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7 MINUTOS

(em cena)
Fag- Mas veio um vento (tosse) de desesperança (tosse) soprando cinzas ela noite morte... (tosse) e eu pendurei
na galharia torta todos os meus brinquedos de criança. (tosse) merda! Assim não dá!
(chega ao camarim e toma remédios)
RENATO- O que aconteceu?
Fag- Nada!
RENATO- Como nada? Você ta bem?
Fag- Vai pro seu camarim, vai.
RENATO- Fala comigo, o que houve?
Fag- Você não viu o cara na 1ª fila com a camisa florida?
RENATO- O que é que tem?
Fag- Você não viu? Ele tirou os sapatos!
RENATO- E daí?
Fag- Como, e daí? Ele tirou os sapatos, tirou as meias, pôs os pés em cima do palco e ficou fazendo assim com
os dedinhos! No meio da minha fala, os pés em cima do palco!
RENATO- Eu não vi.
Fag- Como é que eu vou dizer o meu texto com alguém fazendo assim com os dedinhos? Como você não viu?!
RENATO- Não vi.
Fag- O palco é sagrado, não te ensinaram, não? O palco é sagrado! Um tablado, dois atores e uma paixão...e o
cara fazendo assim com os dedinhos, pô! Como se estivesse na porra da sala da casa dele!
RENATO- Calma! Foi só isso?
Fag- É claro que não foi só isso! Outro dia era o mesmo cara, só pode ser, ele ficou comendo aquelas balinhas a
peça toda(imita o ruído)...a peça toda! E punha os papeizinhos em cima do palco, você não viu também? No fim
do espetáculo tinha um lixinho, você acredita? Um montinho de lixo na frente dele e em cima do palco, pombas!
O palco é sagrado!
RENATO- Mas isso foi outro dia, o que aconteceu hoje?
Fag- Eu to velho pra isso, eu não agüento!
RENATO- Você ta estressado, fica calmo e me diz o que aconteceu?
Fag- Não é possível que você não veja, que você não ouça!
RENATO- Eu ouço.
Fag- Você ouve o bip dos relógios?
RENATO- Ouço.
Fag- A cada meia hora? Bi-bi, bi-bi, bi-bi! O quê que o desgraçado faz com esse sinal, hein? Ele toma um
remédio? Ele se aplica injeção na veia? Ele joga na bolsa de valores? Não! É só pra encher o saco mesmo! E
quando tem musiquinha então?(imita a música) Você não ouve?! É impossível que você não ouça!
RENATO- Não, eu ouço!
Fag- E você continua, Não te incomoda?
RENATO- Você também continua...
Fag- Mas me incomoda!
RENATO- Faz parte do jogo!
Fag- Tem que desligar o bip dos relógios, tem uma gravação pedindo isso antes do espetáculo começar. Tem que
revistar todo mundo na entrada como no aeroporto e tirar a tralha toda: saquinho de bala, relógio com bip...Tem
que revistar o cara inteirinho pra segurança do espetáculo!
RENATO- Como você ta tenso!
Fag- E o celular?! E o celular? Outro dia o cara deixou tocar oito vezes, OITO vezes! Dois meses preparando
aquela pausa, buscando aquele silêncio...Faz parte do jogo também, o silêncio. A mulher acabou de se matar,
você ta sozinho em cena, o exército inimigo cercando... silêncio...Você diz: “A vida é uma sombra que passa,
uma história idiota cheia de som e de fúria, contada por um louco, significando nada”...silêncio...a coisa toda vai
pra platéia, bate lá e volta, outra vez pra platéia...”prrrr”(som do celular). Como é que alguém pode pensar na
brevidade da vida com um celular tocando? Se eu quisesse um celular, eu mandava gravar um pra botar na hora!
RENATO- Vai ver o cara não conseguia desligar.
Fag- Você não ouviu, você não tava em cena, o filho da puta atendeu e ficou falando com a namorada dele: “Alô,
oi meu amor, eu to aqui no teatro, eu acho que começou...”Acho?!!! Ele não sabia?! O palhaço ali parado na
frente dele e ele nem percebeu que tinha começado. Você não percebeu nada!
RENATO- eu não tava em cena!
Fag- Se tivesse não ia nem perceber.
RENATO- É, é a 4ª parede!
Fag- Onde é que ta? Onde que ta a 4ª parede?!
RENATO- É uma convenção, né!
Fag- Tem gente ali sentada pra ver, você não sabe disso, não? Eles saíram de casa todos arrumadinhos e sentaram
ali pra te ver, pelo menos é o que se supõem, pra ouvir as coisas que você preparou durante meses, um trabalho
infernal, noites e noites pesquisando, só pra eles... É uma droga!!
RENATO- Você não pode pensar nisso quando ta em cena.
Fag- Claro que eu posso! É só nisso que eu penso! Essa conversa de 4ª parede é conversa de ator preguiçoso!...
RENATO- Tem que abstrair.
Fag- ...que abstrai a platéia e se fecha dentro do palco feito um papagaio programado para repetir as suas próprias
falas, se comendo pelo próprio umbigo! Eu sou um comunicador, pomba, eu preciso do outro, do lado de lá.
RENATO- Então...eles estão vivos!
Fag- Mas não pode falar no celular...
RENATO- Eles pagaram...
Fag- Não pra “mijar em cima de mim”...
RENATO- você ta nervoso, hein!!!
Fag- E as tosses??!! O que eles tossem, meu Deus do céu! Essa gente deveria ir para um hospital, não pro teatro!
Eles estão doentes, isso é enfisema pulmonar. Por favor, tem um médico? Cuida dele aí, ele ta doente, não pode
tossir aqui.

(batem na porta)
Fag- Não abre!
RENATO- Eles querem saber o que houve!
Fag- Não abre, eu já disse!
RENATO- Você vai ter um troço, para com isso!
Fag- Tinha que ter um jeito se selecionar quem senta na primeira fila. A primeira fila não é pra amadores é só pra
profissionais. Tinha que ser perguntado: “Você é profissional, é um espectador profissional? Ta pronto pra ouvir?
Tem que fazer cara de inteligente, ta pronto?! Então lá pra trás! Última fila!” Tinha que ter um jeito!
(batem na porta)
Fag- Pára de bater na porra dessa porta!!
RENATO- Pega aqui! Toma um calmante.
Fag- Já tomei..
RENATO- Toma outro então!
Fag- Já tomei outro, não faz mais efeito.
RENATO- Três têm que fazer efeito. (pega o remédio e um copo d’água)
Fag- Deve ser falsificado, eles falsificam até remédio pra câncer, agora...Ai! Outro dia tinha uma velhinha
sentada na 1ªfila, essa gente só senta na 1ª fila, ela tinha um enorme saco de batata frita no colo, mas ela comia,
ela comia, ela comia, o papel fazia um barulhão tão grande que nem eu mesmo conseguia mais me ouvir. Eu
parei de fala e olhei pra ela. Eu dei aquele olhar nº8 de secar jabuticaba. Sabe o que ela fez? M E OFERECEU!!!
Ela me ofereceu a batatinha, pombas! A simpática...ela pensou o que? Que eu ia parar o espetáculo, descer do
palco e sentar com ela pra comer batata frita?!
RENATO- Público de televisão.
Fag- Aqui é um teatro, porra!
RENATO- Televisão eles assistem assim ó!...(deita-se no sofá) comendo batatinha, você deveria saber disso.
Fag- (pega uma latinha de refri) Televisão é um eletrodoméstico, você leva pra onde você quiser. Você pode ver
no banheiro, cagando se tiver afim, pode ver pelado, fazendo amor...
RENATO- Por isso eles ficam tão á vontade, pensam que a gente não ta vendo.
Fag- ninguém contou a diferença, não é?
RENATO- parece que não. Você ta mais calmo?
Fag- Você é muito jovem ainda, tudo isso é novidade pra você. Você não liga. Eu to velho, deve ser isso.
RENATO- Há, há! Não fala assim, vai!
Fag- Eu não agüento mais. Você sabe que eu entro no palco meia-hora antes do espetáculo começar!
RENATO- Se concentrando...
Fag- Nada, concentrando, nada! Esse negócio de concentração quem precisa é centro espírita. Eu fico ouvindo o
público, eu fico ouvindo...
RENATO- A conversa deles?
Fag- O jeito que eles têm de entrar na sala, como eles fazem pra descobrir o lugar na platéia, eu fico
ouvindo...não adianta, você não entende nada.
RENATO- Me explica...
Fag- Eu fico ouvindo a respiração deles, o humor. Eu sou capaz de saber como vai ser durante o espetáculo, só
de ouvir o jeito deles se comportarem nessa meia-hora.
RENATO- Sei...
Fag- Ta bom, já não sei mais. Mas antes eu sabia, Tô falando que você não entende nada porque você sempre fez
assim, então nunca pensou que podia ser diferente? Aí você entra em cena, imagina aquela 4ªparede te separando
daquele buraco negro que é a platéia, pode ter até gente sentada lá, tanto faz, você liga o seu piloto automático e
vai recitando o seu pedaço de texto até o fim dos dias, haja o que houver, chova ou faça sol. Eles podem até ter
ido embora, você nem fica sabendo. Você faz a sua parte, pronto!
RENATO- E não é assim que tem que ser?
Fag- Nãooo!!! É uma droga!!! Você precisa do outro do lado de lá, eu sempre me angustiei com essa cortina de
aço, que dizem que tem nos teatros, separando o palco da platéia, abaixa a cortina e daí? Largam a gente ardendo
aqui dentro? Queimando solitários a nossa paixão? Você não ia queimar nem o dedo mindinho...
RENATO- Como você é diferente, não é?
Fag- Eu sentia a alma do público, eu conhecia, eu sabia o cheiro, eu olhava nos olhos deles, a combinação das
roupas, sentia o hálito. Nunca reparou o jeito que eles têm de entrar na sala do espetáculo? O teatro era um
templo, um lugar sagrado, as pessoas entravam na sala, reverentes, emocionadas, elas chegavam meia hora antes,
era um ritual, elas compravam o programa... elas compravam o programa! Sentavam nos seus lugares, falando
baixinho, entrando no clima e liam...
RENATO- Agora se você distribui programas eles deixam jogados pelas cadeiras...
Fag- agora parece uma feira! Ta marcado pra começar às 7:00h, alguns chegam às 7:15h!
RENATO- Você não deixa entrar.
Fag- E gritam, gargalham, falam no celular, falam com a mãe Joana, você pode dar 1,2,3, mil sinais e ninguém
sabe que porra de campainha é essa que ta tocando, continuam a falar, falar, falar...Você apaga a luz e eles
continuam falando. O espetáculo já começou quando a luz apaga, mas não, o preço do bacalhau é mais
importante do que qualquer coisa que você queira mostrar pra eles....Cheios de assunto...
RENATO- Eles são alegres.
Fag- Não têm a menor noção do que vieram ver, eles tão de passagem. O teatro é a ante-sala da pizza!
RENATO- Eles pagaram
Fag- eu não sou um pedaço de carne. Isso aqui não é um açougue. Você viu o que eles fizeram hoje quando
apagaram a luz? Assobiaram (assobia), como se eu fosse a porra de um programa de auditório. É Shakespeare!
RENATO- Não foi isso! Você ficou puto porque eles assobiaram?
Fag- O outro tirou o sapato.
RENATO- Ta, eles assobiaram e o outro tirou o sapato. Foi isso?
Fag- Não foi só isso. Aquele cara da 3ªfila do casaco branco...
RENATO- O quê que tem?
Fag- A cada dois minutos ele fazia assim (ergue os braços e se espreguiça). A cada dois minutos!!!
RENATO- Você contou o tempo?
Fag- E deixava o braço esticado lá em cima(levanta). A cada dois minutos!!!
RENATO- Ele contou o tempo! Você reparou no casaco dele?
Fag- Ninguém reclamou, o cara tava tirando a visão de duas dúzias de pessoas atrás dele. Ninguém reclamou!!!
RENATO- Ah! Isso é demais!
Fag- Aquela mulher da primeira fila com a doença de são Guido. Você não viu? Você não vê nada! Não parava
de balançar a perna.
RENATO- pelo amor de Deus!
Fag- Quem que deixa essa gente sentar na primeira fila?!
(batem na porta)
Fag- Mal comecei a falar...(imita um bocejo), Era a primeira fala da peça, não dava pra ter enchido o saco. Quer
dizer, o cara já saiu de casa com o saco cheio. Ele veio aqui pra descarregar na gente!!!
RENATO- Toda essa conversa outra vez, por favor!
Fag- As cadeiras de teatro rangendo... tem que ajeitar a porra dessas cadeiras! A outra que não parava de olhar no
relógio, o casal de namorados quase trepando ali na minha frente... na primeira fila...tinha que ser na
primeira...Quer fazer amor, meu bem, vai pro motel! E a lata de balas? Tem que proibir a venda de lata de balas
aqui no teatro, já não chega o papelzinho?
RENATO- Então foi isso?
Fag- Aí um cara roncou (ronca). Eu sou um ator, eu não sou um presunto pendurado num gancho, eu não sou o
bobo da corte. Eu estudei esse texto, eu exerço essa profissão, esse sacerdócio há 37 anos, eu exijo respeito.
RENATO- Você não pode ligar pra isso.
Fag- E você não liga, é claro!
RENATO- Eu to aqui, não to?!
Fag- Desculpa, vai.(batem na porta) Abre essa merda!(batem novamente)Já vai!!!(tira o resto do figurino).

Su- Até que enfim! Eu estou pasma, besta, besta! O quê que aconteceu?
Fag- Onde é que você tava quando eu precisei de você?
Su- Ta a maior zona lá fora!...
Fag- Você nunca ta por aqui...
Su- Todo mundo gritando...
Fag- Quando eu preciso de você...
Su- Querendo o dinheiro de volta!
Fag- Onde a senhora estava?
Su- Impedindo a polícia de entrar no teatro.
RENATO- Polícia?!
Fag- Como é que é?
Su- Você quer que comece na hora, tudo bem.
Fag- E começamos.
Su- Alguns chegaram atrasados!
Fag- E daí?
Su- Eu nunca te falei nada, mas nem todos são cordiais!
RENATO- Foi você que chamou a polícia?
Su- Eles!!!
Fag- Do começo, por favor.
Su- Eles chegam atrasados, às vezes só um minuto depois da hora, mas nós somos pontuais, não é? Começamos
rigorosamente no horário marcado. Eles dão de cara com a porta fechada e me agridem, me xingam, me
ofendem, mas não entram! Não é assim que você quer? Aí eles chamam a polícia.
RENATO- E daí?
Su- Ah, geralmente tem alguma autoridade entre os que chegaram atrasados, um juiz de direito, um deputado...
Aí o cara da viatura morre de medo e quer mostrar serviço pra eles. Era isso que eu estava fazendo lá fora,
evitando ser presa!
Fag- Por cumprir o prometido?!
Su- Eles nunca vão aceitar.
Fag- Eu não vou mudar!
Su- Eu sei, eu nunca te pedi isso.
Fag- Quando eu ficava na bilheteria, isso nunca aconteceu.
Su- Ah, sempre aconteceu. Eu é que nunca te contei.
Fag- O ingresso é um contrato, eles não sabem disso não? Ta lá marcado o nome da peça, o dia, o teatro, a
poltrona, tá marcado o horário também!
Su- Eles não lêem.
Fag- Como não lêem?! Chegaram até aqui, não chegaram? Ai de nós se pusermos alguém no lugar deles... Eles
quebram as cadeiras!
Su- Eles dizem que é um consenso marcar pras 9:00h e começar às 9:15h.
Fag- Aí chega aqui, tosse, ronca, boceja, tira o sapato, põe o pé em cima do palco...
RENATO- Deve ser um consenso também.
Su- “Deve ser um consenso”. Pros que entram, os que ficam do lado de fora chama a polícia. “Mas o quê que
aconteceu?”. Eu tenho que voltar lá pra porta, antes que eles armem uma revolução!
RENATO- Eu posso ajudar?
Su- Vai ver se você consegue conter a turma...
(RENATO sai)
Su- O quê que houve? Você...você passou mal?
Fag- Não, eu to bem.
Su- Teve alguma falha técnica?Quebrou a mesa de luz?
Fag- Eu não agüento mais.
Su- ( ri ) Eu não consigo entender você. Das 37 peças que o Shakespeare escreveu, você escolheu esta. Tinha um
monte de comédias, mas não, você escolheu essa, mais difícil, a peça problema, os ingleses nem dizem o nome
dela porque dá má sorte, “a peça escocesa” eles dizem... mas você montou. Ninguém se machucou, ninguém
quebrou a perna, você ta fazendo um trabalho deslumbrante como ator! Duzentos espetáculos em cartaz na
cidade e você consegue, com essa peça, botar mais de mil pessoas no teatro todos os dias pra te assistir... Não
agüenta mais o quê?
Fag- Você veio aqui só para me encher saco?
Su- Você ta assim por causa da crítica.
Fag- Que crítica?
Su- A que saiu hoje.
Fag- Pelo amor de Deus!
Su- Diz que o espetáculo é velho.
Fag- Não quero saber.
Su- Ahh, então foi por isso que você ficou mal, porque você leu...
Fag- Isso não é pra ler, não te ensinaram não? É pra forrar gaiola de passarinho!
Su- Mas você leu e ficou mal. (debochada)
Fag- não li.
Su- Porque o cara escreveu...
Fag- Não quero saber!
Su- Que não tem nada de novo no espetáculo.
Fag- (tapa os ouvidos e fica cantarolando)
Su- Vocês tão botando mais de mil pessoas no teatro todos os dias! Acha mais importante o que ele escreveu do
que a reação entusiástica da platéia.
Fag- Tô cagando pra essa definição!
Su- Que definição?
Fag- O que é novo, o que não é novo. Já leu “Dostoievski”? Ele escreveu há mais de cem anos. Não leu? É novo
pra você!!! Isso é que é novo, tudo o que você não conhece... to cagando!
Su- Tem que cagar mesmo, você tá fazendo história.

Fag- Eu lá quero fazer história? Odeio essa ansiedade infantil de ficar para a posteridade. Eu deixo isso pro
imbecil que escreveu essa besteira. Eu quero aqui, agora! Eu quero o seu José, a dona Maria, ali na platéia, aqui e
agora, na minha frente. Eu troquei a posterioridade pelo presente, foi isso que aconteceu. Mas eu preciso deles,
eu ainda preciso deles na platéia. E não pensa em elevar o nível, vamos voltar para a cozinha que a coisa é mais
fraca, é mais embaixo.
Su- Não tinha ninguém que valesse a pena nessa platéia?!
Fag- Não parei pra contar.
Su- E eles fizeram o que dessa vez?
Fag- De tudo, tudo junto, ao mesmo tempo! Parece que foi combinado! Mil e duzentas pessoas se telefonaram
hoje à noite só pra combinar. “E aí, vamo lá no teatro barbarizar essa noite?” “Vai ser o maior legal?”
Su- E aí?
Fag- Aí eu não agüentei e parei o espetáculo.
Su- Isso eu já sei.
Fag- eu fiquei encarando a platéia...
Su- O grande momento!
Fag- Foi, o grande momento. Eu disse que Bertholt Brecht, maravilhoso autor alemão, escreveu que o teatro está
apoiado num fabuloso tripé.
Su- Grande momento cultural.
Fag- momento cultural é papo de cozinha. A coisa é mais prática.
Su- Bertholt Brecht na cozinha?!
Fag- O fabuloso tripé, ele escreveu, levantei os dedinhos (levanta o braço). O autor, mostrei o primeiro. (mostra o
dedo indicador)
Su- O indicador!
Fag- O ator, mostrei o segundo. (mostra o polegar)
Su- O polegar!
Fag- E o público! Mostrei o terceiro! (mostra o dedo médio)
Su- Eles repararam o que você reservou pra eles?!
Fag- estavam espantados de mais, quietos demais, atenciosos de mais... como eu queria que eles fossem sempre...
Su- Tudo bem.
Fag- O autor é Shakespeare, eu disse. O ator é esse que vos fala.
Su- Silêncio total!
Fag- Nem uma mosca.
Su- E o público?
Fag- O dedo médio em riste! Apontei pro cara que tava sem sapatos, os pés em cima do palco...
Su- Tinha alguém com os pés em cima do palco?!
Fag- Eu disse: “Tira essa patas daí, já!!!”
Su- Você não fez isso...
Fag- Eu fiz.
Su- E ele tirou?
Fag- Como se tivesse tomado um choque elétrico!
Su- Há, há! Meu herói!
Fag- Continuei encarando o resto da platéia...
Su- Mil cento e quarenta e oito pessoas.
Fag- E finalizei: “Vocês não são o público, vocês são massa!!!”
Su- E daí?
Fag- Eu me perdi um pouco, tava muito nervoso.
Su- É natural.
Fag- “Aqui não é uma cantina”, eu disse, “cantina, massa, pizza, é tudo um horror.”
Su- Poderia ter sido melhor.
Fag- Fica pra próxima.
Su- Não, não! Por favor, e depois?
Fag- Mandei todo mundo embora!!!
Su- Tinha um cara com os pés em cima do palco, e por causa dele, mandou todo mundo embora?!
Fag- Você não tava lá, você não sabe o que aconteceu.
Su- Eu quero que você me conte.
Fag- A platéia não é esse buraco negro que a gente enxerga aqui de cima do palco, não. Ela pulsa, age, respira,
tem personalidade, cada dia de um jeito, viva!
Su- Pode ser que eles não tivessem gostando do espetáculo.
Fag- Foi assim desde o começo, o tempo todo. Eu não fui respeitado!
Su- Por nenhum deles?!
Fag- Tocou o celular, tossiram, bocejaram. Levantaram para ir ao banheiro!
Su- E você queria o quê? Que eles fizessem o xixi na poltrona?
Fag- Você ta torcendo pra quem, afinal?
Su- Eu estou tentando ficar do seu lado!
Fag- (pega um texto) Por favor, por favor, leia esse trecho aqui.
Su- Pra quê? Não eu...
Fag- Não! Por favor, leia por favor, eu vou te mostrar.(procura uma parte do texto)
Su- Tá!
Fag- Esse aqui, segura.
Su- (pega o texto e prepara-se) A vida é uma sombra que passa...
Fag- Bip, bip, bip...
Su- ...uma...história…
Fag- (tosse)
Su- ...contada por um louco...
Fag- (mexe os dedos como se estivesse mexendo em papel de bala, levanta os braços, tosse, fica fazendo essa
sequência)
Su- (tenta ler)
Fag- (pega o texto) Entendeu, agora?! Eu não sou de ferro!
Su- Aí você mandou todo mundo embora!
Fag- Mandei!
Su- E eles foram!
Fag- Me aplaudiram!
Su- É verdade?
Fag- Vaiaram também.
Su- Pela cara deles lá fora, fizeram pouco...
Fag- Muitos problemas?
Su- Mil cento e quarenta e oito problemas, eu vou ter que dar um pulinho na chefatura de polícia...
Fag- Nunca! Eu já mais vou permitir que qualquer um de nós, se submeta a essa humilhação!
Su- Se precisar, eu vou.
Fag- Nunca!
Su- Você não sabe a zona que está lá fora!
Fag- Você devolveu o dinheiro dele, não devolveu?
Su- 80% compraram com o cartão.
Fag- E isso quer dizer o quê?
Su- Que não tínhamos dinheiro em caixa.
Fag- Cheque!
Su- Mil cento e quarenta e oito? Tentei trocar por convite pra outro dia, alguns aceitaram, poucos, né!
Fag- E as outras?
Su- Querem o dinheiro de volta, de qualquer jeito, estão lá, nos chamando de estelionatários. O pior é que eles
compraram com cartão, ainda não desembolsaram nada, é só cancelar a compra. Ah, é de raiva mesmo!
(entra o RENATO)

RENATO- Tá uma praça de guerra lá fora!


Fag- Polícia?
RENATO- Até onde eu pude contar, tem nove viaturas na porta do teatro, as luzes piscando... Uma festa!
(esfrega as mãos)
Fag- Tudo bem, nenhum outro crime na cidade...
Su- Os bandidos que aproveitem, a polícia está toda aqui.
Fag- E a massa? Não tem ninguém do meu lado?
Su- Você ainda acha que iria ter?
Fag- Podia ser que alguém tivesse se incomodado também. Tem gente que vem ao teatro pra ver a peça.
RENATO- Por enquanto, só deu para perceber os que estão tentando quebrar a porta do teatro.
Su- Eu tenho que ir lá!
Fag- Eu vou junto!
RENATO- Não, não, não. Ficou maluco?! Pelo o que eu vi lá fora é tudo o que eles querem na vida, o teu
sangue! Deixa que eu cuido deles. (sai)
Su- Tem certeza?

Fag- (começa a tirar o resto do figurino) Desculpa, eu tentei me controlar.


Su- Ah é, você já teve seu grande momento, agora ele vai ter o dele.
Fag- Larguei uma bomba na tua mão.
Su- Eu sei me virar.
Fag- E o resto do elenco?
Su- Ah, mandei todo mundo embora, não ia adiantar nada eles ficarem aqui, Né? Deixaram um beijo para você.
Fag- Melhor assim.
Su- Mais calmo?
Fag- Deixa eu terminar de me vestir, não quero dar a eles o prazer de prender Mario Quintana
Su- Você me desculpa insistir, é que eu ainda não consegui entender o que houve, você não costuma ter “piti”.
Fag- Eu to cansado, é isso.
Su- Justo agora? Que conseguimos em meio ano estrear dois espetáculos?
Fag- Eu sei, mas sabe quando da a sensação de que você não fez nada?
Su-Como assim, nada? Você consegue em um domingo trazer pessoas para o teatro em uma cidade do inteiror.
Fag-Eu sei, mas eu queria fazer muito mais... Há quarenta anos nós se fazía teatro de terça a domingo no Brasil,
duas sessões na quinta, duas no sábado, duas no domingo, duas em feriado pra casa sempre lotada.
Su- Eu sei mas aos poucos você vai chegar La...
Fag- Não, não consigo, é outro público, é outra época, ainda é muito pequeno o número de pessoas que vão ao
teatro. O resto do povo não fica nem sabendo...
Su- Nem todo mundo tem carro, e o nosso teatro é longe do centro...
Fag- Não é por aí, você pode levar o teatro de graça, na casa de algum deles. Eles não vão querer. Falta hábito,
educação, cultura.
Su- Como emprego, saúde, segurança. Mas aí, meu amor, já não é culpa sua. Tem que fazer muito mais que uma
peça de teatro pra mudar tudo isso.
Fag- A gente já ta começando a divagar...
Su- Não, você é que tá divagando. Mas mesmo assim, com todas essas dificuldades, você tem trazido pessoas ao
teatro. Elite ou não, ele vem, você manda embora. Por que você fez isso?
Fag- Porque eles são privilegiados, pombas! É por isso que eu cobro atenção deles. Eu já desisti de fazer teatro
pros outros. Cansei de praticamente trazer as pessoas de arrasto, de mendigar, de vender ingresso de porta em
porta.
Su- De vender rifa na sinaleira...
Fag- Os que chegaram até aqui tem muitas outras opções na vida, oportunidades, saídas, mas escolheram vir.
Venceram todos os obstáculos para chegar até aqui, então são o topo da cadeia alimentar, tem que se comportar
como tal.
Su- Eles não se sentem assim.
Fag- Mas são. Nós vivemos num país miserável, você já esqueceu? Não, não to falando de dinheiro, não! Os
estádios de futebol estão cheios de gente que nunca foi ao teatro. Os bares, as filas de loteria esportiva, os bingos,
tudo isso custa caro. Mas 80% do público diz que só o teatro tá caro, porque não tem interesse. Os outros não
sabem a ginástica que nós somos obrigados a fazer para que o ingresso custe apenas um terço do que deveria
custar. Não é de dinheiro que nós estamos falando. O que faz desse povo que vai ao teatro ser a exatamente o
interesse. Pensa só Por nada, nenhum veículo por mais mirabolante que seja, será capaz de competir com o
teatro. Nós temos mais de dois mil anos de vida, quase que intocados. Aqui é o último reduto de humanidade, a
última esperança de contato real, de calor humano, o salto triplo mortal sem rede, sangue, suor e lágrimas. O
resto é virtual!
Su- E o que falta então?
Fag- Fazer eles entenderem isso. Talvez sejamos os últimos ainda a exigir atenção, cuidado, carinho, paixão... É
a nossa falha. Nós queremos a alma de quem vem nos ver, não o dinheiro. Andamos aqui no palco, na corda
bamba da emoção, exigindo em troca apenas a rede carinhosa de proteção da pateia. Mas isso é pedir demais.
Su- Por quê?
Fag- Apesar de tudo, eles têm medo.
Su- De nós? Que nem somos importantes pra ele...
Fag- Eles sabem que o ator é o único capaz de fazer todos os dias, o caminho que talvez a platéia leve uma vida
inteira para percorrer.
Su- Você é louco.
(entra ator)

RENATO- Tão exigindo que você vá até a chefatura da polícia!


Fag- A conversa chegou na cozinha. E pra quê?
RENATO- Pra prestar depoimento.
Fag- como bandido?
RENATO- Eu sugeri ao tenente...
Fag- Tenente é a patente mais alta?
RENATO- Sinto muito.
Fag- Podia ser o coronel, pelo menos!
RENATO- Eu sugeri que ele viesse aqui, tomar o seu depoimento, antes de decidir se vale a pena ir pra
delegacia.
Su- Ou talvez ele nem aceite as acusação.
Fag- e o tenente?
RENATO- Não sabe o que fazer, não tem a menor noção de que tá acontecendo, coitado.
Fag- E vão querer as minhas impressões digitais também?
RENATO- Tão escolhendo um representante de cada parte prejudicada, pra acompanhar as suas declarações.
Não se conformam de você não sair daqui preso.
Su- Uma batalha campal!
Fag- É a morte vindo buscar Mario Quintana...
Su- Quais são as partes prejudicadas, os atrasados e os expulsos?
Fag- Eles vêm até aqui pra garantir que eu não deturpe os fatos.
RENATO- Tão achando que vamos mentir pra polícia.
Fag- É a nossa sina.
RENATO- Mentir pra polícia?
Fag- Sermos chamados de mentirosos, os que fingem. É a herança que Téspis, o inventor do ator, nos deixou.
RENATO- Téspis?
Fag- Não conhece não? Empresário teatral grego do século sexto antes de Cristo.
RENATO- Ele inventou o ator?
Fag- Ele tirou uma pessoa de um grupo de pessoas que cantavam as historias, chamados de coro. Com o cara
separado surgiu o diálogo e assim o primeiro ator.isto é, Ao separar alguém do coro, Téspis revolucionou a arte
do teatro e inventou o ator.
RENATO- Obrigado Téspis!
Fag- Ele não estava pensando exatamente em você quando ele...
Su- Ô, não seja cruel! ( ri )
Fag- De qualquer forma foi uma grande invenção Só que as pessoas acharam que se a mentira fosse ensinada
assim, tão descaradamente nos palcos, não conseguiríamos impedi-la de sair às ruas. Hoje em dia, os legisladores
mentem descaradamente nas ruas, e talvez o único resquício de verdade ainda esteja na ilusão de uma peça de
teatro.
Su- Mas você é impressionante mesmo! ( ri ) nós te damos um pé de galinha e você faz uma canja. O mundo
inteiro caindo a sua volta e você lembra de Téspis.
Fag- É o que me resta, meu anjo, eu sou um pobre contador de histórias.
(batem na porta)
RENATO-Deve ser o tenente
Fag- Eis que chega o inspetor geral!
(entra Tenente, atravessa o palco desorientado)

RENATO- Por favor, Tenente, por aqui! Por aqui.


Tenen- Com licença!
Fag- Pois não, Coronel!
Tenen- É Tenente, por favor!
Su- Por favor, Tenente!
RENATO- Por favor!
Tenen- O, o, o, o, o senhor sabe que o, o, o... Que o... Eu tô meio nervoso... o, o, o... A minha mãe não perde uma
novela sua. Ela é fã do senhor desde que ela era pequenininha assim.
Fag- É verdade, eu to ficando velho. (cena tangencial do telefone)
Tenen- Será que seria muito incômodo, assim... o senhor me dar um autógrafo? Papel, papel, onde é que tem um
papel? É pra minha mãe. Obrigado! O senhor pode ver um também pra minha afilhada, e um pra minha irmã? É
Angelina o nome dela. Nossa, a minha mulher não nem acreditar quando eu contar que conversei com o senhor.
Fag- Então não conte.
(Tenente pega uma máquina fotográfica)
Fag- O senhor anda sempre com uma máquina dessas no bolso?
Tenen- O senhor importa de bater uma comigo?
Fag- É pra isso que elas servem, não é? Pra fotografar cadáveres.
Su- Pára! (bate a foto)
Fag- Espero que o senhor não seja acusado de ter sido subordinado, por isso.
Tenen- Não, eu nem conto pra ninguém.
RENATO- Por favor, Tenente, vamos acabar logo com isso. O dia aqui hoje foi longo pra caramba.
Tenen- Bom, e-e-e-eu vou lá fora chamar os representantes.
Fag- Faça isso!
Tenen- Com licença.
Su- Toda! (Tenente sai)
Su- (para Fagundes) Por favor!
Fag- Quê que eu fiz?
RENATO- Fica calmo.
Fag- Uma seda.

Tenen- Vocês dois, por aqui, por favor... A senhora também.


Ev- Deus que me perdoe! Que coisa demorada, hein!
Tenen- Por favor, minha senhora. Essa senhora aqui é a representante dos que chegaram atrasados. O outro... o
outro... E esse senho aqui é o representante dos...
Su- Dos expulsos!
Tenen- Ah! Foram expulsos?
Sr- Sim, senhor.
Fag- Tira esse homem daqui...
Su- Que foi?
Fag- Eu não vou me responsabilizar pelo que possa acontecer!
Sr- Segura ele, ele ta nervoso.
Fag- Tira ele daqui, é o dos dedinhos!
RENATO- É melhor ele sair.
Fag- Saia já daqui!
Sr- O quê que eu faço?
Tenen- Fica calmo, por favor.
Fag- Eu conheço essa cara, o palco é sagrado ouviu, eu conheço o seu tipo, o senhor é uma afronta!
Sr- Mas eu não conheço o senhor!
Fag- Saia já daqui!
Su- Tira ele, vai lá!
Tenen- Calma!
Fag- Esse homem é o responsável pelo que aconteceu hoje! Eu não vou conseguir me controlar!
Sr- Mas eu não fiz nada!
Tenen- Espera aí, o que é que tá acontecendo aqui, hein?
Fag- O que é que o senhor diria, se alguém que o senhor não conhecesse entrasse na sua casa, tirasse os sapatos
e, colocasse os pés em cima da mesa. E ficasse fazendo assim com os dedinhos? (faz o gesto)
Tenen- Seria falta de educação!
Fag- Pois ele fez isso!
Sr- Eu nunca fui na sua casa!
Fag- Aqui é minha casa! E o senhor pôs os pés em cima do palco!
Sr- Eu tava cansado!
Fag- Aqui não é uma sala
Sr- Mas é que os pés...
(Fagundes se avança)
Tenen- Pára! Por favor, para! Assim não vai dar!
Fag- Me desculpe, o senhor tem razão! Desculpe!
Tenen- O senhor também, fique um pouco afastado! Cada um no seu canto. Nós vamos tentar conversar aqui
com um pouco de civilidade! Positivo? O elemento cometeu um delito. Tudo bem, nós vamos ver isso já já! Mas
só que tem que um de cada vez, correto?
Sr- Bom, mas agora quem não quer ficar aqui sou eu!
Tenet- O senhor por favor, o senhor se acalme! Minha senhora por favor, tenha bondade! Bom, como dizia o
esquartejador, vamos por partes! Há, há, há! Essa senhora aqui é a representante das vinte e duas pessoas que
chegaram atrasadas e não conseguiram entrar.
Su- O espetáculo já havia começado!
Tenen- Bom, mas elas tinham comprado o ingresso antes.
Su- Mas está escrito aqui no ingresso que é proibida a entrada após o início do espetáculo!
Tenet- E esse senhor aqui representa...
Fag- Não representa nada! Nada!
RENATO- Calma...
Sr- Viu só, ele tá me ofendendo!
Tenent- Tá, péra um pouquinho! Ele representa os...
Su- Os mil cento...
Tenent- Mil cento e quarenta e oito que se sentiram lesados, porque não conseguiram assistir ao espetáculo até o
fim.
RENATO- Mas ele foi aplaudido quando parou o espetáculo.
Tenen- Não consta!
Fag- Ele tá lhe dizendo. Não tem ninguém aí que represente os que entenderam o meu gesto?
Tenen- Bom, se tinha já foram tudo embora!
Su- Bom, afinal você acha que tinha alguém que valia à pena na platéia.
Fag- Não será um julgamento justo.
Tenent- Que isso, não é um julgamento.
Fag- Têm duas pessoas me acusando e não é um julgamento?
Tenent- O senhor vai poder apresentar a sua própria defesa. Minha senhora, a senhora tem a palavra, por favor,
mas seja breve...
Eva- Meu Deus do céu, nem sei por onde começar.
Su- A senhora podia começar pelo começo.
Eva- Sim pelo começo, obrigada. Eu sou evangélica, isso pode parecer pouca coisa nessa confusão toda. Mas
freqüento a igreja todas as noites, não tenho tempo de ir ao teatro, mesmo porque todos nós sabemos que o teatro
e a televisão são obras de Satanás!
Fag- Nós temos que ficar quietos?
Tenen- Por favor. Por favor...
Eva- Meu marido odeia essas coisas, diz que é um antro de homossexuais e drogados.
Fag- Tem certeza que nós temos que ficar quietos?
Tenen- A senhora também podia aliviar um pouco, hein!
Eva- E o quê que eu posso fazer, é o que dizem por aí.
Fag- Deixa eu responder só um pouquinho.
Tenen- Não, vai chegar a sua vez.
Eva- Meu marido chega cansado do trabalho e já vai ver seu futebol. Ele também é evangélico, mas não
freqüenta a igreja tanto quanto eu.
RENATO- Fé de menos!
Eva- Se é pra falar ouvindo graçinhas, eu prefiro ir embora.
Tenen- Prossiga!
Eva- Consegui convencer meu marido a vir assistir essa peça, nem sei por que eu fiz isso. Me disseram que era
um clássico, sei lá.
Fag- Macbeth, de Shakespeare!
Eva- É, uma coisa assim… Hoje é dia de final de campeonato. O senhor não imagina o que seja tirar ele da frente
da televisão em dia de final de campeonato!
Fag- Deve ser muito difícil.
Eva- Só Deus sabe como eu consegui convencê-lo a vir...
Fag- Ele não teve medo de se contaminar, não?
Eva- É, não veio muito feliz, mas veio. Saímos uma hora antes de casa. Um trânsito infernal, não tem mais dia,
nem hora, nem lugar, um inferno! Mas estávamos vindo. Deus sabe que tudo ia dar certo! Foi quando o carro
parou no farol fechado, e eu dei de cara com um homem horrível, armado, do meu lado da janela, apontando um
revólver pra mim! Tapei o grito na boca e olhei para o meu marido. Ele tava sendo assaltado do outro lado. O
outro homem com uma arma enorme arrancava o relógio de ouro dele com tanta força, que eu pensei que o braço
ia junto. Ficamos ali parados, sem saber o que fazer...
RENATO- Agora apressou! **
Eva- O teatro é muito fora de mão. Mas nós estávamos aqui, seu tenente, o senhor acredita? O assalto foi aqui,
aqui na esquina, quase chegando. Meu marido, branco de raiva, não disse uma palavra. Até que me deixou aqui
na porta do teatro e continuou dirigindo o carro até o estacionamento. A rua, cheia de mulheres da vida! Um
horror, ali, misturadas com a gente! E o preço do ingresso, tão caro! Fiquei na porta esperando! (Da uma
bolsada). Tinha que ter um manobrista aqui na porta, isso é um absurdo! Eu não podia entrar sem ele, é claro. E
aí ele chegou... Um minuto depois que a porta tinha fechado! O senhor acredita numa coisa dessas?
Uuuuuuummmmmmmmm minuto! Eu nunca vou esquecer do olhar cheio de ódio que ele me dirigiu. Foi
horrível, a pior noite da minha vida! Bateram a porta na nossa cara, na nossa cara! Essa mulher aí, foi ela mesmo
que fechou! Ficou La, do lado de dentro olhando pra gente através do vidro com cara de vitoriosa. (gargalha).
Rindo, a debochada! Meu marido simplesmente virou as costas e foi embora, me deixou aqui sozinha. Com que
cara eu vou voltar pra casa, meu Deus?! Ele deve estar uma fera! Isso não é coisa que se faça com pessoas de
bem... E isso não é coisa que se faça com pessoas de bem! (Histérica). Vocês ouviram? Não é coisa que se faça.
Eu exijo uma reparação ou vocês vão se arrepender para o resto de suas vidas! Vocês não sabem com quem estão
lidando! Uma coisa eu posso lhes garantir, nunca mais enquanto eu for viva, eu vou pôr os pés em um teatro
outra vez!
RENATO- Espero que ela não venha depois de morta! **
Eva- O senhor é muito engraçadinho, mas agora eu quero os meus direitos, onde estão os meus direitos? Eu não
saio daqui sem eles! Por que vocês começaram pontualmente, tudo bem! Mas agora, eu quero que vocês saibam
que aqui não é a Inglaterra! E o senhor não é a rainha da cocada preta!
Su- Posso falar?
Tenen- É, com a palavra a defesa.
Su- A sua história é realmente perturbadora.
Fag- Uma verdadeira tragédia grega.
Su- Mas, eu não posso acreditar que a senhora pense que nós somos os responsáveis por tudo o que lhe
aconteceu.
RENATO- Isso aqui é um teatro, minha senhora, não é a prefeitura do município, não!
Eva - Se este senhor fizer mais um comentário jocoso, eu vou embora!
Su- (para ator) Você não quer dar um pulinho lá na frente para ver como andam as coisas?
RENATO- Eu não perder isso aqui, por nada nesse mundo!
Su- Eu deixei o bilheteiro sozinho, oferecendo convite para quem quisesse voltar outro dia e não sei se El vai dar
conta do recado. Por favor!
RENATO- Sacanagem!
Su- A cidade tá horrível mesmo, não é?
Eva- Uma desgraça!
Su- O trânsito, a violência, a prostituição...
Eva- Aqui na esquina! E nenhum guarda por perto...
Su- Pois é, também não podemos fazer nada em relação a isso, também somos vítimas como a senhora, também
passamos por tudo isso pra chegar aqui diariamente.
Eva- Vocês não levam a porta fechada na cara, no final das contas.
Su- Mas é porque nós chegamos antes. Não temos como devolver o relógio ou o humor de seu marido. E nem
sequer sabemos quem venceu a final do campeonato de futebol. Então, que tal falarmos só sobre o atraso?
Eva- Não foi culpa minha!
Su- Tenho certeza de que cada um dos outros vinte e um espectadores, que também chegaram atrasados, que a
senhora está representando aqui, tenham alguma história parecida pra contar, algumas piores, outras nem tanto,
mas apenas uma coisa em comum: Todos chegaram atrasados.
Eva- Um minuto!
Su- Trinta segundos que seja... Dentro do teatro, nós tínhamos outros mil cento e quatrocentos e oito
espectadores que passaram pela mesma guerra civil que a senhora, mas conseguiram chegar na hora. E tinham o
direito de não esperar um segundo além do horário marcado pra começar.
Sr- E que não conseguiram ver o show até o fim!
Tenen- O senhor, por favor, aguarde a sua vez!
Sr- Desculpa, meu senhor, é que eu tava pensando alto.
Tenen- Por favor!
Sr- Mas foi o que eu fiz.
Tenen- Aguarde a sua vez!
Sr- Mas eu to quieto!
Tenen- Por favor!
Fag- Por favor!
Sr- Desculpa, senhor, é que eu tava pensando alto... (põem o pé em cima da poltrona)
Fag- Nãooooo!!!
Eva- A senhora tá querendo dizer que tudo isso vai dar em nada? E ficar tudo por isso mesmo?
Tenen- Olha aqui, ô, minha senhora, realmente aqui no ingresso, ó, tá escrito que é proibida a entrada depois do
espetáculo.
Eva- Pois fique o senhor sabendo que eu vou procurara advogados, não vai ficar assim, não!
Tenen- Positivo e operante! Mas eu acho que a senhora vai perder a causa.
Eva- Ahhh, quer dizer que agora o senhor passou para o lado deles também, entendi...
Tenen- A senhora me respeite!
Eva- Eu sabia que ia terminar assim. Estão todos mancomunados! É uma máfia!
Tenen- A senhora não me desacate!
Eva- O senhor não sabe com quem está falando! Eu filha de um General e cunhada do desembargador da
república! E eu quero o seu nome Tenente, porque vou levar uma queixa aos seus superiores!
Tenen- Foi bom mesmo a senhora tocar nesse assunto, porque eu também faço questão de colher todos os dados
da senhora, que é pra constar no processo!
Eva- Pois pode anotar! (evangélica e Tenente vão para a rotunda e ficam de costas)
Su- Filha de uma puta!!
Fag- O que foi?
Su- Eu to aqui me controlando pra não perder as estribeiras! Vocês não viram essa mulher lá fora! Ela gritava,
chutava a porta do teatro e falava palavrões!
Fag- A evangélica?!
Su- Se for verdade que ela é mesmo evangélica deve ir a igreja toda noite, pra tirar o diabo do corpo, a
desgraçada!
Fag- Mas e o marido?
Su- Pobre coitado, morria de vergonha, ainda tentava impedir falando baixinho: ”Calma, benzinho, voltamos
outro dia”. Quase apanhou dela na frente de todo mundo! Todos os outros atrasados concordaram, aceitaram,
mas ela não deixava, ficava lá gritando, ofendendo apoplética! Foi horrível...
Fag- E a senhora? A senhora já ouviu falar das batida de Molière?
Eva- (vem do fundo) Não senhor, eu não bebo!
Fag- As batidas de Molière não são uma bebida, minha senhora, Molière não foi um garçom. Ele foi ator, autor
de teatro.
Eva- Sim , e daí?
Fag- (pega uma vassoura)
Eva- (Grita e corre)
Tenen- (A puxa pelo braço) O que é isso, meu senhor?
Fag- Por favor, Tenente, embora ela mereça, não foi essa minha intenção.
Eva- O senhor é muito atrevido!
Fag- As batidas de Molière, minha senhora, são origem dos sinais para o início do espetáculo.
Eva- Ora, por favor, não me aborreça. Isto nada tem a ver com o que estamos discutindo aqui.
Tenen- E o assalto, minha senhora, também não! (A coloca sentada)
Eva- Mas eu cheguei atrasada por isso.
Fag- E nós não a deixamos entrar por isso... Século 17, corte de França! O homem do bastão ficava atento à porta
do teatro. O rei chegava, abre parênteses, era ele que pagava todos aqueles atores, e ele sozinho, o rei da França,
e os atores eram os comediantes do rei, fecha parênteses.
Eva- (para Tenente) O senhor vai deixar essa palhaçada continuar, é!
Tenen- Tá mais divertida do que a sua!
Su- O rei entrava...
Fag- O homem do bastão batia no chão. (bate com a vassoura)
Su- Era o primeiro sinal.
Fag- Tudo bem, você pegou!
Eva- Eu não vou passar a noite inteira aqui, ouvindo essa baboseira. (Tenente a põem sentada)
Fag- Mas tinha um detalhe, os atores só estavam lá, à espera do rei.
Eva- Com licença! (levanta, Tenente a põem sentada)
Tenen- A senhora senta aí! Agora é a vez dele.
Fag- O resto da platéia também ia se divertir, nas despesas dele, tudo de graça, a maior mordomia. Só que tinham
que esperar ele chegar, era a única coisa chata. O espetáculo só começava depois que o rei chegasse. Aí o rei se
posicionava ali diante do trono, estrategicamente colocado pra ele, no meio do salão, melhor lugar da platéia. O
homem do bastão... (bate duas vezes com a vassoura)
Su- Segundo sinal e depois o terceiro.
Fag- Você atropelou, o segundo sinal sim, mas o terceiro só era dado depois que o rei sentasse. Ele era o rei da
França, patrocinador absoluto daqueles pobres atores. Ele podia ficar ali, de pé, conversando com a corte, a noite
inteira se ele quisesse, e o espetáculo podia esperar. Mas depois que o rei sentasse, (bate várias vezes com a
vassoura) o espetáculo começava (bate), imediatamente depois (bate), que a bunda do rei tocasse o assento do
trono (bate).
Su- (Bate palmas)
Sr- Mas isso é muito lindo, isso é uma belez....(Tenente chega perto e o senhor se cala).
Eva- Uma história tão antiga, você já deveria ter aprendido como deve ser...
Fag- Não, minha senhora, hoje em dia nós não esperamos mais pelo rei da França. O espetáculo tem hora
marcada pra começar sim, Independente da sua vontade, e nós vamos continuar respeitando os horários.
Tenen- Então é por isso que tem os três sinais?
Eva- Cultura inútil e vazia! Pois fique o senhor sabendo, que o patrocínio do rei, foi trocado pelo preço dos
ingressos, na porta do teatro. O senhor deve satisfação a todos nós que pagamos para entrar, como deviam ao rei
da França.
Su- Democratizamos o financiamento.
Eva- (tenta falar e é interrompida)
Fag- Isso quer dizer que somos todos iguais na platéia. Aqueles que chegam atrasados e se acham no direito de
estragar a festa da maioria, ainda pensam que são o rei da França. A revolução francesa cortou a cabeça deles,
minha senhora. Nós somos bonzinhos, só não deixamos entrar.
Eva- Pois fiquem os senhores sabendo... (Tenente ri) E o senhor também, Tenente, eu tenho o seu nome! Eu vou
sair daqui e vou direto aos jornais, à televisão, às rádios, ao diabo que os carregue! E não vou descansar um só
dia na minha vida, enquanto não fechar essa porcaria de teatro, e passem bem! ( sai )
Fag- O sonho dos evangélicos, ocupar nossos teatros! (grrr)
Tenen- Que mulherzinha!
Fag- Por que você se controlou? Tinha que ter dado um chega pra lá nela!
Su- Você já estava nervoso demais, eu não queria botar mais lenha na fogueira!
Tenen- A mulher parece que tem pêlo nas ventas.
Su- Me chamou de galinha lá fora!
Tenen- Galinha?
Su- E cuspiu na minha cara!
Tenen- A senhora devia ter contado antes, pelo menos a gente não perdia tempo com as histórias dela.
Su- Tudo mentira, duvido até que teve assalto, e se bobear, o marido ainda vai apanhar quando chegar em casa
(ri).
(barulho)
Fag- Os mansos herdarão o reino dos céus.
(entra RENATO correndo)

RENATO- Corre lá, gente! A mulher acabou de quebrar o vidro da frente!


Tenen- Que é isso?! (sai correndo)
Su- Miserável! (sai atrás)
Sr- (também sai)
RENATO- Ah, que dia hein?
Fag- Você gostou, confessa.
RENATO- Pode ficar calmo, viu, que tudo se resolveu lá fora. Cheguei lá e não tinha mais ninguém, já tinham
ido embora. O bilheteiro disse que todo mundo se acalmou depois que a jararaca deixou de instigar, e quiseram
convite para outro dia e que alguns poucos iam pegar o dinheiro de volta amanhã.
Fag- Tudo está bem quando acaba bem.
RENATO- E aí... ta, ram, ram, ram!
Fag- O que foi?
RENATO- Não te contei ainda, dezenas, milhares de equipes de televisão, rádios, jornais!
Fag- Aqui no teatro?!
RENATO- Ali na porta! Todos me cercando, me entrevistando, querendo saber, o maior sucesso, cara!!!
Fag- Quando a gente precisa de divulgação, nenhuma nota...
RENATO- Foi o máximo! (bate mão com Fagundes) Amanhã vai ter cadeira extra, você vai ver, e eu vou
aparecer no jornal da meia noite! Quem sabe até me chamam pra novela das oito! Vou avisar a minha mãe!
(entra senhor, lá atrás, pára, gesticula, some no escuro)
Fag- Pelo menos essa bagunça vai servir para alguma coisa. Você vai ter os seus 15 minutos de fama.
(acende um foco de luz e o senhor está no cenário...)
Sr- A vida é uma sombra que passa...
RENATO- Quê que é isso?
Sr- Ué, não passa senhor?
Fag- Tira esse bicho daqui!
(Ator pega o senhor, o ajuda descer do cenário)
Sr- O senhor tá me ofendendo de novo!
Fag- O quê que o senhor ta fazendo aqui ainda?
Sr- Bom, eu, eu tava esperando a minha vez. Não me mandaram esperar? Então?
Fag- Meu amigo, nós já resolvemos esse assunto, agora nós estamos fechando...
Sr- Não, não! Eu represento aqui, os mil cento e quarenta e oito que não conseguiram ver o show até o fim.
Fag- Em primeiro lugar, aqui não tem show coisa nenhuma pra ninguém ver.
Sr- Tem o que então?
Fag- Tá brincando comigo?
Sr- N-n-não! Se não é um show, é o quê?
Fag- Eu to falando, ele tava passando aí na porta, jogaram ele aqui dentro!
Sr- Vim ver o show, sim senhor! O show de teatro.
Fag- O senhor veio ver o show de teatro?
Sr- Foi o que eu vim ver, senhor.
(levanta uma pessoa da platéia)
Fag- Tá gostando, ou vai fazer xixi?
(... eu vou fazer xixi)
Fag- Quando voltar, faz menos barulho, tá? Esse não volta nunca mais.
RENATO- Olha, não vai ter mais nada aqui hoje. O senhor não ouviu dizer que já foi todo mundo embora? Não
tem mais ninguém pro senhor representar, o senhor me desculpa...
Sr- E aí, como fica?
RENATO- Vamos fazer o seguinte, o senhor vai lá pra frente comigo, eu arrumo um convite pra outro dia,
qualquer dia, e...
Sr- Moço, moço, moço, eu não posso voltar outro dia não. Eu não sou daqui. Eu só vim aqui pra ver o show.
(tonteia)
(RENATO e Fagundes o seguram)
Fag- Pega uma cadeira! Que foi, que foi?
RENATO- Sente-se.
Fag- Calma, respira fundo. O senhor não é daqui de São Paulo?
Sr- Não sou não senhor.
Fag- Mora longe daqui?
Sr- Moro longe, sim senhor.
Fag- Não jantou?
Sr- Jantei não senhor.
Fag- Quer comer alguma coisa?
Sr- Seria bom, né! Eu to em jejum, senhor.
(sirene da polícia)
(entra produtora gargalhando)
Su- Vocês não vão acreditar! Deus escreve certo por linhas tortas, Aleluia! Estamos vingados, gente! A perua
saiu daqui de dentro do teatro que o diabo gosta, de camburão!Quando nós chegamos lá na frente, ela estava
quebrando a porta de vidro do teatro, aí o Tenente levou na hora, menino, flagrante delito! A filha do General vai
ter que mexer os pauzinhos pra sair dessa (ri). (olha para o senhor)... E o senhor ainda está aqui...
Fag- (para ator) Se importa de comprar um sanduíche ou um copo de leite no bar da esquina?
RENATO- Tudo bem (sai correndo).
Su- O quê? Eu perdi alguma coisa?
Fag- Ele tá fraco.
Sr- Senhor, eu não queria dar trabalho.
Fag- Trabalho nenhum. E aí, me conta essa história.
Sr- Que história?
Fag- Como é que o senhor veio parar aqui?
Sr- Ah! Eu sempre quis ver o show.
Su- Um show?
Fag- O show de teatro.
Sr- Lá onde eu moro, sempre aparece uns conjuntos, uns cantores na pracinha. Teatro, nunca. Nem cinema tem
lá, senhor.
Su- O senhor nunca tinha visto uma peça antes?
Sr- Hoje era a primeira vez, senhora.
Su- Hoje não era o seu dia, senhor.
Fag- E aí, me conta.
Sr- Um compadre meu, ele viu uma vez.
Su- Uma peça de teatro?
Sr- Ele me falou que era uma lindeza! E ele me contava as histórias, a mesma história. Cada vez que a gente
cruzava, eu, eu não cansava de escutar...
Fag- O senhor lembra da história?
Sr- Todinha, todinha... Era sobre um cara, que ele tinha um nariz comprido...
Su- Pinóquio!
Sr- Não, não era esse o nome não. Era, era um nome difícil de falar e era muito engraçado no começo, depois no
fim, ficava triste. Engraçado, né senhor, é porque eu chorava (começa a chorar) cada vez que eu escutava essa
história.
Fag- Cyrano de Bergerac.
Sr- É esse o nome. Como o senhor sabe?
Fag- Por causa do nariz...
Sr- Era grande, não era?
Fag- Enorme!
Sr- Eu jurei pra mim mesmo que um dia, eu ia ver uma coisa dessa de perto. Eu jurei pra mim... Então eu vim.
Su- Veio como?
Sr- Eu vim de carona. O dinheiro só ia dar pra comprar uma entrada.
Fag- O senhor juntou o dinheiro do ingresso e veio de carona. Ia voltar como?
Sr- Do mesmo jeito, senhor, de carona. Puxa vida! Deu tudo errado. E eu tava adorando... Porque o senhor
parou?
Fag- Ah, por favor, não...
(entra RENATO)
RENATO- Comida! Pode comer devagar que eu trago mais, falou?
Fag- Deus avisou Abraão, que ia destruir Sodoma e Gomorra pelos seus pecados. Abraão se revoltou...
Su- Esse negócio evangélico pega!
Fag- Eu não lembro muito bem dessa história, mas parece que foi a primeira vez que Abraão enfrentou seu Deus
assim, cara a cara. E os homens honestos também serão sacrificados...
RENATO- Quê que é isso! Tá tudo bem aí?
Fag- Deus retrucou que se Abraão encontrasse cinqüenta homens honestos em quaisquer das cidades, elas seriam
poupadas.
”E se encontrar quarenta e cinco honestos, ainda assim, serão destruídas?” Disse Abraão tentando enrolar Deus.
“Se você encontrar quarenta e cinco homens honestos, as cidades serão preservadas.” Abraão era tinhoso, não
deu o braço a torcer.
“E se forem trinta, os homens honestos, ainda assim serão arrasadas?” Não lembro muito bem como é que
terminou essa história, mas parece que Deus tinha razão, afinal. Abraão não conseguiu encontrar os seus homens
honestos, e as cidades foram arrasadas numa terrível explosão. E não lembro também como, parece que nessa
época já tinha essa história de nepotismo. Abraão deu um jeito de avisar um sobrinho seu, logo que conseguiu
escapar com a mulher e as filhas das chamas divinas.
Su- Quê que é isso!
Fag- Parece que hoje eu agi como um Deus irado, num daqueles maus dias, e arrasei com tudo. Não percebi que
na platéia tinha pelo menos um homem honesto.
RENATO- Pelo amor de Deus!
Su- Agora você exagerou. É claro que tinha mais que um homem honesto!
RENATO- Que quer dizer com isso? “Como um Deus irado!”
Su- Ah, meu herói todo poderoso, acabamos de ouvir um momento bíblico. (ri)
(ator bate palmas)
Fag- Podem rir, eu deixo.
Su- Ele deixa!
RENATO- Como um Deus benevolente... (ri)
Fag- Vocês não entendem, é claro! O que nós fazemos aqui em cima é muito sério! A simples paralisação de uma
função é pra mim um grande desastre ecológico!
RENATO- Foi você que parou.
Su- É um trágico!
RENATO- Nem Téspis conseguiria inventar um ator assim, ó.
Fag- Talvez vocês tenham razão.
Su- Claro que temos razão.
Fag- Hoje não é o meu dia...
RENATO- Tá no fim, graças a Deus!
Fag- É só teatro!
Su- Mas já tá melhorando.
Fag- E aí, meu amigo, me conta. O quê que eu posso fazer pra compensar essa tua perda?
Sr- Eu queria ver o show.
Fag- Eu juro que se o resto do elenco tivesse aqui, eu faria o melhor espetáculo da Terra, só pro senhor ter o que
contar de volta para aquele seu compadre.
RENATO- Não seja por isso, que história não vai faltar, não é?
Fag- Só tem uma coisa que eu não consigo aceitar até agora! Por quê o senhor tirou os sapatos e pôs os pés em
cima do palco?
Sr- Eu não sabia que ia ofender!
Fag- Tudo bem, já passou, mas por quê?
Sr- Eu tava cansado. O caminhão que me trouxe, me deixou lá na entrada da cidade. Aí eu tive que vir a pé. E
pra descansar, senhor, juro, eu tinha que levantar os pés.
Fag- E ficar mexendo os dedinhos assim? (mexe os dedos)
Sr- Ô, mas tava fervendo, né?
RENATO- Eu fico me perguntando qual seria a razão de uma batatinha frita... **
Fag- Como é que é?
RENATO- Vai ver que a velhinha era diabética, precisava se alimentar de hora em hora! **
Fag- (resmunga)
RENATO- Pensa bem, cada um podia ter uma razão pra fazer o que fez, é ou não é?
Fag- Pára com isso!
Su- Por quê? Tá com remorso, é?
RENATO- Cada um podia ter uma razão, você não pensou...
Fag- Você não tava em cena, lembra disso? Você não sabe o galinheiro que estava instalado na platéia!
RENATO- Eram quantas as galinhas? Trinta? Quarenta? E as outras mil pessoas que tavam doidas para ver o
espetáculo, você não pensou nelas, não?
Su- Meu senhor, alguma coisa incomodou na platéia hoje?
Sr- Não. Eu não vi nada. Eu tava adorando... Eu não sei por que ele parou!
Fag- Esse não vale, era ele que tava com o pé em cima do palco!
RENATO- Ninguém prestou atenção nisso.
Fag- Eu prestei atenção!
Sr- O quê? O senhor vê tudo o que acontece na platéia?
Fag- Cada mosca voando.
Sr- (ri) Eu pensei, assim, que vocês ficassem tomados.
Fag- Aqui não é terreiro de macumba! Ninguém fica tomado, não, viu?
Su- Estava todo mundo adorando. Você não pode exigir que parem de respirar na platéia quando você está em
cena!
(sons e tosses)
Fag- Chega! Chega! Pára, por favor! Pára, por favor! Não é só disso que eu to falando. É verdade, nós vivemos
num país desacostumado ao ato de pensar. Nossa formação cultural tá reduzida àquela dúzia de filmes
americanos com a sua fantástica linguagem, traduzida em ação, ação, ação. Nosso exame vestibular em múltipla
escolha reduz a capacidade de raciocínio ao acaso de uma loteria esportiva. Nosso padrão de televisão, rápido,
esperto, ágil, dinâmico, prende a nossa atenção por no máximo, sete minutos. O tempo aproximado de cada
segmento, antes do intervalo comercial. Nada mais nos exige maior reflexão. Até mesmo o melhor programa,
está sujeito a nossa lei férrea do tempo máximo de sete minutos. Então eu vou ao banheiro, eu tomo café, eu
telefono, eu descanso, eu tenho tempo pra isso. O intervalo comercial, como em nenhuma outra parte do mundo,
dura quase que os mesmos sete minutos, divididos em mensagens rápidas de quinze, trinta segundos que
prendem a minha atenção, caso eu não tenha mais nada pra fazer, por um espaço de tempo cada vez menor.
Fomos reduzidos a máquinas instantâneas de pensamento, ágeis, sagazes, vazias. Lemos muito pouco. Um Best
Seeler, no Brasil, vende cem mil exemplarem e comemoramos essa marca. Nossos melhores pensamentos,
nossas maiores reflexões, nossa mais ocupada percepção do mundo, não passamos dos sete minutos a que fomos
condicionados a usar. Até mesmo as nossa emoções obedecem essa regra de tempo, não é pra menos. A leitura
diária dos jornais nos obriga a isso. Mas, se fôssemos capazes de manter a nossa indignação, por um espaço de
tempo maior, só Deus sabe, que caminhos estaríamos trilhando agora... Mas Deus sabe o que faz. Conseguimos
sair de casa e trocar a nossa raiva pelos sete vezes sete minutos do trânsito nosso de cada dia, pelos constantes
sete minutos mais de cem vezes ao dia, interruptos, interrompidos a cada sete minutos. Impossível, no fim di dia,
lembrar de tudo isso. O dia é composto por mais de duzentos, sete minutos, nos levaria à loucura.
Por isso não temos memória. E é preciso que seja assim para que possamos sobreviver. Mais ainda podemos
revolucionar de vez essa nossa concepção de tempo e não nos submetermos mais à ditadura dos sete minutos.
Hoje, já que estamos todos aqui, ainda é possível exigir atenção por um espaço de tempo maior. Nossos
espetáculos duram mais que sete minutos, e fazemos assim porque ainda achamos que é possível estarmos juntos
por mais tempo, trocando, refletindo, sonhando. Que bom que vocês vieram! Porque lemos nos jornais todos os
dias o que devemos faze, é bom que vocês estejam aqui conosco hoje, pra dividir algumas dúvidas, porque
certezas, nós temos muito em comum. Sabemos juntos que as coisas não vão bem, sabemos porque, quando,
como. Sabemos onde. Temos certeza da necessidade de mudança, certeza de que quase não agüentamos mais.
Vivemos juntos em meio a mesma violência, sofremos as mesmas fomes. Talvez a nossa maior falha, tenha sido
a de nunca nos termos dado tempo, pra discutirmos nossos erros, mas exercitamos esse novo jeito atrapalhado,
essa vontade de que um dia as coisas mudem. O palco de um teatro não pode mudar muitas coisas, nos traçados
desse caminho, mas aqui, ainda é possível se dizer: “não sei”. Talvez porque o nosso tempo aqui em cima seja
diferente, ainda podemos sonhar. E é bom que vocês estejam aqui conosco hoje, pra dividir as nossas dúvidas,
repartir os nossos sonhos e multiplicar a nossa vontade de que tudo isso, um dia, não passe de uma peça de
teatro, mas sem interrupções, por favor.
RENATO- Porra!
Fag- Eu vou arrumar um lugar pro senhor passar hoje à noite. E amanhã, o senhor volta aqui, pra ver o show de
teatro que eu vou tentar fazer pro senhor.
RENATO- Pode deixar que eu cuido disso!
Sr- Ai, meu Deus! Obrigado, muito obrigado. (mostra o sanduíche) Eu posso levar comigo?
Fag- Por favor.
Sr- Desculpe os pés, viu?
Fag- Se você piscar na platéia, eu te mato...
Sr- Não vou nem respirar, o senhor vai ver. Fica com Deus, senhor. Tchau!
Su- Tá mais calmo, agora?
Fag- Tô, obrigado.
Su- O resto é silêncio...
Fag- O estar pronto é tudo.
Su- Passarinho que come pedra, sabe o cu que tem!
Fag- Fechou com chave de ouro!
Su- Deixa eu ir embora, então. Você tem certeza de que não precisa de mais nada?
Fag- Você é uma grande companheira.
Su- Você não vem?
Fag- Não, vou ficar um pouco mais por aqui.
Su- Você tá bem?
Fag- Eu gosto do teatro vazio. Eu fico sonhando...
Su- Com ele cheio no dia seguinte...
Fag- Tem uma coisa melhor que a platéia lotada. O aplauso vibrante no final do espetáculo.
Su- É, e você não tem do que se queixar, tem tido dos dois há anos.
Fag- O aplauso nem sempre...
Su- É mesmo?
Fag- Talvez a gente não tenha feito por merecer...
Su- Amanhã vai ser diferente.
Fag- Eu to exigindo muito deles, não to?
Su- Tá. Muito.
(entra RENATO)

Fag- Que foi?


RENATO- Eu queria falar uma coisa. Não fica bravo comigo!
Fag- Lá vem besteira...
RENATO- Só uma história pra completar aquela do Abraão, posso?
Fag- Vai, fala.
RENATO- Há algum tempo atrás você me deu um livro de presente, tá lembrado?
Fag- Não... Tô, tô, tô, pronto, tô.
RENATO- Uma autobiografia da Martha Graham, aquela bailarina moderna. E sabe que eu não sou muito de
ler. Eu não tenho saco! Você vive me enchendo por causa disso, mas esse aí, eu li inteirinho. Não lembro muito
bem do livro todo, mas teve uma história nele que eu nunca esqueci. Tinha uma dança lá, uma coreografia que a
Martha gostava muito de fazer, chamava... LAMENTAÇÃO... Era um solo. Ela dançava dentro de um saco lilás,
só com a cabeça de fora. O saco fechado no pescoço. E o limite do saco eram os braços e as pernas dela
esticados. Tem uma porrada de foto no livro. Era super maneiro. Ela tava lá, presa dentro daquele saco lilás, só
com o rosto angustiado de fora. Durante anos, em todo o espetáculo, ela sempre dava um jeito de encaixar essa
coreografia. Era o carro-chefe dela, como se diz, né? Até que um dia a Martha tava no camarim, tirando a
maquiagem, quando o pessoal da produção veio avisar que eles tavam com um problema. Tinha uma mulher, na
platéia. O público todo já tinha ido embora e ela tava lá, chorando copiosamente. Ninguém sabia o que fazer. A
Martha pediu que trouxessem a mulher ao camarim. Ela veio e não conseguia parar de chorar. Água com açúcar,
abano, todo mundo no maior sufoco, até que meia hora depois, ela se acalmou. A Martha ali, toda solícita ”O que
foi que aconteceu?” E ela contou... Eu tinha vinte e cinco anos, quando um filho meu de três anos de idade
brincava com a bola, na calçada. A bola correu pro meio da rua, ele correu atrás para pegar e eu vi a roda de um
caminhão passar por cima da cabeça dele. Eu não chorei naquele dia, eu não chorei no enterro também. Nos
últimos vinte e cinco anos, eu não fui capaz de chorar, por nada desse mundo, até ver a sua dança e entender essa
angústia monstruosa que me apertou o peito durante todo esse tempo, que me deixou sem ar, sem remédio, sem
saída. Todo mundo no camarim ficou em silêncio, a mulher levantou os olhos e disse “Obrigada” e saiu chorando
silenciosamente. A Martha escreveu pro amigo dela que valeu a pena ter vivido por esse momento, por ter tido o
privilégio de saber, que pelo menos uma vez na vida, ela foi capaz de tocar uma pessoa sensível na platéia.
Fag- Uma história muito bonita.
RENATO- Sei lá, vai ver que tinha mais de mil aí e você se deixou irritar por dói ou três, pô! Desculpa, tá, mas
pensa nisso.
Fag- Uma só pessoa sensível na platéia... Será você? Você? Você? Será você? A vida é uma sombra que passa,
um pobre ator que se pavoneia em cena, durante uma hora, depois ninguém vê mais. Uma história idiota, chei de
som e de fúria, contada por um louco, significando nada... (Toca um celular)
(música de Beethoven )
(ouve-se todos os sons)
(encerra com trecho da 5ª sinfonia)

FIM
Ass: Rena e Dud’s

P.S.: Deu um trabalhão...

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