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Migalhas no Tempo

Um conto sobre perdas e encontros

Seus olhos custaram a acostumar com a escuridão do


beco imundo onde se encontrava. Com sorte, ninguém teria
ouvido o estalo que seguia o salto temporal. Sentia o frio tocar
seu rosto, enquanto a pressão do ar normalizava ao seu redor.
Agora só precisava estabelecer se estava na data e local
combinados. Olhou o bilhete, guardado junto ao relógio de bolso.
Logo tratou de sair para a calçada de pedras irregulares
e cobertas de neve à sua frente, guiado pela fraca luz dos
postes nas proximidades.
Antes que pudesse se certificar de quando e onde estava,
um bater ritmado de botas contra pedras quebrou sua
concentração.
Das trevas da noite surgiu outra pessoa, trajando vestes
similares.
– Sieg Heil! – cumprimentou-lhe, estendendo a mão direita
ao ar. – Noite perfeita para um chopp, não é? – continuou, em
alemão.
– Até mesmo dois – respondeu com a contra-senha. –
Pode me dizer as horas? – Coçou o pescoço onde o colarinho o
circundava.
O uniforme verde-musgo e cheio de adornos brancos e
vermelhos o incomodava tanto quanto a falta de conhecimento
sobre o aspecto que devia esperar das construções da época.
– Estamos na noite de dezesseis de dezembro de mil
novecentos e quarenta, nove horas e sete minutos. – Consultava
um dispositivo, que emitia luz esverdeada. – Acredito que seja
Janus, correto? Preparei um lugar mais adequado para
conversarmos do que aqui no meio da neve, onde estamos
muito vulneráveis, apesar do disfarce de oficiais do Reich. As
roupas que te mandei pelo Mensageiro serviram corretamente?
Assentindo com a cabeça, o garoto seguiu o homem por
alguns metros, ajustando os botões do uniforme e perguntou:
– Seu nome é realmente Dener?
– No presente, sim, e estou contando os minutos para ir
embora dessa época maldita antes que alguma merda
aconteça.
Pararam em frente a uma porta com um cartaz
desbotado de propaganda. Ouviram vozes e gargalhadas vindas
de dentro.
– Está cheio de alemães lá dentro! Tem certeza que é
uma boa ideia conversarmos aqui? – Janus segurou Dener,
impedindo-o de entrar.
– É irrelevante. Saiba que estamos vestidos como
tenentes, então, porte-se como tal. Acreditei que você estaria
pronto para uma simples conversa num bar francês, com meia
dúzia de soldados comemorando alguma coisa que não vem ao
caso.
– Se o que o Mensageiro me passou é correto, só
precisamos de uns poucos minutos e já seguiremos nossos
caminhos. Acredito que os costumes militares não tenham
mudado tanto desde a Grande Guerra, correto? – questionou
Janus, alinhando seu uniforme.
– Isso não mudou, mas o que acontece nos bastidores
dessa Segunda Guerra, deixariam você enjoado. Experiência
própria – concluiu Dener abrindo a porta e conduzindo o
viajante para dentro.
Canecas e pratos se espatifaram no chão, enquanto os
soldados batiam continência para os dois indivíduos que
adentravam ao bar.
– Lá se foi o elemento discrição – cochichou Janus para
Dener, retribuindo com a saudação oficial do Reich.
Ignorando os soldados, trataram de sentar ao redor de
uma das mesas mais reservadas, num canto próximo à lareira
crepitante. Foram atendidos por um homem corpulento, que já
vinha trazendo dois quartilhos de chopp em cada mão.
– Boa noite e bem-vindos, oficiais – arranhou um alemão
bastante carregado para o francês – aceitam chopp ou
gostariam de algo mais forte?
– Chopp está perfeito. Pode deixar dois para mim.
– Eu quero só um – disse Dener, acendendo um cachimbo
que retirara do bolso do casaco. – Está tentando aplacar a sede
ou a acabar com a ansiedade?
– Ambos! – respondeu, bebendo o primeiro quartilho num
único fôlego. – Viajar me deixa com sede e a situação me deixa
ansioso. Nunca conheci outro viajante do tempo antes também.
– Não é diferente de conhecer qualquer outra pessoa,
então, quando sua ansiedade passar, vamos ao cerne do
assunto – afirmou Dener, chamando uma moça que também
atendia no bar. – Gostaríamos de uma refeição, deixe-me
pensar… Einsbein. Joelho de porco com batatas.
– Certamente – a garota respondeu, em francês.
– Obrigado – disse Dener, no mesmo idioma.
– Sejamos objetivos, então. O Mensageiro te disse que
tenho o item que você procura. – afirmou Dener, retirando do
bolso interno do uniforme algo embrulhado em um lenço de
seda rosa.
– Verdade, mas também preciso saber o que você quer
em troca disso. Das várias coisas escritas no bilhete do
Mensageiro, a única informação omitida é o que eu terei que
fornecer para obter o que você trouxe.
O broche prateado reluziu à fraca luz do ambiente,
mostrando detalhes de um passado perdido nas entranhas do
tempo e do espaço. Janus sentiu um calafrio ao ver as manchas
rubras maculando o item, imaginando que seriam de sua irmã,
que portava o broche até então, acreditava ele.
– As marcas… por acaso…
– Sua irmã e eu derramamos muito sangue durante o
tempo que passamos juntos. Mesmo sendo uma criança, ela tem
habilidades que eu jamais tinha presenciado antes. Suas
preocupações podem ser aplacadas, pois ela está segura, mas
não está na mesma época que nós. Essa informação eu te
forneço sem custos.
A algazarra dos soldados abafava qualquer reação de
Janus. Sentiu o peso que carregava sair de seus ombros, com
alívio por saber da atual situação da irmã. Ao mesmo tempo,
pairava uma frustração por ainda não compartilhar o momento
certo de encontrá-la.
A francesa trouxe a comida dos falsos oficiais e a serviu
na mesa. Janus solicitou:
– Mais dois quartilhos, por gentileza. Ainda estou enjoado
por conta do salto. Ou talvez essa bebida esteja mais forte do
que eu pensava.
— Esse é o melhor chopp da frança. Nem Paris tem algo
parecido — disse Dener. — Beba mais! Aí está ela com mais uns
canecos. — Deu uns tapas nas costas de Janus, já se virando
para a atendente e completando em francês: — Continue
trazendo, mon cherie.
– Então, Sindala está no futuro – falou Janus, olhando nos
olhos do outro homem, enquanto pegava seu relógio de bolso. –
A questão agora é onde…
– Aí que entra a primeira parte da minha barganha.
Quero entender como funciona o seu mecanismo de viagem no
tempo. Pelo que o Mensageiro disse, você só pode viajar para o
futuro, estou certo? – questionou Dener, devorando suas batatas.
– É isso mesmo. Você já possui a informação que precisa.
– Errado. Veja só – iniciou Dener, mostrado o seu
dispositivo de luz verde. Aqui eu tenho todo o relatório das suas
viagens e os tempos passados em estadias muito longas para
serem consideradas numa vida normal humana.
– Você esteve me espionando?
– Mais ou menos, meu caro. Veja bem, viajantes do tempo
possuem frequências de radiação H, e a sua tem uma
ressonância bem particular. Diferente de muitas outras que nós
costumamos detectar – continuou Dener, reclinando-se na
cadeira com seu quartilho.
– Eu sei disso, afinal foi Leonardo da Vinci, com a minha
ajuda, que batizou essa radiação em homenagem a Hórus,
quando criamos os meios de detectá-la – informou Janus.
– Deixe-me ver… correto. Essa informação consta nos
meus relatórios. Consta também que você esteve presente em
seu funeral, e também que já estava em Florença por volta do
ano de 1452, quando ele nasceu.
A indignação tomava conta de Janus, que já estava
começando a se questionar sobre qual realmente seria o preço
que o outro viajante cobraria.
– Deixe que eu te contextualize um pouco mais sobre o
que eu quis dizer quando mencionei nosso coletivo. Somos uma
das agências temporais clandestinas do futuro remoto. Você
ficaria impressionado com tudo o que conseguimos fazer,
mesmo que os Acordos Temporais de 2030 proíbam
expressamente o uso de tecnologia de deslocamento no
espaço-tempo, a partir de então.
– O que me interessa é saber quando e onde encontrar
minha irmã. Por acaso você tem mesmo essa informação ou
está apenas tentando obter alguma coisa às custas da minha
busca? – questionou Janus, secando mais uma caneca de chopp,
enquanto ajustava seu dispositivo, sob a mesa.
O chopp parecia mais atraente do que costumava e
Janus voltou a ingeri-lo com avidez. Sentia-se tonto, mas, ao
mesmo tempo, muito sedento e cada vez mais ansioso.
– O que diabos vocês querem comigo então? Não tenho
nada a oferecer com minha tecnologia arcaica. Só posso me
deslocar para o meu atual futuro. Ademais, isso requer uma
abundante quantidade de energia – disse Janus, tropeçando
pelas palavras enquanto falava.
– Esse seu método de viajar é meio interessante também,
mas não é meu foco. Estamos usando anti-matéria, o que é raro
até mesmo no futuro. Você não deve fazer ideia do que seja isso,
então ignore os detalhes. Eu precisei te encontrar nessa época
devido às nossas limitações energéticas – explicou Dener,
acendendo um cigarro. – Agora, o que me traz aqui, é uma coisa
mais importante do que isso tudo que foi dito. Quero saber como
vocês se mantém vivos por tanto tempo.
Janus sentiu um calafrio e olhou para a lareira, que
parecia arder mais forte do que quando chegaram. Suas
palavras soaram lentas e sentia que não poderia mentir. Não
conseguia, mesmo que tentasse.
– Acredito que explosão da máquina de Atalântica
causou… minha condição… – relatou, impressionado com sua
mente por revelar o nome da sua origem e informações tão
particulares, já que nunca havia o feito antes.
– Então é por isso? Você será um bom objeto de estudo
nos laboratórios do Reich! – exclamou Dener, trabalhando em
seu dispositivo. – Meus superiores ficarão felizes em saber disso.
***
Janus ouviu um estalo conhecido, seguido pelo silêncio de
todos os presentes. Todos se voltaram para o meio do salão,
onde um homem trajando um uniforme todo preto, com diversos
adornos, surgiu. O ar ao seu redor, formava pequenas
ondulações, como a água de um lago ao ser tocada por uma
pedra.
Dener levantou-se e estendeu a mão ao ar, juntando-se
ao coro coletivo. Gritaram por três vezes, num idioma que Janus
não ouvia há muitos séculos. Seu língua nativa:
– Viva à Alma do Dragão!

Silêncio novamente.

– Obrigado, Dener – agradeceu o homem, ainda na língua


materna de Janus.
O garoto apenas observava, enquanto o velho
sentava-se a sua frente. Palavras tocaram os seus ouvidos,
ainda incrédulos.
– Não é nenhuma coincidência nos encontramos aqui
hoje, principezinho. O tolo do Mensageiro não sabe o favor que
me fez ao te entregar o bilhete e o uniforme que Dener te
mandou.
Janus estava com o pensamento arrastado pela bebida,
mas, nesse ponto, sabia que havia mais do que simples álcool
naqueles quartilhos. Queria ouvir mais do que o homem tinha a
dizer, pois tinha perguntas que precisavam de respostas. Tratou
de colocar a mente em ordem e questionou:
– Pai… no acidente você estava na máquina, tentando
tirar a minha mãe de lá. Como não morreu junto a ela?
– Isso é irrelevante, garoto. O assunto aqui é outro. Foco!
Sua irmã escapou dos nossos Caçadores Temporais no futuro
enquanto você caiu direitinho na nossa armadilha, sem a ajuda
deles. Vendo por esse lado, acredito que ela seja bem mais
inteligente que você – riu o velho. – Mesmo com todos os anos
de experiência que te foram concedidos pelo destino.
– Major Wilhelm, podemos proceder com a extração? –
questionou Dener.
O pai de Janus assentiu e Dener levantou-se, ordenando
aos soldados:
– Cerquem o bar e sinalizem para que tragam o veículo.
Vamos levar o espécime em poucos minutos.
Janus cambaleou para o meio do salão. Seu relógio de
bolso, configurado para a viagem, em suas mãos. A mente do
garoto estava muito turva e a única coisa que conseguiu
exclamar foi:
– Não será dessa vez!
– Agarrem-no! – gritou Dener, para os soldados ao redor.
Em meio ao estalo, pôde ouvir as palavras do pai
ecoando:
– Te vejo no futuro, garoto.

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