vários cronotopos, empreendida por Mikhail Bakhtin à luz de sua
poética histórica, mostra como as formas da cultura que sedimentam a literatura mudam,
ou se alternam, sob o efeito das mudanças das coordenadas do tempo num espaço
determinado, ou no vasto espaço em que se desenvolve a ação da literatura universal.”
(p. 261)

“Cada época vai criando suas próprias formas de representação ficcional do


mundo real.” (p. 262)

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