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REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAIS

ANO XII- 2015- Nº 56

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ENTRE CRIMES IMPOSSÍVEIS E DELITOS REAIS:
O ULTRAPASSADO ENSINO JURÍDICO-PENAL
CARLos HENRIQUE BoRLIDO HADDAD *

LucAs FREDERico VIANA AzEVEDO **

RESUMO: O artigo analisa o ensino do Direito Penal baseado em


livros e manuais específicos. Alguns exemplos de crimes mencio-
nados na literatura são selecionados e é feito o confronto com de-
litos julgados pelos tribunais. A seleção dos temas está relacionada
a importantes institutos do Direito Penal e que são constantemente
discutidos nos tribunais. A utilização de exemplos, extraídos de li-
vros, de crimes irreais ou bastante dissociados da prática forense é
criticada. Os autores concluem que o ensino jurídico-penal baseado
em crimes imaginários e inverossímeis reforça a concepção de que as
normas devem ser vistas como disposições abstratas, sem conexão
clara e direta com o mundo real. O ordenamento jurídico torna-se
um sistema autônomo e exógeno à sociedade, o que contribui para a
perpetuação de ultrapassado método de ensino.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino; Direito Penal; método ultrapassado.
ABSTRACT: The article examines the teaching of criminallaw based
on specific books and manuais. Some examples of crimes mentioned
in the literature are selected and are compareci with real cases tried
by courts. The selection of topics is related to important institutes of
criminallaw and that are constantly discussed in the courts. Using
examples of hypothetical and umealistic crimes or rather crimes de-
coupled from forensic practice is criticized. The authors conclude
that the criminallaw education, based on imaginary and improbable
crimes, reinforces the view that the rules should be seen without a
clear and direct connection to the real world. The Iaw becomes an
autonomous system and exogenous to society, which contributes to
the perpetuation of the antiquated method of education.

Mestre e Doutor em Ciências Penais, Pós-Doutor pela Universidade de Michigan, Professor


Adjunto da UFMG, Juiz Federal.
Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFMG, Bacharel em Direito pela
UFMG.

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KEYWORDS: Education; criminallaw; antiquated method. nagens Caio, Mévio, Semprônio e Tício 3 . Assim como não há muita esperança
SUMÁRIO: Introdução; 1 Começando com o banho de sangue; 2 Cri- em se abrasileirar as referidas designações, de origem italiana, para Fulano,
mes impossíveis e delitos reais; 2.1 Dolo direto de primeiro grau e Beltrano e Sicrano ou nomear os autores das infrações como João, José ou
dolo direto de segundo grau; 2.2 Autoria colateral; 2.3 Autoria me- Maria, não se vê perspectiva de alteração dos modelos de crime para algo
diata; 2.4 Erro de tipo; 2.5 Erro de proibição; 2.6 Estado de necessida- mais tangível. Realmente, é difícil limitar a miríade de situações que ensejam
de; 3 A tradição preservada; Conclusão; Referências. lesão a bens jurídicos penalmente tutelados, mas nem por isso o ensino do
Direito Penal deveria estar tão dissociado da realidade.
INTRODUÇÃO A intenção didática parece ser clara: determinados exemplos mostram-
Mulher joga-se do alto do sétimo andar do prédio e, após ter a queda -se bastante elucidativos para definir as características e particularidades de
amortecida por cabos elétricos, que ficaram danificados, atinge um homem certo instituto. No entanto, como são tão reais como são os contos da Ca-
que estava parado e que sofre múltiplas fraturas. Tendo sobrevivido, em rochinha, a impressão que se tem é de que o instituto introduzido não tem
quais crimes estaria incursa? aplicação no mundo da vida e ocorre, assim, uma ficcionalização do mundo
jurídico-social. Alguns exemplos beiram ao folclórico 4 •
Pela cabeça do estudante de Direito, passariam o homicídio tentado,
Durante o aprendizado, quase sempre se busca correspondência en-
a lesão corporal, culpa, dano, ausência de dolo, em mais uma tentativa de
tre aquilo que estamos estudando com os atuais conhecimentos que possuí-
desvendar surreais problemas jurídico-penais. Ironia do destino, no exemplo
mos, por meio de associações e correlações, a fim de facilitar a compreensão
citado, o fato efetivamente ocorreu1 . e a captação do objeto analisado. É natural que conceitos estejam atrelados
O ensino jurídico encontra-se em crise e o caráter fantasioso do caso a exemplos porque é por meio destes que conseguimos conectar o novo com
anterior, que se repete diversas vezes nos livros e manuais de direito, repre- a experiência preexistente. Aplica-se o modelo clássico da exposição, que
senta parte dessa crise há muito anunciada. Streck, ao denunciar a crise na recorre a exemplos para se tornar mais atraente, para dar mais colorido ao
discurso. Os oradores gregos e os pregadores medievais também faziam isso,
dogmática jurídica, pontua o objeto desse artigo: exemplos irreais de crimes
ilustravam suas elocuções com diversos exemplos, para dar graça ao que di-
praticados.
ziam (o famoso verbi gratia dos textos jurídicos) e para tornar as ideias abstra-
Simbolicamente, os manuais que povoam o imaginário dos juristas repre- tas mais acessíveis ao homem comum5 .
sentam com perfeição essa crise. Há, pois, um profundo déficit de realida-
Nesse exercício didático, na área penal, ocorre grande distanciamento
de. Os próprios exemplos utilizados em sala de aula, ou nos próprios ma-
entre a realidade encontrada na prática forense e os exemplos apresentados
nuais, estão desconectados daquilo que ocorre em uma sociedade comple-
pelos autores. Há, na continuação de certos exemplos, um caráter tradicio-
xa como a nossa. Além disso, essa cultura estandardizada procura explicar
nal que, embora importante, acarreta grande perda à discussão jurídica. Se o
o Direito a partir de verbetes jurisprudenciais ahistóricos e atemporais. 2
direito deve acompanhar a evolução da sociedade e se ela está em constante
Situações fantasiosas, casos imaginários, crimes irreais preenchem mudança, como continuar a repetir e a ensinar algo que não mais encontra
muitas páginas dos manuais de Direito Penal, ao lado dos frequentes perso- amparo na vida fenomênica?

1 Disponívelem:<http:l lwww.regiaonoroeste.comlportallmaterias.php?id=19855>.Acesso 3 VIANNA, Tulio. Origem dos personagens - Caio, Tício e Mévio - no direito penal.
em: 1 fev. 2014. Disponível em: http: I/ direitopuc-maringa. blogspot.com. br I 2008 I 03 I curiosidade-origem-
dos-personagens-caio.html. Acesso em: 10 fev. 14.
2 STRECK, Lênio Luiz. Crise dogmática: manuais de direito apresentam profundo déficit de
4 STRECK, Lênio Luiz. Op. cit.
realidade. Consultor Jurídico, São Paulo, 9 jan. 2006. Disponível em: <http:l lwww.conjur.
com.brl 2006-jan-09 I manuais_direito_apresentam_profundo_deficit _realidade >. Acesso 5 GHIRARDI, José Garcez. O instante do encontro: questões fundamentais para o ensino
em: 6 jul. 2014. jurídico. São Paulo: Fundação Getulio Vargas, 2012. p. 58.
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O presente trabalho critica, em caráter genérico e sem identificação de Quadro 1:


autores específicos, o ensino jurídico-penal por meio de deslocados exemplos Estado SP - Ocorrências Policiais registradas por ano 6
de crimes descritos em manuais. Foi feito levantamento de pontos da dogmá-
tica penal, aleatoriamente selecionados, ou talvez escolhidos por representar ANO HOMICÍDIO FURTO ROUBO FURTO E ROUBO
DOLOSO DE VEÍCULO
maior distanciamento do mundo real. Simultaneamente, fez-se pesquisa ju-
risprudencial em torno dos temas eleitos, a fim de localizar fatos reais que 1999 12.818 390.144 219.654 221.774

poderiam igualmente esclarecer os delineamentos dos institutos penais cons- 2000 12.638 396.952 215.181 235.036
tantes dos livros. Em seguida, são indicadas as razões por que se mantém
2001 12.475 439.630 219.601 214.948
a tradição de se recorrer a exemplos inverossímeis no ensino da dogmática
penal e se faz proposta para avançar no desenvolvimento do estudo. 2002 11.847 462.543 223.478 191.346

2003 10.954 539.220 248.406 186.155


1 COMEÇANDO COM O BANHO DE SANGUE
2004 8.753 561.271 220.261 193.380
No universo jurídico, o Direito Penal e o direito das sucessões dispu- 2005 7.076 564.960 221.817 197.546
tam o título de ramo em que mais se mata para tornar-se inteligível e mos-
2006 6.057 552.304 213.476 183.799
trar-se compreensível. Sem querer eleger o vencedor da contenda, no ensino
do Direito Penal existe verdadeira fixação ao escolher "crimes de sangue" 2007 4.877 524.017 217.203 163.537
para explicar os mais variados tópicos do programa, do erro de tipo, passan- 2008 4.432 489.434 217.966 159.124
do pelo crime tentado e indo até o concurso de pessoas. O caráter tanatofílico
2009 4.564 529.184 257.022 177.196
dos manuais de Direito Penal talvez se explique pelos fortes sentimentos que
a morte provoca. É possível que, sendo fim da vida, deixe marcas indeléveis, 2010 4.321 506.654 232.907 169.382
que se transmitirão para a retenção do tópico exemplificado pelo crime. Pode 2011. 4.194 540.894 235.523 1.84.280
ser que permita descrições singelas e chãs, o que torna cômoda a atividade de
2012 4.835 544.747 237.289 195.769
ensinar. Quiçá a preferência obituária decorra apenas da inércia, pela apro-
priação de exemplos antigos a que se atribuem dados supostamente renova-
dores. Quem sabe é uma tentativa de dar ares cômicos ao ensino da teoria do Pelos dados informados no Estado de São Paulo, verifica-se que o ho-
delito, em contraposição à dura experiência penal que se vivenda no Brasil? micídio não é o delito mais praticado e sofreu drástica redução nos últimos
Sem muita preocupação com o leitmotiv da opção fúnebre, constata-se dez anos, ao contrário dos crimes contra o patrimônio, em franca ascensão.
que o homicídio, sobretudo o doloso, é o tipo penal campeão no ranking de Em 2012, ocorreram 112 vezes mais furtos do que homicídios dolosos. A dis-
exemplos. Trata-se de tipo penal de fácil entendimento, cuja proibição é tão crepância entre o número de ocorrências não acontece só entre o homicídio,
natural ao ser humano que, não fosse a necessidade de estabelecimento dos o roubo e o furto, como mostra o quadro anterior, mas entre outros delitos
limites da pena, dispensaria previsão legal para que a conduta fosse vedada. menos prestigiados pela literatura penal. O quadro 2 a seguir registra o nú-
mero de ocorrências registradas em São Paulo referentes a alguns delitos, ao
Sabe-se, porém, que a realidade penal não vive só da morte, como os li- passo que o quadro 3 mostra os mesmos dados atinentes ao Estado do Rio de
vros fazem parecer. Com extenso rol de crimes previstos na parte especial do Janeiro, ambos no decorrer do ano de 2012.
Código Penal, além de outros contidos na legislação extravagante, há gama
enorme de delitos aos quais autores e professores poderiam recorrer. Com
essa notada tendência, cria-se a imagem de que o Direito Penal assenta-se 6 Informações retiradas do site da Secretaria de Segurança Pública de São r:'aulo. Até 2000:
no cometimento de crimes contra a vida, quando, na verdade, as estatísticas Dados da Res SSP 150/95; 2001 em diante: Dados da Res SSP 160/01. Disponível em:
mostram realidade distinta. <http:/ /www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Pesquisa.aspx>. Acesso em: 22 set. 13.
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Quadro 2: Quadro 3:
Estado SP- Ocorrências policiais registradas em 20127 Estado RJ- Número de registro de ocorrências em 20128

NATUREZA DO DELITO TOTAL DE REGISTROS DELITOS TOTAL

Homicídio doloso (2) 4.836 Homicídio Doloso 4030


Homicídio doloso por acidente de trânsito 87 Lesão Corporal Seguida de Morte 22

Homicídio culposo por acidente de trânsito 4.627 Latrocínio (Roubo seguido de morte) 140

Homicídio culposo outros 304 Tentativa de Homicídio 4532

Tentativa de homicídio 6.243 Lesão Corporal Dolosa 88939

Lesão corporal dolosa 193.290 Estupro 6029

Lesão corporal culposa por acidente de trânsito 1.43.792 Homicídio Culposo 2404

Lesão corporal culposa- outras 4.665 Lesão Corporal Culposa 47290

Latrocínio 344 Extorsão Mediante Sequestro (Sequestro Clássico) . 13

Estupro 12.886 Extorsão 1824

~: Tráfico de entorpecentes 41 .1.15 Extorsão com momentânea privação da liberdade (Sequestro Relâmpago) 118
~;
.. J Roubo- outros (1) 237.808 Estelionato 33353
~:

Roubo de veículo 87.228 Roubos 103324

Roubo a banco 222 Furtos 177996

Roubo de carga 7.342


Superficial análise dos dados leva à inegável constatação de que os cri-
Furto- outros 544.747 mes que atentam contra a vida praticam-se em número muito inferior aos cri-
Furto de veículo 108.412 mes contra o patiimônio. Vale ressaltar que, considerando-se a existência das
cifras negras, a diferença entre os crimes contra a vida e contra o patrimônio
tende a se tornar maior. A expressão cifra negra é utilizada para caracterizar
aquele universo de infrações que, por razões diversas, não chegam aos regis-
tros oficiais.
[... ] a cifra negra representa a diferença entrf aparência (conhecimento
oficial) e a realidade (volume total) da criminJJidade convencional, cons-
tituída por fatos criminosos não identificados, não denunciados ou não
investigados (por desinteresse da polícia, nos crimes sem vítima, ou por

7 Quadro elaborado a partir de informações retiradas do site da Secretaria de Segurança Pú-


blica de São Paulo. Fonte: Departamento de Polícia Civil, Polícia Militar e Superintendência
da Polícia Técnico-Científica do Estado de São Paulo. (1) Incluído Roubo Carga e Banco. 8 Quadro elaborado a partir de dados fornecidos pelo site do Instituto de Segurança Pública
(2) Homicídio Doloso inclui Homicídio Doloso por Acidente de Trânsito. Disponível em: do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http:/ /www.isp.rj.gov.br/Conteudo.
<http:/ jwww.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Pesquisa.aspx>. Acesso em: 22 set. 2013. asp?ident=150>. Acesso em: 22 set. 2013.
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interesse da polícia, sobre pressão do poder econômico e político), além de sivamente, no exclusivo intuito de demonstrar a constância da técnica utili-
limitações técnicas e materiais dos órgãos de controle sociaJ.9 zada. Os Livros utilizados serão mencionados apenas na referência biblio-
gráfica final, mantendo a ausência de identificação dos trechos selecionados.
No percentual de crimes não conhecidos e detectados pelo sistema de
persecução penal, é mais provável que roubos e furtos sejam menos notifi- Em contrapartida aos crimes impossíveis, foram pesquisados na ju-
cados do que homicídios. Isto acontece em razão da superlativa gravidade e risprudência casos que, lidando com o mesmo tema dogmático, servissem
da quase inevitável repercussão do homicídio, que, quando não deixa como para explicar específicos institutos penais. O uso da jurisprudência aplicada à
vestígio a própria vítima, acaba por ocasionar a falta de determinada pessoa. exemplificação de conceitos abstratos permite a aproximação do aluno/leitor
Agora, quando se pensa em crimes contra o patrimônio, fica mais fácil imagi- da vivência do direito mais próximo da realidade, trazendo perspectiva con-
nar que muitas das condutas passam à margem do sistema de justiça criminal creta do conceito que se pretende trabalhar, além de expor diversas questões
e se tornam componente importante, se não o mais calórico, no engordar das afeitas à prática jurídica, as quais o aluno/leitor enfrenta ou enfrentará. A ju-
cifras negras. risprudência é fonte de boa qualidade para apresentar o mundo jurídico real
aos alunos: casos concretos, questões jurídicas, interesses, perdas e ganhos,
Se muitos são os motivos pela predileção do homicídio nos manuais, argumentação- técnica, moral, principista ou consequencialista, enfim, está
decerto a escolha não se justifica pela quantidade de vezes em que o crime tudo lá. Ademais, a jurisprudência permite trabalhar as competências e as
acontece no País. habilidades demandadas dos profissionais de direito10 • A análise de decisões
judiciais também permite ao estudante familiarizar-se com a linguagem e o
2 CRIMES IMPOSSÍVEIS E DELITOS REAIS
vocabulário jurídico utilizados pelas instâncias julgadoras. Possibilita, ainda,
Crime impossível, no presente caso, tem sentido equívoco. Primei- examinar como foram construídos os argumentos, verificar se há trechos me-
ramente, é uma categoria da dogmática penal que indica o crime tentado ramente retóricos e se prevalece a fundamentação jurídica11 .
que, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do ob-
Procurou-se, portanto, comparar quão significativo era o déficit de re-
jeto, é impossível de se consumar. A doutrina cita como clássicos exemplos:
alidade entre o law in books, construído pelos doutrinadores, e o law in action,
(a) tentar envenenar alguém com farinha ou açúcar; (b) tentar matar alguém
manifestado na realidade social e veiculado por julgamentos nos tribunais.
valendo-se de superstição ou misticismo; (c) tentar demolir um edifício com
alfinetes; (d) tentativa de aborto por mulher que não está grávida.
2.1 Dolo direto de primeiro grau e dolo direto de segundo grau
Os exemplos mencionados são duplamente crimes impossíveis, seja
pela impossibilidade de se consumarem, nos termos do art. 17 do Código É notório que o crime, por questões metodológicas e sob o enfoque
Penal, seja pela baixíssima probabilidade de as condutas serem efetivamente dogmático, divide-se nos seguintes elementos: conduta típica, antijurídica e
praticadas no mundo real. A partir de agora, a atenção se voltará para essa culpável. Welzel construiu o conceito do tipo complexo e do finalismo, des-
última classificação de crime impossível. locando, da culpabilidade para o tipo penal, os conceitos de dolo e culpa.
Estes passaram a figurar como elementos subjetivos do tipo. Trabalhando o
A fim de demonstrar o que acontece nos livros de Direito Penal, se- conceito de dolo, a doutrina apresenta diferentes espécies, entre as quais se
pararam-se exemplos encontrados em reconhecidos manuais. Os exemplos destacam o dolo direto de primeiro grau e o dolo direto de segundo grau.
coletados não terão a autoria revelada porque a intenção não é desmerecer as
obras consultadas, mas pontuar a crítica construtiva para estimular a reflexão
sobre a questão. Além disso, o recurso a casos fantásticos costuma ser mais 10 SUNDFELD, Carlos Ari; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Ensinando direito pelo concreto. In:
pontual do que generalizado, muito embora ocorra com frequência maior do FEFERBAUM, Marina; GHIRARDI, José Garcez (org.). Ensino do direito para um mundo em
que a desejada. Será feita menção aos manuais como Livro 1, Livro 2 e suces- transformação. São Paulo: Fundação Getulio Vargas, 2012. p. 172.
11 RAMOS, Luciana de Oliveira; SCHORSCHER, Vivian Cristina. Método do caso. In:
GHIRARDI, José Garcez (org.). Métodos de ensino em direito- Conceito para um debate. São
9 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2006. p. 13. Paulo: Saraiva, 2009. p. 53.
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Bittencourt assim conceitua dolo direto de primeiro grau e dolo direto de A ligação entre o exemplo narrado e a classificação estudada transpõe
segundo grau: u O dolo direto em relação ao fim proposto e aos meios escolhi- a barreira dos livros didáticos chegando aos concursos públicos, como no
dos é classificado como de primeiro grau, e em relação aos efeitos colaterais, exemplo a seguir. Não deixa de haver coerência entre o que os manuais ensi-
representados como necessários, é classificado como de segundo grau" 12 • nam e o que se exige do candidato a cargo público, embora se observe grande
distância com o que se espera dele ao lidar com a prática forense. Nota-se que
A diferenciação das duas espécies de dolo direto é exemplificada da as figuras de Tício e Mévio também saíram dos manuais para as provas de
seguinte forma, obviamente, com requintes tanatológicos:
seleção de servidores públicos:
I - Suponhamos que A queira matar B. Para tanto, adquire uma pistola, Tício resolve matar Mévio, seu desafeto. Para tanto, coloca uma bomba
meio tido como necessário e suficiente para sucesso do plano criminoso. num avião no qual ele viajava do Rio de Janeiro para São Paulo. Partindo
[ ... ] II - Agora, imagine-se que o agente, terrorista internacional, queira causar do pressuposto de que a explosão de uma bomba no avião, necessariamen-
a morte de uma importante autoridade pública. Sabendo, antecipadamente, que a te, causaria a morte dos outros passageiros, mas sem que Tício desejasse a
vítima faria uma viagem de cunho político, coloca um explosivo no avião no qual morte deles, pode-se afirnlar que de acordo com a moderna doutrina do
esta seria transportada, a fim de que fosse detonado quando a aeronave já tivesse Direito Penal, o dolo de Tício será:
decolado, o que vem a acontecer. [... ]O dolo referente à autoridade pública po-
derá ser considerado direto de primeiro grau, pois a conduta do terrorista a) direto de primeiro grau em relação a Mévio e direto de segundo grau em
foi dirigida finalisticamente a causar-lhe a morte. Com relação às demais relação aos demais passageiros.
pessoas que estavam a bordo do avião, [... ] será classificado como (dolo
direto) de segundo grau, pois que a finalidade primeira não era a de causar b) determinado em relação a Mévio e alternativo em relação aos demais
a morte dos demais passageiros, que ele sequer conhecia. 13 passageiros.

Haverá dolo direto de primeiro grau, por exemplo, quando o agente, que- c) indireto em relação a Mévio e direto em relação aos demais passageiros.
rendo matar alguém, desfere-lhe um tiro para atingir o fim pretendido.
No entanto, haverá dolo direto de segundo grau quando o agente, querendo d) normativo em relação a Mévio e natural em relação aos demais passa-
matar alguém, coloca uma bomba em um táxi, que explode, matando todos geiros.16
(motorista e passageiros) _14
A bem da verdade, os conceitos de dolo direto de primeiro grau e de
Como primeira observação, nota-se que a doutrina tem utilizado exem- segundo grau são pouco utilizados na prática forense, mas encontram respal-
plos similares para explicar o conceito. Em segundo lugar, os autores traba- do em alguns julgados dos tribunais.
lham as espécies de dolo direito com base na explosão de meio de transporte, APELAÇÃO CRIMINAL- CONDENAÇÃO POR RECEPTAÇÃO DOLO-
cuja ocorrência nos livros é inversamente proporcional aos muitos táxis e SA - PLEITO ABSOLUTÓRIO - INADMISSIBILIDADE - PRESENÇA DE
aviões que se detonam no Brasil diariamente. É citada a ação executada por DOLO DIRETO DE SEGUNDO GRAU - CLASSIFICAÇÃO DELITIVA
terrorista internacional, a despeito de faltar, no País, um tipo penal que aten- MANTIDA - RECONHECIMENTO DO PRIVILÉGIO - NECESSIDADE -
da a denominação especial de terrorismo e que, em vez de uma pura cláusula PRESCRIÇÃO - OCORRÊNCIA - I - Dolo direto de segundo grau é o que
geral, exponha os elementos definidores que se abrigam nesse conceito15 • se relaciona com os efeitos colaterais, representados como necessários pelo
agente (cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. Parte ge-
ral. São Paulo: Saraiva. p. 212). Quem, ao efetuar a compra de um bem por valor
absurdamente menor ao preço real e de pessoa desconhecida pratica receptação do-
12 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 19. ed. São Paulo: Saraiva,
losa (art. 180, caput, CP) e não culposa (art. 180, § 3°, CP), pois não apenas pre-
2013. p. 360.
13 Livro 1.
14 Livro 2.
15 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos - Notas sobre a Lei n° 8.072/1990. 3. ed. São 16 Prova realizada pela Consulplan, no ano de 2012, para o cargo de Analista Judiciário- Área
Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 68. Judiciária - do TSE.
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viu, aceitou, admitiu ou consentiu em estar adquirindo uma coisa objeto de crime 2.2 Autoria colateral
mas efetivamente representou como necessária a procedência delitiva do bem. [...).1;
Quando duas ou mais pessoas praticam condutas concorrentes para o
Conquanto o acórdão referido traga controverso exemplo de dolo dire- mesmo crime, mas agem separadamente, sem que haja liame subjetivo entre
to de segundo grau, na pesquisa foi recorrente o argumento apresentado pelo elas, está caracterizada a autoria colateral. Dessa forma, afasta-se o concurso
Ministério Público quanto à ocorrência do dolo direto de segundo grau no de pessoas, que, na aplicação da pena, pode importar em agravamento da
ato de serrar as grades para se evadir de instalação prisional, o que, em tese, punição.
caracterizaria dolo direto de segundo grau no crime de dano. Contudo, essa
Na doutrina brasileira, encontramos o seguinte exemplo associado ao
hipótese foi rechaçada pelos tribunais nas decisões encontradas18 .
tema: "Quando, por exemplo, dois indivíduos, sem saber um do outro, colo-
Menos polêmico é o aresto do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), cam-se de tocaia e quando a vítima passa desferem tiros, ao mesmo tempo,
que considerou estar orientada por dolo direto de segundo grau a conduta matando-a, cada um responderá, individualmente pelo crime cometido" 21 .
do agente que, ao cometer homicídio triplamente qualificado e tendo pleno
O exemplo apresentado cumpre perfeitamente seu propósito, pois ilus-
conhecimento da gravidez, provocou aborto sem consentimento da gestante-
tra e dá forma ao conceito em questão e bem destaca o elemento mais impor-
-vítima. De acordo com o tribunal, "na realidade, portanto, em relação ao
tante na caracterização da autoria colateral: a falta de planejamento conjunto.
aborto não houve simplesmente dolo eventual, mas dolo direito, no caso 0
Entretanto, o esclarecimento é prestado de maneira tão óbvia que chega a
chamado dolo direto de segundo grau" 19 .
ser contraproducente por falta de desafio intelectual. Isso fragiliza a pers-
As discussões que podem surgir a partir da abordagem exemplificativa pectiva do ensino participativo, ou seja, do ensino em que o aluno é levado
feita por meio de julgados, como no exemplo anterior, proporcionam não só a participar da construção do conhecimento, em que figura como principal
a melhor compreensão do assunto, como também aprimoram a capacidade agente do processo educativo 22 • O exemplo não instiga a discussão, nem leva
de estruturação do conhecimento de temas e conceitos diversos. Mas o mais o leitor a adotar posição ativa sobre os desdobramentos da autoria colateral.
interessante é que, com frequência, a solução do caso passa ao largo de con- Outrossim, como costuma ocorrer, retrata crime impossível: a mesma vítima
ceitos estabelecidos. Afinal, a jurisprudência não tem deferência a conceitos tem sua morte planejada por duas pessoas diferentes, em idêntico lugar do
fechados, prontos e acabados, trabalhando com noções mais elásticas, con- planeta, no mesmo instante e com a mesma forma de execução, sem nenhum
sentâneas com a prática jurídica20 . ajuste anterior.
Não muito distante do exemplo apresentado, o exame unificado da
OAB de 2012, em sua primeira fase, trouxe a seguinte questão, mantendo
congruência com o estilo dos manuais:
17 Belo Horizonte, TJMG, Apelação Criminal n° 1.0372.07.029080-7/001, Rei. Des. Alexandre Zenão e Górgias desejam matar Tales. Ambos sabem que Tales é pessoa
Victor de Carvalho, Data de Julgamento: 12.03.2013, Data de publicação da súmula: bastante metódica e tem a seguinte rotina ao chegar no trabalho: pega uma
19.03.2013. xícara de café na copa, deixa-a em cima de sua bancada particular, vai a
outra sala buscar o jornal e retorna à sua bancada para lê-lo, enquanto de-
18 Paraná, TJPR, 6a C.Crim., Embargo de Declaração n° 5.275169-9/01, Rei. Des. Lidio José
gusta a bebida. Aproveitando-se de tais dados, Zenão e Górgias resolvem
Rotoli de Macedo, Data Julgamento: 05.05.2005, Data Publicação: 10.06.2005, Fonte: DJ,
que executarão o crime de homicídio através de envenenamento. Para
p. 6887; Paraná, TJPR,4a C.Crim., Embargo de Declaração n° 3.423642-4/01, Rei. Des. Carlos
tanto, Zenão, certificando-se que não havia ninguém perto da bancada de
Augusto A. de Mello, Data Julgamento: 27.03.2008, Data Publicação: 11.04.2008, Fonte:
Tales, coloca na bebida O,lml de poderoso veneno. Logo em seguida chega
DL p. 7592.
Górgias, que também verifica a ausência de qualquer pessoa e adiciona ao
19 Curitiba, TJPR, Grupo de Câmaras Criminais, Revisão Criminal n° 95080-5, Rei. Des.
Clotário Portugal Neto, Data Publicação: 05.02.2001.
20 SUNDFELD, Carlos Ari; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Ensinando direito pelo concreto. In: 21 Livro 2.
FEFERBAUM, Marina; GHIRARDI, José Garcez (org.). Op. cit., p. 172. 22 GIL, Antonio Carlos. Didática do ensino superior. São Paulo: Atlas, 2010. p. 6.
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café mais O,lrnl do mesmo veneno poderoso. Posteriormente, Tales retorna Ao se analisar a autoria colateral, não se encontraram muitos casos na
à sua mesa e senta-se confortavelmente na cadeira para degustar o café jurisprudência, talvez pela ineficácia dos meios de pesquisa, talvez pelare-
lendo o jornal, corno fazia todos os dias. Cerca de duas horas após a inges- lutância dos Magistrados em aplicar o nome doutrinário à situação analisa-
tão da bebida, Tales vem a falecer. Ocorre que toda a conduta de Zenão da. Mas uma coisa é certa: nem de longe se localizou acórdão em que dois
e Górgias foi filmada pelas câmeras internas presentes na sala da vítima, desconhecidos, no mesmo local e horário, sem prévio ajuste, mataram com
as quais eram desconhecidas de ambos, razão pela qual a autoria restou disparos de fogo ou com emprego de veneno a mesma pessoa.
comprovada. Também restou comprovado que Tales somente morreu em
decorrência da ação conjunta das duas doses de veneno, ou seja, somente
O,lrnl da substância não seria capaz de provocar o resultado morte. Com 2.3 Autoria mediata
base na situação descrita, é correto afirmar que
Dando prosseguimento aos exemplos, passa-se à autoria mediata, as-
a) caso Zenão e Górgias tivessem agido em concurso de pessoas, deveriam sunto que se relaciona à teoria do dorninio do fato, que ganhou notoriedade
responder por homicídio qualificado doloso consumado. no julgamento da Ação Penal n° 470 (Mensalão) pelo Supremo Tribunal Fe-
deral. Autor mediato é aquele que se vale de terceiro como instrumento para
b) mesmo sem qualquer combinação prévia, Zenão e Górgias deveriam res-
a prática do crime. A doutrina utiliza os exemplos a seguir para ilustrar o
ponder por homicídio qualificado doloso consumado.
conceito:
c) Zenão e Górgias, agindo em autoria colateral, deveriam responder por Aquele que se vale do ator através do revólver carregado, assegurando-lhe
homicídio culposo. que contém bala de festim, indiscutivelmente tem em suas mãos o domínio
d) Zenão e Górgias, agindo em concurso de pessoas, deveriam responder do fato, pois o ator "não sabe o que faz", já que crê estar representando
por homicídio culposo. 23 quando, na realidade, está causando urna rnorte. 26
Quem ameaça a outro de morte, encostando urna metralhadora em sua
Por seu turno, os tribunais trazem situações que também se enquadram têmpora, a fim de que escreva e envie urna carta injuriosa a um terceiro,
no conceito de autoria colateral. Ela estaria caracterizada no fato de agentes tem o domínio do fato quanto ao delito injúria, porque embora aquele que
venderem entorpecentes diversos, no mesmo local e na mesma hora, de ma- escreva aja com dolo, quem tem a metralhadora é que domina o fato, ao
neira independente, afastando a conclusão de que se achavam associados 24 • criar a situação de necessidade para o outro, colocando-o numa posição em
É do mesmo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro o acórdão que traz moda- que o direito lhe autoriza a conduta antinorrnativa. 27
lidade de autoria colateral em crime de lesões corporais culposas, quando o
Os exemplos, como não poderiam deixar de ser, são caricaturais. Como
condutor do automóvel não mantém distância razoável da motocicleta nem
toda caricatura, são representações burlescas, elaboradas para acentuar ca-
observa os limites de velocidade, ao passo que o condutor da motocicleta,
racterísticas bem marcantes. O exemplo caricatura! até poderia ser usado em
não habilitado, trafega com passageiro e sem o uso de capacete de segurança.
um primeiro momento, mas não como único recurso.
As lesões provocadas no passageiro da motocicleta devem ser imputadas aos
dois condutores 25 • Nas palavras de Gomes: "Nenhum ensino pode mais pretender só
transmitir informações: deve também desenvolver em cada aluno compe-
tência, que é a habilidade para enfrentar situações complexas" 28 • O exemplo
23 Prova de primeira fase do VII Exame de Ordem Unificado OAB realizada pela FGV no ano caricatura!, ainda que possa dar origem a cenário complexo, desprende-se
2012.
24 Rio de Janeiro, TJRJ, s a C.Crim., Apelação n° 0026966-69.1998.8.19.0000, Rela Desa Maria
Helena Salcedo, Julgamento: 09.02.1999. Disponível em: <http:/ jwww4.tjrj.jus.brjejud/
26 Livro 3.
ConsultaProcesso.aspx?N=199805001871>. Acesso em: P out. 2013.
27 Livro 3.
25 Rio de Janeiro, TJRJ, 2a C.Crim., Apelação n° 0006692-09.2002.8.19.0206, Rel. Des. Claudio
Dell Orto, Julgamento: 04.05.2004. Disponível em: <http:/ jwww4.tjrj.jus.br/ejud/ 28 GOMES, Luiz Flávio. A crise (tríplice) do ensino jurídico. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 59,
ConsultaProcesso.aspx?N=200305005165>. Acesso em: 1° out. 2013. 1 out. 2002. Disponível em: <http:/ /jus.com.br/ artigos/3328> . Acesso em: 4 jul. 2014.

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do mundo real e faz do aprendizado uma atividade que não guarda relação bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judi-
com o cotidiano. A caricatura mostra-se prescindível porque é perfeitamente cial, inscrito no inciso I do art. 62 da Lei n° 9.605/1998, em hipótese de au-
possível, dada a complexidade que envolve as relações sociais, extrair do dia toria media ta, que restou em tese verificada ao sonegar dos adquirentes do
imóvel a informação cerca da existência do sítio arqueológico no terreno,
a dia situações intrincadas o suficiente para desenvolver habilidades necessá-
fazendo-os dar continuidade a projeto cujas obras tinha conhecimento que
rias ao estudante que atuará em cenários cada vez mais desafiantes. acarretariam a sua destruição [... ].3°
Não se discute que apontar metralhadora na têmpora para constran-
ger a redigir uma carta injuriosa expresse modalidade de autoria mediata. 2.4 Erro de tipo
Porém, corre-se o risco de tomar como concreta a expectativa de se realizar
audiência para apurar se o uso da metralhadora realmente serviu ao propósi- Passando ao tema dos erros, encontram-se as mais surreais situações
to de coagir o subscritor da carta. Afinal, os fatos precisariam ser esclarecidos que tocam o Direito Penal. O erro de tipo recai sobre o dolo, mais precisa-
no curso da ação penal... mente sobre a ausência dele. Falta ao agente o conhecimento sobre um ou
mais elementos do crime, restando, com isso, ausente a vontade e sua cons-
Na jurisprudência, não é difícil detectar que a pessoa/ instrumento
ciência em praticar a conduta proibida, a ponto de não sofrer punição. Para
mais comumente utilizada pelos autores mediatos é o menor de 18 anos, pe-
esse tópico, a doutrina elege os seguintes exemplos, que também não são
nalmente inimputável e, portanto, eleito para cometimento de crimes. No
alijados de provas de conhecimento:
entanto, existem formas mais sutis de caracterização da autoria mediata.
Exemplificando: um caçador, no meio da mata, dispara sua arma sobre um
Trata-se de mera hipótese de autoria media ta, em que o agente que realiza
objeto escuro, supondo tratar-se de um animal, e atinge um fazendeiro;
diretamente o injusto penal não é culpável e apenas atua como instrumento
uma pessoa aplica a um ferimento do filho ácido corrosivo, pensando que
para se alcançar o fim ilícito almejado pelo idealizador do crime. A acusada
está utilizando uma pomada; uma gestante ingere substância abortiva na
detinha o domínio do fato e, valendo-se dessa situação de preeminência,
suposição de que está tomando calmante etc. 31
dirigia a conduta das crianças, indicando o que deveria ser furtado, como
se procederia ao crime e qual a melhor ocasião para praticá-lo. As crianças, Um caçador atira contra um arbusto ferindo uma pessoa que se fazia pas-
inimputáveis que são, apenas obedeciam aos comandos da ré, não se po- sar por animal bravio. 32
dendo confundi-las com verdadeiros coautores [... ]. 29
No exemplo do caçador que atira no amigo supondo tratar-se de animal
HABEAS CORPUS- TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL- FALTA DE bravio podem ocorrer duas hipóteses [... ].33
JUSTA CAUSA- CRIME AMBIENTAL- ART. 62, I, DA LEI No 9.605/1998 Quem dispara sobre o que acredita ser um urso não pode ter a vontade de
-DESTRUIÇÃO DE SÍTIO ARQUEOLÓGICO- ATIPICIDADE DA CON- matar um homem. 34
DUTA DO RÉU AFASTADA - AUTORIA MEDIATA RECONHECIDA
- EXAME APROFUNDADO DE PROVAS - DESCABIMENTO NA VIA
SUMÁRIA DO WRIT- CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE -
ORDEM DENEGADA - 1. Os elementos de convicção que embasaram a
denúncia permitiram concluir que a conduta do paciente se mostrou em
tese dirigida para a realização dos verbos destruir, inutilizar ou deteriorar
30 São Paulo, Tribunal Regional Federal da 3a Região, 5a C.Crim., Habeas Corpus
n° 00820078320074030000, Rei. Des. Hemique Herkenhoff, Julgamento: 06.11.2007.
Disponível em: <http:/ jweb.trf3.jus.br/ acordaos/ AcordaojPesquisarDocumento?proces
29 Minas Gerais, TJMG, 1a C.Crim., Apelação Criminal n° 1450261-50.2000.8.13.0000, Rei. Des. so=00820078320074030000>. Acesso em: 24 out. 2013.
Zulman Galdino, Julgamento: 29.06.1999, Disponível em: <http:/ jwww5.tjmg.jus.br/ 31 Livro 4.
jurisprudencial pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid =8C32C5F7F2019FF96
32 Livro 5.
6C7FD99877ECAD3.juri_node2?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&
numeroUnico=1450261-50.2000.8.13.0000&pesquisaNumeroCNJ =Pesquisar>.:. Acesso em: 33 Livro 6.
24 out. 2013. 34 Livro 3.
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O professor de anatomia golpeia mortalmente o corpo humano vivo, trazi- FICIÁRIA- INEXISTÊNCIA DE DOLO VERIFICADA- ERRO DE TIPO
do ao anfiteatro, supondo tratar-se de um cadáver. 35 -ABSOLVIÇÃO- [... ] 111- É de fácil aceitação que uma pessoa com bai-
Um caçador, no meio da mata, dispara sua arma de fogo sobre um objeto xo grau de escolaridade seja ludibriada por um estelionatário, mormente
escuro, supondo tratar-se de um animal, e atinge um fazendeiro. Nesta quando este a aborda dentro de um posto do INSS e se apresenta como
hipótese, restou configurado: servidor do órgão. IV - O fato de afirmar em defesa administrativa que não
trabalhou nas empresas objetos da investigação, bem como o fato de não
a) erro sobre pessoa. ter pleiteado o restabelecimento do benefício judicialmente corroboram a
b) erro de tipo. boa-fé da apelante e comprovam a tese de erro de tipo, no caso, vencível.
V - Erro de tipo caracterizado. Exclusão do dolo. Inexistência de esteliona-
c) erro provocado por terceiro. to culposo. Absolvição que se impõe. VI - Provimento da apelação. 38
d) aberratio ictus.36 Tráfico de drogas. Cultivo. Maconha. Erro de tipo. Incidência. Atipicidade.
Exclusão do crime. Incide em erro de tipo a agente que cultiva dois pés de
A doutrina, fora o rearranjo de nma característica aqui e acolá, consa- maconha encontrados em quintal aberto de casa recém adquirida, acredi-
gra como paradigma do erro de tipo aquele cometido pelo caçador. Depreen- tando tratar-se de outra espécie de planta, que produz flores. 39
de-se que a caça parece ser peculiar esporte brasileiro, tal como se pratica nos
países europeus. Entre os animais que supostamente estão na alça de mira do 2.5 Erro de proibição
caçador encontra-se o urso, que sequer faz parte da fauna nacional. Para con-
tornar a impropriedade, há autores que preferem não identificar o "animal Erro de proibição é aquele que recai sobre a compreensão da ilicitude
bravio" que se confunde com o homem atingido e deixam de indicá-lo entre da conduta. O agente não consegue identificar que a conduta praticada é
aqueles que têm habitat no território brasileiro e que apresentam porte simi- ilícita e, por isso, acaba por cometer o crime. Com isso, o erro de proibição,
lar ao humano. Constata-se que os exemplos, além de dissociados do mundo quando invencível, exclui o elemento culpabilidade e a punição. Na sua for-
real, seriam mais apropriados para países de outros continentes, onde a caça ma mais simples os autores têm exemplificado o erro de proibição da seguin-
seja mais abrangente e ursos, mais comuns. te maneira: "Se o sujeito tem cocaína em casa, supondo tratar-se de outra
substancia, inócua, trata-se de erro de tipo (art. 20); se a tem supondo que o
A monotonia exemplificativa constatada não se faz pela falta de aplica-
ção prática do instituto, como se depreende dos acórdãos ora expostos. deposito não é proibido, o tema é de erro de proibição (CP, art. 21)." 40 "Um
indígena quebra um brinquedo em uma loja porque crê - de acordo com as
Havendo indícios de que os acusados acreditavam convictamente que a crenças do lugar de onde provém - que ele tem poderes maléficos e que lhe
res por eles subtraída era coisa abandonada em local ermo e desabitado, a causará a morte" .41
absolvição é medida que se impõe, em razão de dúvida quanto à tipicidade
do fato, pela firme possibilidade de caracterização de erro de tipo, dando O modelo de erro de proibição peca de maneira quase grosseira. Se o
efeito extensivo do recurso ao corréu, nos termos no art. 580 do CPP.37 indígena realmente quebra um brinquedo em uma loja é sinal de que convive
PENAL - PROCESSO PENAL - ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO - no meio urbano e, provavelmente, já incorporou a cultura não indígena. Não
CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CARACTERIZADO - BENEFÍCIO
CONCEDIDO POR SUPOSTO SERVIDOR DO INSS- BOA-FÉ DA BENE-
38 Rio de Janeiro, Tribunal Regional Federal da 2a Região, P Turma Especializada, Apelação
Criminal n° 200851100058094/RJ, Rei, Des. Juiz Fed. Conv. Marcello Ferreira de Souza
Granado, Data Decisão: 15.06.2011, e-DJF2R, Data: 28.06.2011, p. 58.
35 Livro 7. 39 Minas Gerais, TJMG, 2a C.Crim., Apelação Criminal n° 1692466-13.2000.8.13.0000, Rei.
36 Prova de Exame de Ordem OAB realizada pela seccional do Distrito Federal no ano 2004. Des. Reynaldo Xirnenes Carneiro, Data de Julgamento: 17.02.2000, Data da Publicação da
Súmula: 14.03.2000.
37 Minas Gerais, TJMG, Apelação Criminal n° 1.0701.05.129489-3/001, 1294893-06.2005.
8.13.0701 (1), Rei. Des. Júlio Cezar Guttierrez, Data de Julgamento: 05.10.2011, Data da 40 Livro 6.
Publicação da Súmula: 19.10.2011. 41 Livro 3.
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haveria fundamento suficiente para que não tivesse consciência da ilicitude tude, aliado à insignificância do resultado danoso. Excludente a tipicidade
do dano causado. A situação seria diversa talvez se fosse feita referência ao do delito. 3. Ausência de reprovabilidade da conduta que não admite a
infanticídio indígena, em que se matam crianças em casos de gestação múl- condenação. 4. Sentença que se reforma, para absolver o réu. 45
tipla; se são portadoras de deficiências físicas e/ ou mentais; em caso de ex- PENAL- APELAÇÃO CRIMINAL- ART. 273, § 1°-B, I, DO CP - PENA
ceder o número de filhos considerado apropriado para o grupo; se possuem -ANALOGIA AO ART. 33 DA LEI No 11.343/2006 - [... ] 6. O conjunto pro-
alguma marca de nascença que os diferencie dos demais; quando são consi- batório carreado aos autos informa que a apelante, pessoa humilde, nasci-
derados portadores de má-sorte para a família ou para o grupo. Enfim, mata- da em Cururupu/MA, e residente na paupérrima Candangolândia, região
-se, segundo a nossa cultura, por frívolas razões, motivações convenientes ou administrativa do Distrito Federal, à época dos fatos trabalhava na "fei-
inaceitáveis42, mas que poderiam estar acobertadas pelo erro de proibição. ra dos importados" que funciona na Capital da República, local aonde se
pratica abertamente o contrabando e o descaminho. 7. Absolutamente im-
A visão que se tem dos povos dominados pela colonização europeia, provável que a ré, utilizada como "sacoleira" ou, melhor, "mula", tivesse
de cultura predominantemente tribal e silvícola, chamados indistintamente consciência da ilicitude de sua conduta, ao internar medicamento proibido
de índios, é tão equivocada quanto à razão de ser da denominação "índio". em solo nacional, e, ainda, de que o comércio de remédios desenvolvido na
A caricatura do índio, como guerreiros astutos e demasiadamente violentos, tal "feira dos importados" fosse ilegal, considerando que acontece aberta-
trajando vestes típicas ou mesmo sem elas, sempre com plumas coloridas, mente. Provavelmente achou que o fármaco não passava de "muamba", tal
de fala característica, trejeitos forçados, preguiçoso, de raciocínio debilita- como as demais tralhas e quinquilharias encomendadas pelos barraqueiros
do, facilmente enganável e vencível, é fruto da construção de imagem fanta- da "feira dos importados", a saber, cosméticos, objetos de higiene pessoal,
siosa criada por filmes, livros e outros veículos de mídia. Assim, a imagem jogos de dominó, peças de roupa e miudezas de cozinha. 46
que se faz do índio é desatualizada e estereotipada e, ao que parece, ain-
PENAL - ATIVIDADE CLANDESTINA DE TELECOMUNICAÇÕES -
da vai se perpetuar, pois apresentada e desenvolvida para o "homem bran-
ART. 183 DA LEI N° 9.472/1997- TELEFONE SEM FIO DE LONGO AL-
co" desde sua infância, a exemplo de dois clássicos da Disney: Peter Pan43 e CANCE - USO PRIVADO - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA.ERRO DE PROI-
Pocahontas44 • BIÇÃO INVENCÍVEL- PRECEDENTES- APLICABILIDADE- APELA-
Os doutrinadores têm perdido a oportunidade de aplicar elementos ÇÃO IMPROVIDA- I- É de ser reconhecido o erro de proibição, quanto
enriquecedores, extraídos da jurisprudência, para ilustrar o erro de proibi- ao uso de telefone sem fio, de longo alcance, diante do seu comércio sem
restrições, através da Internet, bem como pelo desconhecimento técnico,
ção, como a seguir se vê:
pelo acusado, de que, pela sua frequência, o uso seria passível de autoriza-
PENAL - CRIME CONTRA A FAUNA SILVESTRE - CAÇA DE DOIS ES- ção prévia pela Anatel. 11- Apelação improvida. 47
PÉCIMES- ERRO DE PROIBIÇÃO- JUSTIFICÁVEL DESCONHECIMEN-
TO DA ILICITUDE DO ATO- AUSÊNCIA DE DANO EFETIVO AO BEM PENAL - ESTELIONATO - PERCEPÇÃO DE SEGURO-DESEMPREGO
JURÍDICO TUTELADO PELA NORMA INCRIMINADORA- RECONHE- CONCOMITANTE AO SALÁRIO- EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE
CIMENTO DA INSIGNIFICÂNCIA DO RESULTADO- ABSOLVIÇÃO -ERRO DE PROIBIÇÃO-ABSOLVIÇÃO- RECURSO IMPROVIDO- Re-
DECRETADA -1. Plausibilidade do alegado desconhecimento da ilicitude cebimento do seguro-desemprego concomitante ao salário. Configura-se o
do ato de caça a animais silvestres para consumo próprio e da família, sem erro de proibição excludente da culpabilidade, se o sujeito ativo, induzido
finalidade predatória ou de comercialização. 2. Desconhecimento da ilici-

45 São Paulo, Tribunal Regional Federal 3a Região, 2a T., Apelação Criminal


42 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Infanticídio indígena. Boletim do IBCCrim, a. 20, n. 232, n° 00339383419894036181, Rel. Des. Fed. Sylvia Steiner, DJ data: 07.02.1996.
p. 17, mar. 2012. 46 São Paulo, Tribunal Regional Federal 3a Região, P T., Apelação Criminal
43 Peter Pan. Dir.: Clyde Geronimi, Wilfred Jackson, Hamilton Luske. Walt Disney Pictures, n° 00004471920074036112, Rel. Des. Fed. Johonsom Di Salvo, e-DJF3 Judicial 1, Data:
EUA. 1953. Cor. 76 min. DVD. 06.11.2009, p. 105.
44 Pocahontas. Dir: Mike Gabriel, Eric Goldberg. Walt Disney Pictures, EUA. 1995. Cor. 81 min. 47 Fortaleza, Tribunal Regional Federal 5a Região, 4a T., Apelação Criminal n° 200981
DVD. 000003851, Rela Desa Fed. Margarida Cantarelli, DJe Data: 10.02.2012, p. 287.
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a erro por funcionários da empresa em que trabalhava, foi incapaz de en- Imagine-se, por exemplo, que o agente acredite erroneamente, que deve
tender a ilicitude do fato, supondo inexistir ilegalidade no recebimento de salvar de um incêndio um quadro supostamente valioso, rompendo a vitri-
seguro-desemprego concomitante a prestação de serviços sem carteira de ne de urna loja de objetos de arte, e que depois se constate que se tratava de
trabalho assinada, ainda que houvesse o recebimento de salário. Absolvi- urna cópia sem valor artístico. Ou que pode invadir durante a noite a casa
ção rnantida. 48 habitada do vizinho para salvar uma criança da morte por afogamento,
quando, em verdade, tratava-se de urna boneca que foi lançada dentro da
Não se pode esperar que todo exemplo traga somente virtudes para 0 piscina. A situação, nesse caso, é de estado de necessidade putativo. 50
aprendizado do Direito. Contudo, mesmo que sob o viés puramente ilustrati- Podemos citar os seguintes exemplos de estado de necessidade:[ .. .] e) sub-
vo, quando distante da realidade e realizado de forma acrítica, como no caso tração de salva-vidas de um disputante em caso de naufrágio; j) dois al-
do índio, o exemplo não merece elogios, pois incute preconceitos e distorce pinistas percebem que a corda que os sustenta está prestes a romper-se;
a realidade. para salvar-se, A atira B num precipício; g) durante um incêndio, A causa
ferimentos em B quando se lança na direção da porta de salvação; h) lan-
2.6 Estado de necessidade çamento de mercadorias ao mar para salvar um barco e pessoas; i) lança-
mento de mercadorias para diminuir o peso do avião e salvar tripulantes
Poucos institutos apresentam casuística mais significante, tanto nos li- e passageiros; j) desvio de um canal para impedir inundação; l) caso de
vros e manuais de Direito Penal quanto na jurisprudência, do que o estado de antropofagia entre náufragos ou perdidos na selva [... ]. 51
necessidade. Encontra-se em estado de necessidade quem está em situação
de perigo real e, portanto, não age ilicitamente para livrar-se dele. Exemplo Aqui cabem três críticas aos exemplos apresentados. Primeiramente,
bastante comum e de presença quase obrigatória nos livros é o da Tábua de do grande número selecionado, verifica-se que poucos deles representariam
Carneades ou Tábua da Salvação. Vejamos um deles, que inclusive ressalta o casos de discussão judicial. A segunda crítica está na forma como se expõem
teor clássico do exemplo: os exemplos, de maneira exaustiva e sem grandes explicações ou divagações
[... ] Note-se que o direito lesado pertence a um inocente, daí por que se sobre eles. O autor predetermina situações enquadráveis no estado de neces-
fala, no estado de necessidade, em colisão de direitos. É a hipótese clássica sidade, conforme conceito estudado abstratamente, e faz o ajuste sem muito
da tábua de Carneades: dois náufragos lutam por um resto de embarcação, rigor metodológico. Por fim, na pesquisa feita, não se encontrou julgado que
que só suporta o peso de um deles.49 contemplasse as hipóteses trazidas nos manuais.

Justifica-se a morte de um dos náufragos pelo outro em razão do esta- A perspectiva adotada traz prejuízos que vão além da deficiência no
do de necessidade. aprendizado de determinado conceito, pois não se trabalha a forma de se es-
truturar as ideias e os argumentos. A forma de pensar é tão importante quan-
A "clássica hipótese", como foi chamada no trecho anterior, represen- to o conteúdo, ou até mais importante do que ele. Imprecisões conceituais
ta, de forma plena, aquilo que se diz sobre a perpetuação de exemplos du- serão reflexo de um modo imperfeito de pensar; aperfeiçoado o pensar, tais
rante o transcorrer das décadas. Apesar de o Brasil possuir uma das maiores imprecisões tenderão naturalmente a desaparecer, sendo corrigidas por um
costas marítimas do mundo, o exemplo atualmente está muito deslocado, raciocínio mais qualificado 52 . Se a construção do raciocínio jurídico não for
porque navios não são mais feitos de madeira e existe tecnologia suficiente feita de maneira consistente haverá dificuldade no próprio entendimento do
para apoiar náufragos, que não seja um pedaço de pau. Nos demais exem-
conceito aplicável ao caso, déficit que se reforça pelo modelo exemplificativo
plos apresentados pela doutrina, a conexão com o mundo da vida não é mais
meramente taxativo como anteriormente exposto.
vigorosa:

50 Livro 2.
48 São Paulo, Tribunal Regional Federal 3a Região, 3a T., Apelação Criminal n° 200483000
219192, Rel. Des. Fed. Ridalvo Costa, DJ Data: 25.05.2007, p. 643. 51 Livro 6.

49 Livro 2, Livro 3, Livro 5, Livro 8 e Livro 9. 52 GHIRARDI, José Garcez. Op. cit., p. 54-55.

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A fim de fomentar a discussão do instituto e para buscar maior proxi- grau que o absolveu acolhendo esta excludente de ilicitude. 2. Absolvição
midade fática, apresentam-se os seguintes arestos: mantida. 55

PENAL - CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE - DESTRUIÇÃO DE FURTO - ESTADO DE NECESSIDADE - RÉUS EM SITUAÇÃO DE PE-
FLORESTA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE- CRIME DE CORTE NÚRIA, SEM ANTECEDENTES CRIMINAIS, QUE ABATERAM UMA
DE ÁRVORES EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE SEM LI- NOVILHA E SUBTRAÍRAM PARTE DA CARNE - ABSOLVIÇÃO MAN-
CENÇA- MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS- ESTADO TIDA- Negaram provimento ao apelo (por maioria). 56
DE NECESSIDADE - CONFIGURAÇÃO - APELAÇÃO IMPROVIDA -
TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO -MOTIVO FÚTIL -SUR-
1. Materialidade e autoria devidamente demonstradas da prática do cri-
PRESA -JÚRI -ESTADO DE NECESSIDADE -ABSOLVIÇÃO -RECURSO
me de corte de árvores em área de preservação permanente. 2. A acusada
MINISTERIAL IMPROVIDO -Não pode ser considerada contrária à prova
somente promoveu o desmatamento para garantir a subsistência de sua
dos autos a absolvição calcada no estado de necessidade, se o acusado,
família o que caracteriza o estado de necessidade, causa excludente de ili- para se desviar de uma criança, que atravessou correndo na frente do trator
citude. 3. Na colisão entre os valores da preservação do meio ambiente e que conduzia, atinge a residência da vítima, ferindo-a. Só se cassa a deci-
da busca de subsistência familiar não há como o primeiro sobressair-se. são do Júri quando ela é arbitrária, escandalosa e totalmente divorciada da
4. Apelação improvida. 53 prova do processo. 57
O crime de apropriação indébita em referência é crime omissivo puro, in- PORTE ILEGAL DE ARMA- ESTADO DE NECESSIDADE- Se faz pre-
fração de simples conduta, cujo comportamento não traduz simples lesão sente a excludente quando o cidadão e sua família sofrem séria ameaça
patrimonial, mas quebra do dever global imposto constitucionalmente a de assassino de seu irmão. Absolvição decretada à unanimidade, deram
toda a sociedade; o tipo penal tutela a subsistência financeira da previ- provimento ao apelo. 58
dência social (HC 76.978-1/RS, Rel. Min. Mauricio Correa, DJ 19.02.1999).
3. Demonstrado que as dificuldades financeiras da empresa levaram o
3 A TRADIÇÃO PRESERVADA
agente a omitir o pagamento dos tributos, configura-se estado de necessi-
dade. Precedente deste Tribunal. 4. O exame dos presentes autos revela a O Direito Penal talvez seja o ramo que mais se vale de exemplos inve-
existência de provas quanto à situação de extrema dificuldade financeira rossímeis para explicar-se. Os exemplos são caricatos e a caricatura, como
do Acusado e de sua empresa à época dos fatos. 5. Comprovado nos autos é óbvio, não retrata o real, ao contrário, deforma-o. Os manuais de Direito
o estado de necessidade e a inexigibilidade de conduta diversa operando- Penal, nas últimas décadas, em regra, são bastante conservadores na ilus-
-se, portanto, na hipótese, a exclusão da ilicitude e também da culpabilida- tração dos institutos penais, uma vez que optam por apresentar exemplos
de, respectivamente. 54
de infrações de difícil concreção no mundo fenomênico. Ao que parece, eles
DIREITO PENAL- ESTELIONATO CONTRA A PREVIDÊNCIA- ESTA- simplesmente acompanham tendência do ensino jurídico de não travar con-
DO DE NECESSIDADE -1. Estando comprovado o estado de necessidade tato com a vida realf
em que agiu o acusado, homem já de meia idade, pobre, sem instrução i
cultural e profissional alguma, desempregado, e cuja esposa encontrava-
55 Porto Alegre, Trii)Unal Regional Federal da 4a Região, 2a T., Apelação Criminal
-se gravemente doente, internada em hospital psiquiátrico, local onde pos-
n° 9604059190, Rel. Vilson Darós, Fonte: DJ 07.06.2000, p. 358.
teriormente veio a falecer, absolutamente correta a sentença de primeiro
56 Rio Grande do Sul, TJRS, 5a C.Crim., Apelação Crime n° 70015980212, Rel. Amilton Bueno
de Carvalho, Julgado em 28.03.2007.
53 Brasília, Tribunal Regional Federal da la Região, 4a T., Apelação Criminal n° 2005390200 57 Minas Gerais, TJMG, Apelação Criminal n° 3103033-21.2000.8.13.0000, Rel. Des. Edelberto
19468, Rel. Des. Fed. Hilton Queiroz, Fonte: e-DJFl, data: 20.06.2012, p. 094. Santiago, Data de Julgamento: 18.02.2003, Data da Publicação da Súmula: 21.02.2003.
54 Brasília, Tribunal Regional Federal da la Região, 4a T., Apelação Criminal n° 1998380100 58 Rio Grande do Sul, TJRS, 5a C.Crim., Apelação Crime n° 70015273212, Rel. Amilton Bueno
27158, Rel. Juiz Fed. Conv. Klaus Kuschel, Fonte: e-DJFl, data: 22.09.2009, p. 507. de Carvalho, Julgado em 28.06.2006.
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Se existe um lugar em que o correr dos anos não parece muito alterar a ciência autossuficiente e isso dificulta a comunicação com as demais ciências,
realidade são as salas de aula dos cursos de Direito espalhados pelo País. En- sobretudo para preparar o aluno para as constantes e globalizantes mudan-
tre as aulas ministradas no início do século passado e aquelas oferecidas na ças sociais. A dificuldade de diálogo com as demais ciências sociais torna
última década, talvez se note diferença apenas na vestimenta de alunos e pro- rara a pesquisa interdisciplinar e sujeita o direito aos seus próprios métodos,
fessores, cada vez mais casuais e informais. Na maior parte das faculdades linguagem e racionalidade. O estudo segmentado do direito talvez se expli-
de Direito, o método predominante há décadas consiste em aulas expositi- que pela própria estrutura das faculdades, que seguem o modelo francês de
vas. Técnicas ou metodologias distintas são raras. O professor na sala de aula divisão em departamentos e congregações. Afora as naturais disputas por
faz pronunciar uma conferência, repleta de tecnicismos, cuja arbitrariedade poder, que mais prejudicam do que beneficiam as instituições de ensino, a
é mal disfarçada pela sua antiguidade. Não é nem teoria nem prática. Comu- compartimentalização tende a tornar os setores incomunicáveis, integrados
mente, é apenas a repetição de fórmulas doutrinárias de pouca ou nenhuma por membros que ordinariamente não planejam ou atuam em conjunto, con-
utilidade: as três maneiras de interpretar a norma tal, as duas escolas de pen- trariamente ao Direito: intercambiante, abocado e desfronteirizado.
samento sobre o instituto jurídico qual e assim por diante, em uma procissão Esse tipo de abordagem proporciona ao aluno falsa experiência de de-
infindável de preciosismos que não podem ser lembrados (apenas efemera- terminação e sistematicidade do Direito e faz esse escolaticismo doutrinário
mente decorados) porque não podem ser, em qualquer sentido, praticados. e exegético ter pouco valor prático para a vida forense e menor valor ainda
Nem sequer praticados como maneira de analisar59 • Os alunos são condicio- para o entendimento e o manejo dos pactos nacionais de poder. Em suma,
nados a serem agentes passivos do processo de formação e levam esse tipo domina uma cultura normativista, técnico-burocrática, assente em três gran-
de comportamento para o momento da atividade profissional. Agrava-se a des ideias: a ideia de que o direito é um fenômeno totalmente diferente de
situação quando o professor não tem nenhuma formação pedagógica. Sua todo o resto que ocorre na sociedade e é autônomo em relação a essa socie-
ação docente normalmente reflete e reproduz a proposta dos professores que dade; uma concepção restritiva do que é esse direito ou do que são os autos
atuaram em sua formação. Em alguns casos, superam as dificuldades e tor- aos quais o direito se aplica; e uma concepção burocrática ou administrativa
nam-se autodidatas em virtude do interesse e do entusiasmo que os envolve dos processos 62 •
na docência60 • Mas, em sua maioria, reproduzem as imperfeições e inefici-
ências do ensino recebido. A pedagogia fica, portanto, ao sabor dos dotes O ensino do Direito Penal costuma ser dicionarizado porque se exa-
naturais de cada professor61 • minam todos os crimes do velho Código de 1940, em exaustiva atividade
que compreende um ano de aulas. Se para aprender a dirigir fosse seguido o
Os assuntos tendem a ser desfiados de forma enciclopédica, por meio mesmo padrão, toda pessoa precisaria guiar vários modelos de automóveis
de aulas expositivo-descritivas que introduzem normas contidas na consti- para conseguir obter a carteira de habilitação. Aparentemente, os comandos
tuição, em códigos ou em leis esparsas. Isso reforça a concepção de que as básicos assimilados não seriam suficientes para lidar com os muitos tipos de
normas devem ser vistas como disposições abstratas, sem conexão clara e carros que existem.
direta com o mundo real, com prevalente enfoque jurídico-dogmático. O or-
denamento jurídico torna-se um sistema autônomo e exógeno à sociedade, O estudo é segmentado porque responsabilidade penal, civil, admi-
que deve ser analisado com método e linguagem própria, o que contribui nistrativa, tributária e consumerista são analisadas separadamente, embora
para a perpetuação do caráter formalista do ensino. O Direito é considerado possam, em decorrência de único fato, conviver no mesmo lugar e tempo.
Cria-se forçado debate entre garantistas e defensores da ordem e se esquece
do real nó górdio do sistema de justiça criminal: desigualdade social.
59 UNGER, Roberto Mangabeira. Urna nova faculdade de direito no Brasil. Disponível em:
A despeito das transformações sociais provocadas pela globalização,
<www .law .harvard.edu/ unger / portuguese/ does f projetos6.docSirnilares>. Acesso em: 25
que são de extrema importância no cenário penal, o estudo é voltado para cri-
nov. 2013.
60 BEHRENS, Maria Aparecida. A formação pedagógica e os desafios do mundo moderno. In:
MASSETTO, Marcos (org.). Docência na universidade. 10. ed. Campinas: Papirus, 2009. p. 58. 62 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez,
61 GIL, Antonio Carlos. Op. cit., p . 9. 2007. p. 69.
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minalidade interindividual praticada em contexto de baixa complexidade. A longo das últimas décadas minaram os postulados e as categorias das cons-
elaboração dos manuais de Direito Penal conforma-se a esse quadro. Os ima- truções jurídicas herdadas do século XIX65 •
ginários exemplos de infrações penais não costumam ser sofisticados, para A sociedade atual e a conformação do direito precisam ser bem com-
que o consumo seja feito de forma mais tolerável e menos custosa possível. preendidas para arrostarmos o futuro. O ensino de caráter eminentemente
Percebe-se repetição de padrão entre os autores, a demonstrar quão pasteuri- "conteudista" deve ser amenizado e vitaminada a educação jurídica calcada
zada se encontra a abordagem doutrinária. Os manuais, no específico ponto, em habilidades que possibilitem ao aluno agir em um mundo globalizado,
não instigam a reflexão do estudante e isso se comprova pela apresentação complexo, contraditório e em rápida e permanente mudança. Caso a tradição
daquilo que pode mais obviamente explicar algo. Dificilmente são trazidos do ensino jurídico seja mantida, somente no momento da prática profissional
conjuntos de crimes para idealizar os institutos jurídicos, a despeito de ser os estudantes perceberão a insuficiência de sua formação para fazer frente à
cada vez maior a prevalência das grandes atividades econômicas transnacio- complexidade dos problemas que lhe são apresentados na vida real, que vão
nais, tanto lícitas como ilícitas, desde os off-shores à criminalidade de colari- muito além dos simplórios e irreais casos penais contidos nos manuais.
nho branco, ao tráfico internacional de drogas e armas, até, enfim, às novas
formas de criminalidade, como os cybercrimes e o tráfico de órgãos, passando
CONCLUSÃO
pelo aparecimento de novos riscos à escala global, pelo aumento da crimina-
lidade violenta, e por outros modos organizados de atuação, cada vez mais Explosões de carros e aviões, ataques contra falsos ursos, náufragos
com conexões internacionais e transfronteiriças. A baixa complexidade dos agarrados a uma tábua, índios e brinquedos enfeitiçados, várias ma~uina­
exemplos penais contrasta com a sociedade mundial de risco, na qual apa- ções mirabolantes de homicídio ... Como visto, estes são alguns dos Ingre-
recem, no lugar do relacionamento nacional bipolar entre cidadão e Estado dientes presentes no ensino jurídico-penal.
- existente em ordenamento jurídico fechado, organizado hierarquicamente, O drama e a fantasia fazem parte do fascínio pelas ciências penais, o
com um único soberano e Direito Penal claramente definido - diversos atores
que se depreende claramente das situações abordadas no ensino da maté:ia.
nacionais, supranacionais e internacionais, públicos e privados. Atuam em
O recurso ao imaginário pode ser bom método didático, desde que não seJa o
complexos sistemas com diversos níveis e formas de controle social, contam
único. O homicídio impera nos livros e, mesmo que sua ocorrência em rela-
com distintos subsistemas jurídicos e proteção de liberdades civis variada-
ção a outros crimes seja diminuta, o apelo mortal atrai e seduz. A tragédia é
mente composta, além de haver complexas relações de trocas 63 •
elemento do Direito Penal e essa característica destaca-se no caráter tanatofí-
Essa mudança da sociedade, da criminalidade e do sistema de referên-
lico que informa os manuais.
cia desafia o Direito Penal clássico - baseado no território estatal e na repres-
são - e gera modificações fundamentais, especialmente no tocante aos seus A abordagem do ensino do Direito Penal por meio de crimes de difícil
limites territoriais e funcionais 64, poucas vezes explorado nas salas de aula. concreção no mundo fenomênico mostra-se muito distante do direito prati-
O excessivo idealismo de nossos meios jurídicos costuma cegar-se diante de cado na realidade social e veiculado no exercício jurisdicional. A bem da ver-
uma obviedade: impede de ver como as diferentes mudanças ocorridas ao dade, os contumazes criminosos - Caio, Mévio, Semprônio e Tício - fazem
as vezes de Joãozinho e Mariazinha, em exemplos tão fantasiosos e irreais
quanto as estórias infantis.
A jurisprudência oferece alternativa para tornar menos abstrato o en-
sino jurídico. Exemplos possíveis foram apresentados em contextos que as-
sociavam muito bem a parte didática à realidade. O uso de associações e
63 PEREIRA NETO, Pedro Barbosa. Cooperação penal internacional nos delitos econômicos. comparações é forte instrumento do aprendizado, porque natural à cognição
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 54, p. 156, maio/jun. 2005.
64 SIEBER, Ulrich. Limites do direito penal - Princípios e desafios do novo programa
de pesquisa em direito penal do instituto Max-Planck de direito penal estrangeiro e 65 FARIA, José Eduardo. Globalização econormca e reforma constitucional. Revista da
internacional. Cadernos de Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 28, maio 2008. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 90, p . 254, 1995.

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PEREIRA NETO, Pedro Barposa. Cooperação penal internacional nos delitos econômicos.
humana, e por meio desses mecanismos torna-se mais fácil compreender o
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n . 54, maioljun. 2005.
objeto analisado. Quanto mais próximo do mundo real, mais profícuas serão
PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de direito penal brasileiro.
as correlações e, provavelmente, a assimilação do conteúdo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2011.
O ensino jurídico carece de renovação. A forma atual apenas enaltece PIRES, Ariosvaldo de Campos. Compêndio de direito penal - parte geral. Colaboração e
e propaga a cultura técnico-burocrática normativa que se assenta na visão atualização de Sheila J. Selim de Sales. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 2005.
do direito como algo autônomo, exógeno à sociedade, reservado a poucos PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral, arts. 1° a 120. 10. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2011.
iniciados. Esse tipo de abordagem proporciona ao aluno falsa experiência de
RAMOS, Luciana de Oliveira; SCHORSCHER, Vivian Cristina. Método do caso. In:
determinação e sistematicidade do Direito e faz o escolaticismo doutrinário
GHIRARDI, José Garcez (org.). Métodos de ensino em direito- Conceito para um debate.
e exegético ter pouco valor prático para a vida forense. A educação jurídi- São Paulo: Saraiva, 2009.
ca deve buscar novas formas de se realizar, com metodologias diferentes e SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo:
inovadoras, que possibilitem ao aluno posicionar seu conhecimento e a si Cortez, 2007.
mesmo em um mundo dinâmico, complexo e contraditório. A baixa comple- SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris, 2006.
xidade dos exemplos penais descritos nos manuais contrasta com a sofistica- SIEBER, Ulrich. Limites do direito penal - Princípios e desafios do novo programa de
ção da sociedade mundial e, com isso, faz menos promissora a expectativa de pesquisa em direito penal do instituto Max-Planck de direito penal estrangeiro e
mudanças no panorama da educação jurídico-penal. internacional. Cadernos de Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 3, maio 2008.
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