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O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 1

A SOMBRA E A QUIMERA
Escritos sobre Augusto dos Anjos

SUMÁRIO
2 Chico Viana

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 3

Chico Viana

A SOMBRA E A QUIMERA
Escritos sobre Augusto dos Anjos

Edições do Autor
João Pessoa
2013

SUMÁRIO
4 Chico Viana

Todos os direitos e responsabilidades reservados.

Diagramação
Magno Nicolau

Revisão
Chico Viana

V614s Viana, Chico. Pseud. de Francisco José Gomes Correia


A sombra e a quimera: escritos sobre Augusto dos An-
jos / Chico Viana. – João Pessoa: edições do autor, 2013.

94p.

1. Literatura Paraibana 2. Ensaio


I. Título

CDU: 869.0
CDD: 813.3

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 5

“Sou uma Sombra, venho de outras Eras,...”


(Monólogo de uma Sombra)

SUMÁRIO
6 Chico Viana

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O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 7

“(...) Como Belerofonte com a Quimera


Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!”
(Aberração)

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8 Chico Viana

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 9

SUMÁRIO
Sumário Interativo

NOTA DO AUTOR, 11

JOCOSIDADE E LUDISMO EM
AUGUSTO DOS ANJOS, 13

UMA BARCAROLA DE
AUGUSTO DOS ANJOS, 23

A ALEGORIA EM
AUGUSTO DOS ANJOS, 37

A ESTÉTICA DISSONANTE
DE AUGUSTO DOS ANJOS, 49

AUGUSTO DOS ANJOS E ALFREDO


PIMENTA: UMA COMPARAÇÃO, 59

A “ILUSÓRIA MORBIDEZ”
DE AUGUSTO, 69

SUMÁRIO
10 Chico Viana

MONÓLOGO DE UMA SOMBRA OU


AUGUSTO DOS ANJOS EM ALEMÃO, 79

AUGUSTO DOS ANJOS,


CLÁSSICO DA LÍNGUA, 87

AUGUSTO DOS ANJOS TRÁGICO?, 91

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 11

NOTA DO AUTOR

Este livro se compõe de textos já publicados, mas


que a nosso ver ganhariam em organicidade, e mesmo em
praticidade, se aparecessem num mesmo lugar. Os temas
aqui desenvolvidos se articulam em torno de alguns con-
ceitos que constituem chaves interpretativas da poesia de
Augusto dos Anjos – como, por exemplo, o de alegoria e o
de dissonância. Uma vez que eles se completam enquanto
marcas retórico-expressivas do poeta, acrescentamos, a
um artigo sobre a primeira, o texto sobre dissonância com
que introduzimos recente edição de Eu publicada pela
Editora Universitária da UFPB.
A cinco estudos acadêmicos sobre o poeta, acrescen-
tamos dois textos escritos como apresentações de livros.
Ao comentar estudiosos que o discutiram e autores que
o influenciaram, esses textos concorrem para ampliar a
avaliação da sua obra. O mesmo é possível dizer das duas
crônicas que aqui aparecem, uma delas tratando da nossa
participação na edição da “Obra completa” de Augusto
dos Anjos, publicada pela Editora Nova Aguilar.
Dos trabalhos aqui apresentados, “Jocosidade e
ludismo em Augusto dos Augusto dos Anjos” apareceu
originalmente na revista Cerrados, da UNB, Nº. 6, Ano 6,
Brasília/DF, p. 34-40; “Uma Barcarola de Augusto dos
Anjos”, na Revista da ANPOLL 5 (Associação Nacional de
Pós-graduação em Letras e Lingüística), 2. sem. 1998, São
Paulo-SP, p. 65-76; “A alegoria em Augusto dos Anjos”,
em Augusto dos Anjos: a saga de um poeta, coedição entre o
governo do estado da Paraíba e a Fundação Banco do Bra-
sil, 1994, p. 74-8; “A estética dissonante de Augusto dos

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12 Chico Viana

Anjos”, como introdução à já referida edição de Eu publi-


cada pela UFPB; “Augusto dos Anjos e Alfredo pimenta:
uma comparação”, em Paraíba Cultural, No. 10, Ano 30,
Dezembro de 1995, João Pessoa-Pb, p. 36-40.
“A ilusória morbidez de Augusto” foi lido no dia
19 de abril de 1996, no auditório 411 do CCHLA, como
apresentação ao livro Eu, singularíssima pessoa, do psiquia-
tra Luiz Carlos Albuquerque, e posteriormente publicado
em edição especial do Correio das Artes (“A sombra incan-
descente do Eu”, No. 384, 20/04/1996, p. 22-3) que home-
nageia o poeta. “’Monólogo de uma sombra’ ou Augus-
to dos Anjos em alemão” foi lido na noite de 28 de julho
de 1998, no Hotel Globo, por ocasião do lançamento de
Monólogo de uma Sombra; uma antologia, edição bilíngue
(português-alemão) de poemas do paraibano traduzidos
para o alemão, com seleção e organização de Carlos Al-
berto Azevedo e o patrocínio conjunto da Secretaria da
Educação e Cultura/PB e do Instituto Cultural Brasileiro
em Berlim (ICBRA). Já “Augusto dos Anjos, clássico da
língua” e “Augusto do Anjos trágico?” apareceram ini-
cialmente como crônicas publicadas no jornal O Norte, de
João Pessoa/Pb.
Somos grato à CAPES, que através do PROAP tor-
nou possível esta publicação, e à Profa. Dra. Ana Cristina
de Sousa Aldrigue, que no exercício da Coordenação da
Pós-graduação Letras da UFPB acolheu com entusiasmo
o nosso projeto, apoiando-o com desprendimento e lou-
vável espírito acadêmico.

João Pessoa, março de 2000.

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O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 13

JOCOSIDADE E LUDISMO EM
AUGUSTO DOS ANJOS


Augusto dos Anjos notabilizou-se por tematizar a
morte e a melancolia, registrando em suas imagens, va-
zadas num vocabulário áspero e dissonante, o universo
da doença e da putrefação. Em nossa tese O evangelho da
podridão
(Viana, 1994), buscamos demonstrar que a morbi-
dez, a negação do erotismo e o anseio destrutivo, presen-
tes no poeta, não eram senão metáforas da culpa, ou seja,
da falta concebida enquanto transgressão primeira -- peca-
do original. A partir da vinculação, enfatizada pela psica-
nálise, entre a morbidez e o sentimento de culpa -- e, tam-
bém, entre a culpa e a pulsão de morte --, interpretamos
as abundantes imagens de doença (ligadas, por exemplo,
à tuberculose ou à lepra) como metáforas orgânicas do
vício, ou da queda.
Por tais características, o poeta firmou-se no imagi-
nário de seus críticos e leitores como um homem essen-
cialmente triste, mesmo doente -- e para quem, conforme
ele refere num dos seus poemas, “a alegria é uma doença
e a tristeza a (sua) única saúde.”. Medeiros e Albuquer-
que chegou a afirmar que “...Augusto seria incapaz de
fazer versos humorísticos.” (“O livro mais estupendo: o
Eu”. In: Anjos, 1994: 94) -- como se o poeta, por conta dos
seus delírios e obsessões, só tivesse olhos e ouvidos para
o que, na natureza e no cosmo, significasse deterioração,
morte e ruína.
O que não é verdade. O historiador paraibano Hum-
berto Nóbrega foi o primeiro a chamar a atenção para o
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14 Chico Viana

“outro lado” do poeta, representado basicamente pelos


poemas, sonetos e quadras que ele publicou no jornalzi-
nho paraibano Nonevar, que circulava nas noites de festa
dedicadas a Nossa Senhora das Neves, padroeira da cida-
de. Segundo esse estudioso, com o Nonevar, “...inaugurou-
-se esse tipo de imprensa efêmera, -- imprensa de festa,
-- cheia de verve, humor, sátira, epigramas, perfis e louva-
minhas ao belo sexo.” (Nóbrega, 1962: 26). Como a querer
sublinhar o lado frívolo, mundano e, afinal, humano do
autor de Eu e outras poesias, Humbertro Nóbrega informa
ainda, a propósito da chamada Festa das Neves: “...Au-
gusto não pôde fugir ao seu poder atrativo. Integrou-se
nela. Como qualquer mortal, compareceu às novenas. Pe-
rambulou pelas calçadas onde os divertimentos se apre-
sentavam. Freqüentou os bares improvisados. Observou.
Inspirou-se. Colaborou nos jornaizinhos.” (Ibid.: 27-8).
O propósito deste trabalho é comentar a produção
do poeta veiculada num desses jornaizinhos, ou seja, nas
edições do Nonevar que circularam por ocasião da Festa
das Neves, nos anos de 1908, 1909 e 1910. Alguma coisa
desse material apareceu, dispersa e fragmentariamente,
no livro Augusto dos Anjos e sua época, de Humberto Nó-
brega. Mas já é possível enconrá-lo inteiro na edição das
obras completas da Nova Aguilar, organizada por Alexei
Bueno, a qual veio a público em fins de 1994. O que pos-
sibilitou a reunião desse material, e a sua posterior publi-
cação, foi o acesso que tivemos à biblioteca de Humber-
to Nóbrega, onde afortunadamente nos deparamos com
um volume encadernado dos exemplares do jornalzinho.
Volume único e precioso, que escapou do caos de uma
biblioteca desfeita e do vandalismo de “amigos” que, na
doença do historiador e antes de sua morte, surripiaram
muito do qua havia ali de raro -- conforme a filha dele,
mesmo, nos contou. Era um milagre que os exemplares
do Nonevar tivessem escapado à confusão, à desorgani-

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O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 15

zação provisória com que nos deparamos e, sobretudo, à


ladinagem de falsos amigos.
De posse do material, conforme dizíamos, providen-
ciamos a sua reprodução xerográfica e a enviamos para
o organizador da edição da Nova Aguilar, que justifica-
damente se empolgou. Em carta a nós endereçada, com
a data de 31/05/94, Alexei Bueno escreve: “Recebi hoje,
ao meio-dia, os dois exemplares com o Nonevar, em per-
feito estado, e você pode avaliar a minha alegria!”. E nos
informa, algumas linhas depois: “Já encontrei no Nonevar,
independente de tudo que precisava (ou seja, a produção
relativa às noites de festa da padroeira) uma quadra e oi-
tro crônicas inéditas, que vou começar a transcrever.”.
A colaboração em versos de Augusto dos Anjos no
Nonevar se resume a três poemas longos, inseridos sempre
no início das publicações, e mediante os quais ele apresen-
ta e, de certo modo, justifica a existência do jornalzinho;
alguns poemas, sobretudo sonetos, dedicados a perfilar
romanticamente figuras femininas; outros tantos (qua-
dras, sobretudo) feitos como caricaturas, perfis críticos de
figuras masculinas; e uma série de quadras comerciais.
Tais versos, obviamente, não se inscrevem na produção
considerada séria de Augusto. E nem poderiam. Confor-
me observa Alexei Bueno, eles “foram conscientemente
criados como diversões rimadas (...); ...esse conjunto (...),
sem muito acrescentar esteticamente à obra do poeta, vale
como documento de época e documento humano...” (In:
Anjos, 1994: 842).
Os versos que aparecem nas edições do Nonevar fo-
ram compostos com a mesma disposição frívola com que
se participa de eventos mundanos. Ou, se ditados por al-
gum tipo de necessidade, terá sido uma necessidade bem
diversa da que preside, ou determina, a criação propria-
mente literária. É curioso, quanto a esse ponto, ler a carta
que Augusto dirige à sua mãe, em 25 de julho de 1907. A

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16 Chico Viana

certa altura, ele pede permissão para continuar na provín-


cia por mais alguns dias, uma vez que foi “... convidado
para constituir uma das principais partes colaboradoras
de um jornalzinho elegante que se propõe a ser a delícia
espiritual do novenário festivo.” A seguir, faz a honesta
ressalva de que esse jornal, “através do pretexto literário
que o recomenda, esconde intuitos puramente financei-
ros.” Mas também reconhece com pragmatismo que, após
os festejos, por conta mesmo desses intuitos, “(poderá)
recolher às (suas) arcas particulares de bacharel necessita-
do alguma pecúnia consoladora.” (Ibid.: 691).
Mesmo destoando do conjunto da obra, compostos
sem maiores pretensões e, sem nenhuma dúvida, apre-
sentando menor valor estético, os versos dados a público
no Nonevar têm particularidades que interessam a quem
estuda a poesia de Augusto dos Anjos. Além de revela-
rem penetração e originalidade, testemunham quanto
certas idéias ou imagens lhe obsediam a consciência. É
como se o autor variasse de tema, ou mais propriamente
de contexto, voltando-se para o lado superficial da vida;
mas preservasse, com voluntária “inadequação”, vocábu-
los, imagens e construções que lhe serviram para expres-
sar o amargor, a melancolia, a intensidade da sua angús-
tia ética e existencial. Sobretudo nos poemas longos, com
que introduz as colaborações de cada ano, o poeta parece
fazer uma paródia de si mesmo. Ou seja: como num exer-
cício automático de estilo, e visando a um efeito pretensa-
mente piedoso (já que se trata de invocar Nossa Senhora
das Neves), ou irônico e caricatural, ele parece juntar, le-
vemente alterados, fragmentos da sua obra canônica.
Esses fragmentos constituem-se basicamente de
idéias obsessivas, escolhas vocabulares, torneios grama-
ticais, enfim, de imagens características, mesmo idiossin-
cráticas, que permeiam todo o Eu e outras poesias. No poe-
ma com que abre o Nonevar de 1908, por exemplo, o poeta

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escreve: “...sou Rabelais que ri/ E arrebenta com o riso a


máscara malvada/ com que Deus achincalha a geração
inchada/ Dos que trazem no sangue a herança de algum
mal.”(Ibid.: 499). Esses versos, tanto pelo vocabulário
quanto pelo núcelo ideativo, parecem fundir passagens,
respectivamente, de “Os doentes” e de “As cismas do
Destino”, dois dos maiores e mais significativos poemas
de Augusto. Na quadra 140 de “Os doentes”, com efeito,
lê-se a referência ao “achincalhamento do progresso” que
“anulava (o índio) na crítica da História” -- esse mesmo
índio que, “filho podre de antigos goitacases”, afigura-se
ao “eu lírico” vítima de um pecha de origem. Na estrofe
80 de “As cismas do Destino”, por sua vez, o poeta refere
o mal do sangue, ou seja, a incriminação a que a heredita-
riedade nos submete -- sendo justamente ela, a heredita-
riedade, o instrumento de propagação da referida pecha.
A idéia se repete, envolvendo o mesmo personagem (o ín-
dio, que simboliza a própria espécie humana), nos versos
155 e 156 de “Os doentes”, onde o “eu lírico” enfatiza que
“A hereditariedade dessa pecha/ Seguiria seus filhos.”
Como se vê, nem num jornalzinho mundano e que se pro-
põe tão-somente a divertir as pessoas, o poeta se livra de
suas obsessões fundamentais.
Ainda como exemplos desse procedimento intratra-
textual, confrontamos abaixo, respectivamente, algumas
passagens de poemas publicados no Nonevar com trechos
da obra canônica do autor (todas as indicações de pági-
nas, entre parênteses, se referem à Obra completa citada na
Bibliografia):

-- “...Na estática fatal das emoções humanas.”(Abertura


do Nonevar de 1909, v. 29) - “A estática fatal das paixões
cegas... “ (“Os doentes”, v. 307, p. 245);
-- “Com a cabeça oprimida e triste dos que pensam...”
(Idem, v. 5) - “Para que esta opressão desapareça/ Vou

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amarrar um pano na cabeça...” (“Tristezas de um quarto


minguante”, vv. 14-5, p. 300) - “Rola-me na cabeça o cé-
rebro oco.” (Poema negro, v. 118, p. 289);
-- “Estruge a irracional fonética dos bois...” (Idem, v.20)
- “Ser cachorro! Ganir incompreendidos/ Verbos!” (“As
cismas do Destino”, vv. 145-6, p. 215);
“De onde jorra a ilusão que mata a água do choro...”
(Abert. do Nonevar de 1910, v. 6) - “Choro e quero beber
a água do choro (“Tristezas de um quarto minguante”, v.
59, p. 301);
-- “... pondo-lhes esqueletos/ No fundo da consciência
infeccionada e má.” (Idem, vv. 18-9); - “... vendo em cada
escarro/ O retrato da própria consciência! (“Os doentes”,
vv. 93-4);
-- “...o estado de incoesão/ Da matéria inicial...” (Idem,
vv. 32-3); “...A falta de unidade na matéria!” (“As cismas
do Destino”, v. 116, p. 214);
-- “Na veemência medonha da mandinga...” (Soneto
“Despedida”, publicado num dos números do Nonevar
de 1908) - “...Com a veemência mavórtica de um ariete...”
(“As cismas do Destino”, v. 113, p. 198).

No exemplo extraído do soneto “Despedida”, é par-


ticularmente visível o tom crítico e paródico. O autor se
utiliza inclusive da aliteração, recurso que lhe é caracte-
rístico, e parece contrapor a majestade do decassílabo he-
róico, com o peso dos fonemas repetidos, ao contexto pífio
e ligeiro em que ele é empregado. Tal soneto, publicado
na última noite da festa, lamenta que “a luz do Nonevar”
esteja se apagando e, no bojo da tristeza disso decorren-
te, canta “essa fealdade atra que estraga a Humanidade
-- esta infeliz coruja/ A nutrir-se da própria roupa suja/
Como um moscardo dentro de uma chaga.” (502). É então
que aparece, no primeiro terceto, o verso acima transcri-
to: “Na veemência medonha da mandinga/ Não generalizou
essa catinga/ Que aos estômagos bons causa receios”.
Percebe-se no trecho grifado, pela repetição do adjetivo e
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O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 19

pela estrutura triádica dos seus componentes, o intuito de


parodiar os versos de “As cismas do Destino”. Percebe-
-se também como a rima do vocábulo “mandinga” com
“catinga”, do verso seguinte, denuncia a intenção lúdica
e jocosa.
A paródia ocorre quando “o estilo e os efeitos técni-
cos de um escritor” são usados, ainda que por ele mesmo,
com propósito distinto do uso original, isto é, relaciona-
dos com outro contexto -- no mais das vezes, indiferente
ou antagônico ao contexto anterior (Cf. Sant’Anna, 1985:
12). É próprio do uso paródico “inverter o significado
ideológico e estético do texto” (Ibid.: 56). Repetindo vocá-
bulos, imagens e construções que são típicos do seu esti-
lo, com vistas a um efeito superficial e meramente jocoso,
Augusto dos Anjos acaba decalcando a si mesmo.
É nos perfis de amigos, políticos ou demais perso-
nalidades da província que melhor se percebe a nota
humorística. Com intuito satírico e caricatural, Augusto
compõe sonetos e sobretudo quadras -- sendo estas, pela
estrutura e pela concisão, típicos exemplos de epigramas.
Os traços característicos do epigrama, como se sabe, são
a brevidade e a malícia, que se conjugam para o efeito sa-
tírico. O epigrama, segundo Geir Camps, expressa “um
conceito ou pensamento malicioso da maneira mais inci-
siva.” (1978: 65). Daí que, no geral -- conforme nos lembra
Massaud Moisés (1974: 191) --, se formalize numa quadra.
Vejamos alguns exemplos: na seção “Tipos” do Nonevar
publicado a 5 de agosto de 1909, Augusto perfila do se-
guinte modo, e bem ao seu estilo, o Sr. Everaldo Pessoa:
“Pretende publicar um Ramaiana/ Cujo herói principal o
intuito nutre/ De, com a raiva específica do abutre,/ Es-
trangular a canalhice humana.” (512). Mais sutil é o retra-
to que ele pinta, a 2 de agosto do mesmo ano, de um dos
smarts da época -- Joaquim Correia Lima: “Pontífice de
arcádias amorosas,/ Trata todas as moças com carinho/

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20 Chico Viana

E gosta mais do cálice das rosas/ Do que de mesmo de um


cálice de vinho.”(525). Ainda no Nonevar publicado a 5 de
agosto de 1909, ele compõe o seguinte retrato de Francis-
co Seráfico da Nóbrega, um dos políticos da terra: “É de-
putado, e admirador confesso/ Da orientação política do
Nilo,/ Quando ouve qualquer valsa de Camilo/ Soluça
com saudade do Congresso (533).
Enquanto observador de tipos e costumes, uma das
melhores colaborações de Augusto para o Nonevar é, sem
nenhuma dúvida, o retrato que ele faz de Manoel Tava-
res Cavalcanti, com o qual inicia a série dos Smarts. Nes-
sa pintura, destaca-se a articulação do individual com o
típico. Nela, a agudeza da observação se conjuga à ima-
ginação verbal, em função do que a imagem do dândi se
recorta vívida, perceptível em sua dimensão de caricatu-
ra. Augusto não caracteriza genericamente um persona-
gem da belle époque provinciana e brasileira. Também não
o identifica, a ele que “prefere à propaganda civilista/ A
propaganda dos chapéus da moda”, somente pela aliena-
ção política e social. Destacando-lhe a vaidade, o gosto de
ostentar e propagandear chapéus da moda -- mas também
caracterizando-o fisicamente, através de comparações ca-
ricatas e “preciosas” --, ele nos esboça concretamente a
sua figura, que resume na imagem de um “reclame ver-
tebrado”. Dessa forma, num juízo crítico que o traduz fí-
sica e psicologicamente, apresenta-nos o smart como um
comercial ambulante, uma espécie de propaganda de si
mesmo.
A seguir transcrevemos integralmente o soneto:

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O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 21

Smarts

Dilui-se em vários círculos de agrado


Este que, oferecendo um chapéu novo,
Dá à vista curiosíssima do povo
O aspecto de um reclame vertebrado.
Tem a aparência elipsoidal de um ovo,
Bebe champagne num cíato dourado!
Contra o seu carioquismo requintado
Versos epigramáticos não movo.

A idolatria ideal das moças goza,


Este miniaturesco Rui Barbosa
Que anda fazendo eternamente roda.

Mas, mostrando-se sempre economista,
Prefere à propaganda civilista
A propaganda dos chapéus da moda. (538)

Mais haveria a dizer sobre a colaboração de Augus-
to dos Anjos no Nonevar. Mas temos receio de esgotar -- se
é que já não o fizemos -- o tempo de vinte minutos que
nos foi concedido. Se a producão que aí circulou pouco
acrescenta à sua obra fundamental, ela se constuitui, to-
davia, num exercício não desprezível de intratextualida-
de, mediante o qual o poeta, consciente e inconsciente-
mente, reafirma temas obsessivos, escolhas vocabulares,
estruturais, e procedimentos retórico-estilísticos. Consti-
tui-se ainda no testemunho de outra faceta de Augusto,
que se revela aberto à observação mundana e capaz de
flagrar, e expressar jocosamente, o ridículo de figuras que,
à época, transitavam na província. Nem tudo nele, pois, é
tristeza. O que, bem pensado, não é tão misterioso assim.
Ou não haverá, no fundo de toda melancolia, um sorriso
-- mesmo que seja o sorriso, descarnado e irônico, de um
esqueleto?

SUMÁRIO
22 Chico Viana

REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto dos. Obra completa: volume único. Organização,


fixação do texto e notas por Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Aguilar,
1994.
CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. São Paulo: Cultrix,
1978.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo, Cultrix,
1974.
NÓBREGA, Humberto. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa:
UFPB, 1962.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & Cia. São
Paulo:Ática, 1985.
VIANA, Chico. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Au-
gusto dos Anjos. João Pessoa, UFPB/Editora Universitária, 1994

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SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 23

UMA BARCAROLA DE
AUGUSTO DOS ANJOS

É nosso propósito neste trabalho ler o poema “Bar-


carola”, de Augusto dos Anjos, inserido pelo poeta em
seu livro Eu, posteriormente transformado em Eu e outras
poesias. Como o título desse poema alude a uma espécie
ou subgênero cultivado pela poesia medieval, vamos de
início tecer, a respeito, breves considerações de ordem
formal e histórica.
A barcarola foi praticada por alguns trovadores gale-
go-porlugueses, entre os quais mencionam-se os nomes
de Martim Codax, Gomes Charinho e Joham Zorro.1 Se-
gundo Segismundo Spina2, a poesia luso-galega nos le-
gou, ao todo, quinze barcarolas, sendo que treze delas
apresentam estrutura paralelística.Também conhecida
por marinha, esse tipo de composição versa sobre assuntos
ligados ao rio ou ao mar -- e isto tem a sua sua justificati-
va:

Num povo como o de Portugal e Galiza, em sua grande


parte, nado e criado à beira-mar, este devia inspirar-lhe
atrativo especial; o espetáculo diário das suas águas, ora
tranqüilas e romansosas, ora agitadas e bravias, por for-
ça o levaria a compará-lo ao seu coração, que do mesmo
modo umas vezes pulsava sossegadamente, outras se
agitava sob o influxo de fortes paixões.3
1
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DICIONÁRIO de Literatura Brasileira, Portuguesa, Galega e Estilís-
tica Literária. Vol. II. p.540.
2
In: A lírica trovadoresca. p. 365.
3
NUNES, José Joaquim. Cantigas de amigo dos trovadores galego-
-portugueses. p. 25.

SUMÁRIO
24 Chico Viana

Essa alternância de impressões e sentimentos refle-


te-se nos temas das cantigas, que variam pouco. Vendo
nas águas um reflexo de suas tristezas e inquietações, a
mulher -- que nas cantigas de amigo, como se sabe, fala pelo
trovador -- toma-as como confidentes e lamenta a demora
do amante, que ainda não voltou do serviço militar. Ou
lhes pede notícias do amado ausente. Noutras vezes, es-
pera a embarcação que o trará de volta ou “...diz que seu
‘amigo’ (...), se soubesse que ela ia banhar-se no rio, far-
-lhe-ia companhia.”4.
É possível também que, em vez de se dirigir às
águas, a mulher se dirija à mãe ou à irmã, exortando-as
a olhar o mar e, nele, a “ver” o amigo que se foi. Numa
das cantigas de Martim Codax (CV 886), é para essas fi-
guras, alternativamente, que se dirige o apelo do eu líri-
co, conforme demonstra o fragmento a seguir: “Mia irmã
fremosa, treides de grado/ a la igreja de Vig’, u é o mar
levado; e miremo’-las ondas. //A la igreja de Vig’,u é o
mar salido,/ e verrá i, madre, o meu amigo:/ e miremo’-
-las ondas.” Nele, chama-nos a atenção a expressividade
do estribilho: “e miremo’-las ondas”, que se repete quatro
vezes. O contínuo movimento das ondas, imagem do que
continuamente se constitui e se desfaz, acentua a ilusão, a
aflita esperança com que a mulher “presentifica” o aman-
te.
Não deixa de haver, nesse processo de identificação
ou substituição, um enlace metonímico: foram as ondas
que levaram o seu amigo -- são elas que o vão trazer. As-
sim, as ondas com ele se confundem.
Modernamente, chama-se barcarola “todo poema
de caráter sentimental e melodioso, relacionado com o
mar,...”5. Ou nem isto. Em nossa pesquisa sobre os pre-
cursores medievais da poesia moderna, deparamo-nos
4
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. p. 56.
5
Idem. p. 57.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 25

com pelo menos um poema assim intitulado -- “Barcaro-


la” --, composto por Vinícius de Moraes, no qual o mar,
ou qualquer referência a “água”, está ausente. Mas é uma
exceção. No geral, na poesia do Romantismo para cá, a
esse termo se associam evocações, sugestões, pinturas de
alguma forma ligadas ao elemento marinho.
Entre os que cultivaram modernamente a barcarola,
destacam-se, além do autor objeto deste artigo, os nomes
de Almeida Garrett, Castro Alves, Alphonsus Guimara-
ens e Olegário Mariano. Nas composições desses auto-
res, a referência ao mar aparece -- mas, obviamente, com
sentidos, usos e efeitos distintos. Nos cantares medievais,
por ser um elemento pragmaticamente associado ao sofri-
mento da mulher, a quem levou o amigo ausente, o mar
tem um emprego, por assim dizer, mais concreto. Segun-
do frisamos há pouco, ele se constitui antes em metonímia
do que em metáfora. Na medida em que se desfaz como
referente geográfico e histórico, o mar cresce em resso-
nâncias significativas, amoldando-se ao imaginário, aos
ideais e à retórica dos diferentes estilos de época.
Assim é que em Castro Alves6, na barcarola intitulada
“O gondoleiro do amor”, o mar de início empresta alguns
dos seus atributos ao corpo da mulher: “Teus olhos (...)/
São ardentes, são profundos,/ Como o negrume do mar;”.
Posteriormente, aparece como uma imagem desse mesmo
corpo, com o qual se equaciona, lingüisticamente, através
do verbo de ligação: “Teu seio é vaga dourada/ Ao tíbio
clarão da lua,...”. Explica-se então a referência do título:
enquanto gondoleiro, o eu lírico singra metaforicamente
o corpo da mulher, com os sues prazeres e mistérios. Ou
melhor, com as suas alternâncias de luminosidade e es-
cureza, tempestade e calmaria, conforme refere o poema.
6
ALVES, Castro. Castro Alves. Sel. de textos, notas, estudos biográ-
fico, histórico e crítico e exercícios por Marisa Lajolo e Samira Cam-
pedlli. p. 20.

SUMÁRIO
26 Chico Viana

Em Alphonsus de Guimaraens7, como não poderia


deixa de ser, a alusão marinha tem ressonâncias quase
místicas. O que se tematiza não é mais a relação “homem
e mulher”, e sim um sublimado conúbio entre a lua e um
parceiro que não se define. Desmaterializado, o mar não
mais vale por suas águas, por sua grandeza imanente; ele
é tão-só o espelho, a trilha que reflete o movimento do
luar no céu; é antes símbolo do que metonímia ou metá-
fora. Em certa estrofe, o eu lírico indaga: “Para onde vai a
deusa errante,/ Macerada, cheia de mágoas?/ Sacode a
cabeleira ondeante/ E esparze lírios sobre as águas.”. E
na estrofe seguinte afirma, através inclusive da correspon-
dência cromática, a transcendência do elemento marinho:
“O céu é inteiramente azul,/ O mar está da mesma cor.”.
Que dizer da representação do mar na barcarola de
um autor como Augusto dos Anjos? Asssim como os dois
poetas citados, ele cultiva essa espécie literária adaptan-
do-a ao seu artesanato e ao seu temperamento. Por via
disto, em sua composição, a delicadeza nostálgica dá lu-
gar à angústia rude, dramática e concreta diante da mor-
te. Vejamos o poema, que se encontra na página 297 da
Obra Completa do autor, organizada pelo poeta e crítico
Alexei Bueno8:

Barcarola

Cantam nautas, choram flautas


Ouçam do alto a Lua cheia
Pelo mar e pelo mar
Que a sereia vai falar...
Uma sereia a cantar
Haja silêncio no mar
Vela o Destino dos nautas.
Para se ouvir a sereia.
7
GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia. p. 67.
8
Ver referência completa na Bibliografia.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 27

Espelham-se os esplendores
Que é que ela diz?! Será uma
Do céu, em reflexos, nas
História de amor feliz?
Águas, fingindo cristais
Não! O que a sereia diz
Das mais deslumbrantes cores.
Não é história nenhuma.

E em fulvos filões doirados


É como um réquiem profundo
Cai a luz dos astros por
De tristíssimos bemóis...
Sobre o marítimo horror
Sua voz é igual à voz
Como globos estrelados.
Das dores todas do mundo.

Lá onde as rochas se assentam.


“Fecha-te nesse medonho
Fulguram como outros sóis
“Reduto de Maldição,
Os flamívomos faróis
“Viajeiro da Extrema-Unção,
Que os navegantes orientam.
“Sonhador do último sonho!

Vai uma onda, vem outra onda


“Numa redoma ilusória
E nesse eterno vaivém
“Cercou-te a glória falaz,
Coitadas! não acham quem,
“Mas nunca mais, nunca mais
Quem as esconda, as esconda...
“Há de cercar-te essa glória!

SUMÁRIO
28 Chico Viana

Alegoria tristonha
“Nunca mais! Sê, porém, forte.
Do que pelo mundo vai!
“O poeta é como Jesus!
Se um sonha, outro se ergue e cai;
“Abraça-te à tua Cruz
Se um cai, outro se ergue e sonha.
“E morre, poeta da Morte!”

Mas desgraçado do pobre


-- E disse e porque isto disse
Que em meio da Vida cai!
O luar no Céu se apagou...
Esse não volta, esse vai
Súbito o barco tombou
Para o túmulo que o cobre.
Sem que o poeta o pressentisse!

Vagueia um poeta num barco.


Vista de luto o Universo
O Céu, de cima, a luzir
E Deus se enlute no Céu!
Como um diamante de Ofir
Mais um poeta que morreu,
Imita a curva de um arco.
Mais um coveiro do Verso!

A Lua -- globo de louça --


Cantam nautas, choram flautas
Surgiu, em lúcido véu.
Pelo mar e pelo mar
Cantam! Os astros do Céu
Uma sereia a cantar
Ouçam e a Lua Cheia ouça!
Vela o Destino dos nautas!

O que primeiro nos chama a atenção é que se tra-


ta de um dos raros poemas de Augusto dos Anjos com-

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 29

posto em redondilha maior. O poeta privilegiou em sua


obra, composta basicamente de sonetos e de peças longas,
o verso decassilábico. Ao praticar uma forma (ou fôrma)
antiga, ligada ao Medievo, certamente ele procurou se
inserir na tradição da lírica galego-portuguesa, optando
por um metro popular. Sabe-se que o verso redondilho
maior “era e é, por excelência, o metro da poesia popular
hispânica. Daí o seu largo uso nas cantigas de amigo e de
escánio...”9, bem como nos romances antigos e modernos.
A barcarola que ora estudamos compõe-se de dezoito
quadras, sendo que a última repete a primeira. Num to-
tal de 72 versos, após a descrição de um cenário sombrio
(estrofes 1 a 4), seguida de filosóficas considerações sobre
o sentido da aventura humana (estrs. 5 a 7), Augusto dos
Anjos tematiza o encontro entre o “poeta” e a sereia (estrs.
8 a 15). Nesse encontro, o “poeta” não fala, só ouve. E o
que ele ouve, além da veemente censura ao seu idealismo
e às suas ilusões de glória, é um sombrio vaticínio acer-
ca do futuro que o espera, bem como a intimação a que
se conforme e saiba, à maneira de Cristo, morrer pelos
homens. As estrofes finais (16 e 17), antes de fechar-se o
poema, referem a morte do “poeta” -- o que nos dá a im-
pressão, logo confirmada, de que a “sereia” representa o
destino.
Do ponto de vista estrutural, essa barcarola decal-
ca outro poema do paraibano -- “As Cismas do Destino”.
Também neste ocorrem a pintura de um cenário, reflexões
sobre o sentido da vida humana e, antes do desfecho, a
manifestação de uma voz suprema e funda, carregada de
presságios, a qual abomina a figura do “poeta” e lhe pre-
vê a morte. O eu lírico define-a, explicitamente, como “o
eco particular do (seu) Destino”(218)10. Eis uma pequena
9
DICIONÁRIO de Literatura... p. 543.
Os números entre parênteses referem-se à edição da Obra Completa
10

de Augusto dos Anjos, cuja referência completa se encontra na Biblio-

SUMÁRIO
30 Chico Viana

amostra do que ele reverbera: “Poeta, feto malsão, cria-


do com os sucos/ De um leite mau, carnívoro asqueroso,
(...)// Teu pé mata a uberdade dos caminhos/ E esteriliza
os ventres geradores!” (221). Em outro estudo sobre o po-
eta11, tentamos mostrar que esse exagero auto-acusatório,
essa profunda prda de auto-estima, reflete o menospre-
zo que o melancólico tem por si. Em constante luto, ele
transfere a si mesmo as recriminações originalmente en-
deraçadas ao objeto perdido, com o qual veio a se identifi-
car. Também projeção da consciência culpada é o desejo
de se sacrificar à maneira de Cristo, presente tanto nas
“Cismas do Destino” quanto no poema em estudo (vv.
57 a 60). Em várias passagens da poesia de Augusto dos
Anjos, por sinal, é visível a obsessão de se identificar com
Jesus e, assumindo a dor de todos os homens, redimir a
humanidade.
Lendo o poema do paraibano, uma referência de or-
dem intertextual se impõe: a que o aproxima da famosa
composição de Garrett, “Barca Bela”, também uma barca-
rola. Em ambos ocorre o motivo do canto da sereia, que por
sinal remonta ao Canto XII da Odisséia. No texto de Ho-
mero cantam “as sereias”, no plural, mas o propósito des-
sas entidades mitológicas é o mesmo que no de Garrett:
seduzir, enfeitiçar os navegantes, levando-os à morte.
Em ambas as composições, do mesmo modo, obser-
va-se o emprego do verbo “velar”. Na segunda estrofe
de “Barca Bela”, lê-se: “Não vês que a última estrela/ No
céu nublado se vela?/ Colhe a vela,/ Ó pescador!”, onde,
num sutil jogo retórico, à terceira pessoa do singular des-
se verbo (velar) segue-se o seu homônimo perfeito, de-
signativo do artefato que estendido, e pela força do ven-
to, impulsiona a embarcação no mar. Em Augusto dos
grafia.
11
Referimo-nos ao livro O evangelho da podridão: culpa e melancolia
em Augusto dos Anjos.(Ver Bibliografia).

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 31

Anjos, logo na primeira estrofe, está escrito que “Uma


sereia a cantar/ Vela o Destino dos nautas.” -- e, nele, o
emprego desse verbo torna-se mais expressivo devido à
ambigüidade. A sereia tanto esconde, obscurece (sentido
que o termo tem em Garrett), quanto vigia e acompanha
os navegadores. Ou seja: tem, em comum com o destino,
o mistério e a inexorabilidade.
Comentando o poema do português, Wolfgang
Kayser observa que “...A sereia é um ser concreto no
mundo da poesia, mas é também a concretização dos pe-
rigos que esperam o pescador no mar.”12. Se se concebe
a travessia marítima como uma alegoria do percurso do
homem na Terra, é possível entender esses perigos como
sendo, sobretudo, de natureza instintual. Ou seja: ligados
à sedução do desejo. (O poema encoraja a primeira inter-
pretação, diga-se de passagem, ao referir que o vaivém
das ondas -- imagem sobre a qual voltaremos a falar -- é
uma “Alegoria tristonha/ Do que pelo mundo vai!” - vv.
21,22).
Em breve ensaio sobre a melancolia de Ulisses, o
qual enfoca o mencionado Canto XII da Odisséia, Olgá-
ria Matos sugere que “...As sereias simbolizam muito do
que nas mulheres é atraente e terrível para os homens.”13.
O que se teme nelas, então, é o irresistível apelo erótico
-- armadilha com que, enquanto objetos de desejo, elas
buscam enredar e subjugar o sujeito; “...as sereias são o
passado e a tentação de retorno a ele. Prometem plenitu-
de e felicidade, mas ameaçam a autonomia do sujeito.”14.
Essa idéia de enredamento e subjugação evidencia-
-se no poema de Garrett, onde o eu lírico acaba exortando,
12
In: KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária.
p. 37.
13
In: MATOS, Olgária. A melancolia de Ulisses: a dialética do Ilumi-
nismo e o canto das sereias. In: CARDOSO, Sérgio et alii. Os sentidos
da paixão. p. 149.
14
Idem, ibidem. p. 146.

SUMÁRIO
32 Chico Viana

desesperadamente, o pescador a fugir do canto perigoso e


fatal: “Deita o lanço com cautela,/ Que a sereia canta bel-
ca.../ Mas cautela, / Ó pescador!// Não se enrede a rede
nela/ Que perdido é remo e vela/ Só de vê-la, / Ó pes-
cador!// Pescador da barca bela,/ inda é tempo, foge de
ela./ Foge de ela,/ Ó pescador!”15. Em Augusto dos An-
jos, o motivo erótico latente transplanta-se em perspecti-
va fúnebre. O sensualismo, em dor. A voz da sedução, na
invectiva ameaçadora do destino. E o que é o destino? In-
vocá-lo e temê-lo é reconhecer e reafirmar a culpa. Segun-
do observa Freud16, o destino é a última entidade, na série
iniciada com os pais, que traduz o poder cerceador do su-
perego. Confundido com o destino, o canto da sereia “não
é uma história de amor feliz” (v. 42); ao invés de maravi-
lhar ou seduzir, ele “...É como um réquiem profundo/ De
tristítissimos bemois.../ Sua voz é igual à voz/ Das dores
todas do mundo.” (vv. 45-48). Afirmando que o canto da
sereia “não é uma história de amor feliz” (grifo nosso), o
poeta não deixa de reconhecer nele a promessa de satisfa-
ção amorosa. No entanto, nega esse reconhecimento -- ou
melhor: denega-o, no sentido psicanalítico, só permitindo
que ele se expresse sob a forma negativa. “Por meio do
símbolo da negação”, conforme observa Freud, “o pensa-
mento liberta-se das limitações do recalcamento...”17.
O eu lírico ignora ou finge ignorar o apelo da sereia,
porque é próprio do melancólico defender-se do erotis-
mo e preferir Tanatos. Configurando o campo semântico
da morte, constam no poema em estudo as referências à
cor negra, presentes sobretudo nas últimas estrofes: “O
luar no Céu se apagou...”, “Vista de luto o Universo”; as
15
Transcrito em KAYSER , Wolfgang. Op. cit. p. 35.
16
Cf. FREUD, Sigmund. O problema econômico do masoquismo. In:
Obras completas. V. xix. p. 209.
17
Apud LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. p.
295.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 33

perífrases com que a sereia designa o “poeta”: “Viajeiro


da Extrema-Unção”, “Sonhador do último sonho”, “poeta
da Morte” e “coveiro do Verso”; e todo um acervo lexi-
cal ligado à idéia de desastre, cemitério e miséria: “hor-
ror, tristonha, desgraçado, túmulo, silêncio, tombou, luto
etc.”. As palavras da sereia constituem o limite a partir do
qual o cenário alegoricamente se inverte, ou seja, deixa
de figurar o brilho e o esplendor cromático e passa a tra-
duzir a escuridão e a ruína. É próprio da alegoria, figura
essencialmente ligada à melancolia e à culpa, representar
a natureza como escombros e escuridão. Antes de falar a
sereia, a lua espelhava os seus raios nas águas, “fingindo
cristais”; depois do sombrio vaticínio, “o luar no Céu se
apagou” e, simbolizando um infortúnio supremo, o Uni-
verso “(vestiu-se) de luto”.
Ainda no plano lexical, evidencia-se nessa barcarola
a preferência por vocábulos preciosos ou eruditos, refle-
xo da influência que, sobretudo na primeira fase do po-
eta, exerceu o Simbolismo. São exemplos desses termos:
“nautas, cristais, fulvos, flamívomos, Ofir, réquiem, via-
jeiro etc”. Quanto à estrutura, registra-se outro recurso
que é característico de Augusto dos Anjos: o de alternar
elementos descritivos com genéricas considerações de or-
dem filosófica -- atitude essa, por sinal, também típica do
melancólico, que se compraz em observar, em refletir so-
bre os homens e as coisas. Nas estrofes V e VI, por exem-
plo, é o elemento natural, animizado, que serve de ima-
gem à reflexão sobre o destino humano: “Vai uma onda,
vem outra onda/ E nesse eterno vaivém/ Coitadas! não
acham quem, /Quem as esconda, as esconda...// Alego-
ria tristonha/ Do que pelo mundo vai!/ Se um sonha e se
ergue, outro cai;/ Se um cai, outro se ergue e sonha.”.
Também se percebe, no poema em estudo, outro dos
traços estilísticos caros ao poeta, que é o de repetir vocá-
bulos e expressões -- seja na mesma ordem, seja na ordem

SUMÁRIO
34 Chico Viana

inversa. Disso resulta um curioso efeito arquitetônico, o


qual parece repercutir no ritmo. O discurso avanca aos
poucos, acumuladamente, retomando e dispondo em no-
vos espaços os termos já referidos. Às vezes essas reite-
rações têm o propósito de, mediante as diferentes locali-
zações das “formas de palavras”, reiterar concretamente,
em termos de espaço, o sentido. Noutras vezes a intenção
é enfática, ou lúdica, ou musical como no verso “Quem as
esconda, as esconda...”. Vejamos outros exemplos: logo
no início da composição, repete-se o adjunto adverbial
de lugar “pelo mar”; a repetição da palavra “onda”, em
“vai uma onda, vem outra onda” (v. 17), sugere o “vai-
vém” expresso na linha seguinte, o movimento alternado
e contínuo das vagas no mar; a construção em quiasmo
dos versos 23 e 24 (“Se um sonha e se ergue, outro cai;/
Se um cai, outro se ergue e sonha.”), além de configurar
intenção análoga à do exemplo anterior, constitui-se em
amostragem do ludismo ou, poderíamos mesmo dizer, do
barroquismo do poeta.
Destacamos por fim os recursos ligados ao estrato
fônico, um dos mais explorados por Augusto dos Anjos.
São conhecidas as suas aliterações, assonâncias, sístoles e
sinéreses, com as quais o poeta, bem expressionisticamen-
te, tensiona e dificulta a emissão vocabular. Um pequeno
exemplo disto se encontra nos últimos versos citados; ri-
cos em aliterações (da sibilante surda) e em sinéreses, eles
parecem transbordar do metro heptassilábico. Dignos de
nota, também, são os enjambements presentes nos sexto e
nono versos, em função dos quais o poeta rima preposi-
ção, ou forma contraída de preposição mais artigo, com
substantivo (“por” com “horror” e “nas” com “cristais”,
respectivamente).
A título de conclusão, reiteramos o que quisemos
demonstrar com o presente trabalho, ou seja: que não
somente de ruptura e dissonância vive a poesia moder-

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 35

na. A literatura se faz pelo diálogo entre modernidade


e tradição, e se renova persistindo. Não é raro que auto-
res contemporâneos resgatem formas e modelos antigos,
enriquecendo-os com novos temas, novos procedimentos
artesanais e, sobretudo, com novos matizes de sensibili-
dade -- conforme demonstra o aproveitamento de uma
espécie medieval pelo “poeta da morte e da melancolia”.

REFERÊNCIAS

ALVES, Castro. Castro Alves. Seleção de textos, notas, estudos


biográfico, histórico e crítico crítico e exercícios por Marisa La-
jolo e Samira Campedelli. São Paulo: Abril Educação, 1980.
(Literatura Comentada).
ANJOS, Augusto dos. Obra completa: volume único. Organiza-
ção, fixação do texto e notas por Alexei Bueno. Rio de Janeiro,
Imago, 1994.
DICIONÁRIO de Literatura Brasileira, Portuguesa, Galega e
Estilís
tica Literária. Vol. II. Dir. Jacinto do Prado Coelho. Porto: Fi-
gueirinhas, 1978.
FREUD, Sigmund. O problema econômico do masoquismo. In.
---. Obras Completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p.
197-212.
GUIMARANES, Alphonsus de. Poesia. Por Gladstone Chaves
de Melo. Rio de Janeiro Janeiro: Agir, 1958. (Nossos Clássicos,
19).
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. São
Paulo: Martins Fontes, 1976.
LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. São
Paulo, Martins Fontes, 1991.
MATOS, Olgária. A melancolia de Ulisses: a dialética do Ilumi
nismo e o canto das sereias. In: CARDOSO, Sérgio et alii. Os
sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. p.
141-57.

SUMÁRIO
36 Chico Viana

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo:


Cultrix, 1974.
NUNES, José Joaquim. Cantigas de amigo dos trovadores galego-
-portugueses. Vol. I. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973.
SPINA, Segismundo. A líria trovadoresca. 3. ed. refund. e atua-
liz. São Paulo: EDUSP: 1991. (Coleção Texto & Arte).
VIANA, Chico (Francisco José Gomes Correia). O evangelho da
podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos. João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 1994.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 37

A ALEGORIA EM
AUGUSTO DOS ANJOS

Antes de enfocar as representações alegóricas em


Augusto dos Anjos, devemos precisar o sentido com que,
neste trabalho, designamos o termo alegoria. Etimologica-
mente, alegoria significa “outro discurso”; do ponto de
vista retórico, ela consiste numa espécie de metáfora su-
cessiva, encadeada, onde vários objetos ou conceitos no
plano real aludem a idêntica seqüência no plano figura-
do, ou poético. Lausberg a conceitua como uma “metáfo-
ra continuada como tropo do pensamento”18, ressaltando
que, na alegoria, um pensamento é substituído por outro,
com o qual está ligado por uma relação de semelhança.
João Adolfo Hansen distingue dois tipos de alegoria
– uma que ele chama de construtiva, ou retórica, e outra
interpretativa ou hermenêutica19. Enquanto a primeira
constitui uma “técnica metafórica de representar e perso-
nificar abstrações”, a segunda, também chamada de “ale-
goria dos teólogos”, é antes um modo de interpretar os
textos sagrados. Como tal, liga-se à hermenêutica sagra-
da; antes de ser expediente transfigurador do discurso,
ela existe para sancionar um sentido prévio, absoluto, que
em última instância a explica.
Das duas acepções do termo alegoria, interessa-nos
obviamente a primeira. Ou seja, a alegoria como expe-
diente retórico, caracterizado pela transposição contínua
18
Apud HANSEN (1986) p. 1.
19
Idem, ibidem.

SUMÁRIO
38 Chico Viana

do sentido próprio no figurado. Dentro dessa conceitua-


ção genérica, centraremos nosso interesse num tipo espe-
cial de alegoria – o que foi praticado pelo barroco. Pois a
ele, conforme demonstraremos, vincula-se grande parte
dos procedimentos retórico-poéticos presentes em Eu e
outras poesias.
Enquanto manifestação barroca, a alegoria se opõe
ao símbolo e reflete a crise do sujeito após o período re-
nascentista. Durante a Renascença prevaleceram, como se
sabe, os ideais clássicos consubstanciados no humanismo
greco-latino, do qual o símbolo era a típica representação.
Suas características eram a clareza, a brevidade, a graça e
a beleza. O símbolo era breve e claro porque representava
“a idéia em sua forma sensível, corpórea”20; se o corpo
podia traduzir o espírito, era porque a natureza, e com ela
o homem, não se percebia culpada. O “símbolo plástico”,
do qual o melhor exemplo é a escultura grega, traduz o
acordo entre essência e natureza, alma e corpo; segundo
Creuzer, citado por Walter Benjamin, ele reflete o mo-
mento em que “a essência não aspira ao excessivo, mas,
obediente à natureza, adapta-se à sua forma, penetrando-
-a e animando-a”21.
Esse acordo se quebra por força do pecado original.
Devido a ele, o homem arrasta a natureza em sua queda,
instaurando-se então a inconciliável dualidade corpo x
alma. Correspondendo ao domínio do natural e do de-
caído, o corpo humano não pode mais representar um
ideal de harmonia e beleza. E a essência, que antes nele
se continha, perdendo o seu correspondente sensível, vai
aspirar ao desmedido, ao excessivo. Nessa estética do
desmedido e do excessivo, que caracteriza a alegoria, con-
siste a arte barroca. O excesso decorre do sentimento de
20
BENJAMIN (1984) p. 186.
21
Ibidem.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 39

desacordo, de diferença, cuja matriz foi a nossa primeira


transgressão. Conforme nos lembra Rouanet, “...O saber
do alegorista é um saber culpado. Ele quer salvar a criatu-
ra, embora saiba que ela é culpada, por causa do pecado
original.”22.
O excesso é, de fato, um elemento característico da
estética barroca. Percebido como “ultrapassagem de um
limite”23, ele traduz a quebra da harmonia e do rigor que
caracterizam o contorno, isto é, a medida pela qual se de-
fine a representação oposta, ou clássica. O barroco ou ne-
obarroco, conforme nos ensina Omar Calabrese, é uma
época da cultura “ ... em que (...) o prazer ou a necessida-
de é (...) tender para o limite e provar o excesso”24, com
vistas à contestação de um valor ou grupo de valores.
Culpa, excesso, desejo de construir uma nova ordem
são marcas da poesia de Augusto dos Anjos, conforme
procuramos demonstrar em nossa Tese, hoje livro, O evan-
gelho da podridão25. Nosso propósito agora não é investigar
a melancolia do poeta, como então fizemos, mas apontar
algumas imagens que, constituindo-se em representações
alegóricas, vinculam-no à estética barroca.
Augusto um barroco? Um barroco fora de época?
Ora, antes de ser um momento histórico datado, o bar-
roco é uma ocorrência que se repete ao longo do tempo.
Sarduy o define como “uma atitude generalizada e uma
qualidade formal dos elementos que o exprimem” e reco-
nhece, nessa perspectiva, que “...pode haver barroco em
qualquer época da civilização”26.
Conforme nos demonstra Walter Benjamin, melan-
22
Cf. BENJAMIN (1984) p. 42.
23
CALABRESE (1987) p. 63.
24
Idem, ibidem, p. 64.
25
Ver Bibliografía.
26
Apud CALABRESE (1987) p. 27.

SUMÁRIO
40 Chico Viana

colia e barroco se correspondem. O olhar barroco é tam-


bém, como o olhar melancólico, dilacerado pela culpa. O
melancólico, segundo nos instrui Freud, recrimina-se pela
perda do objeto – e o barroco, pela visão e o reconhecimen-
to de tudo o que, na história, é “prematuro, sofrido e ma-
logrado”. No plano da representação barroca ou alegóri-
ca, marcado pela melancolia, a história se confunde com a
natureza e aparece como “figuração de ruínas”; conforme
observa Sérgio Paulo Roaunet, “...para construir a alego-
ria, o mundo tem de ser esquartejado. As ruínas e frag-
mentos servem para criar a alegoria”27.
A representação alegórica, pois, constitui uma esté-
tica de fragmentação e de ruptura. O alegórico não perse-
gue o harmônico, o sublime, o proporcionado; ele se vol-
ta para as coisas, para os objetos, que visa resgatar. E os
resgata, justamente, constituindo-os em alegorias. É pela
transfiguração alegórica que os objetos, por assim dizer,
se salvam. Enquanto fragmentos, eles indiciam uma to-
talidade perdida, da qual o artista é nostálgico e que só
se reconstitui no plano da beleza, ou seja, por intermédio
da sublimação – já que, pela sublimação, o objeto adquire
uma espécie de transcendência, ou seja, ascende a uma
forma de absoluto. No caso de Augusto dos Anjos, a nos-
talgia da totalidade, ou mais propriamente da Unidade
perdida, reveste-se de uma obsessão mística e se torna
patente, por exemplo, na angústia com que ele procura
“esse danado Numero Um/ que matou Cristo e que ma-
tou Tibério”.
Tentemos sumariamente apontar alguns exemplos
de alegoria no poeta paraibano. Dentre as imagens por
que ela se manifesta, destaquemos as que enfatizam a ob-
sessão pela morte, a fratura do significante e, para usar uma
27
Apud BENJAMIN (1984) p. 40.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 41

expressão de Julia Kristeva, a “desconstituição da matéria”28,


já que o melancólico tende a projetar na natureza, nas coi-
sas, a dissolução dos seus elos psíquicos.
A obsessão pela morte é um traço característico do
alegorista. Segundo Walter Benjamin, “... a alegorização
da physis só pode consumar-se em todo o seu vigor no
cadáver.”29. E Rouanet observa que “... a morte é o conte-
údo mais geral da alegoria barroca; (...) o esquema básico
do alegorista é transformar o vivo no morto.”30. É próprio
dele ver nos objetos as ruínas, e nas pessoas, a imagem do
“cadáver potencial” que todos somos. E somos cadáveres
potenciais porque a morte já está inscrita em nossas vidas,
comprometendo-as desde o início. O olhar melancólico
jamais se alheia dessa lúgubre evidência.
Augusto dos Anjos refere a obsessão com a morte em
vários de seus textos, nos quais são visíveis tanto a recusa
ao erotismo quanto a fixação no cadáver em que iremos
nos transformar. Em “Apóstrofe à carne”, por exemplo,
o eu lírico diz que, “ao (pegar) nas carnes do (seu) rosto/
(Sente) o fim da orgânica batalha:/– Olhos que o húmus
necrófago estraçalha,/ Diafragmas, decompondo-se ao
sol posto...”31. Em “Mistérios de um fósforo”, escreve que
“... (vê), como nunca outro homem viu,/ Na anfigonia
que me produziu/ Noniliões de moléculas de esterco.”
(p.176)32. E adiante, no mesmo poema, remata: “... eu vejo
enfim, com a alma vencida,/ Na abjeção embriológica da
vida/ O futuro de cinza que me aguarda!”.
28
Cf. “ Lês abîmes de l’âme”; Propos recueillis par Dominique A Gri-
soni. In: MAGAZINE LITTÉRAIRE, p. 18.
29
BENJAMIN (1984) p. 241.
30
Ibidem, p. 38.
31
Ver a interpretação deste poema mais adiante, no estudo “A estética
dissonante de Augusto dos Anjos’.
32
Os números entre parênteses referem-se ao primeiro título da Bi-
bliografia.

SUMÁRIO
42 Chico Viana

Um dos exemplos típicos de alegoria barroca está


nestes versos de Cristoph Männling, que vê o mundo
como “uma grande loja/ Um posto aduaneiro da mor-
te/ Em que o homem é a mercadoria que circula/ A
morte, a extraordinária negociante,/ Deus, o contador
consciencioso,/ E a sepultura, um armarinho e armazém
credenciado.”33. Sem nunca ter possivelmente lido o poeta
alemão, Augusto dos Anjos quase repete um dos termos
dessa imagem, ao afirmar que “a morte .../ é a alfândega,
onde toda a vida orgânica/ Há de pagar um dia o último
imposto!” (p. 100). “Posto aduaneiro” em um, “alfânde-
ga” em outro – efeito de sombrias afinidades eletivas. Em
ambos, a mesma idéia de que o imposto da vida é a mor-
te, e de que esse ninguém vai conseguir sonegar. Melhor
aceitá-lo, afeiçoar-se a ele, conforme o eu lírico de “Último
credo”, que diz amar o coveiro, “ – este ladrão comum/
que leva a gente para o cemitério.” (p. 90).
Se o homem evolui para a morte, o corpo marcha
para se transformar em esqueleto – em caveira. Daí outro
traço característico do olhar alegórico, que é transpor a
superfície corporal e se concentrar nas vísceras ou, sobre-
tudo, nos ossos. Estes constituem o espólio a que a morte
nos reduz. O esqueleto é concreção, limite, estágio último
da “ultrafatalidade de ossatura” a que estamos submeti-
dos; a personagem do soneto “Decadência” constata que,
após haver perdido tudo, “... Só lhe restam agora o último
dente/ E a armação funerária das clavículas!” (119). Esse
tipo de representação envolve também o corpo feminino,
cuja sensualidade exacerba a culpa do melancólico; Gusta-
ve Flaubert chega a confessar: “...A contemplação de uma
mulher nua me faz sonhar com o seu esqueleto.”34(14). E o
próprio Augusto descarna o corpo da meretriz, radiogra-
33
Cf. BENJAMIN (1984) p. 181.
34
In: MAGAZINE LITTÉRAIRE, p. 45.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 43

fando-lhe o ato sexual na irônica e grotesca imagem que


se segue: “Nesse espolinhamento repugnante/ O esque-
leto irritado da bacante/ Estrala... Lembra o ruído har-
to azorrague/ A vergastar ásperos dorsos grossos./ E é
aterradora essa alegria de ossos/ Pedindo ao sensualismo
que os esmague!”. (p. 192).
Outro dos recursos usados por Augusto dos Anjos
é a fragmentação do significante. Através dela, ressalta-
-se “... o princípio dissociativo e pulverizador, que está
na base da concepção alegórica”35. Julia Kristeva observa
que o estrato fônico é particularmente adequado a tradu-
zir as rupturas que, como inscrições intrapsíquicas, refle-
tem o trabalho da pulsão de morte. O alegórico fratura o
corpo da palavra, transferindo à corporeidade lingüística
os estilhaçamentos de que, na sua ótica, é feito o corpo
do mundo. Com o barroco, através da alegoria, a lingua-
gem é levada antes a significar do que a comunicar. E a
significação se consegue, basicamente, com a “antítese”
entre som e sentido; com o excesso de forma interferindo,
saturando o que se quer dizer. A poética de Augusto dos
Anjos, conforme defendemos em nossa Tese, está marca-
da por um excesso de representação fonossemântica.
Através sobretudo das aliterações e das sinéreses,
Augusto tensiona ao máximo a articulação fônica. Obser-
ve-se, no exemplo seguinte, como os grupos consonantais
em /r/ parecem reproduzir o movimento dos ossos que
dançam: “Os esqueletos desarticulados,/ Livres do acre
fedor das carnes mortas/ Rodopiavam com as brancas tí-
bias tortas/ Numa dança de números quebrados!” (p. 72).
Neste outro, onde ele acusa a chegada do “Filósofo Mo-
derno”, a angustiante monotonia infernal nos é sugerida,
ou reforçada, pelo excesso de fonemas /e/: “Aí vem sujo,
a coçar chagas plebéias,/ Trazendo no deserto das idéias/
35
BENJAMIN (1984) p. 230.

SUMÁRIO
44 Chico Viana

O desespero endêmico do inferno...” (p. 52). No exemplo


seguinte, ainda, o afã lúbrico e pecaminoso do sátiro pare-
ce intensificar-se através da consoante gutural; a sua sen-
sualidade “...Lembra a fome incoercível que escancara/ A
mucosa carnívora dos lobos.” (p. 54).
Tratemos, para finalizar, das imagens de desconsti-
tuição da matéria. Em Augusto dos Anjos, elas em grande
parte se inserem no domínio da doença, que parece acome-
ter a matéria orgânica e inorgânica. Lacan nos lembra que
o gosto pelo mórbido é característico do universo da falta;
no contexto de Eu e outras poesias, as imagens que proje-
tam a fragmentação no mundo natural, exterior, não são
senão reflexos de um desmoronamento interior, o qual
reflete a tirania do superego. O que primordialmente se
desconstitui é a unidade psíquica do eu lírico, cujo estilha-
çamento se reflete no corpo (como doença) e no mundo
– no corpo do mundo, também este doente.
É no bojo de tais cortes que, ao símbolo, sucede a
alegoria – a figura por excelência da ruptura e da crise.
Atentando nas articulações simbólicas do processo, Julia
Kristeva relaciona a fragmentação com o abandono do
“Absoluto do Sentido”36. A melancolia barroca ou mo-
derna, segundo outra estudiosa francesa, “...nasce nessa
grande cesura histórica dos séculos dezesseis e dezessete,
onde a língua perde as suas referências ontológicas...”37.
Reduzida a um “molambo”, “paralítica” (para referir ou-
tra imagem de nosso poeta, no soneto “A idéia”) a língua
não mais diz o ser. Estamos, pois, diante de uma crise do
homem em face do Ser Absoluto, com o qual os elos, ne-
cessariamente simbólicos, foram cortados. Daí se vê que
o barroco não se opõe apenas à Antiguidade greco-latina;
36
Cf. MAGAZINE LITTÉRAIRE, p. 17.
37
Christine Buci-Glucksmann, “Lo cogito mélancolique de la moder-
nité”. Ibidem, p.38.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 45

opõe-se também à própria visão de mundo medieval,


onde esses liames de alguma forma eram mantidos.
As imagens de doença e destruição disseminam-se
ao longo de toda obra de Augusto dos Anjos. Destaque-
mos dois significativos exemplos: no final de “As cismas
do Destino”, a impressão geral é de paralisia e desalen-
to. Observe-se a referência ao “mecanismo moribundo” a
que se reduz um mundo sem “teleolologia” ou transcen-
dência. Observe-se também como as referências à “Na-
tureza”, ao “ludíbrio” e ao “luto” parecem vincular esse
quadro à nossa culpa primordial, de que se deseja uma
espécie de purificação pelo fogo: “O mundo resignava-
-se invertido/ Nas forças principais do seu trabalho.../ A
gravidade era um princípio falho,/ A análise espectral ti-
nha mentido!// O Estado, a Associação, os Municípios/
Eram mortos. De todo aquele mundo/ Restava um meca-
nismo moribundo/ E uma teleologia sem princípios.//
Eu queria correr, ir para o inferno,/ Para que, da psiquê
no oculto jogo,/ Morressem sufocadas pelo fogo/ Todas
as impressões do mundo externo!// Mas a Terra negava-
-me o equilíbrio.../ Na Natureza, uma mulher de luto/
Cantava, espiando as árvores sem fruto,/ A canção pros-
tituta do ludíbrio!”.
No final de “Os doentes” também se percebe, num
primeiro momento, o mesmo clima de destruição. A ruí-
na, o cansaço, a doença generalizada relacionam-se estrei-
tamente com a culpa, segundo se depreende da referência
a um céu “vingador”; se há vingança, é que houve ofensa,
agravo, falta: “Um céu calamitoso de vingança/ Desagre-
gava, déspota e sem normas,/ O adesionismo biôntico
das formas/ Multiplicadas pela lei da herança!// A ruína
vinha horrenda e deletéria/ Do subsolo infeliz, vinha de
dentro/ Da matéria em fusão que ainda há no centro,/

SUMÁRIO
46 Chico Viana

Para alcançar depois a periféria!// Contra a Arte, oh!


Morte, em vão teu ódio exerces!/ Mas, a meu ver, os sáxe-
os prédios tortos/ Tinham aspectos de edifícios mortos/
Decompondo-se desde os alicerces!// A doença era geral,
tudo a extenuar-se/ Estava. O Espaço abstrato que não
morre/ Cansara... O ar, que em colônias fluidas, corre,/
Parecia também desagregar-se!” (p. 111).
Segundo Omar Calabrese, comentando a estética ne-
obarroca, “... qualquer ação ou indivíduo excessivo quer
pôr em causa uma ordem qualquer, talvez destruí-la, ou
construir outra nova.”38. Augusto dos Anjos é um bom
exemplo desse princípio geral e daí se firma como um
remanescente barroco. Em seus torneios excessivos, ale-
góricos, através dos quais “deforma” a linguagem, ele
rejeita a nossa transgressão primeira, o pecado original,
e fantasia o emergir de um homem novo. Uma das passa-
gens que melhor ilustram atitude é sem dúvida o final de
“Os Doentes”, onde às imagens de destruição sucedem-se
estes versos, de renovação e esperança: “O letargo larvá-
rio da cidade/ Crescia. Igual a um parto, numa furna,/
Vinha da original treva noturna,/ O vagido de uma outra
Humanidade!// E eu, com os pés atolados no Nirvana,/
Acompanhava, com um prazer secreto,/ A gestação da-
quele grande feto,/ Que vinha substituir a Espécie Hu-
mana!” (112).

38
CALABRESE (1987) p. 72.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 47

REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto dos. Eu, outras poesias e poemas esquecidos. Tex-


to e nota de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: São José, 1971.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução,
apresentação e notas por Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Bra-
siliense, 1984.
CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70,
1987. (Arte & Comunicação).
HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da
metáfora. São Paulo: Atual, 1986. (Série Documentos).
MAGAZINE LITTÉRAIRE; Littérature e mélancolie (dossier).
N. 244, juillet-août 1987.
VIANA, Chico. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em
Augusto dos Anjos. João Pessoa: UFPB/Editora Universitária,
1994.

SUMÁRIO
48 Chico Viana

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 49

A ESTÉTICA DISSONANTE
DE AUGUSTO DOS ANJOS

Introdução

A cada nova edição de Eu e outras poesias, confirma-


-se o valor estético, a perenidade e a popularidade da líri-
ca de Augusto dos Anjos. Ao mesmo tempo, faz-se opor-
tuno refletir sobre os motivos de tal consagração – embora
seja certo, de um lado, que não se vai dizer muita coisa de
novo; e, do outro, que a poesia do paraibano, com a sua
beleza áspera e estranha, continuará a se constituir em
desafio para os seus críticos e intérpretes. Embora discor-
dem sobre um aspecto ou outro da obra, todos são unâ-
nimes em destacar-lhe a originalidade, o vigor expressivo
e o ecletismo que permite classificar Augusto dos Anjos
como um poeta de confluências39, ou ainda de transição,
entre o estilo oitocentista e a modernidade.

Cientificismo e prosaísmo

Nosso poeta começou simbolista, mas aos poucos


foi-se despojando do convencionalismo que o fazia imitar
Cruz e Sousa e, sobretudo ao contato com o positivismo
da Faculdade de Direito do Recife, incorporou aos seus
versos os elementos científicos e prosaicos que lhe marca-
riam a obra. Do ponto de vista léxico-semântico, e tendo
em vista os peculiares efeitos poéticos, há que distinguir
39
Cf. PORTELLA, E. (1974) p. 7.

SUMÁRIO
50 Chico Viana

entre os vocábulos de cunho científico e os de uso co-


mum, prosaico. Embora concorram para a originalidade
expressiva do poeta, eles têm efeitos diferentes e até con-
trastantes. Os vocábulos tomados à ciência e à filosofia
concorrem para certo preciosismo que, pelo menos em
tese, afastaria o poeta do leitor comum (em tese porque a
obscuridade desses termos, de forte apelo musical, veio
a se constituir em motivo de fascínio). Os vocábulos pro-
saicos, além de propiciar uma maior comunicação, con-
correm para distanciar o poeta dos estilos imediatamente
precedentes (naturalismo e simbolismo), fazendo de Au-
gusto um antecipador da modernidade.
Se os termos científicos realçam o intelectualismo da
sua poesia, sugerindo às vezes uma falsa profundidade,
os vocábulos prosaicos, representando objetos, sentimen-
tos e atos cotidianos, ligam-se à experiência imediata do
poeta e do homem - sendo, por via disso, facilmente apre-
endidos pelo leitor comum. Tais palavras visam à expres-
são da realidade circundante e próxima - tanto quanto
possível - do real concreto e vivido. E consubstanciam a
tendência do lirismo moderno em extrair os efeitos poéti-
cos do simples, do trivial e do “intranscendente”; “Se há
algo de realmente específico, original na poesia mundial
do último século e meio, é essa conquista do território do
banal, essa capacidade nova a extraordinária de extrair o
sublime das áreas mais reles da realidade.”40. A poesia de
Augusto dos Anjos articula esses dois pólos - o intelectu-
al, em que a angústia do poeta se alimenta e se confronta
com os postulados da filosofia e da ciência positivas; e o
prosaico-sentimental, em que o apelo aos elementos con-
cretos, cotidianos, quase vivenciais, serve de veículo pun-
gente à nostalgia e ao desespero metafísico-existencial do
poeta.

40
BUENO, A. (1994) p. 33.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 51

Intelectualismo, desejo e “mágoa”

Resumir o problema de Augusto dos Anjos a um


conflito entre o intelecto e o sentimento, ou entre o cien-
tificismo e o espiritualismo, é cair numa generalidade
simplificadora. Como todos os da sua geração, o poeta
vivenciou as dúvidas e contradições próprias do final do
século XIX e início do século XX, com o positivismo ame-
açando credos religiosos e propondo um ordenamento
social pautado, essencialmente, em valores da razão e da
ciência. Se Eu e outras poesias refere elementos desse deba-
te - que era então o debate da época -, não se limita, con-
tudo, a testemunhar o conflito gnosiológico do seu autor.
É muito mais um tecido de revelações inconscientes, em
que sobressaem obsessões e desejos profundos, ligados à
identidade mítica do homem - enquanto indivíduo e en-
quanto espécie.
Embriagado de Spencer e de Haeckel, o poeta so-
nha com o momento em que o indivíduo, absorvido na
corrente da evolução universal, enfim se libertará da me-
mória e da culpa. Ao mesmo tempo (num poema como
“Tristezas de um quarto-minguante”, por exemplo) refere
com rigor mórbido o pesadelo de um eu profundamente
solitário, angustiado por fantasmagorias e temores irra-
cionais. Entre os muitos contrastes de Augusto dos Anjos,
merece especial destaque este: o de um cérebro inicial-
mente exigido e decantado, porém logo esgotado em seus
esquemas, desgastado em suas racionalizações, derrotado
por obsessões e suspeitas que ao próprio eu lírico, em sua
prodigiosa intuição, apontam o limite além do qual a inte-
ligência nada mais tem a dizer. É quando, num reconheci-
mento da impotência da instância racional, que não pode
explicar os dualismos em que se debate a alma humana, o

SUMÁRIO
52 Chico Viana

poeta parece conceder a primazia ao sonho, privilegiando


o saber que deriva do inconsciente.
No soneto “Revelação”, por exemplo, o eu lírico se
reconhece um “Escafandrista de insondado oceano” e
confessa, no primeiro terceto, “(revolver) o ego profundo
e a escuridão dos cérebros medonhos”. Somente admitin-
do as antíteses, “(aliando) Buda ao sibarita”, é-lhe pos-
sível “(Restituir) triunfalmente à esfera calma/ Todos os
cosmos que circulam na alma/ Sob a forma embriológica
de sonhos”. Em “Suprême convulsion”, o sonho é tratado
como “ruptura”, elemento “convulsionador” que se opõe
ao “quietismo sonolento” e inerte da alma (“E a alma o
obnóxio quietismo sonolento/Rasga; e, opondo-se à Inér-
cia, é a essência pura...). No início da terceira estrofe, ele é
percebido como “libertação do homem cativo”.
O poeta confere especial importância ao desejo, do
qual o sonho é manifestação ou, mais propriamente, rea-
lização. Inscrito nas células e átomos do indíviduo, o “ge-
nesíaco prazer” transcende a vida orgânica e acompanha
o homem mesmo depois que ele morre. Tal é o sentido
dos versos de “Volúpia Imortal”, particularmente em
seus tercetos: “Surdos destarte a apóstrofes e brados,/
Os nossos esqueletos descarnados/Em convulsivas con-
torções sensuais,// Haurindo o gás sulfrídico das covas/
Com essa volúpia das ossadas novas/ Hão de ainda se
apertar cada vez mais!”. Também a mágoa, confundida
com a tristeza decorrente da culpa, ultrapassa a existência
do homem; ela “Transpõe a vida do seu corpo inerme;/
E quando esse homem se transforma em verme/ É essa
mágoa que o acompanha ainda!” (“Eterna mágoa”). Se,
para o poeta, desejo é culpa, não espanta que o prazer e
a melancolia estejam sempre juntos e, sobretudo, parti-
cipem de um mesmo e solidário destino - uma sempre
cerceando e “manchando” os impulsos do outro.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 53

Estética da dissonância

Com o termo estética da dissonância, pretende-se


designar o caráter áspero, “excessivo” e dicotômico da
poesia de Augusto dos Anjos. Nessa construção poética,
o efeito dissonante resulta, sobretudo, dos recursos nos
níveis fônico e léxico-semântico - sinéreses, aliterações,
homofonias, por um lado; vocábulos científicos, prosai-
cos e escatológicos, por outro. Tais recursos, cujo efeito
geral é de ruptura e segmentação, manifestam-se por ima-
gens alegóricas. A alegoria se opõe à figuração totalizan-
te e unitária do símbolo; em Augusto dos Anjos, ela visa
a representar, como deterioração e ruína, a nostalgia de
uma unidade supostamente perdida; a saudade de um
bem que se confunde com a inocência humana antes de
maculada pela falta.
Daí o impulso, onipresente no eu lírico, para destruir
a natureza e o homem, e assim provocar o aparecimento
de outra Humanidade - conforme se lê nos versos finais de
“Os Doentes”. As imagens alegóricas fundam-se no senti-
mento da diferença humana em relação à natureza. Sentida
como culpa e exclusão, essa diferença - concebida numa
perspectiva cristã - traduz-se como angústia ou melan-
colia do pecado original. Conforme observa Sérgio Paulo
Rouanet41, “o saber do alegorista é um saber culpado. Ele
quer salvar a criatura, embora saiba que ela é culpada, por
causa do pecado original.” O eu lírico anseia por ser Cristo
para redimir a espécie, ou antes, a raça “Que violou as leis
da Natureza!”.
Uma das diretrizes da estética da dissonância é a
construção do belo através do feio; é a incorporação de
elementos tradicionalmente apoéticos e de mau gosto no
tecido poemático. Neste sentido, ao incluir o escatológico
e o trivial em seus poemas, Augusto dos Anjos revela-
41
In: BENJAMIN, W. (1984) p. 42.

SUMÁRIO
54 Chico Viana

-se um herdeiro de Baudelaire, para quem era importan-


te “representar com exata clareza o inferior, o trivial, o
degenerado.”42. E se aproxima do francês, inclusive, no
juízo acerca da função e do prazer estéticos; em um dos
seus textos em prosa, Baudelaire escreve: “O maravilhoso
privilégio da arte é que o espantoso, expresso com arte,
torna-se beleza, e que a dor ritmizada, articulada, preenche
o espírito com uma alegria tranqüila.”43. Augusto dos An-
jos expressa opinião semelhante e quase coincidente, ao
referir, em “Monólogo de uma Sombra”, que “Somente a
Arte, esculpindo a humana mágoa,/ Abranda as rochas
rígidas, torna água/ Todo o fogo telúrico profundo...” E
sobretudo, um pouco adiante, que “a mais alta expressão
da dor estética/ Consiste essencialmente na alegria.” (gri-
fos nossos).
O soneto “Apóstrofe à Carne”, de Outras Poesias, é
um dos que bem exemplificam a estética dissonante, seg-
mentada e alegórica de Augusto dos Anjos. Nesse poema
estão presentes alguns dos tópicos preferidos do poeta,
como o sentimento da morte próxima, a antevisão da pró-
pria decomposição física, o julgamento negativo e moral
da carne (sexual e perecível) em confronto com o espírito,
o desconforto com a hereditariedade (cujo veículo - a con-
junção carnal - o eu lírico rejeita). Eis o texto, que a seguir
brevemente apreciamos:

Quando eu pego nas carnes de meu rosto,


Pressinto o fim da orgânica batalha:
-- Olhos que o húmus necrófago estraçalha
Diafragmas, decompondo-se, ao sol-posto...

E o Homem -- negro e heteróclito composto,


Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
42
Cf. FRIEDRICH, Hugo. (1978) p. 41.
43
Idem, ibidem, p. 40-1.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 55

O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!


Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,


Em tua podridão a herança horrenda
Que eu tenho de deixar para meus filhos!

Na primeira estrofe, a segmentação evidencia-se em


típicas imagens alegóricas, que traduzem a ruína do cor-
po enquanto objeto de decomposição. O pressentimento
do final não aparece como um temor vago, ligado ao mis-
tério do que pode vir depois, e sim como uma expectativa
concreta da dissociação física. Daí que o horror apare-
ça materializado, tangível, pois o próprio ato de “pegar
na carne do rosto” é que prenuncia, ou deixa implícito, o
destino da matéria.
Ressalte-se que a iminência agônica do fim não ad-
vém apenas dos órgãos referidos no terceiro e no quar-
to versos - olhos, diafragmas -, mas também da própria
enunciação verbal, no presente (eu pego), que sugere a
ação provisória, momentânea, de alguém fadado a mor-
rer. Auscultando a própria carne perecível, com a qual se
confunde, o eu lírico “sabe” que morre com ela. O horror
acentua-se na medida em que olhos e diafragmas não apa-
recem apenas como restos, partes de um corpo já desfeito,
mas como objetos de um processo destrutivo. E concorre
para acentuar a dinâmica destrutiva dos vermes, com os
quais as vísceras se confundem (formando tudo um hú-
mus necrófago), o uso dos verbos estraçalhar (no presente
do indicativo) e decompor (no gerúndio).
Na segunda estrofe, o efeito dissonante decorre ba-
sicamente da antítese e do assíndeto. A partir da transição
de eu (primeiro verso da primeira estrofe) para o Homem
(primeiro verso da segunda), a dimensão individual cede
SUMÁRIO
56 Chico Viana

lugar à coletiva (embora essa individualidade já estivesse


comprometida pela referência, no plural, a diafragmas). À
angústia particular do eu lírico, defrontado com o temor
concreto da morte, sucede a referência ao homem como
um todo, ou seja, à própria espécie humana. Esse proces-
so de converter o eu em nós é comum em Augusto dos
Anjos; ele confirma a amplitude do seu lirismo, que não
se confina a temas pessoais, e reflete uma das obsessões
mais caras ao poeta: a obsessão de, enquanto indivíduo,
converter-se em arauto dos sofrimentos do grupo e, so-
bretudo, em instrumento regenerador da espécie huma-
na. Liga-se ao seu desejo de ser Cristo para redimir o ho-
mem decaído.
A segunda quadra do soneto é, pois, homóloga à
primeira, dela se distinguindo pelo tratamento mais geral
dado à perspectiva da morte. Considerado não mais em
sua individualidade, o Homem é concebido como uma
antítese biopsicoquímica em que uma parte negra e heteró-
clita alberga (e colide com) outra alva e luminosa - tudo se
submetendo, de igual modo, à evidência da dissociação.
A mortalha envolve o sombrio e o grandioso, o físico e o
psíquico. Harmonizando-se com o caráter genérico desta
segunda estrofe, o espólio humano não é mais anatômi-
co, material (como na primeira, em que se fala de olhos e
diafragmas), e sim abstrato; está representado pelos órgãos
dos sentidos enquanto abstrata capacidade sensorial, os
quais aparecem segmentados, em sequëncia assindética,
no último verso (O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!).
No primeiro e no segundo tercetos realiza-se a após-
trofe à carne, de que fala o título. O eu lírico contrapõe
à efemeridade da vida a certeza da morte, sentida como
deterioração da matéria. A antítese não é propriamente
entre a vida e a morte, mas entre a carne e a podridão. A
primeira, percebida em seus transitórios lampejos de sen-
sualidade, representa-se expressionisticamente através

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 57

da aliteração (flâmeo fogo efêmero - 10o verso) e da metáfora


com matiz hiperbólico (A dardejar relampejantes brilhos - 11o
verso ). Já a podridão, na última estrofe, aparece como o
irônico e paradoxal destino do homem votado ao prazer.
É significativa a equação que se estabelece, no verso pe-
núltimo, entre a podridão e a herança; esta supõe o gene-
síaco prazer (pois o sexo é que propicia a hereditariedade),
sendo por isso alvo do desprezo do eu poético.
O vocábulo podridão é palavra-chave no poema, e
deve ser entendido para além do seu sentido comum. Ele
não se refere apenas à deterioração do corpo, ou melhor,
não diz respeito apenas à decomposição material. Na vi-
são de uma consciência culpada e melancólica como a de
Augusto dos Anjos, esse termo alude sobretudo à mancha,
ao legado vicioso que o homem transmite aos seus filhos.
Nisto reside, como se sabe, o núcleo do pecado original,
que supõe uma falta, na origem, a qual se transmite por
hereditariedade. Ou seja: supõe uma transgressão, perpe-
trada por nossos primeiros pais, na qual todos acabamos
implicados e para cuja propagação todos concorremos. O
traço de podridão/perversão a que se resume a herança
é enfatizado, no primeiro verso do primeiro terceto, pelo
uso do vocábulo bastardas aplicado a mônadas (de que a
carne é um feixe). Enquanto marca de uma filiação ilegí-
tima, a bastardia define metaforicamente o caráter trans-
gressivo de uma espécie que se rebelou contra a Natureza
- designada em outro poema de Augusto dos Anjos como
madrasta, por antítese a mãe.

Conclusão

O Eu e outras poesias, conforme dissemos no início


desta apresentação, tem e continuará tendo várias leitu-
ras. O essencial é saber vê-lo antes de tudo como um livro

SUMÁRIO
58 Chico Viana

de poesia, ou seja, como um acervo de fonemas, vocábu-


los e imagens cujo compromisso primeiro é com a expres-
sividade e com a beleza. Em uma palavra: com a arte. A
despeito das interpretações que se venham a dar dessa
obra, continuará impressionando pelos séculos vindou-
ros a forma como, nela, o debate intelectual de uma época
serviu à expressão radical, vigorosa e intensa de um sen-
timento e de um conflito pessoais.

REFERÊNCIAS

PORTELLA, Eduardo. Uma poética de confluências. O Globo:


Rio de Janeiro, 5 mai. 1974.
BUENO, Alexei. Augusto dos Anjos: origens de uma poética.
In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa: volume único. Organi-
zação, fixação do texto e notas por Alexei Bueno. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1994. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução,
apresentação e notas por Sérgio Paulo Rouanet. . São Paulo:
Brasiliense, 1884.
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna (da metade do
séc. XIX a meados do séc. XX). Trad. de Marise C. Curione. São
Paulo: Duas Cidades, 1978. (Problemas atuais e suas fontes, 3)

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 59

AUGUSTO DOS ANJOS E ALFREDO PI-


MENTA: UMA COMPARAÇÃO

Entre os autores quem teriam influenciado Augusto


dos Anjos, há quem aponte o escritor português Alfredo
Pimenta, que em 1904 lançou um livro com título igual ao
do poeta paraibano — Eu. A propósito da possível rela-
ção entre eles, e comentando a originalidade de Augusto,
Antônio Houaiss escreve:
“Há os que o remontam, pelo título, ao outro Eu que
teria sido publicado no início do século por Alfredo Pi-
menta em Portugal, ‘enciclopédia viva’, segundo M. Ro-
drigues Lapa — livro considerado raridade bibliográfica,
que adoraria ter a oportunidade de ler — se o há entre
nós.”44
Graças à generosidade do poeta e crítico Gilber-
to Mendonça Teles, tivemos acesso ao livro do erudito
português, o qual foi por nós xerografado. E agora nos
propomos, neste breve artigo, a confrontá-lo com a obra
do paraibano, a fim de rastrear diferenças e pontos em
comum. Interessa-nos responder, basicamente, às seguin-
tes questões: teria o Eu do poeta português influenciado
a obra homônima de Augusto dos Anjos, a qual veio a
público em 1912, ou seja, oito anos depois que Pimenta
publicou o seu livro? Se tal aconteceu, até que ponto po-
demos considerar essa obra como precursora do livro do
paraibano? Haverá algo mais do que uma coincidência de
títulos?
A identidade dos títulos, obviamente, não bastaria
para que se confirmasse a influência de um sobre o ou-
44
HOUAISS (1973) p. 47

SUMÁRIO
60 Chico Viana

tro — embora ela nos chame muito a atenção. Não ape-


nas pelo conteúdo, representado pelo solitário pronome
pessoal, como também pelo aspecto gráfico. Tal como no
livro de Augusto, a palavra “Eu” aparece, no de Alfredo
Pimenta, destacada em vermelho contra um fundo ama-
relo. Mas seria isto suficiente para confirmar a propalada
filiação? Mais do que tal semelhança gráfica, certamente,
outro fator terá concorrido para sugerir essas afinidades.
Referimo-nos à época em que viveram, ao clima ideológi-
co a que estiveram expostos e, sobretudo, à resposta que
deram -- ou buscaram dar — aos apelos intelectuais do
seu tempo. Tais apelos se resumiam, sumariamente falan-
do, na crise provocada pela influência da filosofia positi-
va, matriz de um realismo ou de um objetivismo a que,
não raro, correspondia um impulso alternativo, antitético,
de inspiração subjetivista e espiritual.
Vivendo no final do século XIX, ambos assimilaram
a seu modo o positivismo. Augusto dos Anjos foi um
positivista tortuoso, que diluiu os conceitos de Spencer,
Leibniz e Haeckel em imagens de desesperada melan-
colia. Pode-se dizer que, sendo sobretudo poeta, ele traiu
o “credo” cientificista; usou a ciência como instrumento,
acervo fonético, lexical e semântico com que, em outra di-
mensão da linguagem, viria a perpetrar as suas imagens.
Alfredo Pimenta, sensível ao ideário positivista, viven-
ciou-o sobretudo no plano intelectual. Sentimentalmente,
conforme veremos, foi um romântico. O positivismo, para
ele, era a base de um realismo que, em verdade, não prati-
cou — ou praticou mal. A base de um realismo que o fazia
admirar Guerra Junqueiro, a quem oferece o Eu, e se torna
perceptível, entre outros traços, na acerba crítica ao clero,
ao governo e aos poetas “creadores de bibelots”. Como

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 61

também no desejo de conceder à sua arte uma função pe-


dagógica e revolucionária; “...o verdadeiro papel da Arte
é ir à frente das Revoluções, preparando o terreno, edu-
cando os espíritos” (160)45, afirma ele em texto explicativo
inserido no final de sua obra.
A poesia de Alfredo Pimenta reflete, em níveis desi-
guais, o conjunto de idéias que influenciaram o pensar e
o sentir na virada do século. Sintomaticamente, o escritor
divide o seu livro em três partes: “Amor”, “Phantasias” e
“Revolução”. Nas duas primeiras, dedica-se basicamen-
te a, dentro de um figurino romântico, cantar a figura da
mulher. Na última, conforme o subtítulo sugere, direcio-
na o seu estro à exaltação do ideal revolucionário, com
vistas à redenção social dos oprimidos. A propósito dessa
divisão, ele afirma: “Foi aos versos que formam a terceira
parte que eu dediquei toda a minha força, toda a minha
Alma.” (162). Quanto ao resultado poético, no entanto,
essa terceira parte é a mais fraca do seu livro. Repetitiva e
um tanto ingênua, ela se ressente, o mais das vezes, de um
idealismo maniqueísta. E apresenta imagens como esta:
“Ó Liberdade! ó luz hystérica que abrasas/ A Luz do nos-
so olhar e o lar das nossas casas!”, típica de uma recepção
caótica do conjunto de tendências que vigoravam na épo-
ca em que ele viveu. O Eu de Alfredo Pimenta, conjugan-
do ao romantismo elementos realistas e decadentistas, pa-
rece a nós um produto esteticamente híbrido e indeciso.
O poeta não consegue unificar as tendências que perfilha,
ou seja, não logra revelar-se a nós como uma definida e
bem caracterizada individualidade poética.
Confrontando o livro do português com o de Au-
gusto dos Anjos, damo-nos conta de algumas curiosas
coincidências. Tanto um como o outro tematizam, por
45
Os números entre parênteses, após as transcrições, referem-se aos
títulos de Alfredo Pimenta e Augusto dos Anjos indicados na Biblio-
grafia.

SUMÁRIO
62 Chico Viana

exemplo, a dor e a mágoa. Mas, enquanto Augusto dos


Anjos identifica na mágoa um travo maiúsculo e de-
finitivo, de ressonâncias metafísicas, o qual se constitui
em marca da falta (mácula) humana — Alfredo Pimen-
ta enaltece, preponderantemente, a mágoa na mulher. A
mulher que chora — a mulher magoada — aparece, em
sua lírica, como uma imagem de obsessivo apelo emocio-
nal. Assim é que, no primeiro dos sonetos nomeados de
“Santificação da mágoa”, ele refere a certa altura: “Tudo
em ti me revela uma tristeza/ Filha da grande dor da na-
tureza,/ Bendita e santa irmã da humana dor!” (p. 14). E,
no segundo deles, remata o terceto final com estes versos:
“Que a tua dor, Mulher, seja infinita!/ Pois quanto mais
sofreres, maior serás!”. Em Augusto dos Anjos, a dor me-
rece um hino. Ela é tratada, segundo a perspectiva cristã,
como um ganho do espírito e, sobretudo, como um ins-
trumento de ascese, conforme se pode constatar nos ver-
sos com que ele inicia o seu “Hino à dor”: “Dor, saúde dos
seres que se fanam,/ Riqueza da alma, psíquico tesouro,/
Alegria das glândulas do choro/ De onde todas as lágri-
mas emanam....”. Observe-se como o soneto termina: “E,
assim, sem convulsão que me alvoroce,/ Minha maior
ventura é estar de posse/ De tuas claridades absolutas!”.
É perceptível como, no português, a dor é concebida sen-
timentalmente e particularizada, enquanto expressão, no
semblante da mulher. No paraibano, a dor aparece antes
de tudo como grandeza do espírito e veículo de elevação
humana.
Ambos os autores cantam, ou lamentam, a figura da
meretriz. Em Alfredo Pimenta, o drama das prostitutas
decorre basicamente da insensibilidade social. Descri-
tas também em cores românticas, ideais, elas aparecem
como “...aquelas cujo amor sagrado/ Alguém estrangu-
lou!”(112). São vítimas dos filhos da burguesia, que as
desfrutam em alcovas noturnas mas, em outros circuns-

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 63

tâncias, hipocritamente as detratam e desprezam. Con-


fronte-se, a propósito, esta passagem do poema “Fala das
prostitutas”: “À luz crua do sol, a populaça/ Insulta-nos
com vaias.../ Mas, quando é noite, mísera e devassa, /
Vem comprar-nos o corpo e a desgraça,/ Vem beijar-nos
as saias!// Filhos-família, quando acompanhados,/ Não
nos conhecem, não!/ E à hora dos fantasmas evocados,/
Vêm pedir-nos o leito embriagados,/ E pedem-nos per-
dão!. (Ibidem).
Bem diversa é a pintura que Augusto dos Anjos faz
da meretriz. Comparando-se os dois retratos, tem-se uma
idéia aproximada do quanto separa o paraibano do portu-
guês. No segundo, como vimos, o protesto social se am-
para em referências ideais e num discreto apelo emotivo.
Em Augusto não há complacência ou meias tintas. Descri-
ta em traços concretos, e com enorme vigor expressivo, a
prostituta aparece antes como a “funcionária dos instin-
tos”, cujo apetite carnal, transgressivo e vicioso, aparenta-
-a antes ao animal do que ao ser humano. Vítima da desi-
gualdade social (mas, sobretudo, do “vício” característico
da espécie humana), ela como que “se vinga” promoven-
do uma irônica identificação entre os que a procuram —
conforme se pode observar no fragmento a seguir: “É a
meretriz que, de cabelos ruivos,/ Bramando, ébria e las-
civa, hórridos uivos/ Na mesma esteria pública, recebe,/
Entre farraparias e esplendores,/ O eretismo das classes
superiores/ E o orgasmo bastardíssimo da plebe!// É ela
que (...)/ Sente, alta noite, em contorções sombrias,/ Na
vacuidade das entrahas frias/ O esgotamento intrínseco
da besta!”
Outras semelhanças, com a suas correspondentes
diferenças, nos chamam a atenção. Num longo poema de
inspiração social, e sem título, Alfredo Pimenta tematiza
a “legião dos desgraçados” que têm de batalhar o pão de
cada dia. No realismo com que descreve homens e am-

SUMÁRIO
64 Chico Viana

biente, chega a lembrar Cesário Verde, com o qual mais


de um crítico já aproximou Augusto dos Anjos. Em de-
terminado quarteto Pimenta escreve, a propósito de seus
“magros e famélicos”: “Uma tosse satanica os abala;/
Cospem escarros tysicos vermelhos...” (134). Essa passa-
gem nos lembra outra de “As Cismas do Destino”, de
Augusto, que também se refere a cuspo, tosse e sangue:
“E o cuspo que essa hereditária tosse/ Golfava, à guisa de
ácido resíduo,/ Não era um cuspo só de um indivíduo/
Minado pela tísica precoce.” (213). Só que a doença, em
Alfredo Pimenta, é antes uma referência de ordem física,
e diz respeito essencialmente à tuberculose. Em Augusto
dos Anjos, a doença é sobretudo o símbolo de uma de-
terioração de ordem psicológica ou, mais propriamente,
espiritual. Enquanto metáfora orgânica do “vício”, a tísica
aparece como um dos efeitos da violação que o homem
perpetrou na ordem natural, conforme testemunham os
versos seguintes: “Não! Não era o meu cuspo com certe-
za./ Era a expectoração pútrida e crassa/ Dos brônquios
pulmonares de uma raça/ Que violou as leis da Nature-
za!” (Ibidem).
São comuns ainda, aos dois poetas, o panteísmo e
a representação da Natureza. O poema “Duas vidas”,
de Alfredo Pimenta, é uma autêntica afirmação do credo
panteísta: “A Vida no Universo está espalhada:/ Ou seja
na Montanha grandiosa,/ Ou na bendita lágrima chora-
da!”(34). Novamente a “lágrima”, motivo recorrente no
autor. Se está na lágrima, a vida também está na pedra,
elemento mineral e bronco, e por isso tentativamente ade-
quado a albergar, por antítese, as manifestações vitais.
Tanto Alfredo Pimenta quanto Augusto dos Anjos fize-
ram versos panteístas à pedra, à montanha, conferindo
ao recorte desses elementos, inóspito e bruto, sugestões

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 65

dramáticas. Podemos de novo confrontar, quanto a esse


aspecto, os versos de cada um. No poema há pouco cita-
do, por exemplo, Alfredo Pimenta se refere à “... maldição
que ouvimos/ Sair da boca duma pedra/ Quando com
outra às vezes a ferimos!” (35).
Se comparamos o dramatismo dessa imagem com
a representação que Augusto dos Anjos faz no primeiro
dos sonetos “As montanhas”, de novo percebemos a sig-
nificativa diferença que separa um do outro — quer pelo
uso lingüístico, quer pela integração, diríamos, dialética,
entre o elemento plástico, exterior, e o componente aními-
co e subjetivo. Para compreender melhor essa afirmação,
observe-se o fragmento seguinte, de Augusto dos Anjos:
“Quem não vê nas graníticas entranhas/ A subjevidade
ascensional/ Paralisada e estrangulada, mal/ Quis er-
guer-se a cumíadas tamanhas?!// Ah! Nesse anelo trági-
co de altura/ Não serão as montanhas, porventura,/ Es-
tacionadas, íngremes, assim,// Por um abortamento de
mecânica/ A representação ainda inorgânica/ De tudo
aquilo que parou em mim?!” (352). No trecho do poeta
português, conforme foi visto, o que se tem é a sumária
indicação de um conflito, própria somente a figurar o sen-
timento, ou melhor, o ressentimento que acomete a subs-
tância bruta quando agredida. Tal substância, embora
animizada, parece ter uma vida autônoma, exterior às in-
quietações do ser humano — quando, na verdade, o que
ela reflete ou alegoriza são os sofrimentos do homem. Nos
versos de Augusto, pelo contrário, ocorre uma magnífica
ilustração desse vínculo; o exterior — agonia das monta-
nhas — é sentido, rigorosamente, como projeção do con-
flito anímico. Projeção e, também, alegoria dessa luta. Ao
ver nas montanhas uma imagem da “subjetividade ascen-
cional paralisada”, Augusto alude, coerentemente, a um
combate que se constitui em leit motiv da sua obra, repre-
sentado pelas contradições entre instinto e alma, matéria

SUMÁRIO
66 Chico Viana

e espírito. Sendo um “abortamento de mecânica”, um re-


síduo inorgânico, a montanha alegoriza a própria morte
enquanto pulsão, que se contrapõe aos anseios eróticos,
vitais, e se constitui em sombrio e repetido aceno para o
homem. O que essa imagem nos evoca, de maneira inten-
sa e radical, é a memória do elemento inorgânico de onde
proviemos46, a qual persiste, segundo a psicanálise, como
ameaçadora e, às vezes, tentadora perspectiva de retorno.
A imagem da Natureza como repetição, signo do
eterno retorno, aparece, pois, em ambos os poetas. Con-
firmando a sua índole român
tica, Pimenta não deixa de exaltá-la como a “mãe de
tudo quanto existe” (15), nela reconhecendo, ao mesmo
tempo, “A mesma eterna e trágica alegria,/ Na eternida-
de d’uma eterna vida!” (Ibidem). Vendo a Natureza com o
sentimento do pecado original, a que se liga a percepção,
que tem o homem, da própria “diferença” -- do próprio
exílio --, Augusto não a considera “mãe”, e sim “madras-
ta”. A natureza é o lugar da repetição, mas esse caráter
monótono vem de ela se constituir num enigma para si
própria, conforme sugere o entrecho do soneto “Natureza
íntima”. Ao sondar-se a si mesma, tudo com que ela se de-
para é “...a mesma imortal monotonia/ Da sua face exter-
na indiferente!”. (317). Por licença poética, Augusto trans-
fere à natureza, animizada, a mesma perplexidade com
que o homem a perscruta: “Será possível que eu, causa
do Mundo,/ Quanto mais em mim mesma me aprofun-
do/ Menos interiormente me conheça?!”(Ibidem). Com
esse procedimento, de ricas sugestões cognitivas, reforça
a idéia de que ela, a Natureza, é sobretudo uma inven-
46
Num dos seus textos mais importantes, Freud conjectura que a pul-
são seja “...um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um es-
tado anterior de coisas...”. Como essa imagem de retorno correspon-
de à extinção das tensões biopsíquicas, é comum relacioná-la com a
quietude e a insensibilidade da matéria bruta, inerte. Cf., a propósito,
FREUD (1980) vol. xviii,p. 53-4.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 67

ção do homem, uma projeção do insolúvel enigma com


que ele, perpetuamente, se defronta. A “Natureza” seria
o nome, dado por ele, a um ordenamento que o exclui
e, paradoxalmente, o inclui — e que o homem não pode
compreender.
Há outros pontos comuns entre os livros de Augus-
to dos Anjos e Alfredo Pimenta, os quais, levando-se em
conta os limites deste artigo, é impossível enumerar. A
despeito de tais semelhanças, com as diferenças nelas in-
cluídas — de estilo, de ideais, de concepções acerca do
homem e do seu futuro -, julgamos que não se pode falar
em influência. A nosso ver, é sobretudo pelas marcas do
Decadentismo que a poesia do português se assemelha
à do paraibano. Há em ambos o mesmo fundo mórbido,
a mesma perplexidade ante a voragem contraditória de
sentimentos e conceitos que marcaram o final do século
XIX. Conforme observa Massaud Moisés, “...A conjuntura
decadente resultava da impressão de que tudo, religiões,
costumes, justiça estava em deliqüescência.”47 E discrimi-
na, logo depois: “Anarquia, perversões, satanismo, neu-
roses, patologias, entravam em moda, dando a impressão
dum caos apocalíptico.”48.
Tanto Alfredo Pimenta quanto Augusto dos Anjos
vivenciaram dramaticamente esse clima. Sensação de de-
terioração, de fim iminente, de decadência para o emergir
de uma nova ordem — são comuns aos dois poetas. Mas
cada qual espera ou propõe o novo à sua maneira. Se um
sonha com a revolução social, concebida romanticamente,
o outro deseja a redenção espiritual do homem. Se um, a
despeito dos ideais progressistas, permanece formalmen-
te preso ao passado — o outro inova em termos formais,
utilizando-se de recursos (o coloquialismo, por exemplo)
que o incluem, já então, na modernidade literária.
47
MOISÉS (1974) p. 474
48
Idem, p. 475

SUMÁRIO
68 Chico Viana

REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto dos. Obra completa; volume único. Organi-


zação, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1994.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ---. Obras
completas. Vol. xviii. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 13-85.
HOUAISS, Antônio. Cinqüentenário da morte de Augusto dos
Anjos. In: BRAYNER, Sônia & COUTINHO, Afrânio. orgs. Au-
gusto dos Anjos; textos críticos. Brasília: INL, 1973. p. 47-9. (Co-
leção de Literatura Brasileia, 10) MOISÉS, Massaud. Dicionário
de termos literários. São Paulo:1974.
PIMENTA, Alfredo. Eu. /s. l./: /s.e./, 1904

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 69

A “ILUSÓRIA MORBIDEZ”
DE AUGUSTO

E é de mim que decorrem, simultâneas,


A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
(Em: Monólogo de uma Sombra)

Ao receber o livro que ora devo apresentar, confesso


que o olhei com desconfiança. E pensei comigo: é mais
um desses trabalhos que procuram arrolar sintomas psi-
copatológicos de Augusto dos Anjos, com o propósito de
caracterizá-lo como esquizofrênico, paranóico, neurótico
obsessivo ou coisa semelhante. Lembrei-me de outros
títulos com preocupação idêntica, como os trabalhos de
Licínio dos Santos, Arthur Ramos, João Sabóia Ribeiro e
A L. Nobre de Melo, cuja serventia para a compreensão
do poeta, enquanto artista do verso, é praticamente ne-
nhuma. Lembrei-me também das palavras com que Ale-
xei Bueno, em nota introdutória à Fortuna Crítica de Au-
gusto dos Anjos, publicada na Obra Completa pela Editora
Aguilar, se refere ao que chama de “teses pseudopsiqui-
átricas e pseudomédicas” acerca do poeta; afirma então
Alexei que, “ressalvado o saboroso cunho de época que
(dessas teses) emana, julgamos certo classificá-las como
patrimônio do anedotário literário, indigno de maiores
comentários.”49
E mais desconfiado fiquei ao ler a Nota do Autor, na
qual Luiz Carlos Albuquerque afirma que a “nascente”
49
Cf. ANJOS (1994) P. 46.

SUMÁRIO
70 Chico Viana

do seu livro “está num estudo restrito ao âmbito da Psi-


quiatria, intitulado ‘A loucura principal’...” (p. 9)50; e ao
ler, também, o prefácio do Prof. Othon Bastos, que define
o Eu, singularíssima pessoa como “um estudo correto e bem
fundamentado de análise patográfica da obra” de Augus-
to dos Anjos (p. 14).
E por que essa desconfiança quanto ao fato de o pre-
sente livro se constituir em mais um estudo de natureza
psicológica, ou psiquiátrica, acerca do nosso poeta? Justa-
mente pelos equívocos de ordem crítica e interpretativa
em que, grosso modo, tem incorrido esse tipo de trabalho.
O primeiro desses equívocos é o de confundir a obra com o
seu autor, concentrando o foco da abordagem no homem
e desprezando o principal, ou seja, o que ele efetivamen-
te produziu. O segundo equívoco, intimamente ligado ao
primeiro, é o de conceber a obra como um inventário de
sintomas, uma crua relação nosográfica feita pelo autor/
poeta com o propósito de confissão ou de alívio.
Procedendo assim, o crítico ou intérprete negligen-
cia os elementos de ordem estético-expressiva, quando na
verdade foi por eles que o escritor, através de seus poe-
mas, fez-se objeto de atenção e de afeição. É o poeta que
nos enleia e conquista; ele é que nós admiramos por (ou
em) seus poemas. No entanto, por uma curiosa inversão
de prioridades, a chamada crítica psicológica ou psiqui-
átrica – que não se deve confundir com a crítica psicana-
lítica, que não se faz sem conceder a necessária priorida-
de aos elementos da linguagem – prefere se deter não no
poema, não obra, mas nos meandros psíquicos de quem
a produziu. Como se, procedendo ao diagnóstico das per-
turbações mentais do homem, ficasse mais fácil compre-
ender-lhe a produção artística.
50
As indicações de páginas constantes deste trabalho dizem respeito
ao livro Eu, singularíssima pessoa, cuja referência completa se en-
contra na Bibliografia.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 71

Penso que tais considerações justificam a descon-


fiança com que me debrucei sobre o livro de Luiz Carlos
Albuquerque. Tratar-se-ia, esta minha reação inicial, de
má vontade ou preconceito contra os estudos psiquiátri-
cos ou psicológicos feitos sobre Augusto dos Anjos? Afir-
mo que não. Todos têm o direito de biografar Augusto ou
qualquer outro escritor, bem como o de lhes investigar o
psiquismo com fins diagnósticos ou, mesmo, meramente
descritivos. O resultado de um tal estudo pode ser extre-
mamente curioso – e pode até subsidiar o crítico literário
quanto a aspectos idiossincráticos, intrigantes da obra.
Augusto dos Anjos, todos sabemos, refere muito da sua
vivência, da sua experiência imediata e circundante, nos
poemas que compôs. Há neles reflexos de acontecimen-
tos, há delírios e temores, há obsessões e expectativas com
que nos defrontamos em outros escritos do poeta – so-
bretudo nas cartas –, o que vem atestar a interpenetração
do experimentado, do efetivamente vivido pelo homem,
no seu universo poemático. Conforme assinala Raimundo
Magalhães Júnior, “as poesias de Augusto dos Anjos es-
tão cheias de anotações de caráter pessoal que constituem
uma espécie de autobiografia psicológica.”51
O direito a esse tipo de estudo, obviamente, todos
o têm. O que não se pode é ignorar que o poema, a obra
de arte, não se constitui em inventário literal, registro pu-
ramente informativo do que o poeta viveu. O poema é
“mentira”, no sentido de que é ficção; sendo assim, ele
transfigura e faz transcender o sentido imediato de fatos,
sentimentos e impressões, integrando-os numa ordem
nova que se articula, agora, sob a primazia do expressi-
vo e do estético. O que se observa é que a chamada crí-
tica psicológica ou psiquiátrica – pelo menos a que tem
se ocupado de Augusto dos Anjos – tem ignorado essa
verdade. E, quando não busca explicar o poeta, o artista
51
MAGALHÃES JÚNIOR (1978) P. 181.

SUMÁRIO
72 Chico Viana

literário, a partir de elementos da sua biografia, procura


traduzi-lo – o que me parece mais grave, além de ingênuo
– através das hipotéticas rotulações que o eu-lírico, entre
a autoperquirição e o delírio, costuma aplicar a si mesmo.
Augusto dos Anjos enumera, em sua obra, uma sé-
rie de estados mórbidos ligados tanto ao seu corpo quan-
to à sua mente. Em certa passagem de “Tristezas de um
quarto minguante”, por exemplo, ele se compara a um
“degenerado psicopata”; em um passo de “As cismas do
Destino”, ele se refere à “alta alucinação das (suas) cis-
mas”, e assim por diante. O Eu e outras poesias, com efeito,
é um repositório de doenças atribuídas não somente ao
eu-lírico como também aos personagens contra os quais
ele investe o seu juízo moral, marcado pela culpa do pe-
cado primeiro, isto é, pela falta que a todos nos incrimina.
Esses personagens estão resumidos, paradigmaticamente,
nas figuras do sátiro e da meretriz, cujos corpos são objeto
de patológicas deteriorações. No entanto, se não se en-
tende que a doença no vocabulário do poeta é antes uma
metáfora orgânica do vício – ou seja, da culpa –, incorre-se
em grave distorção exegética; termina-se alienando, por
excesso de literalidade (e qual a literalidade, em poesia,
que não é excessiva?), o universo simbólico do autor.
Ao se afirmar um “degenerado psicopata”; ao con-
fessar o seu histerismo em “Poema Negro”, o poeta não
está interessado em se autodefinir ou em se autoconcei-
tuar. Sem qualquer preocupação com o eventual rigor
dessas denominações, ele está perpetrando imagens, ou
seja, expressando-se musical e metaforicamente com vis-
tas, por um lado, à tradução complexa e ambígua do seu
estado emocional – e, por outro, à configuração, mediante
esses e outros termos de idêntico teor expressivo, de um
organismo autônomo e solidário – o poema – capaz de
suscitar no leitor beleza e emoção.
Acreditar, por seus poemas, que o poeta é um psico-

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 73

pata degenerado; ou que lhe vêm à imaginação “sonhos


dementes”, conforme ele refere no citado “Tristezas de
um quarto minguante”, é o mesmo que aceitar que ele,
por exemplo, “(comeu seus) olhos crus no cemitério”, se-
gundo também afirma em “Solilóquio de um visionário”.
Ou que, para ficar ainda no âmbito da casa dos mortos,
ele se confessa necrófago ao afirmar, após hesitações que
lhe “irritaram a alma”, ter devorado o “bolo frio” (isto é:
a carne humana)/ Feito das podridões da Natureza” – se-
gundo refere em “Os Doentes”. Há certo folclore sobre a
necrofilia de Augusto de Anjos, mas não se pode esperar
que esse tipo de juízo constitua uma apreciação séria so-
bre o homem ou, menos ainda, sobre o poeta.
Para se ter uma idéia da distorção a que pode levar
esse tipo de crítica, que lê as imagens poéticas ao pé da
letra – como se fossem registros vivenciais, – observe-se o
que A. L. Nobre de Melo afirma sobre Augusto dos Anjos.
Segundo esse estudioso, o nosso poeta “realiza bem o tipo
perfeito do esquizóide, permanentemente dissociado da
realidade exterior...”; mas foi também vitimado pela neu-
rose – o que não deixa de ser desconcertante. Neurótico
ou psicótico? Ao que se sabe, neurose e psicose decorrem
de processos distintos e levam a caminhos diferentes. Na
neurose, o eu considera a existência da realidade e recalca
as exigências pulsionais; na psicose, ele rompe com a re-
alidade e fica sob o domínio do id.52 Além do mais, como
pode alguém, mesmo sendo um Augusto dos Anjos, en-
carnar “o tipo perfeito” – ou seja, uma espécie de paradig-
ma – da esquizoidia? Sabemos quão vago e incerto, mes-
mo para os especialistas, é o referencial que caracteriza ou
define as doenças mentais.
O equívoco básico de A. L.Nobre de Melo (e nesse
tipo de equívoco incorre a quase totalidade da chama-
da crítica psicológica ou psiquiátrica que tem estudado
52
Cf. LAPLANCHE E PONTALIS (1991) P. 392.

SUMÁRIO
74 Chico Viana

Augusto dos Anjos) é ler as imagens do poeta como se


fossem registros nosográficos idôneos, confissões verda-
deiras e passíveis de crença. Nessa perspectiva, por exem-
plo, as expressivas, intrigantes e surreais imagens que
recheiam o poema “Tristezas de um quarto minguante”
não passariam de sintomas; elas constituiriam indícios
de “estados confusionais leves e efêmeros, por ofuscação
parcial do conhecimento”53. É perceptível o absurdo de
uma tal avaliação; orientado por um racionalismo de base
estritamente clínica, o estudioso menospreza o que o poe-
ta tem de criativo e transcendente. As imagens de delírio,
as demandas do inconsciente, ao invés de refletir o poder
prospectivo do poeta, que vê mais do que o comum dos
homens, constituem-se em indícios de fragilidade e con-
fusão psicológica. Por essa ótica, as metáforas de Augusto
deixariam de ser desvios lingüísticos, promotores de efeito
poético, e constituiriam indícios de desvio mental.
Pois bem, foi sugestionado pelas leituras que fiz des-
se tipo de crítica, que recebi o Eu, singularíssima pessoa.
E não poderia, diante do que acabo de expor, encará-lo
sem uma prévia e robusta desconfiança. Tal sentimento,
afirmo de antemão, foi-se desfazendo à proporção que eu
lia o livro do Dr. Luiz Carlos Albuquerque, o qual me sur-
preendeu agradavelmente por diversas razões.
Antes de ser o livro de um psiquiatra, a obra que ora
tenho a satisfação de apresentar é, fundamentalmente, o
livro de alguém sensível e afeito, como receptor e como
produtor, à especificidade do fenômeno literário. Se Luiz
Carlos Albuquerque se propõe, conforme já observamos,
a proceder a um levantamento de estados ou sintomas
psíquicos em Augusto dos Anjos, ele no entanto não per-
mite que, em função desse propósito original, se ofusque
ou abafe a grandeza de Augusto enquanto poeta, criador
literário. Daí o método que escolheu para abordá-lo, al-
53
Citado em ALBUQUERQUE (1993) P. 89.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 75

ternando o discurso científico e seu jargão técnico-rotu-


latório, que na verdade aparece pouco, com abundantes
transcrições poemáticas. De entremeio com isso o autor
insere, sob a designação de Depoimentos, textos leves à
maneira de crônicas em que se referem episódios, depoi-
mentos, fatos do cotidiano. Através deles se evidencia, de
forma viva e dinâmica, a penetração da obra de Augus-
to dos Anjos no seio do povo. O livro que ora apresento,
sente-se do começo ao fim, é sobretudo um testemunho
de admiração e de amor pelo poeta.
Luiz Carlos Albuquerque é modesto em seus pro-
pósitos. Na página 94 de Eu, singularíssima pessoa, afir-
ma: “Esse trabalho em que me empenhei foi realizado
sem maiores pretensões, sem a veleidade de fazer uma
revisão crítica, que deve caber aos especialistas”. Numa
prova, contudo, de que sensibilidade ao fato literário e
discernimento crítico não são apanágio de especialistas,
ele nos surpreende com referências corretas e argutas so-
bre alguns dos autores que influenciaram Augusto dos
Anjos – entre eles, Guerra Junqueiro, Baudelaire, Cesário
Verde. A propósito das relações entre Augusto e Cesário,
por exemplo, ele refere as opções temáticas que teriam
importantes reflexos na linguagem dos dois, enquanto
antecipadores da modernidade poética luso-brasileira:
“Através de Cesário a poesia escapou dos temas consa-
grados – amor, devaneio, sonhos – e envolveu os temas
prosaicos da vida, os temas comuns do cotidiano” (p. 50).
Os trechos literários mediante os quais confronta aqueles
autores com o paraibano são sempre escolhidos com ade-
quação, e servem tanto a confirmar semelhanças quanto –
uma das preocupações do autor – a sublinhar diferenças.
Há, em Eu, singularíssima pessoa, um paradoxo que,
a meu ver, constitui-se no seu melhor atributo. O autor
se propõe a pesquisar indícios de psicopatologia em Au-
gusto dos Anjos – mas termina, felizmente, não levando

SUMÁRIO
76 Chico Viana

a cabo esse propósito. E não porque lhe faltem luzes no


domínio em que é especialista. Ocorre que, ante a com-
plexidade dos procedimentos criativos do poeta, o autor
prefere, judiciosamente, optar pela descrição genérica,
multifacetada, sem qualquer dogmatismo clínico ou diag-
nóstico.
Em certa passagem do livro, ele reconhece que Au-
gusto é um “quebra-cabeça” (p. 57); em outra, afirma com
honestidade: “Lidamos com indicativos imprecisos (...),
que não se configuram suficientes para uma classificação
diagnóstica, definitiva.” (p. 88.). E critica, logo a seguir, as
esdrúxulas conclusões do já citado A. L. Nobre de Melo,
Por fim, no último Depoimento do livro, o autor reconhe-
ce que a obra de Augusto dos Anjos “tem vida própria,
independentemente de ter sido ou não o poeta vítima de
transtornos mentais.” (p. 91). Com isto, implicitamente
afirma reconhecer no poeta a autonomia e o domínio do
literário, desembaraçando-o de presumíveis condiciona-
mentos de natureza psicopatológica. Augusto não foi o
poeta que foi por ser neurótico, melancólico, paranóico,
esquizofrênico ou coisa semelhante, mas por ser, funda-
mentalmente, um grande artista.
Ao reconhecer que os vários distúrbios descritos
em Eu e outras poesias estão ali “às vezes servindo para
comparações, outras vezes enfatizando, de modo inten-
cionalmente chocante, certas situações ou servindo a uma
simbologia particular” (p. 19), o autor demonstra perce-
ber o essencial da obra do poeta. É próprio da melancolia,
conforme nos ensina a psicanálise, traduzir nas mazelas
do corpo a “má consciência” decorrente dos conflitos de
ordem moral. Para isto, o tema da doença e seus correla-
tos – magreza, morte, putrefação – é particularmente ade-
quado. Na visão culpada do melancólico, corpo doente
é corpo punido; a agressividade contra o corpo, fonte e
instrumento natural do prazer, constitui um imperativo
de seu superego. Daí a representação simbólica da doença
SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 77

ser comum na lírica do paraibano, a ponto de um Wilson


Martins afirmar, por exemplo, que “...se o indivíduo Au-
gusto dos Anjos não foi tuberculoso, o poeta Augusto dos
Anjos inquestionavelmente o foi”54.
Observei acima que Eu, singularíssima pessoa é um li-
vro de alguém afeito ao uso da palavra escrita. Não custa
pinçar trechos que, pelo desembaraço, pela singularidade
e, às vezes, pela elegância formal, confirmam a habilida-
de do autor no manuseio das palavras. Por exemplo: aos
criticar os que insistem em afirmar a tuberculose do poe-
ta, por ela justificando certos temas e imagens recorrentes
em sua poesia, Luiz Carlos Albuquerque escreve que tais
pessoa procedem “como se o talento poético, a sensibi-
lidade, a capacidade de fazer versos tivessem uma rela-
ção bacilar – com o bacilo de Kock” (p. 80). Comentando
o desolado cenário dos poemas de Augusto, prenhe de
remorso e de tristeza, ele observa que tudo isso compõe
“uma calçada de pedras sombrias, arestosas e cortantes,
por onde não se pode andar sem chorar ou sangrar” (p.
20). A propósito do soneto dedicado pelo poeta ao filho
morto ainda no ventre da mãe, o nosso autor observa que
“esse aborto (...) não ficou sem geração” (p. 29). E trans-
creve a seguir o referido poema, rebento sublimado que
vingou para compensar o outro.
A propósito dos hábitos retirados do poeta, que
era infenso aos compromissos sociais, Luiz Carlos Albu-
querque opina: “Os seus versos de amaríssimo sabor não
combinavam com os canapés da mundanidade” (p. 59).
E falando a seguir, não de Augusto mas do bailarino Ni-
jinski, surpreende-nos com estas palavras, que se rema-
tam numa imagem sensível – a dança como alada repre-
sentação do efêmero: “Nijinski encantou o mundo com
sua arte, imortalizando-a com uma obra tão efêmera, toda
ela traçada no ar...” (p. 75). Na página 96, num saboroso
54
MARTINS (1973) P. 333.

SUMÁRIO
78 Chico Viana

jogo fônico, chama o ex-presidente Fernando Collor de “o


dândi da Dinda”.
Por tudo isso, Eu, singularíssima pessoa é um livro
que se lê com prazer e proveito. Se não inova em termos
crítico-interpretativos, traz oportunos acréscimos sobre
as influências e os receptores da obra de Augusto dos An-
jos. O autor é um curioso que tem o faro do pesquisador, a
inquietude do estudioso e o ouvido do jornalista, sempre
atento ao que, em bares, consultórios e outros recantos
públicos, se diz sobre a obra do paraibano. O resultado
de suas pesquisas, por essa mescla de estudo e abertura
à reação do povo, é pintar-nos a imagem de um Augusto
atual e vibrante, ou seja, tal como o povo há décadas o
vem preservando.
Em certa passagem do livro, comentando a pergun-
ta de um primo, o autor informa que ao escrevê-lo estava
empenhado em “autopsiar Augusto” (p. 71). Que o autor
me perdoe, mas esse é um juízo errôneo. Faz-se a autópsia
de quem já morreu e o seu trabalho, pelo que testemunha
da permanência e da vitalidade do poeta, é antes uma ju-
bilosa certidão de (re)nascimento.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Organização, fixação do


texto e notas por Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1944.
ALBUQUERQUE, Luiz Carlos. Eu, singularíssima pessoa. Recife:
M. Inojosa, 1993.
MAGALHÃES JÚNIOR, R. Poesia e vida de Augusto dos Anjos.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília/INL, l978.
MARTINS, Wilson. Augusto dos Anjos. In: BRAYNER, Sônia
& COUTINHO, Afrânio. Augusto dos Anjos; textos críticos. Bra-
sília: INL, 1973.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 79

MONÓLOGO DE UMA SOMBRA OU


AUGUSTO DOS ANJOS EM ALEMÃO

O acontecimento desta noite é bastante auspicioso


para a cultura paraibana e, em particular, para os que
admiram e amam a obra de Augusto dos Anjos. Todos
concordam em que a poesia do paraibano é universal – e
quem duvida de que ela é uma das mais fortes e origi-
nais que já se escreveu? No entanto, essa propalada uni-
versalidade não tem, ao que eu saiba, se concretizado em
versões nas línguas estrangeiras. Para ser o poeta que é,
Augusto deveria ser mais traduzido. E o curioso é que
ele é pouco traduzido, justamente, por ser o poeta que é.
Ou seja, por se constituir num enorme desafio devido à
peculiaridade do seu vocabulário e, sobretudo, à vigorosa
e ríspida dissonância dos seus fonemas. Toda a poesia,
em princípio, é intraduzível. A de Augusto, por sua estra-
nheza intrínseca e sua particularíssima visão de mundo,
torna mais verdadeira essa afirmação.
“Monólogo de uma sombra” constitui uma antolo-
gia variada, trazendo composições de Eu, do volume Eu e
outras poesias, editado por Órris Soares em 1920, e alguns
dos “poemas esquecidos” que foram se incorporando ao
conjunto. Vê-se que, a fazer uma rigorosa escolha estéti-
ca, o editor preferiu fornecer uma amostragem ampla da
poética de Augusto, nela incluindo até composições que
testemunham o seu retardatário simbolismo. O resulta-
do foi um painel que, a não ser pela ausência de alguns

SUMÁRIO
80 Chico Viana

poemas longos fundamentais (explicável, certamente,


pelas enormes dificuldades que ofereceriam à tradução),
dá bem a medida do valor (e também das imperfeições)
de Augusto dos Anjos. Nele, a propósito, conforme já foi
apontado por mais de um crítico, qualidades e defeitos
andam juntos, havendo um Augusto original e forte ao
lado de outro previsível e de mau gosto. Mas já se disse
que essa mistura, em que o lado positivo supera de muito
o negativo, é marca dos gênios.
Como se terá saído o nosso poeta na língua de Go-
ethe e Nietzsche? Para responder essa pergunta, incor-
poro ao meu texto as palavras de Maurice Van Woensel,
cuja sucinta e abalizada apreciação subsidiou o Parecer
do conselheiro Odilon Ribeiro Coutinho quando o livro
que ora apresento tramitou pelo Conselho Estadual de
Cultura. Maurice começa louvando o empenho do editor
Carlos Azevedo e das tradutoras, chamando de corajosa
a empreitada. E posteriormente, conhecedor que é da lín-
gua alemã – e de muitas outras, por sinal –, considera que
a tarefa obteve sucesso. Segundo ele, “as tradutoras tive-
ram o cuidado de se manterem fiéis ao sentido e à filoso-
fia dos versos: não encontramos nenhum caso de infideli-
dade semiótica”. Quanto ao maior desafio, representado
pelas escolhas na camada fônica da língua, as tradutoras
o venceram por trocar os decassílabos por pentâmetros
e conservar os esquemas de rimas – com a substituição
ocasional, ainda segundo Maurice, de algumas rimas por
assonâncias que não rompem a cadência dos versos. O
professor remata a sua apreciação afirmando que as tra-
dutoras realizaram um trabalho admirável e que a equipe
“germano-brasileira responsável pelo empreendimento
só merece louvores”. Dessa equipe faz parte, além do ci-
tado Carlos Azevedo e das tradutoras, o professor Tiago

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 81

de Oliveira Pinto, diretor executivo do Instituto Cultural


Brasileiro em Berlim. Coube a ele o prefácio da obra.
Como não conheço o alemão, mas conheço bem
Maurice, só me resta concordar com as suas palavras e
parabenizar a equipe por ter encarado e vencido essa di-
fícil tarefa. E me sinto envaidecido por apresentar um tra-
balho que não é apenas um reconhecimento a um autor
paraibano, mas é antes de tudo uma realização intelectual
de alto nível.
Um evento como o desta noite concorre também para
desfazer um juízo nem sempre verdadeiro – o de que Au-
gusto tem sido vítima do descaso oficial. Esse juízo, como
todos sabem, fundamenta-se no incidente ocorrido entre
o poeta e o governador João Machado. Professor interino
do Liceu, Augusto pediu licença para fazer um concurso
no Rio de Janeiro. Na condição de interino, contudo, não
tinha o direito de se licenciar; deveria pedir demissão. Foi
isso o que o governador lhe disse e o poeta, obviamente,
não gostou. Discutiram, parece que houve troca de insul-
tos de parte a parte – segundo o historiador Humberto
Nóbrega, Augusto teria dado uma “banana” ao supremo
mandatário do estado – coisa difícil de se imaginar na-
quele rapaz magro, cordato e triste. O resultado foi que o
poeta fez as malas e foi, com a família, tentar a vida na ci-
dade grande. Por lá sofreu, dando aulas particulares, num
exílio cheio de penúria. E não voltaria jamais à Paraíba.
Pela vontade da sua família, nem morto.
Ora, esse episódio fixou uma impressão que uma
noite como esta, em que o governo patrocina uma edi-
ção bilíngüe do poeta, tende a desmentir. Aqui está a sua
obra prestigiada e reconhecida, confirmando em nível de
estado o que é verdade em nível de povo – o respeito e o
amor por Augusto dos Anjos. O esforço para a publica-

SUMÁRIO
82 Chico Viana

ção desse livro envolveu pessoas como Sérgio de Castro


Pinto, então subsecretário de cultura, e Ângela Bezerra de
Castro, atual secretária adjunta de educação e cultura –
ambos comprometidos com a obra do poeta. O primeiro
tem inclusive um poema que se refere a uma idiossincra-
sia de Augusto, um sestro compatível com o seu todo es-
quálido e hipocondríaco – o de se mirar continuamente, e
por vários minutos, num espelhinho. A segunda, Ângela
Bezerra, com vários estudos crítico-interpretativos, é re-
conhecida especialista no autor de “Eu e outras poesias”.
O interesse da Universidade Livre de Berlim, onde
leciona o professor Carlos Azevedo, e do Instituto Cultu-
ral Brasileiro em Berlim pela obra de Augusto dos Anjos
não é casual. Por estranho que pareça, existem afinidades
entre a poesia do paraibano e a literatura alemã. Gilber-
to Freyre55 e Anatol Rosenfeld56 foram dos primeiros que
apontaram semelhanças entre Augusto e os expressio-
nistas alemães, identificando neles o mesmo desespero,
a mesma intensidade caótica, o mesmo terror ante o fim
iminente do homem e das coisas – tudo isso vazado numa
forma áspera e dissonante. Gilberto Freyre vê no expres-
sionismo de Augusto a aproximação com o pictórico que
caracteriza artistas alemães da década de vinte. E conside-
ra que através desse expressionismo, moldado por uma
estranha mistura de cientificismo e coloquialismo, o poeta
criou uma nova expressão para o português literário no
Brasil. O uso dos vocábulos científicos, segundo Anatol
55
FREYRE, Gilberto. Um encontro entre dois eus de brasileiros preo-
cupados com a renovação da língua portuguesa no Brasil. Colóquio/
Letras, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 121-22:183-94, jul.-
-dez. 1991.
56
ROSENFELD, Anatol. A costela de prata de Augusto dos Anjos.
In: COUTINHO, Afrânio & BRAYNER, Sônia. (Orgs.) Augusto dos
Anjos; textos críticos. Brasília: MEC/INL, 1973. P. 315-18.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 83

Rosenfeld, constitui a “costela de prata” no organismo fo-


nossemântico da lírica de Augusto. Com ele o poeta se
aproxima dos alemães Trakl, Heym ou Benn, expressio-
nistas do início do século que, através de procedimentos
semelhantes, procuraram fugir ao convencionalismo e à
fluidez do lirismo burguês e tradicional. O paraibano se
aproxima desses autores, entre outras razões, por eviden-
ciar o mesmo desconforto de estar no mundo e o cultivo
do grotesco e do estranho.
As indicações de Gilberto Freyre e Anatol Rosen-
feld revelaram-se preciosas. Confrontando-se a obra de
Augusto com a dos expressionistas alemães, percebem-
-se coincidências intrigantes. É curioso como um provin-
ciano da Paraíba, criado em engenho e vivendo longe do
Velho Mundo, sente as mesmas coisas que um punhado
de jovens e nostálgicos burgueses alarmados com a pers-
pectiva iminente, e cada vez mais próxima, da I Guerra
Mundial. Para além da distância cultural e geográfica, o
desencanto é o mesmo e se encarna em idêntica proposta
estética, expressa na busca do feio e do disforme, assim
como no desejo de um mundo novo. Esse mundo não
surgiria do nada, mas da corrosão putrefeita do mundo
velho.
Em seu poema “Grodek”, Trakl afirma que “todos
os caminhos desembocam em negra putrefação” e que só
uma dor “alimenta a chama ardente do espírito: os ne-
tos que ainda não nasceram”. Ou seja, num cenário de
caos e desolação, imagem do mundo que se decompõe na
guerra, ele reconhece a perspectiva, mesmo dolorosa, de
um futuro. Em Augusto existe a mesma tensão entre um
mundo arruinado, que se recusa a desaparecer, e o mun-
do novo que nascerá dos escombros do primeiro – enfim,
entre o que já não é e o que ainda não veio. Essa tensão

SUMÁRIO
84 Chico Viana

entre a recusa do velho e o aceno do novo é mediada pela


imagem do “verme” enquanto agente de transformação
– ou, conforme escreve Augusto, enquanto “fator univer-
sal do transformismo”. Em seu livrinho sobre os expres-
sionistas alemães, Cláudia Cavalcanti observa que, nes-
sa vertente estético-literária, “a palavra ‘putrefação’ (...)
indica não somente o fim, mas o começo depois dele”57.
Tal observação também se aplica a Augusto dos Anjos.
Nele o verme é um “deus”, pois destrói para permitir o
aparecimento de outra coisa. Nele, “os netos” do poema
de Trakl, cujo nascimento ameaçado é só o que alimenta
a chama da esperança, transmutam-se no “grande feto”,
no projeto de homem novo que vem substituir a espécie
decaída – conforme está no final de “Os doentes”.
O grotesco dos expressionistas, segundo João Bar-
rento, resulta de “uma deformação ou de uma despropor-
ção em relação à realidade considerada normal, da desin-
tegração de um todo organizado...”58. Estas palavras vêm
a propósito do poema “Weltende” (O fim do mundo), da
autoria de Jakob van Hoddis, um dos autores representa-
tivos do expressionismo alemão. Numa das quadras de
“O fim do mundo”, escreve o poeta” (tradução de João
Barrento): “Voa o chapéu ao bicocéfalo burguês./ Os ares
enchem-se de gritos e rumores./ Desintegrando-se, caem
os telhadores,/ E – segundo as notícias – sobem as ma-
rés.// Chegou a tempestade, saltam mares ululantes/
Para terra: esmagar diques é sua intenção./ Em quase
toda a parte grassa constipação./ Os comboios precipi-
tam-se das pontes.” (Ibidem).

57
CAVALCANTI, Cláudia. A literatura expressionista alemã. São
Paulo: Ática, 1995. (Série Princípios) P. 40.
58
BARRENTO, João. A poesia do expressionismo alemão. Lisboa:
Editorial Presença, 1989. P. 75.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 85

Ora, a poesia de Augusto é cheia dessas imagens de


destruição, em que o elemento físico se decompõe, pela
doença, e se anula por uma espécie subversão das leis da
física. A referência à desintegração dos telhados e ao salto
dos mares, no trecho acima, lembra a desolação anárquica
de “As cismas do Destino”, onde nada fica de pé e onde,
generalizadamente, se percebe a mesma atmosfera de fim
do mundo – conforme demonstram estes versos: “O mun-
do resignava-se invertido/ Nas forças principais do seu
trabalho.../ A gravidade era um princípio falho/ A análi-
se espectral tinha mentido!// O Estado, a Associação, os
Municípios/ Eram mortos. De todo aquele mundo/ Res-
tava um mecanismo moribundo/ E uma teleologia sem
princípios.”.
Em “As cismas do Destino” (assim como no poema
do alemão), também se registra a convulsão dos elemen-
tos naturais, a agonia urbana de uma metrópole em cuja
alma “profundamente lúbrica e revolta/ Mostrando as
carnes, uma besta solta/ (Solta) o berro da animalidade”
– uma metrópole, enfim, que se esboroa em meio a pres-
ságios, rumores e gritos. Outra aproximação entre esse
poema e o fragmento de van Hoddis é que, também em
Augusto, a natureza adoece. Assim, a imagem da “consti-
pação” que em quase tudo grassa, referida em “O fim do
mundo”, corresponde no paraibano às alegorias da tuber-
culose e do tétano, que acometem não apenas os animais
como também a matéria inorgânica. Numa das estrofes de
“Gemidos de Arte”, o nosso poeta chega a falar de uma
“parede doente”, “trôpega e antiga”, que “Mostra a cara
medonha dos buracos”.
Muito mais haveria a dizer sobre os pontos em co-
mum entre a poética de Augusto dos Anjos e a dos ex-
pressionistas alemães. É melhor que o assunto fique para

SUMÁRIO
86 Chico Viana

uma ocasião posterior, quando seja possível – sem chatear


ninguém – comparar os autores com rigor acadêmico e al-
guma profundidade analítica. Hoje a noite é sobretudo de
festa, ou seja, de congraçamento e leveza. Encerro as mi-
nhas palavras parabenizando os editores, as tradutoras,
o governo do estado e, enfim, a todos que concorreram
para o aparecimento deste livro. Tenho certeza de que
essa amostragem da poesia de Augusto despertará o in-
teresse dos alemães pelos seus outros poemas. Pois muito
da lírica do paraibano, em função das aproximações que
aqui esbocei, lhes soará familiar.
Muito obrigado.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 87

AUGUSTO DOS ANJOS,


CLÁSSICO DA LÍNGUA

Se vivo fosse, Augusto dos Anjos teria completado,


no último dia 20 de abril, cento e treze anos. O poeta mor-
reu em 1914 e a sua obra desde então propaga-se, late-
jante e viva, confirmando uma perenidade e um vigor só
encontrados em muito poucos autores da literatura bra-
sileira. Augusto tem sido objeto de ensaios, artigos Dis-
sertações e Teses – e pode-se dizer que o seu coroamento
crítico-editorial ocorreu em 1994, com a publicação da sua
Obra Completa pela Editora Nova Aguilar.
Tive um modestíssimo papel nos bastidores dessa
edição. E presumo que, aos admiradores e estudiosos do
poeta, interesse o que narro a seguir. Era um meio-dia de
abril de 1994, estou almoçando e o telefone toca. Atendo.
Um moço de nome Alexei Bueno, ligando-me do Rio de
Janeiro, me pede “um favor”. E que favor? Ele primeiro
me explica que trabalha na editora Nova Fronteira e, no
momento, está organizando a obra completa de Augus-
to dos Anjos. A seguir, informa-me o que lhe falta para,
segundo ele, a edição sair “mesmo completa”: os exem-
plares do jornalzinho Nonevar referentes aos anos de l908,
l909 e 1910.
Esse jornalzinho, como se sabe, circulou na Fes-
ta das Neves no início do século. Segundo o historiador
Humberto Nóbrega, nele Augusto colaborou por boêmia,
desfastio de provinciano e até por necessidade econômi-
ca, revelando uma faceta oposta à dos seus poemas ditos
sérios. Ao invés da angústia, da melancolia e das imagens
escatológicas, a colaboração no Nonevar revela a jocosida-
SUMÁRIO
88 Chico Viana

de e o ludismo de um poeta mundano, atento ao ridículo


dos amigos e à beleza das mulheres. Imagino que só haja
um lugar onde eu possa encontrar os exemplares do jor-
nalzinho: a biblioteca do Dr. Humberto Nóbrega.
Prometo a Alexei fazer o possível e, logo, trato de
me mexer. Graças a um parente comum, tenho acesso aos
filhos de Humberto Nóbrega – D. Nitinha e José Francisco
–, os quais me recebem com cordialidade. E me introdu-
zem na biblioteca do seu pai. Por força de recente mu-
dança de local, o acervo ainda estava sendo organizado
e catalogado. Impossível descobrir, naquela provisória
confusão, os exemplares do jornalzinho. Recomendo às
bibliotecárias o meu pedido – e, na minha ênfase, tenho
rasgos de provincianismo e de nacionalismo exaltados;
peço-lhes que se empenhem em nome da Paraíba, do nos-
so amor a Augusto, da própria literatura brasileira...
Feita a recomendação, espero. Estou confiante e, ao
mesmo tempo, cético. E cético, sobretudo, pelo que me
disse D. Nitinha: durante a doença do seu pai, “amigos”
dele se infiltraram na biblioteca e levaram muita coisa. Te-
riam esses ladinos surripiado também os exemplares do
Nonevar? – interrogo-me receoso, sentindo um calafrio. Eu
imaginava esse material, de que se tinha apenas fragmen-
tos no livro de Humberto Nóbrega, para sempre perdido.
Com isto, perdia-se significativa amostragem do múltiplo
talento de Augusto, que também soube (e fez) rir.
Três, quatro dias depois, toca o telefone (sempre o
telefone). E Ana, uma das bibliotecárias, me informa que
o material foi encontrado. Não acredito até manusear
os exemplares coloridos (um cor para cada noite), ainda
bem conservados graças ao zelo do Dr. Humberto. E me
apresso em providenciar-lhes a xerox, e enviá-la ao Ale-
xei Bueno. Cerca de três dias depois, ele novamente me
escreve, entusiasmado: “Recebi hoje, ao meio-dia, os dois

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 89

envelopes com o Nonevar, em perfeito estado, e você pode


avaliar a minha alegria!” (31/05/94).
Poucas linhas depois, numa prova de que não per-
dia mesmo tempo, informa o saldo parcial de suas pes-
quisas no material recém-adquirido: “Já encontrei no No-
nevar, independente de tudo que precisava, uma quadra
e oito crônicas inéditas, que vou começar a transcrever.”.
E salienta que, com a inclusão desses inéditos – “e tudo
em rigorosíssima ordem cronológica e texto perfeitamen-
te fixado a partir dos originais” – Augusto dos Anjos terá,
enfim, o tratamento editorial que sempre mereceu: de
“clássico da língua”.
A 15 de junho enfim, em nova carta, Alexei Bue-
no dá como terminadas as suas investigações: “Terminei,
com perfeito sucesso, a pesquisa e transcrição dos textos
do Nonevar. Reencontrei a ordem cronológica, desfiz uma
infinidade de erros de transcrição, localizei prosas inédi-
tas, etc...”. Como se percebe, não foi pequena a contribui-
ção que os exemplares do jornalzinho representaram para
a edição da Obra Completa. Agora, sim, Augusto sairia
mesmo em texto integral – com o registro de toda a sua
produção conhecida, e confrontada com os originais, em
verso e prosa.
Sobre o poeta, escrevi já uma Tese e muitos artigos.
Nada me deixa mais vaidoso e satisfeito, no entanto, do
que haver concorrido para salvar dos vermes, das traças
– talvez do definitivo desconhecimento – essa parcela da
sua produção.

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90 Chico Viana

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 91

AUGUSTO DOS ANJOS TRÁGICO?


Em texto publicado a 28 de agosto último, no segun-
do caderno de O Globo, o jornalista Paulo Roberto Pires
identifica na revalorização de Augusto dos Anjos uma es-
pécie de renascimento do trágico. Eis o subtítulo da sua
matéria: “Mesmo rejeitado, o trágico volta a assombrar a
arte moderna com a revalorização de Augusto dos An-
jos.” Ele não nos explica bem o que entende por trágico,
misturando no mesmo bisaco os nomes de Rimbaud, Bau-
delaire, Nélson Rodrigues, Artaud e Nietzsche – e filian-
do à essência do trágico movimentos como o romantis-
mo, o simbolismo e o expressionismo. O jornalista faz um
pequeno festim lítero-dionisíaco, inserindo o seu artigo
no próprio assunto de que trata. Pois é realmente trágica
uma peça com tantos deslizes grandes e pequenos.
A começar pelo título cacofônico “A boca que es-
carra”, pelo qual o articulista, a pretexto de citar o poeta
paraibano, acaba lhe prestando um desserviço. Augusto
deveria ser citado pelo que tem de bom, e não pelo que
tem de lastimável. E, sobretudo, deveria ser citado com o
devido respeito ao seu texto e aos fatos concernentes à sua
vida.
Ele não escreveu, no soneto dedicado ao filho morto
a 2 de fevereiro de 1911, “Agregado infeliz de carbono e
cal,/fruto rubro da carne agonizante” – e sim “Agregado
infeliz de sangue e cal/fruto rubro de carne agonizante”.
Nem começa o seu “Psicologia de um vencido” por “Eu,

SUMÁRIO
92 Chico Viana

fruto do carbono e do amoníaco”, e sim por “Eu, filho do


carbono e do amoníaco”. Augusto dos Anjos não morreu
aos quarenta anos, e sim aos trinta. E o motivo da sua
morte (Ih, como isso é velho!) não foi a tuberculose, mas
uma pneumonia. Morreu infeccionado e, no delírio da fe-
bre, compôs o soneto “O último número”, que Órris Soa-
res enfeixou no final das “Outras poesias”.
Seria Augusto dos Anjos um trágico? A meu ver,
não. A não ser no sentido lato do termo tragédia, o qual
comporta a idéia genérica de “impasse, falta de saída”.
Mas o nosso jornalista cita Nietzsche e, com isto, remete a
conceitução do trágico ao seu sentido original.
Ora, o que dá ensejo ao herói trágico, qual a sua
transgressão primeira? A chamada hamartia, ou “erro de
cálculo”, pela qual ele agride os deuses. A essa agressão,
os gregos chamavam hybris. O herói trágico vive em hy-
bris, desafiando os deuses a partir de um “erro de cálcu-
lo”. Como tal, é vítima de uma armadilha do fado, ou des-
tino. Ele não é originalmente culpado. É errôneo identifi-
car a hamartia com o pecado, como o faz Lacan em algum
ponto do seu Seminário 7. O pecado só viria depois, com
o cristianismo. Hamartia é descuido, erro, submissão à fa-
talidade.
O pensamento trágico, que teve em Nietzsche um
de seus expoentes, proclama todo o tempo a inocência
humana. Por via disso, recusa qualquer referência a uma
natureza, em função da qual o homem fosse percebido
como diferença. Kierkegaard lembra que na diferença co-
meça o pecado. Recusando a idéia de natureza, o pensa-
mento trágico afirma a pureza e a solidão humanas; nele,
o homem como que se constitui em referência de si mes-
mo – “uma corda sobre o abismo”. Está sozinho perante
o fado.

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O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 93

Ao pensamento trágico se opõe o pensamento ético,


segundo o qual o homem é, desde o início, marcado pela
falta – ou seja, pelo pecado original. E nessa forma de ver,
conceber o homem, é que se insere a persona lírica de Au-
gusto dos Anjos, para quem o grande problema humano
é “a peçonha original de onde viemos”. O Eu vem per-
meado de imagens de culpa, como nesta estrofe de “As
Cismas do Destino”: “Ah! Com certeza, Deus me casti-
gava!/Por toda parte, como um réu confesso,/Havia um
juiz que lia o meu processo/E uma forca especial que me
esperava!”.
Daí que se observa em toda a poesia do paraibano, ao
invés do sentimento de inteireza, o de fragmentação. Daí
a morbidez de suas imagens, a qual vem ligá-las, genera-
lizadamente, ao universo decaído da falta. Daí o exacerba-
do naturalismo, em função do qual a natureza se animiza
e, em sua sádica diferença, converte-se na “velha madras-
ta” da qual o eu-lírico procura se vingar. Daí o peso de um
destino sombrio, projeção desmesurada – como bem viu
Freud – de um superego tirânico e insaciável. Daí enfim,
na poesia de Augusto dos Anjos, a particular aversão ao
“monstro” do prazer, que ele teme mais do que a própria
morte. Por tudo isto, vê-se quão longe ele está da inocên-
cia trágica de Nietzsche.
Talvez o nosso jornalista tenha confundido trágico
com grotesco, ou neobarroco. Augusto é pura transplan-
tação barroca, espécime por excelência do melancólico, de
que nos fala Walter Benjamin. Com suas imagens alegóri-
cas, fragmentadas, o que o motiva basicamente é o anseio
de resgatar o homem decaído; é o desejo de “outra Hu-
manidade”.
E, já que estamos desfazendo confusões, espera-se

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94 Chico Viana

que o nobre jornalista, em seus próximos artigos sobre o


tema, escreva certo o nome do deus grego: a pronúncia
e grafia corretas é “Dioniso” (sem o terceiro “i”), e não
“Dionísio”.

SUMÁRIO
O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos 95

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96 Chico Viana

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