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FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL:

ASPECTOS HISTÓRICOS DA PROFISSÃO

CAPÍTULO 2 – QUESTÃO SOCIAL: O QUE É


AFINAL?
Manuela Soares Silveira

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Objetivos do capítulo
Ao final deste capítulo, você será capaz de:
• Identificar as expressões da questão social, compreendendo o contexto de seu surgimento.
• Reconhecer as diferentes perspectivas em torno do conceito de “questão social”, analisando quais são os
debates atuais acerca do tema.

Tópicos de estudo
• A origem da Questão Social
• Primeiros debates conceituais sobre a questão social
• A questão social como resultado de relações contraditórias
• A questão social como expressão da contradição entre capital e trabalho
• Identificação da contradição e construção das primeiras reflexões
• Questão Social X pauperismo
• Desígnio divino
• Pobreza extrema
• Problemas sociais
• Questão social – polêmicas em torno de seus conceitos
• Questão social ou questões sociais?
• Existiria uma nova questão social?
• Os autores franceses e as polêmicas
• Questão social: principais pensadores
• Questão social segundo Cerqueira filho
• Questão Social segundo Jose Paulo Netto
• Questão social segundo Marilda Iamamotto

Contextualizando o cenário e pergunta norteadora


Na atuação profissional, os assistentes sociais, em seus espaços ocupacionais, deparam-se com contextos
diversos. São situações que têm em comum a ausência do Estado na garantia de direitos e políticas sociais, a
pobreza, vulnerabilidades sociais, a falta ou precariedade no acesso a espaços de educação, trabalho, cultura,
lazer, esporte e saúde, a exclusão e o preconceito, a violência, entre outras formas de negação de direitos. Esses
fatores demandam do em assistência social as qualificações de natureza teórico-metodológico, ético-político e
instrumentos, métodos e estratégias que o capacitem para tanto. A compreensão das configurações dessa
realidade é um importante passo para a intervenção necessária. Nesse sentido, a Questão Social é conceito
central para a abordagem da realidade com a qual lida esse profissional, e é sobre ela e as formas como se
expressa que se busca refletir nesse capítulo.

Diante desse cenário, questiona-se: A Questão Social sempre foi a mesma nos diferentes contextos histórico-
sociais?

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2.1 A origem da Questão Social
A expressão Questão Social está presente no cotidiano de atuação do assistente social, e é fundamental em sua
formação teórico-metodológica. Contudo, sua origem não é própria da profissão, e remonta a diferentes contextos
históricos. Não só foi usada com diferentes finalidades de compreensão e intervenção na realidade social, como
também por diversos segmentos filosóficos e intelectuais.

O entendimento da origem e trajetória dessa expressão possibilita notar que as condições de existência e
trabalho das classes subalternizadas da sociedade têm sido objetos de interesse no decorrer do processo
histórico. Seja como forma de controle e repressão, filantropia e caridade, seja como resistência à exploração, a
Questão Social e suas diferentes manifestações vão ser problematizadas continuamente.

A seguir veremos como tais problematizações foram inseridas nos debates acerca da Questão Social, com o
objetivo de compreendê-las, explicá-las e conceituá-las.

2.1.1 Primeiros debates conceituais sobre a questão social

O surgimento da “Questão Social” como expressão está ligada ao aparecimento do uso no léxico político da palavra
socialismo, a partir da década de 30 do século XIX, para explicar a intensificação e generalização da pobreza na
época (NETTO, 2006). Os críticos sociais e filantropos ligados ao movimento socialista buscavam dar conta do
fenômeno do pauperismo, que se dava como reflexo da instauração do capitalismo em seu estágio industrial-
concorrencial (NETTO, 2006). Ou seja, sua origem remonta ao aparecimento do chamado trabalho livre, quando
há a separação entre produtores e os meios de produção (MARTINELLI, 1997). Assim, os trabalhadores passaram a
ter de se autossustentar por meio do salário, pago pela venda da sua força de trabalho aos detentores dos meios
de produção (burgueses, capitalistas).

A pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade de produzir riquezas e, consequentemente, de
redução e supressão do pauperismo (NETTO, 2006). Incialmente, a designação desse pauperismo como “Questão
Social” é fruto dos embates dos pauperizados contra a ordem burguesa, representados na sua não conformação e
dos desdobramentos sócio-políticos de suas lutas. Dessa forma, estavam estabelecidos os pilares do modo de
produção capitalista, ao mesmo tempo em que a resistência operária à exploração a que era submetida os
ameaçava (IAMAMOTO; CARVALHO, 2011; NETTO, 2006). Aparecia assim a necessidade do controle social da força
de trabalho.

O pauperismo é posteriormente capturado pelo pensamento conservador para naturalizar como imutáveis suas
manifestações imediatas: desigualdade, desemprego, fome etc. (NETTO, 2006; IAMAMOTO; CARVALHO, 2011).

Com o reconhecimento dos conflitos como tais, os teóricos da época, especialmente positivistas franceses como
Auguste Comte e Émile Durkheim, passaram a colaborar na construção de mecanismos de controle social.

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O filósofo Auguste Comte
Fonte: © Image Studio / / Shutterstock

Os estudos propostos por esses teóricos tinham entre seus objetivos identificar os elementos sociais que fossem
capazes de manter a coesão da sociedade, ou seja, o controle dos conflitos e manutenção da ordem societária
capitalista, como se observa no esquema abaixo.

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Principais aspectos do positivismo de Comte e Durkheim

Caracterizam ainda o estilo de pensar o social trazido por esses teóricos a moralização da Questão Social, ao
propor a resignação e pacificação dos seus protagonistas e a individualização das refrações da “Questão Social”
(NETTO, 2006).

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Principais expressões da “Questão Social” destacadas por Iamamoto
Fonte: IAMAMOTTO, 2000. (Adaptado).

Tais refrações (também compreendidas como expressões ou sequelas da “Questão Social”) se concretizam e são
vivenciadas cotidianamente pela classe trabalhadora. Assim, veremos no próximo item que a compreensão dessa
expressão se deu também no cerne do conflito entre trabalhadores e capitalistas, no enfrentamento as suas
refrações.

2.1.2 A questão social como resultado de relações contraditórias

Desde as primeiras tentativas de conceituação da “Questão Social”, o termo já era identificado como um fenômeno
causado pelos conflitos entre diferentes frações do espectro social. Com o crescimento numérico do proletariado
e a solidificação dos laços de solidariedade política e ideológica a partir da segunda metade do século XIX, ele
deixou de ser apenas contradição entre abençoados e desabençoados pela fortuna, pobres e ricos, dominantes e
dominados (IAMAMOTO; CARVALHO, 2011).

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É o que Netto (2006) vai chamar de politização da questão social, pois ela passa a ser colocada no terreno
específico do antagonismo capital-trabalho e sua resolução compreendida como processo revolucionário. No
entanto, essa politização não é imediata, e passa por um processo de progressiva compreensão por parte do
proletariado da gênese, constituição e processos de reprodução da “Questão Social”.

Assim como busca fazer com as expressões da “Questão Social”, o capital tenta individualizar a vinculação do
trabalhador ao mercado de trabalho, para descaracterizar sua especificidade de classe (MARTINELLI, 1997).

Apesar da aparente vinculação individual do trabalhador ao mercado de trabalho, ela se torna cada vez mais social,
uma vez que sua sobrevivência e reprodução social só se tornam possíveis enquanto é parte dessa classe social.
Classe social que está inserida em condições de existência e de trabalho angustiantes (IAMAMOTO; CARVALHO,
2011). Essas condições são melhor caracterizadas no quadro abaixo.

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Condições de existência e de trabalho dos trabalhadores brasileiros no início do século XX
Fonte: IAMAMOTO; CARVALHO, 2011. (Adaptado).

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Essas condições escancararam as relações contraditórias que fundaram a ordem societária capitalista, e,
consequentemente, que são base para a compreensão da “Questão Social” para além da sua manifestação
imediata como pauperismo. Isso porque tais condições revelam a necessidade de um posicionamento mais
ostensivo em torno da “Questão Social” por parte das diversas classes e frações de classe dominantes, do Estado e
da Igreja, bem como a demanda por leis sociais que regulassem e lidassem com essa realidade (NETTO, 2006;
IAMAMOTO; CARVALHO, 2011).

A essência da Questão Social é a contradição antagônica entre burguesia e proletariado. Isso porque de um lado, as
leis sociais se originam da pressão proletária, mas de outro é também uma imposição de controle e vigilância por
parte dos setores dominantes, como forma de garantia e manutenção da estrutura social desigual.

Essa essência vai se destacar com a tomada de consciência por parte do proletariado da existência dessa
contradição.

2.1.3 A questão social como expressão da contradição entre capital e trabalho

Ao tomar consciência da situação de exploração e subjugação em que se encontram, os trabalhadores passaram a


se enxergar enquanto classe, ou como entendida pela base teórico-metodológica de Karl Marx e Friedrich Engels, “
classe para si” (NETTO, 2006). Ou seja, inicia-se o processo de construção de sua identidade como protagonista
histórico-social consciente, se envolvendo cada vez mais ativamente na busca da construção de sua própria
história. Dessa forma, para o movimento dos trabalhadores, a resolução da “Questão Social” estaria vinculada à
supressão completa da ordem burguesa (NETTO, 2006).

O filósofo Karl Marx


Fonte: © Image Studio / / Shutterstock.

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O filósofo Friedrich Engels
Fonte: © Image Studio / / Shutterstock.

Essa tomada de consciência foi reforçada com o rigor da repressão, contribuindo na busca de maior organização
do movimento operário, o que se fortaleceu com a publicação, em 1848, do Manifesto do Partido Comunista por
Marx e Engels.

Tratando especificamente da realidade Brasileira, no início do século XX, despontaram formas de organização do
proletariado que escancaram a Questão Social e suas refrações como contradição. Caracterizada especialmente
pelas Ligas Operárias, que reúnem trabalhadores brasileiros de diferentes ofícios lutando por seus interesses em
comum, a resistência operária mais sistematizada e organizada se desdobrará nas Sociedades de Resistência e
Sindicatos, que passaram a dar destaque às relações de produção (IAMAMOTO; CARVALHO, 2011).

Essas formas de organização fizeram com que o componente assistencial inerente às primeiras intervenções nas
sequelas da “Questão Social” diminuísse ou desaparecesse. Ao mesmo tempo em que a entrada da classe operária
no cenário político trouxe a necessidade de seu reconhecimento pelo Estado e da consequente implementação de
políticas que considerassem seus interesses (IAMAMOTO, 2000).

2.1.4 Identificação da contradição e construção das primeiras reflexões

Com o avanço da tradição crítica marxista, a problematização das expressões da Questão Social vai além da sua
manifestação imediata como pauperismo. Também denominadas por Netto (2006) de “complexo de
causalidades”, essas expressões não somente passam a ser identificadas pela questão operária como fundamental
à reprodução das relações de produção e suas contradições, como também são reconhecidas por parte do Estado.

Ou seja, quando a intervenção estatal passa a ser fundamental para a manutenção e reprodução da ordem
capitalista, as demandas das diferentes categorias de trabalhadores também tiveram que ser contempladas pelo
Estado Burguês.

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DICA
Sobre o conceito de Estado Burguês, consulte Saes (1998). O autor busca superar uma
perspectiva determinista de uma relação causal simples e unívoca na transformação burguesa
do Estado, ao propor que as relações sociais dependem intrinsecamente do Estado tipicamente
burguês para se reproduzirem.

Dessa maneira, a Questão Social passou a ser alvo de políticas sociais como forma de administrar suas refrações,
especialmente com o objetivo de atender às demandas da ordem social hegemônica.

Clique nos ícones abaixo para compreender o processo.

No Brasil, em fins do século XIX e início do XX, identificam-se iniciativas tímidas de regulamentação, como, por
exemplo, decretos e leis (IAMAMOTO; CARVALHO, 2011).

Somente em 1926, com a Emenda Constitucional que destinou a legislação do trabalho ao Congresso Nacional, é
que a intervenção do Estado na garantia da proteção ao trabalho começou a se dar de forma mais sistematizada.
Nessa época, a existência da Questão Social não havia sido reconhecida pelo Estado.

Juntando-se à caridade e a repressão, o controle e a integração social, como forma de atenuação dos conflitos,
compuseram as respostas do Estado às expressões da Questão Social.

A repressão policial, as ações caridosas e assistencialistas e a legitimação política por meio de respostas às
demandas dos trabalhadores, foram responsáveis por garantir a paz social necessária à acumulação capitalista
(IAMAMOTO; CARVALHO, 2011).

É nesse cenário que estão postas as bases para o surgimento do Serviço Social, possibilitando identificar nas
manifestações da Questão Social o objeto de intervenção profissional do assistente social, por meio,
especialmente, das políticas sociais (MARTINELLI,1997).

Pausa para refletir: em sua atuação contemporânea junto às políticas sociais, intervindo e lidando com as
expressões da “Questão Social”, o assistente social tem assumido uma postura política e uma orientação da
prática voltadas para os interesses e lutas da classe trabalhadora, ou tem reproduzido a ordem societária
desigual, como nos primórdios de sua atuação?

As diferentes formas de atuar do Estado com as expressões da Questão Social foram subsidiadas inicialmente pelas
perspectivas do chamado pensamento conservador do século XIX (NETTO, 2006), como se verá a seguir.

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2.2 Questão Social X pauperismo
Como foi possível perceber até aqui, não há unicidade na definição da expressão “Questão Social”, uma vez que
traz compreensões diferenciadas e atribuições de sentido muito diversas. O que se coloca como consenso é o
período histórico e a conjuntura socioeconômica em que surgem demandas para explicar e intervir nos
desdobramentos desse fenômeno.

Essa realidade é identificada propriamente enquanto “Questão Social” e não somente como pauperismo, a partir
do momento em que os pauperizados a identificam e questionam politicamente, resistindo à ordem burguesa. Ou
seja, quando romperam com o pensamento conservador do século XIX, que era dividido em duas vertentes: o
pensamento confessional da doutrina social da Igreja Católica e o pensamento laico representado na teoria social
positivista de Durkheim (NETTO, 2006).

2.2.1 Desígnio divino

Nas primeiras décadas do século XIX, a pauperização massiva era o aspecto mais expressivo da instauração do
capitalismo em seus primórdios. Esse pauperismo se diferenciava de períodos anteriores – em que já havia a
polarização entre ricos e pobres, bem como a desigualdade na fruição dos bens sociais. A dinâmica da
generalização da pobreza era radicalmente nova (NETTO, 2006).

Ela crescia na razão direta em que aumentava a capacidade de produzir riquezas (pelo nível de desenvolvimento
das forças produtivas materiais e sociais) e, consequentemente, a capacidade de redução e supressão do
pauperismo. As mesmas condições que possibilitavam sua redução, eram as responsáveis por sua produção
(NETTO, 2006; MARTINELLI, 1997).

Dessa maneira, com o objetivo de garantir a ordem e a estabilidade do capitalismo, diante do enfrentamento que
essa situação gerava, a burguesia buscava meios de validar a exploração junto à classe operária. Eles se utilizavam
de mecanismos que pretendiam reproduzir a ideia da normalização e necessidade da exploração.

Para isso, a classe burguesa se uniu ao Estado e à Igreja, e, influenciados pela perspectiva filantrópica, passaram
a sistematizar e racionalizar a intervenção junto à “Questão Social”. Buscaram camuflar a desigualdade e a pobreza
existentes e amenizar a revolta operária (NETTO, 2006).

EXEMPLO
Um exemplo da colaboração da Igreja nessa “caridade sistematizada” é a encíclica escrita em
1891 pelo Papa Leão XIII, a denominada Rerum Novarum (MARTINELLI, 1997). Nessa encíclica, o
Papa chamou a população para a responsabilidade de ajuda ao pobre, ao mesmo tempo em que
reforça a resignação que o proletário deve ter frente a sua situação.

O pensamento confessional da doutrina social da Igreja Católica trouxe a compreensão religiosa e moralista da
“Questão Social”. Essa doutrina sugeria que os pauperizados são vítimas do destino e trazia a caridade e a
evangelização católica para o trato da “Questão Social”, como formas de doutrinação e controle dos afetados por
suas expressões.

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Selo postal impresso na cidade do Vaticano com a figura do Papa Leão XIII
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Assim, esse pensamento reconhece de forma superficial a “Questão Social” e busca diminuir seus desdobramentos
mais graves, mas reitera que a resistência e o enfrentamento contra suas consequências são contrárias à “vontade
divina” contra a qual não é possível lutar, uma vez que existem por “força do destino”, por desígnio divino (NETTO,
2006).

Um desses desdobramentos era a pobreza extrema, representada na miséria dos trabalhadores do século XIX,
como veremos no próximo item.

2.2.2 Pobreza extrema

A decadência do sistema feudal no final do século XV propiciou importantes componentes para a formação do
capitalismo: a separação do camponês da terra (do produtor e dos meios de produção) e a divisão social do
trabalho. A partir daí, começou a surgir nos chamados burgos uma nova classe: a burguesia, que acumulava
riquezas e, consequentemente, poder político.

Para o suprimento de matéria-prima no comércio em desenvolvimento e a produção em larga escala, as terras


eram cercadas obrigando os camponeses a saírem dessas terras e irem para as cidades. Lá, o trabalhador era
oprimido, recrutado coercitivamente e obrigado a entrar no mercado por meio do trabalho assalariado. Alijado de
seus meios de produção e empobrecendo cada vez mais, em rota oposta à burguesia (MARTINELLI, 1997).

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ASSISTA
Assista ao filme Germinal, baseado no romance de Émile Édouard Charles Antoine Zola, o qual
aborda com riqueza de detalhes o contexto histórico e social de consolidação do capitalismo,
retratando a situação vivenciada pela classe trabalhadora da época.

Na segunda metade do século XIX, o capitalismo havia amadurecido consideravelmente, mas somente a burguesia
recebia os benefícios, com o recrudescimento e a generalização da pobreza da classe trabalhadora. A miséria
generalizada nos países europeus era encarada pelos governantes como fator de risco para o equilíbrio social, e
por isso, era mantida sob o mais severo e rigoroso controle (MARTINELLI, 1997).

Ilustração de 1868 de repressão a motim em mina de carvão na Comuna de Epine, na França


Fonte: © Image Studio / / Shutterstock

O pobre era vigiado por uma legislação selvagem, a qual lhe destituía a cidadania econômica, a liberdade e a
mobilidade social. Assim, a pobreza e a mendicância eram tidos nesse contexto como problemas de caráter, e a
assistência como rígido mecanismo de correção e controle. Considerados problemas sociais e morais, essas
questões passaram a ser analisadas de forma científica, para possibilitar intervenções reformistas e repressoras,
como se percebe nas próximas análises.

2.2.3 Problemas sociais

Para além da repressão, da assistência e da filantropia, as expressões da “Questão Social” eram analisadas
cientificamente como problemas sociais. Para o pensamento conservador laico, representado nas ideias
positivistas de Durkheim, as expressões da “Questão Social” são vistas como frutos de características inelimináveis

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de toda e qualquer ordem social, inclusive da burguesa (NETTO, 2006). Devem ser alvo de uma intervenção política
limitada com suporte científico, que pouco ou nada vão transformar, mas apenas amenizar e reduzir através de
reformas.

Para esse pensamento os pauperizados e a classe operária deveriam se resignar para garantir a civilidade e a
coesão moral. Naturalizando as desigualdades como problemas sociais herdados pela ordem burguesa, esse
pensamento propunha a educação do proletariado como forma de controle social (NETTO, 2006).

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Assim, o pensamento conservador, representado tanto na proposta da doutrina social da Igreja como no
pensamento laico positivista, propõe a reforma moral como um dos mecanismos de trato da “Questão Social”.

Com a naturalização da “Questão Social” perde-se a compreensão da relação entre desenvolvimento capitalista e
pauperização, colocando-a como objeto de ação moralizadora. São duas vertentes que se complementam na
manutenção e reprodução da ordem societária, ou seja, na preservação da propriedade privada dos meios de
produção.

A trajetória da Questão Social ao longo dos estágios de desenvolvimento capitalista suscita polêmicas em torno de
suas conceituações. Uma breve análise dessas polêmicas é trazida no próximo item.

2.3 Questão social – polêmicas em torno de seus conceitos


Até esse momento, vimos as condições de vida e existência da classe trabalhadora nos séculos XIX e XX, bem como
da generalização da pobreza e o pauperismo nos primórdios do capitalismo. Sabe-se que as mazelas e
vulnerabilidades sofridas na atualidade pelos trabalhadores não são as mesmas dessa época. Houve avanços e
conquistas, especialmente na área dos direitos sociais. Além disso, essas condições variam de acordo com cada
realidade sociocultural, regional e nacional.

Os reflexos das relações sociais desiguais de produção são também diversos, a depender do espectro da realidade
social. Diferentes grupos sociais, étnico-raciais, de gênero e de classe, vão vivenciar de formas diferentes esses
reflexos em seu cotidiano. Isso leva a variadas perspectivas de como se conceitua a “Questão Social” nesse sentido:
existiriam diferentes questões sociais? A realidade de hoje configuraria uma “nova questão social”? Essas
perguntas serão abordadas nos próximos itens.

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2.3.1 Questão social ou questões sociais?

Ao trazer respostas de intervenção para a “Questão Social”, especialmente por meio de políticas sociais, o Estado a
fragmenta e parcializa, tratando-a como problemas sociais individuais descolados da lógica de exploração
capitalista. Tidos como inevitáveis ou como um desvio da lógica social, esses problemas sociais são categorizados
(IAMAMOTO, 2000).

Ao invés de se buscar a superação da “Questão Social” como um todo, há a priorização das ações (IAMAMOTO,
2000). Por exemplo, a pobreza como a expressão mais imediata da “Questão Social”, tem sido o alvo principal das
ações do Estado. Ações que são, contudo, fragmentadas e superficiais, não trazendo de fato as condições de
rompimento com essa realidade.

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A política social se constitui nessa ordem Estatal em políticas sociais, e as sequelas da questão social são tidas
como problemáticas particulares – desemprego, fome, carência habitacional, falta de escolas – e assim
enfrentadas. A política social é então instrumentalizada em benefício do capital. Ou seja, os responsáveis por
enfrentar a Questão Social especialmente na figura do Estado, não a reconhecem enquanto tal e os chamados
“problemas sociais” enquanto suas manifestações (IAMAMOTO, 2000; NETTO, 2006)

Dessa forma, as refrações/expressões da “Questão Social” mudam de acordo com o contexto histórico, social e
econômico, mas a “Questão Social” é única, é sempre a mesma, conforme explica Netto (2006): “[...] a cada novo
estágio de seu desenvolvimento, ela instaura expressões sócio-humanas diferenciadas e mais complexas,
correspondentes à intensificação da exploração que é a sua razão de ser” (p. 160)

Assim, se a Questão Social é sempre a mesma, não seria possível falar em uma “nova questão social”, como
explicado no próximo item.

2.3.2 Existiria uma nova questão social?

Apesar das variadas transformações sociais, econômicas, culturais e históricas, nas relações sociais e na ordem
burguesa; apesar de alguns avanços nas conquistas dos direitos sociais, não existe “nova questão social”
(NETTO, 2006), mas a emergência de novas expressões da “Questão Social”, correspondentes à intensificação da
exploração própria de seus fundamentos.

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É preciso ainda considerar, para além da lei que fundamenta a valorização constante e crescente do Capital que é
geral, as particularidades histórico-culturais e nacionais na caracterização das manifestações da “Questão Social’.
Netto (2006) explica que diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da “Questão Social”,
pois são indissociáveis da dinâmica específica dessa estrutura.

Ainda assim, alguns autores, especialmente franceses, propõem essa


ideia contrariando a perspectiva teórica crítica marxista, o que será
melhor explicado nas próximas análises.

2.3.3 Os autores franceses e as polêmicas

No pós Segunda Guerra Mundial, o Estado de Bem-Estar na Europa e nos Estados Unidos pareceu ter trazido uma
suposta superação da “Questão Social” com uma conjuntura de desenvolvimento econômico. As manifestações da
“Questão Social” eram quase um privilégio da periferia capitalista e os países do Terceiro Mundo.

AFIRMAÇÃO
“[...] Uma forma de sociabilidade fundada no ‘compromisso’ que implementava ganhos sociais e
seguridade social para os trabalhadores dos países centrais [...] [mas que] tinha como
sustentação a enorme exploração do trabalho realizada nos países do chamado Terceiro Mundo
[...]” (ANTUNES, 2002, p. 38-9).

Esse período era chamado por alguns teóricos franceses de “as três décadas gloriosas” (NETTO, 2006).
Contrariando os pensadores marxistas, esses teóricos não reconheciam que as melhoras econômicas no padrão de
vida e consumo da classe trabalhadora e continuavam reproduzindo a essência exploradora do capitalismo.
Inclusive, tal crescimento não foi capaz de erradicar suas crises periódicas.

Clique sobre a interação e acompanhe o raciocínio.

Com a crise do Estado de Bem-Estar e a ascensão dos paradigmas neoliberais e globalizadores, desponta a
perspectiva de uma suposta “nova questão social”, divulgada pelos críticos à teoria marxista, especialmente na
figura do historiador francês Pierre Rosanvallon.

A perspectiva desconsidera mais uma vez a relação fulcral entre a “Questão Social” e a ordem burguesa, que ignora
os (novos) dispositivos de exploração, e, consequentemente, propõe alternativas reformistas cada vez mais
inviáveis nas condições contemporâneas do atual estágio capitalista (NETTO, 2006).

Netto (2006) explica que novas expressões sócio-humanas, cada vez mais diferenciadas e complexas são
instauradas nos novos estágios de desenvolvimento capitalista. Essas expressões eram determinadas pela
intensificação da exploração própria a esse desenvolvimento, mas também por particularidades culturais,
geopolíticas e nacionais, ou seja, pelas formações sociais específicas.

Um exemplo que é parte do cotidiano de ação do assistente social são as intervenções de criminalização da
pobreza, especialmente na juventude negra das periferias brasileiras, com ações repressivas e estigmatizantes da
polícia, que buscam uma limpeza social que se dá por vezes na prisão ou morte desses indivíduos (SILVEIRA, 2018).

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Intervenção policial na comunidade “Pavão Pavãozinho” do Rio de Janeiro
Fonte: © Image Studio / / Shutterstock

A repressão e a violência têm frequentemente servido como formas de intervenção na “Questão Social”, como
mecanismos de controle social, desde os primórdios da formação capitalista. Entretanto, percebe-se que a
criminalização da juventude pobre e negra é uma expressão da “Questão Social” que traz contornos particulares
da realidade brasileira. Assim, percebe-se que o processo de criminalização enquanto expressão da “Questão
Social” contribui com a reprodução da lógica excludente do sistema, e é a ele funcional e extremamente necessário
(SILVEIRA, 2018).

Pausa para refletir: Quais os aspectos da realidade social brasileira, com a qual lidam os assistente sociais,
têm configurado essas particularidades das expressões da “Questão Social” no Brasil?

Os dados abaixo mostram como se configura essa expressão da Questão Social nas especificidades da realidade
brasileira, no que diz respeito à criminalização dos adolescentes no Brasil:

Perfil do adolescente em conflito com a lei inserido em medida socioeducativa de internação nos anos de 2010
/2011
Fonte: DMF/CNJ apud Brasil, 2012. (Adaptado).

Por meio do quadro, é possível notar que a população em cumprimento de medida socioeducativa de internação
no Brasil tem um perfil predominantemente de jovens do sexo masculino, com baixos níveis de educação e
inserção no mercado de trabalho, e a resposta do Estado para esses jovens é o encarceramento, mostrando a
“criminalização da pobreza” enquanto solução para a gestão da “Questão Social” (SILVEIRA, 2018).

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São características específicas da realidade brasileira, que vão reiterar o que diz Netto (2006, p. 161): “[...] a
caracterização da ‘questão social’, em suas manifestações já conhecidas e em suas expressões novas, tem de
considerar as particularidades histórico-culturais e nacionais”.

Finalmente, é importante compreender como essas questões são abordadas na tradição teórica do serviço social e
demais ciências sociais, conforme exposto a seguir.

2.4 Questão social: principais pensadores


A “Questão Social”, sendo objeto central na formação e atuação do profissional do Serviço Social, é alvo de
problematização e discussão na tradição acadêmica da área, bem como das áreas correlatas, como as Ciências
Sociais e Políticas. Seus principais pensadores têm discutido e rediscutido suas configurações históricas e
contemporâneas, como mecanismos de investigação da realidade social.

Embora tragam abordagens diferentes, há um aspecto central nas perspectivas que mais se destacam nessas
discussões: a indissociabilidade da ordem social capitalista – suas contradições e expressões mais contundentes,
como a exploração –, das configurações da “Questão Social”.

2.4.1 Questão social segundo Cerqueira filho

Gisálio Cerqueira Filho, professor de Ciências Políticas da Universidade Federal Fluminense (UFF), aborda a
“Questão Social” considerando-a como uma expressão existente exclusivamente no quadro da sociedade
burguesa. Dessa forma, ela nasce como expressão concreta das contradições entre capital e trabalho, no processo
de industrialização capitalista (BRANDÃO, 2009).

Sua análise reitera o entendimento de que a repressão policial como forma de intervenção na “Questão Social” se
reconfigura nos dias atuais, a partir da criminalização da juventude pobre e negra das periferias. Por isso mesmo
que o autor propõe que, embora seja reconhecida pelos diversos setores da sociedade, a “Questão Social” só se
coloca como central para a classe operária.

2.4.2 Questão Social segundo Jose Paulo Netto

Para José Paulo Netto, intelectual marxista e professor titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), a “Questão Social” é compreendida como corolário do desenvolvimento capitalista em
todos os seus sentidos.

Sua existência, bem como de suas manifestações, é indissociável da reprodução dessa estrutura social. Ela é fruto
da relação capital/trabalho, ou seja, da exploração.

Isso quer dizer que a escassez que caracteriza a “Questão Social”, na ordem social burguesa, resulta da contradição
entre a socialização das forças produtivas e a apropriação privada do excedente da produção, garantidas pelas
relações socais de produção. Assim, a “Questão Social” é decorrente da “sociabilidade erguida sob o comando do
capital” (NETTO, 2006, p. 158).

Ainda para esse autor, existem múltiplas determinações, não configurando um fenômeno unicausal, e, por isso, em
sua integralidade ela é integrada por diferentes componentes históricos, políticos, sociais etc. Mais ainda,
exploração que se diferencia em seu tempo histórico por se efetivar num marco de contradições e antagonismos.

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2.4.3 Questão social segundo Marilda Iamamotto

A professora titular da Escola de Serviço Social na UFRJ, Marilda Vilela Iamamotto, considera a “Questão Social”
como a contradição fundamental da sociedade capitalista. Ela seria para Iamamotto (2000) o conjunto das
expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura. Expressões que se originam de um lado da
coletivização da produção social e da socialização do trabalho, e de outro da apropriação privada dos frutos da
produção.

Mas sendo fruto das desigualdades e das contradições das relações sociais, a “Questão Social” é também resultado
da resistência: “Questão social que, sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as
desigualdades e a ela resistem e se opõem.” (IAMAMOTTO, 2000, p. 27).

Assim, a autora mostra como o desenvolvimento na sociedade burguesa é contraditório, por possibilitar de um
lado o acesso do homem à natureza, à cultura, à ciência, pelo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
social, mas de outro aprofundar a produção crescente da miséria, da pauperização.

Proposta de atividade
Agora é a hora de recapitular tudo o que você aprendeu nesse capítulo! Elabore um fichamento destacando as
principais ideias abordadas ao longo do capítulo. Ao produzir seu fichamento, considere as leituras básicas e
complementares realizadas.

Dicas: Registre em 04 fichas (uma para cada item) as principais ideias identificadas nas leituras realizadas. O
registro deve ser feito por meio de citações com as respectivas páginas.

Recapitulando
Nascida no contexto de desenvolvimento do capitalismo, para explicar o fenômeno da generalização da pobreza e
do pauperismo, a “Questão Social” vem sendo discutida, problematizada, revista em diferentes contextos sociais e
históricos, bem como por diferentes perspectivas ideológicas e políticas.

A identificação de suas expressões, bem como as mudanças e novas configurações dessas, sem desvinculá-las das
contradições e exploração própria à ordem burguesa, é essencial para a atuação do assistente social junto às
mazelas e desigualdades que atingem a classe trabalhadora.

É por isso que a expressão “Questão Social” vem sendo abordada pelos pensadores que se destacam na tradição
teórica do Serviço Social. A compreensão e o conhecimento dessas abordagens permitem ao profissional romper
com o conservadorismo presente nos primórdios de sua atuação, que se utilizava da filantropia e controle social
para reproduzir a ordem societária desigual. A prática contemporânea do Serviço Social tem se orientado para os
interesses e lutas da classe trabalhadora, na atuação junto às políticas sociais, como forma de resistência à
exploração.

54
Referências
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sob a afirmação e a negação do trabalho. 6. ed. São Paulo, SP:
Boitempo, 2002.

BRANDÃO, C. S. O debate da questão social: Notas para uma análise crítica do Serviço Social. In: XIX SEMINARIO
LATINOAMERICANO DE ESCUELAS DE TRABAJO SOCIAL, Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil,
Equador. 4-8 de outubro 2009. Anais eletrônicos... Disponível em: <www.ts.ucr.ac.cr/binarios/congresos/reg/slets
/slets-019-219.pdf>. Acesso em 21 nov. 2018.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Programa Justiça ao Jovem. Panorama Nacional: a execução das medidas
socioeducativas de internação. Brasília, DF: 2012. Disponível em: <pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-
apoio/publicacoes/crianca-e-adolescente/programa_justica_ao_jovem_CNJ_2012>. Acesso em: 12/12/2018.

IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na Contemporaneidade: Trabalho e formação Profissional. 3. ed. São Paulo:
Cortez, 2000.

IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. de. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São Paulo: Cortez. 2011.

MARTINELLI, M. L. Serviço Social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez, 1997.

NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e serviço social. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

SAES, D. Estado e democracia: ensaios teóricos. 2. ed. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 1998.
p. 15-50. Disponível: <pt.scribd.com/document/175818616/Estado-e-democracia-ensaios-teoricos-Decio-Saes>.
Acesso em: 19/12/2018.

SILVEIRA, M. S. Sociabilidades e relações sociais dos adolescentes em conflito com a lei em Uberlândia/MG em
2017: sentidos e significados atribuídos pelos sujeitos. Orientadora: Fabiane Santana Previtali. Dissertação
(mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. 2018. 244 f.
Disponível em: <dx.doi.org/10.14393/ufu.di.2018.1309>. Acesso em: 19/12/2016.

55
FUNDAMENTOS DO SERVIÇO SOCIAL:
ASPECTOS HISTÓRICOS DA PROFISSÃO

CAPÍTULO 3 – A ORIGEM E O SERVIÇO SOCIAL


NO MUNDO
Leandro Rocha da Silva

56
Objetivos do capítulo
Ao final deste capítulo, você será capaz de:
• Identificar as origens do Serviço Social relacionando com o desenvolvimento histórico-social da Europa.
• Reconhecer as diferentes filosofias que inspiram o Serviço Social relacionando às diferentes perspectivas e
períodos históricos.

Tópicos de estudo
• Bases teóricas e metodológicas
• As primeiras escolas de Serviço Social no mundo
• Caridade e assistencialismo vinculados à igreja
• Origem do Serviço Social como profissão
• Tomismo e Serviço Social Europeu
• São Thomas de Aquino e a busca do bem-estar comum
• O Serviço Social e a influência da filosofia Tomista
• A doutrina social da igreja e a formação profissional
• Os precursores do Serviço Social
• Juan Luiz Vivés (Espanha)
• Vicente de Paula (França)
• Canon Barnett (Inglaterra)
• Jane Adams (Inglaterra)
• A influência norte-americana
• Mary Richmond
• Mary Parker Follet
• Caridade Organizada (COS)
• O método Case Social Work

Contextualizando o cenário e Pergunta norteadora


Para que possamos compreender o processo que levou à constituição do Serviço Social como profissão, é
necessário entender que sua trajetória está relacionada à da história da assistência prestada àqueles considerados
mais pobres.

Desta forma, para melhor compreensão dos fatores envolvidos na gênese do Serviço Social como profissão,
examinaremos, partindo de uma perspectiva histórico-crítica, a importância das contribuições de personalidades e
instituições vinculadas à assistência em suas diversas modalidades, bem como os conceitos que serviram de base
para sua organização.

Esclarecimento: conforme encontrado em Montaño (2011), A perspectiva histórico-crítica considera o Serviço


Social como produto da síntese de processos econômicos, políticos e sociais, em contraponto à perspectiva
endógena que desconsidera estes fatores ao analisar a profissão.

Diante desse cenário, surge uma questão importante:

Como se dá a relação e as diferenças entre a caridade e Serviço Social enquanto formas de atuação junto à
população empobrecida?

57
3.1 Bases teóricas e metodológicas
O desenvolvimento social promovido a partir da ascensão do capitalismo como sistema vigente de produção
trouxe novos desafios à organização social e gerou as condições para que o Estado assumisse um papel mais ativo
na intervenção junto às mazelas que acometiam a população.

Para tal, se tornou necessário o investimento na qualificação de pessoas que pudessem realizar o trabalho de
intervenção junto ao segmento mais pobre da população. E, neste contexto, nasceu a tônica e a direção para o
processo de organização e institucionalização do Serviço Social como profissão, como veremos a seguir.

3.1.1 As primeiras escolas de Serviço Social

O processo de profissionalização do Serviço Social passou pelo investimento na formação do conjunto de


trabalhadores atuantes nesta seara, por meio da abertura e qualificação de cursos específicos.

Ainda que haja registros anteriores de cursos para o trabalho no Serviço Social, é em 1899 que a primeira Escola de
Serviço Social voltada para a formação sob critérios científicos se instituiu em Amsterdã (Holanda). Neste mesmo
ano, a Escola de Filantropia Social, fundada em 1898 e situada em Nova York (EUA), passou a contar com o curso de
Trabalho Social.

Segue abaixo um quadro com a relação das primeiras Escolas de Serviço Social fundadas:

Surgimento das primeiras escolas de Serviço Social no mundo


Fonte: FONTOURA, 1959; ABRUNHOSA, 2015. (Adaptado).

Além da formação dos profissionais vinculados ao Serviço Social, estas escolas assumiram a atribuição de divulgar
o Serviço Social enquanto assistência especializada junto à população e as instituições, de forma a promoverem a
abertura dos campos de trabalho para essa classe profissional que ainda se estabelecia.

58
No entanto, é importante destacar que o investimento em um processo de formação profissional não surge como
forma de rompimento com a influência religiosa na prestação da assistência, como veremos a seguir.

3.1.2 Caridade e assistencialismo vinculados à igreja

A assistência aos necessitados esteve vinculada à ação da igreja ao longo de sua história, tanto em ações
praticadas pela igreja em si quanto por ações de grupos de pessoas leigas associadas a ela.

AFIRMAÇÃO
“Assistir” abrange um conjunto extraordinariamente diversificado de práticas que se inscrevem,
entretanto, numa estrutura comum determinada pela existência de certas categorias de
populações carentes e pela necessidade de atendê-las (CASTEL, 2010, p.47).

Podemos observar exemplos de como se dá essa relação na própria produção religiosa, onde encontramos
citações, como as destacadas por Fontoura (1959) ao analisar a influência da igreja no Serviço Social:

A influência da igreja no Serviço Social


Fonte: Fontoura, 1959.

Estes exemplos reforçam a visão da caridade como uma forma de remissão de eventuais pecados e de reafirmação
da fé e humildade por meio do serviço ao próximo.

Considerar a influência religiosa na discussão sobre assistência aos mais pobres também nos permite resgatar a
defesa da igreja do entendimento da pobreza como um valor espiritual, onde a vontade divina era a explicação e
justificativa para que alguns tivessem riquezas e outros se encontrassem na miséria.

Segundo esta concepção, a existência dos pobres era parte de uma equação que equilibrava as relações sociais,
por meio das vocações espirituais de ricos e pobres, onde a existência dos últimos garantia as condições para que
os primeiros se redimissem de seus pecados por meio da caridade, principalmente da prática de doação de
esmolas, configurando assim o que conhecemos como Economia da Salvação.

59
Fonte: © Everett – Art / / Shutterstock

Neste sentido, a caridade assume as funções de dever geral, instrumento de estreitamento das relações humanas e
símbolo de aproximação entre os homens. É esta visão que serve de base para o desenvolvimento de ações de
caridade pelas confrarias e ordens religiosas, principalmente no período entre o século IX e o fim da Idade Média.

Conforme descrito por Silva (2016), essas ordens se dedicavam ao auxílio de idosos, viúvas, órfãos, pessoas
acometidas por enfermidades físicas e/ou mentais e pessoas que, mesmo aptas para trabalhar, se encontravam
impossibilitadas de suprir sua subsistência e a de sua família, quer seja por ter sido vitimado em algum acidente,
quer seja por qualquer outro motivo.

Entre as associações mais famosas, podemos citar a Ordem de São Lázaro, a Ordem dos Irmãos Templários e as
Ordens fundadas por São Francisco de Assis, clique na interação para conhecer mais:

• Ordem dos Frades Menores


Que depois se tornaria a Ordem dos Franciscanos.

• Ordem das Clarissas


Para mulheres.

• Ordem Terceira
Criada para a participação de leigos, para que estes pudessem se dedicar à caridade sem precisarem deixar
suas famílias e demais obrigações.

A organização das ações de caridade seriam, nesse contexto, o início de um processo mais amplo de organização e
qualificação das ações de assistência à pobreza, conforme veremos a seguir.

60
3.1.3 A origem do Serviço Social como profissão

O processo de profissionalização do Serviço Social é relativamente recente em comparação com a história da


assistência à pobreza. Sendo situado na passagem do século XIX para o século XX, esse processo está relacionado à
necessidade da sociedade em estabelecer uma nova forma de lidar com os problemas que assolam, em especial,
seus estratos mais pobres.

Seria então o Serviço Social uma forma de evolução da caridade?


Segundo Iamamoto e Carvalho (1982), o Serviço Social se afirma como instituição peculiar a partir de sua inserção
na divisão social do trabalho, que ocorre à medida que a satisfação das necessidades sociais se torna mediada pelo
mercado, ou seja, pela produção, troca e consumo de mercadorias.

As mudanças ocorridas a partir do processo de industrialização (associado à revolução industrial e à emergência da


fase monopolista do capitalismo), trouxeram à tona a necessidade de uma intervenção mais efetiva do Estado no
sentido atenuar as contradições e conflitos que se evidenciam e que se configuram como expressões da questão
social.

Fonte: © Everett Historical / / Shutterstock

Neste sentido, é importante compreendermos que a questão social:

não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu


ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o
proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e
repressão. (IAMAMOTO; CARVALHO, 1982, p. 77)

Para lidar com essa nova realidade, tornou-se necessário recorrer a um maior investimento na organização da
assistência privada e na organização e ampliação das ações do Estado na atenção aos mais pobres. O
desenvolvimento das ciências sociais também configurou um fator importante nesta equação, pois fornece, por
meio de estudos e pesquisas, o embasamento para a formulação e implantação de políticas sociais sob a
responsabilidade do Estado.

61
Esta configuração oferece as condições para que se identifique a necessidade de uma especialização dos
profissionais que se encontram vinculados à assistência aos pobres. Isso abre espaço para a existência de cursos de
formação que preparem estes profissionais para a estratégica missão de intervir junto às relações sociais e
objetivas, de forma a legitimar e preservar a organização social vigente.

Desta forma, o Serviço Social se estabelece enquanto profissão, não como uma evolução da caridade, mas sim
como uma outra forma de lidar com as mazelas vivenciadas pelo segmento mais empobrecido da sociedade,
buscando, assim, uma pretensa harmonia social, necessária para a manutenção do sistema capitalista.

Mais adiante, veremos às principais referências encontradas neste primeiro momento de organização da
assistência e como elas impactaram no processo de profissionalização do Serviço Social.

3.2 Tomismo e Serviço Social Europeu


A emergência de um processo de modernização nas sociedades europeias trouxe a necessidade de repensar e
reorganizar as formas de assistência aos estratos mais pobres. Frente às mudanças, a Igreja também percebeu a
necessidade de apresentar uma contribuição que incorporasse, nesse novo panorama, os ideais e preceitos da
doutrina cristã.

Veremos a seguir alguns apontamentos referentes a esta contribuição no período de institucionalização do Serviço
Social, começando pelos ideais propostos por São Thomas de Aquino.

3.2.1 São Thomas de Aquino e a busca do bem-estar comum

De acordo com o Site Nova Escola, São Thomas de Aquino (1225-1274) nasceu no Castelo de Roccasecca, no
Condado de Aquino, na Itália. Ele fez parte da ordem mendicante dos frades dominicanos, foi conselheiro da Cúria
Papal e professor das Universidades de Nápoles e de Paris. É o responsável pelo desenvolvimento do Tomismo (ou
filosofia tomista), que tem como conceitos centrais a conciliação entre a razão e a fé, entre a filosofia e a teologia.
Formulou, também, um sistema filosófico que conciliava o pensamento do filósofo grego Aristóteles com os ideais
cristãos.

62
Fonte: © Georgios Kollidas / / Shutterstock

Thomas de Aquino defendia que o conhecimento não dependia da fé, mas que se constitui em um instrumento
cuja função seria aproximar os homens de Deus. Defendia ainda a existência de dois tipos de conhecimento, clique
sobre a interação para conhecê-los:

• O sensível
Captado pelos sentidos e que se atém à realidade com a qual se tem contato.

• O intelectivo
Alcançado pela razão e capaz de abstrair até chegar à essência das coisas.

Sua obra mais importante é a Suma Teológica, que propaga o ordenamento do mundo por meio da razão e a
subordinação desta à fé. Essa obra, ainda que incompleta, é considerada como um dos pilares do Tomismo que,
como veremos a seguir, apresentou uma influência importante para o Serviço Social em sua primeira fase.

3.2.2 O Serviço Social e a influência da filosofia Tomista

A retomada dos conceitos defendidos por São Thomas de Aquino, no período entre os séculos XIX e XX, ocorreu em
um momento em que a Igreja buscava assegurar seu espaço dentro da nova conjuntura social que se apresentava
na Europa. A ampliação da atuação estatal na assistência e a adoção de conceitos provenientes das ciências
colocavam a atenção à pobreza em outra esfera de compreensão e organização. Os problemas que encontravam
solução ou amenização na caridade, agora também podiam ser abordados sob a luz da técnica desenvolvida na
atuação dos profissionais do Estado.

63
Retomar as ideias tomistas nesse contexto possibilitou à Igreja apresentar uma interpretação sobre sua relação
com o Estado: assim como a razão é subordinada à fé, o Estado é compreendido como ente autônomo, detentor de
um poder terreno e responsável por zelar pelo bem comum, porém, orientado por um poder divino, representado
pela Igreja.

Na verdade, a concepção de homem encontrada na obra de São Thomas de Aquino repercute no Serviço Social,
embasando a noção de que o homem, como filho de Deus criado à sua semelhança, é merecedor de dignidade e
respeito. Assim, caberia ao profissional de Serviço Social identificar e intervir nos desajustamentos que ferem essa
dignidade e respeito.

Essa seria a base para o desenvolvimento da doutrina social que nortearia as ações na área de assistência no
período inicial do Serviço Social, conforme podemos observar a seguir.

3.2.3 A doutrina social da igreja e a formação profissional

Dois documentos emitidos pela Igreja merecem destaque na análise da influência da doutrina social junto à
atuação de profissionais que viriam a intervir nas expressões da questão social: as encíclicas Rerum Novarum e
Quadragésimo Anno.

DICA
O conteúdo das encíclicas pode ser acessado no site da Santa Sé, através dos links fornecidos na
bibliografia deste capítulo.

A Rerum Novarum foi publicada pelo Papa Leão XIII com o objetivo de fornecer orientações aos católicos sobre
como lidar com a questão social e suas expressões. Já a Quadragésimo Anno, foi publicada em 1931, pelo papa Pio
XI, em comemoração aos 40 anos da Rerum Novarum, reafirmando os ideais contidos nela.

A doutrina social católica se apresentou, então, de forma paternalista e assistencialista, propondo a conciliação de
classes como solução para as expressões da questão social. Lembrando que muitos dos profissionais que se
encontravam trabalhando com Serviço Social tinham vínculos com a Igreja, é possível compreender que, ainda que
seja um período de valorização do desenvolvimento da técnica, essa tecnização não é entendida como um
elemento que concorre com a visão vocacional que se tinha da profissão.

De fato, o que se observa ao analisar os cursos de Serviço Social que surgiram no período inicial da profissão é a
preocupação com a formação técnica e moral desses trabalhadores, uma vez que a eles caberia a missão restaurar
a sociedade dos males trazidos pela industrialização e que atingiriam física e moralmente os segmentos mais
pobres.

Outras influências e contribuições também seriam importantes na organização da assistência, como veremos a
seguir.

64
3.3 Os precursores do Serviço Social
A organização da assistência aos mais pobres na Europa apresentou elementos que serviram como influências para
o Serviço Social brasileiro, principalmente em seu período inicial. No entanto, é preciso que observar que há uma
diversidade nas realidades vivenciadas em cada país, que se reflete nas diferentes propostas e ações realizadas.

Veremos a seguir, por meio das contribuições de algumas personalidades que se dedicaram a pensar e atuar na
assistência à pobreza em países do continente europeu, elementos centrais no debate da organização da
assistência, começando pelo filósofo Juan Luiz Vivés.

3.3.1 Juan Luiz Vivés (Espanha)

Juan Luiz Vivés (1492-1540) foi um filósofo humanista, nascido na cidade de Valência na Espanha, que atuou como
preceptor da princesa Mary da Inglaterra (que depois se tornaria a rainha Mary Tudor) e, posteriormente, se tornou
professor da Universidade Cristã de Oxford. Clique sobre a interação e acompanhe mais sobre ele.

Partidário de princípios, como, por exemplo, justiça social e solidariedade entre os homens, Vivés defendia
reformas nos domínios da igreja e criticava os excessos praticados por seus membros.

Suas obras mais importantes são: “Cidade de Deus de Santo Agostinho” (1522), “Da educação da mulher cristã”
(1523), e “Da assistência aos pobres” (1526).

Foi na obra “Da assistência aos pobres” que Vivés apresentou uma proposta de organização da assistência por
meio da cooperação entre as entidades que se dedicavam a ela e a unificação de fundos e esforços.

O livro ainda fala a importância dos homens ajudarem-se mutuamente e sobre a responsabilidade do Estado no
socorro aos mais necessitados.

Devido à relevância de sua produção, Vivés chegou a ser contratado para elaborar um plano de assistência para a
cidade de Ypres (Bélgica). No entanto, por conta de discordâncias da igreja, suas ideias não chegaram a ser postas
em prática.

Tal problema não ocorreria ao precursor, como veremos a seguir.

3.3.2 Vicente de Paula (França)

Vicente de Paula (1576-1660), foi um sacerdote com importante contribuição na organização das associações de
caridade vinculadas à igreja católica. Sua atuação era pautada na busca sistematização da assistência prestada e a
reabilitação dos assistidos dentro da doutrina social cristã.

O sacerdote considerava que a assistência pontual não era a suficiente. Para ele, era necessário provocar uma
mudança na situação que geradora do problema que atingia a cada assistido.

Vicente de Paula foi o responsável pela fundação das seguintes organizações:

65
Organizações fundadas por Vicente de Paula
Fonte: FONTOURA, 1959; SILVA, 2016. (Adaptado).

Vicente de Paula ainda inspiraria, após sua morte, a fundação da Confraria dos Vicentinos, em 1833, composta por
homens de diferentes inserções sociais que se reuniam com a intenção de praticar a caridade.

O próximo precursor também estaria vinculado à religião, partindo dessa vinculação para o desenvolvimento de
seu trabalho.

3.3.3 Canon Barnett (Inglaterra)

Canon Samuel E. Barnett (1844-1913) nasceu em uma família de classe média londrina, cursou direito em Oxford e
foi ministro da Igreja Anglicana, na paróquia de São Judas. Como responsável por uma das paróquias mais pobres
de Londres, Barnett se deparou com a necessidade de intervir sobre a realidade das pessoas que conviviam na
localidade.

Recorrendo à Universidade de Oxford, encontrou a apoio de voluntários e estudantes universitários como Arnold
Toynbee e Edward Denison, que o ajudaram a fundar em 1884 o ”Toynbee Hall”, o primeiro centro social (
Settlement House), com a finalidade estudar, identificar e intervir nas causas dos problemas sociais.

Para tal, os voluntários e estudantes residiam durante um período no centro social, de forma a estarem mais
próximos da população atendida, compreendendo e intervindo de forma mais efetiva na realidade vivenciada.

Barnett defendia a assistência pautada na educação e conscientização dos assistidos e na colaboração entre
classes. Desta forma, tinha como preocupação a elevação do bem-estar por meio da oferta de serviços e programas
voltados para o apoio social, como ensino de ofícios e abertura de escolas para adultos.

Seu trabalho influenciaria a próxima precursora, que iremos observar a seguir.

3.3.4 Jane Adams (Inglaterra)

Jane Adams (1860-1935) nasceu no estado de Illinois (EUA), em uma família de classe média alta. Aos 27 anos,
viajou para a Europa, onde conhece Samuel Barnett e as experiências dos centros sociais (Settlements). A partir
desse contato, Adams teria decidido adaptar e implantar um modelo de assistência semelhante nos Estados
Unidos.

Em 1889, junto com duas amigas (Ellen Gates e Alice Hamilton), ela alugou uma casa em um bairro pobre da cidade
de Chicago e fundou a Hull House (A casa ficou conhecida assim, por causa do nome de seu proprietário: Charles

66
Hull). Conservando a proposta de integração entre as classes, a Hull House se tornou um espaço para
empoderamento dos grupos comunitários por meio do estímulo ao trabalho de grupo e à capacitação dos
indivíduos para a participação ativa deles nas ações desenvolvidas.

Clique sobre a interação e conheça mais sobre o trabalho desenvolvido na Hull House.

A Hull House se tornou um modelo para a criação de outros centros comunitários, oferecendo também serviços à
comunidade como acolhimento social de imigrantes e creches.

O trabalho desenvolvido na casa também potencializou o serviço social como prática política à medida que refletia
as ideias defendidas por Adams, como promoção da dignidade humana, defesa dos direitos dos grupos mais frágeis
da sociedade e implicação da comunidade na obtenção de seus direitos.

O trabalho de Adams junto ao Serviço Social lhe proporcionou a eleição, em 1920, ao cargo de presidente da Liga
internacional de mulheres para a paz e liberdade.

Também a fez ganhar o prêmio Nobel da paz, em 1931.

A seguir, veremos outras iniciativas que contribuíram para a organização da assistência e consolidação do trabalho
em Serviço Social nos Estados Unidos da América.

3.4 A influência norte-americana


A influência norte-americana no Serviço Social apresenta elementos fundamentais para a compreensão do
processo de profissionalização da assistência e do Serviço Social no mundo.

A necessidade de uma intervenção social mais eficaz, principalmente no período conhecido como “A grande
depressão”, estimulou a organização da assistência em uma estrutura integrada e organizada. Cuja atuação se
daria sob critérios técnicos e metodológicos e através do trabalho desenvolvido pelo Serviço Social.

67
Fonte: © Stokkete / / Shutterstock

A seguir, veremos os elementos que nos permitirão compreender o quanto a contribuição norte-americana
impactou na história do Serviço social ao apresentar um maior investimento na organização e tecnização do
Serviço Social.

3.4.1 Mary Richmond

Mary Ellen Richmond (1861-1928), nasceu em Belleville, Illinois (EUA), e é considerada um dos nomes mais
importantes no processo de profissionalização do serviço social. Tendo se dedicado ao trabalho na Sociedade para
Organização da Caridade, atuou como secretária, visitadora e ascendeu ao cargo de secretária-geral, onde
permaneceu até 1919.

Mary se empenhou no intuito de profissionalizar a assistência por meio da adoção de técnicas de racionalização e
organização que serviram como base para o processo de institucionalização do Serviço Social, uma vez que
explicitava a necessidade de um profissional com formação específica para intervir junto à questão social.
Participou também da criação da primeira Escola de Filantropia, em Nova York, onde atuou como professora.

Suas publicações serviram como referências para a organização da formação de profissionais de Serviço Social
estabelecendo a questão social como o objeto da intervenção do Serviço Social e apresentando o método de
atuação baseado em três etapas: estudo da situação, diagnóstico social e tratamento por meio da ação direta
sobre o indivíduo e seu meio.

68
DICA
As obras mais famosas de Richmond são: “Visitação amigável aos pobres” (1889),“Diagnóstico
Social” (1917) e “O que é Serviço Social de Casos?” (1922).

O lançamento de seu livro “Diagnóstico Social” é considerado até hoje um marco na história do Serviço Social.

A seguir, veremos outra personalidade fundamental na constituição da identidade do Serviço Social norte-
americano, bem como na produção de bibliografia técnica que serviria como base para a atuação profissional
durante um período expressivo.

3.4.2 Mary Parker Follet

Mary Parker Follet (1868-1933), nasceu em Massachusets (EUA), em uma família de classe média. Interessada nas
questões referentes às temáticas de administração, psicologia, ética, direito, política, fisiologia e serviço social,
atuou como conferencista e consultora na política e na área empresarial.

Clique sobre a interação e conheça as áreas em que o trabalho de Follet se destacou.

1. Consultoria de gestão.

2. Desenvolvimento Social e Comunitário (Onde exerceu papel central na implantação dos Centros Comunitários).

3. Teoria Organizacional e Comportamental.

Defensora da concepção de pobreza como fator decorrente da concentração de renda, Follet voltou suas ações
para o desenvolvimento do empreendedorismo social, trabalho com grupos e empoderamento dos trabalhadores.
Também se dedicou a contribuir com a administração pública e com a implantação dos conceitos de
administração no Serviço Social.

Uma de suas teorias mais famosas é a Teoria da Situação. Clique sobre a interação e conheça os seus princípios.

os problemas são fundamentalmente provenientes das relações humanas;

mesmo com todas as diferenças existem elementos comuns que permitem a formulação de princípios de
administração;

os elementos podem ser aplicados onde haja a necessidade de organizar atividades humanas.

69
Por sua contribuição na área da administração, Follet também é conhecida como a profetisa da gestão. E é sobre a
organização e gestão da assistência que falaremos a seguir.

3.4.3 Caridade organizada (COS)

Experiências de organização da caridade não são algo exclusivo da passagem entre os séculos XIX e XX. Já no
século XVI, se observava o esforço neste sentido, tendo como um de seus marcos a Lei dos Pobres inglesa (Poor Law
).

Pausa para refletir: Levando em consideração as experiências apresentadas até aqui, o que aparece de
diferente no que se refere às tentativas de organização da assistência?
A partir da segunda metade do século XIX, se tornam mais expressivas as críticas à necessidade de organização e de
coordenação de esforços na prestação da assistência. Estas questões motivaram o desenvolvimento de instituições
como as Sociedades de Organização da Caridade (Charity Organization Society), que surgem empenhadas a
traduzir para a prática da assistência aspectos relacionados ao método científico e à gestão dos serviços. Clique
sobre a interação e saiba mais.

Dotadas de conselhos gestores compostos por personalidades vinculadas à política, aristocracia, igreja e círculos
profissionais, as Sociedades de Organização da Caridade também tiveram papel fundamental na abertura de cursos
para preparar os profissionais que estariam vinculados à assistência.

Este investimento na qualificação técnica da assistência aproximaria o Serviço Social de elementos das ciências
sociais, que serviriam como pontos centrais em sua formação.

É neste contexto que o funcionalismo e sua concepção de sociedade como um sistema obtêm destaque entre as
teorias sociais e pensadores como Emile Durkheim, Talcott Parsons e Robert Merton aparecem como fortes
influências para a formulação das bases teórico-práticas do Serviço Social.

E é com base nesta concepção de Serviço Social que emerge a primeira metodologia técnica de intervenção, como
veremos a seguir.

3.4.4 O método case social work

Considerando a relação entre o indivíduo e o meio, o Serviço Social de Caso se apresenta na primeira fase do
Serviço Social, como o método que se pauta na intervenção focada no indivíduo para intervenção nas expressões
da questão social que lhe afligem.

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Fonte: © Iconic Bestiary / / Shutterstock

Para tal, seriam adotados os seguintes princípios:

Princípios do Serviço Social de Caso

71
Princípios do Serviço Social de Caso
Fonte: HAMILTON, 1973. (Adaptado).

Esta abordagem é atualmente considerada ultrapassada devido seu caráter moralizante e individualizante, bem
como sua forte tendência à psicologização da questão social.

Proposta de atividade
Agora é a hora de recapitular tudo o que você aprendeu nesse capítulo! Elabore uma síntese destacando as
principais ideias abordadas ao longo do capítulo. Ao produzir sua síntese, considere as leituras básicas e
complementares realizadas.

Dica: A síntese é um texto curto, mas que aborda as ideias centrais do capítulo, a partir de sua perspectiva.

Recapitulando
Neste capítulo, pudemos discutir os aspectos tidos como pressupostos do processo de institucionalização e
profissionalização do Serviço Social.

Fatores, como, por exemplo, a ocorrência da revolução industrial, a emergência da fase monopolista do
capitalismo e o reconhecimento da questão social trouxeram a necessidade de uma nova forma de lidar com as
mazelas que afligiam os estratos mais pobres da população.

A caridade, que tinha como norteadora a concepção de prestação de assistência voluntária associada ao um
compromisso com a fé, passou a dividir os cuidados prestados aos mais pobres com a assistência prestada pelo
Estado, com o aporte técnico-científico. No entanto, o que ocorre não é a evolução ou substituição de modelos de
atenção e sim a consolidação de um novo modelo pautado em técnicas e metodologias que visam a análise e
intervenção nas expressões da questão social.

Esta nova configuração faz com que se perceba a necessidade de uma organização das ações de assistência e,
posteriormente, da especialização daqueles que atuam nessa seara até chegarmos à profissionalização do Serviço
Social.

No entanto, ainda que a preocupação em racionalizar a assistência assumisse um lugar central, o que se observa é
que a influência religiosa ainda persiste como um norteador da intervenção nesta área, sendo principalmente
pautada pelo Tomismo e pela doutrina social da igreja.

Também vimos neste capítulo as contribuições de personalidades tidas como precursoras do Serviço Social por
conta de sua atuação no processo de organização da assistência antes da efetiva profissionalização do Serviço
Social. Neste grupo, destacamos Juan Luiz Vivés, Vicente de Paula, Canon Samuel E. Barnett e Jane Adams.

Já na fase inicial do estabelecimento do Serviço Social, podemos destacar a atuação de Mary Richmond e de Mary
Parker Follet no sentido de imprimir uma identidade profissional, pautada em uma intervenção com caráter
técnico-científico. Estas contribuições, além de imprimirem maior vigor à constituição de um campo de atuação
dos profissionais de Serviço Social, também forneceriam a tônica para as instituições que buscavam unificar e
organizar as ações de assistência.

E é por meio do Serviço Social de Caso que se estabelece a primeira metodologia de intervenção do Serviço Social
pautada em critérios científicos, constituindo um marco diferencial na concepção de assistência.

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