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Anais do XX Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178

Anais do V Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420


22 e 23 de setembro de 2015

O LUGAR SIMBÓLICO DA BÍBLIA DE SCOFIELD NO


FUNDAMENTALISMO PROTESTANTE: o caso brasileiro
Caio César Pedron Breno Martins Campos
Faculdade de Ciências Sociais PPG em Ciências da Religião
CCHSA CCHSA
caiocp9@hotmail.com breno.campos@puc-campinas.edu.br

Resumo: Na interface da teologia com as ciências tismo norte-americano; o fundamentalismo respon-


sociais da religião, este resumo expandido propõe, dia ao advento da modernidade e ao contexto de
como temática, a compreensão do lugar simbólico da inovações e mudanças que abalaram estruturalmen-
Bíblia anotada de Cyrus Ingerson Scofield (1843- te o campo protestante em geral. Karen Armstrong
1921) – The Scofield Reference Bible (1909) – no [1] entende que o cientificismo, representado pelo
movimento fundamentalista original, ocorrido no seio darwinismo, o modernismo teológico, a teoria das
do protestantismo estadunidense no início do século fontes e a análise histórica da Bíblia, como também
XX; assim como a interpretação de sua influência na a Primeira Guerra Mundial, foram alguns dos ele-
divulgação da teologia dispensacionalista e na popu- mentos que estavam dados como condições materi-
larização da escatologia pré-milenarista. Sustentadas ais no momento específico do advento do funda-
pela hermenêutica fundamentalista, as introduções e mentalismo protestante.
notas de Scofield em sua Bíblia, ao longo de pouco A infalibilidade das Escrituras é o fundamento do
mais de um século, têm contribuído para fomentar, movimento, por isso "só pode ser fundamentalista
dentre evangélicos fundamentalistas no mundo todo, quem erige na centralidade de sua fé o texto de uma
uma radicalização da ética puritana, naquilo que ela Escritura Sagrada divinamente inspirada" [2]. A Bí-
propõe como rejeição do tempo presente, em virtude blia como pilar central e a crença na inerrância do
da idealização do passado e da construção segura texto produziram uma hermenêutica fechada em
do futuro pela interpretação literalista dos textos bí- apenas um modo de observar os preceitos tidos co-
blicos. Por meio de pesquisa bibliográfica e docu- mo verdadeiros.
mental, o objetivo deste trabalho é o de transportar a O dispensacionalismo caiu como uma luva no mo-
discussão do passado para um tempo mais recente vimento fundamentalista, pois, por meio de uma teo-
e dos EUA para o Brasil, no sentido de reconstruir, logia muito específica da história, proporcionava um
ainda que de passagem, o cenário material e mental entendimento do literalismo bíblico dentro de um
da tradução para o português e publicação da Bíblia esquema de interpretação linear da história da hu-
de Estudo Scofield no Brasil, no ano de 1983, bem manidade. A escatologia pré-milenarista foi acresci-
como compreender, pela leitura e interpretação de da a essa visão teológica; pregava "que Cristo volta-
fontes secundárias, sua aceitação e principais im- ria à Terra antes de fundar seu reino de mil anos"
pactos dentre os evangélicos brasileiros. [3], fomentando, assim, a crença em um futuro pró-
digo que seria resgatado por Cristo.
Palavras-chave: Fundamentalismo, dispensaciona-
lismo, Bíblia de Scofield. A Bíblia de Scofield está inserida, como produto im-
presso, dentro do movimento fundamentalista; por
Área do Conhecimento: Ciências Humanas – Teo- meio das notas de rodapé, o reverendo Cyrus Inger-
logia – CNPq. son Scofield transmitiu os preceitos do dispensacio-
nalismo de forma simples e coerente, relacionando-
1. INTRODUÇÃO os ao texto bíblico. Ofereceu, assim, um artefato
A palavra fundamentalismo carrega em seu bojo um com imenso poder de difusão dos preceitos dispen-
conjunto de acepções e de orientações de sentido sacionalistas e da escatologia pré-milenarista.
contraditórias e muitas vezes até antagônicas; no Para entender o caso, convém observar a gênese do
campo religioso, suas dissonâncias históricas são milenarismo, bem como o desenvolvimento do sis-
evidentes. Em sua construção original, o termo foi tema editorial da Bíblia de Scofield e sua aplicação
cunhado para autodenominação dos movimentos na interpretação de passagens bíblicas. Por fim, ca-
surgidos no início do século XX dentro do protestan- be analisar a disputa que se deu no Brasil, enten-
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dendo a forma como o campo protestante histórico e por exemplo, estavam repletos de crenças milenaris-
o fundamentalista lidaram com a tradução da Bíblia tas; como também, no século XVIII, havia na luta
de Scofield para o português, em edição brasileira, pela nova república um milenarismo patriótico, como
no ano de 1983. crença ligada à esperança no papel renovador dos
EUA [6].
2. O MILENARISMO
A crença em mil anos de felicidade remonta ao juda- Com a emergência do evangelho social, coexistiram
ísmo antigo e foi transmitido ao cristianismo já em por algum tempo o modernismo e a ortodoxia teoló-
sua formação primitiva. As influências dessa escato- gica em busca da melhoria das condições de vida
logia estão presentes em vários livros canônicos, em das pessoas. Com o passar do tempo, a tensão en-
especial, nos dos profetas Oséias e Isaías, no Antigo tre os pós-milenaristas, que acreditavam no desen-
Testamento, e no do Apocalipse, em o Novo Testa- volvimento progressivo da humanidade, e os pré-
mento. milenaristas, com seu pessimismo quanto ao fim da
história, aumentou – criando, então, as condições
A Igreja Católica experimentou a crença milenarista
para um choque mais acentuado entre as tendências
desde sua formação primitiva; seu primeiro repre-
e, por fim, para o surgimento do movimento funda-
sentante, dentro da hierarquia já constituída, foi San-
mentalista.
to Irineu, Bispo de Lyon. Segundo Jean Delumeau
[4], foi ele quem entregou ao mundo a versão aca- 3. A BÍBLIA DE SCOFIELD
bada da tipologia da semana sabática: compreensão No período vitoriano, surgiu na Inglaterra um novo
da história da salvação humana baseada nos sete modelo teológico milenarista, o dispensacionalismo.
dias da semana. Coube a Santo Agostinho, como John Nelson Darby foi quem deu resolução final à
contraponto institucionalizado, cercear essa crença doutrina dispensacionalista e também foi um grande
perigosa, que podia levar ao fanatismo; foi o Bispo difusor dela nos EUA. Ele encorpou as diferentes e
de Hipona quem rebateu a crença milenarista, tor- difusas teses que tendiam a compreender dentro de
nando-a elemento marginal dentro da Igreja. um quadro pré-milenarista a sucessão de fatos num
Dando um necessário salto histórico, foi pelo monge espectro linear que conduziria a humanidade ao seu
Joaquim de Fiore que a temática do milenarismo fim derradeiro. Darby entendia que "os profetas e o
voltou à vida do cristianismo; mesmo não sendo mi- autor do livro do Apocalipse não se expressaram por
lenarista, ele ofereceu ao movimento por meio de meio de símbolos, mas fizeram predições que logo
sua teologia trinitariana um elemento para a com- se revelariam absolutamente exatas" [7].
preensão do desenvolvimento da história da salva- Colocava as predições dentro de um esquema de
ção de forma linear. Dividida em três tempos, o sete eras, as dispensações, nas quais o homem ha-
tempo anterior à graça, o tempo da graça e o tempo via recebido uma tarefa de Deus, cabendo a ele, em
da graça maior. Podemos entender que a idade pri- cada período vigente, cumprir a missão. As dispen-
meva era a do Pai (Lei); a segunda idade, a do Filho sações são as seguintes: "da Inocência (Gn 1.28), da
(Evangelho); e a terceira, a do Paráclito (Espírito Consciência ou Responsabilidade Moral (Gn 3.7), do
Santo). As três idades demonstrariam o desenvolvi- Governo Humano (Gn 8.15), da Promessa (Gn
mento progressivo da humanidade: "Se a primeira 12.1), da Lei (Êx 19.1), da Igreja (At 2.1), do Reino
fora uma idade de terror e servidão e a segunda (Ap 20.4)" [8].
uma idade de fé e de submissão filial, a terceira se- Darby fez seis grandes excursões aos EUA, levando
ria uma idade de amor, de alegria e de liberdade, em sua doutrina e fortalecendo o já vigente milenarismo
que o conhecimento de Deus seria revelado direta- sob uma sistematização mais precisa. Portanto, no
mente nos corações de todos os homens" [5]. fecundo solo norte-americano, o dispensacionalismo
Com isso, Joaquim de Fiore acabou por oferecer ao se difundiu de maneira rápida – como nunca ocorre-
movimento milenarista uma nova base interpretati- ra na Inglaterra.
va, para qual a compreensão das passagens bíblicas
iluminava-se por meio de um modelo sistêmico. 3.1. A história de Scofield
O milenarismo chegou aos EUA junto com pais pe- Cyrus Ingerson Scofield nasceu no Estado de Michi-
regrinos; sua crença já estava difundida dentro do gan em 1843. Fez parte do exército confederado
protestantismo puritano e por isso desembarcou jun- durante a Guerra Civil Americana, formou-se em
to com os colonos. O avivalismo de Jonathan advocacia e chegou ao cargo de promotor no Estado
Edwards e sua crença na vocação para o deserto, de Kansas. Período que durou pouco, pois Scofield
se entregou ao vício da bebida [9].
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Sua conversão religiosa só ocorreu em 1879 [10]; em cadeia, 2) introdução para cada livro e para as
sob a pergunta de por que não ser cristão, em lin- seções da Bíblia, 3) um sistema de parágra-
guagem evangélica, Scofield se entregou a Jesus e fos/esboços e 4) notas" [14]. É pelas notas que Sco-
diante de três amigos se converteu naquilo que ele field interpreta o texto bíblico e direciona o entendi-
mesmo veio a definir como "uma conversão bíbli- mento da passagem para uma compreensão dispen-
ca... recebi Jesus Cristo como meu salvador... ime- sacionalista e pré-milenarista; a introdução evidencia
diatamente as cadeias foram quebradas e a paixão o esforço hermenêutico do autor; e as referências
pela bebida foi retirada... O poder divino fez isso; só temáticas em cadeia, bem como o sistema de pará-
pela graça. A Cristo seja toda a glória!" [11]. grafos/esboços, corroboram para a interpretação
Convertido a uma nova vida, ele entrou para a As- com diversas passagens de outros livros da Bíblia.
sociação Cristã de Moços e, posteriormente, veio a
4. O FUNDAMENTALISMO E A BÍBLIA DE
criar laços afetivos com James H. Brookes, um dos
SCOFIELD
difusores do dispensacionalismo em terras norte-
O fundamentalismo presente na Bíblia de Scofield
americanas. Antes de escrever sua Bíblia anotada,
pode ser demonstrado pela leitura das notas de ro-
Scofield já havia criado um curso bíblico por corres-
dapé, que comentam determinadas passagens bíbli-
pondência e também um livrete intitulado Manejando
cas, e a compreensão que elas oferecem. Portanto,
bem a palavra de Deus (de 1903); sua missão pes-
buscamos interpretar algumas passagens que nos
soal era levar a palavra de forma simples a toda
forneçam objetos de análise.
pessoa, para que pudesse interpretar a Bíblia sem a
intermediação de qualquer tipo de homem religioso. Na terceira dispensação, a do governo humano,
Então, em 1909, dentro da mentalidade e do período Deus atribui ao homem o direito da autoridade sobre
do movimento fundamentalista nos EUA, Scofield outro homem, fortalecendo assim o relacionamento
publicou o livro que seria o clímax de sua vida: The associativo de um para com o outro. De tal argu-
Scofield Reference Bible. mento, Scofield deriva a seguinte reflexão: "o ho-
mem não deve vingar o homicídio individualmente,
3.2. A Bíblia e sua sistemática mas, como grupo corporativo, deve salvaguardar a
Para compreender a Bíblia de Scofield é necessário santidade da vida humana como um dom de Deus, a
assimilar o sistema dispensacionalista e a escatolo- qual não tem o direito de tirar, exceto quando Deus o
gia milenarista e, posteriormente, apreender a forma permite" [15]. É lícito tirar a vida de outro homem se
pelo qual foram dispostos em suas notas e nos para- Deus assim o quiser; e, como toda autoridade ema-
textos editoriais. na dele, entende-se que a pena de morte auferida
Para Scofield, as dispensações possuem três ele- pela autoridade instituída por Deus é augusta aos
mentos fundamentais que caracterizam seu modus olhos divinos. Neste sentido, podemos compreender
operandi: "1) um depósito de revelação divina quan- que a interpretação dada por Scofield à passagem
to à vontade de Deus, dando forma ao que ele re- oferece uma leitura distinta da que outros movimen-
quer na conduta do homem, 2) a mordomia do ho- tos cristãos poderiam advogar por meio de suas
crenças e de sua interpretação da Bíblia.
mem desta revelação divina, na qual é responsável
por obedecer a ela e 3) um tempo-período, geral- Outra passagem interessante a ser observada é a
mente chamado de "era", durante o qual essa reve- quarta dispensação, que estabelece uma relação
lação divina tem influência dominante nessa prova entre a Igreja, povo eleito de Deus, e o povo judeu,
da obediência do homem a Deus" [12]. que, no caso, seria o filho da promessa abraâmica.
Scofield oferece dois fins distintos para cada um dos
O propósito de cada dispensação é colocar o ho-
povos de Deus. Os judeus teriam o cumprimento da
mem sob essa mordomia (economia) de fé, no en-
promessa do reajuntamento nacional, recebendo,
tanto, para Scofield, o fracasso do homem nas dis-
assim, sua terra novamente e esperariam nela até o
pensações passadas e presente demonstra que ele
fim dos tempos; a igreja seria arrebatada ao céu e,
só é salvo pela graça e não por seu mérito [13]; por-
só no final dos tempos, após as tribulações e o jul-
tanto, não há preocupação de Scofield com o tempo
gamento final, se estabeleceria no "novo mundo".
presente, visto que o fim da humanidade já está da-
do, cabe a ela apenas cumprir, na medida do possí- Na sexta dispensação, encontramos todos os aspec-
vel, a dispensação vigente. tos milenaristas e a compreensão da vinda prévia de
Cristo antes do fim dos tempos. "A Era da Igreja fin-
Podemos entender que as principais particularidades
dará com uma série de eventos já profetizados, dos
da Bíblia de Scofield são: "1) referências temáticas
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quais os principais são: 1) A igreja será transladada precisar quando o milenarismo e o dispensaciona-
da terra para encontrar-se com seu Senhor nos ares lismo, como teologias evangélicas, chegaram ao
[...]. Esse evento geralmente recebe o nome de 'ar- solo brasileiro; o que podemos salientar é que o ano
rebatamento'. 2) Os juízos da septuagésima semana de 1983 foi fundamental para o movimento funda-
de Daniel, chamados de 'a tribulação', que cairão mentalista já assentado no Brasil, pois foi naquele
sobre a humanidade em geral, mas incluirão a parte ano que a primeira edição brasileira, com tradução
não-salva da Igreja militante, que estará em aposta- em língua portuguesa da Bíblia de Scofield, foi lan-
sia e será deixada na terra quando a verdadeira Igre- çada. O ideário fundamentalista, presente em muitas
ja for levada ao céu. Esta forma final da Igreja após- denominações e representado por várias igrejas na-
tata está descrita em Ap 17 com o nome de 'a prosti- cionais, não aceitou muito bem essa tradução, por
tuta', que primeiro irá montar sobre o poder político muitos considerada inexata. "A publicação brasileira
("a besta"), mas somente para ser derrotada e ab- da Bíblia de Scofield de 1983 causou polêmica em
sorvida por esse poder. 3) O regresso do Senhor círculos fundamentalistas brasileiros por se valer da
Jesus do céu à terra em poder e glória, trazendo tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e
com ele sua Igreja, a fim de estabelecer seu reino Atualizada (da Sociedade Bíblica do Brasil), conside-
milenar de justiça e paz". [16] rada por eles infiel aos melhores manuscritos e mo-
O milenarismo está ainda presente na leitura de dernista" [19].
Scofield acerca do fim efetivo de todo o tempo, A ortodoxia protestante reagiu e respondeu aos no-
quando o mundo será liberado de toda dominação, vos influxos trazidos pelo fundamentalismo ao país.
de toda opressão e de todo conflito derivados da Por exemplo, Américo Justiniano Ribeiro – em seu
queda do homem e de sua posterior incapacidade de livro A Bíblia Scofield: ligeira avaliação – critica não
atender corretamente às provas de Deus; antes do só a técnica de notação das passagens relevantes
fim, ainda assim, haveria um milênio a preceder a feitas por Scofield, mas também o dispensaciona-
volta de Cristo e, depois dela e da tribulação, Deus lismo como doutrina teológica. Para Ribeiro, desde a
instituiria o seu Reino, a última dispensação. Bíblia do Rei Tiago, no XVII, "um dos princípios fun-
É possível perceber o fundamentalismo em toda a damentais da política que tem presidido a edição da
editoração feita por Scofield, não só nas notas, mas Bíblia, desde o princípio do século dezessete, con-
também na introdução. Por exemplo, quando o autor siste em garantir que ela fale por si mesma ao leitor
se propõe a falar do Gênesis: "alguns teólogos, rejei- sincero, na certeza que as verdades divinas aí regis-
tando a veracidade dos acontecimentos registrados tradas se revelarão sempre ao seu coração, sob a
nos primeiros capítulos do Gênesis, mas, ao mesmo iluminação do Espírito Santo, sem o auxílio de
tempo, reconhecendo seu valor religioso, chamam quaisquer comentários ou notas que o homem julgue
de 'mitos' tais narrativas, como as do Éden e da necessário agregar ao texto". [20]
queda, querendo dizer com 'mito' não apenas uma Ribeiro também aponta que a pretensa defesa da
lenda, mas, antes, uma história 'supra-histórica' que interpretação individual da Escritura por parte do
transmite ensinamento espiritual de significado per- movimento fundamentalista, com base nas interpre-
manente. Contudo, a historicidade do registro do tações bíblicas de Scofield e sem a mediação de
Gênesis está tão relacionada à autoridade de Cristo, uma instituição religiosa, cria um adenominaciona-
que não pode ser colocada numa categoria mítica lismo e, em alguns casos, até um antidenominacio-
sem impugnar a perfeição do seu conhecimento" nalismo, causando rompimentos e cismas em de-
[17]. terminadas igrejas [21].
Assim, Scofield aponta para a questão central do A tradução acabou por criar uma grande agitação e
fundamentalismo: não se pode negar a literalidade um amplo debate dentro do campo protestante brasi-
do texto sem negar a própria autoridade de Cristo, leiro, sendo propulsora de um polo de tensão cons-
não há, portanto, possibilidade de diálogo, pois a tante entre o modernismo, o tradicionalismo protes-
verdade está dada e violá-la é impensável. "A Bíblia tante e o fundamentalismo e seus desdobramentos.
só podia ser revelação perfeita de Deus se fosse
isenta de erros, contradições, paradoxos e inconsis- 6. CONCLUSÃO
tências" [18]. A Bíblia de Scofield teve um papel fundamental den-
tro do movimento fundamentalista original e ainda é
5. O CASO BRASILEIRO hoje um dos principais instrumentos do movimento
Como fenômeno global, o fundamentalismo atingiu
diversos países, dentre eles, o Brasil. Não é possível
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em todo o mundo para garantia e divulgação do lite- Fundo de Apoio à Iniciação Científica (FAPIC-
ralismo bíblico. Reitoria), meus sinceros agradecimentos. Por fim,
Fizemos aqui uma passagem pela história do mile- agradeço a meu orientador, Breno Martins Campos,
narismo, com o intuito de compreender o desenvol- que esteve sempre presente, apresentando de forma
vimento dessa concepção escatológica cristã de im- paciente e solícita suas orientações e avaliações que
portância fundamental ao fenômeno religioso con- foram fundamentais para o desenvolvimento desta
temporâneo. Depois, buscamos entender a constru- pequisa.
ção da Bíblia de Scofield como artefato histórico,
dotado de singularidade própria à interpretação dis- REFERÊNCIAS
pensacionalista do autor. Verificamos que a perspec- [1] Armstrong, K. (2001). Em nome de Deus: o fun-
tiva do tempo se altera para o fundamentalista: as- damentalismo no judaísmo, no cristianismo e no
sim, "a história é transformada em um tempo es- islamismo. São Paulo: Companhia das Letras.
premido e sem tanta importância, pois do passado [2] Pierucci, A. F. (1992). Fundamentalismo e inte-
idealizado vem as luzes que projetam o futuro como grismo: os nomes e a coisa. Revista USP, São
ele será – o que vale a pena de fato já ocorreu ou Paulo, n. 13, p. 144-156, capturado online em
ainda está por vir" [22]. 04/01/2014 de
Mensurar de forma mecânica e quantitativa o papel <http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/2
da Bíblia de Scofield no fundamentalismo protestan- 5620>. p. 154.
te é impossível; além do mais, tratando-se do hori- [3] Armstrong (2001), p. 64.
zonte simbólico, acabaríamos por nos perder na
[4] Delumeau, J. (1997). Mil anos de felicidade: uma
constelação de significados e de visões de mundo
história do paraíso. São Paulo: Companhia das
que a doutrina oferece para aqueles que a profes-
Letras.
sam. Então, preferimos afirmar que a Bíblia de Sco-
field tem seu lugar garantido no universo fundamen- [5] Cohn, N. R. C. (s.d.). Na senda do Milénio: mile-
talista, porque, além de historicamente fazer parte naristas revolucionários e anarquistas místicos
da produção do grupo autodenominado fundamenta- da Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, p.
lista no início do século XX, ela é também objeto de 89.
disputa dentro do campo protestante, por ser instru- [6] Delumeau (1997), p. 241.
mento de produção de um discurso que oferece uma [7] Armstrong (2001), p. 164.
base sólida e clara de interpretação da Escritura Sa-
grada. [8] Bíblia de Estudo Scofield (2009). São Paulo:
Holy Bible, p. 3.
Entendendo o fundamentalismo como uma resposta
ao advento da modernidade, cabe a nós ainda apon- [9] Santos, V. R. (2000). As anotações da Bíblia de
tarmos que ele "tanto é uma estratégia de resistên- Scofield sob uma ótica reformada. Fides Refor-
cia como um método de adaptação à modernidade. mata, São Paulo, v. 5, n. 1, capturado online em
A luta entre 'liberais' e fundamentalistas não é uma 17/04/2015 de
luta entre 'modernistas' que se adaptam ao tempo e <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedor
'primitivistas' que retrocedem à Bíblia. Se exami- a/CPAJ/revista/VOLUME_V__2000__1/Valdeci.p
narmos o que se esconde por trás da retórica de df>.
ambos os movimentos, descobriremos que tanto um [10] TRUMBULL, C. G. (1920). The Life Story of C. I.
quanto o outro pretendem arraigar-se no cristianismo Scofield. New York: Oxford University Press,
primitivo e desafiar a cultura contemporânea" [23]. 1920, capturado online em 17/05/2015 de
<http://www.wholesomewords.org/biography/bsco
AGRADECIMENTOS field.pdf>.
Meus cumprimentos aqui a todos os colaboradores
[11] Santos (2000).
que, de uma forma ou de outra, ofereceram auxílio e
atenção nas dificuldades que este empreendimento [12] Bíblia de Estudo Scofield (2009), p. 3.
apresentou ao pesquisador. Agradeço à Pontifícia [13] Bíblia de Estudo Scofield (2009), p. 3.
Universidade Católica de Campinas (PUC-
[14] Bíblia de Estudo Scofield (2009), p. V.
Campinas) por oferecer a estrutura necessária à
pesquisa; e também à Universidade Estadual de [15] Bíblia de Estudo Scofield (2009), p. 12.
Campinas (UNICAMP) e seu acervo bibliográfico. Ao
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[16] Bíblia de Estudo Scofield (2009), p. 994; desta nal da Sociedade de Teologia e Ciência da Reli-
citação, foram retiradas todas as referências bí- gião. Belo Horizonte: PUC-Minas, p. 139.
blicas que apareciam entre parênteses. [20] Ribeiro, A. J. (1985). A Bíblia Scofield: ligeira
[17] Bíblia de Estudo Scofield (2009), p. 1. avaliação. Campinas: LPC, p.14.
[18] Velasques Filho, P. (1990). O nascimento do [21] Ribeiro (1985), p. 23.
"racismo" confessional: raízes do conservado- [22] Campos (2013), p. 142.
rismo protestante e do fundamentalismo. In:
Mendonça, A. G.; Velasques Filho, P. Introdução [23] VOLF, M. (1992). O desafio do fundamentalismo
protestante. Concilium, Petrópolis, v. 241, n. 3,
ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola,
p. 126. p. 453.
[19] Campos, B. M. (2013). Genealogia do funda-
mentalismo. In: Anais do Congresso Internacio-

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